Antonio Gramsci

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Antonio Gramsci
ANTONIO GRAMSCI (Ales, 1891 – Roma, 1937) (PARTE I)1
Luca Palmesi
Graduado e Mestrando em História pela UFMG
membro do Núcleo Psol Isegoria, BH/MG
Nesta parte I vamos nos ater a responder quem foi Antonio Gramsci, porque falamos dele aqui,
qual sua importância, qual seu contexto histórico e suas ideias de juventude, enfim, deixando para
depois demais aspectos (sobretudo políticos) sobre o grosso de sua obra e teoria, contidos nos
Cadernos do Cárcere (1929-35), escritos durante a reclusão no cárcere fascista (1926-1937) e
publicados apenas post-mortem.
PRIMEIROS ANOS, a ITÁLIA, a SARDENHA e a QUESTÃO MERIDIONAL
Antonio Gramsci, o “Nino” nasceu num pequeno povoado na ilha da Sardenha, Itália, em 1891,
onde viveu por pouco tempo, tendo se mudado com a família algumas vezes para outros vilarejos
da ilha. Desde a infância sofreu de diversos problemas de saúde, que o acompanharam por toda a
vida, como o Mal de Pott, uma terrível tuberculose que atinge as vértebras. Por conta de
dificuldades financeiras, Gramsci precisou trabalhar para continuar seus estudos e mais tarde,
conseguiu uma bolsa para se inscrever na Universidade em Torino, capital da região do Piemonte,
voltada para estudantes pobres da Sardenha.
A Itália de então era uma Monarquia constitucional, de caráter liberal, com profundas disparidades
internas, econômicas e também culturais – grande parte da população era analfabeta e ainda
predominavam largamente as línguas/dialetos locais, em detrimento do italiano, língua da política,
dos jornais, dos pronunciamentos públicos. A unificação política e econômica do país, ocorrida nos
anos 60 do século XIX, havia dado à burguesia do norte do país condições de sustentar a empresa
capitalista agrícola e a industrialização com baixos salários pagos à grande mão de obra oriunda do
sul do país e demais regiões agropastoris tradicionais, mesmo no norte. Além disso, tais regiões
passaram a pagar impostos que antes não existiam, o que as asfixiou economicamente. Esta
situação acentuou ainda mais as disparidades regionais, mantendo principalmente as regiões
sulistas em situação de grande desvantagem e subdesenvolvimento econômico2. Diversas foram as
revoltas contra tal situação, duramente reprimidas, conhecidas como brigantaggio e a chamada
1
Todas as traduções são do autor do texto.
Caso-exemplo do desenvolvimento do centro apoiado no subdesenvolvimento da periferia, lembrado
por Celso Furtado em sua Formação econômica do Brasil, que nos ensina sobre sua semelhança com o
desenvolvimento econômico de São Paulo, que aprofundou as disparidades com o nordeste brasileiro,
mantendo-o subdesenvolvido.
2
1
“Questão meridional” ocupou o centro dos debates da intelectualidade de então. As condições de
vida dos trabalhadores em diversos locais eram muito ruins. No princípio do século XX, os mineiros
e outros trabalhadores da Sardenha chegavam a trabalhar 15 horas por dia, sete dias por semana e
tiveram de lutar duramente para conquistar uma folga semanal.
A ilha de Gramsci era muito pobre e com instituições sociais próprias e modos de vida tradicionais,
um grande contraste com a industrial Torino. A Questão meridional marcou as preocupações de
Gramsci, tendo sido partidário de um vivo regionalismo ainda em juventude. Seus estudos
universitários também foram por aí, ao interessar-se principalmente pela glotologia (linguística
histórica), dedicando-se ao estudo das línguas sardas, depois também à estrutura social de sua ilha.
Foi um estudioso vigoroso e intenso, embora sofresse de problemas psicológicos e físicos,
agravados por suas péssimas condições materiais de vida e por seu isolamento na juventude.
Em 1911 iniciou sua amizade com o novo companheiro de quarto, Angelo Tasca, um militante
socialista, a partir do qual começaram seus contatos com a juventude socialista. Dois anos depois, a
experiência de acompanhar a surpreendente mobilização política dos camponeses (tidos como
atrasados) de sua ilha, em vista das eleições, o faz aproximar-se definitivamente dos socialistas,
inscrevendo-se à seção de Torino, do Partido Socialista Italiano.
A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, o PSI e o SURGIMENTO DO FASCISMO
Em 1914 tem início a Primeira Guerra Mundial e na Itália abre-se um debate sobre qual posição
tomar. Apenas no ano seguinte, o Reino decide-se pela entrada junto à França, com o intuito de
tomar aquelas regiões consideradas italianas, sob o domínio do Império Austríaco, além de
expandir os domínios coloniais do país.
Os socialistas inicialmente mantiveram a posição internacionalista, que avaliava a guerra como
burguesa e defendia o boicote do proletariado à guerra, embora com grandes divergências
internas. Mas a posição do Partido Social-Democrata Alemão de votar a favor da entrada da
Alemanha na Guerra escandalizou o ambiente socialista, passando a vigorar entre a ala então
considerada revolucionária do PSI, a posição de que havia ocorrido uma traição do proletariado
alemão e que os socialistas italianos poderiam defender uma participação na guerra com o intuito
de armar os trabalhadores, derrotar o imperialismo austríaco e alemão, e imediatamente depois da
Guerra fazer a revolução armada3. O principal defensor desta posição foi Benito Mussolini, então
3
Fala de um militante do sindicalismo revolucionário, Filippo Corridoni, com quem Mussolini teve
grandes relações, elucida um pouco a mudança de posição da neutralidade absoluta para o
intervencionismo: “Os proletários da Alemanha declararam ser primeiro alemães e depois socialistas. Eis
2
militante de longa data do PSI, membro de sua direção e diretor do jornal do partido, o Avanti!.
