o romance do genji no teatro nô: as faces de rokujô no

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o romance do genji no teatro nô: as faces de rokujô no
O ROMANCE DO GENJI NO TEATRO NÔ: AS FACES DE
ROKUJÔ NO MIYASUDOKORO
Lídia H. Ivasa
Andrei dos Santos Cunha
RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma análise de duas adaptações da obra literária O Romance do
Genji, de autoria de Murasaki Shikibu para o teatro nô: Aoi no Ue e Nonomiya. Tomando como protagonista
das peças a dama Rokujô no Miyasudokoro, as adaptações mostram comportamentos diferentes para a
mesma personagem, aproveitando sua complexidade psicológica e expandindo o universo da obra literária, já
que as histórias retratadas não são diretamente narradas em O Romance do Genji. Segundo BROOK (1993),
o texto do teatro é uma forma inacabada, dando espaço para interpretação além do que foi narrado nas
páginas de um livro. O teatro nô valoriza esse efeito, com a utilização mínima de recursos cenográficos e
com os movimentos sintéticos dos atores, fazendo com que o espectador imagine a maior parte da ação que
ocorre.
PALAVRAS-CHAVE:Genji Monogatari, teatro nô, Rokujô no Miyasudokoro.
ABSTRACT: This work intends to analyze two plays of Noh Theatre, Aoi no Ue and Nonomiya, based on
Murasaki Shikibu’s novel The Tale of Genji. Although both plays have Rokujo no Miyasudokoro as the main
character, each shows a different behavior of the character, using her psychologic complexity and enriching
the universe of the novel, since the play’s plots are not directly narrated on The Tale of Genji. According to
BROOK (1993), the text of a play is incomplete, which allows an interpretation that surpasses the narrative
of the book. Noh theatre values this, using very few scenic resources and actors’ movements, allowing the
audience to imagine most part of the action.
KEYWORDS: Genji Monogatari, Noh theatre, Rokujo no Miyasudokoro.

Aluna do curso de bacharelado em Letras, habilitação tradutor português-japonês na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Professor Assistente de Literatura Japonesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
[email protected].
Introdução
No tradicional teatro nô, é recorrente a utilização de obras da literatura clássica
japonesa para a composição de peças. Este trabalho pretende analisar duas peças de nô,
cuja protagonista é uma das personagens da obra O Romance do Genji, de autoria da
dama da corte Murasaki Shikibu.
O Romance do Genji, escrito em 1008, retrata a vida de Hikaru Genji1, nascido filho
de um imperador. Por motivos políticos, Genji é rebaixado ao cargo de funcionário público,
perdendo o direito ao trono. A história tem como pano de fundo a corte imperial japonesa
no Período Heian (794-1192). Este período é caracterizado pelo desenvolvimento de uma
refinada cultura aristocrática no Japão.
A protagonista das peças desta análise é uma das amantes do Genji, Rokujô no
Miyasudokoro 2 , viúva de um Príncipe Herdeiro e dama admirada na corte por sua
educação e refinamento. Dominava a arte da caligrafia, de composição de poemas, da
combinação de incensos e vestes, qualidades indispensáveis para uma dama da época, pois
ritos e cerimônias eram eventos recorrentes e de grande apreciação (saber como portar-se e
apresentar-se em tais ocasiões poderia promover ou arruinar a reputação de uma pessoa
perante o Imperador). Porém, sendo uma das amantes mais velhas do Genji, Rokujô
sente-se atormentada pelo ciúme e pelo orgulho, pois como membro da família imperial,
seu relacionamento com o Genji era mal visto e manchava sua reputação. Além disso,
mostrar sinais de que sentia ciúmes era humilhante para uma pessoa que já havia ocupado
a posição de princesa herdeira. Carregando esse dilema, a paixão que a dama sente pelo
1
Tradução literal do japonês: Genji Resplandescente, sendo Genji o título que recebeu ao sair da linhagem
imperial e ganhou o cargo de funcionário público. Resplandescente por causa de sua beleza física. Em
japonês: 光源氏.
2
Tradução literal do japonês: Dama da Sexta Avenida, por sua residência localizar-se na sexta avenida da
capital imperial. Em japonês: 六条御息所.
Genji se tornará incontrolável e nociva, tanto para a própria Rokujô quanto para as outras
amantes.
