DE PEITO ABERTO: falando de mulher para mulher sobre a

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DE PEITO ABERTO: falando de mulher para mulher sobre a
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
NÚCLEO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
Mestrado em Saúde Coletiva
SIMONE MEIRA CARVALHO
DE PEITO ABERTO: falando de mulher para mulher sobre a mastectomia
e a assistência à saúde numa perspectiva de gênero
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Núcleo de Estudos de Saúde
Coletiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Saúde Coletiva
Orientadora: REGINA HELENA SIMÕES BARBOSA
Rio de Janeiro – RJ
2005
ii
Carvalho, Simone Meira
De peito aberto: falando de mulher para mulher sobre a mastectomia e a
assistência à saúde numa perspectiva de gênero / Simone Meira Carvalho.
2005
140 f.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2005.
Orientadora: Regina Helena Simões Barbosa
1. Gênero. 2. Saúde da Mulher. 3. Mastectomia - Dissertação.
I. Simões Barbosa, Regina Helena (orientadora). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva. Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. III. Título.
iii
FOLHA DE APROVAÇÃO
Simone Meira Carvalho
DE PEITO ABERTO: falando de mulher para mulher sobre a mastectomia e a
assistência à saúde das mulheres numa perspectiva de gênero
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Núcleo de Estudos de Saúde
Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Aprovada em 15 de abril de 2005.
______________________________________________
Profª Regina Helena Simões Barbosa - Doutora em Saúde Pública - NESC/UFRJ (Orientadora)
______________________________________________
Profª Letícia Fortes Legay - Doutora em Saúde Pública - NESC/UFRJ
(Presidente da Banca)
______________________________________________
Profª Elaine Reis Brandão – Doutora em Saúde Coletiva - IMS/UERJ
______________________________________________
Profª Márcia de Assunção Ferreira - Doutora em Enfermagem - EE ANNA NERY/UFRJ
iv
Dedicatória
Àquelas que, de peito aberto, compartilharam de mulher para
mulher suas vivências, seus sentimentos mais íntimos em um
borbulhar de emoções, possibilitando-nos compreender e
valorizar o ‘ser mulher’. Expressaram suas inquietações, seu
desejo de viver. Re-significaram suas vidas, numa busca para
sentirem-se ‘completas’, pois, apesar de não terem mais uma
mama, não deixaram de ser mulher.
Mulheres “marias”, “mães”, “independentes”, “fortes” ou
demonstrando “fraqueza”... apenas mulheres... impregnadas
por suas experiências, forjadas na convivência familiar, no
cotidiano, na cultura, na sociedade.
A elas, nosso respeito e admiração.
v
AGRADECIMENTOS
Àquele sem o qual nada seria possível, ao que me formou e me escolheu desde o ventre de minha
mãe, ao que é merecedor de todo o louvor, pois que guiou cada passo meu, foi meu Pastor e Pai,
guardou-me e me fortaleceu para que pudesse começar e finalizar este trabalho, para honra e
glória do Seu nome, o que foi, é e sempre será, o meu sentido de viver, meu Deus.
Àquela que, com amor e dedicação, acreditou em mim, compartilhando comigo seu tempo, seu
imenso saber e a paixão por seu trabalho, minha amiga e orientadora, e agora cúmplice e mãe,
pois que me “fecundou, gestou e pariu” no referencial teórico conceitual de gênero e saúde,
minha querida Regina.
Ao meu amado e longânimo esposo, pelas incessantes orações, por sua paciência e apoio para
meu crescimento profissional, por sua compreensão nos dias em que não pude dar-lhe atenção e
estava cansada demais para fazer qualquer coisa... enfim... te amo, e agradeço ao nosso Deus por
tê-lo escolhido para estar ao meu lado.
A minha querida família, em especial meus pais que, sempre e incondicionalmente, me amaram,
me apoiaram e me oportunizaram crescer em todos os sentidos de minha vida. Também a cada
um de meus irmãos, que me ajudaram, participaram e torceram pela realização deste trabalho. Em
especial à minha querida irmã, que com carinho e dedicação acompanhou todo o meu trabalho,
dando sugestões e dicas que enriqueceram profundamente a pesquisa. A todos vocês, por serem
exemplos para mim, de trabalho e de humildade.
À cada um de meus irmãos da igreja, por seu amor, carinho, paciência e compreensão nos dias
difíceis, pelas orações, pois sem elas não teria forças para continuar a caminhada. Em especial à
Ângela, não só pelas transcrições e auxílio nos dias em que o cansaço abatia, mas pelo carinho
com que o fez. Também à Imaculada, que me acompanhou nas atividades do âmbito doméstico
com muita paciência e dedicação.
Aos meus colegas do Departamento de Fisioterapia, FACMED, UFJF, funcionários e
professores, pois são um exemplo de amor à profissão e dedicação à docência, buscando cada
vez mais um aprimoramento que se reflita na qualidade do ensino. A cada acadêmico - aluno,
monitor, bolsista e voluntário - que, com sua tranqüilidade, me permitiu continuar a docência,
compartilhando as descobertas deste trabalho. Em especial aos colegas professores e aos
acadêmicos que participaram do projeto DE PEITO ABERTO neste período, compartilhando da
construção de uma assistência mais integral às mulheres com câncer de mama; em especial à
minha querida colega e companheira nesta luta, Stella.
Aos meus colegas de profissão, que me apoiaram auxiliando nas atividades docentes,
incentivando-me a persistir na busca deste ideal. Também aqueles que me ajudaram nos
momentos difíceis e, com carinho, ajudaram no alívio do meu sofrimento – que digo, foram as
‘dores do parto’, de ‘parir’ a pesquisa – para a alegria de ver “o nascimento” deste apaixonante
trabalho.
vi
RESUMO
CARVALHO, Simone Meira. De peito aberto: falando de mulher para mulher sobre a
mastectomia e a assistência à saúde numa perspectiva de gênero. Rio de Janeiro, 2005.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)– Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005
Esta pesquisa se propôs a analisar, numa perspectiva de gênero, a vivência de mulheres acerca da
mastectomia e suas percepções a respeito da assistência à sua saúde no âmbito de um serviço
público de saúde na cidade de Juiz de Fora, MG, com o intuito de contribuir para a conquista de
uma assistência à saúde efetivamente integral. A estratégia metodológica adotada foi a
qualitativa, estruturada na análise hermenêutica dialética. Os dados empíricos foram coletados
através de entrevistas semi-estruturadas realizadas com 12 mulheres mastectomizadas. As
categorias de análise centraram-se nas representações de gênero, da história da doença e do
tratamento e suas repercussões, da assistência no serviço público de saúde, e o momento atual o
qual as mulheres estão vivenciando. Na análise dos dados empíricos, os discursos revelaram que
as conquistas femininas tiveram aspectos positivos e negativos, pois, sofrendo transformações da
transição de gênero, sobrecarregam as mulheres numa dupla jornada de trabalho, velada no ideal
da “independência feminina”. Portanto, as questões de gênero, profundamente entrelaçadas com
classe social, raça e etnia, vão determinar diferentes circunstâncias de vida para as mulheres,
interferindo tanto na forma de vivenciar e enfrentar a doença, quanto nos seus processos de
tratamento e readaptação, os quais diferiram entre elas, revelando a complexidade e a
singularidade do ser humano. As entrevistadas mostraram um olhar crítico quanto às
representações hegemônicas da “mulher guerreira”, revelando-se, em certos momentos,
fragilizadas. Numa contraposição à ideologia de gênero, constatamos que muitos companheiros
foram solidários, num apoio que foi essencial no enfrentamento do adoecimento e seus
tratamentos, na sua auto-estima e na opção pela reconstrução da mama, ou não. Na acomodação e
na resistência às ideologias de gênero, se utilizaram de mecanismos para negociar o ser mulher
nas relações sociais com os seus pares e com os profissionais. Evidenciaram as dificuldades de
um serviço de saúde fragmentado que impede a integração dos profissionais e dificulta o vínculo
das usuárias com a equipe de saúde. Valorizaram a humanização, a personalização e a
integralidade como atributos de uma boa assistência. Nesse sentido, percebemos que a
perspectiva de gênero vem contribuir para a integralidade, proposta pelo PAISM, na assistência à
saúde das mulheres com câncer de mama entendendo-a como um direito e possibilidade do
exercício de sua cidadania.
Palavras-Chave: GÊNERO, MASTECTOMIA, SAÚDE DA MULHER
vii
ABSTRACT
CARVALHO, Simone Meira. De peito aberto: falando de mulher para mulher sobre a
mastectomia e a assistência à saúde numa perspectiva de gênero. Rio de Janeiro, 2005.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)– Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005
The present study intends to analyze, in a gender perspective, the experience of women towards
mastectomy and their perceptions concerning the health public assistance at Juiz de Fora, Minas
Gerais. It has for purpose to contribute in the achievement of a health assistance that is truly
complete. It consists of a qualitative research, structured upon the dialectic analysis. The
empirical data were collected through in-depth interviews with twelve mastectomized women.
