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A revista literária dos alunos da USP
#5
Textos literários escritos por alunos da USP
issn: 1808-9445
A editora Laura Bacellar dá dicas de como publicar seu livro
Caro leitor,
Coordenação Geral:
Bárbara Prince
Orientação:
Profª Drª Samira Youssef
Campedelli
Divulgação:
Aline Souza
Beatriz Crespo Dinis
Cássio Yamamura
Eliezer Rodrigues
Luciana Soga
Mariana Rodrigues
Marília Reis
Quezia Cleto
Editorial:
Alicia Sei
Aline Souza
Daniela Rocha
Diego Hungria
Eliezer Rodrigues
Isadora Prospero
Nathália Dimambro
Raquel Nakasone
Samantha Perissotto
Vinicius Souza
Capa:
Marília Reis
Arte:
Alicia Sei
Cássio Yamamura
Daniela Rocha
Daniel Argento
Isadora Prospero
Eliezer Rodrigues
Mariana Padoan
Marília Reis
Pietro Fabrizio
Raquel Nakasone
Ilustrações:
Alicia Sei
André Hideki Higa
Daniel Argento
Leandro Leão
Mariana Padoan
Marília Reis
Pietro Fabrizio
Apoio:
Pró-Reitoria de Cultura e
Extensão
Com-Arte Jr.
Finalmente chega às suas mãos a mais nova edição da revista Originais Reprovados, com uma
seleção de textos literários de alunos da usp.
A or sempre teve a intenção de dar aos escritores uspianos a oportunidade de tirar seus textos
da gaveta e publicá-los. É por isso que a edição
número 5 da revista teve seu projeto e proposta
renovados. Agora não são apenas os alunos da
usp que podem ler a or, mas também estudantes e frequentadores de escolas e bibliotecas públicas, onde a distribuição também é gratuita.
Se a leitura desta revista deixar um gostinho de
“quero mais”, acesse o nosso site. Lá você encontra, além do seu conteúdo integral, mais contos,
crônicas e poesias selecionados pela nossa equipe, a fim de publicar os nossos favoritos que não
ficaram na revista.
E, além disso, tivemos a honra de entrevistar
a autora e editora Laura Bacellar, que dá algumas dicas de como publicar o seu primeiro
livro. Uma leitura interessante para todos os
jovens escritores!
É mais conteúdo, mais oportunidade e mais
gente lendo a or. Inovamos a revista com a
intenção de melhorá-la. Esperamos, sinceramente, que você goste.
Boa leitura!
Equipe Originais Reprovados 5
Outubro de 2009.
www.comartejr.com.br/originais
{26} Capitu
{32} Ele e ela
{04} A cidade tranquila
{06} Apático
{07} Chá, biscoitos e trovoadas no fim da tarde
{33} Morte desentendida
{39} Ideia fixa
{40} Setembro
{42} O fotógrafo
{13} Beira
{14} Botas e flores – de ninguém
{16} O bêbado e a escada
{20} Le Jocker
{22} Laura Bacellar
{47}
ilustração e design: Marília Reis
a cidade tranquila
se movimenta máquina
se feliz mais rápida
cubículo metálico
cidadão automático
na cidade tranquila
trocadas vejo placas
distorções sinalizadas
palavras transtornadas
ruas tuas mutiladas
6 » OR
a cidade tranquila
estimula veleidades
torna cegos olhares
bitola, trava e para
Sergio Jardino
na cidade tranquila
vazias vejo casas
calados seres habitados
trabalhos seus mal-pagos
na cidade tranquila
passeiam substâncias prazeres
amores doenças fáceis
baratos torpores caros
na cidade tranquila
sua visão me atormenta
seu perfeito mecanismo
seu estático dinamismo
a cidade tranquila
esconde táticas escusas
sinceras mentiras falsas
claros movimentos fantásticos
a felicidade isolada
a complexidade domada
a elevada verdade errada
a cidade tranquila
me desespera
OR « 7
A custo do gosto, acostuma-se.
Acontece a quem tece
de retalhos, sua manta real;
de atalhos, sua estrada final.
O olho arregalado e a respiração de ódio como se eu
fosse um guerreiro disposto a qualquer coisa, Quem foi
que te chamou aqui? A sala escura tem uns móveis novos e um gato de madeira que devem ter trazido daquela
viagem misteriosa, quero gritar Helena-Helena-Helena,
mas alguma coisa na sala pesada me oprime. Desculpe a
saia pingando, olha aí, estou molhando tudo, bem que eu
tinha ouvido a previsão de chuva-intensa-com-trovoadasno-fim-da-tarde, vim apenas saber se ela piorou, senti um
aperto e vim, será que.
Acomodam-se. É a moda
que molda ao incômodo.
no melhor modo de ser.
Conformam-se sem conforto,
com força, conforme a fôrma,
como argila, como forma de agir.
Apático... talvez prático.
Não vê esperança;
espera que cansa.
8 » OR
Apático
Túlio Cunha Rossi
Mari Carrara
ilustração: André Hideki Higa
design: Isadora Prospero
Não sei de
onde a coragem, meu
santo, é capaz que nem abram
a porta, fico assim gelada na entrada
espiando pela janela gritando Helena,
quem sabe roubá-la e levá-la ao meu reino,
dois povos em guerra pela mulher mais bela
do mundo. Desculpe entrar assim molhada, saí
depressa e esqueci o guarda chuva, como é que
ela está?
Estou tão abalada que tenho vontade de abraçar você,
minha querida bruxa amarga, abraçar e chamar de mãe,
mãezinha, você me oferecia chá com biscoitos de abacaxi,
OR « 9
não lembra? Depois perguntava gentil se as meninas não queriam ver
um vídeo ou coisa assim, tão gentil, mãezinha, que parecia a velhinha
rechonchuda da embalagem de pães de queijo congelados, agora eu só
quero ver a minha Helena, querida bruxa azeda, olheiras roxas do tamanho do buraco nesse seu coração. Você não entra aqui, eu já disse.
