Mística e Espiritualidade

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Mística e Espiritualidade
Cáritas Brasileira
Mística e Espiritualidade 2
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Pessoas amadas,
livres,
libertadoras
EXPEDIENTE
Cáritas Brasileira
Endereço: SGAN – Av. L2 Norte, Quadra 601
Módulo F
CEP: 70830-010 / Brasília (DF)
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Presidente: Dom Luís Demétrio Valentini
Vice-Presidente: Anadete Gonçalves Reis
Diretora Secretária: Ir. Francisca Erbênia de Sousa
Diretor Tesoureiro: Pe. Evaldo Praça Ferreira
Coordenação Colegiada
Diretora executiva nacional: Maria Cristina dos Anjos da Conceição
Coordenador: Ademar Bertucci
Coordenador: Luiz Cláudio Mandela
Texto: Ivo Poletto
Revisão: Ida Boing Magalhães de Sousa
Comunicação:
Ricardo Piantino / Thays Puzzi / Fernanda Nalon ::
Secretariado Nacional
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MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE
INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO
BEBENDO NO PRÓPRIO POÇO
A Cáritas teve uma renovação de agentes nos últimos anos, e isso é
sinal de rejuvenecimento. Aumentou também o número de colaboradoras e
colaboradores voluntários, um sinal de que o “Deus conosco” está atraindo
mais pessoas para a prática do amor libertador. Mas isso significa,
igualmente, que o processo permanente de formação, em que se inclui a
espiritualidade e mística, precisa ser atento ao novo da história, aos sinais
dos tempos, e, ao mesmo tempo, à riqueza do que já foi construído.
A decisão de reeditar o texto Espiritualidade e Mística, publicado em 2003,
foi tomada pelos participantes do Encontro dos agentes indicados pelos
Regionais para animar de forma permanente a mística e espiritualidade na
Cáritas. E o fizeram principalmente por três motivos:
pela riqueza de seu conteúdo, elaborado participativamente, num processo
de reconhecimento da prática, de reflexão crítica sobre desafios
apresentados por ela, de retorno a uma prática renovada;
pela atualidade dos temas tratados e da metodologia de sua elaboração, em
que se destaca a estreita e criativa relação entre celebração,
aprofundamento e compromisso;
pelo desejo de que os/as novos agentes e voluntários/as tenham
oportunidade de retomar e enriquecer-se com o que foi construído a muitas
mãos num longo processo coletivo.
Na verdade, esta prática de retomar a riqueza da caminhada faz parte
da espiritualidade bíblica, fonte germinal da espiritualidade cristã. Trata-se
de fazer memória e celebrar as maravilhas que Deus fez em nós, em nossas
comunidades, no mundo. A Páscoa é sempre memória e celebração de como
Deus criou tudo que existe, e viu que tudo era muito bom; de como Javé
ouviu os gritos de seu povo e desceu para libertá-lo da escravidão, e dos
passos dados pelos antepassados até conquistar a liberdade numa terra em
que corre leite e mel.
Vale a pena beber no próprio poço, sentindo-se parte de uma rica
história de amor e de luta pela vida, de uma história em que o
aprofundamento e renovação da relação com Deus fez nova e mais radical a
livre opção pelo amor libertador das pessoas, a começar das marginalizadas e
excluídas.
Aliás, o próprio texto que será publicado foi um exercício de memória,
de reflexão sobre a prática em que se vive a espiritualidade e mística da
Cáritas. Foi fruto de um longo processo de construção coletiva: partindo de
um texto inicial, trabalho nos regionais da Cáritas para resgatar e sistematizar
como se vivia a espiritualidade e mística, junto com questões de
aprofundamento; em assembléia, apresentação vivenciada do que foi
levantado nos regionais, aprofundamento e definição de pontos sobre os
quais a Cáritas sentia necessidade de buscar caminhos; trabalho de
elaboração em grandes regiões, contando com assessorias para diferentes
questões; finalmente, aprovação e publicação do texto de sistematização
final.
Mas fazer memória e celebrar, como se deve fazer na Eucaristia – fazei
isso em memória de mim -, não significa limitar-se e fixar-se no passado. Algo
novo deve nascer em cada retomada e celebração. O concílio Vaticano II, em
seu documento sobre a Liturgia, nos ensinou que cada celebração deve ser
um novo acontecimento. Como se deu na vida de Jesus e seus discípulos/as na
Ceia da Páscoa: depois de escandalizá-los pela ação de lavar seus pés, deulhes a missão: se eu, Senhor e Mestre, lavei os pés de vocês, cabe a vocês fazer
a mesma coisa. O tomar o pão e o vinho, abençoá-los e reparti-los foi, ao
mesmo tempo, uma celebração memorial da libertação da escravidão no
passado e um compromisso com novas formas de práticas de libertação.
Por isso, a retomada da vida e dos compromissos da Cáritas presentes
no texto Mística e Espiritualidade é memória celebrativa e fonte de novos
compromissos. Por que novos? Porque já não estamos em 2003, e os tempos
atuais nos apresentam novos tempos de graça e momentos de salvação, isto
é, novos desafios e potencialidades de ação libertadora.
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Foi neste sentido que os participantes no Encontro sobre
espiritualidade e mística que tomaram a decisão de republicar este texto
assumiram, ao mesmo tempo, compromissos e tarefas para atualizá-lo. E o
farão seguindo a mesma metodologia: diferentes regionais aprofundarão em
conjunto um dos temas novos identificados por todos. O que se pode e deve
esperar, então, é que a Cáritas contará com mais processos participativos
sistematizados em textos para ir ligando a vivência de sua mística e
espiritualidade com a realidade atual.
Basta, por enquanto, ter presente os quatro temas em que já se está
trabalhando:
1. Identidade dos agentes a partir da Missão e dos Princípios orientadores da
Cáritas Brasileira.
2. Ecologia e Cuidado com a Criação.
3. Ecumenismo/Macro-ecumenismo.
4. Resgate das CEBs/Modelo de Igreja (Dimensão bíblica profética)
Como se percebe, um tema está mais diretamente ligado à própria
Cáritas, à identidade dos agentes, aprofundando em particular a relação
entre necessidade da mediação técnica e da perspectiva pastoral de sua
prática.
Os demais têm a ver com as relações criadas a partir e por meio das
práticas da Cáritas. Busca-se resgatar a riqueza das CEBs no caminho da
construção de um modo de ser Igreja mais próximo à prática de Jesus de
Nazaré, aprofundando, ao mesmo tempo, a dimensão profética da Cáritas,
tanto em relação à realidade sociopolítica como à eclesial.
Para ser fiel à sua missão, a Cáritas sente a necessidade de avançar na
vivência do ecumenismo, na relação com irmãos e irmãs que procuram seguir
Jesus Cristo em outras denominações eclesiais, e na relação com pessoas que
vivem relações com Deus e com o próximo em outras experiências religiosas.
Esse é um caminho aberto para mais ações em rede, mas é principalmente
aprofundamento do encontro com Deus que age nas pessoas e comunidades
diferentes, que faz brotar nelas vivências de fé admiráveis – como as que Jesus
percebeu na mulher Cananéia e no soldado romano que foram ao seu
encontro.
Finalmente, apresenta-se o desafio de avançar numa mística e
espiritualidade em comunhão profunda com toda a Criação, com o ambiente
vital da Terra, tão agredido pelos caminhos do progresso capitalista. O
desequilíbrio provocado é muito grave e exige mudanças profundas com o
máximo de urgência. Para os pobres, e para a Cáritas junto com eles/as, que
praticamente em nada contribuíram com o aquecimento que provoca
mudanças climáticas no Planeta, apresenta-se um duplo desafio: a)
conquistar os direitos que possibilitam e garantem o bem viver, e b) criar
caminhos diferentes e novos de desenvolvimento socioeconômico, caminhos
que evitem os estragos socioambientais criados pelo capitalismo, caminhos
que recriem relações com a Mãe Terra.
A mística da vida e do Reino, tão evidente e forte na prática do amor
libertador de Jesus, é a fonte de esperança que alimenta os que decidem
seguir seus passos. Esta dimensão da mística e da espiritualidade da Cáritas
transforma sua prática em fermento de transformação, em luz para
compreender os sinais dos tempos, em fonte de esperança para todas as
pessoas que aceitam o convite de viver sua missão em favor dos irmãos e
irmãs assumidos como o próximo.
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APRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
ENTREABRINDO...
Faz mais de dois anos que estamos a caminho. Como os discípulos de
Emaús, vivemos no meio de acontecimentos que põem em questão nosso
ânimo. Para sorte nossa, convivemos, no mesmo tempo, com momentos
geradores de esperança, e tanta que, por algum motivo, chegamos a sonhar
que o momento, de tão intenso, se tornaria eterno. Logo somos despertados,
contudo, e com ruídos terríveis e ameaças que, uma vez mais, nos fazem
duvidar da própria humanidade.
O destino desejado por todas e todos nós, agentes da Cáritas
Brasileira, era a construção de uma boa mística e espiritualidade para todos
nós. Já chegamos? Ou esse será um caminho sempre aberto, sem fim, com
pousadas, campos para tendas, em que se chega, vive-se e condivide-se,
intensamente, o percorrido, o descoberto, e se retoma, mais reforçados, a
romaria?
Todos os grandes mestres da vida nos sugerem que o caminho da
mística e da espiritualidade não tem fim. Ou melhor, que somos nós, em nossa
imperfeição e nosso desejo infinito de superação, que descobrimos a precisão
de continuar avançando sempre, buscando novas maneiras de estarmos mais
próximos da divindade. Na vida e na palavra de Jesus, por exemplo, nos
compreendemos melhor: sejam perfeitos como o Pai o é. Podemos crescer
sempre, e assim mesmo teremos muito mais a descobrir, e vivenciar.
Convivemos com acontecimentos marcantes nesses dois anos, e
continuamos profundamente influenciados por eles. Para que a
sistematização de nossa caminhada seja, ela também, fonte de momentos de
reencontro, redescoberta, revisão, celebração apaixonante, é importante que
a acolhamos imersos nas angústias e esperanças presentes na realidade em
constante movimento. Destaquemos alguns desses acontecimentos:
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O ataque às torres gêmeas, símbolo maior da dominação característica do
mundo atual, em setembro de 2001, em Nova York, abriu a boca da besta fera do
império, e dela saiu o que, por fruto de ilusão ou de medo, julgávamos não mais
existir. O poder político e militar estadunidense mostrou até onde é capaz de ir para
servir e louvar ao seu ídolo, o dinheiro, a riqueza. Já presenciamos duas guerras nesse
curto prazo, contra o Afeganistão e o Iraque, as duas contra poderes locais
promovidos anteriormente pelos mesmos interesses estadunidenses, mantidos por
eles por servirem às suas estratégias de dominação. Se a primeira foi um escandaloso
massacre de um país absolutamente empobrecido, a segunda serviu para deixar
claro que o poder imperial não se dobra nem depende de qualquer instância de
poder mundial, como a ONU. As duas indicaram uma escalada imensa de perversão:
a mentira tornou-se a regra mais geral dos meios de comunicação, e ela foi elaborada
e vendida por agências de informação e segurança estadunidenses, de modo
especial pela CIA.
Em direção e com sentidos claramente opostos aos do império neoliberal
estadunidense, tivemos oportunidade de participar de mais dois Fóruns Sociais
Mundiais, em Porto Alegre. Um dos sinais da incalculável importância desse tipo de
encontro, intercâmbio, contestação e busca de caminhos alternativos para
humanidade foi, certamente, a mobilização de mais de seis milhões de pessoas em
todo o Planeta contra a deflagração da guerra no Iraque apenas 15 dias depois do
término do FSM de 2003. Mesmo não tendo alcançado o objetivo imediato, a
mobilização mundial serviu para demonstrar ainda mais claramente o caráter
imperial, antidemocrático e anti-humano dos governos estadunidense e inglês; mas,
para nossa sorte, serviu também para reforçar e dar caráter permanente à
mobilização da humanidade em favor de dias de paz, e de uma paz que exige justiça,
melhor distribuição da riqueza e maior cuidado com toda a Criação.
Em nosso país, pouco antes do FSM 2003, tivemos um acontecimento
extraordinário: a eleição, pela primeira vez, de um representante da população
trabalhadora para a Presidência da República. A eleição de Lula revela sentimentos
importantes da população: que não aceita os descaminhos neoliberais, geradores de
empobrecimento e insegurança generalizados, de grave endividamento público e
privado e de ameaças à soberania nacional; que exige mudanças, e todas as
necessárias para que todas as pessoas possam viver com dignidade; que prefere
enfrentar o medo, gerado pelas constantes ameaças das elites financeiras, e quer
trilhar caminhos em que sejam semeadas sementes de esperança, indicando que
vale a pena acreditar no país, e de modo especial, em sua população trabalhadora.
Eleito um governo de origem popular, comprometido publicamente com a
criação de condições para que todas as pessoas vivam dignamente a partir de seu
trabalho, implicando a superação da miséria e da fome que atingem mais de 40
milhões de brasileiros e brasileiras, estamos vivendo um tempo de intensa disputa
pela hegemonia da sua orientação política. Presenciamos sinais contraditórios, uns
indicando clareza de objetivos em relação aos direitos sociais, outros, contudo,
deixando no ar a sensação de continuidade em relação à macroeconomia, que, se
confirmada, ameaça a possibilidade real de políticas sociais favoráveis a toda a
população. De toda maneira, o desafio colocado à cidadania é o da intensificação de
sua presença nos espaços públicos para, com sua criatividade e com seu poder, exigir
que o governo coloque em prática os compromissos apoiados pelos eleitores.
Vale destacar, por fim, um passo significativo: o Programa 1 Milhão de
Cisternas no Semi-Árido foi assumido como política pública pelo governo federal, e
como parte do Programa Fome Zero. Isto indica como é fundamental a sociedade ir
abrindo caminhos novos, de validade comprovada pela prática, para servirem como
base para a luta por políticas públicas a serem implementadas com participação direta
de entidades civis. Continua o desafio de fazer que essa luta por uma nova cultura de
relação com a água no Semi-Árido seja, de fato, a porta de entrada para as políticas
públicas que possibilitarão, junto com o povo da região, a Convivência com o SemiÁrido.