No romance, como personagem secundária, Rokujô é uma das personagens mais
marcantes da obra, sendo lembrada como a mulher que sofre pelo ciúme e posteriormente,
pelo abandono do amante.
No teatro, podemos dizer que cada peça retrata uma face dos sentimentos de Rokujô:
em Aoi no Ue, o ciúme doentio da dama é levado ao extremo, com a transformação de seu
espírito em um ogro, que ataca a rival; em Nonomiya, a lembrança e a tristeza pelo
abandono do amante é o motivo pelo qual seu espírito não consegue descansar em paz.
1 O Romance do Genji
No capítulo “Aoi”, o irmão mais velho do Genji é nomeado imperador. Por esse motivo,
a filha da dama Rokujô é nomeada a nova sacerdotisa do Santuário de Ise, localizado fora
da capital. Rokujô fica indecisa se deve acompanhar a filha ou ficar na capital, por causa
do amante. Enquanto isso, o imperador aposentado, pai do Genji, chama a atenção do filho
para o tratamento que ele dispensa à dama Rokujô, alertando-o para não atrair a mágoa das
mulheres:
— Nunca humilhe uma mulher e trate-a sempre com amenidade, senão terá de
suportar o seu ressentimento! [...] Agora que o Imperador aposentado estava ao
corrente da sua relação e o admoestara daquela maneira, ele próprio se arriscava
a passar por frívolo e a reputação da dama também corria o risco de ser
manchada quando a sua elevada posição era merecedora das maiores atenções.
Porém, ele nunca a tratara abertamente como sua esposa; fora ela que,
embaraçada pela diferença de idades, afectara manter-se reservada, atitude que o
intimidara, tornando-o circunspecto; mesmo que o Imperador aposentado e todos
os cortesãos estivessem ao corrente do caso, a Princesa não deixava de se
queixar amargamente da superficialidade de seus sentimentos. (MURASAKI,
2008, p. 226)
Notamos que este aviso cria um clima de suspense, preparando o leitor para os
próximos acontecimentos da narrativa, além de revelar que o caso dos dois é de
conhecimento público, para desespero da dama.
Também há o anúncio da gravidez da dama Aoi, esposa do Genji. As visitas dele a
outras mulheres diminuem ainda mais em frequência, para tristeza de Rokujô. Com a
nomeação da nova sacerdotisa do Santuário de Kamo, o Genji é escolhido como o
mensageiro do imperador na ocasião, desfilando durante a cerimônia. Seu desfile é
esperado por todas as damas da corte, fazendo com que Aoi e Rokujô acabem se
envolvendo em uma disputa por um lugar para vê-lo. Rokujô é afastada do local em que
estava pelos serviçais de Aoi, humilhando-a em público. No desfile, a dama vê o amante
cumprimentar a esposa, mas ela, ao longe, passa despercebida. Neste trecho, fica evidente
a humilhação de Rokujô e a confirmação de sua posição como simples amante do Genji,
enquanto Aoi, além de grávida, ocupa a posição de esposa:
Por fim, conseguiu distinguir o Genji, mas este não a viu. Como poderia, se ele
passava pela multidão como o rápido reflexo de uma imagem que se desvanece
logo depois de ter sido captada por uma queda de água? Passou a cavalo,
impassível, e vê-lo assim só aumentou o seu tormento.[...] Como os carros da
residência do Ministro não podiam passar despercebidos, tomou um ar de
circunstância ao passar perto deles. Ao ver as suas gentes saudá-lo com grande
respeito, a dama Rokujô sentiu-se ainda mais humilhada e murmurou:
O seu reflexo nas águas
Da cascata de Mitarashi3
Foi tudo o que pude ver
E pela sua indiferença
Medi o meu infortúnio (MURASAKI, 2008, p. 228)
3
Nome do rio que corre no Santuário Kamo.
Posteriormente, Genji toma conhecimento do conflito e visita Rokujô, mas ela se
recusa a recebê-lo. A dama também preocupa-se com sua reputação perante a corte,
sentindo-se atormentada pelo ciúme em relação ao Genji e pelas fofocas que seu caso
despertou entre a classe nobre.