Vontade de dizer pra você, mãezinha, que uma coisa dessas não se faz
nem com um bicho feito eu, implorar, ajoelhar assumindo o pecado que
você quiser na sua fogueira maternal, Se ela entendesse que eu estou
aqui ia querer que eu entr., Ela não entende! De repente a mãezinha
num choro convulsivo, o labiozinho gorducho tremelicando e quero
mesmo abraçá-la, não precisa desse ódio, Dona Solange, a gente tem
de se ajudar, lembra quando eu dormi aqui a primeira vez? Liguei pra
minha mãe no meio da noite chorando, medo, muito medo de dormir,
quem sabe um defunto ensanguentado embaixo da cama, você me sentou no seu colo e cantou até passar o choro. Hoje mais medo ainda,
Dona Solange, minha segunda mãezinha, você me olhando com essa
cara de nojo como se eu fosse um monstro, uma aberração, Eu só quero
vê-la, percebe? olhar pra ela um pouco, quem sabe ela me veja e fique
bem consciente!
ilustrações e design: Alicia Sei
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Dona Solange dois olhos redondos vermelhos, as veiazinhas desenhadas
feito um mapa de guerra, eu o alvo imóvel, talvez ela pense que o meu
fim seja o fim de todos os problemas dela, a Helena acordando linda e
sem doença e com um namorado perfeito, quem sabe um médico formado e um consultório salmon-pastel do ladinho de casa, e ainda por
cima homem, já imaginou que maravilha, ahn, mãezinha, você deve ter
emagrecido dez quilos nas últimas semanas. Nesse momento ela deve
ficar só com a gente, acabou a farra, mocinha, vai embora agora.
Acabou a farra. Vontade de explicar que ela não conhece a Helena,
não conhece, três anos, mais de três anos, um apartamento lindo, se
você tivesse ido visitar uma só vez teria se encantado, nosso quarto
era vermelho e ela pintava coisas lindas na parede. Numa hora dessas devia estar com quem a conhece, mãezinha, no meu colo no meu
peito no meu travesseiro rindo o riso louco da doença, só eu entendo
as febres os tremores.
A Helena experimentando meu vestido preto e reclamando do quadril
pequeno, ah se ela soubesse como é ruim ser assim toda grande, esbarrando nos móveis, a infância inteira a Cinderela com seu sapatinho
minúsculo sapateando na cabeça, só quero a minha menina pequena,
OR « 11
minha Helena tão linda, os cabelos que ela prendia e me esticava o
pescoço pra eu sentir o perfume novo, naquele dia a gente foi ao teatro
e ela já tinha a doença, mas acho que não sabia, no meio da peça um
desmaio discreto, parecia que tinha apenas deitado a cabeça de leve
no meu colo, eu cochichei Helena-levanta-que-vexame-isso, mas ela
nada, ali deitada em mim, escolheu o meu colo pra desmaiar macia.
Ainda bem que eu sempre fui grande e ela tão pequena, peguei no
colo feito noiva de novela e ela acordou no táxi, acordou boa já dando
ordens, queria voltar pra peça, imagina hospital, que coisa maluca de
jeito nenhum.
Esse gato de madeira, quem sabe esse gato não tem a ver com a doença, ahn? Cada vez que vinha almoçar com vocês voltava pra casa mais
doente, dizia Carla-Carlota-ando-tão-fraquinha-cuida-de-mim e eu
beijava tudo, mãezinha, beijava o peito arfante, a respiraçãozinha curta,
cancelava reunião, salário, viagem e não largava a mão quente sempre
úmida, culpa desse gato sinistro que ia sugando as forças aos poucos, Eu
vou entrar, Dona Solange, a senhora não perde nada com isso.
Emagreceu dez quilos e envelheceu dez anos na última semana, a velha. Já disse que de jeito nenhum, Carla! A vozinha trêmula me lembra
o chá com biscoito e a gente tão pequena pedindo deixa-a-gente-brincar-na-chuva, a Helena sempre tarada por chuva. Ano passado mesmo
na praia quis sair na chuva, o cabelo encharcado e ela rindo, tropeçou
na areia e aquilo foi virando lama, precisava ver que coisa nojenta,
detesto areia molhada.
plorando e isso não é do meu feitio, um nenê rosinha e você ia acabar
aceitando, uma hora ia perceber como era lindo, a Helena completamente apaixonada e mãe, os seios miúdos crescendo de leite, ou quem
sabe o meu peito já tão grande e o bebê se empanturrando, lambendo,
sugando, pedindo mais e mais e você toda avó oferecendo chazinho e
biscoitos de abacaxi, teria sido tão simples, não teria? Esses desmaios,
meu santinho, e essa velha aí de pé achando que é tudo castigo de algum
deus macabro que ela alimenta em rezas solitárias.
Se ela estivesse consciente, Dona Solange, se tivesse forças já teria voltado pra casa, só quero ver, só isso, não encosto, pelo amor de deus,
duas semanas chorando sozinha, olha o que vocês fazem comigo, olha
essa roupa rasgada, molhada, sente o meu hálito de fome porque só o
estômago sente fome e o resto não, a cabeça teimosa só quer chorar,
telefonar, doer doer doer. Eu queria acompanhar os exames, queria explicação do médico, sentir a mão do doutor no meu ombro e o olhar
compenetrado e sem eufemismos, eu mereço essa mão no meu ombro,
está me entendendo?
Empurro a mãezinha de leve e vou direto ao quarto, tanto tempo esses
corredores e ainda lembro os caminhos todos, essa mulher correndo
furiosa atrás de mim como se a casa fosse uma loja de cristais e eu uma
criança rebelde desgovernada entre as prateleiras. Helena na escuridão
só com a luzinha azulada da televisão num filme-desenho que assistíamos juntas nas férias, agora o capitão diz Você-tem-um-último-desejo-antes-de-morrer? e o coelhinho muito perspicaz responde sim-senhor-gostaria-muito-de-continuar-vivo, e então o capitão, distraído e
apressado, vai dizer que-seu-desejo-seja-atendido e quando perceber a
derrota o coelho vai arrematar com e-batatas-fritas-por-favor.