Como se pode ver nesse breve elenco de acontecimentos, vivemos em
tempos difíceis, desafiadores, marcados por práticas imperiais, mas que, assim
mesmo, são tempos portadores de novas potencialidades, de modo especial em
nosso país. A busca por uma espiritualidade e mística da Cáritas deve ser, ela própria,
uma fonte de luz para compreendermos com maior atenção os sinais dos tempos,
levando-nos a assumir, com renovada esperança, nossa missão de seguidores de
Jesus, de modo especial por meio da prática do amor que transforma o próximo
amado, o próprio amante e o mundo em que se ama.
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I – UM GARIMPO SURPREENDENTE
Nosso ponto de partida, definido com participação de todas e todos os
companheiros, foi o de assumir-nos como seres portadores de espiritualidade.
Não aceitamos a falsa ideia de que mística e espiritualidade seriam
características de monges e, quando muito, de pessoas consagradas por algum
tipo de ordenação eclesiástica. Todo ser humano é espiritual, e suas práticas
revelam seu espírito, pratique ou não alguma religião.
A porta de entrada, então, para a realização de nossa prioridade, não
estava na leitura de textos ou livros, nem na audiência de palestras de
especialistas sobre espiritualidade. Nós mesmos - com nossa individualidade,
construída junto com múltiplas relações, inclusive religiosas, e portadora de
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experiências positivas, de dúvidas e questionamentos - deveríamos ser
os
primeiros interlocutores dessa longa caminhada. Uma caminhada, por sinal,
que parte de nós e retorna a nós próprios, indo do eu atual de cada pessoa para
um eu mais profundo, mais fundamentado, com bases renovadas e mais
seguras. Por onde passaríamos, em nossa busca? A resposta deveria ser dada
por todas e todos os participantes, mas o ponto de partida precisava ser a
experiência de cada pessoa, de cada grupo e equipe, de todos os membros da
Cáritas. Sem isso, perderíamos a riqueza de espiritualidade já existente, e não
teríamos certeza de que cada pessoa seria aquele bom terreno da parábola,
que recebe a semente e a faz frutificar em até cem por cento.
O Garimpo, como foi denominado, ocupou nosso primeiro ano. O
ponto de encontro, de apresentação das pepitas encontradas, foi a Assembléia
Nacional de 2001.
A primeira parte de nossa sistematização procura resgatar o que
descobrimos de essencial nessa obra coletiva. Evidentemente, não será
possível retomar e retratar aqui, em forma de relato, tudo que foi sentimento,
emoção, até mesmo porque isso é vivido de forma muito diferente por cada
pessoa. Procuraremos destacar o que nos ajudará a ter presente em nossa
espiritualidade e mística as riquezas garimpadas.
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1.1 – Gente de ação
Nosso Garimpo, iniciado em cada pessoa, tornado coletivo nas equipes
paroquiais e diocesanas, nos Secretariados Regionais e Nacional, revelou-nos uma
primeira característica de nossa espiritualidade: somos gente de ação. Podemos até
agir demais, caindo no ativismo, mas não podemos fugir de que somos pessoas,
equipes, uma entidade voltada para a prática em favor dos mais necessitados.
Basta lembrar das Tendas em que fomos acolhidos em cada Regional pelos
seus representantes, iniciando a nossa Assembleia de Siquém, para perceber como a
ação, a prática, a luta é o nosso chão de todo dia. E não qualquer prática, apenas para
ocupar o tempo. Assumimos ações que despertem ou reforcem a capacidade de agir
das pessoas com quem desejamos caminhar para enfrentar os problemas
encontrados. São ações que têm como objetivo modificar, transformar a realidade,
superando necessidades que afligem pessoas. Nossa prática é social por ser feita em
favor de pessoas, grupos ou coletividades que se encontram em necessidade e por ser
realizada com a participação dos necessitados.
Gente de ação costuma correr muito, e mais ainda quando são poucos.
Correm para dar conta dos pedidos, dos desafios, da continuidade das práticas. Maior
ainda é a correria, e o tempo necessário, quanto mais as ações implicam conflitos. São
conflitos que nascem do confronto dos interesses das elites com as reivindicações ou
lutas diretas dos excluídos, nossos parceiros preferenciais. Ou nascem da reação da
própria instituição eclesial, já que nossa Cáritas é organismo da Igreja Católica. Mais
complicados ainda são os conflitos vividos no interior das nossas equipes, e que têm
origens diferentes, quase sempre ligadas à busca da melhor orientação para a prática,
mas outras vezes revelando disputas por poder, ainda se tão pequeno.
De toda forma, somos pessoas de ação. Somos mais facilmente criticados e
criticadas pelo descuido de nós mesmos do que por estarmos acomodados.
Contraditoriamente, contudo, somos tentados pelos mesmos que nos questionam a
assumir novas frentes de trabalho, mais atividades, novos desafios. E nos deixam,
muitas vezes, sem os recursos indispensáveis, o que obriga a buscar quem nos apóie
financeiramente, perto ou longe.
O ritmo intenso de trabalho nos levou à necessidade da prática do mutirão.
Somos companheiros, nos ajudamos muito. Temos tido o cuidado de capacitar-nos
para planejar com mais competência, não como quem depende de técnicas e se
submete a burocracias, mas como quem sabe que o tempo é pouco e precisa ser bem
utilizado; e ser bem utilizado por causa dos que desejamos servir. Experimentamos,
nos últimos anos, uma unidade cada vez maior, e não só exterior, fruto de alguma
disciplina, mas como fruto de uma melhor compreensão da missão que assumimos.
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A própria vivência de Assembleia de Siquém, na última Assembleia Geral, nos
mostrou como é bom vivermos unidos, numa união de quem busca ser mais fiel.
Somos diferentes, como pessoas e como Regionais, nascidos em regiões com culturas
muito características. Quando nos assumimos como um tipo de um corpo só,
solidários uns com os outros, cada equipe agindo da melhor maneira na localidade e
na região, mas sabendo que conta com o apoio dos demais que trabalham em outras
localidades e regiões, experimentamos a alegria da complementaridade. Passamos a
vivenciar as diferenças como uma possibilidade de enriquecimento: uma pessoa
enriquece a outra, cada região se sente enriquecida pela cultura das outras.
Somos equipes de mulheres e homens, e temos procurado reconhecer-nos
diferentes e iguais, rompendo com práticas que impedem a construção de relações de
gênero que possibilitem uma real igualdade de direitos. A pesquisa e as reflexões que
fizemos sobre isso nos ajudaram a compreender com maior profundidade a
importância desta caminhada de superação de preconceitos e hábitos
discriminatórios, abrindo caminhos para uma convivência que nos ajude a crescer a
partir de mais essa diferença.
Este tem sido o primeiro fruto de nosso garimpo: descobrir-nos gente de
ação, gente que trabalha muito em favor dos mais necessitados, mas que está
aprendendo a ser solidária na vida e nas ações; gente diferente, mas com uma missão
comum e que está crescendo na capacidade de reconhecer com alegria as
contribuições que os companheiros e companheiras nos dão; gente que faz a
experiência da solidariedade entre regiões diferentes, sentindo-se parte de um único
país, enriquecendo-se com as culturas que as caracterizam; somos mulheres e
homens, desejosos de uma convivência de pessoas que se enriquecem a partir de
suas diferenças, garantindo relações de igualdade.
1. 2 – Obras que revelam fé
Depois de ter revelado que os agentes da Cáritas são gente de ação, o garimpo
mostrou que essas pessoas agem movidas pela fé. Como já dizia o apóstolo Tiago, a
Cáritas também mostra sua fé por meio das ações. As pessoas que trabalham na
Cáritas são profissionais, e são desafiadas a agir profissionalmente, mas isso não
basta. Elas assumem o espírito de Cáritas, acreditam no que fazem.
As origens culturais e as experiências religiosas das pessoas que atuam na
Cáritas são diferentes. Mesmo sendo um organismo da Igreja Católica, na seleção dos
que trabalham na Cáritas não entra a comprovação de que a pessoa seja católica nem
que frequente práticas religiosas. Como já referimos, o essencial é sua identificação
com o espírito da Cáritas, isto é, com a compreensão que a Cártias tem dos excluídos e
com a sua metodologia de ação. Para a Cáritas, os excluídos não são objetos de uma
ação social, e sim sujeitos portadores de direitos, capazes de assumir o protagonismo
das iniciativas que lhes possibilitarão as oportunidades até agora negadas. E sua
metodologia assenta-se na gestação de um processo que torne possível esse
protagonismo.
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A primeira e mais radical dimensão de fé, descoberta com alegria nas ações
dos agentes da Cáritas, foi a fé na pessoa humana. Acredita-se na sua dignidade e na
sua capacidade de superação, mesmo nas condições mais extremas. Vai-se ao
encontro, procurando comunicar-se com as pessoas, buscando, desde o início, uma
relação que valorize sua criatividade, que as reconheça portadoras de direitos
negados, credoras da dívida social. Por isso, a atitude de raiz é a compaixão: sentir o
que a outra pessoa sente, sofrer com ela, mas também agarrar-se, a ela, ao desejo de
viver. E isso é válido pelo valor que a vida de cada pessoa tem.
O garimpo nos possibilitou descobrir que a grande maioria vive essa relação
com as pessoas na dimensão cristã de ser o seu próximo. Não pessoas vizinhas, que
vivem por perto, mas pessoas assumidas como o próximo, de quem a gente decide
aproximar-se, assumir uma relação de compaixão e misericórdia. O exemplo de
referência, o inspirador, é Jesus Cristo. O espírito dos agentes da Cáritas é muito
marcado pela prática de Jesus, não tanto pela sua dimensão de Cristo, do seu poder
depois da ressurreição, por estar assentado junto do Pai, vitorioso sobre a própria
morte, como o fazem principalmente os pentecostais e carismáticos de diferentes
tradições. Toma-se como referência Jesus Cristo histórico, seu modo de ser e de agir
junto ao seu povo, na Palestina. Descobre-se, especialmente, seu modo de agir com
os mais empobrecidos, os marginalizados, os excluídos, os discriminados, e de como
essa prática é dimensão essencial e indispensável ao seu Evangelho. Para isso, entre as
muitas referências lembradas durante o garimpo, vale destacar a Parábola do
Samaritano, a relação com os doentes, os denominados endemoninhados, os
leprosos, e a relação com a mulher, de modo especial com a estrangeira e a pecadora.
Ele, de fato, testemunhou ter coração de pobre, ser misericordioso: ia ao encontro,
despertava a humanidade espezinhada, dispunha-se a recriar as condições para que
as pessoas reassumissem sua existência com liberdade. Ele acreditava nas pessoas e
despertava a sua fé; a partir dali, desafiava-as a assumir sua missão de seres humanos
servidores da vida.
Nossa fé tem como alimento e inspiração também outras fontes religiosas de
origem indígena, afro-brasileira, oriental. Somos, de fato, macroecumênicos, no
acolhimento dos valores e crenças trazidos por colegas nas equipes e na abertura para
reconhecer as diferentes inspirações que levam as pessoas a se dedicarem em favor
dos mais empobrecidos. Diferentes formas de relação com a divindade, com o
universo e com as pessoas nos enriquecem, dando à nossa vida e à nossa ação uma
profundidade maior. Seguimos, assim, o exemplo de Jesus: admirado, repetia que
encontrava mais fé e mais amor nos que tinham religião diferente do que nos
membros do que devia ser e se considerava povo de Deus.
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A fé de nossos antepassados se faz presente na cultura e nas expressões
religiosas, muitas delas carregadas de sincretismos. Elas se fazem presentes em nossa
vida tanto em nosso modo de ser, de acreditar, de orar e de agir, como por meio das
práticas dos grupos humanos com quem trabalhamos. É bom descobrirmos que,
muitas vezes, pessoas inspiradas em religiões afro-brasileiras e indígenas são
portadoras de valores a que nós, inspirados em Jesus, pouco damos atenção. Um
destaque especial deve ser dado à profundidade das relações com a natureza por
parte dessas religiões, assumida sem separações dicotômicas, respeitada, amada e
celebrada como uma realidade de que fazemos parte e é permeada pelo Espírito de
Deus. Vale lembrar, também, como a prática comunitária é essencial na vida dos
povos indígenas, testemunhando um respeito e um amor afetivo pouco comum.
Recebemos deles também o sentido de festa, na relação com os acontecimentos da
vida e na relação com Deus.
Esta fé precisa ser alimentada, cultivada. Descobrimos que uma das formas
desse cuidado mais presente em nossa prática é a leitura da Palavra de Deus.
Aprendemos com a metodologia do CEBI a fazer uma leitura ligada com a vida, a atual
e a do povo na época em que foi escrita, iluminando a prática que nos cabe realizar. O
que fazemos não é apenas um exercício intelectual, e sim uma leitura orante. Nós
rezamos a Palavra: rezamos a vida, iluminada pela Palavra; buscamos inspiração para
agir de acordo com a vontade de Deus.
Outra maneira de alimentar a fé é a participação nas celebrações litúrgicas
junto às comunidades. Fazemos isso, e muitas vezes crescemos em nossa decisão de
seguir a Jesus. Mas nem sempre acontece isso, já que muitas celebrações são feitas de
maneira muito ritualista, com fórmulas repetitivas, sem relação com a vida. Isso nos
leva a viver alguns conflitos, pois desejamos profundamente a relação com a
comunidade mas não nos sentimos bem nas celebrações. Percebemos nelas, ainda,
muita presença de machismo, de modo especial pela exclusividade do presbiterato
para homens celibatários, e pouca vontade de aceitar a participação livre e
responsável das pessoas. Há um centralismo muito grande, e isso entra em
contradição com o que acreditamos, seja em relação ao direito à cidadania, a partir
dos direitos de todas as pessoas, seja em relação ao cristianismo praticado e
anunciado por Jesus, pois ele sempre promoveu relações fraternas, de igualdade
entre irmãos.
