UM RINOCERONTE NA AULA DE DESENHO

Transcrição

UM RINOCERONTE NA AULA DE DESENHO
UM RINOCERONTE NA AULA DE DESENHO:
DESENVOLVIMENTO CRÍTICO DE CAPACIDADES GRÁFICAS
EM ESTUDANTES DE ARTES VISUAIS
José Raimundo Magalhães Rocha
UNIVASF – Universidade Federal do Vale do São Francisco, Colegiado de Artes Visuais.
[email protected]
Resumo
O artigo problematiza o ensino de desenho nos cursos de artes visuais de nível
superior. Trata-se do relato de experiências e reflexões sobre possibilidades de
desenvolvimento de capacidades de expressão e comunicação gráficas para
estudantes de artes, tendo como premissa o conceito de estratégia estabelecido
pelo pesquisador espanhol Juan José Gómez Molina.
Palavras-chave: Desenho. Ensino. Estratégia.
Resumen
El artículo problematiza la enseñanza del dibujo en los cursos de nivel superior en
Artes Visuales (Bellas Artes). Se trata del relato de experiencias y reflexiones
sobre las posibilidades de desarrollo de las capacidades de expresión y
comunicación gráficas para estudiantes de artes, teniendo como premisa el
concepto de estrategia establecido por el investigador español Juan José Gómez
Molina.
Palabras clave: Dibujo. enseñanza. Estrategia.
1 Contexto
As considerações aqui expostas são decorrentes de leituras efetuadas durante a
realização de experiências que tiveram como objetivo principal dinamizar e atualizar os
conteúdos das disciplinas de desenho da grade curricular do curso de Licenciatura em
Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF.
Localizada no Sertão do Rio São Francisco, fronteira entre os estados de
Pernambuco e Bahia, a UNIVASF oferece o único curso de artes visuais de nível
superior daquela região. Tal fato gera algumas peculiaridades. Seu corpo discente, por
exemplo, é bastante diversificado, composto por indivíduos que podem ou não possuir
experiência artística. Entre esses, estudantes que pretendem exercer ou já exercem o
ensino profissionalmente e aqueles que, almejando seguir uma carreira artística,
encontraram na licenciatura uma alternativa para sua formação.
Nesse contexto, como tornar o ensino de desenho produtivo para todos os
discentes, tendo em vista suas especificidades e interesses? Como promover o
desenvolvimento de capacidades gráficas de maneira crítica, dialogando com a arte
contemporânea e capacitando os estudantes para atuarem como professores e/ou
artistas? Como essas dúvidas repercutem na postura do professor universitário?
Na tentativa de obter resposta, tornou-se necessário aprofundar conhecimentos
sobre o desenho numa perspectiva contemporânea, estabelecendo uma reflexão a
partir do ato criador – trânsito ininterrupto entre prática e teoria. Buscou-se
embasamento teórico em textos de autores pertinentes ao assunto, principalmente o
artista, professor e pesquisador espanhol Juan José Gómez Molina, a filósofa
brasileira Marcia Tiburi, o historiador austríaco Ernst Gombrich e o compositor
canadense Murray Schafer. Deve-se ressaltar que o título desse artigo faz alusão ao
capítulo O rinoceronte na sala de aula, contido no livro O Ouvido Pensante (2011), de
Schafer.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo registrar o percurso de realização
dessas experiências e, nos desdobramentos desse registro, refletir sobre o ensino de
desenho e arte contemporânea.
2 Estratégia: desenhe um rinoceronte de memória
Com o enunciado “desenhe um rinoceronte de memória”, iniciaram-se as aulas da
disciplina Desenho I, do curso de Artes Visuais da UNIVASF, no primeiro semestre do
ano de 2015.
Tratou-se de uma proposta de exercício que obteve, nas soluções encontradas
pelos estudantes (Figura 1), resultados diversos: representações de animais híbridos
ou monstros imaginários; personagens oriundos de histórias em quadrinhos ou filmes
de animação; tentativas em que percebemos a dificuldade imposta à memória pela
tarefa de representar um objeto pouco familiar.