Ia dar tudo tão certo, mãezinha, a gente estava até vendo de ter um nenê,
olha aí, já estou ficando nervosa de novo, vou acabar ajoelhando e im-
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OR « 13
Helena, Leninha, acorda, olha quem está aqui! Acorde logo, olha sua
mãe no telefone, vai saber para que autoridade policial está ligando.
dona Solange, ela não gosta das almofadas assim, pelo amor de Deus,
o pescoço caído assim pra trás, ela usa no mínimo três, lá em casa tem
uma em formato de coração que ela punha na lombar. não, Leninha,
não deixa o pescoço assim, abre o olho, Helena, pelo amor do nosso
santinho, está me escutando eu vim te ver, pense no nosso nenê, ahn?
ano que vem quem sabe a gente faz um berço multicolorido do jeito
que você queria. dona Solange, desliga esse telefone e vem depressa
aqui, me abraça, me ajuda, dona Solange, não, não grita assim, faz
aqueles biscoitos de abacaxi que a gente adora. eu te concedo um último desejo, Helena, abre o olho bem bonito pra mim, Leninha, por
favor, só essa última vez.
A escadaria
que a enxurrada
lava
nada tem
de Bonfim
A acre urina e os gritos
ambulantes
ensinam a nova
memória
Ladeira
Sem rumo
sem sina
esquecem-se
as bandeiras ao largo
orgulhoso
No dorso adormecido
a menina memória
aos passos apressados
recolhe sua história
ilustração e design: Pietro Fabrizio
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J. G.
ilustração: Daniel Argento
design: Alicia Sei
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A voz
do carro de som
Se chocou no escudo
E me recebeu
Falando a todos
Falando a ninguém
Falando numa língua que eu não entendo.
O olhar curvo
Da farda
Me olhou de cima
sem se curvar
E eu não pude ver
O homem que morava ali.
Os outros olhos fardados
De trás da curva de acrílico
Se lançavam para a multidão
E não encontravam
Nada
a não ser contas e esposas e chefes.
E medos.
Eu tive medo por eles
Medo deles
E quis tirar suas botas
Que
– olha só –
Pisavam flores
De ninguém.
De mercado
De clichês
– Flores de pessoas que posavam o protesto antes de protestar.
Câmeras
Lá de cima do carro de som
Diziam
– Posem mais –
E as fardas
em curva
Apertaram um pouco mais
A garganta do espetáculo.
Aí fumaça
Gritos
Borracha
– De trás do escudo para o centro do palco –
Medo
– De trás do escudo para o centro do palco –
E o escudo
Sem quebrar
Sem cair
Trincou.
9 de junho de 2009.
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E o Bêbado rolou escada abaixo como só mesmo um bêbado sabe fazer.
Rolou comicamente, diria o comediante. Piedosamente, diria a senhora caridosa. Não rolou, deslizou suavemente como a água que flui inexoravelmente
num rio, diria o poeta. Caiu e pronto, diria o pragmático. Rolou e tenho certeza
de que não vai sobreviver, diria o pessimista. Diriam todos eles, se estivessem
lá, mas não estavam e sim ocupados demais com suas vidas para perder tempo
com bêbados rolando escada abaixo.
Estavam lá apenas o Bêbado, o Gordo da pasta, o Dono da porta na qual o
Bêbado bateu e a escada sem dúvida, pois ainda não inventaram, os cientistas
inventivos, maneira de se rolar escada abaixo sem que no local exista escada.
ilus
traç
ão e
des
ign:
Pie
tro
Fab
r
izio
Já lhes adiantei que o Bêbado bateu na porta, não entro aqui nos pormenores
das dificuldades que o Bêbado enfrentou para subir a tal escada, dada a fragilidade frente à gravidade, quando a entidade álcool incorpora seu cavalo.
Bateu na madeira rugosa carcomida por cupins e pelo tempo em igual proporção, já que existe uma relação linear no Universo entre cupins e tempo, tão
misteriosa quanto a própria origem deste Universo. Não digo que tenha batido
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com reticência sincera; diria, pelo contrário, que bateu com uma credibilidade
débil e arrependimento – não necessariamente nesta mesma ordem.
Carregava, naturalmente por ser o Gordo da pasta, uma pasta, além disso, um
terno preto que oprimia sua carne e suor na testa.
Mas de qualquer forma, nem a debilidade nem o arrependimento impedem que
o som se propague no ar, o que ali certamente existia, não dos mais puros, concordo, mas nem isso impede a propagação. E assim o som das batidas bêbadas se
propagou pelo ar impuro da casa e atingiu os ouvidos do Dono da porta.
— Já vai! – Gritou com a impaciência da voz arrogante.
No exato momento do toque – se assim posso chamar – do Dono da porta no
Bêbado, o Gordo colocou o primeiro pé no primeiro degrau da escada, distribuindo assim seu peso para aquele inocente degrau, degrau este que levaria, segundos depois, uma pancada dada pela cabeça do Bêbado. Que fez este inocente
para sofrer assim? Nem você leitor nem eu responderemos a esta pergunta, eu
por que prefiro a brevidade e você porque se deixa controlar pela impaciência.
Caminhou até a porta – que dentro e fora é a mesma – e a abriu.
Rolemos junto com nosso Bêbado então.
Não descrevo também os pormenores dos olhares trocados pelo Dono da porta, que após abri-la continua segurando-a com a intensidade da posse e o Bêbado de olhar cômico e atrasado – a cabeça se move sempre mais rápido que os
olhos – não conto isso, pois não tem relevância na queda. Só conto que os olhos
bêbados percorreram o interior da casa processando o que dizer, uma vontade
sincera da boca, mas nestes casos as sinapses não colaboram com os desejos.
Pois o primeiro pé Gordo já tinha sido posto na escada quando o Bêbado começou a rolar, e aí chegamos num dilema. Ele vai subir com a mesma obstinação que irá apresentar os contratos para o Dono da porta, como se dar lugar a
um bêbado fosse rebaixar-se aos obstáculos da vida. Encarou aquele corpo que
desce como mais um obstáculo. Venceria na vida. Venceria na vida.
Ficou em silêncio.
Bastou um empurrão.
O que queria o Bêbado ali? Jamais vamos saber, já que ele não abriu a boca.
Queria abrigo? Morada? Reivindicar seus direitos de bêbado que passa diante
de uma casa aconchegante e pedir um canto para dormir e molhar as calças?
