Jornal MSIa vol XX, nº19
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Jornal MSIa vol XX, nº19
“À guerra, cavaleiros esforçados! Pois os anjos sagrados em socorro estão em terra. À guerra!” (Gil Vicente) 2ª quinzena de março de 2014 Vol.XX, nº19 EDITORIAL Uma ordem pós-Crimeia A reincorporação da Crimeia à Federação Russa parece ser não apenas um fato consumado, mas, igualmente, um divisor de águas para a ordem mundial pós-Guerra Fria, após duas décadas marcadas pela hegemonia incontestável dos EUA e sua visão militarizada das relações internacionais. EDITORIAL, P.2 Síria: piromaníacos retomam ofensiva Enquanto as atenções do mundo estão voltadas para a Ucrânia, a guerra civil na Síria atinge um momento de grande volatilidade e risco. P. 4 A crise na Ucrânia e a ideologia de gênero A inclusão de uma parlamentar russa contrária à ideologia de gênero na lista de sanções demonstra a amplitude da investida ocidental contra o país. P. 8 Racionamento de energia: adiamento pode ampliar problemas Em Sebastopol, milhares de crimeanos comemoram a vitória do “sim” à secessão da Ucrânia, no referendo de 16 de março (AFP) si_20_19.indd 1 O governo federal ainda está subestimando os problemas do sistema elétrico do País. P. 12 07/04/2014 21:34:53 2 Solidariedade Ibero-americana EDITORIAL Uma ordem pós-Crimeia A despeito da barragem de propaganda negativa e ameaças políticas desfechada pelas potências da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a reincorporação da Região Autônoma da Crimeia à Federação Russa parece ser não apenas um fato consumado, mas, igualmente, um divisor de águas para a ordem mundial, colocando um potencial ponto final no cenário pós-Guerra Fria, marcado pela hegemonia incontestável dos EUA e sua visão militarizada das relações internacionais. Efetivamente, alguns comentaristas, como o mexicano Alfredo Jalife-Rahme, já falam em uma “ordem pós-Crimeia”, para qualificar o impacto da decidida atitude do presidente Vladimir Putin, diante do que se configurava como o lance final da expansão da OTAN rumo ao Leste, em um ostensivo cerco à Federação Russa, iniciado logo após a implosão da União Soviética, em 1991, contrariamente aos acordos estabelecidos entre o líder soviético Mikhail Gorbachov, o presidente estadunidense George H.W. Bush e o chanceler alemão Helmut Kohl. Tal percepção é compartilhada por um considerável número de nações fora do eixo América do Norte-Europa, como se mostrou na votação em que a Assembleia Geral das Nações Unidas considerou ilegal o referendo em que a população da Crimeia decidiu a sua secessão da Ucrânia. Apesar de 100 países terem votado a favor, 11 se opuseram e outros 58 se abstiveram, em uma votação na qual se sabe que estadunidenses e europeus colocaram todo o peso da sua diplomacia para influenciar os votos de países menores. Entre os que se abstiveram, alinharam-se os parceiros da Rússia no grupo BRICS – Brasil, Índia, China e África do Sul. Com 68 países se recusando a aderir à agenda e à retórica agressivas dos membros da OTAN, fica difícil admitir que a Rússia esteja “isolada” pela comunidade internacional – mantra oriundo das chancelarias daqueles países e repetido ad nauseam pela grande mídia ocidental –, já que apenas os BRICS representam cerca de 40% da população mundial. A propósito, na Cúpula de Segurança Nuclear, realizada em Haia, em 24 de março, os chanceleres do Brasil, Índia, China e África do Sul divulgaram uma nota oficial com um claro apoio à Rússia – fato virtualmente ignorado pela mídia brasileira, que tem preferido se concentrar em cobrar do governo brasileiro uma posição contrária a Moscou. A nota fez uma crítica direta às sanções e às ameaças contra a Rússia: “A escalada de linguagem hostil, sanções e contra-sanções e força não contribui para uma solução sustentável e pacífica, de acordo com o direito internacional, incluindo EDIÇÃO EM PORTUGUÊS Diretora: Silvia Palacios Publicado pelo MSIA – Movimento de Solidariedade Ibero-americana si_20_19.indd 2 Conselho editorial: Angel Palacios Zea, Geraldo Luís Lino, Lorenzo Carrasco e Marivilia Carrasco Projeto Gráfico: Maurício Santos Rua México, 31 s.202 CEP 20.031-144 Rio de Janeiro-RJ Telefax: + (21) 2532-4086 E-mail: [email protected] Sítio: www.msia.org.br 07/04/2014 21:34:54 os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas. (...) Os países do BRICS concordam em que os desafios existentes dentro das suas regiões devem ser encaminhados no âmbito das Nações Unidas, de uma maneira calma e racional.” Da mesma forma, a nota enviou um recado ao governo da Austrália, que sediará a próxima cúpula do G-20, em Brisbane, em novembro, sobre a ameaça de não convidar oficialmente o presidente Vladimir Putin para o evento, vocalizada pela chanceler Julie Bishop, deixando claro que tal atitude seria inaceitável. A pouca disposição de tantos países para criticar a Rússia pela recuperação do seu território, cedido à Ucrânia há 60 anos pelo regime soviético, deixa transparecer um “cansaço” com as políticas hegemônicas prevalecentes nas últimas décadas. Uma agenda baseada na convergência de interesses entre os promotores da hiperfinanceirização da economia mundial com os abusos do emprego da força militar dos EUA e seus aliados da OTAN, mobilizados para promover uma sequência de mudanças de regime em certos países-alvo, em nome da “democracia” e outras causas supostamente meritórias. Não por acaso, Putin é hoje um dos chefes de governo com maior aprovação popular entre