Analysis categories centered on gender representations, illness and treatment historic and its
repercussions, public health service assistance and present stage such women are facing. Findings
were that female conquests have had both positive and negative aspects, because suffering
changes of gender transitions, overload women with a double work time that affects social
relationships among men and women, under the ideal of “Women´s Lib”. Therefore, gender
issues are deeply knit with social class, race and ethnics, which will determine different life
circumstances for each and every woman, interfering with her way of dealing with the illness and
its treatment and later readaption, unique for each one. The interviewees showed criticism in
what concerns the hegemonic representation of the all-mighty-mother role, having experienced
moments of intense fragility. Contrary to the gender ideology, several husbands were
sympathetic, with an essential support for them to handle the illness process, its treatment, selfesteem and the option for the breast reconstruction or not to have it. In the accommodation and
resistance to gender ideologies, they used mechanisms to deal the “being a woman” in social
interactions with peers and professionals. They evidentiated the difficulties of a fragmented heath
service que prevents professionals integrations and make it hard to get a link between patients
and health service team. Humanization, customization and integrality in the assistance were
highly ranked as attributes of a good service. This way noticed that the gender perspective
contributes to the integrality, as proposed by PAISM, in the assistance to the health of women
that suffers from breast cancer, viewing it as the right and possibility of exerting their citizenship.
Key words: GENDER, MASTECTOMY, WOMAN’S HEALTH
viii
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
01
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO
06
2.1 PANORAMA DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE DAS MULHERES NO
BRASIL
06
Mercantilização da saúde feminina
09
O câncer enquanto um problema de saúde pública
11
O estigma da doença
13
2.2 CÂNCER DE MAMA E MODELO BIOMÉDICO: IMPLICAÇÕES
DE GÊNERO
2.2.1 Câncer de mama no Brasil: um problema de saúde pública
17
17
Fatores de risco versus vulnerabilidade
16
Prevenção e detecção precoce
19
Políticas públicas e campanhas para enfrentar o problema
25
2.2.2 Aspectos psicossociais, médico-assistenciais e terapêuticos
28
Implicações psicossociais: a notícia do câncer de mama
28
Aspectos da doença e do tratamento
32
A mastectomia e suas implicações: a mutilação
35
A (re)adaptação
40
A assistência após a cirurgia
43
Da detecção ao tratamento: o calvário das mulheres em Juiz de Fora
45
3 OBJETIVOS
48
4 REFERENCIAL TEÓRICO – CONCEITUAL
49
4.1 OS CONCEITOS ADOTADOS
49
4.1.1 Gênero: o conceito
49
4.1.2 O corpo feminino como espaço de controle
55
A mama
56
ix
4.1.3 A medicalização do corpo feminino
58
5 ASPECTOS METODOLÓGICOS
62
5.1 DISCUSSÃO METODOLÓGICA
62
O comprometimento da pesquisadora
62
Abordagem qualitativa
63
5.2 TRABALHO DE CAMPO
64
5.2.1 O cenário
64
5.2.2 O instrumento
67
5.2.3 Os sujeitos
70
5.2.4 A construção do conteúdo
72
5.2.5 Análise e interpretação do conteúdo
75
5.2.6 Aspectos éticos da pesquisa
76
6 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS EMPÍRICOS
77
Impressão da entrevistadora: a emoção na pesquisa
77
6.1 PERFIL DAS ENTREVISTADAS
78
6.2 REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
82
6.3 REPRESENTAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA DOENÇA E DO
TRATAMENTO
93
6.4 REPRESENTAÇÕES DO SERVIÇO DE SAÚDE/ASSISTÊNCIA
114
6.5 MOMENTO ATUAL E FUTURO
122
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
136
ANEXOS
143
ANEXO 1 - Roteiro para entrevista com as mulheres
144
ANEXO 2 - Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
146
ANEXO 3 - Perfil individual das mulheres entrevistadas
147
ANEXO 4 - Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética
ANEXO 5 - Carta de Aprovação para realização da pesquisa no DSM
1
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se propôs a analisar, numa perspectiva de gênero, a vivência de mulheres
sobre a mastectomia e suas percepções a respeito da assistência no âmbito de um serviço público
de saúde com o intuito de contribuir, em última análise, para a conquista de uma assistência à
saúde efetivamente integral, conforme preconiza o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher/PAISM1.
As inquietações a respeito deste tema surgiram da atividade profissional, como
fisioterapeuta e como docente, na assistência a mulheres mastectomizadas em um hospital-escola
de Juiz de Fora, Minas Gerais. A aproximação com estas mulheres ocorre em três momentos
específicos: as aulas práticas da disciplina, o Projeto de Extensão Universitária ‘DE PEITO
ABERTO: Programa de Prevenção e Acompanhamento Integrado no Câncer de Mama’ e o
‘Estágio Supervisionado de Fisioterapia em Atenção Primária à Saúde’.
O contato com a área da saúde da mulher iniciou-se em 1987 e, em 1997, a carreira
docente na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na disciplina Fisioterapia GinecoObstétrica, possibilitou uma atuação mais ampla e profunda nesta área. Em 1999, foi aberto um
espaço para um trabalho específico com as mulheres mastectomizadas nas aulas práticas da
disciplina em questão e também através do Projeto de Extensão supracitado. O Projeto tem uma
proposta de atuação integrada, contemplando as áreas de Enfermagem, Fisioterapia, Medicina,
Psicologia e Serviço Social. As ações são realizadas em vários momentos: no trabalho em grupo
chamado Grupo de Reabilitação Integral (GRI), e nos atendimentos específicos de cada área com
as mulheres. No GRI, são feitos quatro encontros com um grupo de aproximadamente dez
2
mulheres e profissionais de cada área. São realizadas diversas dinâmicas com o objetivo de
propiciar às mulheres um espaço de convivência, onde elas possam aprender mais sobre o câncer,
trocar experiências, tirar dúvidas, explorar seus medos e até responder a algumas de suas
expectativas em relação a possibilidades futuras, como a reconstrução mamária.
A fisioterapia ainda atende especificamente apenas mulheres que já tenham se submetido
à cirurgia de mastectomia, também em dois momentos: no atendimento individual e no trabalho
em grupo, onde são realizados exercícios terapêuticos para auxiliar na recuperação funcional das
pacientes. Este trabalho em grupo também tem o objetivo de integrar mulheres que têm
experiências semelhantes, servindo como estímulo para continuar o processo de reabilitação que,
por vezes, é lento e requer uma participação ativa delas.
Quanto à proposta de integração, ela está sendo construída a cada dia. Conforme a
necessidade, quinzenal ou semanalmente são realizadas reuniões com toda a equipe para estudar
temas relacionados ao assunto, discutir algum caso específico, as ações de cada área e do GRI,
levantar novas propostas do projeto, e até mesmo elaborar o conceito e discutir estratégias de
atuação da equipe de forma integrada. A atuação integrada não é simples: é um verdadeiro
aprendizado, onde a construção coletiva de um conceito e de uma prática que confronta com a
nossa formação, geralmente segmentada em disciplinas. Não aprendemos, em nossa formação, a
trabalharmos integradamente. Por isto, estamos tentando aprender e crescer no sentido de termos
este olhar mais ampliado e, assim, podermos oferecer um atendimento efetivamente integral e
com mais qualidade às mulheres.
Algumas questões surgem da assistência nestes três momentos (estágio, projeto e aulas),
quando, pelo contato tão próximo com estas mulheres, ouvimos depoimentos que mobilizam
1
O PAISM e suas concepções estão sendo apresentados e discutidos no capítulo 2.
3
nossos sentimentos e nos instigam a querer conhecer melhor a questão. Determinado pelo tempo
de atendimento prolongado e freqüente, bem como o fato do fisioterapeuta manusear
intensamente o corpo das usuárias, a relação estabelecida com elas geralmente é profunda; por
isto, elas compartilham conosco muitos de seus sofrimentos e angústias, alegrias e conquistas.
Em nossa prática, muitas vezes percebemos que, as mulheres são atendidas por
profissionais que aparentemente não dão importância a seus sentimentos, seus temores, suas
dúvidas, sua vergonha do “corpo mutilado”. Simões Barbosa (2001) interpreta esta suposta
neutralidade preconizada pelo modelo biomédico como uma estratégia de defesa dos
profissionais; porém, ao mesmo tempo em que tentam manter essa distância, têm um grau de
envolvimento que não é reconhecido pelo serviço, trazendo-lhes sofrimento. Após a cirurgia de
retirada da mama, também observamos que elas não recebem nenhum tipo de assistência que vise
contribuir, de alguma forma, para amenizar seu sofrimento e para auxiliar a (re)integração em sua
vida familiar e social, mesmo no seu cotidiano particular, agora com um novo corpo.
A relevância deste estudo encontra-se na alta incidência do câncer de mama no País e,
especialmente, na cidade onde está sendo proposta a pesquisa, o que provoca implicações físicas
e psicossociais que podem comprometer o cotidiano das mulheres por ele acometidas. Ainda,
porque poucos são os estudos qualitativos a respeito da doença, comparativamente à abundância
de estudos quantitativos e com enfoque biomédico. Menor ainda é o número de estudos a respeito
das mulheres mastectomizadas com enfoque de gênero, sendo que estudos sobre as repercussões
tardias desta cirurgia na vida das mulheres são ainda bastante raros.
Nesta pesquisa, apresentamos, no segundo capítulo, uma visão do contexto em que o
objeto de estudo está inserido, abordando a questão da saúde das mulheres pela ótica da
integralidade e problematizando as políticas públicas que vislumbram o corpo feminino
4
primordialmente enquanto corpo reprodutivo. Discutimos a questão do câncer como doença
estigmatizada e os tratamentos edificados sob o modelo biomédico. De acordo com Anyon
(1990), na assistência, isto é, na relação com os profissionais de saúde, as mulheres se utilizam de
estratégias de acomodação e resistência como forma de negociação e de defesa diante das
relações de opressão, o que desmistifica o mito da “passividade” feminina. Abordamos ainda
estudos que enfocam mulheres mastectomizadas, marcadas pela mutilação de uma parte do corpo
que traz em si uma representação (ambígua) do maternal, do sensual, de acordo com o modelo de
corpo feminino idealizado em nossa sociedade. A marca da retirada da mama, para além de uma
cicatriz física, interfere na vida das mulheres, em aspectos psicossociais que vão desde a
limitação de atividades diárias ao comprometimento de sua sexualidade e de sua vida social.