Ou então mais uma dose – é claro que está afim – pois as anteriores já não faziam os primeiros efeitos. Não saberemos e isso causa a dor de morte, dor da
palavra: nunca. Sentimento de impotência.
Na primeira meia volta que seu corpo deu em torno do seu eixo bateu com
a cabeça em um degrau, a gravidade – impiedosa – continuou convidando a
descer e ele, obedecendo.
Quem via isso e tudo mais, ao pé da escada – posição privilegiada, diga-se de
passagem – era o Gordo da pasta.
20 » OR
Quando a cirrose que desce encontra o colesterol que sobe, os mundos se fundem num só.
O Gordo da pasta utilizou dos apoios da escada para pular o Bêbado que tocava, ora com a cabeça ora com as costas, degrau por degrau.
Logo depois nosso amigo alcoólatra chegou àquele primeiro degrau (sofredor)
onde bateu com a cabeça e caiu (finalmente) desfalecido (como mais haveria
de ser?) no chão.
O sorriso do Dono da porta se escancarava de orelha a orelha, mas não pensa
aí o maldoso leitor que vai maldade neste homem, isto deixo com você que lê
este relato com prazer escorrendo-lhe pelos cantos da boca.
Não vai maldade no Dono da porta, o sorriso vai para o Gordo da pasta que
termina a subida, com um pouco mais de suor na fronte.
Trocaram algum cumprimento e entraram.
Afinal, lá fora, estava frio.
OR « 21
22 » OR
Geisa Fernandes
descartei-me de você
como de um jornal lido
de um copo de plástico
um vidro rachado
ilustrações: André Hideki Higa
descartei-me de você
como de uma roupa usada
uma vez só
num velório
descartei-me
como se descarta
um cinco de paus
um sete de copas
um três de espadas
design: Cássio Yamamura
Le Jocker
como se descartam
meias descerzidas
louças descasadas
sonhos desencontrados
desafios superados
modas ultrapassadas
o soro do leite
o mosto do vinho
zeros à esquerda
águas paradas
de rosas
descartei-me de você
lenta e meticulosamente
medindo os passos
as palavras
pisando em ovos
soltando fogos
batendo panelas
cheia de som e de fúria
como um deus louco
jogando baralho
Geisa Fernandes
Le Jocker
22 » OR
OR « 23
serem lidos por pareceristas externos à casa editorial, que são contratados
para tecer considerações e dar sua opinião com toda a liberdade. Uma
opinião veemente positiva (ou mesmo negativa) não significa no entanto
que a editora vá acatar a sugestão do parecerista. Como disse, dado que a
responsabilidade pelo empreendimento é da editora, alguém ali em algum
momento resolve se a obra vale o risco ou não, mesmo com as considerações
do parecerista.
A dificuldade de se fazer esse trabalho, dentro ou fora da editora, é pesar
três variáveis diferentes e tentar medir se combinam: a obra em si, se é boa
ou não, clara, interessante, bem escrita; se funciona para o público a que se
destina; e se combina com a editora para que se está trabalhando.
Editora com vasta experiência, Laura Bacellar é autora de
Escreva seu livro e do site www.escrevaseulivro.com.br, nos quais
orienta as publicações para escritores inexperientes. Aqui, ela fala
à or sobre os novos autores, dando conselhos e sugestões.
A senhora tem experiência em diversas áreas do mercado editorial,
inclusive selecionando originais. Quais as maiores dificuldades
em julgar um original? Quanto desse julgamento é determinado
pela editora, e qual a liberdade do editor?
O julgamento final a respeito da publicação ou não é sempre da editora, já
que é a empresa que assume os custos de publicar o livro. Em geral, quem
julga em nome da editora é justamente o editor, mas acontece de originais
24 » OR
Uma vez que o autor tem um original finalizado, por onde ele deve
começar o trajeto até a publicação?
Ele precisa procurar editoras que publiquem obras semelhantes à sua e
escritas por autores brasileiros desconhecidos. Essa busca precisa ser focada
exatamente nas editoras do assunto da obra e inclusive na tendência, facção
ou movimento dentro do segmento a que a obra pertença. Isso vale para
tudo. Se você escreveu um romance policial, só pode procurar editoras de
romances policiais. E se você escreveu algo que não sabe classificar, então
precisar dedicar tempo a ler livros de várias áreas e editoras até encontrar
a sintonia exata da sua obra. Ou contratar um parecerista – e se dispor a
ouvir as indicações desse profissional!
Muitos autores não têm noção do funcionamento das editoras. O
que é interessante saber sobre o processo de seleção de originais
antes de submeter uma obra?
É interessante ler meu livro ou meu site, porque explico justamente como
editoras funcionam e como se relacionar com elas. O básico é o seguinte:
editoras de verdade, que não cobram nada dos autores que publicam (ao
contrário, pagam direitos autorais quando o livro vende), não devem
explicações a ninguém. Elas são soberanas em suas decisões, porque
publicar exige investimento e acarreta riscos. Ninguém pode obrigar um
OR « 25
empresário a correr um risco a que ele não esteja disposto. O autor que
quiser se dar bem precisa compreender essa dinâmica e jamais insistir ou
exigir, mas tentar colaborar ao máximo produzindo obras com diferencial,
originalidade, linguagem legível e que atendam a um público.
autor. Há autores que acham que precisam convencer o editor a publicar
sua obra. Não, como disse acima, o editor julga pensando no público e
na sua opinião pessoal. A tentativa do autor em convencê-lo conta pouco
contra a sua percepção do que o público deseja.
Como encontrar a editora que mais se adequa ao seu original? O
autor deve aguardar a resposta de uma antes de enviar para outras?
A partir de sua experiência, quais as chances dos autores novos no
mercado editorial brasileiro? A senhora tem algum conselho final
para quem está começando?
Encontrar uma editora é, como eu disse acima, um exercício de conhecer
os tipos de obras publicadas pelo mercado. Em geral se faz isso em livrarias,
mas pela internet também é possível, o que não pode é ter preguiça. Eu
me espanto com a quantidade de gente que me pede “listas de editoras”
infantis ou de poesia ou de romances ou seja o que for. Isso é o mesmo que
pedir a alguém para dar listas de concessionárias de carros. Que carros?