os seus governados, além de contar com a simpatia expressa ou velada de um número crescente de cidadãos de todo o mundo, que veem nele um estadista com disposição para se opor ao supremacismo ocidental. Assim, é irônico que a chanceler alemã Angela Merkel tenha se referido a ele como alguém que estaria “em outro mundo”, em uma conversa com o presidente Barack Obama. Em realidade, o líder do Kremlin está mesmo vislumbrando um “outro mundo”, que não seja baseado no “excepcionalismo” de uma única nação – como ressaltou em seu célebre artigo no New York Times de si_20_19.indd 3 2ª quinzena de março de 2014 3 11 de setembro último – e no qual todos os países, grandes e pequenos, tenham assegurado o seu pleno direito ao desenvolvimento. Para tanto, está empenhado em colocar o seu país à frente de um vasto impulso mundial para o estabelecimento de uma nova ordem internacional, na qual a confrontação política e militar entre países ou blocos de países possa dar lugar, de vez, a um marco de cooperação para o pleno desenvolvimento de toda a humanidade. Um elemento central para isto é a sua visão de uma alternativa pacífica de desenvolvimento de infraestutura, econômico e cultural de toda a região eurasiática, envolvendo tanto a Europa como os EUA e outros países, em um vasto esforço com potencial para atuar como um elemento-chave da reconstrução econômica mundial. Por isso, enquanto, nas capitais da OTAN, se sucediam reuniões para implementar a agenda anti-russa, em Moscou, em 11 de março, a Academia Russa de Ciências reunia personalidades russas e de outros países, para discutir o Corredor de Desenvolvimento Eurasiático (ver o artigo de Mario Lettieri e Paolo Raimondi, nesta edição). Nesse contexto, a posição dos BRICS poderá ser de grande relevância, principalmente, se o grupo se dispuser a acelerar a implementação das propostas conjuntas discutidas em suas últimas cúpulas. Entre elas, a consolidação da cooperação para o estabelecimento de uma nova infraestrutura financeira internacional, para o que a criação de um banco de fomento conjunto, o chamado “Banco dos BRICS”, seria um passo de grande importância. Da mesma forma, o aprofundamento da crise financeira global dá ao bloco a possibilidade de ampliação dos esquemas de trocas comerciais em suas próprias moedas, já iniciados em escala modesta, como alternativa ao uso do dólar estadunidense. 07/04/2014 21:34:54 4 Solidariedade Ibero-americana Síria: piromaníacos retomam ofensiva Lorenzo Carrasco Enquanto as atenções do mundo estão voltadas para a crise na Ucrânia, a guerra civil na Síria atinge um momento de grande volatilidade e risco, em que o governo do presidente Bashar al-Assad tem logrado importantes avanços contra os rebeldes, ao mesmo tempo em que as potências estrangeiras que os apóiam atuam de uma forma consistente com uma intenção de expandir o conflito. De fato, a situação síria está estreitamente relacionada à ofensiva contra a Federação Russa de Vladimir Putin, cuja ação diplomática tem conseguido, até agora, evitar que o conflito no país se espalhe pelo Grande Oriente Médio. Ao fustigar a Rússia, nas duas frentes, os poderes hegemônicos que dominam Washington e o processo decisório na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) explicitam a sua insanidade e insensibilidade, com uma intenção cada vez menos disfarçada de provocar um conflito de grandes proporções, que, supostamente, lhes permita a preservação do seu sistema de hegemonia global. Em 18 de março, o governo dos EUA determinou o fechamento da embaixada síria em Washington e ordenou que os seus diplomatas e funcionários que não fossem cidadãos estadunidenses deixassem o país. A justificativa oficial foi a recusa de Assad, responsabilizado pelo conflito, de deixar o poder. No dia seguinte, aviões israelenses atacaram postos militares sírios próximos às Colinas de Golan, matando um si_20_19.indd 4 soldado e ferindo vários outros, em um dos mais sérios incidentes entre os dois países, nas últimas décadas. Segundo Tel Aviv, o ataque foi uma retaliação pela explosão de uma bomba em uma estrada do lado israelense da fronteira, que deixou quatro militares feridos. Embora os autores do atentado não tenham sido identificados, o governo israelense considera Assad como responsável por quaisquer ataques vindos da Síria e já anunciou que os retaliará - embora seja bem mais provável que eles devam se originar dos opositores de Assad. Por sua vez, a Turquia ampliou a sua interferência no conflito sírio a níveis inusitados, apoiando de forma decidida os rebeldes sírios que operam a partir do seu território, inclusive, com ações militares, e ameaçando até mesmo criar incidentes para justificar uma invasão do território sírio. Em 23 de março, um caça da Força Aérea Síria foi abatido por caças turcos, dentro do território sírio, enquanto tentava atacar um comboio rebelde de cerca de 4 mil homens, integrado por milícias da Frente Revolucionária Síria, Frente Islâmica e Frente al-Nusra, esta última, vinculada à rede terrorista Al-Qaida. A ofensiva rebelde visa à captura de áreas na costa noroeste da Síria, onde se situam as terras do clã de Assad. Com o apoio turco, os insurgentes conseguiram estabelecer um corredor na região, capturando as cidades de Kazab, Khirbet e Samra e sitiando a cidade costeira de Latakia, 07/04/2014 21:34:54 onde provocaram uma fuga em massa da população majoritariamente cristã (DebkaFile, 29/03/2014 e RT, 1/04/2014). As intenções turcas foram explicitadas