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Figura 1: Alguns resultados obtidos no primeiro exercício realizado na disciplina Desenho I,
UNIVASF, 2015.
Fonte: arquivo do autor.
O enunciado ao qual nos referimos é um recurso que pode ser definido como
uma pergunta-passaporte. Segundo a Professora Doutora Sonia Rangel (2009, p.
127), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, as perguntaspassaporte são como vetores, “[...] não são perguntas apenas para serem
respondidas. [...] levam a sondar os pensamentos da imagem e as imagens do
pensamento em novas obras”. No caso relatado, o exercício (desenhe um rinoceronte
de memória) foi necessário na análise do nível de entendimento dos estudantes
envolvidos com relação ao desenho.
A realização desse primeiro exercício gerou uma profusão de questionamentos.
Surgiram frases de senso comum, como: “não tenho jeito para o desenho”, “acho
muito difícil fazer desenho de memória”, “é impossível fazer desenho de observação”,
“quero
aprender
desenho
hiper-realista,
não
essas
maluquices
de
arte
contemporânea”. Nota-se, implícito nessas declarações, um entendimento superficial
sobre determinadas questões da arte – o que leva a uma valoração exacerbada da
representação realística – e uma percepção do desenho apenas como uma técnica
com objetivos práticos a serem alcançados. Tal desconforto encontra sua razão de
ser nas palavras da filósofa e desenhista Marcia Tiburi:
[...] lembro-me de como a faculdade de artes foi desestimulante para
o desenho justamente quando eu fazia meu bacharelado em
desenho. Por mais artistas que fossem os professores – e não quero
dar nenhum tom de queixa ao que vou dizer –, fiquei pensando que
me faltou sempre uma introdução ao desenho que me colocasse
junto com o que é próprio ao gesto de desenhar: o gesto de pensar
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como ato de criar conceito por meio de traços. (TIBURI, 2010, p. 1314)
O modelo de ensino ao qual se refere Marcia Tiburi tem o desenho como uma
disciplina iminentemente prática em que determinadas habilidades devem ser
adquiridas. Trata-se, basicamente, de desenvolver técnicas materiais – manejo de
instrumentos e suportes, entre outros – e técnicas conceituais – aprendizado da
perspectiva linear e da anatomia humana, por exemplo. O professor Gómez Molina
afirma que esse modelo de academia reduz o ensino de desenho a uma repetição de
modelos formais que não favorece aos alunos na formação de conteúdo crítico
necessário ao desenvolvimento de trabalhos que sondem as potencialidades dessa
linguagem.
El aprendizaje del dibujo debe permitir al alumno desarrollar aquellas
capacidades gráficas que le permitan enfrentarse ante las
necessidades que determina su proyecto. Reducirlo a la imitación de
los modelos formales predominantes sólo hace empobrecer sus
possibilidades ante nuevos problemas. La dificuldade fundamental
estriba em que para comprender y dasarrollar determinadas
capacidades es necessario que previamente éstas se hayan sentido
como necessidade; cuando no hay problemas no hay tampouco
possibilidades de desarrollar técnicas que tendrían que ver com ellos.
Todo se convierte em um simulacro. (MOLINA, 2003, p. 35)
As ideias de Molina sobre ensino são decorrentes de seus estudos para
compreender a posição ocupada pelo desenhista na contemporaneidade. Enfatizando
o momento de conflito presente nos processos de criação artística, Molina sugere o
uso do termo estratégia como um termo através do qual as características, aspectos e
comportamentos presentes na atividade de desenhar podem ser mais bem avaliados.
Frente a la idea de “métodos de trabajo”, que parece conllevar simpre
una certa seguridad y generalidad de los resultados, hemos elegido
estrategias para hablar de ese lado oscuro que es el momento de la
creación, en la que la obra no es todavia lo que será, [...]. (MOLINA,
2006, p. 14).