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O garimpo revelou essas tensões e conflitos e indicou, como veremos, ser
esse um dos pontos que precisaremos aprofundar. De toda maneira, uma coisa é
certa: a espiritualidade e a mística da Cáritas são uma vivência de fé. E isso se revela de
modo especial nas situações mais difíceis, nos momentos em que tudo pareceria
justificar a desesperança: é aí que o testemunho das motivações profundas, do
espírito que anima o coração, da paixão pela vida e pelos direitos das pessoas, da
confiança na Palavra do Senhor, se faz muito forte. De fato, vivemos imersos em
milagres, em ações extraordinárias que acontecem todos os dias, pela bondade de
Deus, na vida das pessoas abandonadas pela nossa sociedade e pelos governantes, e
eles, mais do que tantas outras palavras, Mantêm viva a nossa fé. De onde poderia vir
a desesperança, vem a esperança ativa. É ali que experimentamos o sentido da vitória
de Jesus sobre a morte: não foi uma vitória pessoal, fonte de um novo poder que pode
substituir a iniciativa humana; foi a confirmação de que tudo o que Jesus havia feito
em sua vida, inclusive o que o levou à condenação por parte dos que não aceitaram
sua prática e sua proposta, foi aceito por Deus como caminho para realizar a sua
vontade. Vence-se a morte não apenas depois da morte física, mas em toda ação que
abre caminhos para que as pessoas superem as dominações, as discriminações, as
opressões, as prisões, as cegueiras, as mutilações. Esta é a Boa Nova que deve ser
anunciada aos empobrecidos, e ela é fonte de esperança, de ressurreição.
1.3 – Solidariedade libertadora
O garimpo deixou claro que parte importante de nossa espiritualidade é a
vivência da caridade libertadora. Somos Cáritas, isto é, caridade. Mas não queremos
nem aceitamos que ela seja reduzida ao que foi sendo entendido como caridade: a
prática de dar alguma coisa ou algum dinheiro a alguém sem interessar-se por ele,
talvez desejando ver-se livre e distante dele. Esse tipo de prática transforma a pessoa
que recebe em objeto de dó ou de comiseração de um outro estranho, e faz desse
estranho alguém que se considera separado do que se apresentou com alguma
necessidade, provavelmente alguém que se considera melhor do que o outro. As duas
pessoas se despersonalizam nessa relação mal realizada. De toda forma, essa
caridade não liberta; pelo contrário, mantém e aprofunda os processos que geraram a
existência de pessoas que sobrevivem em precárias condições e que não se sentem
com poder para transformá-las.
Nem sempre a prática da Cáritas está livre desse tipo de caridade; cabe-nos,
então, trabalhar para que toda ela ande em outra direção. Qual? Nossa descoberta
nos indicou que buscamos outra maneira de compreender o que seja a verdadeira
caridade e o que seja a libertação.
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Caridade, no sentido teológico, isto é, na busca de uma relação
verdadeira com Deus, é o amor humano vivido do jeito de Deus. Seria como
dizer que Deus entra na pessoa e a faz capaz de amar como ele ama. Caridade é
o amor de Deus realizado pelo amor humano. Jesus é o exemplo humano
desse amor divino. Por isso ele pôde dizer: ninguém tem maior amor do que
aquele que dá a sua vida pela pessoa que ama e amem-se uns aos outros como
eu amei a vocês.
Apesar das aparências em contrário, o amor de Deus é meio sem limite,
uma paixão permanente. Tanto amou, que enviou seu próprio Filho, e este
tanto amou, que entregou sua vida por nós. E o amor inspirado por este amor
parte da descoberta e da alegre vivência de que foi Ele, Deus, quem tomou a
iniciativa: Ele nos amou primeiro. Por isso, amemo-nos uns aos outros como
Ele nos amou. É isso mesmo: só se ama a Deus amando as outras pessoas com
o amor Dele. E quem ama quer a vida para o outro e a outra, e vida em
plenitude.
O amor de tipo caridade parece, então, algo muito simples e, ao
mesmo tempo, uma prática que nunca será perfeita. Basta, por um lado,
deixar-se mover pelo amor de Deus, que é sem limites; por outro, quem
conseguirá amar como Deus? Trata-se realmente de um caminho sem fim, em
que se pode crescer sempre sem receio de não haver algo mais a aprender e a
realizar.
Nossa espiritualidade, contudo, é prática da caridade, mas de uma
caridade libertadora. Em que sentido entra a palavra libertação?
Aqui entra em cena aquela metodologia de leitura da Palavra de Deus
que aprendemos do CEBI: precisamos descobrir o sentido de libertação
presente no amor concreto, histórico, de Jesus e, ao mesmo tempo,
precisamos iluminar com sua luz os conteúdos acrescentados em nosso tempo
e em nossa realidade brasileira. Para exemplificar: precisamos assumir como
parte da libertação as práticas concretas de Jesus, com seu significado
revelado no Evangelho, e as práticas de cidadania ativa, possíveis hoje e que
não fizeram parte da experiência do povo no tempo de Jesus.
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O que desejamos é viver um amor que liberte. Tomando as expressões
do evangelista Lucas, que liberte das prisões, das opressões, da cegueira...
para que todos possam chegar ao ano da graça do Senhor. É preciso realizar
passos bem práticos, retirando ou superando o que impede a prática da
liberdade de cada pessoa ou de povos inteiros: qualquer tipo de
aprisionamento, de opressão, de cegueira. Em outras palavras, o ponto de
partida e o primeiro objetivo é a construção de condições para a prática da
liberdade das pessoas. Pessoas sem liberdade estão sem condições de
participar da construção do projeto maior e coletivo: o ano da graça do Senhor,
o tempo em que todas as pessoas e todos os povos viverão da maneira que
agrada a Deus, e o farão movidos por Ele, pela força de sua graça. O amor ao
próximo, a todas as pessoas assumidas como o próximo, não se contenta em
atender a uma necessidade imediata, mesmo sendo ela muito importante e o
primeiro gesto a ser realizado; o que ele busca é recriar, junto com as pessoas
amadas, as condições necessárias para que elas, livremente, se juntem aos que
lutam por um mundo diferente, um mundo mais humano, em que Deus se
sinta bem e seja fonte de avanços sem fim na convivência entre os seres
humanos e com a natureza.
Por outro lado, temos hoje possibilidades novas de prática desse amor
libertador. Podemos, por exemplo, conquistar políticas públicas que garantam
a toda uma parte da população a recuperação da liberdade até agora
impedida. É o caso, apenas para citar um exemplo, da conquista da Cisterna
Caseira como meio para realizar o direito à água saudável no Semi-Árido. Não
se trata de ir fazendo, amorosamente, uma cisterna em cada casa, esperando
chegar a mais de um milhão de famílias; trata-se de provar que é possível fazer
isso e de organizar o povo para exigir que os governantes assumam a tarefa de
estender isso a todas as famílias. Com isso, várias libertações vão acontecendo,
engrossando o processo de libertação: as pessoas do Semi-Árido libertam-se
do uso de água contaminada, do sacrifício de ir buscá-la longe de casa, e,
principalmente, da dependência dos que controlam a água e os carros-pipa
para carregá-la; as mesmas pessoas libertam-se da falsa ideia de que a falta de
água seria castigo de Deus e adquirem a liberdade de exigir, como cidadãos, o
direito à água, bem como tantos outros direitos ainda não realizados; mais
livres, essas pessoas começam a poder eleger pessoas diferentes para cuidar
do bem comum...
Em outras palavras, os processos de libertação, hoje, são, por um lado,
fruto da cidadania ativa e, por outro, fonte de democratização. Nossa prática
de caridade libertadora tem como missão iluminar e reforçar essas práticas
políticas democratizadoras. A realização do ano da graça do Senhor acontecerá
A caridade libertadora se faz presente em todas as formas de
solidariedade, mesmo nas de socorro imediato, desde que realizadas como
reconhecimento de um direito das pessoas e como um convite para uma
prática maior de cidadania. E vai até as ações que têm como objetivo a
transformação profunda das estruturas econômicas, políticas, sociais,
culturais de uma sociedade. Ela assume que essa transformação profunda, em
sociedades capitalistas como a nossa, só se tornará possível se caminharmos
na direção da socialização dos espaços, das oportunidades, da riqueza, o que
significa que deverá passar por processos revolucionários. A caridade
libertadora só tem compromissos com a humanidade e com Deus, e alimenta a
liberdade de doar a vida, como amor humano que revela o amor a Deus e o
amor de Deus, em favor da libertação do próximo, seja cada pessoa, seja um
povo, seja a humanidade. Libertação que é um processo e que alcança e mexe
com todas as dimensões da existência.
Por fim, vale destacar que uma das formas de viver a caridade
libertadora é o trabalho em favor da mobilização social, que pode expressar-se
em diferentes esferas, desde a local até a mundial. Inclui, portanto, o apoio à
organização popular, voltada para a prática política da cidadania na localidade,
na região e no país, o apoio e participação em espaços como a Campanha
Continental contra a Alca, o Fórum Social Mundial. E nos coloca um desafio, a
ser retomado mais adiante: como fazer que a Cáritas atue como uma Rede
Internacional de forma efetiva, dando maior contribuição aos processos de
mobilização mundial com o testemunho de uma caridade libertadora?
1.4 – Síntese e pontos de aprofundamento
Como já foi referido, a luz da Assembleia de Siquém (Jz 24) e a da experiência
dos discípulos de Emaús (Lc 24) nos iluminou e inspirou em nossa celebração e
na sistematização da riqueza vivida, sinal forte da presença do Amor em nós,
presença que nos faz capazes do amor e da solidariedade com a qualidade de
caridade. Retomemos, então, a bela sistematização feita pelo Celso, o
beneditino que, junto com seu colega Marcos, assessorou a Assembleia de
2001:
Perfil da Espiritualidade do/a Agente Cáritas
“O mundo e tudo o que existe se sustentam sobre três colunas:
pessoas que se consagram a meditar a Palavra de Deus,
pessoas que se consagram a viver a oração e
pessoas que se consagram a praticar a solidariedade.”
(Simeão, o Justo. Sábio do III séc. antes de Cristo)
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Fontes
Como a água, e a própria vida, a espiritualidade tem suas fontes, que
precisamos reconhecer e cuidar com todo carinho.
1.Vida sob a condução do Espirito doador de Vida em plenitude (Jo 3,1-15; 4,21-26;
20,20-22; Ez 37; Rm 8)
2.Centralidade do Reino de Deus – iminência da irrupção do Novo Céu e da Nova Terra
3.Fidelidade absurda/absoluta de Deus
4.Vida comunitária
5.Sagrada Escritura – que permeia tudo, fecundando e renovando
Desdobramentos
Como a árvore, que se conhece pelos frutos, assim a espiritualidade se encarna
em nosso modo de ser e de agir. Vale a pena destacar alguns desses sinais do espírito
que nos anima:
1.Solidariedade: Caridade Libertadora/emancipadora. Não abstrata, mas encarnada.
Compassiva (com-paixão).
2.Discipulado: no seguimento de Jesus; espiritualidade laical, batismal (obedecendo a
um mandato do Senhor, e não de qualquer instituição), de serviço, testemunhal e
martirial.
3.Profecia: práticas e palavras que vão às raízes (= radical); espiritualidade do conflito
(dentro e fora da instituição), vivida nas fronteiras; espiritualidade política, que
anuncia um Projeto, uma Aliança, e o faz com inquietude.
4.Método: inserida numa tradição orante de um povo crente, num ritmo cotidiano,
marcado pela romaria/peregrinação, oração/celebração/leitura da Palavra, animado
pelo exemplo e olhar de Maria, Mãe dos Pobres.
5.Alteridade: tem compromisso com a diversidade, com a acolhida do outro, da outra.
Ecumênica e macro-ecumênica. Ecológica: zelo pela terra, pela água, pelo ar e pelo
meio ambiente de todas as formas de vida. Aberta às culturas (aprendendo e
assimilando) e povos excluídos – indígenas, negros, nômades.
6.Esperança: marcada pela alegria e pela criatividade. Da dança, da festa de
casamento. Comensalidade. Ressurreição. Saber celebrar e agradecer. Permeada de
ritos e do prazer de produzir para repartir com abundância.
7.Afetiva: de relação interpessoal, de respeito à individualidade e de acolhimento do
outro e da outra.
8.Ética: coerente e autêntica no que ensina e vive.
9.Dos pequenos: da simplicidade, da valorização do simples, do protagonismo e
autogestão dos pobres; soma e não divide; economia popular solidária.
10.Construtora da paz: não violenta; de resistência; pacifista; de reconciliação e
desobediência civil.
Questões de aprofundamento
A partir do processo vivido durante o ano de 2001, os participantes da 13ª
Assembléia Nacional definiram os Temas e as Questões de aprofundamento,
acompanhados de algumas indicações de conteúdos que deveriam estar presentes
neles:
1.MISSÃO PROFÉTICA DA CÁRITAS
-como parte da missão profética da Igreja
-indignação, denúncia, anúncio
-relação da Missão com a Ação Política
-radicalidade no enfrentamento da violação dos direitos humanos como
questão estrutural
-radicalidade no enfrentamento das causas das situações
-desobediência civil como espiritualidade
-o desafio da leitura dos sinais dos tempos
-presença solidária e transformadora
2. A CÁRITAS E OS DIFERENTES MODOS DE SER IGREJA
-que modo de ser igreja está presente na ação da Cáritas
-que Igreja queremos construir, tendo como referência Jesus Cristo
-trabalhar as potencialidades presentes na Igreja, na perspectiva da conversão
-ligar com relações de gênero
-aprofundar a questão da identidade da Cáritas
-como relacionar-se com os que propõem um cristianismo descomprometido
-ligar com o cotidiano da vida dos agentes Cáritas
-retomada do Vaticano II, Medellin, Puebla...
-enfrentar as incoerências, as resistência e contradições presentes nas práticas
3.O CULTIVO DO ESPÍRITO EM MEIO ÀS CORRERIAS E AOS CONFLITOS
-falta de tempo para olhar, ouvir e reconhecer as pessoas como irmãos(ãs)
-falhas nas relações interpessoais nas equipes
-trabalhar tempos de oração e não só oração no trabalho
-trabalhar a dimensão de comunhão nas relações individuais e coletivas, de gênero, as
diferenças...
-relação com o meio ambiente
4.MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE DE LEIGAS E LEIGOS
-quais as características
-quais os conteúdos
-quais as formas
-ligar com Caridade Libertadora
-relações pessoais, coletivas, com os excluídos e excluídas, sendo parte do Universo...
-ligar-se com as formas populares de oração, mais ligadas ao cotidiano
A segunda parte desta sistematização apresentará os pontos fortes das
reflexões realizadas durante os anos de 2002 e início de 2003.