com o vazamento, no Youtube, no dia 28, de um vídeo com a gravação de uma conversa entre o chanceler turco Ahmet Davutoglu, o chefe do serviço de inteligência (MTI), Hakan Fidan, e um oficial-general não identificado, discutindo sobre uma forma de criar um falso ataque de mísseis sírios contra o território turco, como um pretexto para justificar uma operação militar em grande escala contra a Síria. A resposta do governo do premier Recep Erdogan foi ordenar um bloqueio do sítio, como já havia feito, dias antes, com o Twitter. De uma forma emblemática do tratamento diferenciado concedido pela mídia ocidental a assuntos que não se enquadram perfeitamente na sua agenda política, o episódio recebeu escassa divulgação nos grandes meios de comunicação da Europa e da América do Norte. Em uma análise publicada em seu sítio, em 22 de março, o veterano jornalista estadunidense Eric Margolis, que já cobriu numerosos conflitos na Ásia, fez uma oportuna apreciação do cenário sírio, cujos trechos mais relevantes reproduzimos a seguir: “Hoje, a Síria está em ruínas. Ela se junta ao Afeganistão e ao Iraque, que também desafiaram a vontade dos EUA e pagaram um preço. Com três anos de guerra, o governo de Assad parece estar vencendo lentamente o conflito, apoiado pelo Irã, Rússia e, em grau mais modesto, o Hisbolá. “Enquanto Damasco ganha momento militar, as facções rebeldes apoiadas pelo Ocidente estão envolvidas em confusões e rivalidades. Elas se mostram incapazes de criar uma liderança representativa. Enquanto isto, islamistas crescentemente radicais – talvez, 100 mil deles – assumi- si_20_19.indd 5 2ª quinzena de março de 2014 5 ram grande parte da luta. Estes selvagens são metralhadoras giratórias que assustam os seus patrocinadores ocidentais, até mais do que a Damasco. Ninguém é capaz de controlá-los e organizá-los. “Ironicamente, esses jihadistas deveriam ser inimigos do Ocidente, enquanto o regime secular de Assad deveria ser um aliado. O ódio ao Irã provoca fatos curiosos. “Os EUA demonstraram a sua frustração com a guerra que começaram, mas não podem vencer, rompendo relações diplomáticas com a Síria, uma ação de baixo QI, totalmente contraproducente e que, frequentemente, indica que uma guerra é iminente. “Ainda mais preocupante é o fato de que Israel lançou outro ataque contra a Síria, na semana passada, depois que uma de suas patrulhas, provavelmente, foi atingida por uma mina antiga. Israel e seus apoiadores estadunidenses estão determinados a esmagar o regime de Assad, como o primeiro passo para golpear o Irã. “Devido ao fracasso dos jihadistas de aluguel anti-Assad, Israel pode intervir, prontamente, para destruir a Força Aérea e as formações blindadas de Assad. Israel está se preparando para um ataque maciço ao Hisbolá, no Líbano, em outra tentativa de erradicar o movimento de resistência xiita. “Os EUA quase entraram abertamente na guerra na Síria, no outono passado, até que a diplomacia russa puxou o tapete sob os pés de Washington. Mas poderosas facções nos EUA ainda estão promovendo a ideia de ataques aeronavais contra a Síria. “A Ucrânia e a Crimeia distraíram, temporariamente, os EUA. O cauteloso governo de Obama procura evitar um conflito, mas os neocons pró-Israel e os falcões republicanos estão trabalhando duro por uma guerra – e as eleições de metade do mandato serão neste outono.” 07/04/2014 21:34:54 6 Solidariedade Ibero-americana Europa não pode dispensar energia russa Geraldo Luís Lino Nestes dias em que a Federação Russa de Vladimir Putin tem sido recolocada na posição de adversário número um do “Ocidente”, entendendo-se como tal o bloco de países reunidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), tem se afirmado à exaustão que os EUA terão condições de substituir parcialmente as exportações russas de gás natural para a Europa, que depende delas para suprir cerca de 40% de suas necessidades energéticas. O motivo seria o trombeteado sucesso da exploração do gás de folhelhos (shale gas) com a tecnologia do fraturamento hidráulico, conhecida como fracking. Como um mantra, a ideia tem sido repetida por autoridades governamentais e comentaristas acadêmicos e midiáticos, para reforçar a agenda do suposto “isolamento” de Moscou, por conta da sua atitude assertiva na crise da Ucrânia, em especial, após a reincorporação territorial pós-soviética da Crimeia à Federação Russa, aprovada por 96% do eleitorado local, no referendo de 16 de março último. Entretanto, tal cenário passa por cima de dois detalhes que vêm sendo destacados por um número crescente de especialistas: 1) as duvidosas perspectivas de expansão do gás de folhelhos; e 2) a inviabilidade física de os EUA aumentarem as suas exportações energéticas para a Europa a curto e médio prazos, exceto de carvão. Em um artigo publicado no sítio New Eastern Outlook, em 19 de março, o analista estadunidense F. William Engdahl, especialista em geopolítica energética, volta a bater na tecla de que a assim chamada “revolução dos folhelhos” não passa de um balão de ar quente insuflado por Wall Street. Depois de mencionar os acordos feitos com o governo ucraniano, ainda na gestão do deposto presidente Viktor Yanukovich, com as empresas petrolíferas Shell, Chevron si_20_19.indd 6 e ExxonMobil, para a exploração de áreas no Leste do país (“exatamente onde existe o mais forte sentimento pró-Rússia”), Engdahl é categórico: “Há apenas uma coisa errada com a perspectiva ucraniana de uma revolução energética baseada no gás de folhelhos. A