Antes de ser expulso do partido (24 de novembro), publicara em outro jornal socialista, sua posição
de que os socialistas italianos deveriam se tornar “protagonistas” do “drama grandioso” da Guerra
(“Da neutralidade absoluta à Neutralidade ativa e operante”. Il Grido del Popolo. 18 de outubro,
1914). Iniciou uma campanha intervencionista, com o apoio financeiro secreto do Governo
Francês4 e de grupos de industriais de Milão, que lhe valeu a expulsão do partido, junto com sua
nova facção de socialistas nacionais, que passou a se organizar separadamente, com um discurso
contraditório, de inspiração socialista revolucionária e nacionalista, aderindo diretamente à Guerra.
Após retornar da Guerra, em 1917, Mussolini, ferido e condecorado, passou a defender um
estatuto diferenciado aos ex-combatentes, chegando a formular que estes deveriam se tornar um
novo grupo dirigente. Com o fim do conflito, em 1919, organizou os fasci italiani di combattimento,
que não conseguiu eleger sequer um parlamentar. Depois de adotar um discurso claramente
anticomunista, conseguiu conquistar o financiamento da grande burguesia industrial e agrária,
fundando em 1921 o Partido Nacional Fascista que, mesmo elegendo naquele ano uma pequena
bancada, chegaria ao poder no ano seguinte, por meio de um golpe, instalando uma trágica
ditadura que terminaria apenas em 1943.
A GUERRA, a REVOLUÇÃO, o BIÊNIO VERMELHO e a CRISE do PSI
Naquele contexto, Gramsci engajou-se na campanha pacifista do PSI contra a Primeira Guerra
Mundial e tomou parte da fração revolucionária do partido, participando às grandes
movimentações operárias e estudantis de então, no que ficou conhecido como Semana Vermelha.
Defendeu a Neutralidade absoluta frente à Guerra, passando depois a defender publicamente a
“Neutralidade ativa e operante” (Il Grido Del Popolo, 31 outubro, 1914), desenvolvendo e
um fato novo, que ignorávamos e erramos em não intuí-lo” (Comício intervencionista: Ilario Fermi,
Corridoni, in La Tribuna illustrata, Anno XI, 28 maggio 1933, pag. 15) e “Nós não acreditávamos na
traição dos proletários alemães e austríacos: se consumou. Quando os nossos governantes previam a
possibilidade de uma guerra europeia (...) – e (...) [produziam] os armamentos indispensáveis – nós
negávamos violentamente e respondíamos triunfantes que mesmo que tal hipótese tivesse a
possibilidade de realizar-se, a greve geral insurrecional do proletariado no ato da mobilização teria
troncado a guerra imediatamente. Nos iludíamos. Os fatos nos deram a mais solene desmentida, e se
não formos uns cabeças-duras, daqueles que querem ter razão a qualquer custo, estamos no dever de
reconhecer que não vimos bem, e estamos na obrigação portanto, de retomar em exame todos os nosso
planos de guerra, para conformá-los às exigências da situação alterada” (no jornal Avanguardia: Tullio
Masotti, Corridoni, Casa editrice Carnaro, Milano, 1932, pag. 87-88-89).
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Mussolini foi descrito como um agente do Ministério Francês em Roma, tendo recebido dez milhões de
francos, do ministério do socialista Jules Guesde, para realizar campanha a favor da intervenção ao lado
dos aliados. (Massimo Novelli, Il giovane Mussolini al soldo della Francia, La Domenica di Repubblica, La
Repubblica, 14 dicembre 2008, p. 31)
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interpretando do seguinte modo aqueles argumentos que considerava mais fortes do texto de
Mussolini, feito de “desorgânicas declarações”: a Guerra era o destino ao qual a burguesia por sua
função histórica, havia conduzido a nação; deixar que a mesma ocorresse mostraria as falhas da
classe dirigente, abrindo ao proletariado a oportunidade de livrar-se desta e dominar as coisas
públicas. Esta intensificaria o caráter de “antítese irredutível” dos destinos do proletariado frente
aos da burguesia. Considerando-o ainda imaturo para assumir o “timão do Estado”, este não
deveria sabotar a Guerra, porque esta poderia lhe qualificar em sua disciplina para dirigir, em sua
consciência e porque deveria “deixar operar aquelas forças, que o proletariado, não sentindo-se
[ainda] apto a substituir, entende que são mais fortes”. Não era uma posição nacionalista, próGuerra, como a que fora assumida em seguida, pelo grupo expulso do PSI, um mês depois.
Este é o início de sua atividade como polemista e escritor em diversos jornais de esquerda. Suas
crises nervosas, no entanto, atrapalharam muito seus estudos e o obrigaram a interrompê-los. Os
alvos preferidos de sua crítica juvenil foram a retórica nacionalista e intervencionista e os costumes
da vida intelectual e social de então, além de ter se empenhado intensamente na crítica teatral e
na organização de conferências nos círculos operários sobre diversos autores e temas, como Marx,
Rommand Rollain, a Comuna de Paris, a Revolução Francesa etc.
Em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial, eclodiu a Revolução Russa, que contribuiu para
acentuar as tensões no movimento operário europeu como um todo e muitos passaram a acreditar
na iminência da revolução socialista em diversos países. Havia no PSI diversas correntes internas. A
corrente majoritária era conhecida como maximalista, por defender a implantação do programa
máximo do socialismo. Mas principalmente entre 1911 e 1914, o esforço do IV governo de Giovanni
Giolitti em assimilar o PSI à institucionalidade havia dado relativamente certo e a corrente
majoritária passou a ser duramente criticada pelas correntes à esquerda, que denunciavam seu
crescente fisiologismo e imobilismo frente à radicalização do movimento operário. Dentre estes
esforços de assimilação do PSI estavam diversas medidas progressistas: a diminuição da repressão,
aceitação das greves e protestos pacíficos, a nacionalização das seguradoras e das ferrovias, a
legislação social e do trabalho e a adoção, desde o pleito de 1913 do sufrágio universal masculino.
