D. Leonor de Portugal: Empreendedora da Misericórdia

Transcrição

D. Leonor de Portugal: Empreendedora da Misericórdia
| D. LEONOR |
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| JUBILEU DA MISERICÓRDIA | 2016
D. LEONOR
DE PORTUGAL:
EMPREENDEDORA
DA MISERICÓRDIA
A fundadora da Misericórdia de Lisboa foi uma das
mais notáveis rainhas portuguesas pela sua obra
e pelo importante legado que deixou às gerações
seguintes, conseguindo colocar em prática as catorze
obras de misericórdia, num exemplo de inovação
e de empreendedorismo na era de Quinhentos.
Texto de Alexandra de Aboim Barahona Brito Rebelo [DIRETORA DO DEPARTAMENTO
DE EMPREENDEDORISMO E ECONOMIA SOCIAL_SCML]
E
m pleno ano do Jubileu da Misericórdia
proclamado pelo Papa Francisco, este é
um tempo de misericórdia. Não deveriam ser todos tempos de misericórdia?
“Não devemos esperar que os feridos nos batam
à porta, devemos acolhê-los, abraçá-los e curá-los.
Fazê-los sentir amados.”1 Foi esta a misericórdia,
amplamente praticada pela rainha D. Leonor, que
esteve na base da fundação da Misericórdia de
Lisboa e de outras obras de grande vulto, realizadas não só num espírito de dedicação aos menos
afortunados, mas também num espírito de apoio
à cultura, através de ações de mecenato nas artes
e nas letras, que tiveram início no século xv e que
perduram até aos nossos dias.
A infanta D. Leonor, também Leonor de Portugal, Leonor de Lencastre, Leonor de Avis ou Leonor de Viseu, foi uma infanta portuguesa nascida
em Beja, em 1458, e falecida em Lisboa no Paço de
Xabregas, em 1525. Filha do infante D. Fernando e
da infanta D. Beatriz de Portugal, duques de Viseu,
foi rainha de Portugal pelo casamento com o seu
primo D. João II, de cognome o Príncipe Perfeito2.
De fisionomia suave, olhos azuis e cabelos
JOSÉ MALHOA, Rainha
D. Leonor, 1926, óleo
sobre tela, 205x137,5.
Cm. Inv 1. Museu
José Malhoa. Imagem
gentilmente cedida
pela Direção Regional
de Cultura do Centro /
Museu José Malhoa
1. Cfr. Il Nome di Dio è Misericordia – Andrea Tornielli – Edizioni Pimme Spa, Milano
2. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda.
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PATRONA DAS ARTES,
DA CIÊNCIA E DA MEDICINA,
D. LEONOR DE PORTUGAL
FOI UMA DAS MAIS NOTÁVEIS
RAINHAS PORTUGUESAS
DE TODOS OS TEMPOS”
louros, herdados de sua bisavó, D. Filipa de Lencastre, foi considerada “a mais perfeita Raynha
que nasceo no Reyno de Portugal”3 pelo seu biógrafo, Frei Jorge de São Paulo. Descendente da
Ínclita Geração, assim denominada por Camões
de geração notável, sua mãe era filha do infante
D. João. Por parte de seu pai, sobrinho do infante D. Henrique, o Navegador, era neta do
rei D. Duarte, autor do “Leal Conselheiro”, cujos
ensinamentos estiveram presentes na educação
da época.
Considerado como um primeiro ensaio de filosofia em língua portuguesa e versando sobre as doutrinas da ética e da moral, tendo a lealdade como
foco central, o “Leal Conselheiro” surgiu numa época de expansão marítima e económica. Quando do
nascimento de D. Leonor, faziam parte da geografia
de Portugal os arquipélagos da Madeira e dos Açores. O cabo Bojador tinha finalmente sido “dobrado”:
a sua passagem foi um dos importantes marcos da
navegação portuguesa que derrubou velhos mitos e
abriu caminho para os grandes descobrimentos, por
“mares nunca de antes navegados”4.
É no reinado de D. João II e de sua mulher
D. Leonor que decorrem as negociações para o
Tratado de Tordesilhas, para repartir terras descobertas e a descobrir fora da Europa, dividindo
o mundo ao meio. Celebrado entre os reinos de
Portugal e de Espanha, o tratado trouxe o Brasil
para o domínio de Portugal e abriu caminho para
expedições em direção à Índia5. Com D. Manuel I
é dada importância à diplomacia e a novas descobertas. A exploração marítima prossegue assim com Pedro Álvares Cabral e a descoberta do
Brasil, e Vasco da Gama com a descoberta do
caminho marítimo para a Índia, onde então foi
aclamado o primeiro vice-rei.