revolução do gás de folhelhos nos EUA já acabou, apenas alguns anos depois de ter começado. A Shell acaba de anunciar uma vasta redução em sua exposição ao desenvolvimento do gás de folhelhos estadunidense. A empresa está vendendo as suas concessões em cerca de 700 mil acres [cerca de 2.800 km2] de terras, nas grandes áreas de folhelhos do Texas, Pensilvânia, Colorado e Kansas, e diz que pode ter que se livrar de ainda mais, para interromper os seus prejuízos com o gás de folhelhos. (...) “O problema com o gás não convencional é que ele não se comporta como as demais reservas convencionais de gás. Ele se esgota de uma forma dramaticamente rápida, após um rápido aumento de produção inicial, em vez de se esgotar lentamente, ao longo dos anos. O truque é sair fora antes que a bolha estoure. Mas gigantes como a Shell e a BP foram apanhadas e, agora, estão, claramente, tentando levar os incautos ucranianos à armadilha dos folhelhos. Podemos apenas suspeitar de que o longo braço do Departamento de Estado de Victoria Nuland esteja incitando o diabo, a Chevron e as outras grandes petrolíferas a alimentar as ilusões ucranianas de independência energética da Rússia, via exploração do gás de folhelhos.” Citando dados fornecidos pelo renomado analista do mercado petrolífero, David Hughes, Engdahl observa que, se o gás de folhelhos já responde por quase 40% da produção de gás natural dos EUA, por outro lado: • a produção não aumenta desde dezembro de 2011; 07/04/2014 21:34:54 • oitenta por cento da produção vem de cinco grandes áreas, algumas das quais se encontram em declínio; • as altas taxas de declínio dos campos exigirão injeções contínuas de capital, estimadas em 42 bilhões de dólares anuais, apenas para manter a produção atual; em comparação o valor do gás produzido em 2012 não passou de 32,5 bilhões de dólares. Sua conclusão: “Como o gás se esgota tão rapidamente, a empresa é forçada a investir em mais e mais poços, apenas para manter a produção estável, como um tigre perseguindo a sua própria cauda ao redor de uma árvore. Em suma, o gás de folhelhos é uma miragem que está desaparecendo.” Outro especialista, o russo Nikolai Bobkin, diz que a crise ucraniana está sendo encarada por setores do Establishment estadunidense como uma oportunidade para manobrar a geopolítica energética contra a Rússia. Escrevendo no sítio da Strategic Culture Foundation (31/03/2014), ele menciona uma audiência do Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara dos Deputados dos EUA, em 26 de março, dedicada a discussões sobre “O potencial geopolítico do boom energético dos EUA”. Na ocasião, o presidente do comitê, deputado Ed Royce (republicano da Califórnia), afirmou que a dependência europeia das exportações energéticas russas constituem um óbice para a influência estadunidense e a sua influência política sobre a Ucrânia. Para ele, a forma de retificar tal situação seria enfraquecer a Rússia, reduzindo os preços e afastando-a dos mercados tradicionais – o que Bobkin considera uma intenção de declarar uma “guerra energética” contra a Federação Russa. Não obstante, Bobkin comenta com pragmatismo os fatos referentes à dependência europeia do gás natural: “(...) Desde 2011, a Rússia tem sido o principal fornecedor de energia para a Europa, deixando para trás a Noruega, Argélia e outros países. A Lituânia, Letônia, Estônia, República Checa, Eslováquia e Bulgária dependem 100% dos fornecimentos de gás da Rússia. Apesar de a Alemanha vir tentando durante anos reduzir a si_20_19.indd 7 2ª quinzena de março de 2014 7 dependência, ela ainda importa da Rússia 28% do seu gás, como no ano passado. Não há como reduzir abruptamente as importações. Existem poucas alternativas, que se resumem, basicamente, aos EUA, Catar e Irã.” Sobre estes países, ele observa: • EUA: Embora o gás de folhelhos tenha permitido ao país reduzir a sua demanda de carvão e exportá-lo para a Europa, a insuficiência da infraestrutura europeia para o recebimento de gás liquefeito de petróleo (GLP) impede qualquer aumento significativo das exportações estadunidenses, antes de 5-6 anos. Ademais, qualquer aumento das exportações implicará em aumentos dos preços internos, o que prejudicará a própria economia estadunidense. Sua conclusão: “Os EUA não têm chance contra a Gazprom.” • Irã: Para aumentar as suas exportações, seria preciso construir gasodutos ligando o país à Europa, perspectiva prejudicada pelos sucessivos embargos impostos pelos EUA e a União Europeia (UE). Além disto, mesmo com a suspensão dos mesmos, a construção de infraestrutura nova levaria alguns anos e, dificilmente, Teerã deixaria de coordenar as suas políticas de preços com Moscou, um de seus principais aliados estratégicos. • Catar: O país responde por um quarto do gás natural importado pela Europa, mas a prioridade do continente na sua agenda política tem decrescido. Ainda este ano, Doha deverá reduzir os fornecimentos à Europa, em favor da Ásia e América Latina. Para aumentar as exportações, seria preciso construir um gasoduto atravessando a Síria e o Iraque, países cujas situações internas não oferecem qualquer perspectiva positiva, em um prazo previsível. Em síntese, o caminho da confrontação com Moscou não parece ser o mais adequado para os europeus. Melhor fariam se esfriassem a cabeça e estudassem com a devida atenção as propostas russas para uma agenda de desenvolvimento eurasiático, que tem um vasto potencial para converter o continente no motor da reconstrução econômica mundial. 