Esta medida ampliou muito os resultados eleitorais dos socialistas. Mas a invasão da Líbia (contra a
vontade de Giolitti) em 1911, impulsionada pelo bloco nacionalista no Parlamento (do qual o
Governo permaneceu refém, pela hesitação dos socialistas em defendê-lo formalmente) acabou
afastando definitivamente a possibilidade do PSI de compor formalmente com o Governo.
O crescimento eleitoral do PSI até 1919, decorrente da empolgação com a Revolução Russa,
promoveu a possibilidade de novos progressos nas regras eleitorais, apoiados sobretudo pelos dois
partidos de massas de então (além do PSI, o PPI, partido popular, de tradição democrática e cristã),
chegando a garantir uma representação mais democrática, segundo critérios de proporcionalidade
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e reforma nos colégios eleitorais. Isto, junto ao crescimento das greves e ocupações de fábricas,
sem dúvida ajudou os partidos liberais a apoiarem o nascente movimento fascista, quando este
posteriormente decidiu atacar as conquistas democráticas e recusar todas as tentativas giolittianas
de continuar tentando assimilar os socialistas.
O chamado Biênio Vermelho (1918-19) foi uma grande ascensão do movimento operário na Italia,
com greves, criação de conselhos operários nas fábricas, além do crescimento do Partido e de suas
correntes de esquerda, com nítida queda dos reformistas, que haviam desde 1892, influenciado
decisivamente no seu programa político. Mesmo aderindo de imediato à Internacional Comunista,
desde a sua criação, em 1919, a direção do PSI foi acusada de não saber aproveitar a ocasião
revolucionária criada pelos operários naqueles anos e de ser conivente com o boicote da CGL à
radicalização dos operários, principal central sindical do país, estreitamente ligada aos socialistas. A
ala direita, reformista, do partido criticava o que lhe parecia ser um encantamento mítico com a
Revolução Russa, que distanciava o proletariado da verdadeira revolução, que para eles só poderia
se dar gradualmente e não numa “espera messiânica do milagre violento”. Na realidade, tanto a
esquerda, quanto a direita do partido criticavam o imobilismo da direção, que havia passado a
“esperar” a revolução violenta, mas sem atuar na prática para isso.
O PENSAMENTO DO JOVEM GRAMSCI
Durante a Revolução Russa, em agosto de 1917, Gramsci participara da fundação da fração do PSI,
conhecida como “intransigente revolucionária”, liderada por Amadeo Bordiga (futuro rival de
Gramsci no PCd’I), que passou a pregar o abstencionismo, ou seja, organizar-se somente para a
Revolução e não participar de eleições. Esta foi a época em que Gramsci esteve mais a esquerda e
fora acusado de “voluntarismo” por suas posições extremadas. Mas sua reflexão levou-o para
outro caminho, criticando depois tais posições que considerava sectárias e equivocadas. Nessa
época, Gramsci liderou um movimento que via como fundamental a militância em campo cultural,
ao lado da ação política e econômica, propondo a criação em Torino, de uma associação proletária
de cultura e funda com membros da juventude um “Clube de vida moral”. Em dezembro de 1917,
Gramsci comentou a tomada do poder por parte dos bolcheviques, chamando a Revolução Russa
de A revolução contra O Capital (o livro de Karl Marx), em texto homônimo publicado no jornal do
partido, Avanti! de Milão (24 de dezembro). Isto era no sentido de ter desafiado a ortodoxia
marxista de então (II Internacional), que não acreditava que isso poderia ocorrer num país
periférico, além de criticar as posições ortodoxas que acreditavam num etapismo abstrato, numa
história que pouco dependia das vontades políticas dos homens e muito dependia de esquemas
evolucionistas já traçados. Gramsci, desde o princípio colocou-se o problema da ação política e
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mesmo no ápice de seu voluntarismo idealista, foi capaz de perceber e de tecer uma crítica
fundamental à política socialista daqueles anos, direcionada principalmente aos mencheviques,
mas que valia também a todos aqueles socialistas que pretendiam “aguardar” a revolução, sem
sensibilidade para compreender a necessidade de agir, enquanto o movimento operário estava
muito à frente de sua direção política e sindical:
A revolução dos bolcheviques é feita de ideologia mais que de feitos [...] essa
é a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na
Rússia, o livro dos burgueses, mais que de proletários. Era a demonstração
crítica da fatal necessidade que na Rússia se formasse uma burguesia, se
iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental
antes que o proletariado não pudesse nem mesmo pensar ao seu contraataque, às suas reivindicações de classe, à sua revolução. Os fatos
superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos
dentro dos quais a história da Rússia teria devido desenvolver-se, segundo os
cânones do materialismo histórico [...] se os bolcheviques renegam algumas
afirmações do Capital, não renegam seu pensamento imanente, vivificador.
Eles não são «marxistas», eis tudo; não compilaram sobre as obras do
Mestre, uma doutrina externalista de afirmações dogmáticas e indiscutíveis.
Vivem o pensamento marxista, aquele que não morre nunca, que é a
continuação do pensamento idealista italiano e alemão, que em Marx tinhase contaminado de incrustações positivistas e naturalistas.