Trata-se de uma estratégia no sentido de uma tomada de posição, visto que
“dibujar no es un problema de representar objetos o de hacer presente lo real, sino de
transformar la realidad desde la modificación de lo imaginario” (MOLINA, 2006, p. 17).
Um conceito de desenho que busca, no traço, as evidências de suas intenções. Pois,
segundo Molina (2006, p. 19), “la estrategia se vincula más a la acción de dibujar que
al proprio dibujo”.
Tanto para Molina como para Tiburi é fundamental que o ensino desperte, nos
aprendizes de desenho, a busca consciente pelo sentido do ato de desenhar.
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Portanto, ao aproximarmo-nos do conceito de estratégia, tentamos estabelecer uma
via coerente para que os estudantes desenvolvessem a autonomia de questionar,
refletir e construir soluções apropriadas aos seus projetos de arte.
Nesse momento, outras questões se fizeram prementes. Por exemplo: como
viabilizar essa busca por sentido e autonomia através de exercícios de desenho?
Como se daria essa introdução ao desenho de que trata Marcia Tiburi? Como alcançar
um entendimento histórico coerente à pergunta “o que é o desenho na
contemporaneidade”?
3 Descrevendo um rinoceronte para Dürer
Ao adotar o conceito de estratégia como pressuposto às atividades desenvolvidas nas
disciplinas de desenho, pretendeu-se favorecer aos estudantes uma compreensão
ampla do desenho na contemporaneidade. Mas, tal compreensão deveria, antes de
tudo, fazer sentido para os mesmos, ou seja, não poderia perder de vista o
aprendizado técnico necessário ao desenvolvimento de seus projetos.
Como o próprio Gómez Molina (2008, p. 25) observa, somando-se ao
enfrentamento dos espaços virtuais e das possibilidades do desenho no campo
expandido1, os problemas enfrentados pelos aprendizes de desenho parecem ser os
mesmos de sempre: a passagem da visão de formas tridimensionais para o plano
bidimensional, os conflitos entre a percepção, a representação e a convenção. São
operações complexas, disseminadas por um amplo aprendizado cultural e que
seguem sendo o arcabouço das imagens cotidianas de nossa época, como
publicidade, internet, televisão, etc. São essas as referências que, geralmente, o
aprendiz possui e de onde ele deduz leis elementares à prática do desenho (MOLINA,
2008, p. 142).
Tendo em vista esses parâmetros, outros exercícios foram propostos. Em cada
experimentação, requereu-se o aprofundamento de determinados fundamentos ou
conceitos, buscando-se a complementariedade entre metodologias usuais de ensino
de desenho e o diálogo com recursos de comunicação e informação digitais. Em
algumas atividades, por exemplo, os estudantes recolheram imagens na internet,
utilizaram telefones móveis para registrar suas referências, realizaram modelos
1
O termo expandido foi formalizado em 1979 por Rosalind Krauss no ensaio “The expanded
field of sculture” e é relativo à escultura e as mudanças ocorridas na prática artística nas
décadas anteriores. Atualmente, é amplamente utilizado “[...] quando se pretende designar
processos artísticos que procuram esbater fronteiras entre disciplinas ou alargar os limites de
determinadas práticas artísticas.” (ELIAS & VASCONCELOS, 2010, p. 1188).
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tridimensionais e praticaram desenho de observação (Figura 2). Dentro dos
parâmetros exigidos nesses exercícios, havia uma margem de liberdade para a
criação e a busca por prioridades técnicas. Com relação aos resultados anteriores,
podemos afirmar que hoveu uma melhoria técnica substancial.
Figura 2: Estudos realizados na Disciplina de Desenho I, UNIVASF, 2015.
Fonte: arquivo do autor.
Além de vetor para discussões e exercícios, a opção pela imagem do rinoceronte
serviu como uma espécie de alegoria na busca por uma definição de desenho. Sabese que um rinoceronte foi presenteado ao rei de Portugal que, por sua vez,
presenteou-o ao Papa Leão X. No caminho para Itália, o navio enfrentou uma
tempestade e naufragou, condenando o rinoceronte à morte, enjaulado no fundo mar.