07/04/2014 21:34:54 8 Solidariedade Ibero-americana A crise na Ucrânia e a ideologia de gênero Silvia Palacios Na aguda crise internacional deflagrada pelos acontecimentos na Ucrânia, ainda mais tensionada pelo resultado do referendo favorável à independência da Crimeia, a aliança EUA-Canadá-União Europeia começou a impor sanções à Rússia. Até agora, estas se limitaram a uma insólita lista de personalidades russas e ucranianas, que não poderão viajar a nenhum país da aliança e terão congelados os seus bens eventualmente existentes naquelas nações, já que foram acusadas de “ter responsabilidade na deterioração da situação da Ucrânia”. Este tipo de punição é legitimado pelo Direito Internacional vigente. Porém, não deixa de chamar a atenção o fato de que, entre os proscritos, encontra-se a deputada Elena Mizulina, uma das personalidades russas mais polêmicas e incômodas para os promotores da cultura laicista radical no Ocidente. Longe de ter algo a ver com a crise na Ucrânia, a sua inclusão na lista negra se deve muito mais à sua aguerrida oposição à chamada ideologia do gênero, mostrando-se afinada com os valores cristãos da família e desempenhando uma intensa atividade em sua posição de presidente da Comissão para a Família, a Mulher e a Infância do Parlamento russo. Ao que tudo indica, a guerra cultural travada pelas lideranças russas dentro do seu território não é bem vista pelo poder anglo-americano, cuja cúpula, nos últimos tempos, converteu a aceitação da ideologia do gênero em uma régua para a medição da democracia, da tolerância e do pluralismo. Com a crise ucraniana, parece haver a intenção de elevá-la à si_20_19.indd 8 condição de critério para a definição das normas da convivência pacífica entre nações. De outra maneira, não se explica por que Elena Mizulina se converteu em persona non grata para os EUA e o Canadá, que incluíram o seu nome nas respectivas listas de pessoas visadas. De fato, desde 2013, ela estava na lista de espera das retaliações de Washington, por ter proposto a proibição de adoção de crianças russas por cidadãos estadunidenses, em retaliação à chamada Lei Magnitsky. A lei, aprovada pelo Congresso e pelo presidente Barack Obama, em 2012, submete 60 funcionários e autoridades judiciais russos a uma eventual proibição de viajar aos EUA, como punição pela sua alegada responsabilidade na morte do advogado Sergei Magnitsky, falecido em uma prisão russa, em 2009. Na Duma (Câmara Baixa do Parlamento), Mizulina propôs um projeto de lei que proíbe a propaganda pró-aborto na Rússia. Em suas palavras, “na Rússia, fazer um aborto é algo tão fácil como comprar uma garrafa de vodca”. Em novembro de 2013, a lei foi sancionada pelo presidente Vladimir Putin. Ela também esteve por trás das iniciativas legislativas que proíbem o casamento homossexual e a adoção de órfãos russos por cidadãos de países onde tal modalidade matrimonial é legalizada. Igualmente, Mizulina participou da elaboração de uma série de emendas ao Código da Família, destinadas a restabelecer os vínculos das famílias com as tradições religiosas, estimular os jovens a se casarem, em vez de apenas viver juntos, e proteger a juventude contra os danos 07/04/2014 21:34:54 2ª quinzena de março de 2014 causados por informações divulgadas na internet. Esta última lhe valeu uma acirrada oposição de gigantes da rede, que orquestraram uma campanha para acusá-la de conspirar para coibir a liberdade de expressão na Rússia. Em suas emendas, Mizulina tem enfatizado que o atual Código da Família russo carecia de uma definição da família tradicional. Ela também tem afirmado que a família tradicional russa possui características próprias, a mais significativa sendo a influência sofrida das tradições religiosas, que consideram uma família com filhos como uma bênção – noção compartilhada pelas religiões mais populares na Federação Russa: o cristianismo ortodoxo, o islamismo e o judaísmo (RT, 4/03/2014). “Não se deve esquecer de que todos descendemos de 70 anos de ateísmo. Todo mundo entende o que é uma família soviética. Mas uma família tradicional é uma homenagem à etapa anterior da história da Rússia, que tinha a cultura religiosa como base da sociedade”, disse Mizulina. O trabalho da comissão parlamentar está em sintonia com o projeto de longo prazo de Putin e da elite governante russa, preocupados em ressaltar a importância dos preceitos cristãos para a vida cotidiana das famílias russas. Por isso, o presidente e seu grupo apóiam resolutamente as restrições feitas às modalidades da ideologia do gênero. Em particular, a imposição de obstáculos ao aborto tem a finalidade de aumentar a natalidade, em um país afetado por uma alarmante implosão demográfica, com a população diminuindo anualmente em cerca de 500 mil pessoas, devido ao 9 Elena Mizulina excesso de mortes sobre o de nascimentos. Em 1920, o recém-implantado regime comunista fez da Rússia Soviética o primeiro país do mundo a legalizar o aborto. Na Europa, cuja maior parte também se vê ameaçada pelo “inverno demográfico”, não obstante, a resposta tem sido bem diferente, continuando-se a enfatizar as crenças anticristãs desfiguradoras da família. Por isso, em Moscou, tem sido realizada uma série de eventos destinados a reforçar as convicções das vantagens das famílias “normais”. Em 2011, por exemplo, realizou-se uma grande conferência internacional sobre “A família e o futuro da humanidade”, promovida pelo movimento pró-vida russo, com o apoio ostensivo do