césar botella na sppa - Psicanálise

Transcrição

césar botella na sppa - Psicanálise
CÉSAR BOTELLA NA SPPA
César Botella, expoente da psicanálise francesa atual, é Membro
Titular da Sociedade Psicanalítica de Paris e desde 1982 têm realizado uma
série
de
trabalhos
psicanalíticos
que
permitem
o
acesso
a
novas
perspectivas teóricas.
Desde o início de sua prática clínica com crianças (algumas
apresentando estados autistas) e pacientes adultos, César Botella e sua
esposa Sara, foram atraídos pelo fato de que, muitas vezes durante as
sessões, lhes ocorriam estados mentais particulares, como se fossem
momentos fugidios do pensamento analítico. Sentiam-se tocados diante das
imagens visuais ou auditivas que surgiam nesses momentos particulares do
pensamento, com uma nitidez e uma vivacidade sensorial lhe conferindo,
por vezes, uma qualidade quase alucinatória. Perceberam que esses
“acidentes de pensamento” que se manifestavam de forma imprevisível
deveriam ser melhor estudados.
Passaram a acreditar que esses momentos tinham relações com
bases do psiquismo que estariam ligadas a estados irrepresentáveis do
paciente. Retomaram então um campo deixado por Freud, com a abertura
da segunda tópica e pelo seu artigo Construções em Análise (1937), no qual
Freud constata que o retorno do passado se faz, por vezes, sob formas de
flashes
quase
alucinatórios,
num
curto-circuito
da
via
habitual
(rememoração pela lembrança representada). Através da abertura do
pensamento de Freud, César e Sara Botella evoluem e fazem uma
conceptualização
simultaneidade
do
do
psiquismo,
negativo,
do
no
qual
o
essencial recai
sobre
trauma
e
do
de
surgimento
a
uma
inteligibilidade. Isso é um processo primordial da vida psíquica, em que não
há
divisão
entre
implosão
negativa
e
clarão
alucinatório.
Vêem
o
funcionamento psíquico como uma dinâmica processual representaçãopercepção-alucinação, que é atingida pela pulsão. Esse equilíbrio, na
coexistência representação, percepção e alucinação, é instável. Seguindo
Freud, afirmam que o alucinatório constitui um verdadeiro pólo de atrações
no psiquismo e ameaça esse equilíbrio. As percepções e representações
deveriam moderar essa atração para manter o princípio da realidade,
resultado de um trabalho psíquico constante.
Seus
pensamentos
levaram
então
a
novas
compreensões
psicanalíticas, incluindo a questão da figurabilidade e a interpretação,
questões que já intrigavam Freud em A Interpretação dos Sonhos (1900). O
casal Botella vai além e pensa que a psicanálise se deteve na questão da
representação (ou seja, nas causas espaço-temporais) e com isso não
consegue compreender toda a extensão e a complexidade do psiquismo.
Consideram o momento atual como um momento evolutivo importante para
a teoria psicanalítica, destacando a necessidade de estudos dirigidos para
além da representação, para um melhor conhecimento do alucinatório e
uma possibilidade de acessar os processos irreversíveis. A realidade
psiquica
não
pode
mais
ser
concebida
restrita
à
dinâmica
das
representações, pois se não estaremos correndo o risco de passarmos ao
lado do irrepresentável, ou seja, ficarmos com as falhas do sistema
representacional, falhas ligadas aos traumas ou, mais precisamente,
indissociáveis
do
negativo
do
trauma
precoce.
Referem:
“Da
não-
representação à figurabilidade, do traço amnésico da memória sem
lembrança ao sonho-memória, se produz uma transformação vital para a
continuidade de nossa vida psíquica. O trabalho da figurabilidade do
analista, produto da regressão formal do seu pensamento na sessão, parece
ser o melhor, talvez o único meio de acesso a esse além do traço mnésico
que é a memória sem lembranças”. (Botella et Botella, 2001, p.17)
Compreenderam
aspectos
traumáticos
progressivamente
que,
do
do
pensamento
em
função
analista
na
de
certos
sessão,
a
“figurabilidade não pode ser reduzida à imagem e é um produto de um
trabalho diurno complexo parecido com o do sonho noturno”. De forma
convincente, clara e profunda, trazem sua concepção do trabalho de
figurabilidade, definindo-o como “um processo psíquico fundador que,
desenvolvendo-se na via regrediente, será determinado pela tendência a
fazer convergir todos os dados do momento, estímulos internos e externos,
em uma só unidade inteligível visando a ligar todos os elementos
heterogêneos presentes numa simultaneidade atemporal sob a forma de
uma atualização alucinatória, na qual a forma elementar será uma
figurabilidade”. (ibid, p.68). Assim, a quantidade de excitação ligada ao
negativo do trauma e a força dos afetos em jogo, no atual da sessão, serão
transformadas em uma figurabilidade. O trabalho da figurabilidade que
ocorre no analista é um trabalho em duplo, do analista e do analisando.
Apóiam a idéia que Freud desenvolveu (1937) com relação às intuições do
analista relacionadas às percepções. Isso, para Freud e para os autores,
pode conter uma verdade psíquica do analisando. Essa percepção tem força
de convicção e ocupa o lugar mais clássico da construção-rememoração. O
trabalho de figurabilidade do analista é criador de sentido futuro: é por ele
que surgirá uma inteligibilidade para o analisando do que estava sem
representação.
Os
autores
referem
que,
sem
esse
trabalho
de
transformação de uma quantidade em qualidade que permite o trabalho da
figurabilidade do analista, o analisando corre o risco de cair numa análise
interminável ou em reações terapêuticas negativas.
César e Sara Botella afirmam que a questão da figurabilidade se