Contendo, o terceiro capítulo, os objetivos da pesquisa, no quarto debatemos o referencial
teórico-conceitual, esclarecendo os conceitos que iluminaram o olhar da pesquisa para a situação,
discorrendo sobre o gênero enquanto uma referência adotada, a medicalização do corpo das
mulheres e as relações de gênero impregnadas na assistência à sua saúde.
Já no quinto capítulo, descrevemos o percurso metodológico do estudo. Adotamos a
estratégia metodológica qualitativa estruturada na análise hermenêutica-dialética, visto que o
objetivo da pesquisa insere-se no campo da subjetividade, não sendo passível, portanto, de
quantificação. A pesquisa foi realizada em dois setores públicos de saúde - um Federal e outro
Municipal – da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, ambos referência de assistência à saúde na
região da Zona da Mata. No primeiro serviço, atuamos como docente na participação do Projeto
de Extensão supracitado. Como técnica de coleta das informações, realizamos entrevistas semiestruturadas com as mulheres. Os sujeitos da pesquisa foram mulheres submetidas à cirurgia de
5
retirada completa da mama para tratamento do câncer mamário, que se encontravam num período
de, no mínimo, um ano após a cirurgia, totalizando 12 entrevistas.
Para facilitar a apresentação e a análise dos dados empíricos, no sexto capítulo dividimos
os temas investigados em cinco grandes módulos: i) perfil das entrevistadas; ii) representações de
gênero; iii) representações sobre a história da doença e do tratamento; iv) representações do
serviço de saúde/assistência; v) momento atual e futuro. No intuito de propiciar um perfil das
mulheres que participaram da pesquisa, discutimos seus contextos de vida como o desenhar de
um pano de fundo, para adentrar nas discussões centrais, referentes às representações de gênero,
sobre o adoecimento, o tratamento e a assistência relativos ao câncer de mama. Foram exploradas
as representações de gênero, suas nuanças e contradições, a partir do tema ‘ser mulher’, para
iluminar suas apreensões sobre os demais temas. No terceiro módulo, abordamos a descoberta da
doença e seus tratamentos, sua reação diante do diagnóstico de uma doença envolta em mitos, e o
impacto prático da retirada da mama em suas vidas. Questionamos a relação com os profissionais
na perspectiva de gênero, enfocando os aspectos negativos e positivos da assistência prestada no
setor público de saúde, as oportunidades de expressarem seus sentimentos e a participação de
outros profissionais além do médico no seu tratamento e recuperação. Finalizando, atentamos
para o momento atual no qual elas estão vivendo, a percepção de seu corpo, sua readaptação,
como é seu cotidiano de vida e suas aspirações futuras.
E enfim, no sétimo capítulo, tecemos as considerações finais, numa reflexão sobre os
achados da pesquisa e sua importância como forma de instrumentalizar, posteriormente, os
profissionais de saúde na perspectiva da integralidade, reiterando a necessidade de
implementação do PAISM como um modelo de assistência integral à saúde das mulheres.
6
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO
2.1 PANORAMA DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE DAS MULHERES NO BRASIL
No Brasil, o movimento de reforma sanitária inspirou a inserção de uma seção sobre a
saúde na Constituição brasileira promulgada em 1988, dirigida à proteção social da população,
cooperando com as discussões sobre a saúde realizada pelo movimento feminino contemporâneo.
Até então a política de assistência à saúde das mulheres, restringia-se ao ciclo gravídicopuerperal. Outros programas destinados ao controle de patologias femininas não reprodutivas
eram desarticulados do foco central (binômio mãe-filho) e sem relação com as necessidades reais
identificadas por cada região, resultando em baixo impacto nos indicadores de saúde em função
de uma assistência compartimentada, desqualificada e, conseqüentemente, ineficaz (COSTA,
1999).
Na emergência do movimento feminista da década de 60, grupos de mulheres se
organizaram questionando o paradigma vigente, que toma a capacidade reprodutiva das mulheres
como base biológica para estabelecer as relações sociais, seus direitos e deveres, limitando sua
participação política e social. Através das trocas e reflexões das vivências das mulheres
realizadas nas práticas educativas em grupo, o feminismo alçou as mulheres enquanto sujeitos da
ação, surgindo, daí, as reivindicações com relação à assistência à saúde (XAVIER et al., 1989).
As reivindicações do movimento de mulheres, em meio ao contexto de re-democratização
do país, influenciaram a concepção de um programa governamental para a assistência à saúde das
mulheres baseado no princípio da integralidade e em práticas educativas horizontais e dialógicas.
7
Nesta concepção, os profissionais de saúde, junto às usuárias do serviço, são considerados
sujeitos no processo de reflexão a partir dos conceitos de gênero, de corpo e de poder (GIFFIN,
1995).
A criação e implantação do PAISM, em 1983, impregnado pela perspectiva feminista, foi
um marco na história das políticas públicas dirigidas às mulheres. Estruturado nos princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS), o programa “constituiu-se um conjunto de diretrizes e princípios
destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas faixas etárias, etnias ou
classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectáveis – incluindo as demandas
específicas do processo reprodutivo. Compreende, ainda, todo o conjunto de patologias e
situações que envolvam o controle do risco à saúde e ao bem-estar da população feminina”
(COSTA, 1999, p. 327).
Partindo do conceito de integralidade, o PAISM utilizou estratégias para desencadear a
conscientização e a participação das mulheres por meio de práticas educativas horizontalizadas
que estimulam as mulheres a se descobrirem, conquistarem sua cidadania, seus direitos
reprodutivos com objetivo de (re)apropriação de seus corpos e de sua própria saúde (COSTA,
1999).
Assim, o programa definiu novas estratégias na assistência integral à saúde da mulher,
transpondo os limites da antiga atenção materno-infantil através da oferta de ações educativas,
preventivas, de diagnóstico e de recuperação da saúde (OSIS, 1998).
Em sua proposta conceitual, o programa é considerado ideal. No entanto, vem enfrentando
alguns impasses em sua implementação. Silver (1999) descreve as dificuldades como
conseqüência de alguns fatores, entre eles o fato de que o sistema de saúde ainda segue um
8
modelo de especialização, a verticalização dos programas propostos e a precariedade da
organização e financiamento destes.
Simões Barbosa (2001) argumenta que o Estado brasileiro vem diminuindo drasticamente
os investimentos públicos em setores sociais, os quais ainda são centrados na assistência médica e
nos procedimentos de alto custo, refletindo, assim, na qualidade da assistência pública à saúde
que, além de sucateada, cada vez tem menos recursos materiais e profissionais para atender às
necessidades da população. Porém, o modelo preconizado pelo PAISM presume investimentos na
formação de recursos humanos, o que leva a autora a pensar que “um retrocesso neste sentido...
poderia estar contribuindo para um re-fortalecimento do modelo biomédico, reforçando posturas
limitadas e/ou discriminatórias para com as mulheres” (op. cit., p. 12).
Dentre os princípios do SUS, a perspectiva da eqüidade também teve destaque neste
programa. Entretanto, em função do conjunto de valores predominantes no País, o termo ganha
diferentes conotações ao longo do tempo e em distintas sociedades, e as desigualdades em saúde
continuam a refletir desigualdades sociais (ALMEIDA, 2000).
A reforma sanitária propiciou avanços inscritos na Constituição Brasileira de 1988. Mas,
no início dos anos 90, a reforma do Estado implementada no Brasil trouxe a tônica neoliberal,
com progressivo recuo das obrigações do Estado sobre a assistência à saúde (COSTA &
AQUINO, 2000).
Para Giffin (2002, p. 107), na ótica de gênero, as questões de eqüidade estão ligadas “à
escassez e dificuldades de acesso a serviços de saúde... e ao exagerado controle e medicalização
do corpo feminino”.
9
Além da eqüidade e da qualidade de vida, o perigo de transformação da saúde em objeto
de consumo também é uma preocupação ético-política na construção da saúde pública. A
multiplicação dos planos de saúde tem demonstrado o crescente investimento no setor privado,
trazendo um descaso com a saúde pública. A idéia de que o sistema privado é melhor que o
público tem sido veiculada, pois a saúde crescentemente se transforma em bem de consumo
altamente lucrativo. Não contexto atual de medicalização da saúde e de fragmentação no
atendimento às mulheres, de desenvolvimento de tecnologias avançadas e de aprofundamento de
uma sociedade de consumo, a própria saúde tornou-se um objeto regulado segundo os interesses
do mercado (SILVER, 1999).
Paralelamente, é visível a deterioração generalizada dos serviços públicos de saúde, que
se mostram, por vezes, inoperantes.
Contudo, o PAISM não deve ser abandonado. Antes, como referência mundialmente
discutida, é uma proposta relevante e prioritária para a promoção de um atendimento integral, de
boa qualidade e eficaz nas ações que visam à saúde das mulheres (OSIS, 1998). Devemos, assim,
persistir na luta por sua efetiva implementação em sua totalidade.
Mercantilização da saúde feminina
No estudo da evolução dos indicadores de saúde das mulheres no Brasil, emerge uma
mistura de satisfação e amargura, pois, apesar do declínio da mortalidade materna e outras causas
evitáveis, os níveis atuais ainda estão aquém daqueles de outros países com grau de
desenvolvimento socioeconômico semelhante. Frente a esta constatação, Silver (1999, p. 306)
10
afirma que “o preço das enormes iniqüidades da sociedade brasileira é pago anualmente em vidas
humanas”.