Então, o artista Albrecht Dürer (1471- 1528) foi requisitado para realizar uma ilustração
do rinoceronte (Figura 3). Sem nunca ter visto tal animal, teve que utilizar, como
referência, apenas o depoimento de testemunhas.
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Figura 3: Dürer. Rinoceronte, xilogravura, 1515.
Fonte: GOMBRICH, 1995, p. 87.
O rinoceronte de Dürer é citado por Ernst Gombrich no segundo capítulo de sua
obra Arte e Ilusão (1995) e serve de exemplo para sua teoria sobre a impossibilidade
da representação se basear apenas no registo visual direto e de que hábitos,
estereótipos visuais e tradições representacionais condicionam os modos de
representação.
Após discussões e exercícios práticos sobre essas questões, abriu-se caminho
para que os estudantes compreendessem o desenho de representação para além da
técnica, como uma construção cultural a partir de modelos relacionais, que eles
puderam constatar nos inúmeros manuais de desenho ou “tutoriais” publicados na
internet, que ensinam a construir figuras e paisagens a partir de esquemas e cópias de
imagens exemplares.
Como um paralelo à gravura de Dürer, também foi apresentada a representação
de
rinoceronte
presente
na
obra
do
artista
sulafricano William Kentridge.
Especificamente, um trecho da animação realizada como cenário para a ópera A
Flauta Mágica, de Mozart (Figura 4).
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Figura 4: William Kentridge. Rinoceronte de A Flauta Mágica, animação, 2005.
Fonte: KENTRIDGE, 2014.
Kentridge realiza desenhos a carvão em grandes dimensões. No entanto, estes
desenhos são sistematicamente refeitos, transformados por apagamentos e novas
investidas gráficas. Antes de desaparecerem, essas imagens são fotografadas,
passam por processos de edição, inclusão de trilha sonora e são apresentadas na
forma de filme.
Portanto, encontramos nas obras de Kentridge as implicações geradas como
resultado das relações do modelo de ensino de desenho das academias tradicionais
com as novas tecnologias e os recentes meios para troca de informações. Uma obra
resultante de processos que abarcam campos de ação diversos. A partir dos filmes de
William Kentridge, retomamos a questão: o que é o desenho na contemporaneidade?
Na opinião de Molina (2003, p. 24), a história do desenho é a história das
transformações daquilo que se entende como tal. Um percurso que conduziu essa
linguagem a uma condição singular dentro da arte contemporânea.
Quando o termo disegno surge, em Itália, no período renascentista, é palavra
encarregada de dar nome às interseções entre materialidade e pensamento, onde a
expressão por meio da linha assume papel de meio reflexivo, projetivo e comunicante
– encontra-se mais próximo, em português, aos significados do termo desígnio.
Portanto, desenho é palavra de atração, disseminada por um amplo espectro de
atividades. Sua presença se faz em territórios de conhecimento distintos – arte, ciência
ou técnica – em que é determinante para os processos de concepção, realização,
investigação e clarificação de percursos.
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Notadamente, muitos teóricos concordam que o início da grande reavaliação da
linguagem do desenho se dá, principalmente, entre os anos 1960 e 1970, período no
qual muitos artistas buscaram, através do desenho, as marcas do pensamento em
fluxo, entendendo que a ação de desenhar parece sempre descrever a si própria. Uma
das principais mudanças está no fato de que o desenho, que durante a maior parte da
história da arte ocidental reservou-se à condição de fundamento para a elaboração de
outras artes, foi alçado a um patamar de autonomia.
Atualmente, em decorrência de tais mudanças e diante da complexidade dos
processos de produção e circulação de imagens, não é mais possível discriminar o
desenho de arte apenas pelo uso de determinadas técnicas ou materiais. O
vocabulário formal comumente associado ao desenho passou a ser explorado em
suportes e materiais diversos – sejam no campo da pintura, fotografia, instalações,
novas tecnologias – e na diversidade de operações que dialogam com recursos e
imagens advindas de áreas de conhecimento distintas. Uma permissividade de
procedimentos pelos quais as imagens se contaminam e hibridizam. Estratégias de
criação em que os métodos pessoais ou estabelecidos por tradições são
constantemente postos à prova.