relaciona com condições do pensamento que se encontra impossibilitado de
agir, necessitando ser transformado em imagens ao longo de um percurso
regressivo. Dessa forma, será possível nascer um processo original que
pode ser figurado, colocado em imagens. Para eles, a emergência dessas
imagens permitiria um acesso a vivências infantis antes impossíveis de
virem à consciência, através de uma modalidade de funcionamento mental
que se faz presente durante a sessão no paciente e no analista. A via
regrediente seria a forma como o analista acessaria essas imagens, uma
espécie de alucinação, ligada a canais perceptivos, que possibilitaria
alcançar o não representável. Ou seja, para César e Sara Botella, a
regrediência seria um movimento, que ocorre durante a sessão, no qual o
analista se encontra num estado quase onírico e no qual as imagens desse
estado, as figuras, as cenas “vistas” pelo analista, seriam a figurabilidade
daquilo que é irrepresentável para o paciente.
O mais esclarecedor para o leitor não familiarizado com as idéias dos
autores seria talvez de opor, sob o risco de simplificar demais, duas formas
com que o psiquismo poderá lidar diante de um conflito pulsional. De um
lado, um movimento psíquico do tipo de uma regressão formal do
pensamento que se ocupa com o pulsional, de um modo mais ou menos
disfarçado, sob forma de uma regrediência das representações que tendem
em direção a uma expressão alucinatória endopsíquica, ou seja, um
caminho ligado à regressão formal que vai ao encontro de afetos não
representados; e de outro lado, uma regressão libidinal defensiva em
relação aos pontos de fixação libidinais (fálico, anal, oral) que se forma
recalcando as representações, com a possibilidade de infiltrar uma rede de
representações inconscientes, criando assim derivados (pelo deslocamento
e
condensação),
isto
é,
(uma
forma
que
vai
pelo
caminho
das
representações já constituídas); desse modo seguir-se-á sua manifestação
transferencial inconsciente. Ou seja, são duas formas ou dois caminhos do
funcionamento psíquico: um ligado à regressão formal que vai ao encontro
de
afetos
não
representados
e
outro
que
vai
pelo
caminho
das
representações já constituídas.
Aqui estamos diante de um problema complexo que é a articulação
entre regrediência e transferência no paciente. O grande valor econômicodinâmico
de
uma
regrediência
(que
leva
a
um
bom
trabalho
de
figurabilidade) torna-se arriscado por consumir toda a energia psíquica
investida na atividade pulsional desse momento e, como no sonho da noite,
desaparece sem deixar marcas. Esse movimento no paciente testemunha
um bom funcionamento psíquico, mas pode representar um inconveniente
para o tratamento pelo fato de que o paciente terá menos necessidade de
estabelecer uma transferência. Os autores esclarecem seus pontos de vista
em relação a isto quando estudam o trabalho em duplo: nesse caso
regrediência e transferência estão interligados. (São transferidos imagens e
afetos estranhos ao analista).
O caminho teórico percorrido por Botella na sua obra nos possibilita,
paralelamente, um acompanhamento de casos clínicos que ilustram essas
concepções na vivacidade da experiência. Suas concepções testemunham a
preocupação constante de se constituírem numa base teórico-clínica
consistente. Através de casos clínicos, temos a oportunidade de entrar na
complexidade processual de uma dinâmica transfero-contratransferencial. O
conceito do trabalho em duplo nos permite entrar em contato com o sem
memória do trauma infantil, escondido nos limbos do psiquismo. Suas
concepções nos impõem a necessidade de uma busca do funcionamento
psíquico do analista e do seu papel determinante nas análises através de
uma procura de criatividade pessoal à qual ele deverá recorrer para
elaborar a ameaça traumática da não-representação por esse movimento de
regressão formal.
No livro A Figurabilidade Psíquica (2001) nos convidam a acompanhar
o desenvolvimento de suas idéias através de um vasto campo da
metapsicologia psicanalítica, retomando artigos escritos desde 1982, de
forma cronológica. Neste livro eles reelaboram e atualizam, o que lhes
permite mais profundidade e uma dimensão après-coup. A leitura do
texto Figurabilidade e Regrediência, apresentado no 61ème Congrès des
Psychanalystes de Langue Française em 2001, em Paris, e traduzido e
publicado pela Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto
Alegre (2003) é útil para uma melhor compreensão da profundidade de
suas reflexões sobre o sexual primordial, a regressão e a regrediência,
memória e transferência, figurabilidade e o alucinatório, convergência e
coerência psíquica. Publicaram em português o livro Irrepresentável, (Ed.
Criação Humana e SPRGS).
A obra de Botella merece muitas paradas e reflexões. É uma obra
profunda,
que
psicanalítica
e,
propõe
como
uma
tal,
evolução
precisa
de
do
pensamento
tempo
para
e
uma
da
prática
elaboração
consistente. Estamos diante de uma metapsicologia do trabalho em sessão
e de um enriquecimento denso que penetra nas redes dos processos
teóricos.
Referências Bibliográficas
Botella et Botella (2001). La Figurabilité Psychique. Delachaux et Niestlé,
Suisse; trad: La Figurabilidade Psíquica, Buenos Aires: Amorrortu, 2003).
Botella & Botella (2003). Figurabilidade e Regrediência. Revista de
Psicanálise de Porto Alegre, v. X, n.2, p. 249-341.
Luciane Falcão,
Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,

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