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II – NOVAS LUZES PARA CAMINHAR
A caminhada aconteceu, agora, com dinâmicas e caminhos diferentes. Como
havia sido proposto, as questões de aprofundamento foram trabalhadas por
diferentes agrupamentos de Regionais. Isso significa que o processo de construção
coletiva continuou, já que todos tiveram, em seguida, oportunidade de apreciar os
trabalhos dos outros, além de avaliar se a sistematização deu conta dos pontos
centrais das reflexões. As reflexões que seguem são, portanto, frutos desse trabalho
coletivo.
2.1 – Ser do time dos profetas
Da reflexão feita em três Regionais, com assessoria de D. José Maria Pires e
Pe. Ferraro, o que podemos destacar é o que segue. Para iniciar, uma pergunta: por
que a Cáritas se pergunta sobre a dimensão profética de sua missão? A resposta exige
que retomemos a missão.
Promover e animar o serviço da solidariedade ecumênica libertadora,
participar da defesa da vida, da organização popular e da construção de um projeto de
sociedade a partir dos excluídos e excluídas, contribuindo para a conquista da
cidadania plena para todas as pessoas, a caminho do Reino de Deus.
De fato, a Cáritas não se propõe nenhum tipo de solidariedade
assistencialista, compensatória, apaziguadora dos conflitos e contradições sociais.
Mesmo não falando em revolução, ela relaciona seus trabalhos com a construção de
um projeto de sociedade a partir dos excluídos e excluídas, a caminho do Reino de
Deus. Muito provavelmente, aqui está sua profecia: anunciar, com ações e palavras, e
especialmente com a conquista da cidadania plena para todas as pessoas, que o
projeto de sociedade deve contar com a participação dos excluídos, e que ele deve
conter qualidades que o liguem ao Reino de Deus. Trata-se de uma missão que mexe
com as estruturas da sociedade e com a cultura de dominação.
A libertação que a Cáritas busca, nos lembra Pe. Ferraro, retomando Enrique
Dussel, deve ter, para ser verdadeira, as seguintes dimensões: econômica, política,
cultural, pedagógica, erótico-sexual, litúrgica e ecológica, e deve provocar mudanças
nas relações de classe, de gênero, de etnia e ecológicas. Provavelmente, é isso que a
Cáritas busca quando se propõe ir na direção de uma solidariedade ecumênica
libertadora: realizar uma transformação do mundo a partir da compaixão
testemunhada por Jesus – essa dor de entranhas, de parto, junto com a pessoa
assumida como o próximo.
Ele teve essa atitude de compaixão com o Zé Povinho, que os dominantes
chamavam de maldito, que não conhece a Lei. Jesus foi reconhecido como da família
dos profetas exatamente por essa posição, pois o profeta se posiciona contra o Estado
dominador, contra o Rei, e se coloca junto ao povo que busca suas origens, em que há
a Promessa – de Terra, Bênção e Descendência – e que busca a Terra Prometida. Os
profetas ligam-se aos mais excluídos, que nos tempos antigos – e talvez hoje, ainda -,
são os camponeses.
A profecia retoma a fé exodal – ligada à experiência fundante do Êxodo, a
libertação da dominação do Faraó egípcio – com três dimensões:
1 ) romper com a opressão
-Isaías 65,17-25 – o profeta vê o fim a partir da História
-Apocalipse 21,1-7 – o profeta vê a História a partir do fim - apocalíptico
2) entrar num projeto alternativo
-igualitário (hoje, com igualdade nas diferenças – democracia)
-em confronto com o dominante
Valores neoliberais:
Rentabilidade
Competitividade
Lucratividade
Nossos valores:
Gratuidade
Solidariedade
Partilha
3) aceitar Iahweh como o Deus verdadeiro - o Deus do Reino, Libertador.
Estas características se exigem reciprocamente.
Nessa direção, a dimensão profética da Cáritas se realiza em seus trabalhos
para difundir os valores do Reino, ajudando a mudar o modo de julgar, o modo de
pensar, a visão, possibilitando a metanoia, a conversão profunda.
Só é possível assumir a profecia se temos uma visão de ser humano e de
história que deixa o futuro sempre em aberto. Tudo está em constante movimento,
em transformação. Constatadas as contradições de classe, em vez de propor apenas
correções, a Bíblia nos provoca a fazer opção pelos pobres, optar pela perspectiva de
comunidade com eles, o que significa assumir os conflitos decorrentes. A opção pelos
pobres é fundante: sem ela, perdemos os fundamentos da relação com Deus. A
promessa da terra em que corre leite e mel é algo que se realiza permanentemente, e
não apenas num determinado momento; por exemplo, para quem não tem moradia,
conquistar casa é motivo de intensa alegria... Os avanços mais significativos são os
que se referem ao ser gente, desde que não se perca de vista a necessidade de
enfrentar as contradições de classe.
A dinâmica da libertação se dá, ao mesmo tempo, no social e no pessoal. Há
muitas opressões a serem superadas, a começar da casa, nas relações entre pais e
filhos, entre mulheres e homens... Tudo isso faz parte do processo de libertação.
A profecia é o lado político da ação. Não basta ter intenção ou vontade de
modificar as coisas; é preciso estratégia e táticas. A utopia é o horizonte das ações:
nunca é alcançada, nunca se realiza plenamente. Mas as conquistas, de modo especial
as coletivas, são avanços reais, mesmo se ainda persistem ou nascem novas
contradições – que deverão ser enfrentadas em outras práticas.
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Como, nesses processos, acontecem muitas derrotas, e até fracassos, temos
necessidade de mística. Ela é a nossa ligação com a utopia; é a força que nos faz
retomar o projeto e seus fundamentos, que dão base à nossa esperança. De fato, é
duro e até perigoso assumir a história com os excluídos.
Temos em Jesus o melhor exemplo de como sermos profetas. Ele é um
homem que se revela a Deus por meio de sua prática humana. Para isso, ele aprendeu
das tradições e iniciativas de seu povo. Ele é gente como nós e teve que fazer opções,
aprender. É o homem da liberdade, que acolhe a todos e todas e vai até o fim em sua
opção. Por que foi crucificado? Porque tinha paixão fiel pelos excluídos e excluídas em
vista da libertação que leva ao Reino.
Os que têm consciência crítica, e de forma coletiva, são um incômodo em
qualquer lugar. Apontam caminhos alternativos. É assim que devem ser as pastorais
sociais: delas devem nascer novas organizações populares capazes de gerar e propor
alternativas. É assim que deve ser a Cáritas.
Podemos descobrir a dimensão profética na oração de Maria, o Magnificat:
ela se reconhece, agradecida, no meio de um momento de profunda transformação
histórica, que é realização da utopia dos excluídos e ação do Deus da história; retoma
os fundamentos históricos de sua esperança e os anuncia como memória da
Promessa; anuncia transformações estruturais, declarando que agrada a Deus que
alguns caiam dos tronos, da prepotência, do orgulho, da dominação, e mais ainda o
alegra a afirmação dos humilhados, dos excluídos. É assim que Deus quer que a
história avance; é para isso que Jesus vai nascer.
Mas o caminho seguido por Jesus confunde a todos que esperavam a
presença de um Messias que substituísse os seres humanos, fazendo justiça com seus
poderes, tornando-se um poderoso senhor no lugar dos dominadores tradicionais.
Ele é como os profetas: provoca a consciência do povo, realiza sinais de como se pode
agir e convoca o próprio povo a assumir sua história. O que ele pratica e anuncia como
caminho é a radicalidade do amor assumido como realização da liberdade. É uma
proposta tão perigosa que lhe valeu o ódio de todos os que confiavam em seu poder, e
não queriam perdê-lo, a começar dos que controlavam as instituições religiosas e se
mantinham por meio do controle e da corrupção da Lei.
A missão profética consiste, segundo Jesus, em anunciar que Deus ama a
humanidade e a quer como protagonista da sua história; é um Deus que, por amor,
respeita a liberdade das filhas e filhos, mesmo quando a escolha de caminhos e
projetos afasta a humanidade de sua própria realização.
Ser profeta, nesse caso, significa denunciar o equívoco ou o erro, indicar
claramente as consequências do egoísmo, chamando atenção para os frutos amargos
que ele gerará para tantas pessoas, mas sem condenar de imediato os que assim
agem; afinal, sempre podem acontecer arrependimentos e conversões, e o Pai está
sempre esperançoso pela volta dos filhos pródigos.
Ser profeta significa, acima de tudo, anunciar, com palavras e com a vida, que
Deus conta com os que são considerados últimos, fracos, inúteis, pecadores, como a
força maior, os primeiros entre os protagonistas do mundo novo, do Reino que vai
acontecendo no meio dos povos em cada tempo e lugar. São os primeiros no amor e
na iniciativa de Deus porque é deles que vem a possibilidade de um mundo para todas
as pessoas: seu coração, de tão desprendido, até mesmo pela discriminação e pela
violência opressora, é capaz de acolher a todos e todas, desde que seja libertado da
presença de seus dominadores em sua própria mente. Assumir a missão profética
cristã significa assumir os empobrecidos como os primeiros evangelizadores, pois
para eles Deus revelou os segredos do Reino.
No mundo de hoje, a profecia cristã não significa repetir palavras ou gestos de
Jesus como lembrança do passado. A profecia acontece na atualização da prática e da
mensagem de Jesus: anunciar e revelar, por ações e por palavras, o amor de Deus
presente na história do nosso povo, anunciando aos empobrecidos de hoje, e
segundo o jeito de cada povo, as Boas Notícias que estão acontecendo na atualidade,
revelando o que elas sinalizam como caminho para se chegar ao Reino, já presente e
muito incompleto, em construção permanente.
Poderíamos concluir esta parte assumindo o Magnificat, de Maria, mãe de
Jesus, como um bom exemplo de Oração Profética. É importante lembrar a situação
de risco em que se encontrava, na relação com José, na possível condenação popular
por uma gravidez inesperada. Mas sua comunhão com a esperança do povo, que
desejava um salvador como o semi-árido anseia por chuvas, e sua confiança na
Palavra do Deus fiel e libertador foram muito maiores, e ela decidiu correr todos os
riscos. Nesse momento, ela ora ao Senhor, ligando a situação presente com a
memória do passado, em que reencontra a Promessa e a Aliança, e celebra
antecipadamente o que virá de novo, de libertação, de justiça, pela força da nova
presença do Libertador. As mudanças serão radicais: os poderosos são derrubados
dos tronos, os humildes serão exaltados; os ricos são mandados embora de mãos
vazias, enquanto os famintos serão cumulados de bens. É a oração da mulher pobre,
escolhida para ser mãe do Deus que decidiu fazer-se um de nós na situação dos
empobrecidos, plenamente confiada na força do Deus Libertador e, ao mesmo
tempo, plenamente participante, capaz de comprometer, livremente, toda sua
existência em favor da libertação do seu povo. Que o Senhor dê a todos os agentes da
Cáritas esta prática e esta espiritualidade profética.
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2.2 – Ser do Povo de Deus
Escolher a vida e não a morte
Os Regionais que aprofundaram a temática da Cáritas e os diferentes modos
de ser igreja, assessorados pelo Pe. Ermano Allegri, fizeram bem em começar por uma
meditação sobre a contraposição entre o Projeto de Javé e o Projeto dos Ídolos.
Iluminados pela memória dessa luta constante, presente na Bíblia, mas olhando a
realidade em que vivemos, esse é um bom ponto de partida para refletir sobre o
sentido da Igreja no mundo de hoje, sobre a relação da Cáritas com ela, centrando
tudo na dimensão de espiritualidade.
Vistos como projeto de vida – o de Javé – e de morte – o dos ídolos -,
percebeu-se que os sinais de morte e de vida não aparecem separados, de forma
pura; a realidade atual é complexa e nela os dois projetos aparecem misturados. Isso
exige, de imediato, um cuidado crítico, uma leitura atenta, um esforço renovado de
discernimento. De toda forma, pode-se dizer que o Projeto de Javé, da vida, faz-se
presente em projetos que saciam as necessidades, que têm, entre outras, as seguintes
características: partilha, repartição, convivência com o ecossistema, gratuidade,
amor, respeito à identidade cultural dos povos, solidariedade, valorização do ser
humano; são projetos em que se promovem reforma agrária, comercialização com
outros valores que não os de mercado; vive-se, por isso, uma espiritualidade que
provoca auto-avaliação, e nos quais o poder deve ser colocado a serviço de todos.
O Projeto dos Ídolos, de morte, faz-se presente em projetos que produzem
exclusão, e tem, entre outras, essas características: egoísmo, destruição, exploração
da vida, imposição e aniquilamento dos povos, solidão, transformação do ser humano
em mercadoria, sacralização do mercado, latifúndio; religião de conformismo, de fuga
e compensação; o poder é de dominação, que considera normal a morte dos
excluídos.
O Projeto de Deus está ligado à construção de um Reino de justiça, liberdade,
cidadania, compaixão, ética, enfrentamento de conflitos. É algo a ser descoberto
permanentemente e está em construção, sinalizado em ações e no testemunho de
pessoas, como D. Hélder, por exemplo.
O Projeto de Deus é o que coloca a vida no centro, e por isso: é a escolha dos
empobrecidos, dos restos; é a redescoberta de um Deus que anda com seu povo; é
uma ação que provoca justiça e respeita a liberdade; provoca o surgimento de
profetas e profetizas – é memória, denúncia e anúncio.
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Já o Projeto dos Ídolos é produto de deuses criados para justificar as várias
formas de dominação; é fonte de conflitos de poder a partir do confronto de visões da
acumulação e da propriedade; ele submete as pessoas ao terrorismo, e também com
rituais religiosos. Frente às contradições da realidade por causa dos novos ídolos, é
fundamental praticar uma pedagogia que ajude a alertar-se, a abrir os olhos em
reação às propostas idolátricas, que são apresentadas de forma disfarçada.
Outra maneira de encarar essa guerra de deuses é ter presente que o conflito
está diretamente associado à transformação e que a espiritualidade se manifesta no
meio da vida do povo, pois ela é manifestação da vida, celebração da vida; é, por isso,
expressão do Reino de Deus e construção do Projeto de Javé no dia-a-dia. Vivemos
num tempo positivo, pois podemos desconstruir o projeto dos ídolos, assumindo
novos compromissos em relação aos que irão atuar em instituições governamentais,
vivendo no cotidiano a aventura de ir construindo o Reino de Deus.