Nesse sentido, Lenin foi celebrado por Gramsci como um líder com grande sensibilidade para
compreender sua própria realidade e definir uma estratégia política relacionada a isso e não com
uma ortodoxia abstrata e determinista. Empolgado, Gramsci defendeu o alinhamento total e
estreito aos preceitos leninistas da Internacional. Sua linha de pensamento posteriormente, nos
tempos do cárcere fascista, se elaborou muito mais, no sentido da compreensão da realidade, de
maneira profunda e dialética, auxiliada por um grande instrumental teórico e se afastado
consideravelmente das teses que associavam a Revolução à mudança abrupta e violenta, imagem
que havia sido plasmada nas mentes pelas narrativas da Revolução Francesa, do período do Terror
e reforçada pela tomada do poder na Rússia de 17. Pode-se dizer que, ao dar centralidade à
questão da ação política, da ação cultural, bem como do fracasso da imitação da estratégia
soviética no ocidente, aliados à defesa do estudo paciente da história, das relações particulares de
cada sociedade, e ao refutar veementemente o economicismo, o sociologismo e o positivismo,
Gramsci elaborou o instrumental conceitual mais adequado ao entendimento marxista do conceito
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de Revolução (o do processo de transformação profunda da sociedade como um todo e não da
mera tomada do poder) e àqueles que têm como ideal a conquista do autogoverno, da sociedade
em que a coerção cedeu espaço à democracia e à produção do consenso – aquilo que chamamos
de socialização da política, sobre a qual discorreremos melhor no texto da II parte.
Testemunha do vigor da vontade e do poder do radicalismo do jovem Gramsci é sem dúvida seu
famoso texto os “Indiferentes”, de Fevereiro de 1917, publicado pela Federação juvenil socialista
do Piemonte, em número único, A Cidade Futura, junto de outros importantes escritos desta
época. Aqui trazemos os “Indiferentes” quase completo:
Odeio os indiferentes. Acredito como Friedrich Hebbel que “viver quer dizer
ser partidário” [em italiano, partigiano, o termo é de significado mais denso
e tem uma longa história na cultura política, das lutas das cidades-estado do
fim da Idade Média à luta de libertação nacional contra o domínio
nazifascista, passando pelos movimentos políticos de massas do século XIX e
XX]. Não podem existir os somente ‘homens’, os estranhos à cidade. Quem
vive verdadeiramente não pode não ser cidadão, e tomar parte
[parteggiare]. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida.
Portanto odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a bola de chumbo para o
inovador, é a matéria inerte em que afogam com frequência os entusiasmos
mais esplendentes, é o pântano que cerca a velha cidade e a defende melhor
que as muralhas mais firmes, melhor que os peitos de seus guerreiros,
porque engole em seus sorvedouros limosos os que a tomam de assalto, e os
dizima e lhes tira o ânimo e por vezes os faz desistir da empresa heroica.
A indiferença opera potentemente na história. Opera passivamente, mas
opera. É a fatalidade; (...) a matéria bruta que se rebela à inteligência e a
estrangula (...). Aquilo que ocorre, não ocorre tanto porque alguns querem
que ocorra, quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade,
deixa fazer, deixa agrupar os nós que depois só a espada poderá cortar,
deixa promulgar leis que depois só a revolta fará revogar, deixa subir ao
poder homens que só um amotinamento poderá derrubar. A fatalidade que
parece dominar a história não é outra coisa senão aparência ilusória desta
indiferença (...) parece que a história não seja mais que um enorme
fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, do qual todos são vítimas,
quem quis e quem não quis, quem sabia e quem não sabia, quem foi ativo e
quem indiferente. E este último se irrita, gostaria de escapar às
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consequências (...). Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam
obscenamente, mas ninguém ou poucos se perguntam: se tivesse feito eu
também o meu dever, se tivesse tentado fazer valer a minha vontade (...)
teria ocorrido o que ocorreu?
(...) [as belíssimas soluções infecundas, elaboradas sem responsabilidade
histórica] permanecem belíssimas infecundas, mas esta contribuição à vida
coletiva não é animada de alguma luz moral; é produto de curiosidade
intelectual, não de pungente senso de uma responsabilidade histórica que
quer todos ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de
nenhum gênero.
Odeio os indiferentes também pelo enjoo que me dão seus choramingos de
eternos inocentes. (...) sinto de poder ser inexorável, de não dever
desperdiçar a minha piedade, de não dever compartilhar com estes as
minhas lágrimas. Sou partidário [partigiano], vivo, sinto nas consciências
viris da minha parte já pulsar a atividade da cidade futura que a minha parte
está construindo. E nessa a cadeia social não pesa sobre poucos, nessa cada
coisa que acontece não é devida ao acaso, à fatalidade, mas é inteligente
obra dos cidadãos. Não há nessa ninguém que esteja à janela a olhar
enquanto os poucos se sacrificam (...)
Vivo, sou partidário [partigiano]. Portanto, odeio quem não toma parte
[parteggia], odeio os indiferentes.”
L’ORDINE NUOVO, RUPTURA com o PSI e FUNDAÇÃO do PCd’I
Seu trabalho em diversas publicações passou a ser razoavelmente conhecido, polemizando e
debatendo também com intelectuais de diferentes opiniões políticas e em outubro de 1918,
assume parte na criação da edição piemontesa do Avanti!, trabalhando como redator, quando
consegue em poucos meses aumentar a tiragem de 16 mil cópias a 50 mil. No ano seguinte,
aproveitou a estada dos camponeses-soldados da Brigata Sassari (originários da Sardenha) em
missão de segurança pública em Torino, Gramsci realizou um eficaz trabalho de propaganda
socialista.
A estas alturas havia reunido um grupo interessado em dar vida a uma nova revista de
engajamento cultural, L’Ordine Nuovo ou “A Nova Ordem. Resenha semanal de cultura socialista”.
