Um sócio perigoso

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Um sócio perigoso
Um sócio perigoso
Ao chamar os senadores brasileiros de papagaios dos Estados Unidos, o presidente
venezuelano, Hugo Chávez, pode ter feito um favor ao Mercosul. Sua truculência, dessa vez,
serviu para lembrar que o ingresso da Venezuela no bloco ainda não foi aprovado em Brasília
pelos congressistas. O destempero do líder “bolivariano” evidencia, mais uma vez, que é
preciso pensar com muita cautela antes de conceder essa aprovação. Não se trata de revidar
um ataque, mas de levar em conta os interesses do Brasil e as conseqüências, para o
Mercosul, da admissão de um sócio com enorme potencial de criação de problemas.
A vocação autoritária de Chávez, mais uma vez demonstrada no episódio da RCTV,
poderia ter bastado para levar o governo a agir com maior cuidado, se estivesse disposto, de
fato, a valorizar a cláusula democrática do Mercosul. Essa vocação é conhecida há muito
tempo, mas, apesar disso, a diplomacia de orientação petista resolveu ignorá-la. Mas o líder
venezuelano tem fornecido outros motivos igualmente fortes, se não mais, para que a sua
participação nas deliberações do bloco seja considerada inconveniente.
O governo do presidente Lula pode não ter levado em conta esses motivos, mas uma
parcela importante do empresariado tem uma clara percepção do perigo. O Mercosul tem um
acervo modestíssimo de acordos bilaterais e inter-regionais e terá de retomar negociações
importantes, principalmente se fracassar a Rodada Doha. Seja qual for o desfecho da rodada
global, já se prevê para o segundo semestre o reinício das conversações com a União
Européia. Em algum momento surgirá a oportunidade para nova negociação com os EUA. Os
governos do Brasil e da Argentina têm grande parte da responsabilidade pelo fracasso da
Alca. Mas não se comprometeram de forma definitiva com o erro. Poderão tentar corrigi-lo,
quando houver condições para isso. Será muito mais difícil, no entanto, adotar políticas mais
pragmáticas para o Mercosul, se o bloco tiver de levar em conta as ambições políticas do
presidente Hugo Chávez e sua visão do que deve ser o hemisfério.
O Mercosul já tem fraturas em excesso e a inclusão da Venezuela apenas aumentará a
fragmentação. É um exemplo perfeito de situações em que mais pode significar menos.
Chávez demonstrou mais de uma vez que não respeita nem pretende respeitar os parceiros.
Ninguém pode duvidar de que ele sempre dará menos importância aos compromissos e à
composição de interesses do que à sua visão ideológica e às suas ambições de poder.
Incorporado ao bloco, será mais um entrave ao fortalecimento do Mercosul como ator do
mundo globalizado e à ação diplomática do Brasil.
A inclusão econômica da Venezuela no Mercosul já vem sendo retardada por vários
problemas. O protocolo de adesão foi assinado em julho do ano passado. O cronograma de
ajuste às condições do bloco deveria ter sido elaborado até março deste ano, mas o trabalho
não foi concluído. Em maio, o prazo foi estendido por mais seis meses, mas já se admite que
nova prorrogação poderá ser necessária. Falta acordo sobre as listas de produtos que serão
considerados em cada etapa da liberalização comercial. Além disso, o governo venezuelano
tem demonstrado que prefere regular os negócios de acordo com critérios próprios. Os
atrasos de pagamentos de produtos vendidos pelo Brasil - problema denunciado pela Fiesp são mais um alerta que as autoridades deveriam levar em conta.
O presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), tentou reduzir a
importância da agressão de Chávez ao Senado brasileiro, argumentando que há interesses
diplomáticos permanentes e que os governos passam e os países permanecem. Seria um
argumento razoável a favor da aprovação do ingresso da Venezuela no Mercosul, se não fosse
preciso levar em conta um detalhe: ninguém sabe quando Chávez deixará o governo. Por
emenda à Constituição, feita sob medida para Chávez, o Congresso venezuelano tornou
possível um número ilimitado de reeleições.
Enquanto Chávez for capaz de manejar os instrumentos de poder como tem feito até
agora, poderá permanecer na presidência. Por enquanto, é evidente que ele não tem planos
de abandonar sua posição. Ao contrário, fará o possível para continuar ampliando seu
controle sobre a sociedade venezuelana. Será esse um parceiro desejável para as decisões do
Mercosul?
Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO-11/06/2007