A espiritualidade do Reino, ao contrário da individualista e da que se volta só
para dentro da igreja, está na vida do povo sempre que ele deseja e procura mudar a
realidade. Vivemos, hoje, uma ruptura política em nosso país, e ela é fruto de uma
construção que dura pelo menos 30 anos. Por outro lado, devemos ter o cuidado de
não pensar que os outros estão sempre enganados, que são de imediato ligados aos
ídolos. Ao redor de cada ídolo há uma teologia, como se percebe em relação ao
neoliberalismo, e ela precisa ser desmascarada. De fato, muitas vezes o opressor pode
invadir o oprimido, mudando sua visão, e isso exige uma espiritualidade de
purificação; temos em nós o pecado original: o uso do poder para dominar sobre os
outros e sobre a natureza. O poder, ao querer ser deus, quebra, desmorona, mesmo
quando praticado na igreja..
Ser membro do Povo de Deus
Existe uma série de expressões que tentam dar conta de diferentes modelos
de igreja: Povo de Deus, vindo do Concílio Vaticano II; igreja institucional; igreja dos
pobres; participativa; comunidade de fé; CEBs; sacramental; libertadora; romana;
conservadora; evangélica; piramidal... Cada uma delas tem seu sentido, mas o
importante, para nós, é dar-nos conta de que, para sermos de Pastorais Sociais,
algumas dessas expressões não servem de jeito nenhum.
Olhando a história brasileira, percebemos que a prática antecedeu a teoria.
Não é a teologia que cria: ela reconhece a ação do Espírito e ajuda a compreendê-la. E
a experiência indica que está nascendo algo original, uma nova realidade. Por que
essa originalidade? Na realidade marcada pela miséria e pela dominação ditatorial, a
Igreja assume uma posição nova, apoiando iniciativas de luta pela libertação.
Libertação significa a atenção a muitas dimensões da vida pessoal e social, sempre na
perspectiva da transformação política. As CEBs nascem no contexto social de
contestação da ordem.
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De fato a religião pode levar à libertação ou à submissão. Para nós, Igreja
encarna um projeto de vida e de sociedade. O Vaticano II teve como maior
originalidade uma nova visão de Igreja: a de ser Povo de Deus entre diferentes povos.
A opção foi a de abandonar a perspectiva piramidal, dominante há mais de mil anos. A
nova forma de ser igreja nasce da auto-análise e da análise de realidade do mundo,
tanto para perceber o que existe de boa notícia, quanto para perceber o que contradiz
o projeto de Deus com a humanidade e que precisa ser denunciado e superado. E ela
fez belos passos nessa direção: enfrentou a tempestade que havia no mundo. Mas,
aos poucos, ao ficar com medo dos ventos, em vez de fazer como o apóstolo Pedro e
invocar confiantemente o Senhor para andar sobre as águas, preferiu retomar a
tranquilidade do velho barco. Passou a olhar mais para si mesma, desconfiada e com
medo da participação livre dos seguidores de Jesus. E os setores mais conservadores
conseguiram substituir a perspectiva de Povo de Deus pela de comunhão, retirando o
que lhe estava dando novo elã no contato com os povos concretos do Planeta. O
grande risco é o de abandonar a realidade de ser um povo histórico, presente no
tempo e no espaço, carregado de qualidades e limites, mas sempre portador da
mensagem revolucionária de Jesus; um povo que aprende com os demais,
descobrindo neles o que Deus já foi fazendo em suas vidas e alegrando-se com isso, e
colaborando, com seu exemplo e sua mensagem, para que cada povo encontre o
melhor caminho para ir participando da construção do Reino, que é para toda a
humanidade.
Para que a Igreja possa ser sal e luz para o mundo, é preciso encarar os
desafios presentes na realidade do mundo. Sem isso, pode-se chegar à situação atual:
não ter uma palavra adequada, que faça sentido, que ajude o mundo a se transformar.
Alguns desafios, olhando a realidade da própria Igreja:
1) Exercício da autoridade. Já vem da maneira de sua escolha. Como já crescemos e
adquirimos condições de ter responsabilidade, não se pode aceitar a imposição de
bispos e padres que não servem ao crescimento da vida comunitária e para caminhar
como Povo de Deus. É urgente enfrentar isso, pois muita gente está decepcionada
com a Igreja por causa dessa situação. Achar que tudo que cada bispo ou padre diz é a
última palavra, não é aceitável nem evangélico.
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Por outro lado, por quanto tempo a autoridade eclesiástica se casou com a
autoridade política, quase sempre injusta – como, num caso extremo, com o ditador
Pinochet? O desafio é ser como Jesus, que lavou os pés dos discípulos e sugere: entre
vocês não pode haver relações como as existentes entre os poderosos, que dominam
uns sobre os outros; ao contrário, sejam todos irmãos e irmãs uns dos outros.
Imaginemos como seria diferente se, aos 75 anos, também o papa renunciasse, e se os
bispos renunciassem às pompas, externas e internas... Parece que não foi suficiente
um Concílio para mudar tudo. O processo continua, contudo, e com grande
diversidade de lutas...
2) Centralismo. Tudo é feito a partir do Vaticano, novamente numa perspectiva de
dominação. Isso significa a perda da capacidade de relacionar-se com e de valorizar as
culturas e, ao mesmo tempo, o impedimento de que as Igreja Particulares cresçam,
bem como cada um dos membros do Povo de Deus. Os próprios bispos não crescem:
só repetem, citam a autoridade superior. Leva todas as igrejas locais a serem iguais,
nos centros e nas periferias urbanas. Não consegue conviver com Conferências
Episcopais, pois até mesmo a prática do colegiado dos apóstolos é temida e evitada.
3) Ecumenismo. Fala-se, hoje, de macroecumenismo: o reconhecimento, o encontro
de tudo que é valor de humanidade. A reafirmação da igreja Católica como única
verdadeira, infalível, é uma atitude absurda. Nós precisamos dos valores dos outros,
pois o Espírito de Deus age nos povos e nas pessoas antes de nós. Quem gosta dessa
posição de exclusividade são os fundamentalismos!
4) Presbíteros. Pelo que se percebe, a formação deles retrocedeu cinquenta anos. Já é
mais do que tempo de rever a exclusividade do celibato como critério de vocação.
5) Mulher. É urgente superar a discriminação, reconhecendo seu pleno direito à
participação eclesial, inclusive no exercício do presbiterato.
6) Família. É urgente rever e reelaborar, e com participação dos casais, a moral sexual e
o sentido da procriação.
7) Vida Religiosa. Qual o seu sentido no mundo atual? Ser um reforço ou substituição
dos presbíteros nas paróquias? Está aí mais um grande desafio: buscar o sentido do
testemunho da vida religiosa consagrada.
8) Paróquias e dioceses. Não se pode continuar com esse critério de organização,
meramente geográfico, hoje, já que sua referência ao político não existe, ficou no
passado. A dinâmica das sociedades, o mundo das grandes metrópoles, as
necessidades do Povo de Deus exigem novas formas de organização.
29
2
Por outro lado, do mundo atual nos vêm outros tantos desafios:
1) A escolha dos pobres. É cada vez maior a separação entre ricos e pobres. Diante
disso, assumir a sorte dos pobres é assumir um Projeto de Libertação. Jesus fez isso: O
Espírito ... me enviou para libertar... Assumiu a posição, a teologia e a prática dos
profetas. A prova maior de nossa fidelidade a Jesus é a nossa relação com os pobres e
com as causas políticas deles. Como não definir-se diante da criação de uma quase
subumanidade? Nessa direção, nada de acrescentar preferencial, evangélica, não
exclusiva à opção pelos pobres.
O Projeto de Libertação é histórico – realiza-se na única e concreta história de cada
povo e da humanidade. Nessa direção, ou o Mutirão pela Superação da Miséria e da
Fome, proposto pela CNBB, entra no projeto político, ou não andará. Nada se faz
isolado, com ilusória auto-suficiência. Por outro lado, é indispensável a coerência
entre o modo de vida pessoal e o projeto anunciado.
2) Desmistificar o discurso teológico ligado ao discurso único neoliberal. É o discurso
que procura justificar o poder único mundial. É fundamental trabalhar na direção de
fazer uma Teologia da História: Deus andou ao lado dos escravos, no Egito; onde está
ele, hoje? Com quem age? O que está fortalecendo? Ao refletir nessa direção,
podemos adquirir a capacidade de julgar como Deus julga. E começar com o servo de
Javé, o considerado verme, chagado... pois ele é o que julga nossa prática.
Outra face do mesmo desafio é o de desenvolvermos uma Atitude Contemplativa:
sermos contemplativos nas estradas do mundo, como escreve Charles de Focauld.
3) Trabalhar as consciências. O trabalho da mídia, hoje, serve ao bem ou ao mal,
idolatra ou destrói pessoas, iniciativas... Diante do exemplo do rapaz que, ao treinar
pilotos de caças de guerra na Bolívia, disse que o que mata é a máquina e não o
piloto(!), o que devemos fazer para que apareçam os novos pecados? Um cristão pode
fazer isso: ser piloto de máquinas de guerra? Ou ser gerente de um banco
especulador?
Como trabalhar a consciência das pessoas? É preciso repensar a ética – e se a Igreja
não fizer isso, quem o fará? Ela não pode ser algo moralista, e sim resposta aos
desafios do mundo de hoje: ética na economia; ética na comunicação; ética na
política.
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2
4) Retomada do processo conciliar. Não para fazer outro Concílio, mas para ir gerando
uma resposta ao mundo globalizado. Trata-se de uma atitude profunda, de mudança
necessária para que a Igreja seja de fato testemunho de Jesus. É importante irmos
superando a prática de só utilizar a palavra igreja para referir-se à Igreja oficial,
eclesiástica, romana. A nós, que assumimos a Igreja como Povo de Deus, com a
dinâmica de CEBs, com participação fraterna, cabe a responsabilidade de irmos
fazendo o processo de mudança. E não a irresponsabilidade de ficar esperando!
Valores e espiritualidade
As reflexões que seguem foram fruto da contribuição de muitos
participantes, provocados pela pergunta: diante dos desafios no interior da Igreja e
dos que vêm do mundo, que valores e que tipo de espiritualidade precisamos assumir
como Cáritas?
Se examinamos nossa prática, pessoal e da Cáritas, percebe-se uma
mudança: já se escutam mais os desafios que vêm de fora, do mundo. É preciso firmar
nossa escolha dos pobres: superando o assistencialismo; cuidando da vida, para que
se refaça; tendo verdadeira compaixão, essa atitude de quem sofre junto e deseja sair
da situação; ligação inteira com as pessoas. Vivemos inquietos, buscando dar um
testemunho de fidelidade. O fundamental é assumirmos a perspectiva de construir
com os excluídos, respeitando a vida, promovendo a cultura da solidariedade, sendo
ecumênicos, isto é, abertos para a valorização de outras expressões de fé e de vida.
Os valores assumidos não podem afastar-nos da Missão da Cáritas. Mas
devemos perguntar-nos: como os problemas internos da igreja interferem na vivência
da nossa espiritualidade de Cáritas? Eles são, certamente, obstáculos e interferem na
escolha de nossos valores. Mas há também valores positivos nas instâncias eclesiais.
Vive-se um processo em que se promove a unidade na diversidade, e nele devemos
acreditar que as instâncias mais democráticas, como as comissões, conselhos, podem
ajudar para um avanço positivo.
De toda maneira, isso tudo levanta a questão: o que é poder, para nós? E
nossa resposta, e nosso testemunho, deveria andar na direção de ser: doação ao
projeto de libertação; serviço; carisma; compromisso, testemunho.
De forma resumida, podemos sugerir os seguintes valores: ética e moral com
referencial cristão; cultivo do pessoal, e não só das ações, dos projetos; respeito à
dignidade da pessoa; liberdade; democracia; respeito à individualidade, inclusive nas
opções religiosas; direito à vida; amor ao próximo; opção pelos pobres; cuidado com a
pessoa e com a natureza...
Tendo tudo isso presente, nossa espiritualidade deverá ser:
a) libertadora, sociotransformadora, contextualizada, atenta aos e inspirada nos
novos apelos que vêm da sociedade a partir dos excluídos;
b) integradora das diversas dimensões da vida, superando dicotomias;
c) alegre, vivencial, vibrante, que mantenha o vigor, o compromisso;
d) com atitude contemplativa e renovadora da prática;
e) ligada e integrada à nossa vida e à nossa prática;
f) que aprofunde a escuta ecumênica;
g) que seja vivência conjunta com os excluídos.
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Todas essas características levaram a refletir sobre a complexidade da ação da
Cáritas – e para perceber isso, basta ter presente a Missão. Por isso, o fundamental
está numa atitude de leitura e releitura constante da Missão e da prática: precisamos
combinar tempo de atividade com tempo de contemplação, tempo de graça. Por
outro lado, isso nos leva a ter uma atitude de maior abertura na relação com as
Pastorais Sociais, com o objetivo de uma vivência comum que contribua para a
animação da ação social da Igreja.
Reino e Igreja
Nossa relação primeira é com o Reino, e não com a Igreja. Mesmo quando se
celebra, em comunidade eclesial, é o avanço do Reino que se festeja.
As Pastorais Sociais e a Cáritas chocam a Igreja e a sociedade, da mesma
forma que aconteceu com Jesus e com seus discípulos: elas levantam e jogam para o
público a realidade e os desafios ligados à Terra, ao Trabalho, à Fome, à Exclusão...
Mas precisamos ver, e com alegria, as sementes que estão germinando. Em
Porto Alegre, no Fórum Social Mundial, gente de 132 países se deram conta de que
estavam condenando e combatendo o pensamento único neoliberal, e lá estavam
germinando frutos de muitas sementes, também as semeadas pela Igreja... Há
germinações em toda a América Latina. Mesmo marcada fortemente por traços
negativos, destruidores e de morte, está acontecendo um kairós do Espírito na
História.
Precisamos estar atentos aos acontecimentos e envolver-nos em frentes de
excluídos, pois isso é oportunidade de conversão. Por exemplo, escutar o apelo e
apoiar a articulação dos Catadores e Catadoras. Não escutá-los é não escutar a Deus.