La comprensión de las operaciones mentales que cada formalización
conlleva es la única posibilidad de que el dibujo progrese en sus
configuraciones, pero siempre crece por medio de traiciones. Cada
método propone unos caminos que deben ser burlados para poder
visualizar sus límites. (MOLINA, 2008, p. 37)
Disto tudo, chegamos à conclusão que, a partir da elucidação de que a arte
contemporânea não trata apenas da representação da natureza, mas da natureza da
representação e suas convenções – uma representação que renuncia a neutralidade e
a inocência (MOLINA, 2008, p. 141-142) –, os estudantes puderam alcançar uma
melhoria substancial nas suas capacidades de compreensão, tanto dos fundamentos
técnicos do desenho como da posição ocupada pelo mesmo na história da arte.
Constatou-se que a maioria desses estudantes passou a adotar uma observação
intencionada de imagens como forma de compreender as convenções do desenho de
representação e, consequentemente, aplicá-las. Nesse momento, o desenho foi
retomado em suas qualidades intrínsecas, como determinante aos processos
reflexivos, projetivos, investigativos, expressivos e comunicantes.
Contudo, tendo em vista que as disciplinas de desenho do curso de licenciatura
em artes visuais da UNIVASF possuem uma carga horária reduzida – se comparada
aos cursos de bacharelado – e um corpo discente, como já vimos, com especificidades
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e interesses diversos, como deve agir o professor para viabilizar as ideias aqui
propostas?
4 O professor-rinoceronte
Primeiramente, faz-se necessário salientar que, no nosso entendimento, uma reflexão
que parte de questões próprias aos processos de criação artística não é, de forma
alguma, estranha àquelas impostas ao ensino. O professor de artes geralmente é
artista e pesquisador. Tem, segundo Icleia Cattani (2002, p. 40), “[...] um compromisso
com a produção do saber e o efeito multiplicador de suas reflexões.” Desta forma,
deixamos evidente nossa escolha ao exercer a função de ensino, acreditando na
criação artística como produção de saberes e vivências.
Diversas vezes, durante o percurso relatado, na busca por respostas sobre como
dinamizar e atualizar os conteúdos das disciplinas de desenho, deparámo-nos com
dúvidas e percalços. Acima de tudo, constatou-se que uma introdução que facilitasse o
entendimento do desenho num contexto múltiplo era uma carência presente tanto nos
estudantes como na formação do próprio professor. No entanto, aquilo que antes era
uma deficiência passou a configurar-se como oportunidade.
Encontramos uma via possível para minimizar essas falhas a partir da leitura dos
textos do compositor Murray Schafer, que também utiliza a imagem do rinoceronte
para ilustrar sua maneira singular de entender o papel do professor.
Não há mais professores; apenas uma comunidade de aprendizes.
Isso é um exagero a fim de induzir à noção de que o professor
precisa continuar a aprender e crescer com os alunos. Naturalmente
o professor é diferente, mais velho, mais experiente, mais calcificado.
É o rinoceronte na sala de aula, mas isso não significa que ele deva
ser coberto com carcaça blindada. O professor precisa permanecer
uma criança (grande), sensível, vulnerável e aberto a mudanças. A
melhor coisa que qualquer professor pode fazer é colocar na cabeça
dos alunos a centelha de um tema que faça crescer, mesmo que esse
crescimento tome formas imprevisíveis. [...] Muito frequentemente,
ensinar é responder a questões que ninguém faz. (SCHAFER, 2011,
p. 270)
Segundo Schafer, cabe aos professores a tarefa de viabilizar a autonomia e o
desenvolvimento individual dos estudantes, mas, exercendo o duplo papel de
orientador e aprendiz. Dessa maneira, o professor é inserido nos ciclos de
descobertas, criação e construção de saberes.