Na casa do Ministro, sogro do Genji, um espírito maligno apossou-se de Aoi, fazendo
com que exorcistas e médiuns fossem chamados, mas esse espírito era persistente. Correm
rumores de que esse espírito fosse o de Rokujô, que ao ouvir a notícia, surpreende-se:
Durante anos sofrera tudo o que é possível sofrer, mas nunca se sentira tão
humilhada como durante aquele grotesco incidente; fora ignorada e desprezada e,
independentemente
da
sua
própria
vontade,
o
seu
espírito
remexia
constantemente na ferida e não conseguia reencontrar a paz. Era certamente por
isso que, ao dormitar, sonhava que entrava numa casa onde encontrava uma bela
mulher, que devia ser Aoi, e então batia-lhe num assomo de violência e de ódio
que, quando acordada, lhe era totalmente estranho... Que horror! Às vezes
perguntava-se, desconcertada, se o seu espírito podia abandonar o seu corpo e
actuar por conta própria, independentemente dos seus desejos [...] (MURASAKI,
2008, p. 235)
Rokujô, inconscientemente, tornou-se um espírito-vivo4, ou seja, tomada pelo ciúme,
seu espírito saía de seu corpo para atacar as rivais. Era um espírito tão violento que seus
ataques eram quase sempre fatais.
Aoi, prestes a dar à luz, chama pelo Genji. Mas na verdade, quem o chama é o espírito
maligno, que o Genji reconhece como sendo o de Rokujô. O espírito acalma com a
presença do Genji e Aoi dá à luz um menino, que é celebrado por todos. Rokujô recebe a
notícia com ironia e percebe que nos últimos dias, suas roupas estavam impregnadas com
um cheiro de incenso; por mais que lavasse o cabelo ou trocasse de roupa, o cheiro não
4
Surgindo em uma das passagens mais assustadoras da obra, o espírito-vivo (ikiryô) é uma entidade que terá
espaço em obras posteriores, muitas vezes relacionado ao ciúme ou ódio de mulheres para com seus amantes.
Em japonês: 生霊.
saía. A partir desse fato, ela tem a convicção de que seus sonhos são reais..
Quando todos pensavam que Aoi estava se recuperando, o espírito ataca-a novamente e
ela falece, para surpresa de todos. A partir de então, o Genji não consegue mais
corresponder-se com Rokujô, ciente de que ela matou Aoi, conforme observamos no
seguinte trecho:
[...] cortar bruscamente relações com ela [Rokujô] e deixá-la sem notícias seria
impiedoso e comprometeria também a sua reputação, pensou, perplexo. Quanto a
Aoi, talvez tivesse sido vítima de um inexorável destino. Se ao menos não
tivesse testemunhado a forma como a sua defunta esposa fora a presa do
demônio dos ciúmes da sua amante! Por muito que se esforçasse, parecia-lhe que
nunca mais poderia retribuir-lhe a sua estima. (MURASAKI, 2008, p. 242)
Os fatos relacionados ao espírito-vivo neste capítulo terminam quando Rokujô percebe
que o amante a reconheceu durante o ataque a Aoi, mencionando o ocorrido numa carta:
Rokujô recebeu a carta numa altura em que estava na sua própria residência,
leu-a às escondidas; não lhe custou muito perceber que, pela imagem a que
aludia, o Genji estava ao corrente de tudo e a acusava da morte de Aoi! Que
crueldade! Não haveria fim para o seu desespero? (MURASAKI, 2008, p. 242)
Continuando no capítulo “Sakaki”, Rokujô decide acompanhar a filha para o Santuário
de Ise, pois o Genji afastava-se cada vez mais dela. Por causa dos ritos de purificação para
assumir o cargo de sacerdotisa, mãe e filha retiram-se para o Templo da Planície, local
retirado da capital. Era outono quando o Genji consegue visitar Rokujô, após enviar várias
cartas pedindo por um encontro. A dama aceitara o pedido, desde que fosse uma visita
discreta. A planície, no outono, tomava ares melancólicos, e a cerca de gravetos e o portal
de madeira bruta do templo reforçavam a austeridade do local. Notamos neste trecho que a
natureza passa a representar os sentimentos das personagens, preparando-se para a
despedida:
Era aproximadamente o dia sete do nono mês e enquanto ele se sentia perturbado
ao pensar na partida de Rokujô, agora iminente, ela por seu lado atormentava-se
de igual modo [...]. Quando o Príncipe se encaminhou pela vasta planície,
sentiu-se invadido por uma imensa melancolia. As folhas do Outono murchavam
e enquanto o lúgubre gemido do vento nos pinheiros se juntava aos gritos
intermitentes dos insectos nos campos de juncos secos, chegavam-lhe
fragmentos de um trecho de música cuja melodia não podia sem dúvida
distinguir, mas que mesmo assim o encantava. (MURASAKI, 2008, p. 262)
Ao revê-la, o Genji percebe que ainda tem sentimentos por ela, apesar do que ocorreu
entre eles; portanto, tenta convencer Rokujô a ficar na capital. Contudo, a dama permanece
impassível. Os dois se despedem pela manhã, após relembrarem o passado juntos:
A lua deitava-se; às brandas recriminações e pedidos que ele lhe endereçava,
olhos perdidos no céu melancólico, Rokujô sentia derreter as censuras que
acumulara no seu coração. Apesar de todos os esforços que fizera para se afastar
dele, pensava, perturbada, que a sua resolução fora novamente abalada, como
tanto receava. [...] Não é possível contar as palavras trocadas por esses dois seres
que tinham passado por todos os tormentos do amor. (MURASAKI, 2008, p.