4x4? Compactos? De luxo? Importados? Flex?
Dá para perceber o absurdo? Livros são produtos culturais, nos quais o
conteúdo é importantíssimo. É preciso então procurar a editora de livros
infantis progressistas (ou cristãos ou ecológicos ou de cultura germânica
ou outra particularidade forte que sua obra tenha) e enviar só para aquela,
não para a editora de livros infantis espíritas.
Não é preciso esperar a resposta de uma para enviar a outra, isso só
cria ansiedade. Melhor enviar para todas as possíveis e esperar que
alguma responda.
O que o autor deve ter em mente quando envia um original para
ser julgado? Existem ideias erradas sobre o processo e que são
comuns entre autores novos?
Há autores que acreditam que receberão explicações ou orientações
quando suas obras forem recusadas. Não, editoras só aceitam ou rejeitam,
não têm tempo para explicar porque em geral são poucas pessoas para
muito trabalho. Há autores que acreditam que precisam ir pessoalmente
às editoras entregar seus originais. Não, tanto faz a cara do autor, essa aliás
é uma das poucas atividades humanas em que a aparência não interfere
no resultado. Um texto é julgado pela escrita, não pelos belos olhos do
26 » OR
Tenho muitos conselhos, olhe lá no meu site. O problema é que é uma
gama grande de coisas importantes e não tenho espaço para dizer tudo.
Vou mencionar alguns itens e peço que os leitores procurem se aprofundar
em cada um. 1) Há muita falta de obras brasileiras em nosso mercado,
tanto de ficção quanto de não-ficção. Só que os autores precisam se
profissionalizar um pouco mais para entregar originais publicáveis às
editoras, não massarocas que precisem ser refeitas. Muitas vezes as editoras
traduzem em lugar de publicar um autor nacional simplesmente porque o
estrangeiro já foi editado, já está organizado, limpo, sem repetições, com
os fatos checados, com a trama coesa. Quem entrega uma obra arrumada
a uma editora tem boa chance de ser publicado. 2) Pense em quem vai
ler. Escreva para um tipo de público que existe em boa quantidade e use
uma linguagem adequada para aquele tipo de pessoa. Não tente falar com
professores universitários e alunos do ensino médio ao mesmo tempo,
por exemplo. 3) Tenha um diferencial. O que é isso? Uma característica
forte e marcante que distingua sua obra das demais. Ser genérico é bom
para medicamento, mas péssimo para livro... 4) Não copie, crie! Ninguém
quer ler cópias de Harry Potter ou Clarice Lispector, os originais são
perfeitamente acessíveis aos leitores nas livrarias. Faça algo diferente, seja
que ramo for de literatura que você pratique.
Para saber mais, leia Escreva seu livro, de Laura Bacellar. Editora Mercuryo, 2001.
ilustração e design: Pietro Fabrizio
OR « 27
28 » OR
OR « 29
silêncio.
ilustrações: Mariana Padoan
design: Raquel Nakasone
32 » OR
OR « 33
Rodrigo Mesquita B. Santos
Ele
Ro
No manc
En vela e na
Dr saio na vi estan
n
Or ama a me trine, te,
igi na
nal cab sa,
na ece
lix
eir ira,
a.
ilustração e design: Mariana Padoan
34 » OR
e ela
Me enterraram em cova rasa, dessas que não chegam a sete palmos. Mas
mesmo aqui, quase sob e sobre a terra, continuo mais vivo que sanidade no
fim da tarde. É tumba pequena, não consigo esticar os pés e a pressão dos
joelhos me abafa o peito. Quando venta, sinto o ar nos cabelos, e quando
chove, não demora muito para a água me encharcar todo. É assim que passo
os dias desde que estou cá, meio morto, meio vivo, e é por esse motivo que
venho contar todo o acontecido, os diversos motivos, ou falta dos mesmos,
que não me deixam perecer e viver do lado de lá em paz. Dizem que morte
sem explicação é morte não morrida, mesmo que seja matada.
Então estamos cá e voltemos um pouco nos dias, talvez até em alguns
anos. Tudo tem seu começo quando surgi em cima deste mundo pela
primeira vez. Vim matuto que nada tinha a fazer cá, nasci bezerro velho com preguiça de chorar. Mas como das prenhas não se pode nada
negar e a vida insiste em continuar, acabei por me manter mesmo neste
mundo. Tenho nome de gente bonada: Patrício. Nome de gente que
OR « 35
tem bolso tão cheio que as calças vem a cair. Mas de nada adiantou
graça abastada, continuei pobre como vim, e mesmo agora, nesse calabouço terreno, continuo pobre como fui. Quando criança, andei muito
por estas estradas. Minha mãe se foi cedo e eu não parava numa casa
por mais de alguns dias. Naquele tempo, eu estava a ficar com minha
tia Josia. Essa tinha o ventre mais que amaldiçoado, era ventre que invés
de dar vida, só dava morte, é coisa medonha de se contar hoje em dia, e até
mesmo na época, mas Tia Josia paria cada ano um e nenhum deles sobravam para o seguinte, me falavam que era culpa das redondezas que andava
e que essa coisa de se embrenhar com homem a cada momento da vida de
nada ia adiantar, o problema não era coisa de macho, mas sim da fêmea.
Juro que tentarei o mínimo me embolar nas lembranças que de
nada vão explicar a minha situação atual. Mas é difícil não achar
significado em tudo.