No primeiro de maio saiu o primeiro volume da revista, com o mote impresso na capa: “Instruí-vos
porque precisaremos de toda a vossa inteligência. Agitai-vos porque precisaremos de todo o vosso
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entusiasmo. Organizai-vos porque precisaremos de toda a vossa força.” Mesmo sem tantos
recursos e circulando principalmente no Piemonte, a revista conseguira no ano seguinte saltar de
3000 leitores e 300 assinantes a uma tiragem de 5000 cópias e 1100 assinantes. Nesta publicação
que Gramsci divulgou sistematicamente traduções da imprensa operária internacional (russa,
francesa, inglesa etc.), documentos e testemunhos sobre a vida de fábrica e sobre os conselhos
operários, textos de Lenin, Zinov’ev, Bela Kun etc. e também dos mais vivazes expoentes da
Revolução no campo da cultura: Barbusse, Lunacarskij, Romain Rolland, Eastman, Martinet, Gor’kij.
É ainda em 1919 que o grupo de L’Ordine Nuovo participa da greve política em solidariedade às
repúblicas da Rússia e da Hungria, em que Gramsci foi preso. O grupo reunido em torno da revista
permaneceu ligado à fração comunista abstencionista, liderada por Amadeo Bordiga, publicando o
seu programa, embora mantivesse com o mesmo desde então divergências quanto ao papel
defendido por Gramsci para os Conselhos de Fábricas formados no Biênio Vermelho: as comissões
eram vistas como “centros de vida proletária” e “futuros órgãos do poder proletário” (Democrazia
operaia in: L’Ordine Nuovo, 21 junho, 1919); papel este que aquele reivindicava unicamente para
os Soviets (de onde tirou o nome do jornal de sua corrente). Apesar de participar da fração mais a
esquerda, o grupo do semanário cultural apoiou a tese centrista do “maximalismo eleitoral”, no XVI
Congresso do PSI, de Bolonha, que foi também o Congresso que ratificou a adesão do PSI à
Internacional Comunista, já previamente decidido pela direção.
As tensões internas aos socialistas aumentaram quando, sob inspiração de Lenin, a Internacional
Comunista elaborou 21 pontos de aceitação obrigatória para que os partidos se filiassem à mesma.
Dentre os quais estava a expulsão dos reformistas. Este debate foi a polêmica do XVII Congresso do
PSI, ocorrido em Livorno, em 1921, com representantes da Internacional. Pelo menos desde o ano
anterior, a fração comunista estava firmemente organizada, quando em outubro assinaram em
conjunto um “Manifesto-programa”, os diversos grupos da fração comunista (abstencionistas,
grupo de L’Ordine Nuovo, outros da esquerda do PSI), em que decidem aceitar integral e
imediatamente os 21 pontos. Pouco depois a fração começou a se organizar já como um partido
separado. A partir daí, o órgão oficial do Partido, Avanti! de Torino, assumiu o programa de
L’Ordine Nuovo, que começou a sair em jornal diário, com o mote “Dizer a verdade é
revolucionário”. Antes decidir pela cisão à esquerda, o grupo ainda tentou em 1920 publicar uma
moção na revista, em favor de uma renovação do partido, no sentido da adesão ao bolchevismo.
O Congresso iniciou com recordações da insurreição espartaquista da Alemanha, de 1919 e com as
saudações dos diversos partidos europeus já “bolchevizados”. Logo no princípio a Federação da
juventude pré-anunciou a sua adesão ao novo Partido Comunista. A tese vencedora era favorável a
uma adesão flexível aos 21 pontos e contrária à expulsão dos reformistas, a segunda mais votada,
com metade dos delegados da primeira, foi a comunista e a minoria ficou com os reformistas.
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Gramsci e seu grupo resolveram sair do Congresso para realizar I Congresso do novo partido, o PCI
ou PCd’I como se chamou à época, e garantir o alinhamento em relação à Revolução Russa, à
Internacional e uma definição clara do caráter revolucionário do partido, que não aceitava
permanecer com uma prática reformista... uma saída pela esquerda. Enquanto o Comitê Executivo
da Internacional anunciava a exclusão do PSI (contra sua vontade). Pela sua proximidade com a
Internacional, Gramsci chegou a participar de seu Comitê Executivo, em 1923, após viagem a
Moscou e em 1924 fundou o que se tornaria o mais importante órgão de imprensa do PCI e um dos
que mais circula no país (ainda hoje), L’Unità (A Unidade).
Foi o triunfo “do que estava dando certo”, digamos, contra toda a teoria e a ortodoxia da prática
dos partidos socialistas de então. Como já ressaltamos tanto a corrente mais a esquerda quanto a
mais a direita haviam percebido esta debilidade da ortodoxia centrista e no ano seguinte à cisão de
esquerda, a direita abandonou o partido, quando seu líder tentou formar um governo com outros
partidos burgueses. Após a expulsão do PSI, os reformistas fundaram o Partido Socialista Unitário,
que criticava a apologia à violência feita pelos comunistas, que estes acreditavam estimular o
crescimento da violência dos esquadristas fascistas nas ruas do país. Pouco depois, a dificuldade
em formar um governo no país dá a oportunidade que Mussolini aproveitou para aplicar o golpe,
com a sua Marcha sobre Roma (1922).
O PARTIDO COMUNISTA D’ITALIA sob o REGIME FASCISTA
Após a Marcha sobre Roma e o acordo entre o Rei Vittorio Emmanuele III e Mussolini para formar
um Governo, a coisa começou a ficar complicada para os comunistas. Os liberais e grupos
centristas, mesmo não sendo entusiastas do Fascismo, decidem apoiá-lo em função anti-comunista
e anti-socialista, após o fracasso em convencer o PSI a participar formalmente de um governo com
os partidos burgueses tradicionais. Em 1923 o Parlamento aprovou uma lei polêmica, com a
oposição apenas do PSI, PSU e PCI, que modificava a lei eleitoral, dando um prêmio de maioria de
2/3 da Câmara, ao grupo que conseguisse 25% dos votos, restando o outro 1/3 a ser repartido
entre as minorias, além de remover a incompatibilidade de acumulação de muitos cargos públicos
– uma sentença de morte à democracia, um suicídio parlamentar como muitos disseram.