264)
Após a cerimônia de despedida no palácio, o cortejo da sacerdotisa passa em frente à
residência do Genji, que envia um poema preso a um galho de sakaki5, referência ao
santuário, local onde os amantes se despediram e onde Rokujô passará a viver:
Hoje parte e abandona-me
Mas nos oito braços
Do rio Suzuka6
As suas mangas
Não irão molhar-se (MURASAKI, 2008, p. 267)
5
6
Planta considerada sagrada na religião xintoísta. Em japonês: 賢木.
Rio que passa por Ise.
Ao que a dama responde, certa de que será esquecida com o passar dos anos e pela
distância:
Se nos oito braços
Do rio Suzuka
As mangas se molharem
Quem – até Ise7
Irá preocupar-se? (MURASAKI, 2008, p. 267)
Estes dois capítulos são a base para as peças Aoi no Ue e Nonomiya, que foram
adaptadas de acordo com as características do teatro nô.
2 O teatro nô
O nô tem origem no sangaku, entretenimento (envolvendo teatro, dança e canto)
trazido da China, ainda no Período Nara (710-784). Era executado em templos e santuários,
entretendo a camada popular. Posteriormente, o sangaku passou a ser conhecido sob duas
formas: o sarugaku no nô e o dengaku no nô. O primeiro tinha como característica a
representação baseada na imitação fiel, enquanto o segundo era centrado na dança,
possuindo uma representação de caráter simbólico. O dengaku no nô foi amplamente
aceito pela classe aristocrática da capital (então Heiankyô, atual cidade de Quioto),
enquanto o sarugaku no nô tornou-se itinerante, com seus grupos apresentando-se em
várias regiões.
Uma grande mudança nas formas teatrais ocorreu no século XIV, quando os atores
Kan’ami Kiyotsugu (1333-1384) e Zeami Motokiyo (1363-1444), introduziram
refinamento e sofisticação ao sarugaku no nô, criando uma nova forma de expressão
artística, chamando-a de nô. Protegido pelo xogum Ashikaga Yoshimitsu (1368-1394),
7
Referência ao Santuário de Ise, localizado na atual província de Mie.
Zeami desenvolveu o teatro nô na forma como é representado hoje, escrevendo inúmeras
peças e vários tratados sobre o assunto.
As peças de nô são divididas conforme o papel que o protagonista exerce, em cinco
gêneros: das divindades, dos guerreiros, das mulheres, dos loucos e dos demônios. Até o
Período Edo (1603-1868), uma apresentação era composta por uma peça de cada gênero,
num total de cinco peças. Atualmente, são apresentadas apenas duas peças, geralmente
uma peça inteira e a dança de outra. Em nossa análise, a peça Aoi no Ue pertence ao quarto
gênero, o dos loucos, por representar o espírito de uma mulher tomada pelo ciúme; já a
peça Nonomiya pertence ao gênero das mulheres, na qual o espírito de uma mulher narra
sua história de amor.
3 As faces de Rokujô: análise
O teatro nô representa um mundo de divindades e espíritos, na qual o espectador
também participa de cada apresentação, sendo transportado para um limiar entre o mundo
dos vivos e dos mortos, onde presencia a visão da divindade ou do espírito que se
manifesta. Sobre essa participação da plateia, SAKAE (1970, p. 141) argumenta:
Se o nô não propiciou modificações é porque modificação significa rompimento
com a tradição e a tradição do nô tem sentido de perfeição. Em seu mundo
harmônico e perfeito, o nô reserva, todavia, uma armadilha para os espectadores
incautos. Porque nele o ideal de perfeição tem que mostrar-se imperfeito.