Espiritualidade não é só o tempo que a gente se dá; é também o tempo que a gente dá
para a construção do Reino com os outros, com os excluídos.
2.3 – Espiritualidade do conflito
Luzes que vêm da Palavra
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Com a assessoria do Pe. Primo, a reflexão começou com uma experiência de
Pedro e João, apóstolos, na relação com o coxo, que era trazido por pessoas para perto
do Templo - Atos 3,1-10. Com que intenções o traziam? Não se sabe, mas parece que
não eram marcadas pela misericórdia. Pedro e João estão interessados pela pessoa:
ao receberem o tradicional pedido de esmola, eles olham para o coxo e pedem que ele
os olhe também. Tomaram uma atitude, evitando dar uma esmola como desobriga.
Ele olhou para eles, esperando receber alguma esmola especial. Aí Pedro fala: não
tenho nem ouro nem prata, o que eu tenho, eu te dou: em nome de Cristo nazareno,
anda! Com isso, Pedro nos diz que o mais importante não são os bens, as riquezas,
nem para ajudar nem para ser ajudado. Ele se firma na certeza/esperança de que
Jesus Cristo é uma força transformadora: dá dignidade ao necessitado. Os apóstolos,
contudo, não apenas pediram que o coxo se levantasse e andasse, mas tomaram sua
mão direita e o ergueram.
Que não tenhamos medo de anunciar Jesus, pois nisto aqui está o
fundamento da ação da Cáritas: a fé em Jesus, a satisfação do desejo de paz e
compromisso. O importante é que seja introduzida uma prática nova, diferente, como
fizeram os apóstolos: que o coxo se levante, ande com a gente para louvar a Deus.
Pedro e João personificaram a Igreja, em que Jesus continua agindo. Nós
somos Igreja e temos em Jesus a pedra angular. É importante sentir-se ligado a esse
ideal que Jesus quer que a Igreja seja, mesmo se vemos motivos para criticar até o
papa ou outros que falham...
O coxo personifica a sociedade, em que tantos são colocados em situação de
extrema necessidade pelas estruturas, pelo pecado social. O ouro e a prata, muito
concentrados, são fonte de novas exclusões.
Só no nome de Jesus se faz a libertação, se anda no caminho da construção do
Reino. Não basta louvar, gritar o seu nome. Ele veio para libertar, e nós também.
Se toda nossa Igreja decidisse só entrar nos templos quando os excluídos,
como o coxo, estivessem em condição de andar e louvar com ela, o que não
aconteceria em nossa realidade?
Com a luz da palavra do profeta Ageu (1,1-15) podemos dar-nos conta de que,
se nos esquecemos do protagonismo de Deus, podemos cair num ativismo que
produz poucos frutos e não satisfaz a ninguém. No exílio, todos tinham saudades da
sua terra e pediam ao Senhor que os libertasse; chegando de volta, cada um cuida do
seu e se esquecem de Deus. O profeta chama atenção e eles reconstroem o Templo.
Não pode acontecer conosco a mesma coisa? Não fica cada um achando que será
capaz de levar sozinho os empobrecidos para a nova realidade? Na verdade, só com
Jesus, que anda com a gente, poderemos convocar, provocar os pobres a
caminharem, assumindo seu caminho para a felicidade.
O mesmo Templo, então reconstruído como casa do Senhor e como fonte de
união do povo, tornou-se, depois, uma espelunca de ladrões, como aparece em Jo
13,22.
No encontro de Jesus com a samaritana, contudo, o debate sobre o templo é
ultrapassado: os adoradores verdadeiros adorarão a Deus em espírito e verdade, e em
qualquer lugar. Em quem identificar o próprio corpo com o de Cristo Jesus, aí estará o
lugar da adoração.
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Vale a pena entrar, com Lucas, no Evangelho do anúncio misericordioso do
amor de Deus para todos os povos, especialmente para os empobrecidos. Em Lc 4,
16s, encontramos a escolha da missão de Jesus: O Espírito me ungiu e enviou para
evangelizar os pobres... Hoje se cumpriu... Renovar esse anúncio é dizer aos pobres
que é neles que se realiza o mistério anunciado em Jesus.
A mensagem da prática
Precisamos ouvir o que o Senhor nos fala por meio da vida dos irmãos e da
nossa própria vida.
Um primeiro grito nos vem dos que estão envolvidos nos conflitos pela posse
da terra. Fazem parte do nosso dia-a-dia: negociações, manifestações, casas
construídas nos assentamentos, plantios de feijão... Sofremos e construímos com
eles. Assentados doaram produtos para os acampados. Pessoas que viviam nas
cidades voltaram à terra: de uma situação sem perspectivas, conquistaram a vida.
Como Cáritas, procuramos estar na história deles: sendo socorro, advogado,
o que precisarem e a gente pode fazer. Tem hora que dá revolta: quando se vê os
investigadores com carros com ar condicionado e os Sem-Terra, recém libertados,
voltando em carro de animais!
É no conflito que a gente vai se encontrando: é situação que nos toca muito.
Mas nos assentamentos, as alegrias deles são a nossa força para seguir caminhando.
Hoje eles estão com um rumo na vida, e isso nos dá força. Nossa luta tem sentido, e é
dela que vem alimento para a nossa espiritualidade. Na verdade, relemos nossa
prática a partir da luz que nos vem do episódio da Vinha de Nabot, em 1Reis, 21,1s:
Deus fica do lado do que é perseguido e causa desgraça ao que age com injustiça e
violência; ao matar Nabot para tomar sua vinha, Acab retomou o culto aos ídolos...
O que dá força e marca a prática em meio aos conflitos é o espirito de família
que reina entre nós: na convivência de todo dia, trocando notícias, tomando café
juntos, festejando aniversários... Isso dá leveza na caminhada.
Nosso cotidiano não é um paraíso, mas conseguimos superar as diferenças.
Isso ajuda a atuar melhor lá fora. Podemos ter ideias diferentes, mas alimentamos a
convivência. Também com as demais entidades, procuramos aprender a trabalhar
juntos, mesmo quando há visões diferentes. Procuramos evitar as reservas de
público, unindo-nos em torno de causas maiores: contra a ALCA, contra a entrega de
Alcântara, contra a corrupção, nos conflitos na luta pela terra...
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2
Procuramos construir o Reino aqui e agora. É o que experimentamos como
soma de forças no Congresso de Políticas Públicas, na preparação da Romaria de
Alcântara, ambos no Maranhão, em que eles são os protagonistas, e nós somos apoio.
O trabalho coletivo com diferentes exige esforço, mas é importante: visão do todo,
atuação em Rede, e não como igrejinha.
No conflitos intra-eclesais, tristeza e intranquilidade, pena e diálogo. Igreja
era forte no profetismo, até com martírio; até carta de excomunhão foi publicada! A
formação do clero era aberta ao social. Agora, constata-se um retrocesso quase em
tudo: sentam-se com os que contestavam, e os apoiam. O clero já não é nada do que
era.
Nessa confusão, o Espírito ainda nos possibilita fazer o que constrói o Reino. E
estamos lutando, no Maranhão, pela proposta de uma Assembleia do Povo de Deus,
ecumênica, com duração de um ano, para: ver a realidade; avaliar a presença de
Igreja; elaborar propostas para retomar caminhos...
Revivendo cenas do cotidiano, diante de famílias que pedem água, em região
semi-árida, alguns casais olham, dizem não ter dinheiro e vão rezar. Três pessoas,
contudo, prestam atenção, dão as mãos, levantam, organizam mutirão e constroem
cisterna. Os rezadores, ao voltar, admiram-se e se juntam ao mutirão...
Fazendo paralelo ao encontro de Jesus com a samaritana, vale representar
que isso pode acontecer, hoje, na beira de uma cisterna, sendo Jesus algum dos
muitos retirantes, sem água saudável... Ao pedir água à mulher, é ela que pode
descobrir outra água, e tornar-se fonte de água que jorra...
Um senhor de 72 anos, depois de construída a cisterna, não só cuidava da
qualidade da água, mas encaminhou a água com que lava a louça para um pomar... E
com as frutas, comprou ovelhas... Mudou de vida a partir do bem precioso. Depois de
minha mãe, o maior presente que Deus me deu foi a cisterna...
Celebração que desperta
Cantando Caminheiro, você sabe: não existe caminho. Passo a passo, pouco a
pouco, e o caminho se faz... de repente, um impacto: um vaso de barro cai ao chão e se
parte em muitos pedaços e espalha flores que estavam em seu interior. Por quê? Para
quê?
Quebrados, muitas vezes; quebrando, tantas outras... Às vezes, paramos aí
em volta, sem buscar algo maior... Que fazer? Juntar os cacos, alimentar esperanças...
Vi um novo céu e uma nova terra.
O que o Espírito fez nascer em nós a partir do gesto do vaso quebrado?
-Lembrei-me do Josimo, da Margarida, de tantas e tantos mártires, que foram
quebrados mas nos deixaram missões.
-Eles, os mártires, me quebraram. E precisei de forças para me recompor... Podemos
fazer outro vaso.
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- O vaso pode quebrar-se todo, ou pode quebrar-se aos poucos, a partir de
rachaduras... É bom ter atenção: reconstruir as relações.
- A ruptura é essencial em nossa espiritualidade. Ruptura requer liberdade, força, mas
é necessária. A natureza nos coloca na acomodação; se não há alguma coisa que se
quebre, a gente não cresce. A gente cresce quando quebra com algo: de imediato, dói,
não é gostoso, mas é necessário. Ter a liberdade de ir rompendo, também para poder
viver o desafio da construção...
- Quebra do vaso, assusta. Assim é a vida: sustos. De repente, há uma luz, e a gente
retoma a caminhada, animada. Vida com altos e baixos, mas Deus está no meio.
- A gente só viu o vaso: dentro havia flores, que não se partiram. Os sonhos
continuaram e foram partilhados...
- Às vezes, o vaso tem que ser quebrado: a semente, para nascer, precisa morrer. Nas
equipes, o vaso envelhece. É preciso quebrar para ver o que há dentro. Espiritualidade
é perder o medo de romper com o velho – tenho que ir ao útero de minha mãe outra
vez, para nascer de novo?, perguntou Nicodemos. A morte é uma das nossas formas
de ruptura...
- A espiritualidade acontece quando os cacos são ajuntados, a semente é semeada...
- O sonho foi partilhado – é a utopia.
Fontes bíblicas para a espiritualidade no conflito
Em situação de fome, Paulo faz campanha de ajuda à comunidade de
Jerusalém, e a partilha é apresentada como um dever. (At 11,27-30)
A perseguição provoca fugas, mas alguns dos que fugiram passaram a fundar
novas comunidades em Antioquia, e será aí que serão chamados, pela primeira vez,
de cristãos. (At 11, 19-26)
Na própria comunidade eclesial, diante da resistência de alguns aos sinais de
acolhimento do Espirito por povos diferentes, e diante do desejo de impor costumes
judaicos, como a circuncisão, surge o primeiro Concílio para encontrar o melhor
caminho. No fim, o Espírito e nós decidimos não impor cargas... (At 15, 22-29)
Paulo e Barnabé decidem, depois de muito diálogo e trabalho em conjunto,
seguir caminhos autônomos como maneira de superar discordâncias em relação à
forma de realizar a missão. (At 15, 36-41)
Jesus sempre teve atitudes surpreendentes em relação à mulher, rompendo
com os preconceitos da época. Paulo não é bem assim. Diante da liderança de Lídia,
contudo, vendo os sinais do Espírito nela, aceita-a como animadora da comunidade.
(At 16, 14,15)
Em relação à natureza, tão agredida, vale a admiração de Deus: e viu que tudo
era bom. (Gen 1 e 2) Em Lucas, encontramos referência ao amor de Deus pelo ser
humano, maior ainda que o dedicado às aves... (Lc 12,24) O fundamental, contudo,
está na regra de ouro: amem-se uns aos outros como eu os amei... Ninguém ama mais
do que o que dá a sua vida pela pessoa que ama... (Jo 15, 12-13). Por isso, se alguém
lembrar que existe uma pessoa que tem algo contra ela, que vá primeiro reconciliar-se
com ela, e só depois venha oferecer seu sacrifício. (Mt 5,23-24)
Diante de Busch, com sua guerra total, o que fazer? Ser contra, com nãoviolência ativa, não assumindo formas violentas de ação, pois o Evangelho não as
inspira. Mulheres e homens não-violentos têm grandes convicções sobre a
humanidade e sobre a primazia de Deus. Basta lembrar dom Hélder, Pedro
Casaldáliga...
Características de uma espiritualidade do agente Cáritas
Características: escuta, abertura; misericórdia, compaixão; luta pela
integração do outro à sociedade; senso de justiça; fundada na pessoa de Jesus – ser
pessoa cristã -, com a variedade de seus sentimentos, práticas – tempo para crianças e
dureza com o Templo -, palavras...
Nossa espiritualidade, então, deve ter como qualidades: o sonho e a paixão
pelo Reino; a firmeza na relação com a causa maior; o cultivo de si mesmo – cuidado
com saúde, com família, com o menor de casa, com a vida, com as relações com as
outras pessoas, com a natureza, com os diferentes...; a valorização da vida, vivenciada
em diferentes dimensões, lutando por vida plena; a sabedoria de que é no cair e no
levantar que se vai progredindo; o estar calcada na radicalidade social, como Jesus,
anunciando boas novas aos pobres; a prática de um cultivo permanente...
Como combinar ruptura – que é passagem para crescimento - com amor –
vede como se amam? A comunidade amadurece, mas ela precisa ter normas de
convivência, para superar estrangulamentos. Ambiente de abertura e acolhimento:
cada pessoa se abre, se confia, e o conjunto acolhe. A espiritualidade nos coloca em
conflito, dentro da Igreja e na sociedade: individualmente, diante da escolha de um
projeto; coletivamente, nas rupturas que abrem para a construção de novas relações.
Pontos comuns de nossa espiritualidade: afeto, reverência à Palavra de Deus;
que cada um dê o que pode oferecer; vivenciar a espiritualidade coletivamente;
amadurecer a relação entre fé e política; paciência em relação ao amadurecimento da
outra pessoa; misericórdia; cuidado com a coerência entre o que a gente é e o que a
gente fala. Nossa referência deve ser o ser e o agir de Jesus histórico.