Mussolini apresentou na eleição de 1924, um “listão” em que havia conseguido cooptar uma
quantidade enorme dos velhos expoentes da política liberal e ainda apresentou uma chamada lista
civetta (“lista coruja”), uma lista eleitoral falsamente separada do listão destinado a conquistar a
maioria, de modo que mesmo o 1/3 destinado à oposição fosse repartido com candidaturas
“laranjas”, pró-fascismo. O resultado foi desastroso e em eleições controladas à base do cacete em
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diversas regiões, o PNF conseguiu 60% dos votos, obtendo o prêmio de maioria, mais as cadeiras da
“lista coruja”, saltando de suas três dezenas de cadeiras a quase quatro centenas, restando à
oposição de centro e de esquerda apenas 161 cadeiras de 535. Mesmo assim, conseguiram manter
a maioria dos votos no norte.
Gramsci conseguiu se eleger em 1924, como deputado (havia falhado na eleição anterior). O
regime tentava manter uma "fachada legal", então permitiu a breve existência da oposição
parlamentar. O assassinato de um ativo parlamentar antifascista (Socialista Unitário), após sua
crítica radical ao processo eleitoral, considerando-o publicamente inválido e antidemocrático,
Giovanni Matteotti (episódio chamado Delitto Matteotti, 1925) fez com que estes parlamentares
antifascistas parassem de reconhecer o Parlamento, se reunindo separadamente (os comunistas
com Gramsci, assim como Giolitti, criticaram a iniciativa, que deixava o Parlamento todo com o
Governo). Essa "manobra" saiu pela culatra e favoreceu a escalada autoritária do regime, que
começou a prender e cassar os mandatos destes deputados... Gramsci também foi preso nessa.
Antes das medidas de exceção, no começo de 1926, o PCI realizou seu III Congresso, em Lyon, no
exílio e lá Gramsci conseguiu atrair 90% dos consensos e se tornou o secretario-geral, escrevendo
as Teses de Lyon, posição tática mais ao centro que as de Bordiga, criticado por mecanicismo. No
fim do ano começaram os "procedimentos excepcionais" do regime e a bancada comunista foi toda
presa, os partidos foram considerados ilegais, exceto o PNF.
Gramsci, na cadeia, resolveu fazer um plano de estudo e escrever. Ele conseguia cadernos, livros e
periódicos com a cunhada... e o direito de escrever com o Juiz. Além disso, seus problemas de
saúde se agravaram dramaticamente. Em meio às suas peregrinações pelos cárceres fascistas,
passava diversas vezes por crises de grande desgaste físico e psicológico. Apesar disso, conseguia
se reunir com companheiros nas horas do passeio e continuar realizando reuniões do partido ou
discutindo os rumos do comunismo. Ficaram poucos relatos sobre suas opiniões diretas a respeito
dos rumos da Internacional, mas sabemos que criticou duramente as posições assumidas a partir
de 1928, quando Stalin elaborou a (absurda, para nós) tese do “socialfascismo”, em que a
socialdemocracia deveria ser considerada a “ponta avançada da reação”, equiparada aos fascistas.
Também se preocupou muito com a guinada autoritária do PCUS, quando iniciaram os processos
que culminaram na perseguição às minorias no partido, mas enquanto pode manteve as posições
mais diplomáticas possíveis em relação à linha majoritária da Internacional, criticando sempre o
sectarismo da minoria ao mesmo tempo em que conclamava à direção que repensasse seus
métodos. Para evitar novas divisões inúteis, cessou o diálogo com diversos companheiros no
cárcere, em acesa divergência com suas posições. Em 37 ele ganhou a "liberdade" para ir para a
clínica Quisisana (aqui se cura), onde acabou morrendo.
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O CÁRCERE e os CADERNOS...
Gramsci escreveu 33 cadernos na cadeia até 1935. Além de diversas correspondências. A forma dos
escritos nos cadernos é a de reflexões mais ou menos soltas, embora respeitassem os interesses
descritos nos seus planos de estudo (presentes nas cartas enviadas à cunhada). Tanto a cunhada
Tatiana, quanto o economista Piero Sraffa foram fundamentais para manter Gramsci fornecido de
livros e revistas que pedia, para alimentar seu estudo, que segundo sua própria expressão teria a
finalidade de “centralizar sua vida interior”, profundamente afetada pela prisão.