Imperfeito no sentido de não-acabado. A imperfeição é essa margem de
possibilidade para que o espectador “participe”, do mesmo modo que no jardim
Zen de areia e pedras, ou na pintura em preto e branco da dinastia Sung do Sul
ou da Época Muromachi, em que, com o vazio dos grandes espaços livres de
qualquer elemento supérfluo, o artista convida à participação ativa do espectador
para dar vida à obra de arte [...].
Essa afirmação vai de acordo com BROOK (1993), que diz ser o texto do teatro uma
forma inacabada, dando espaço para interpretar além do que foi narrado nas páginas de um
livro. O nô abre espaço para retratar, ou ainda, dar continuidade a fatos que nas obras
literárias são apenas mencionados. Os acontecimentos das peças em análise não são
narrados diretamente em O Romance do Genji. A peça Aoi no Ue retrata a consequência
do ciúme e da humilhação por que a dama Rokujô passou em relação à esposa de seu
amante, enquanto o romance, correspondente ao capítulo “Aoi”, narra os fatos que
desencadearam o ataque do espírito demoníaco. Já na peça Nonomiya, muitos anos se
passam, e os personagens do romance já estão mortos (o Genji e a dama Rokujô). Contudo,
a lembrança do amante faz com que o espírito da dama fique preso ao local onde se
despediram, ou seja, o Santuário Nonomiya. A despedida dos amantes é narrada no
romance, que corresponde ao capítulo “Sakaki”, mas não se sabe o que ocorre após a morte
dos dois.
Aoi no Ue é dividida em dois atos. No primeiro ato, a filha do Ministro da Esquerda e
esposa do Genji está grávida e sofre por causa de um espírito maligno. O curioso é que ela,
apesar de dar nome à peça, não é representada por um ator, e sim por um quimono. A roupa
fica estendida no palco, representando a enferma que está de cama por causa do espírito.
Uma sacerdotisa é chamada e logo descobre-se quem é a responsável: é o espírito-vivo da
dama Rokujô, que, cheia de ciúmes e sentindo-se humilhada pela briga no Festival Kamo,
sai de seu corpo físico e ataca a rival. Pela intensidade do ódio e do ciúme de Rokujô, um
monge é chamado para exorcizar o espírito.
Inicia, então, o segundo ato: o monge invoca o espírito novamente, que ressurge agora
na forma de um ogro8. O monge e o espírito da dama Rokujô começam uma luta,
8
Em japonês, oni (鬼). A figura de um ogro para representar uma mulher que é tomada pelo ciúme e tristeza
é recorrente na literatura japonesa, sendo famosos os casos da dama Rokujô em O Romance do Genji e da
princesa Kiyo, na lenda Dôjôji.
representada por uma dança que ocupa todo o palco. O exorcismo é representado pelo som
das contas que o monge sacode e os mantras que são recitados pelo coro. E com o fim do
exorcismo, o espírito desaparece, encerrando a peça. Notamos que as máscaras utilizadas
pelo ator principal durante os dois atos são diferentes: no primeiro ato, a máscara utilizada
chama-se deigan, e representa uma mulher comum. Porém, a máscara possui detalhes
dourados nas pupilas. Esses detalhes são indicadores da sobrenaturalidade da personagem,
o que se confirma no segundo ato, com o uso da máscara han’ya, que possui dois chifres e
os dentes caninos saltados, e representa os sentimentos de ciúme, ódio e tristeza da mulher
que foi abandonada ou traída pelo amado. Sendo o teatro nô repleto de simbolismos, a
transformação da personagem em um ogro não implica em troca de figurino e mudança de
comportamento, pois esses elementos obedecem à estética do yûgen, ou a uma elegância
refinada: por mais que um ogro seja uma figura grotesca e assustadora, sua origem ainda é
a de uma mulher pertencente à nobreza; portanto, seu refinamento é mantido.