No exercício da diplomacia e durante o reinado de D. Manuel I é enviada uma embaixada ao
Papa Leão x, que desfilou pelas ruas de Roma, em
março de 1514. Marcada pelo exotismo e pela riqueza dos presentes, tinha como objetivo reiterar
obediência e apresentar propostas para o fortalecimento da Igreja católica. “Chefiada por Tristão
da Cunha e secretariada por Garcia de Resende,
a embaixada era composta por mais de cem pessoas, com presentes magníficos: pedrarias, tecidos e joias, um cavalo persa, uma onça de caça e
um elefante que executava diversas habilidades.”6
Era este o ambiente que se vivia na era de Quinhentos, no reinado do “Rei de Portugal e dos
Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar, em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação
da Arábia, Pérsia e Índia”7, contemporâneo de
sua irmã, a rainha D. Leonor de Portugal. Uma
era de prosperidade, de inovação e de políticas
empreendedoras, em todos os domínios. Este
período do Renascimento, marcado por transformações na sociedade, na economia e na cultura,
foi uma transição com profundos efeitos nas artes, na filosofia e nas ciências, teve em Itália a sua
maior expressão, mas depressa se difundiu pelo
resto da Europa. A arte atingiu perfeição e equilíbrio com Piero della Francesca, Botticelli, Rafael,
Michelangelo, Leonardo da Vinci e muitos outros.
O pensamento político teve uma inspiração decisiva para a construção do Estado moderno em
“O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel.
3. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa.
4. Os Lusíadas, canto 1, Luís de Camões, Alvarenga
5. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda.
6. Cfr. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d-manuel-i-ao-papa-leao-x/
7. Direção-Geral do Património Cultural - http://www.patrimoniocultural.pt/
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Em Portugal, a influência do Renascimento
estendeu-se até finais do século xvi e, como
principal potência naval pioneira na exploração
marítima, floresceu com as navegações para o
Oriente. Os contactos comerciais e o intercâmbio cultural intensificaram-se. Lucros imensos
fizeram crescer a burguesia e enriquecer a nobreza, permitindo novos luxos, o cultivo do espírito e o avanço de ciências como a astronomia, a
cartografia, a matemática e a medicina. Nomes
bem conhecidos como Garcia de Resende, Luís
de Camões, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto,
Damião de Góis, mudaram os tempos.
Patrona das artes, da ciência e da medicina,
D. Leonor de Portugal foi uma das mais notáveis
rainhas portuguesas de todos os tempos, pela sua
vasta obra e pelo importante legado que deixou
às gerações seguintes, tendo posto em prática as
obras de misericórdia. De extraordinário cariz empreendedor, o projeto de fundação da Misericórdia
D. LEONOR CONTINUARÁ
A SER INCONTORNAVELMENTE
A RAINHA DAS MISERICÓRDIAS…”,
COM TODAS AS CARATERÍSTICAS
FUNDAMENTAIS QUE DEFINEM OS
ATUAIS EMPREENDEDORES”
de Lisboa e o impulso para a criação de novas misericórdias com uma mesma missão representam, na
prática, importantes pilares de um espírito inovador, bem representativo daquele período histórico.
Com origem na instituição da Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia, com
cem irmãos, “todos de boa fama e sãa consciência e onesta vida, mansos e humildosos a todo
o serviço”8 surge, durante a regência da rainha
8. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa
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RESULTADO DE UM CONSTANTE
EMPENHO CARITATIVO, AS
OBRAS DE D. LEONOR SÃO
EMPREENDIMENTOS QUE
SURGIRAM DA SUA VONTADE
DE CRIAR, BASEADOS NO IDEAL
CRISTÃO E NAS BOAS OBRAS, COM A
SIMPLICIDADE DA INOVAÇÃO”
D. Leonor, em 15 de agosto de 1498, a Misericórdia de Lisboa, em local conhecido pelo nome de
Nossa Senhora da Terra Solta, na capela de Nossa Senhora da Piedade da Sé Catedral de Lisboa.
A confraria, orientada pelos princípios estabelecidos no Compromisso da Misericórdia para
apoio aos mais desfavorecidos, tinha como objetivo realizar as 14 obras de misericórdia, sete
materiais e sete espirituais. Obras pelas quais
vamos ao encontro das necessidades do próximo. Instruir, aconselhar, consolar, corrigir os
que erram, perdoar as injúrias, suportar com
paciência as fraquezas do próximo e rogar a
Deus por vivos e defuntos são obras de misericórdia espirituais. As corporais: dar de comer
aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir
os nus, acolher os peregrinos, assistir aos doentes, visitar os presos e enterrar os defuntos9.
O Compromisso foi aprovado pelo rei D. Manuel I e confirmado pelo Papa Alexandre VI,
Rodrigo Borgia. Em 1534, a sede da confraria
estava na Igreja da Conceição Velha, onde se
manteve até 1755, sendo depois transferida
para São Roque, pertença da Companhia de
Jesus. Numa expressão mais profunda do ideal
cristão, que se traduzia no exercício das suas
obras, inspirado no amor e na entreajuda, o
“espírito do Compromisso defendia a ideia de
todos os homens serem filhos do mesmo Deus
criador, portanto unidos pela vivência de irmãos de sangue”10, princípio defendido pela
coroa portuguesa, o que não deixa de ser revolucionário para a época.