O Gramsci dos Cadernos difere em muito no espírito do jovem Gramsci, voluntarista e idealista (de
inspiração declarada na Filosofia de Benedetto Croce, que fora Senador liberal-democrata, antimarxista, e importante filósofo da tradição idealista de Vico e Hegel), dos escritos jornalísticos. A
maioria de seus escritos tinha sido publicada, sem que ele se preocupasse em assiná-los, nos
órgãos do partido e rejeitara diversos convites para publicar reuniões e coletâneas dos mesmos, o
que dificultou um pouco a vida de quem quis estudá-lo depois – parte de sua produção foi de fato
perdida e nunca republicada. Sua justificativa lacônica para não publicá-los era que se tratava de
escritos da ordem do dia, portanto deveriam passar depois do dia. Certamente a questão não deve
ter sido só essa. Valentino Gerratana, um dos maiores estudiosos de Gramsci, nos atenta para a
“contínua construção de si próprio”, traço inconfundível do caráter de Gramsci, que nesta
cansativa autoconstrução nunca viu o dever de um “gigante”, apenas de “um homem médio”. Cada
vez que se sentia abatido e tudo parecia perdido, acreditava que era necessário reunir suas forças e
retomar calmamente a obra toda do princípio. No entanto, muitos o viram como um “gigante” e se
chocaram com a sua baixíssima estatura quando o conheceram no cárcere, o que contrastava com
a visão de diversos outros companheiros de partido que sequer tinham ouvido falar dele. Segundo
ele próprio
Me convenci que é necessário sempre contar somente sobre si próprio e
sobre as próprias forças; não esperar nada de ninguém e portanto não
procurar para si desilusões. Que ocorre propor-se de fazer só aquilo que se
sabe e se pode fazer e ir pela própria via. A minha posição moral é ótima:
quem acredita que sou um satanás, quem acredita que sou um santo. Eu não
quero fazer o papel nem de mártir, nem de herói. Acredito ser simplesmente
um homem médio, que têm as suas convicções profundas, e que não as
despacha por nada no mundo. (Cartas do Cárcere)
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A degradação de sua condição psicológica foi grave e condicionou a lenteza e dificuldade com que
iniciou seus trabalhos de escrita. Sabia que devia se preparar para o pior, “desaparecer como uma
pedra no oceano” (quando equivocadamente lhe informam que seria deportado para a Somália –
habituar-se à ideia de morrer em breve foi segundo ele, uma “guinada moral” em sua vida). Na
incerteza de sua sorte, o problema do estudo foi posto nos termos de uma autodefesa contra a
degradação intelectual e moral, de que sente estar correndo riscos. São como exercícios que se
propõe, mas com a condição de tentar fazê-los superar a tensão entre o estudo como razão de vida
e como meio de sobrevivência naquelas condições.
Daí surge a necessidade de fazer algo fur ewig, segundo complexa expressão de Goethe,
“desinteressado” e “para-sempre”. Este empreendimento claramente contraposto aos escritos
anteriores, tinham porém dificuldades novas. Os dois canais que havia utilizado para difundir suas
convicções tinham sido obstruídos no cárcere – a conversação oral e comunicação escrita nos
jornais. O primeiro era difícil de ser substituído pelas cartas que trocava com alguns interlocutores
ou pelas conversas nem sempre profícuas com seus colegas de cárcere. O segundo estava
completamente excluído. Era necessário escrever, não mais para um público definido, com
propósitos imediatos, mas para leitores ideais, imaginados, sem saber sequer se algum dia estes
iriam existir.
O exercício difícil resultou num primeiro plano de estudos, que não foi nunca seguido à risca, mas
resultando por sua vez em diversos temas transversais deu inicialmente aos Cadernos de Gramsci
uma grande difusão de temas, articulados a preocupações centrais. O primeiro tema se relaciona
com a função dos intelectuais italianos no desenvolvimento da questão meridional; o segundo,
talvez mais fur ewig de todos, é um retorno aos interesses iniciais pela linguística comparada
(chegou a afirmar que estava decidido a fazer do estudo das línguas a sua preocupação principal,
mas já em 1930 havia mudado de ideia); o terceiro era um estudo sobre o teatro de Pirandello e o
quarto “um ensaio sobre os ‘romances de apêndice’ e o gosto popular em literatura”, que refletem
sua experiência de crítico teatral. Sofrendo novamente de duras crises de saúde, sentiu dificuldade
de levar adiante este programa, que permaneceu presente apenas em parte. Seus pensamentos
corriam desordenados por diversos assuntos e era necessário organizar toda aquela experiência
vivida: as dificuldades da vida de juventude, a militância socialista, a Primeira Guerra Mundial, a
revolução de outubro, a fundação do PCI, a militância cultural, os embates públicos intelectuais, o
golpe fascista, a ditadura, a prisão...
Não há sequer um escrito seu que seja um estudo sistemático ordinário, sobre algum assunto. Os
Cadernos são feitos de parágrafos e muitas vezes os assuntos pulam de filosofia da práxis a uma
anotação sobre algo que ele quer ler e a um comentário sobre uma matéria de um periódico sobre
a Sardenha, das diferenças de estratégias do movimento operário no Oriente e no Ocidente, a
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organização da sociedade civil ou à critica literária, teatral, de história da arte, da cultura, da
questão dos intelectuais, a literatura popular e o cinematógrafo, o Risorgimento, o fordismo e o
americanismo, o jornalismo, literatura e sociedade, partidos em Hegel, sobre Maquiavel, Napoleão
I e III, Julio César, cesarismo ou bonapartismo, ideologia, educação, Revolução, Marx, critica ao
positivismo, o acirrado confronto com a filosofia de Benedetto Croce, etc etc etc.
A frase que repete incansavelmente em seus Cadernos “pessimismo da inteligência e otimismo da
vontade” é representativo de sua permanente construção de si próprio frente a uma realidade
difícil de compreender e de se conformar. Aliás, Gramsci nunca aceitou a fatalidade passivamente
(como mostramos acima), nenhuma possibilidade de um destino que fosse totalmente irresistível,
nem mesmo a eventualidade da morte (encarada realisticamente como fortemente possível),
quando acreditou que seria deportado para a Somália. Gramsci frisa que é fundamental conhecer a
realidade particular, em que se está inserido, por pior que ela seja e de maneira desapaixonada se
se quer mudar alguma coisa, sem, no entanto, perder as esperanças.
