Brotas Canivetes A cidade de Brotas, no interior

Transcrição

Brotas Canivetes A cidade de Brotas, no interior
Brotas Canivetes
A cidade de Brotas, no interior de São Paulo é conhecida em todo o país como a capital do
turismo ecológico, do turismo de aventura, ou mesmo como a terra natal do popular cantor
Daniel. Mas deveria ser também tão conhecida como a terra dos canivetes artesanais.
Na verdade tudo começou com Laurindo Galhardo, que completou 87 anos na semana
passada. Um idoso nada convencional, a começar pela energia exuberante, vontade de viver a
vida na sua plenitude e sem nenhum traço de senilidade. Bem, o Seu Laurindo, que tem
também uma memória irrepreensível, conta que em 1942 ele teve o seu primeiro contato com
um canivete Europeu. O contato partiu logo para um fascínio que perdura até hoje. Pois todos
os canivetes que “gentes de todo o país trouxeram para consertar” na oficina dele ao longo
desses últimos 68 anos, não só foram consertados, mas como também viraram gabaritos para
outros tantos filhotes. Foram mais de 5 mil ao longo da sua vida, calcula o Seu Laurindo.
A oficina do seu Laurindo é um dos pontos de encontro na cidade. Impossível permanecer lá
com ele mais de meia hora sem que apareça alguém para consertar alguma coisa. Qualquer
coisa, não importa o quê. Aliás, o conserto do item é o que menos importa. O que o povo quer
é ouvir um dos “seus causos”, ou bebericar uns goles da cachacinha artesanal. São trazidas
bengalas gastas, tesouras sem fio de tanto uso, espingardas que já não funcionam, enfim vale
tudo. Quase sempre o conserto não é cobrado, ficando por conta da casa. Não admira que
tanta gente passe nessa oficina. É muito comum um ou outro perguntar: “ O senhor me
ensina?” A resposta é invariavelmente – “As portas de casa estão abertas”. E estão mesmo.
Difícil achar alguém mais querido na cidade. Muitos se candidataram a aprender a fazer
canivetes. Alguns conseguiram ir até o fim. O seu Laurindo costuma dizer que dessa vida ele
não leva nada, e se alguém aprende a fazer canivetes, pode complementar a renda familiar.
Não tira nada dele. Apenas essa atitude fez com que Brotas pudesse ser considerada por
muitos como a capital do canivete. Gente de todo o Brasil e do exterior procura o Seu
Laurindo. De aficionados por canivetes a colecionadores, de todo lugar um pouco.
Hoje foi a minha segunda visita à oficina com o seu Laurindo. Queria um canivete para enxertia
de mudas. Difícil decidir se prestava atenção no canivete, nos causos contados ou na
improvisação. Como o difícil mesmo é encontrar alguma coisa no espaço mais bagunçado do
mundo, a cada instante o Seu Laurindo improvisa uma nova ferramenta para substituir aquela
que desapareceu. Impossível mesmo é tentar entender como ele consegue dar um jeito em
tudo. Ele explica: “Quinze profissões, dezesseis misérias”. Parece que sabe de tudo mas insiste
que falta muito para aprender. Hoje mesmo ele me disse que a gente tem que aprender com
os bichos, com as plantas, com as crianças e com tudo o mais. E também filosofou “A vida é
pouca. Quando a gente aprende o que devia, já era”.
O seu Laurindo não parece ter a idade de registro. A gente pergunta pra ele como dá para
enganar a idade. Depois da segunda pinga ele divide o segredo: “Deus desconta o tempo que
se gasta na beira do lago com a vara de pescar na mão”. Na minha primeira aula prática de
fazer canivetes, cerca de 8 anos atrás, o seu Laurindo ia pra pescaria dirigindo o seu carrinho.
Todos os dias lá pelas quinze horas. E fez isso pelos últimos 60 anos. E os seus funcionários (
isso quando, segundo ele, ainda tinha uma oficina de verdade). “Eles também iam pescar, uai!
Afinal o salário da turma nunca foi por assim dizer, tão bom, e a pescaria sempre foi o que de
melhor eu tinha pra oferecer”. Os “burocratas” não renovaram a sua última carteira de
habilitação. Imagino quanta praga deve ter sido rogada, mas o que posso dizer é que seu
Laurindo resignado, hoje não pesca mais na beira do rio Jacaré a 8 km de casa, como vinha
fazendo desde sempre, mas agora pesca num lago bem pertinho, que dá pra ir a pé, quando
não consegue carona com um amigo.
Em tempo, deixe-me explicar um pouquinho sobre esses canivetes do Seu Laurindo. Esses
canivetes são do tipo que carregam suas próprias estórias. Hoje eu aprendi que o cabo do meu
canivete, um pedaço de ripa de madeira nobre, foi um dia “Parte de um pé de Ipê, uma das
mais imponentes árvores dessa terra e foi também pelo menos nos últimos 50 anos, parte de
uma carroceria de caminhão”, segundo o Seu Laurindo. “Sabe-se lá quanto o caminhão correu
pelo país afora. Agora, tamos dando mais 50 anos de vida para esse pedacinho de madeira”. A
mola e a lâmina do canivete são feitas de retalhos de molas recicladas de sucatas de
Volkswagen. “Tem que ser o fusquinha 1300”. Não tive coragem de perguntar o que
acontecerá quando não tiverem mais fusquinhas ou suas sucatas por aí, como é que vamos
conseguir fazer esses magníficos canivetes?
Tudo na oficina do seu Laurindo é improvisado, ali, na hora. Nada de rebite industrial. Os
rebites são feitos no ato com pedaços de arame. A lâmina é temperada na hora, com o mesmo
maçarico de 20 ou 30 anos. Aliás, tudo na oficina tem dezenas de anos, alguns itens são bem
mais velhos que eu, com 45. As dicas são muitas. Hoje aprendi tantos “pulos do gato” que fico
pensando como administrar todo esse conhecimento acumulado, me sentido responsável para
não perder nada, e passar isso adiante, para a próxima geração.
O canivete não ficou pronto hoje. Demoram oito horas para fazer um canivete, e comigo
dando corda pro Seu Laurindo, provavelmente levariam dezesseis. Estava chegando a hora da
pescaria, e todo mundo sabe que seu Laurindo não abre mão dela por nada. Não levei meu
canivete, mas tampouco fiquei no prejuízo.
Tenho um bom motivo para uma terceira aula, se tudo der certo, no mês que vem.
São Paulo, 26 de dezembro de 2009
Luiz Grossman

Documentos relacionados