Kremlin, da Igreja Ortodoxa Russa e do Parlamento. Em um comentário feito na ocasião, o então presidente Dmitri Medvedev, admitiu que “a forte diminuição da população, que acarreta em uma densidade [demográfica] três vezes inferior à média mundial, produz uma debilitação da influência política, econômica e militar da Rússia no mundo”. Siga-nos no Twitter: Twitter.com/msia_br si_20_19.indd 9 07/04/2014 21:34:54 10 Solidariedade Ibero-americana Projeto de desenvolvimento eurasiático apresentado em Moscou Mario Lettieri e Paolo Raimondi, de Roma Enquanto sopram mais fortes os ventos de uma nova “Guerra Fria” e os riscos de conflitos reais em torno da crise da Ucrânia, importantes personalidades do mundo econômico e científico da Federação Russa se aprestam a oferecer uma alternativa pacífica de desenvolvimento de infraestrutura , econômica e cultural de todo o continente eurasiático. Em 11 de março, em Moscou, o presidente da megaempresa estatal Ferrovias Russas, Vladimir Yakunin (incluído na recente lista de sanções adotadas pelos EUA contra personalidades russas), com o apoio da prestigiosa Academia Russa de Ciências, apresentou um plano de grandes investimentos em infraestrutura, batizado como Corredor de Desenvolvimento Eurasiático, sintetizado pela palavra russa Razvitie, que significa desenvolvimento. Os autores estavam entre os poucos estrangeiros convidados para o evento. Após a sua sanção científica pela Academia Russa de Ciências, o projeto está agora pronto para ser apresentado e discutido nas diversas instituições da administração do Estado. Trata-se de um megaprojeto, que exigiria investimentos da ordem de centenas de bilhões de euros, baseado na construção de corredores de infraestrutura moderna para ligar a costa russa do Pacífico à Europa atlântica. Os corredores incluem ligações ferroviárias e rodoviárias, além de gasodutos, oleodutos, aquedutos e redes de transmissão de eletricidade e de comunicações. Estão previstas futuras ligações com a China, si_20_19.indd 10 que, aliás, já está empenhada ativamente na construção de uma “Nova Rota da Seda”, uma rede de ferrovias modernas no eixo eurasiático, e até mesmo com a América do Norte, com uma ligação ferroviária via Estreito de Bering, para conectar a Sibéria com o Alasca. Evidentemente, a visão estratégica do projeto vai muito além da criação de corredores de transportes e inclui o desenvolvimento em profundidade de faixas de 200-300 km ao longo dos eixos viários, contemplando novos assentamentos urbanos e centros de produção. De acordo com Yakunin, tal projeto poderia criar pelo menos 10-15 novos tipos de indústrias baseadas em tecnologias completamente novas. Tais propostas podem parecer uma ideia de visionários. Mas, desde há algum tempo, a Rússia vem tentando definir uma estratégia não apenas econômica, mas também capaz de mobilizar e unir as forças sociais, culturais e espirituais de toda a população em torno de um grande projeto. Desta forma, os mentores da proposta acreditam poder confrontar a questão demográfica crucial, em um país que, nas últimas duas décadas, tem experimentado reduções assustadoras no tamanho da população e nas taxas de fertilidade. Uma das ideias é colocar em marcha uma urbanização progressiva dos territórios da Sibéria e do Extremo Oriente russo, ainda vastamente desabitados. Na verdade, no passado, a Rússia sempre se mobilizou em torno de grandes 07/04/2014 21:34:54 projetos que, inicialmente, pareciam impossíveis. A construção da Ferrovia Transiberiana, com 9.300 km de extensão, há mais de um século, o plano de eletrificação da União Soviética, nas décadas de 1920-1930, e os programas espaciais são os exemplos mais conhecidos. Yakunin afirmou que, recentemente, já foram decididos importantes investimentos de longo prazo, como a modernização das ferrovias Transiberiana e Baikal-Amur. A superação da crise global que impacta este início do século XXI poderia ser um importante estímulo para um acordo entre a Rússia, a União Europeia e os EUA, o qual possibilite uma resposta positiva ao impulso de desindustrialização que atinge as três economias. A utopia da sociedade pós-industrial fracassou e, portanto, necessita ser superada com um novo e moderno impulso de industrialização. Em um mundo marcado 2ª quinzena de março de 2014 11 pelo intercâmbio de bens e tecnologias, o desenvolvimento do corredor eurasiático pode, portanto, conciliar os interesses das três grandes economias, criando ao mesmo tempo uma garantia de segurança geopolítica para todos. É óbvio que um projeto de tais proporções só pode ser implementado com a participação de todos os países envolvidos e interessados, começando pela União Europeia, cuja contribuição tecnológica é insubstituível e para a qual abriria amplas perspectivas de modernização tecnológica, novos empregos e novos negócios para as empresas do continente. Neste momento delicado, em que a Rússia é excluída do G-8, pode parecer extravagante se falar sobre projetos semelhantes, mas é preciso pensar a sério em novas fases de desenvolvimento global e em uma nova orientação geopolítica mundial pacífica e altamente integrada. A ligação ferroviária entre a Sibéria e o Alasca, incluindo um túnel submarino sob o Estreito de Bering, é um dos grandes projetos de infraestrutura contemplados na agenda da integração eurasiática promovida por Moscou si_20_19.indd 11 07/04/2014 21:34:54 12 Solidariedade Ibero-americana Racionamento de energia: adiamento pode aumentar problemas em 2015 