Neste contexto, observamos o que Giffin (2002) chama de “modernidade perversa”,
retratando o lado perverso da modernização (tecnologia) contrastando com situações
condicionadas por fatores como a pobreza e falta de cidadania. As mulheres de baixa renda, por
exemplo, nunca puderam, de fato, realizar livremente suas escolhas reprodutivas. E acabaram por
entrar em um ciclo perverso que inclui a alta morbi-mortalidade por abortos provocados,
realizados em condições precárias, ou pelas altas taxas de esterilização cirúrgica e de cesarianas
desnecessárias (uma das mais altas do mundo), entre outros indicadores.
De acordo com Simões Barbosa (2001), os dados de mortalidade materna no Brasil nos
equiparam aos países mais pobres da América Latina. Como este é um “indicador sensível de
desigualdades no acesso a serviços de saúde de qualidade, e sendo o País um dos mais equipados,
no continente, em termos de rede assistencial com alta resolutividade tecnológica” (op. cit., p. 8),
observamos que a saúde reprodutiva das mulheres brasileiras anda muito distante dos índices
idealizados nos documentos internacionais. E, a despeito de duas décadas de definição do
PAISM, o quadro real de saúde reprodutiva continua se agravando.
Neste contexto de medicalização, as mulheres, são alvo de grandes indústrias (desde a de
cosméticos até a farmacêutica), tornando-se objeto permanente de consumo de bens e serviços.
Desde a infância até a velhice, em especial na idade reprodutiva (conseqüência da fragmentação
do atendimento), as mulheres são vislumbradas como consumidoras, nas quais o mercado está
investindo.
É o caso das pílulas anticoncepcionais e da Terapia de Reposição Hormonal (TRH) –
importantes fontes de lucro para a indústria farmacêutica multinacional – cujo uso é
11
indiscriminado e seus efeitos colaterais ainda debatidos, inclusive no caso de doenças como o
câncer de mama (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Assim como estes, muitos “produtos ou serviços que, embora ofereçam benefícios reais
para algum grupo de mulheres, são promovidos de forma a expor grande número de usuárias a
riscos desnecessários” (SILVER, 1999, p. 310).
A expansão da tecnologia médica promete a solução dos problemas de saúde na
medicalização do ‘feminino social’, sem a consciência das contradições inerentes a esta, pois o
que se faz eficaz para resolver alguns transtornos pode ter conseqüências negativas para a saúde
(VIEIRA, 1999).
O câncer enquanto um problema de Saúde Pública
Conforme Silver (!999) e Giffin (2002), a ênfase na saúde reprodutiva representa um
retrocesso no que diz respeito à proposta de integralidade do PAISM, deixando à margem os
problemas de ordem não reprodutiva - nos quais se inclui o câncer de mama - que são agravados
pela falta de investimentos.
A transição epidemiológica ocasionada pela urbanização e a industrialização, pela redução
dos óbitos por doenças infecciosas e parasitárias em função dos avanços da tecnologia médica,
com conseqüente aumento na expectativa de vida dos brasileiros, fez aumentar a incidência e os
óbitos por patologias crônico-degenerativas. (GADELHA et al., 1992; ROCHA et al., 2000).
Dentre elas, destacamos as doenças do aparelho circulatório como primeira causa de
morte a nível mundial, seguida pelo câncer que atinge cerca de dez milhões de novos casos por
ano, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2005).
12
No Brasil, o quadro não é diferente. As doenças do aparelho circulatório representam a
principal causa de morte (32%) e em todas as regiões, seguidas pelas causas externas (15%) e
neoplasias (15%), segundo dados do INCA (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). Apesar de sua
crescente incidência, os parcos recursos investidos no controle da doença retardam o diagnóstico
e o início do tratamento, trazendo prejuízos irreversíveis, entre os quais a morte precoce.
Segundo Kligerman (2002b), as discussões sobre a importância crescente do câncer não
são recentes. Desde os anos 30, configura-se como um problema de saúde pública de dimensões
nacionais e, a cada ano que passa, se consolida como tal.
Entre as mulheres, as principais neoplasias, segundo incidência e mortalidade, são as
ginecológicas (FAERSTEIN et al., 1989). Os investimentos no diagnóstico precoce e no
tratamento do câncer de colo uterino, realizados na década de 90, diminuíram seus índices,
deixando o câncer de mama na ponta das estatísticas dos tipos de câncer que mais atingem as
mulheres (KLIGERMAN, 2002a), conforme podemos observar na tabela 1.
TABELA 1
FONTE: INCA (Ministério da Saúde, 2002)
13
Em diversos tipos de neoplasias, os diagnósticos são dados nas fases avançadas, quando
os recursos terapêuticos já são utilizados com finalidade paliativa, reforçando a convicção
popular de que “o câncer não tem cura” (GADELHA et al., 1992, p. 43).
Segundo Gadelha et al. (1992), a despeito da incorporação da tecnologia à prática médica,
os índices de mortalidade por câncer no Brasil continuam aumentando progressivamente.
Somando-se a isto, o acesso aos serviços de saúde, que não são garantidos para toda a população,
geram contrastes na atenção prestada entre os indivíduos ou entre populações de diversas regiões.
Para Rocha et al. (2000), estes fatores mostram a necessidade de um olhar diferenciado
para a população feminina que, na prestação de assistência à saúde, contemple todos os aspectos:
biológicos, psicológicos, sociais e de gênero.
O estigma da doença
Apesar dos avanços da tecnologia para diagnóstico e tratamento, ainda hoje o câncer
remete à idéia de punição, de castigo associado ao pecado. Ou, mais que isto, é considerado a
própria morte (SONTAG, 1984).
Nesta perspectiva, percebemos dificuldades, principalmente por parte dos profissionais de
saúde, em falar abertamente com as mulheres sobre a doença, seja por uma questão de conduta
ligada às relações de gênero, pelo estigma que cerca a doença ou por ambos. Conforme Sousa
(1998), o silêncio sobre o câncer é expressão da rejeição à morte e de sua percepção como algo
repugnante.
O câncer era tido como uma doença da classe média, por conta das dietas ricas em
gordura e pela industrialização dos alimentos. Em diversos períodos da humanidade, surgem
14
descrições a respeito do câncer como uma doença lenta, silenciosa, que se espalha, se prolifera,
consome e destrói o corpo, degenerando-o e trazendo um aspecto de palidez ao doente, seguido
de náusea e perda de apetite, emagrecimento e dores. Somando-se a isto, traz o medo da
mutilação e da morte, referida como “humilhante” e “horrível” (SONTAG, 1984). Pode atingir
órgãos considerados hierarquicamente inferiores, como a próstata, a mama, o cólon, o que, por
ser escondido pelas pessoas acometidas, dificulta mais ainda sua identificação.
Sontag (1984) cita que uma série de pesquisadores vem reforçando a teoria sobre as
causas emocionais do câncer relacionadas a sentimentos de depressão, insatisfação e/ou perda de
parentes ou amigos íntimos. Por outro lado, a autora destaca que muitas pessoas que não têm
câncer também declaram ter passado por emoções depressivas, perdas e traumas.
Se considerarmos que a doença é multicausal, como defender que os fatores emocionais
seriam desencadeadores de uma neoplasia? Como apontar que as pessoas que tem depressão são
candidatos ao câncer? Não seria como determinar, de forma positivista, que a pessoa tem que ser
feliz, se não ela pode ter câncer? Ou seja, como ela não teve a capacidade de ser feliz, ficou
doente?
A análise do binômio saúde-doença que vem sendo feita por antropólogos também critica
esta visão das causas emocionais por entender que ela exclui uma série de variáveis culturais,
econômicas, políticas e sociais que interferem no processo de adoecimento (SOUSA, 1998).
Objeto de inúmeras pesquisas para comprovar sua(s) causa(s), a correlação com diversos
mitos se faz intensa e perdura até os tempos atuais. O câncer tem sido relacionado ao
“retraimento emocional e à falta de autoconfiança e de confiança no futuro”, assim como aos
sentimentos de isolamento e solidão, típicos das sociedades contemporâneas altamente
urbanizadas e com um padrão de vida individualista, como considera Sontag (1984, p. 70).
15
Suscitar causas psicológicas parece ser uma forma de explicar a doença e uma tentativa de
diminuir a angústia das pessoas a respeito da morte, mas a autora advoga que “as teorias
psicológicas são um meio poderoso de pôr a culpa no doente” (op. cit., p. 73), responsabilizandoo por sua “infelicidade”.
Enquanto os mitos sobre o câncer se modificam, permanece a obscuridade a respeito da
doença. Há que se ter o cuidado de não repetir a idéia de que ‘a vítima é o culpado’. Em outro
dizer, deve-se tomar cuidado para não generalizar fatores isolados para todas as pessoas, na
tentativa de enquadrá-las em um padrão de normalidade e normatização, como menciona
Canguilhem (1979). Isto é característico do modelo biomédico hegemônico, que tenta ajustar
cada situação como parte de um universo, esquecendo-se da complexidade do humano e das
particularidades de cada indivíduo, que pode responder diferentemente a situações semelhantes.
Entretanto, não podemos esquecer que, no processo de adoecimento, existem causas sociais que
são comuns a todos, podendo atingir os indivíduos semelhantemente, pelo menos certas
comunidades, classes sociais e gêneros.