Schafer, por sua vez, inspirou-se no curso básico de desenho ministrado por
Johannes Itten (1888- 1967), na Bauhaus. Recorrendo às suas ideias, adotamos
procedimentos dialéticos entre pesquisa, reflexão e prática, tendo como premissa a
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bagagem do aprendiz, aquilo que ele sabe – e, muitas vezes, não sabe que sabe.
Uma didática baseada na não existência de um modelo pré-definido na abordagem de
questões intrínsecas aos processos de criação.
Numa classe programada para a criação não há professores: há
somente uma comunidade de aprendizes. O professor pode criar
uma situação com uma pergunta ou colocar um problema; depois
disso, seu papel de professor termina. Poderá continuar a participar
do ato de descobertas, porém não mais como professor, não mais
como pessoa que sempre sabe a resposta. (SCHAFER, 2011, p.
274)
Através dessa abordagem, pretendeu-se a compreensão do desenho em termos
técnicos e conceituais, admitindo que em arte não existam respostas únicas ou
estanques, mas soluções diversas que se adaptam às singularidades dos processos
cognitivos individuais, o que permite a inclusão dos sujeitos na busca do
amadurecimento de suas obras, como agentes ativos comprometidos na construção
do conhecimento.
5 Considerações finais
No momento em que os cursos de artes visuais se expandem, com a implantação de
novas Universidades Federais no Brasil, tem-se a chance de repensar o papel do
professor e, nesse cenário, do próprio ensino de desenho.
Se o ato de desenhar parece atravessar épocas e lugares, o desenho varia
conforme o contexto cultural no qual está inserido. Nessa perspectiva – visto que é
difícil encontrar uma forma de apreendê-lo sem reduzir sua complexidade –, admitimos
a condição complexa e conflituosa como constitutiva de sua natureza.
O desenho produzido contemporaneamente lança mão de estratégias diversas,
demonstrando a amplidão de conceitos que abarca. Dialoga com a tradição, mas
amplia-se pela apropriação, fragmentação, citação, fazendo uso das tecnologias e
trocas digitais. Permite, assim, profícuas incursões interdisciplinares. Retoma, por
variados recursos e intentos, os sentidos presentes na origem da palavra disegno,
como termo prenhe de vitalidade, por meio do qual se promovem acessos, trânsitos e
correspondências.
Pois, como nos mapas, em que a linha que divide também pertence aos
territórios divididos, parece ser essa a fronteira onde se encontra o desenho:
simultaneidade entre um vestígio material (o desenho = substantivo) e uma ação
singular (eu desenho = verbo). E o ensino de desenho também deve adaptar-se e
transitar por esses limites imprecisos.
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6 Referências
CATTANI, Icleia Borsa. Arte contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES, Blanca;
TESSLER, Elida (organizadoras). O meio como ponto zero: metodologia da
pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 35-50.
ELIAS, Helena; VASCONCELOS, Maria. Desmaterialização e Campo Expandido:
dois conceitos para o Desenho Contemporâneo. 8º Congresso LUSOCOM, 2009.
Disponível
em:
<http://conferencias.ulusofona.pt/index.php/lusocom/8lusocom09/pa
per/viewFile/200/177>>. Acesso em 11 nov 2010.
GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação
pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed. 1995.
KENTRIDGE, William. Seis lições de desenho. Rio de Janeiro: IMS – Instituto
Moreira Salles, 2014. 2 DVDs (ca 360 min), color.
MOLINA, Juan José Gómez. (Coord.).
El manual de dibujo: estrategias de su
enseñanza en el siglo XX. Madrid: Cátedra, 4ª ed. 2008.
______. Estrategias del dibujo en el arte contemporáneo. Madrid: Cátedra, 3ª ed.
2006.
______. Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 3ª ed. 2003.
RANGEL, Sonia. Olho Desarmado: objeto poético e trajeto criativo. Salvador:
Solisluna, 2009.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.
TIBURI, Marcia. Diálogo/desenho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
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