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2
Uma base importante de nossa espiritualidade é a atenção para os valores
presentes nas demais pessoas, destacando seu potencial e seu saber. Nossa
espiritualidade deve ser carregada de entusiasmo, de perseverança, de teimosia
sábia. Sua base está nas atitudes pessoais de solidariedade. Busca o discernimento,
seja para acertar nas relações conflituosas, seja para crescer a partir dos conflitos.
Que seja uma espiritualidade que integre e trabalhe o corpo, a mente, o espirito e o
coração das pessoas...
2.4 – Espiritualidade de leiga e leigo
A tradição, aparentemente, não ajuda muito para o aprofundamento da
temática da espiritualidade de leigas e leigos. A prática da criação de espaços
especiais para a formação de padres, religiosos e religiosas, somada à de separar os
candidatos e candidatas desde o final da infância, aos 10 ou 11 anos, produziu a ideia
de que espiritualidade seria algo característico dessas pessoas. Com o andar do
tempo e a partir da necessidade de apresentar esses estados de vida como os
preferidos de Deus, já que as pessoas neles envolvidos estariam totalmente
consagradas a ele, os cristãos foram se sentindo inferiorizados, vivendo em situações
e trabalhos em que pouco ou nada se lembraria e se louvaria a Deus, com
envolvimento em questões materiais, próximas das tentações de todos os tipos.
Na verdade, o que foi acontecendo foi o afastamento da vida comum das
comunidades por parte dos consagrados e consagradas, gerando a falsa ideia de que a
Deus só se encontra e se segue a partir de treinamentos especiais e de formas de vida
diferentes das comuns do povo.
Para completar, essas pessoas consagradas foram promovidas pela
instituição eclesial para ensinar ao povo as espiritualidades que elas aprenderam,
agravando ainda mais a sensação de que aos cristãos das comunidades só restaria
mesmo estar presentes nos rituais vividos pelos consagrados e consagradas, uma vez
que nem mesmo a língua utilizada – o latim – era de seu conhecimento. Nem mesmo
com a introdução da língua de cada povo, contudo, a distância foi vencida, já que os
rituais revelaram ser pouco ligados à vida concreta, deixando no ar, uma vez mais, a
dúvida sobre a possibilidade de que todos os seguidores de Jesus pudessem ter uma
espiritualidade própria.
Tendo presente que a quase totalidade dos agentes da Cáritas são leigas e
leigos, tornou-se necessário aprofundar essa questão: afinal, existe uma
espiritualidade própria de leigos e leigas?
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Nossa imagem de leigo e leiga
É muito mais pelo negativo que se forma a imagem de leigo: é o que não é consagrado,
o que não é do clero nem religioso ou religiosa. Ela é fruto da comparação com o que
está institucionalmente consolidado na Igreja. Só num segundo momento, num
esforço de reflexão, aparece a dimensão afirmativa: a pessoa que pertence ao povo
cristão como tal e não à hierarquia eclesiática - como está no dicionário Aurélio. É o
cristão que vive no mundo, com família, envolvido na luta pela vida, nos desafios da
economia, da política, dos problemas sociais.
Por outro lado, é muito forte a imagem de que leigo e leiga designam pessoas que não
estão por dentro de algum assunto, que não têm conhecimento dele. Mesmo em
relação à fé cristã, a prática dos que se sentiam conhecedores aprofundou a
consciência de que os não eclesiásticos estavam por fora da compreensão das
verdades e reflexões teológicas, eram leigos no assunto. E será que, mesmo tendo
presente as mudanças introduzidas, essa imagem de que, frente a alguns que sabem
supostamente tudo, a quase totalidade é leiga, está por fora, foi superada?
A imagem bíblica de leigo e leiga
Se vamos à experiência bíblica, descobrimos algo muito diferente: a
construção e aprofundamento da consciência de que todas as pessoas que assumem,
com fé, a Promessa do Deus conosco, Javé, e vivem o compromisso da Aliança firmada
com Ele, são o laos de Deus, o Povo de Deus. Mais ainda, na linguagem grega, são o
demos, o povo que participa, que decide, que se governa, guiado e inspirado por
Deus. E eklesia – igreja – é a assembleia de demos, assembleia dos chamados, do laos,
do povo de Deus.
Nessa perspectiva, são leigos e leigas todas as pessoas que fazem parte do
Povo de Deus. E de um povo cujo Deus não aceita discriminação de tipo algum e, se
houver desigualdades, Ele se coloca do lado dos deserdados, dos mais frágeis, dos
injustiçados, e com eles faz o caminho de retomada da fidelidade à Aliança. Todos e
todas têm igual valor: são seus filhos e filhas, são como a esposa amada
apaixonadamente, mesmo quando infiel.
A experiência de Jesus vai nessa linha: ele próprio não é membro do grupo ou
casta dos sacerdotes, levitas, doutores da lei, fariseus, saduceus, e sim filho de José, o
carpinteiro, de uma família que faz parte do laos de Deus. Ele é, rigorosamente, um
leigo e escolhe a prática dos profetas – radicalmente laical - como seu caminho para
anunciar as Boas Notícias, o Evangelho de Deus. Todos e todas que ouvem sua palavra,
acolhem seu convite e se põem a caminho com Ele, se tornam seus discípulos e
discípulas, e dentre todos eles, sem criar diferenças institucionalizadas, Ele escolhe o
grupo dos apóstolos. Só depois, na história do cristianismo, é que serão formalizadas,
dentro da igreja dos seguidores e seguidoras, diferenças que se parecerão, em grande
medida, com as introduzidas pelas castas que controlaram e usaram o Templo no
Antigo Testamento.
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Cabe-nos, então, retomar a riqueza da imagem de leiga/leigo presente na
memória bíblica, resgatando também a espiritualidade que deveria alimentar todos
os seguidores e seguidoras de Jesus Cristo.
Conhecer o mapa da mina
O assessor convidado, Dom Tomás Balduíno, começou sua reflexão
comentando um exercício em que o grupo participante procurava analisar as relações
dos agentes Cáritas com diferentes situações: na família, no trabalho, no
engajamento com os excluídos, na militância política: nós somos um microcosmo
dentro de um macrocosmo, em que tudo é nosso, nós somos de Cristo, e Cristo é de
Deus. A espiritualidade tenta iluminar tudo, para que sempre possamos dar as razões
de nossa esperança.
Existem tensões com a hierarquia, é claro. O importante é sentir-se pobre,
sem recursos, mas livre. A relação, aqui também, é contraditória: sem romper, é
preciso apostar em mudanças. Infelizmente, a hierarquia tem mais força para barrar
do que para impulsionar. É importante conhecer as possibilidades e limites, e de
modo especial as possibilidades dos leigos e leigas.
O que precisamos é buscar as razões mais profundas: a construção do Reino,
o anúncio do Evangelho. Temos dois pólos: o lado do Evangelho, a Boa Nova, e a
vivência na margem, que é o lugar revelador de Deus – e os agentes da Cáritas, que
vivem aí, estão conhecendo o mapa da mina. Cabe-nos também a missão de atuar
dentro da Igreja, mas fazendo como Jesus: anunciar a partir dos pobres, dos
Catadores e Catadoras...
Na militância política, o importante é estarmos abertos para agir e interagir
com organizações da sociedade, evitando o gueto. Devemos estar sempre
comprometidos com a transformação. E nesta direção, outros nos antecederam e nos
precedem; não somos donos nem os únicos construtores do Reino, graças a Deus.
Cabe-nos ser profissionais sérios em nossos trabalhos, evitando contudo
vestir a camisa de força da especialização e do corporativismo. O importante é sermos
competentes e livres, abertos ao novo, a serviço da construção do Reino junto com os
empobrecidos. Na prática, cabe-nos não apenas ser eficazes na geração de respostas
aos desafios, como os do Semi-Árido, os da convivência com a floresta, os da água etc.,
mas sermos fonte de descoberta e animação de novos companheiros na luta pela
libertação.
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Espiritualidade é luz para caminhar
Para caminhar, é preciso ter segurança em relação aos motivos e à direção.
Essa é uma das funções da espiritualidade, pois ela se aprofunda junto com a reflexão
teológica. É com ela que podemos chegar ao poço em que todos vamos beber.
Refletindo sobre o evangelho da Samaritana, vale a pena colocar-se no lugar
de Jesus: ele estava em necessidade, tinha boas condições para dialogar; e era um
estrangeiro que se dirigia a uma estrangeira, gerando uma situação de igualdade. No
diálogo, Jesus anuncia o Espírito: já é tempo em que os adoradores adorarão em
espírito e verdade. Ele não é da tribo sacerdotal, mas é religioso, fala da adoração, só
que independemente da instituição.
Isso lembra que, um dia, as discípulas e discípulos pediram a Jesus que lhes
ensinasse uma oração que não os deixasse serem menos que os discípulos de João, e a
oração que ele ensinou é algo que pode estar na boca de gente de qualquer religião:
Pai... Reino... Pão... Justiça... Reconciliação...
A espiritualidade dos seguidores de Jesus consiste em ser como ele:
aprendam de mim que sou manso... não quebro o caniço... não apago a mecha ainda
fumegante... Jesus não é da hierarquia – e não parece que isso tenha sido limitação
para ele! Ele é leigo, com as limitações da humanidade... necessitando aprender o
despojamento, a abertura ecumênica. Esse é o núcleo central do segredo de Jesus: ele
contagiou os discípulos e discípulas da mística do Espírito. Infelizmente, a Igreja
abandonou esta prática em sua história, mas o Concílio Vaticano II a retomou.
Assumindo a profecia de Isaías, Jesus declara: o Espírito do Senhor está sobre
mim... É o kairós, a hora de Deus: ele voltou a Nazaré: se fez um qualquer, e falou de
um lugar muito simples, desprezado...: o Espírito do Senhor está sobre mim e me
enviou para anunciar as boas notícias aos pobres... a libertação dos oprimidos... o ano
de graça do Senhor... Hoje se cumpriu isso que acabam de escutar!
Este Espírito do Senhor está em cada um de nós: recebam o Espírito Santo... É
o Espírito da liberdade, antípoda de toda instituição, mesmo a eclesiástica. É um vento
impetuoso. Essa missão de anunciar animados e animadas pelo Espírito deve ser
vivida com liberdade e autonomia. É obra de Deus, na linha da profecia, que vem
desde os tempos antigos. O leigo e a leiga não têm limites na inserção, na militância,
pois sua missão lhes é dada por Deus.
O que predominou na Igreja foi o caráter sacerdotal à moda do Antigo
Testamento. Jesus é sacerdote, é o máximo do sacerdócio: ele é a adoração a Deus em
Espírito e verdade... mas em nada ele assumiu a tradição da tribo dos sacerdotes.
Por isso tudo, a espiritualidade do cristão e da cristã é o seguimento de Jesus
no anúncio do Espírito de Deus, anúncio realizado por força que o próprio Espírito lhes
dá. O Vaticano II fez essa reconciliação com o Espírito. E liberou a Palavra de Deus, que
deve ser lida e vivida sem fundamentalismos, para que seja luz, sal. O novo está na
espiritualidade do Espírito de Deus, que deu a Jesus – e a nós – plena liberdade, e se
comunica em todas as línguas, revoluciona todas as estruturas...
Portadores do segredo do Reino
O projeto de Jesus é o Reino, não a Igreja. Esse Reino não é algo caído do céu.
Ele faz parte da missão das discípulas e discípulos: vão anunciar que o Reino é como
uma semente... como uma boda... como uma pérola... O Reino vai emergindo da vida
concreta, vindo de uma sementinha, que se torna uma árvore... Vão às cidades... não
levem nada... Nada de construir capelas, fazer confrarias... O Reino de Deus está no
meio de vocês... Nada de ir com um pacote catequético! O povo já está inspirado, pois
o Espírito antecedeu os discípulos e discípulas. Um copo de água já é Reino de Deus.
O Reino sofre contradições: está misturado com o anti-reino. Jesus não
manda destruir, repetindo o que faziam os que haviam institucionalizado a religião.
Por isso, em vez de desejar o poder do bispo ou de qualquer outro tipo de poder, cabenos construir outro modo de conviver e de animar a missão. Jesus, movido pelo
Espírito, mexe com as estruturas da maldade, e o faz a partir de fora, livre de todas as
estruturas. Ele pratica a comunhão com o Pai por meio da oração e não tem limites na
atenção aos necessitados: ele sente compaixão, tem amor misericordioso. Esse amor,
na América Latina, nos diz Jon Sobrino, se expressa na prática de descer da cruz os
crucificados. A paixão pelo Pai é a mesma paixão pelo irmão. A maior tentação é a de
separar esse amor.
A espiritualidade de Jesus é ligada ao Espírito de liberdade, à Palavra, ao agir,
ao povo. Um analfabeto, chamado Pedro, ouviu e anunciou a Palavra. A relação com
ela deve ser orante, e leitura orante consiste em: 1. Oração ao Espírito; 2. Fazer a
leitura; 3. Comparar: com outros textos, com a nossa realidade; 4. Contemplar; 5.
Compromisso.
É importante resgatar a experiência popular e laical do seguimento eclesial de
Jesus: na primeira carta de Pedro, ele nos diz que os seguidores e seguidoras são uma
comunidade sacerdotal, que oferece os sacrifícios espirituais que Deus gosta... É uma
comunidade, e não indivíduos isolados. Cabe-nos ser, como Jesus, sacerdotes, reis e
profetas: esse é o específico de todas e de todos os discípulos.
A partir de Medellin, a Igreja encontra os não-gente, os excluídos: os índios,
os camponeses, as mulheres, os migrantes, os povos da rua... Cabe-nos ser Povo de
Deus, isto é: ser o Reino na comunidade humana, especialmente na comunidade dos
pobres. Segundo o Concílio Vaticano II, o pobre é o sujeito histórico, o protagonista, e
cabe à Igreja levantar os caídos, como o fez o Samaritano: fazer do caído alguém capaz
de levantar outros caídos e caídas. Não basta fazer serviço aos pobres. É preciso que os
pobres se levantem, falem, gritem. É daí, deles, que vêm as respostas.