Tia Josia passava cada temporada em uma cidade, prenha de barriga, tão
estofada que não podia se mexer. Logo achava um parente qualquer para
nas vidas se esmoecer. Assim seguia junto eu, pivete de idade e já cansado
de tanto caminhar sem a lugar nenhum chegar. Reclamar eu reclamava,
mas de que adiantava? Eu era sombra de coisa qualquer, vulto de existência inoportuna ou um projeto descabido. Dessa criação despegada de
local logo passei a despegar de amores também, quando cheguei na idade
de me enroscar em mulheres, procurei em todas tudo que sentia falta
mas nem sequer percebia. Se minha Tia Josia, já falecida justo no parto
do único que vingou: Primo Tinhão, era mulher de tantos homens, eu
perseguia caminho quase contrário, era garoto de muitas mulheres. Me
estabeleci no fim dos vinte anos por cá, Terra de São Estácio, mesmas
redondezas onde se encontra esse túmulo mentiroso de minha situação,
e por essas bandas iniciei nova caça aos outros, ou melhor, às outras. É
nesse momento que nos aproximamos de onde quero chegar, de onde
quero começar a costurar minha passagem para a morte, a que
tanto aguardo. Pois, imagino eu, foi numa dessas enroscadas, ou
talvez em todas, que me meti nessa situação.
ilustração: Leandro Leão
design: Daniela Rocha
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Olha, entender de amor mesmo eu não entendo, não sou desses que
entulham palavras em cima das outras tentando explicar o amor. Amor
pra mim é subir num quarto, rolar na cama pra depois desapegar num
pegajoso suor. Acho que assim que é e tal, amor é devaneio para quem
pode, não para quem quer, e eu sou dos que não podem nada. Explicitado os entendidos, demonstro, ou tento, que não é amor que buscava
nas diversas camas que sujei com minha pele, era sim algo diferente,
era um sentido que sinto faltando desde que vim madrugado para esse
mundo. É que me sinto quebrado, metade de mim não pariu com o
resto e faleceu dentro de minha mãe, foi-se e então cabei-me partido.
Tão assim que piorou com minhas partidas repentinas, por esse mundo
de horizontes redondos fui largando pedaços, migalhas por onde passava e logo percebi que nada de mim tinha sobrado. Quando encontro
uma mulher, me aproximo buscando mais que alguém, estou buscando eu mesmo, não que eu seja uma delas, ou nenhuma, mas é que por
representarem o outro lado do rio do sexo que mantenho a esperança de
me ver refletido no que percebia que não era. Descobrir pela falta, pela diferença, qual seria a minha existência. Mas, tolo, eu fui perceber tarde demais que existem mais mulheres que estrelas, e que diferente das resplandecentes voadoras, elas não brilham por igual. Naquela época mal sabia
disto, e nada adianta saber por já, feito é feito e o acontecido vai deixando
cicatrizes. Me marquei com todas, nadei no rio que nos separavam mais
vezes que o andar pela borda, virei peixe e me afundava mais no lodo que
hoje recheia o contorno de meu corpo, esse semi-enterrado. Fui assim na
correnteza do falso amar, mas do verdadeiro procurar.
A solidão pairava em todos os atos, eu sou homem e ser solitário por
nascença, dessa ninguém me tirou ou tirará. Quando tocava-as, na verdade me tocava; quando olhava-as nos olhos, na verdade buscava meu
reflexo; quando cheirava os pescoços buscava o resto de meu cheiro. Sua diferença era o meio de perceber minha originalidade. Falsos atos para elas, palavras não para soarem doces, mas sim para
poder ouvir de minha própria voz, não dessa interna que
pensamos, mas da que usamos para cantar
à vida. A solidão permeava cada
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caminho traçado, e dessa vinha também a falta de todo o meu sentido.
Falta, uma das palavras mais fortes que ouço e ouvi.
Talvez dizendo cá tudo isso, explicitando aos poucos para mim mesmo
minha morte e vida, soarei como alguém profundo, mas nada! Mal podem saber, se não me conheceram andando entre vocês, o quão pitoresco e malandro me formei em cima da terra. Assobiava a cada esquina
e andava em gingados nunca vistos antes, era procurado por todos os
touros coronéis que pus mais chifres do que já tinham, era procurado
sim porque não escondia de nada minhas aventuras, a mesma solidão
inconsciente que mostro hoje para vocês me levava fazer de tudo e a
muito me importar com nada.
Naquele tempo mal sabia das coisas, vivia por viver. Era fim de tudo,
nem começo nem meio, somente fim. Bebia por sede e não por prazer,
este vinha do nada a fazer por algo, senão pelo ato de si mesmo. Hoje
percebo que ontem fui um tolo que bem viveu de coisa alguma, senão
pelo sorriso maroto estampado no rosto.
Uma das ultimas pernas que encostei foram as de Betina, mulher de coxas grandes, de cintura arqueada e risada gemida que vinha do fundo da
alma. Essa era mulher de um fazendeiro dos grandes, homem rico que
vendia café sempre nas cidades longes, e por isso mesmo nunca estava
onde deveria estar, deixava sempre o vácuo por onde passava e Betina
ia definhando sua juventude dentro da casa de dois andares. Logo menos comecei a reparar, sempre que levava primo Tinhão para estudar que
Betina pousava o busto na arcada do parapeito e não parava de me olhar
enquanto passava. Era olho de fome, posso não entender quase nada, ou
metade de quase sobre o amor, mas de desejo eu percebo até vendado. E
nesse vai-que-vai dos dias e dos olhares me propus adentrar no recinto e
ver qual que era de tal mulher. Betina não saía de casa nunca, ou quase
nunca, uma vez ou outra tinha que ir ela mesma, seguindo rotina despreparada, comprar os alimentos que somente ela e os
empregados iriam comer. Nesses pontos,
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imagino eu, já até esquecia do rosto do marido, de tão ausente que esse
se fazia, estando sempre dia não e dia nem pensar. Foi-se que em dia de
noite nublada e lua nova adentrei pela janela da rua na casa de Betina e de
seu ausente marido. No principio se fez vontade de assustada, forçou um
grito esmoeçido e quis me botar, com força nenhuma, para fora. Foi em
tanto fingimento que nem dada meia hora já estava a rolar no tapete e a
me agarrar. A sumidez do marido acendera uma fogueira em Betina que
chegava até me queimar quando lhe tocava nas peles. E assim que eram as
semanas, passava mais que tempo lá em aquele recinto, ainda a me buscar e preso sem perceber pela mulher que nunca deixava-me passar sem
pousar os dois olhos por inteiro em mim. E assim, na vontade que crescia
e me sugava dela que fui percebendo aos poucos minha não-vontade e
da fuga surgiu rabisco do que eu seria.
— Vais embora? – me perguntou já prevendo minha fuga.