Leandro Batista Pereira Segundo especialistas que têm acompanhado os desdobramentos dos problemas no setor elétrico, com a persistência do baixo nível dos reservatórios das usinas hidrelétricas e o fim da temporada de chuvas no Sudeste e no Centro-Oeste, o racionamento de energia se torna cada vez mais necessário e, se o governo não adotar medidas de redução obrigatória do consumo este ano, o impacto em 2015 será ainda maior. Analistas do banco BTG Pactual, Antonio Junqueira e João Pimentel afirmam que quanto mais riscos o governo aceitar, ao evitar um programa de racionamento, mais se ampliam as possibilidades de um apagão. Já a equipe da consultora Citi Research acrescentou: “A falha em implementar imediatamente o racionamento torna claro que as decisões até agora foram políticas, e não técnicas” (Valor Econômico, 3/04/2014). Os analistas Francisco Navarrete, Tatiane Shibata e Arthur Pereira, do banco Brasil Plural, publicaram um relatório no mês passado, onde afirmam que a si_20_19.indd 12 probabilidade de racionamento no País é de 100%. Para eles, a redução forçada do consumo será inevitável, pois não há como as usinas termelétricas funcionarem em plena capacidade por todo o tempo e a utilização de biomassa pode ser prejudicada pela má safra deste ano. Além disso, os especialistas apontam o extremo otimismo dos números utilizados para calcular a probabilidade de contenção da oferta. Segundo analistas do Citi, “por critérios técnicos, o Brasil já deveria ter posto em ação um regime de racionamento moderado em março, de 5% nas regiões Sudeste e Centro Oeste”. Já o BTG Pactual aconselha um racionamento da mesma proporção, por cerca de seis meses. A opinião geral, contudo, é de que o governo irá segurar qualquer medida nesse sentido até o fim das eleições de outubro deste ano, por temer um efeito negativo de um racionamento nos resultados do pleito. Neste sentido, o BTG lembra que o programa de racionamento de 2001 teve impacto nas eleições de 2002. 07/04/2014 21:34:55 Lilyana Yang, do UBS, afirma que adiar a economia de energia amplia as chances de que o quadro se agrave no futuro: “Os números divulgados pelo governo federal divergem dos apresentados por Mario Veiga, da firma de consultoria PSR. O governo continua rejeitando os riscos de racionamento”. O BTG também critica a postura do governo, em especial o seu otimismo exagerado: “As autoridades estão abertamente otimistas demais. Nos últimos meses, as declarações foram de ‘mesmo que não haja uma gota de chuva, não haverá racionamento’ à apresentações avançadas que mostram baixo risco». O Citi aponta que, se o governo insistir em não se mexer, é grande a chance de um racionamento de cerca de 20% em 2015 – cujos impactos potenciais para a a economia e a sociedade brasileira seriam bastante grandes. Térmicas já custam R$ 10 bilhões a mais O emprego intensivo das usinas térmicas durante do o mês de março resultou em uma conta adicional de cerca de R$ 4 bilhões às distribuidoras de energia, segundo cálculo de uma fonte consultada pelo Valor. O custo ficou próximo ao verificado em fevereiro, por conta da ativação de todo o parque térmico e do preço recorde cobrado por tais usinas para a venda de energia a curto prazo – uma das “maravilhas” do atual modelo do setor elétrico, que resultou no preço astronômico de R$ 822,83 por megawatt-hora, segundo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). No mês de janeiro, quando o valor da energia no mercado livre ainda não havia atingido o patamar máximo, o rombo foi de R$ 1,8 bilhão. Somando-se o custo dos três primeiros meses do ano, chega-se à salgada conta de R$ 10 bilhões em custos extras. Para fins de comparação, o custo da energia no mercado de curto prazo, nos si_20_19.indd 13 2ª quinzena de março de 2014 13 meses de fevereiro e março de 2013, foi de R$ 50,73 e R$ 127,27, respectivamente. Segundo o diretor de regulação e gestão em energia da Thymos Energia Consultoria, Ricardo Savoia, se todos os aportes já feitos pelo governo fossem integralmente repassados para as tarifas, haveria um reajuste de 28% a 30% na conta de luz. Ele observou ainda que a “própria Cemig, por exemplo, já pediu um reajuste de 29,74% em sua tarifa”. Mariana Amim, assessora jurídica da Anace (entidade que representa consumidores livres da indústria e do comércio de grande porte), o momento é de grande preocupação: “É com muita tristeza que vemos tudo o que está acontecendo no setor, um planejamento que não deu certo. As decisões levaram a uma redução do custo de energia, mas isso era falso. A conta está chegando.” A respeito do alto custo da energia, o Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico-Ilumina destaca que a solução passa por uma reforma tributária e a revisão das margens de lucro de distribuidoras e dos encargos. E coloca a pergunta central: “Há vontade política para ir tão fundo?”. 