Em Nonomiya, também dividida em dois atos, um monge viajante passa próximo ao
Santuário Nonomiya, conhecido por ser o local onde as sacerdotisas designadas para o
Santuário de Ise passam pelos ritos de purificação. Além disso, o santuário também é
conhecido pelas cercas de gravetos e o portal de madeira bruta, que fazem parte do cenário
da peça. Era uma noite de outono e o monge encontra uma mulher do vilarejo. Ela carrega
um ramo de sakaki e pede ao monge para que se retire, pois ela quer relembrar fatos do
passado em tranquilidade. O monge indaga que memórias seriam relembradas e a mulher
responde que certa vez, na mesma estação, o príncipe Hikaru Genji despediu-se da dama
Rokujô neste local. Ela relata também que a filha da dama fora escolhida para ser
sacerdotisa e a mãe a acompanharia, o que significaria a separação do amante. O último
poema que a Rokujô envia ao Genji durante o romance é recitado. Então, a mulher revela
que ela própria é a dama Rokujô e desaparece. Voltando à vila, o monge pergunta a um
morador sobre mais detalhes da história do Genji e Rokujô, e o homem pede que o monge
reze pelo espírito da dama.
No segundo ato, o monge inicia o rito, quando o espírito de Rokujô reaparece, agora
em uma carruagem. Ela relata o episódio da briga na cerimônia de Kamo, e sua
humilhação e tristeza. Relembrando o passado, o espírito de Rokujô inicia uma dança, sob
a luz da lua. Nesse momento, o portal do Santuário Nonomiya representa o limite entre o
mundo dos vivos e dos mortos, e Rokujô expressa sua tristeza e melancolia ao ficar presa
no mundo dos vivos, imersa em lembranças do Genji. Ela pede ao monge para que a liberte
e assim que termina a dança, entra na carruagem e desaparece, encerrando a peça.
A máscara utilizada pelo ator é a mesma nos dois atos, representando uma mulher
refinada, como Rokujô era descrita no romance. A simbologia nesta peça também está
presente, como no ramo de sakaki que a mulher carrega no primeiro ato (que pode fazer
menção ao local sagrado do Santuário Nonomiya ou ao ramo que o Genji envia juntamente
com o poema de despedida), o portal (que representa o santuário assim como o limiar entre
a vida e a morte, local que o espírito vaga) e as vestes de Rokujô (figurino luxuoso e
elaborado, mostra a posição social de Rokujô, pertencente a nobreza). Embora muito
simples, esses elementos carregam forte simbologia, como SAKAI (1970, p. 142) afirma:
O interessante é ver que a poesia dramática do nô existe como arte que combina
o auditivo com o visual, mediante um expressivo simbolismo que se realiza
através da música e de um espetáculo rico em imagens visuais altamente
significativas, simbolismo que guarda estreita afinidade com a pintura, a
arquitetura e as artes aplicadas. Embora em geral o palco seja simples e a
cenografia muito sintética, o vestuário e as máscaras exibem surpreendente
riqueza em variedade e perfeição.
Fazendo um contraste entre as duas peças, observamos que Rokujô é retratada em dois
momentos: em Aoi no Ue ela é um espírito vingativo e ciumento, que ataca a rival por
receber mais atenção do Genji, enquanto em Nonomiya ela é um espírito melancólico e
conformado, que está preso por lembranças ao mundo dos vivos. O clima nostálgico ganha
mais força com o outono e sua combinação com a austeridade do santuário, além da dança,
executada lentamente, ao contrário da dança que representa a luta entre o ogro e o monge,
em Aoi no Ue, que é rápida e agressiva.
Considerações finais
A análise das duas peças nos mostrou o quão rico pode ser o teatro nô, apesar da
simplicidade cenográfica e dos movimentos contidos e pré-determinados. Simplicidade que
carrega forte simbologia, representando elementos importantes que são citados no romance,
mas não são explicados durante a execução das peças. É interessante observar também que
as peças complementam os fatos narrados no romance, trazendo dramaticidade e o
elemento místico que é característico do teatro nô. Ainda, a introdução de poemas e
citações do romance enriquece o texto teatral, ao trabalhar a intertextualidade.
REFERÊNCIAS
COUTINHO, Ângela Maria da Costa e Silva. “Meu amigo, meu parente...” Guimarães
Rosa cena e prosa. In: IV ENECULT, UFBA, 2008.
MURASAKI, Shikibu. O Romance do Genji. Vol. 1. Tradução de Carlos Correia Monteiro
de Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2008.
SAKAI, Kazuya. O Teatro Nô. Revista Afro-Ásia, n.10-11, p.137-157, 1970.
The Noh.com. Disponível em <http://www.the-noh.com>. Acesso em 24 de jul. de 2012.

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