— Tenho que ir, já não dá mais isso tudo, teu marido é gente que tem mais
bolso que músculo, mas pode me ferir mais que qualquer garanhão.
— Ele não volta, e agora tu vais.
— Mas assim tem de ser.
— Tens porque tu queres, por mim vivia cá.
— Tôu a dizer mulher, teu homem aparece qualquer hora, daquelas não
previstas e estamos os dois com os vermes na mesma noite.
— Pra mim ele nem sequer existe mais, já é ilusão de crença.
Sabia naquele momento que estava nada bom previsto pra mim, eu me
adentrara na tal busca em terreno de outro, estava tocaiando o coração
que não queria e não devia. Mas correnteza contrária é mais forte que a
seguida, e mais outro dia voltei para vê-la e despedir de minha presença.
Fatídico dia, ou melhor, noite. Subi cauteloso, chamei de leve e adentrei
como gato gatuno no quarto, justo no momento que olho na cama percebo que Betina não era de estar em lugar nenhum, no lugar dela o
marido sumido é que aparecera. “Então é tu o descarado?” Já nem
mais sabia que responder, parei gélido de tanto tremer, ensaiei
uma resposta em alguma língua, mas a minha
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já se dobrava de forma a não responder. Ali na minha frente se materializava
todos os cornudos que deixei na vida, o marido desaparecido nem sequer
tinha face, era todas numa só, entidade vinda do nada para me julgar de nada
saber. Queria responder que descarado era ele, pois aquilo na face era tudo,
menos rosto, mas de nada ia adiantar, eu já estava julgado e condenado sem
direito à nenhuma resposta.
Então, de repentino surge uma dessas armas de atirar apontada para mim.
“Senhor, só me deixa passar essa vez, te peço, te suplico até de joelhos, mas
não atira e tira a única coisa que tenho pra mim. Juro que não se repete,
foi coisa despensada vir ver tua mulher”. Eu caía de joelhos e chorava de
leve. “Não te mato por ter minha mulher. Essa tanto faz, nem sequer é minha. Te mato é sim por roubar eu de mim mesmo, roubaste meu lugar,
o único que nunca frequento e único que sequer existo, e por roubar, eu
mesmo que te mato, assim como todos de antes fariam o mesmo”.
Foi então nesse momento que a falta de sentido cresceu ainda mais, e
é nela que me assento hoje. Depois do disparo fui jogado na calçada e
deixado esperando o dia raiar. Tinhão e Zé de Nada que me pegaram lá
pelo meio dia e retiraram as moscas de mim, cavaram uma fossa rala,
essa que estou, e me deixaram aqui sem entender nada todos esses dias.
Como será que está Tinhão? Agora que me lembro dele, miúdo tão
sofrido, só lhe falta acabar por seguir meus passos e se perder em caminho nenhum. Foi por isso que estou cá a falar, estou a escrever algum
rumo para toda essa desconexão que foi minha vida, a procurar mais
uma vez, agora dentro de o que fui, quem sou. A última fala do cafeeiro
que me deixou a perceber toda a minha despercepção, foi ele, homem
que apunhalei pelas costas que me abriu os olhos no tiro.
Ideia Fixa
Juliana Bernardo
Este é um homem
filho de outros homens
que tamborilam os dedos nos balcões.
Este é o homem com uma ideia fixa,
uma ideia presa em todas as garrafas.
Ele é o que enfia três dedos sujos
na boca vítrea da próxima.
Jamais deixa rastros,
chega com sua língua solene,
seus dentes postiços, seu riso às vezes.
Chega e senta sem calma,
os dedos fervendo
a cabeça que não pensa galáxias,
mas se solidifica no cansaço fixo
da ideia que partiu.
Espero então mais dias até que meu repensar todo possa cavar mais
fundo essa cova, e finalmente eu possa me embrenhar em nenhuma
perna, mas somente na terra, me juntar dela e seguir assim para
uma eternidade que me foi negada nesse meio existir que sigo
agora, sem saber mas sem desconhecer.
ilustração: Leandro Leão
design: Isadora Prospero
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ilustração: Leandro Leão
design: Eliezer Rodrigues
Eu corria, rápido, muito rápido. Atrás de mim algo escuro e
inimaginável. Um barulho contínuo, como balas, vinha em
minha direção, cada vez mais perto, cada vez mais perto,
cada vez mais perto, mordendo meus tornozelos, um fio de
baba me unia umbilicalmente ao travesseiro e balas molhavam suavemente seu corpo. Caí aliviado sobre a cama para
respirar uma vez antes de me juntar a ela no banho.
Felipe Abreu e Silva
O Fotógrafo
Às vezes fechar os olhos faz com que você veja muito mais.
Eu via cada gota escorrendo pelo meu corpo e pelo dela.
Cada gota que se desviava pela ação de sua boca. Eu via
seus lábios vermelhos que me mordiam e sorriam. Às vezes abrir os olhos faz com que você perca muita coisa.
Algo naquela vaziez me encantou. O desolamento de uma
cidade que nunca para. Fecho um dos olhos. Ao longe
ouço as explosões que nos fazem estar ali. A luz do poste
pisca. A vaziez única daquele momento estará para sempre guardada comigo.
Tudo era calor. Eu não via nada, não ouvia, nem escutava. Só sentia.
Tudo. Tudo era calor. Sentia sua boca quente beijando meu pescoço. Nosso suor escorrendo. A luz que nos esquentava. Um corpo só.
Quente.
Sair sempre era o mais difícil. Havia algo que unia nossos
corpos. Não tinha como escapar. Eram horas de roupas
recolocadas, cada vez mais amassadas, até por fim sair
quando nossos estômagos não aguentavam mais.
Tomamos um café naquele fim de tarde. Ela olhava pela vitrine como
se estivesse hipnotizada por tudo que acontecia lá fora. Nunca sabia
se ela prestava mais atenção em mim ou no mundo. Depois de algum
tempo saímos caminhando lentamente. As mãos grudadas, de quando em quando se apertando levemente. Olhar tudo aquilo era o que
nos encantava, andamos até não ver mais ninguém, só a luz fraca de
um poste iluminando o fim da quadra deserta.