07/04/2014 21:34:55 14 Solidariedade Ibero-americana Madeira: reservatórios de insensatez Os efeitos da cheia histórica na bacia do rio Madeira, que elevou o nível do rio a mais de 25 metros acima da média normal, provocando prejuízos estimados em R$ 400 milhões e afetando dezenas de milhares de pessoas, no entorno de Porto Velho (RO), constituem uma demonstração cabal de que o País não pode mais se dar ao luxo de desprezar o bom senso, no planejamento da ocupação física do seu território. Embora alguns incorrigíveis adeptos do ambientalismo radical tenham tentado atribuir o problema às usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio, construídas no rio Madeira, a montante de Porto Velho, os especialistas sérios têm reiterado que a cheia recordista foi causada pelas precipitações excepcionais que caíram sobre as nascentes dos principais rios da bacia, nos Andes bolivianos. Tampouco, as usinas, que não têm reservatórios grandes e funcionam no regime de “fio d’água”, podem ser responsabilizadas por certos efeitos localizados da cheia. Ao contrário, se tivessem reservatórios maiores, como as das hidrelétricas construídas antes que o radicalismo ambientalista fosse institucionalizado nas políticas públicas nacionais, poderiam ter contribuído para regularizar a vazão do rio e reduzir consideravelmente os impactos da cheia. Não obstante, a influência do fundamentalismo “verde” ainda se fez sentir na esdrúxula decisão da Justiça Federal de Rondônia, que determinou que as empresas concessionárias das usinas e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) si_20_19.indd 14 refizessem os estudos de impacto ambiental das usinas, sob pena de retirar-lhes as licenças de operação. No afã de atender à ação civil pública movida quatro dias antes, pelo Ministério Público Federal e Estadual, as Defensorias Públicas da União e a seccional de Rondônia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o juiz Herculano Martins Nacif pode não ter tido tempo de ouvir profissionais qualificados, que poderiam ter isentado as usinas de qualquer responsabilidade pelas agruras da população local. Talvez, no futuro, os brasileiros consigam aprender e colocar em prática certos preceitos de mero bom senso, já adotados e consagrados em países onde o planejamento de longo prazo e uma certa harmonização de interesses entre a iniciativa privada e as necessidades da sociedade em geral estão integrados nas políticas públicas. Em tais países, a otimização dos recursos hídricos considera as bacias hidrográficas em seu conjunto e constitui uma peça fundamental do planejamento da ocupação física do território e a utilização dos seus recursos naturais. Neles, sempre que possível, as barragens são construídas visando a finalidades múltiplas – geração de eletricidade, controle de cheias, navegação, recreação e outras. Em algum deles, dificilmente, seriam construídas usinas como Jirau e Santo Antonio, na forma como foram projetadas, desperdiçando grande parte dos benefícios potenciais de um precioso recurso natural, como é o rio Madeira – sem reservatórios adequados, sem eclusas e sem uma definição clara de suas cotas de operação pelas 07/04/2014 21:34:55 autoridades competentes, permitindo uma disputa surreal entre as operadoras de ambas, para assegurar geração e receita adicionais. Tivessem sido projetadas e construídas de acordo com os critérios consagrados pela engenharia, a hidrologia e o elementar bom senso, como mostram as melhores experiências internacionais, as usinas poderiam não apenas: gerar mais energia; viabilizar a extensão da hidrovia do rio Madeira (que, com a construção da contemplada usina binacional de Ribeirão, com a Bolívia, poderia levá-la até Vila Bela da Santíssima Trindade-MT, no rio Guaporé, separada por apenas 270 km de via rodoviária de Cáceres-MT, ponto inicial da hidrovia Paraguai-Paraná); e, com o efeito regularizador das vazões fluviais, reduzir os problemas e prejuízos causados pelas cheias. Outra área em que o bom senso necessita ser reintroduzido é o das pesadas compensações socioambientais exigidas dos empreendimentos de infraestrutura, 2ª quinzena de março de 2014 15 crescentemente penalizados por requisitos que deveriam ser atribuições dos poderes públicos, como redes de saneamento, escolas, hospitais e outros. Tais itens deveriam limitar-se às compensações direcionadas às populações diretamente afetadas pelos empreendimentos, como as deslocadas de suas propriedades, e não aos centros urbanos maiores e apenas indiretamente atingidos por eles, onde, definitivamente, não deveria caber às concessionárias a execução de tarefas negligenciadas pelas lideranças políticas. Infelizmente, como também se observam nos problemas específicos do setor elétrico, às voltas com a quase certa necessidade de um novo racionamento de energia, a miopia estratégica, o imediatismo, a inércia e a submissão a agendas alheias aos interesses nacionais, como a do ambientalismo-indigenismo, talvez, sejam necessárias outras cheias, apagões e outras mazelas, para que o Brasil se decida a entrar de vez na vida adulta, como um Estado soberano e comprometido com o bem comum. As usinas hidrelétricas de Jirau (foto) e Santo Antonio foram obrigadas a abrir as comportas para não agravar a inundação no rio Madeira si_20_19.indd 15 07/04/2014 21:34:55 F A Ç A O S E U P E D I D O (acrescentar R$ 6,00 para remessa postal) Nome End. Cidade Tel.: UF E-mail CEP exemplar(es) do livro Quem manipula os povos indígenas contra o desenvolvimento do Brasil: um olhar nos porões do Conselho Mundial de Igrejas – R$ 35,00 exemplar(es) do livro Ideologia de gênero – R$ 34,00 assinatura anual do jornal Solidariedade Ibero-americana – R$ 145,00 Opção de pagamento: [ ] Cheque nominal à Capax Dei Editora Ltda. no valor de R$ [ ] Depósito bancário no Banco do Brasil, ag. 0392-1, c.c. 20.735-7 em nome da Capax Dei Editora Ltda. no valor de R$ Envie seu pedido e cheque ou comprovante de pagamento à Capax Dei Editora Ltda. telefax +(21) 2510.3656 REMETENTE | R. México, 31 s. 202 CEP 20031-144 – Rio de Janeiro – RJ si_20_19.indd 16 07/04/2014 21:34:55