Para Sontag (1984, p. 79), embora aceito como doença multicausal, “todos reconhecem o
câncer como um enigma”. Doenças com estas características (multicausais e enigmáticas)
geralmente são associadas à desordem social ou moral, ao que é cruel e destruidor. A própria
linguagem adotada na descrição do câncer exemplifica esta metáfora. É descrito como um
crescimento anormal e desordenado de células que se diferenciam das consideradas células
normais, isto é, daquelas que seguem um padrão de normalidade, como “um insulto à ordem
natural” (op. cit., p. 87). Da mesma forma que o comportamento humano não desejado, aquele
que ‘foge à regra’, as células cancerígenas são combatidas, na busca da ordem, da disciplina, da
normatização.
16
O tratamento está impregnado de uma linguagem militar que, preconizando a ordem e a
manutenção das regras, expressa uma “guerra” contra a doença. Refere, ainda, a autora (ibid., p.
83): “a radioterapia usa as metáforas da guerra aérea: os pacientes são ‘bombardeados’ com os
raios tóxicos. E a quimioterapia é a guerra química, usando venenos”.
Visando o tratamento racional, a medicina ocidental, pautada no modelo biomédico que
concebe as doenças como entidades biológicas universais, intervém nas estruturas doentes para
‘combater o inimigo’ (GOMES et al., 2002).
Entretanto, como argumentam diversos pesquisadores (BOFF, 1999; BITTENCOURT,
2000; DUARTE, 2001; LIMA, 2002), a vida envolve diferentes possibilidades de existência, não
se restringindo a uma estrutura física.
A discussão apresentada não se refere ao tratamento da doença em si, mas ao contexto
militarizado em que o modelo biomédico trabalha, às expressões utilizadas como se o(s)
agente(s) causador(es) e o próprio câncer fossem entidades objetivas, um inimigo concreto.
A compreensão da teia de significados que envolve o câncer é uma condição importante
para o desmonte dessas representações, tabus e metáforas, na busca para lidar com a doença
como algo passível de ser controlado (GOMES et al., 2002).
17
2.2 CÂNCER DE MAMA E MODELO BIOMÉDICO: IMPLICAÇÕES DE GÊNERO
2.2.1 Câncer de mama no Brasil: um problema de saúde pública
Dentre as neoplasias malignas, o câncer de mama tem sido o responsável pelos maiores
índices de mortalidade do mundo, tornando-se uma das grandes preocupações em saúde pública
(DUARTE, 2001).
Já na década de 70, era o tipo de câncer mais freqüente nos estados de São Paulo, Rio
Grande do Sul e Fortaleza, ocupando a segunda posição em Recife (FAERSTEIN et al., 1989). E,
em 1986, já era a principal causa de morte nas regiões Sul e Sudeste do País, demonstrando a
inexpressividade de sua prevenção (GADELHA et al., 1992). Esta situação se mantém até os dias
atuais.
De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (INCA), devido ao aumento do número de
diagnósticos e à melhoria da informação nos atestados de óbito, nas duas últimas décadas
observou-se um crescimento considerável da taxa de mortalidade por câncer de mama entre
mulheres: de 1979 a 2000, passou de 5,77/100.000 a 9,74/100.000, correspondendo a uma
variação percentual relativa de mais de 68%. No ano de 2003, para o estado de Minas Gerais,
estima-se taxas brutas de mortalidade e incidência de 10,40/100.000 e 46,35/100.000,
respectivamente (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Segundo dados do INCA, o câncer de mama é o tipo de câncer que mais causa mortes
entre as mulheres no Brasil, principalmente na faixa etária entre 40 e 69 anos. É provavelmente o
mais temido entre os cânceres devido à sua incidência e aos seus efeitos psicológicos, que afetam
a percepção da sexualidade e a própria imagem pessoal da mulher (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
18
2002). Além de individual, a percepção da sexualidade e a imagem corporal são perpassadas
pelas representações sociais da feminilidade. A possibilidade de um câncer de mama assusta as
mulheres pela perspectiva da perda da mama, da mutilação e pelo medo da morte.
Em Juiz de Fora, Minas Gerais, segundo dados fornecidos pelo Sistema de Informações
de Mortalidade da Secretaria Municipal de Saúde (SIM/SMS/JF, 2001), a taxa de mortalidade por
câncer de mama, em 2002, foi de 15,59/100.000, maior que a taxa nacional. A Tabela 2 mostra
que esta cidade teve uma taxa de mortalidade maior que a de outros tipos de câncer, sendo,
inclusive, quase três vezes a taxa de mortalidade por câncer de colo de útero.
TABELA 2
Núm ero de óbitos por câncer, sexo fem inino, segundo localização - Juiz de Fora 2002
Outras localizações
44
Mama
41
Fígado e vias biliares
25
Sem loc al. Definida
20
Pânc reas
18
Colo do útero
15
estômago
15
Cólon
13
Leucemias
12
pulmão
12
Reto
12
O vário
7
Linfomas
6
Encéfalo
6
Útero
6
boca e faringe
6
0
5
10
15
20
25
nº absoluto
Fonte: SIM/DEP/GPV/DSSDA/JF
30
35
40
45
50
19
Um dos fatores que contribuem para a alta mortalidade é o avançado estadiamento2 da
doença no momento em que as mulheres são submetidas ao primeiro tratamento. Apesar desta
neoplasia poder apresentar um bom prognóstico, se diagnosticada e tratada oportunamente, as
taxas de mortalidade por câncer de mama continuam elevadas no Brasil (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2002).
Fatores de risco versus vulnerabilidade
As causas do câncer de mama são ainda desconhecidas. Pesquisas e estudos
epidemiológicos têm propiciado condições para se determinar com precisão os “grupos de alto
risco”. Dentre os fatores que parecem desempenhar papel importante no surgimento do câncer
mamário, são relatados a hereditariedade, faixa etária, menarca precoce, menopausa tardia (após
os 50 anos), obesidade, tabagismo, etilismo, alimentação, radiações ionizantes antes dos 35 anos,
hormônios endógenos (do próprio corpo) e estrógenos exógenos (medicamentos e contraceptivos
orais) (CAMARGO & MARX, 2000; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Mais recentemente, alguns autores estão incluindo o estresse, os fatores ambientais e a
urbanização, devido às várias mudanças nos hábitos de vida introduzidas pelo processo de
industrialização que, aliados aos demais fatores, aumentam a probabilidade de desenvolver a
patologia.
Segundo Duarte (2001, p. 25), o Ministério de Saúde (BRASIL, 1997) adverte que, nas
regiões mais industrializadas, o aumento da incidência da doença ocorreu concomitante com a
entrada das mulheres no mercado de trabalho. Para ela, este fato resultou em “mudanças nas
2
Este processo, estadiamento, é uma forma de classificação de tumores malignos através de sua extensão anatômica
e dos órgãos acometidos. Está mais esclarecido no capítulo 2.2.2 (Câncer de mama: aspectos psicossociais, médico-
20
relações de gênero e, conseqüentemente, fez com que as mulheres assumissem hábitos e
costumes até então comuns aos homens”.
Em nossa pesquisa bibliográfica, esta foi uma das raras referências sobre a relação entre a
situação social das mulheres e o câncer de mama.
Conforme Giffin (2002), a despeito das conquistas que as mulheres alcançaram no campo
dos direitos, a “transição de gênero” nas sociedades ocidentais não alterou para melhor as
condições de vida das mulheres. A entrada das mulheres no mercado de trabalho sem uma
redivisão do trabalho doméstico ocasionou um acúmulo de funções que vem sobrecarregando-as
cada vez mais. Com o aprofundamento das desigualdades sociais, os homens estão sendo
destituídos de seus tradicionais papéis de provedores e cada vez mais mulheres tornam-se
responsáveis pela sobrevivência familiar. Obviamente, esta situação aumenta a vulnerabilidade
feminina, principalmente nas classes populares.
Embora muitas pesquisas venham sendo realizadas, são ainda poucas as que abordam a
vulnerabilidade feminina pela ótica de gênero. A maior parte da literatura fala sobre “grupos de
alto risco”. Quando se referem aos “fatores de risco”, o fazem como causas fundamentalmente
biológicas para o acometimento do câncer, desconsiderando os aspectos sociais, econômicos,
culturais e de gênero que interferem no adoecer, como postula o conceito de vulnerabilidade
discutido por Simões Barbosa (1999). A autora entende que a focalização na perspectiva
biológica da doença dificulta as estratégias de enfrentamento, pois propõe a utilização de
métodos de ‘prevenção’ e detecção precoce que se contrapõem às representações hegemônicas do
feminino, e estão em divergência com as propostas do PAISM.
assistenciais e terapêuticos).
21
Prevenção e detecção precoce
Conforme o Ministério da Saúde (2002), não há como prevenir primariamente o
aparecimento do câncer de mama, mas a detecção precoce (prevenção secundária) influencia
diretamente no prognóstico. O Manual de Condutas Médicas deste órgão governamental prevê a
detecção precoce através do fornecimento de informações às mulheres das formas de
diagnósticos disponíveis, da auto-palpação e da orientação para a realização periódica de
mamografias (BARROS & CARVALHO, 2001).
Segundo o INCA, devido à sua pouca eficácia em mulheres com menos de 40 anos e mais
de 70, a mamografia não deve ser utilizada em programas maciços e, sim, ser indicada no
acompanhamento das mulheres de ‘alto risco’ ou com suspeita de doenças mamárias
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). A literatura mais recente descreve a importância de uma
tríade de estratégias complementares entre si para a detecção precoce: o auto-exame das mamas
(AEM), o exame clínico das mamas (ECM) e a mamografia, que devem ser realizados:
Idade
AEM
ECM
Mamografia
acima de 35 com
suspeita
mensal
pelo menos a cada 2 anos
pelo menos a cada 2
anos
35 a 39 com suspeita mensal
pelo menos a cada 2 anos
só se houver
40 a 49 anos
mensal
Anual
só se houver
50 anos ou mais
mensal
1 a 2 vezes por ano
só se houver
Fonte: INCA (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002)
22
Apesar disso, sabemos que o número reduzido de mamógrafos na rede pública não dar
conta da demanda da população e, agravando a situação, muitos exames são feitos sem
necessidade, diminuindo a oferta para as mulheres que precisariam realizá-lo com certa urgência
(GADELHA et al., 1992; SILVER, 1999; KLIGERMAN, 2002a).