Dessa maneira, chega à conclusão, por exemplo, de que o fracasso da tentativa insurrecional de
imitação da Revolução Russa, no Ocidente não deveria mais ser tentado, dando lugar a estratégias
que explorassem as possibilidades democráticas, observando as aberturas efetivas que tinham sido
oferecidas pelo Estado no período anterior à Revolução, no Ocidente, num processo de autoeducação da sociedade civil para a conquista do autogoverno, capaz de produzir uma vontade
política coletiva superior à mera soma das vontades particulares (concepção liberal da democracia)
e à retirada das barreiras econômicas à conquista do autogoverno. O vislumbre de uma estratégia
de construção gradual, solidamente democrática do socialismo, sem o necessário desmonte,
apenas mudança de função, das instituições democráticas, consideradas burguesas pela vulgata
stalinista (como a divisão dos poderes, por exemplo), é a abertura a uma reavaliação da estratégia
mais gradualista do movimento operário e a um “reformismo revolucionário”, como dizia Carlos
Nelson Coutinho, solidamente ancorado no conhecimento de cada realidade (com o auxílio de
conceitos como o de relação de forças, que entrou para o vocabulário comum da esquerda, entre
outros). É neste ponto que Gramsci se reivindicava leninista (não na aceitação total de sua teoria,
pois há grandes diferenças entre ambos, algumas inconciliáveis, como a teoria do Estado e a
concepção da Democracia). Lenin teve a coragem de ser heterodoxo, de rejeitar o etapismo então
reinante para mostrar que naquelas condições específicas, a tomada do poder não só era possível,
como poderia de fato abrir o processo de construção do socialismo, sem precisar obrigatoriamente
de uma “etapa capitalista”.
Só nesse sentido acredito, pode-se dizer que Gramsci (ao menos o dos Cadernos) "seguiu" o
exemplo de Lenin, no sentido da heterodoxia e ele foi ainda mais longe, desafiando essa primeira
heterodoxia, quando esta se tornou ortodoxia. Este não foi um desafio frontal. É difícil encontrá-lo
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criticando abertamente Lenin. Este prefere criticar Marx (um Marx de Lenin) a criticar o grande
líder, exemplo de coragem, firmeza e vontade, que tanto admirou. Mas também poucas são as
menções a Lenin nos Cadernos, que retomam seriamente sua teoria. É possível também que
Gramsci tenha tomado inicialmente sua importante noção de hegemonia de Lenin, mas a elaborou
de maneira bastante original, que não teremos mais espaço para discutir aqui. Basicamente, o que
havia servido para a Rússia não iria mais servir para o Ocidente. Para Gramsci o sentido da
Democracia é o da conquista do autogoverno, da socialização da política, que é o objetivo último
do comunismo, portanto não pode haver contradição entre Democracia e Socialismo, mas isso é
tópico do próximo texto, que servirá para esclarecer os pontos propriamente teóricos dos
problemas levantados aqui e claramente, sem nunca pretender esgotar o tema, pois
gramscianamente não se trata de uma doutrina política fechada, pré-determinada, mas de um
corpus teórico fundamental para uma interpretação e intervenção numa realidade que por ser
histórica também requer estratégias abertas à história.
Enfim, aí já deu para ter uma ideia da importância de Gramsci. Na América Latina (além da Itália)
suas obras tiveram grande influência sobre a esquerda que se reorganizou em fins dos anos 70 e
anos 80. Muitos intelectuais iniciaram uma série de análises, utilizando-se do arsenal conceitual
gramsciano para compreender os processos específicos do continente, que também se diferiram
em muito dos processos de avanço da esquerda europeia em geral. Suas obras tiveram dificuldade
de chegar ao Brasil, mas graças aos esforços de tradução e interpretação de homens como
Coutinho, o leitor brasileiro ganhou uma fundamental contribuição para ajudar a refletir sobre sua
realidade e bons instrumentos teóricos para tentar transformá-la.
Houve diversas edições dos Cadernos do Cárcere. Há algumas temáticas, como a já muito estudada,
Organização da Cultura e os Intelectuais, que tentam reunir a obra dele por eixos temáticos. As
edições temáticas dão a impressão que é um estudo sistemático, quando são reflexões. A edição
italiana mais importante é dos anos 70, de Valentino Gerratana, um filósofo, do Instituto Gramsci,
que produziu um volume, que é um aparato critico de fôlego para orientar o leitor. Coutinho se
inspirou na edição de Gerratana, que respeita a ordem dos cadernos, mas inseriu a divisão
temática, para facilitar ao leitor brasileiro, que caso contrário ficaria ainda mais confuso, colocando
somente uma numeração que respeita a ordem da edição Gerratana.
Coutinho deixou boas obras sobre Gramsci que servem como excelentes mais-que-introduções.
Ficam aqui as sugestões:
Carlos Nelson Coutinho. Democracia e Socialismo (Cortez, Autores Associados, 1992) bem
pequeno, dá pra ler numa sentada - é um Gramsci na pŕatica e naquele momento do Brasil e do PT.
De Rousseau a Gramsci: ensaios sobre teoria política. (Boitempo, 2011), também do Coutinho.
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Gramsci e a América Latina (Paz e Terra), organizado por Coutinho e por Marco Aurélio Nogueira.
Este livro reúne algumas contribuições de um importante encontro, ocorrido em Ferrara, em
setembro de 1985, realizado pelo Instituo Gramsci e que reuniu vários intelectuais
latinoamericanos e italianos com o tema “Transformações políticas da América Latina: a presença
de Gramsci na cultura latino-americana”.
Site: http://www.acessa.com/gramsci/index.php [há muita coisa sobre ele na internet]
Outras fontes: Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere. Edizione Critica a cura di Valentino
Gerratana. 4 volumi. Torino: Einaudi, 1975.
Paolo Spriano. Storia del Partito Comunista Italiano, I, Da Bordiga a Gramsci, Einaudi, Torino 1967.
Site: http://www.fondazionegramsci.org/
http://www.treccani.it/enciclopedia/antonio-gramsci/
Há braços!
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