Cobrir o lado rotineiro do combate. Ficar longe dos membros estraçalhados, dos tiros e de tudo aquilo era a premissa do nosso trabalho. Devíamos registrar os rostos
destruídos, os sorrisos esquecidos e as vidas marcadas. Eu
nunca gostei muito da ideia. Quem conseguiu o emprego
foi ela, que nunca sabia se prestava mais atenção no que
estava à sua frente ou à sua volta.
ilustrações e design: Daniel Argento
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Nunca era fácil, para nenhum de nós dois. Conviver com aquilo era
ridículo. E doía. Doía fundo. Doía em um lugar que, acho, nenhum de
nós dois sabia que existia. Talvez isso agravasse a demora nas saídas.
Cada dia passávamos por mais um lugar destruído, cada pedaço do
todo com uma história nova e ao mesmo tempo mais velha que todas as
outras. Sabe, às vezes, se você fechar os olhos enxerga bem melhor.
Ouvir cada uma das histórias e não fazer nada, a não ser marcar sulfato
de prata com luz, era morrer um pouco por dentro a cada dia. E ao final
destes, longos cafés, olhares distantes e calor, que faz esquecer tudo.
Viramos à esquerda, a uma quadra do hotel. O barulho das explosões
aumentava enquanto caminhávamos. Nossas mãos estavam juntas
como de costume, um aperto forte, mais intenso que o normal. Na nossa quadra um prédio caído. Um rosto. Um aceno. Um braço. Um corpo.
Três fuzis apontam em nossa direção, não podemos passar. Quem somos nós? O que estamos fazendo ali? A máquina é puxada com força.
Ela me aperta forte e resiste. Eu sussurro “não vale a pena”. Após um
olhar diferente de qualquer outro que já tivesse visto, ela solta a máquina, que vira o brinquedo dos jovens soldados.
Um tiro para cima. Gritos. Corremos mais rápido. Nossas mãos se apertam, se fundem. Um tiro.
Eu corro, rápido, rápido, muito rápido. Atrás de mim algo escuro e
inimaginável.
Um aperto ofegante. As janelas abertas. A brisa é quente. Um carinho
lento, gostoso, sorridente. A água bate nos ladrilhos escuros do banheiro.
Ela me puxa. Um tranco pelas nossas mãos unidas. Frio. Tudo fica frio
e escuro. Ela para com a mão na barriga. Ela tenta sorrir. E cai. Eu caio
junto. Aperto sua mão, aperto seu corpo. Dói. Fundo. Em um lugar que
eu nem sabia que existia. Dói demais.
Um suspiro. “Pelo menos estamos juntos”. Uma tosse. Seu sangue está
frio. Não vejo nada além dela. “Fica comigo”. Se você fechar os olhos vê
o mais importante.
Frio.
Uma pequena multidão começa a se formar atrás de nós. O choro e os
gritos crescem. Crescem até ocuparem tudo. Passamos pelos soldados e
os gritos aumentam. Pedras são arremessadas. Nós corremos até o hotel.
Todos correm para o lado oposto. Ninguém estava lá. Nada aconteceu.
Se aconteceu a culpa foi nossa. Fico ali no escuro. Esperando. No frio.
Não tenho noite. Nem dia seguinte. Nem semana ou mês. Volto para
casa, nossa casa, mas não faz sentido. Não tenho por que estar ali com
um vazio em minhas mãos.
Um beijo. Calor. A parede treme. Um puxão. Uma peça de roupa cai,
levemente, sobre o chão de carpete barato do hotel.
Volto para o trabalho. De frente com tanques. Olho no olho do fuzil.
Não tenho porque me preocupar.
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Naquela manhã eu acordei antes, não sei por quê. Era nossa
primeira manhã ali. Talvez fosse nervoso. Abri a janela e parei na minúscula sacada. A brisa quente já tinha deixado meu
corpo úmido e substituído o cheiro doce daquela noite pelo
cheiro acre da cidade. Olhei para trás. Ela estava sorrindo.
Já eram quatro da manhã. Fazia uma semana que eu estava
de volta, sem dormir. Abri a janela. Na sacada o vento era
frio. A cidade não tinha cheiro.
Senti um calor. Como costumava sentir antes. A noite me esquentava, junto com a brisa cada vez mais forte.
Um corpo só. Quente.
Luiz Fernan
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Juliana Bernardo (Filosofia – fflch)
[email protected]
Nasceu em 89, no dia dos namorados. Estuda
Filosofia e foi publicada em algumas revistas
e sites literários. Cria muitos gatos, vive em
brechós e ainda tem uma Olivetti, mas acha
particularmente difícil escrever uma minibiografia que não seja brega.
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Tamara Castro (Letras – fflch)
[email protected]
Paulistana, 34 anos, mãe de Pedro e Yanni. Revisora de textos e estudante de Letras, voltou a escrever a fórceps, depois de anos de trava crítica,
graças às aulas do professor Maurício Salles. Os
poemas publicados nesta edição da Originais
Aprovados são fruto de suas provocações.
J.G.
Túlio Cunha Rossi
(Doutorado em
Sociologia – fflch)
[email protected]
Mineiro, natural
de Itaúna, mestre
em sociologia pela
UFMG, fazendo o
primeiro ano de doutorado nessa mesma
área de conhecimento na USP.
Geisa Fernande
s (Doutorado em
Ciências da Comun
icação – eca)
[email protected]
om
Nascida em Nite
rói, criada na U
nicamp,
em fase de conc
lusão de tese so
bre histórias em quad
rinhos na ECA
. Publicou
poesias e contos
em antologias do
SESC
e da EdUff. Can
ta, compõe e fa
z pão
caseiro.
(Psicologia – ip)
[email protected]
As coisas resolveram
fugir amarrando as
palavras umas nas
outras e não teve jeito.
Outras coisas aconteceram assim: www.
aquiloqueeunaodisse.
blogspot.com. E é só
assim que eu sei ser.
Mari Carrara
(Direito – fd
)
mscarrara@
gmail.com
Quase jurist
a, frustrada
e pedestre. T
livro publica
em um
do, uma esco
liose e dois ca
ros. Escreve
chorsem
blogspot.com pre no www.marianacar
rara.
e de vez em
quando desco
que alguém
bre
leu.

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