Diante da impossibilidade de prevenção deste tipo de câncer, apesar dos aparatos
tecnológicos e dos conhecimentos científicos atuais, a detecção precoce ainda é a única
possibilidade de intervenção eficaz, advogam Koifman & Koifman (1999).
A despeito disto e de todas as campanhas realizadas, 60% dos casos ainda se apresenta
aos serviços de saúde em estágio avançado da doença (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Este é mais um caso da ‘modernidade perversa’ descrita por Giffin (2002). Segundo
Silver (1999), a comercialização da “pseudo-promoção” da saúde da mulher mostra a natureza
mercantilizada do uso da tecnologia médica e a perversidade do acesso ao seu consumo. A autora
observa que, no Rio de Janeiro, onde milhares de mulheres com câncer de mama não conseguem
ter acesso à detecção e tratamento adequados, promove-se a mamografia para mulheres abastadas
jovens, apesar de saber-se da pouca necessidade na grande maioria destes casos. Este panorama
representa a falta de preparação da classe médica para utilizar estas tecnologias de forma
apropriada não contexto de mercantilização da saúde. Gastam-se recursos inutilmente, sendo que
a superutilização do exame traz algum resultado, mas não o que se esperava; isto implica danos à
saúde - pelas doses de radiação extra - e/ou gastos de recursos adicionais. Como conseqüência, a
identificação tardia do câncer de mama gera altas taxas de morbi-mortalidade, causando
sofrimento às mulheres e oneração aos cofres públicos.
A respeito das campanhas desenvolvidas nos últimos anos, podemos dizer que as mesmas
responsabilizam, de certa forma, as mulheres pelo diagnóstico precoce do câncer de mama. Para a
23
prevenção da doença, as mulheres são orientadas a realizarem o AEM, como se o diagnóstico da
doença dependesse delas. Caso não o façam, ‘foram avisadas’. As mãos foram lavadas. Parte da
responsabilidade do setor saúde, profissionais e sistema, foi transferida para as mulheres.
Além disso, esta prática depara-se com um fator fundamental na representação do corpo
feminino: a mama. Como, então, realizar um exame que exige o toque de uma região do corpo
que simboliza tanto a maternidade (a pureza) quanto a sexualidade (o pecado)? É uma
contradição esperar que as mulheres ‘de boa família’ toquem suas mamas, região que as mulheres
foram ensinadas a não tocar, não conhecer, não olhar, não falar sobre ela; são as interdições
socialmente impostas às ‘boas moças’, às mães e esposas. Ou será este um ‘toque técnico’, como
é realizada a assistência à saúde das mulheres em geral?
E como será para as mulheres fazerem o auto-exame procurando algo que possa indicar a
presença de uma doença que representa a morte? Será que muitas mulheres não deixam de fazer o
auto-exame justamente por conta do medo? Este fator está sendo considerado nas campanhas e
nas intervenções médicas?
A eficácia do AEM vem sendo discutida por órgãos internacionais e alguns pesquisadores
nacionais advogam que, tendo em vista que a mortalidade permanece alta, esta estratégia não
deve ser descartada, mas sim integrada em um conjunto de ações para controle efetivo do câncer
de mama (SILVA, 1999).
Ainda há que se levar em conta que o exame clínico de palpação das mamas (ECM)
realizado na consulta médica para investigação de alguma alteração, é um exame que, por tocar
em uma região do corpo feminino que representa (subjetiva e objetivamente) a sexualidade,
invade a intimidade das mulheres, podendo provocar desconforto, constrangimento e vergonha.
24
Neste aspecto, o PAISM propõe relações interativas nas ações de intervenção técnica e na
educação que se dar nas trocas de saberes (técnico-científicos e práticos) por meio do diálogo
entre os sujeitos. No entanto, D’Oliveira & Schraiber (1999, p. 339) observaram que, no
transcorrer das intervenções, as trocas dialógicas podem se transformar em “instrumentais e
coisificadoras dos sujeitos, ou não”, servindo como espaço de reprodução das relações de gênero
e do poder médico ou de emancipação das mulheres. Um exemplo disto é o AEM, no qual os
profissionais “fazem um discurso acerca do corpo que estimula insistentemente o
autoconhecimento...”; “é ensinada também a fisiologia do aparelho reprodutivo feminino...”; “as
mulheres devem conhecer e tocar suas mamas...” (op. cit., p. 345). No dever de conhecer seu
corpo, o convite transforma-se em prescrição, reduzindo a emancipação e a liberdade decisória
das mulheres nos moldes técnicos. Além disso, as falas institucionais estão minadas de
diminutivos que infantilizam o discurso. Para uma parte das usuárias, o convite a olhar e tocar
seu corpo não é aceito. Elas desconfiam desta proposta “de cada um ser seu próprio médico”, que
não é vista como parte da experiência feminina (ou de ‘leigos’ da medicina), por esta “pretender
passar a responsabilidade de escolher o certo e o errado, o normal e o patológico, para as mãos do
próprio examinado” (op. cit., p. 345).
Para Bordo (1997, p. 37), nossos corpos figuram um “local de luta, onde temos de
trabalhar para manter nossas práticas diárias a serviço da resistência à dominação de gênero e não
a serviço da ‘docilidade’ e da normatização”, não processo de análise dos mecanismos de poder
que manipulam e moldam os corpos das mulheres, visando a possibilidade de transformações nas
relações de gênero.
Urge a necessidade de propostas e ações efetivas que observem a abordagem das mulheres
tendo em conta as questões de gênero imbricadas no contexto do câncer de mama e seu
25
enfrentamento, principalmente no que diz respeito ao corpo feminino e à sexualidade.
Compreender e discutir estes e outros conceitos que interferem na vida das mulheres é importante
se pretendemos ver as mulheres como ‘sujeitos integrais’, possibilitando-lhes uma reflexão
acerca de suas experiências e situações vividas na intenção de instrumentalizá-las para que
possam tomar suas decisões de acordo com suas necessidades e desejos.
Políticas públicas e campanhas para enfrentar o problema
Apesar de ser identificado como um problema de saúde pública desde a década de 30,
somente a partir de 1986 o Ministério da Saúde desenvolveu ações descentralizadas para
prevenção e controle do câncer de mama, reforçadas pela Constituição de 1988 e pela criação do
Sistema Único de Saúde (SUS). Novas diretrizes ampliaram tais ações e, através de decretos,
atribuiu-se ao INCA a assistência ao governo na formulação de uma Política Nacional de
Prevenção e Controle do Câncer, tendo como um dos objetivos a redução da mortalidade, o que
depende da capacidade de detectar precocemente a doença e tratá-la adequadamente.
Kligerman (2002a) cita alguns entraves que se opõem a este objetivo: os serviços de
assistência oncológica insuficientes, inadequados ou geograficamente mal distribuídos; a
desatualização técnico-científica; a incipiente informação sobre a epidemiologia da doença e a
reduzida quantidade e qualidade dos recursos humanos para lidar com a questão.
Em 1998, o Ministério da Saúde, através do INCA, lançou o projeto piloto denominado
‘Programa Viva Mulher’. Focando inicialmente o câncer de colo uterino e estabelecido
inicialmente em cinco capitais (Belém, Curitiba, Distrito Federal, Recife e Rio de Janeiro), o
programa expandiu-se em nível nacional (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
26
A partir de 1999, o Programa incorporou as ações de controle do câncer de mama,
passando a se chamar ‘Viva Mulher – Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do
Útero e de Mama’. Visando sistematizar o processo, foram acordadas as seguintes diretrizes:
articular uma rede nacional para controle do câncer (colo do útero e mama); motivar a mulher a
cuidar da sua saúde; reduzir a desigualdade de acesso da mulher à rede de saúde; melhorar a
qualidade de atendimento à mulher; aumentar a eficiência da rede de atenção ao câncer
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
O Programa Viva Mulher consiste no desenvolvimento de estratégias que reduzam a
mortalidade e as repercussões físicas, psíquicas e sociais do câncer de colo de útero e de mama.
Por meio de uma ação conjunta entre o Ministério da Saúde e todos os estados brasileiros, além
do Distrito Federal, a proposta é oferecer serviços de prevenção e detecção precoce em estágios
iniciais da doença, assim como tratamento e reabilitação em todo o território nacional.
Não obstante todas as investidas do Ministério da Saúde para controle das neoplasias
mamárias, a situação permanece crítica. As diretrizes propostas não foram totalmente
implementadas. Prova disto é o reduzido número de mamógrafos, na rede pública, em um país de
proporções continentais como é o Brasil. Foram adquiridos 50 mamógrafos e distribuídos pelos
26 estados e DF (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Podemos concluir que a maioria da população feminina, usuária dos serviços públicos, é
que sofre as conseqüências deste quadro de carências, acentuando a vulnerabilidade para a
doença, já que as mulheres com maior poder aquisitivo têm acesso a este e outros exames e
tratamentos através da rede privada de saúde.