Participante ativa nos desígnios caritativos do
reino, D. Leonor, princesa e rainha de Portugal,
pela sua vida exemplar e na prática constante
da misericórdia e das suas obras, “alcançou de
alguns historiadores o epíteto de ‘Princesa Perfeitíssima’, inspirado no cognome do rei seu marido, a cuja altura sempre se soube manter para
o juízo da história”11. Patrocinadora da “primeira
edição impressa sob égide real”12, do seu mecenato beneficiaram as artes e a cultura religiosa,
com traduções de obras e edições impressas.
A rainha apoiou escritores, músicos, ourives,
pintores, escultores, arquitetos e tantos outros.
Fundadora das misericórdias, da Misericórdia
de Lisboa e, alguns anos depois, daquela que
seria a segunda misericórdia do reino, a Misericórdia de Óbidos, da sua obra fazem parte, entre outros: os banhos das caldas, com a criação
do hospital-balnear, junto do qual foi construída
a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, e o desenvolvimento da cidade com o mesmo nome, Caldas da Rainha. Também, o Convento e a Igreja
da Madre de Deus, o Convento da Anunciada, a
Igreja de Nossa Senhora da Merceana, a Igreja
de Santo Elói no Porto, as Capelas Imperfeitas
do Mosteiro da Batalha e as sete merceeiras no
Convento de Santo Agostinho.
“Virtude e Misericórdias descobrem-se e multiplicam-se graças a D. Leonor, pelo que continua a ser conveniente, quase ‘obrigatório’, percorrer o caminho que conduz da descoberta da
Misericórdia à invenção das Misericórdias com
a ajuda da rainha. Afinal, D. Leonor continuará a
9. Cfr. Catecismo da Igreja Católica – § 2447, www.vatican.va e Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário
da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus.
10. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa
11. D. Leonor, Princesa Perfeitíssima – João Ameal – Livraria Tavares Martins, Porto.
12. De princesa a rainha-velha, Leonor de Lencastre – Isabel dos Guimarães Sá, Círculo de Leitores.
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ser incontornavelmente a Rainha das Misericórdias…”13, com todas as caraterísticas fundamentais que definem os atuais empreendedores.
De facto, entrecruzando com os modernos
conceitos de empreendedorismo, chegamos às
caraterísticas dos empreendedores de sucesso:
“iniciativa; orientação para a realização e compromisso com os demais” (McClelland, 1987);
“sendo função do empreendedor reformar ou
revolucionar o padrão da produção, explorando uma invenção” (Schumpeter, 1952), e introduzindo uma inovação, como “instrumento
específico do empreendedor” (Drucker, 1987).
Resultado de um constante empenho caritativo,
as obras de D. Leonor são empreendimentos que
surgiram da sua vontade de criar, baseados no
ideal cristão e nas boas obras, com a simplicidade
da inovação, que a sua imensa fortuna permitiu,
com o apoio de seu irmão El-Rei D. Manuel I, para
“abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o
mundo contemporâneo cria de forma dramática.
Quantas situações de precariedade e sofrimento
presentes no mundo atual!”14, e nos mundos de
todos os tempos. “Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. (…). É tempo
de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos.”15
BIBLIOGRAFIA
AMEAL, João. D. Leonor Princesa Perfeitíssima, Livraria Tavares Martins, Porto.
AMORIM, Maria de Lourdes. D. Leonor de Lencastre,
Grande Senhora do Renascimento, Editora Ésquilo.
DRUCKER, Peter Ferdinand. Inovação e espírito empreendedor, 1987.
McCLELLAND, David. Characteristics of Successufull
Entrepreneurs, 1987.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt.
Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu
dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d-
Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de
-manuel-i-ao-papa-leao-x/)
Roma, Servo dos Servos de Deus.
A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa,
Edição de Livros, Lda.
SÁ, Isabel dos Guimarães. De princesa a rainha-velha,
Leonor de Lencastre, Círculo de Leitores.
CAMÕES, LUÍS. Os Lusíadas, canto 1, Alvarenga.
SCHUMPETER, Joseph. Can capitalism survive?, 1952.
CARDOSO, Eurico. Dona Leonor de Lencastre, Rainha
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Misericórdia de Lis-
de Portugal, a sua vida e a sua obra, Edição de autor.
Catecismo da Igreja Católica – Terceira parte - A vida
boa. Quinhentos anos de história – Livros Horizonte e
Misericórdia de Lisboa.
de Cristo – Segunda secção – Os dez mandamentos
SOUSA, Ivo Carneiro de. Da Descoberta da Miseri-
– Capítulo segundo – “Amarás o teu próximo como a
córdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Granito
ti mesmo”, Artigo 7- Sétimo - VI. O amor aos pobres
Editores e Livreiros, Lda. – Porto.
- § 2447 http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html
Comunidade Intermunicipal do Oeste
http://www.oestecim.pt
Direção-Geral do Património Cultural – http://
www.patrimoniocultural.pt/
TORNIELLI, Andrea. Il Nome di Dio è Misericordia,
Edizioni Pimme Spa, Milano.
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – www.scml.pt
13. Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Ivo Carneiro de Sousa, Granito Editores e Livreiros, Lda.
Porto – p. 5
14. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos
Servos de Deus.
15. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos
de Deus
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