Vivemos em tempos difíceis: a conjuntura não é favorável para a afirmação
dos leigos e leigas, para as pastorais sociais. O importante é seguir em frente,
resistindo às tentações de recuar. É melhor enfrentar as contradições. Por outro lado,
Jesus nos advertiu de que, em realidades que se negam a acolher sua Palavra e colocála em prática, é normal haver contradições e conflitos.
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Ser Povo de Deus em movimento
A contradição existente entre laicato e instituição eclesiástica pode ser fonte
tanto de desânimo como de nova oportunidade para assumir com liberdade a missão
de ser seguidor e seguidora de Jesus. Vale, para isso, ter presente as diferentes
reações que Jesus provocou nas pessoas por suas práticas de misericórdia: de como,
para os empobrecidos, era revelação do amor de Deus, e para os encastelados nas
instituições poderosas e exploradoras, uma ameaça que precisava ser combatida e
aniquilada como se viesse do demônio. Ele provoca, convoca as pessoas a entrarem
livremente no movimento que vai abrindo, aprendendo com ele a caminhar, a ter
compaixão, a ser misericordioso. Ele não cria uma instituição, e sim um movimento de
amor radical, animado e movido pelo Espírito. As relações devem ser marcadas pela
fraternidade, de que Jesus é exemplo radical.
Isso nos ajuda a compreender o conflito que se arrasta pela história e tem
presença marcante no mundo atual: o projeto de Jesus é democrático, ecumênico,
descentralizado, assentado sobre a fraternidade como um sinal para a humanidade,
enquanto as instituições cristãs, bem como as políticas, são centralizadas,
eclesiásticas, monárquicas, piramidais. Jesus inaugurou a prática e o anúncio de que
um mundo novo é possível a partir dos empobrecidos, de sua participação na
construção de formas de convivência que se aproximem ao máximo do Reino de Deus.
Igual prática e anúncio são assumidos pelas comunidades de seguidores e seguidoras
de Jesus, e daí surgem os conflitos.
Coloca-se a questão do poder: o melhor é desejar o poder concentrado em
poucas instituições, ou a pressão, a partir da prática da liberdade cristã, para que todo
e qualquer exercício de poder mude de orientação, colocando-se ao lado dos
empobrecidos? A busca de poder para dominar é anticristão. O caminho de Jesus é o
serviço: o colocar a serviço da libertação dos excluídos toda a capacidade de ação, de
influência e de poder. Por isso, mesmo estando dentro da instituição eclesiástica, a
prática livre de participantes do movimento de Jesus pode contribuir para que
prevaleçam, entre todos os cristãos, relações que favoreçam a participação, a coresponsabilidade, a busca permanente da verdade e a prática da veracidade...
Características da espiritualidade da Cáritas
Como características da espiritualidade dos agentes Cáritas, vale destacar:
Ser encarnada na realidade, ser ecumênica, atenta aos sinais presentes nas situações,
nos valores, nos movimentos, comprometida com os excluídos, com quem manifesta
um profundo amor, ternura, compaixão e parceria nas lutas pela libertação, vibrando
com as transformações conquistadas.
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Ser vivida na forma de indignação com tudo que é injusto e desumano, e uma
indignação que se transforma em ações, inclusive de desobediência civil, se for
necessário.
Expressar-se no contato e no amor à natureza, numa oração que se liga com o
cotidiano, com as ações, com a militância, evitando ser meramente um ou uma
profissional.
Jesus.
Ser livre, numa liberdade movida pelo Espírito, calcada no exemplo da vida de
Ser evangelizadora, portadora de boas novas, fonte de renovação
permanente da esperança, teimosamente persistente, na perspectiva da tradição
profética.
Ser forte e discreta como o fermento, que desaparece para fermentar a
massa: inserir-se, estar com; encarnar-se também na Igreja, visando aproximá-la da
missão dada por Jesus.
Ser permanentemente alimentada pela força e iluminada pela luz da Palavra
de Deus, acolhida de forma orante.
III – EXERCÍCIO DE SÍNTESE: características da mística e espiritualidade da Cáritas
Por que exercício? Por duas razões principais: primeiro, porque temos
consciência de que esse é um tema que não pode ser fechado, virando um modelo;
segundo, porque a sistematização também continua em aberto, esperando novas
contribuições dos Agentes da Cáritas.
O objetivo desta parte é reunir, num esforço de síntese, o que foi elaborado
por todas as pessoas que participaram do processo de busca e construção de uma
espiritualidade e mística da Cáritas Brasileira. Espera-se, com isso, ter aqui um
instrumento de referência comum para a continuidade de nossas buscas. Como
sabemos, em relação à espiritualidade e mística, as práticas, pessoais, grupais e
comunitárias, são muito mais importantes do que as belas teorias e palavras.
A raiz de nossa espiritualidade está em nossa própria humanidade: somos
pessoas, somos seres espirituais, capazes de estabelecer livre e conscientemente
relações amorosas com outras pessoas, com outros seres vivos, com a natureza, com
o universo. Somos o próprio cosmo na forma pensante, livre, consciente. Sendo livres,
podemos também ser tomados ou alimentar outros tipos de espírito, contrários à
vida, à convivência amorosa com as pessoas e todo o universo. Precisamos, por isso,
cuidar do nosso espírito, alimentá-lo com valores presentes na cultura da gente e nas
culturas diferentes. Mais ainda, se nos assumimos como seres livres carregados de
possibilidades e limites, e faz sentido e nos alegra a notícia de que somos obra de um
Criador divino, que se expressou amorosamente num longo processo de criação da
vida e das suas condições ambientais, então podemos buscar relação com ele sem
temer a perda da nossa liberdade.
Trazemos conosco raízes culturais e religiosas de diversas origens, carregadas
de valores e animadoras do nosso espírito. Elas nos enriquecem pessoalmente e
tornam mais rica a convivência entre nós. Essa abertura ao diferente que convive
conosco abre também nosso coração para os testemunhos maravilhosos que nos são
dados por pessoas que têm diferentes culturas e religiões, e que nós assumimos como
nosso próximo.
Praticamente todas e todos assumimos uma espiritualidade de cristãs e
cristãos leigos. É a espiritualidade de todas as pessoas que fazem parte do Povo de
Deus. Ela é a abertura para a ação do Espírito Santo na pessoa, no grupo de
convivência e de missão, na comunidade dos seguidores de Jesus. Como insiste o
apóstolo João, quem por primeiro nos ama é Deus, Ele que é Amor.
Somos pessoas e temos como uma de nossas características a liberdade.
Somos responsáveis por nossas decisões, mesmo sabendo que muitas coisas
interferem em nossa capacidade de tomar decisões com verdadeira autonomia. Por
isso, é muito importante contar com a inspiração do Espírito da liberdade: ele nos faz
livres, nos lembra o evangelizador Paulo. O Espírito não se deixa aprisionar por
nenhum tipo de estrutura e de poder, nem mesmo pelas estruturas religiosas. Ele
sopra onde quer. Em nós, quando o acolhemos, é como um vento forte, que nos
renova e impulsiona para a missão.
A inspiração do Espírito se manifesta em nossa capacidade de estarmos
atentos à realidade, especialmente à dos pobres. É com ele que buscamos os
melhores meios de compreender o que vai acontecendo, discernindo as
possibilidades presentes nas pessoas e na sociedade. Ele nos ajuda a ler os sinais dos
tempos, abrindo caminhos novos a partir do que Deus vai realizando com a
humanidade. Nos ajuda a celebrar alegremente os avanços e nos leva a participar dos
movimentos que lutam por um mundo novo sempre possível.
É do Espírito Santo que recebemos a missão, desde que tenhamos decidido
livremente seguir Jesus Cristo. A missão é a de Jesus, pois aceitamos amar como ele
amou, e esse amor se faz história por meio de práticas libertadoras, desde as mais
simples – um copo de água para quem tem sede – até as que exigem o risco da própria
vida – as lutas contra a opressão; ele se concretiza especialmente no anúncio de boas
notícias aos empobrecidos, revelando onde e como o Reino de Deus vai brotando e
crescendo na realidade humana, e revelando que todos e todas estamos sendo
atraídos por Deus para um tempo de graça, uma sociedade em que todas as pessoas
viverão alegremente como filhas e filhos de Deus. Essa utopia, como todas, nos ajuda
a ter um norte, uma direção; mas a sua força se assenta nos motivos que temos para
confiar em Deus, Ele que ressuscitou a Jesus para que ficasse claro que o caminho
vivido por ele é o abençoado e o melhor para a humanidade.
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O Espírito nos anima a viver e implementar práticas de amor libertador –
caridade libertadora. Temos como meta amar como Deus ama – mesmo sabendo que
só podemos caminhar nessa direção porque Ele próprio faz morada em nós, e em
todas as pessoas que aceitam sua Palavra, e nos dá força para avançar sempre. O amor
libertador reconhece que todas as pessoas, e especialmente as mais excluídas, são
portadoras da dignidade de filhos e filhas de Deus e do direito de participarem das
práticas que as libertarão das prisões, cegueiras, miséria e fome geradas pelo
abandono, pela dominação e pela exploração que reinam na sociedade em que
vivem.
Esse amor se expressa no reconhecimento e na promoção do protagonismo
político dos excluídos na formulação e na conquista de políticas públicas e na geração
de movimentos que tornem real o que é possível, e tornem possível o que parece
impossível.
O amor radical libertador recebe alento no testemunho de vida de Jesus e de
todos os que dão a vida pela libertação da humanidade. É a força que vem do martírio,
do testemunho de fidelidade, que é silenciado pela violência dos que agridem os que
lutam pela liberdade e pela libertação para manter privilégios, interesses privados,
propriedades, especulação, poder, dominação.
A espiritualidade dos agentes Cáritas precisa de tempos de contemplação,
que tornem possível o envolvimento nas ações planejadas sem cair no ativismo.
Contemplar tudo que sucede na realidade e nos processos de luta – olhar
atentamente, perceber os avanços, o crescimento das pessoas... E que seja um olhar
que permita encantamento gratuito, alegria, celebração-celebração da presença
amorosa e fiel de Deus em todos os caminhos.
Para dar maior profundidade a esse olhar contemplativo que torna mais
humanas as ações desenvolvidas, é fundamental alimentá-lo com a retomada da
memória presente na Palavra de Deus. É com a leitura orante da Palavra que
renovamos a visão e o entusiasmo pela missão. É ela que nos manterá movidos por
Deus, entusiasmados pela missão, mesmo no meio dos conflitos e das contradições.
Na verdade, a espiritualidade de Jesus foi a vivência da relação com o Pai no
meio de constantes conflitos. Podemos até dizer que foi uma espiritualidade do
conflito. De fato, tanto ele como seus seguidores e seguidoras, ao provocarem as
pessoas a uma mudança radical de vida, abrindo-se para fazer um mundo que seja um
ano da graça do Senhor, superando as tentações de apropriação das condições
naturais da vida, de uso do poder para dominar e explorar, de uso de magias e shows
para manter as pessoas na dependência, provocam reações, muitas vezes violentas,
dos que sentem ameaçadas as estruturas de poder que mantém seus privilégios.
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Essa espiritualidade do conflito pode expressar-se também nas relações no
interior da Igreja. Sem quebrar em definitivo, amar à Igreja significa, algumas vezes,
discordar, fazer diferente, com ou sem apoio, criando oportunidades, a partir da
prática e do anúncio, de redescoberta da missão, da pedagogia e do poder-serviço de
Jesus.
É uma espiritualidade que se expressa e se alimenta da Eucaristia: da força, da
graça de Deus que provém da renovação do acontecimento da morte e ressurreição
do Senhor Jesus. Mas não das celebrações reduzidas à repetição mecânica e quase
mágica de rituais. A espiritualidade cresce quando se renova o acontecimento:
quando a morte e a ressurreição são redescobertas e celebradas na vida e na
realidade atuais. A Eucaristia pode e deve ser, cada vez, um novo acontecimento na
vida das pessoas e da comunidade, um acontecimento que se expressa nos
compromissos para que todo tipo de morte seja superado pela ressurreição, pela vida
nova. Talvez seja bom pensar, periodicamente, na celebração de uma Eucaristia
efetivamente ligada à vida e ao engajamento no trabalho da Cáritas, animada por um
presbítero – enquanto só pode ser um homem – que favoreça o diálogo e a
participação. Trata-se, como se vê, de uma espiritualidade profética, como a de Jesus.
De fora das estruturas, do meio da sociedade, entre e com os excluídos, ir construindo
e anunciando que é plenamente possível um mundo bom para todas as pessoas. Isso
significa denunciar as forças e as estruturas que impedem esse presente possível.
Significa, principalmente, convocar, mobilizar as pessoas e forças sociais e políticas
voltadas para a construção dessa novidade para todas as pessoas.
É preciso buscar o meio termo entre a redução da espiritualidade à ação – a
oração na ação – e à oração ou celebração litúrgica desligada da vida. De fato, entre as
duas, a primeira é melhor, pois sem amar aos irmãos e irmãs, a quem se vê, mente
quem diz que ama a Deus. Esse é o núcleo central da vida espiritual dos leigos e leigas,
membros do Povo de Deus, seguidoras e seguidores de Jesus. E um amor sem
fronteiras, que se abre para todas as formas que a necessidade, as possibilidades e a
vocação apresentarem para cada pessoa, lembrando que, na atualidade, em que o
caído à beira do caminho são massas humanas, milhões de irmãs e irmãos,
necessariamente deve ser um amor político. Mas, para manter-se fiel e firme nessa
prática da compaixão misericordiosa, crítica, esperançosa e criativamente política,
temos necessidade de tempos especiais de contemplação, oração, celebração.
A mais espiritual de todas as atitudes é o assumir-se como um eterno
aprendiz. Não existem modelos ou rituais mágicos, que produzem os efeitos a partir
da mera repetição. Não existem estruturas, por mais que se apresentem como
religiosas, que resolvam nossos anseios por meio da dependência e da entrega
irresponsável. Cada pessoa, cada agente Cáritas, cada grupo ou equipe, cada
comunidade, cada Cáritas, se desejar o melhor no seguimento de Jesus e na mística e
espiritualidade que o alimenta, deverá buscar, e sempre, e com criatividade, aprender
novas formas de viver, conviver, contemplar, ouvir o Espírito, amar como Deus sendo
pessoa, doar a própria vida, celebrar a vida libertada...
Ivo Poletto
Goiânia, maio de 2003