Além dos problemas citados, outros tantos se interpõem no controle do câncer de mama,
como já discutido por diversos autores no presente capítulo: a retração dos investimentos na
27
saúde pública; a centralização destes investimentos no tratamento e nos procedimentos de alto
custo; o descaso com a saúde pública em detrimento dos setores privados de saúde; a falta de
acesso às informações e aos serviços de saúde; a exagerada medicalização e a fragmentação da
assistência à mulher, contra-argumentadas na proposta de integralidade do PAISM; a
desigualdade de acesso à oferta de tecnologia na atenção ao câncer de mama; a reduzida, e por
isto lenta, capacidade de diagnóstico, tratamento e reabilitação da rede pública de saúde; a
exclusão das questões de gênero e dos âmbitos sócio-econômico, político e cultural da
vulnerabilidade da população, tanto nas discussões e planejamento dos programas quanto nas
ações mais básicas implementadas nos serviços.
Gomes et al. (2002) fazem uma crítica às políticas propostas pelo Ministério da Saúde,
posto que focam basicamente as ações terapêuticas, predominantemente baseadas no modelo
biomédico.
Silver (1999) ressalta a importância de um enfoque centrado nos aspectos da qualidade da
assistência, para avaliar se este ato realmente contribui para a saúde da usuária do sistema ou se é
apenas um ato de ‘consumo simbólico’, ou seja, ações tão precárias que não têm efetividade na
contribuição para a saúde. Neste sentido, a autora refere que a avaliação dos serviços de saúde
pode ser ferramenta importante para transformação da assistência, pois fornece uma base de
informação para o controle social sobre o sistema de saúde. Para ela, estas informações são pouco
utilizadas pelos gestores ou para esse controle, mas é importante que o movimento de mulheres
se utilize delas para lutar pela melhoria do atendimento às mulheres.
Gomes et al. (2002) propõem que o foco das políticas seja ampliado para as práticas
preventivas que contemplem os aspectos simbólicos e os significados dos sujeitos, que são
delimitados por suas relações sociais.
28
Acreditamos que também devam ser problematizados os outros aspectos da vida das
mulheres envolvidos com o adoecimento, incluindo a sexualidade, o controle sobre o corpo
feminino, a ideologia3 médica, as relações de poder entre os sexos e as desigualdades sociais,
entre outros temas vislumbrados na proposta de integralidade do PAISM. Simões Barbosa
(2001), ao refletir sobre a complexidade do cenário de saúde que estamos vivendo, destaca a
necessidade de uma análise crítica para redefinição das políticas de saúde e para transformar a
situação das mulheres no campo da saúde e dos direitos sociais, inclusive os direitos
reprodutivos.
2.2.2 ASPECTOS PSICOSSOCIAIS, MÉDICO-ASSISTENCIAIS E TERAPÊUTICOS
Implicações psicossociais: a notícia do câncer de mama
A estrutura social na qual a medicina está inserida torna difícil a comunicação do
diagnóstico e do tratamento do câncer, visto que é uma doença envolvida por representações,
simbolismos e metáforas. Acrescido a isto, alguns médicos acreditam que reter a informação do
adoecimento por câncer poderá minimizar a ansiedade das pacientes. No entanto, existem
evidências de que o medo e a ansiedade surgem a partir da obscuridade do conhecimento. Ignorar
estes sentimentos não faz com que o problema desapareça. Pelo contrário, as informações sobre a
doença são importantes para que o indivíduo possa adotar estratégias de enfrentamento
realísticas. Do ponto de vista ideológico, a restrição no fornecimento de informações cumpre o
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A partir da perspectiva adotada por Simões Barbosa (2001), ideologia é entendida aqui como uma forma de
ocultamento ou repressão dos conflitos sociais, dos aspectos importantes da realidade, das visões sociais; é a
naturalização dos acontecimentos rotineiros da vida, que cria a sensação de que o mundo está dado, de fora, estando
qualquer mudança fora do alcance das investidas individuais e coletivas.
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objetivo de manutenção da concordância e conformidade incondicional das mulheres. Possuindo
mais informações (mais saber), elas terão mais poder de questionamento e maior grau de
exigência (SOUSA, 1998).
Quanto menos saber, menos poder (de questionamento), maior comodidade para o
médico, pois o incomoda a interrogação sobre suas condutas e decisões. É uma afronta ao seu
saber legitimado e, portanto, ao seu poder, já que a ele – e somente a ele – foi delegada a função e
o poder de tratar os problemas de saúde. Sendo a relação médico-paciente também uma relação
de classe – e por isso uma relação assimétrica e de dependência – as decisões e os atos médicos
se modificam de acordo com a classe social do indivíduo (BOLTANSKY, 1989). Se por acaso
encontra resistência, o médico geralmente se utiliza de medidas de coação, através do enunciado
de perdas e danos decorrentes da desobediência, principalmente em se referindo às classes
populares.
São as conseqüências da ciência dita objetiva, que não aceita a subjetividade do ser
humano, não lida com sentimentos, julga-se imparcial, pois não pode se envolver com o paciente,
foca sua preocupação e ação na doença de um indivíduo fragmentado em órgãos e sistemas,
ficando aquém da complexidade das problemáticas que afetam os seres humanos. Numa certa
contradição, esta mesma ciência envolve o indivíduo em seu tratamento no momento de informar
as orientações médicas que ele terá que realizar sendo que, se não o fizer, será responsabilizado
pelo fracasso do tratamento.
Ademais, o câncer de mama feminino é uma patologia que, para a mulher, além do
estigma – a “doença maldita” – se traduz em muito sofrimento psicofísico. Tratar deste tema é
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tocar não estigma. Não só do ponto de vista do câncer, mas em relação às representações
(contraditórias) da mama na sociedade ocidental.
Para melhor compreender as mulheres diante do diagnóstico de câncer de mama,
definindo-se a intervenção adequada, faz-se necessário entender o adoecer como um processo
amplo e complexo que envolve uma série de fatores sociais, culturais, emocionais, fisiológicos e
de gênero, relacionados à história de vida e aos significados simbólicos da doença.
As representações do câncer remetem à dor, à morte, a uma doença cruel, contagiosa,
misteriosa, insidiosa, estigmatizada e degradante, que cresce e corrói, que consome o indivíduo,
que transforma a vida das pessoas acometidas, sendo considerada, muitas vezes, um castigo de
Deus (SONTAG, 1984; DUARTE, 2001; GOMES et al., 2002; LIMA, 2002).
A descoberta de um nódulo na mama provoca uma reação emocional intensa nas
mulheres, e é visto como uma ameaça para elas e suas famílias em todos os níveis de suas vidas.
A dinâmica familiar é alterada por ocasião da doença e vários medos começam a fazer parte do
cotidiano.
Acrescido a isto, as dificuldades que o setor público de saúde enfrenta - descritas
anteriormente - acarretam uma lentidão no diagnóstico preciso da malignidade da doença. Da
confirmação do diagnóstico até a cirurgia, há um período que, por menor que seja, gera uma
ansiedade frente à suspeita da doença e obscuridade do diagnóstico, pela possibilidade da morte
como mito presente no imaginário social.
Nascimento-Schulze (1997) cita que a notícia do diagnóstico pode levar as mulheres à
depressão, à perda da auto-estima e a outras emoções negativas. Identifica, assim, a necessidade
de se criar uma forma de enfrentamento para esta situação.
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Neste contexto, Lima (2002) defende que as mulheres devem ter a compreensão da
doença e seu prognóstico. Revela que, muitas vezes, esta compreensão ampara-se na religião,
justificando o adoecer como necessário para a purgação dos pecados. Destaca que experiências
prévias em relação ao câncer, através do contato com parentes ou amigos, fazem parte da
tentativa de dar sentido à nova situação que se apresenta. Para isto, a mulher lança mão das
informações as quais teve acesso ao longo da sua vida e da sua subjetividade.
Ainda neste processo de compreensão, Boltansky (1989) diz que as representações da
doença são construídas também a partir de uma re-interpretação de fragmentos retirados do
discurso médico.
Para que ocorra o processo de compreensão deste tratamento, considerando a mastectomia
como uma experiência nunca antes vivida, a mulher necessita (re)elaborar novas traduções para
seu novo corpo - agora marcado pele retirada da mama - e criar uma nova forma de convivência
com o seu corpo, consigo e com os outros (LIMA, 2002).
Gomes et al. (2002) referem que, no enfrentamento da situação, as mulheres expressam
um movimento de (re)organização das suas relações sociais, seja com os familiares, amigos e
profissionais de saúde, enfim, com a rede de pessoas que estão ao seu redor.
Dentre os conflitos emocionais desencadeados pela notícia do diagnóstico, o medo da
morte e a perda da mama se fazem presentes, representando uma ameaça constante. Assim, a
sobrevivência passa a ser a grande preocupação das mulheres e, somente após o afastamento da
possibilidade de morte, a mutilação emerge como preocupação maior, associada ao medo dos
efeitos do tratamento, do estigma, da rejeição e da recidiva do câncer (BOFF, 1999; DUARTE,
2001).
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No que tange à sexualidade, Moraes (1996) refere que os abalos emocionais, a
insegurança e a depressão levam a uma diminuição do desejo sexual.
Também se faz presente a preocupação com as possibilidades financeiras de realizar o
tratamento, na expectativa de que, se tivessem melhores condições econômicas, não precisariam
esperar tanto pela cirurgia, minimizando a mutilação e as demais conseqüências do câncer
(DUARTE, 2001).
Gomes et al. (2002) defendem que a possibilidade de uma doença na mama compromete a
construção social da identidade feminina nas representações simbólicas desta parte do corpo das
mulheres. Indicam que, por conta de toda a problemática que envolve o câncer, a discussão a
respeito desta doença não pode ser restrita somente aos aspectos da clínica médica, devendo
contemplar os desdobramentos sociais que seguem sua descoberta.
Aspectos da doença e do tratamento
As células do nosso corpo estão constantemente se reproduzindo, havendo o crescimento
e a renovação das mesmas ao longo da vida. Porém, em determinadas ocasiões e por razões ainda
desconhecidas, certas células reproduzem-se com uma velocidade maior, não crescimento
desordenado, desencadeando o aparecimento das neoplasias (ou tumores). Elas têm a capacidade
de migrar e se desenvolver em outras partes do corpo, fenômeno denominado metástase
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
O câncer de mama geralmente se apresenta como um nódulo e as metástases comumente
aparecem nos gânglios linfáticos das axilas. O nódulo pode atingir um centímetro de diâmetro em
aproximadamente seis a oito anos. Se as mamas forem examinadas periodicamente, a lenta
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evolução da doença possibilita a descoberta precoce destas lesões. Após este tamanho, ele pode
aumentar para dois centímetros não período de um a dois anos, continuando a crescer numa
evolução rápida, o que demonstra a importância do diagnóstico precoce para evitar tratamentos
mais agressivos ou a disseminação da doença e, conseqüentemente, a morte.
Vários exames são utilizados na investigação diagnóstica, sendo os principais a
mamografia e o ultra-som mamário, seguidos pela a citologia oncótica e a biópsia do nódulo. A
mamografia permite identificar as alterações ou sinais de malignidade na mama mesmo quando
ainda não perceptíveis ao exame clínico; é mais nítida após os 40 anos, pois a mama perde tecido
adiposo, o que facilita a observação de alguma alteração. Este exame serve como um
complemento para o exame clínico.
O ultra-som mamário complementa a mamografia
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
A escolha do tratamento mais adequado depende principalmente do estadiamento da
doença, ou sistema TNM, que se refere ao tamanho do tumor primário (T), à ausência ou presença
e a extensão das metástases nos linfonodos regionais (N), e à ausência ou presença de metástases
(M). De acordo com o tamanho do tumor maligno, a presença ou não de metástases nas regiões
próximas ou outros órgãos, o tumor é classificado em sua malignidade, permitindo aos médicos
traçar prognósticos, planejar e comparar tratamentos, e avaliar os casos e os resultados dos
tratamentos, utilizando-se de uma linguagem mundial para normatização das ações contra o
câncer e contribuição para pesquisas contínuas sobre a doença. Existem várias modalidades de
abordagem cirúrgica, que vão desde apenas a retirada da lesão através de uma pequena cirurgia
(biópsia) até a mastectomia (retirada da mama e musculatura adjacente), acompanhada de
esvaziamento axilar radical (retirada dos gânglios linfáticos para investigar metástases)
(CAMARGO & MARX, 2000).
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A mastectomia surgiu no século XVI, mas trazia muitas complicações para as pacientes.
No final do séc. XIX, as cirurgias ainda eram agressivas e deformantes; eram chamadas
mastectomias radicais, descritas primeiramente por Halsted, em 1894. Com a evolução das
técnicas cirúrgicas nos últimos 20 anos, tornaram-se menos radicais procurando preservar parte
da musculatura e reduzir suas complicações. Apesar de todos estes avanços, a cirurgia de retirada
da mama ou parte dela ainda traz profundas repercussões físicas e psicossociais. Ainda mutilam,
deformam e agridem as mulheres e seus corpos:
A expectativa da mutilação desencadeia reações emocionais tão intensas que
poderiam ser comparadas à fantasia de morte, questionando-se até que ponto
vale a pena o preço dessa cura, que deixa uma deformidade física tão grande e
marcas psicológicas tão profundas. Quando um cirurgião trata de uma mulher
portadora de câncer, no caso, de mama, ele está, sem dúvida, preservando-lhe
definitiva ou temporariamente a vida. Contudo, a vida implica suas diversas
possibilidades de existência e não exclusivamente um funcionamento físicomecânico (BOFF, 1999, p. 08).
Encerrada a etapa cirúrgica, o médico decide o tipo de terapia necessária a seguir:
radioterapia, quimioterapia e/ou hormonioterapia. Geralmente, são tratamentos que não
necessitam de internação hospitalar e podem ser realizados de forma combinada.
Além da mutilação causada pela cirurgia, os tratamentos complementares também trazem
agressões ao corpo das mulheres. Os efeitos colaterais são respectivamente: irritações ou leves
queimaduras na pele (radiodermite), inflamações das mucosas, queda de cabelo nas áreas
irradiadas e diminuição nas contagens de células do sangue; queda na produção das células do
sangue, deixando a paciente menos disposta às atividades físicas e suscetível a infecções e
sangramentos durante grande parte do tratamento, queda do cabelo e inflamações do trato
digestivo associadas a aftas ou diarréia; alterações na córnea, neurite óptica, retinopatia,
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sangramento vaginal, retenção hídrica, irregularidade menstrual e outras alterações semelhantes
ao período da menopausa (CAMARGO & MARX, 2000; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
Desta forma, com o objetivo de “combater a doença”, o corpo é “bombardeado” por
terapêuticas que “matam” as células cancerígenas, mas com comprometimento das células
normais (SONTAG, 1984). Neste contexto militarizado, vale qualquer forma de tratamento para
acabar com ‘o inimigo’, mesmo que os recursos utilizados para isto possam ser danosos para as
mulheres.
Neste sentido, percebemos que o olhar da ciência médica restrito ao âmbito biológico
exclui os demais aspectos que circundam a situação das mulheres com câncer de mama, desde a
notícia de uma doença envolta em mitos e tabus, até uma cirurgia que mutila e tratamentos
agressivos que modificam seu corpo, interferem em sua identidade e em suas vidas, trazendo-lhes
grande sofrimento e a seus familiares. Por isso, reiteramos a importância de uma abordagem
integral às mulheres portadoras da doença, como já discutido.
A mastectomia e suas implicações: a mutilação
O câncer de mama não envolve somente a questão da representação social da doença em
si, mas também a representação do corpo feminino. Em função de suas diversas representações, a
perda de um pedaço do corpo (traduzido como “mutilação” da mama por diversos autores) é
traumatizante para a maioria das mulheres. Sendo uma região visível, para que não seja percebida
sua falta, é necessário escondê-la de alguma forma, seja no sentido físico (prótese mamária) ou
emocional (restringindo o convívio social).
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Em sua pesquisa a respeito da construção do significado da recorrência do câncer de
mama, Almeida et al. (2001) descrevem que, no discurso das mulheres, foi constatado o
sentimento de mutilação pela retirada da mama que, tendo um significado social e individual,
traduz a fragmentação da identidade feminina e a conseqüente modificação da imagem corporal
das mulheres.
A perda também se relaciona aos efeitos dos tratamentos coadjuvantes, “que afetam
significativamente o corpo e suas marcas femininas como a perda dos cabelos, por exemplo”
(LIMA, 2002, p. 76).
Em sua prática profissional, Almeida (2002, p. 22) percebeu que, após a cirurgia de
mastectomia, a mulher “fica sem referência, sem apoio por parte dos profissionais, como se após
a cirurgia, sanasse o problema”. Esta percepção de tratamento é impregnada pelo modelo
biomédico.
Neste, a preocupação com a ‘vida da mulher’ é restrita ao biológico, não à vida humana
enquanto complexidade e nem à mulher enquanto sujeito. Como expõem alguns autores
(CANGUILHEM, 1979; BOFF, 1999), a vida não se limita somente a este, mas a um conjunto de
aspectos que se interligam de formas complexas.
No contexto histórico atual de uma sociedade que assume padrões de beleza que
valorizam o aumento das mamas através de cirurgias plásticas, as mulheres mastectomizadas
diferem desses ideais. Então, onde elas se encaixariam, se considerarmos que o modelo
biomédico estabelece regras e normas para enquadrar as pessoas em um padrão de normalidade?
Poderíamos dizer que estas mulheres são anormais ou patológicas? Mas o câncer já não foi
curado? E como estarão estas mulheres ‘curadas do câncer’, mas convivendo com um corpo
mutilado?
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Canguilhem (1979) e outros tantos autores, discutem o conceito de cura enquadrado no
modelo biomédico, reduzido a um olhar biológico. Segundo este autor, “curar, apesar dos
déficits, sempre é acompanhado de perdas essenciais para o organismo e, ao mesmo tempo, do
reaparecimento de uma [nova] ordem” (op. cit., p. 156). Aquilo que é normal em uma situação
pode ser patológico em outra. Isto é avaliado pela própria pessoa quando, por exemplo, sente-se
incapaz de realizar atividades que a nova situação lhe impõe.
Afinal, a vida não é uma constante, mas uma série de insinuações, de idas e vindas, de
subidas e descidas. A partir disso, entendemos a cura e/ou a saúde como uma possibilidade de
reação e (re)adaptação às variáveis individuais frente a cada situação.
Apesar da ‘eliminação’ da doença em si, o câncer e seus tratamentos deixam marcas e
seqüelas também nos aspectos psicossociais da vida destas mulheres. A retirada da mama deixa
uma cicatriz que pode variar de 10 (dez) a 20 (vinte) centímetros de extensão, iniciando próximo
da região central do tórax, indo até a axila. E esta marca não é só física, em seu aspecto visível,
mas social e emocional. A marca de ter sido acometida por um câncer, doença indesejável e
estigmatizada; de não ter mais uma mama, a qual tem significados diversos, profundos e
contraditórios em nossa sociedade; de ser destituída de uma parte do corpo definidora da
identidade feminina, pois associada à maternidade.
Um caso que acompanhamos nos impactou muito e ilustra estas marcas. Foi uma senhora
de aproximadamente 70 anos, muito alegre, que disse não querer mais chorar, apesar de ter sido
muito difícil o processo de aceitação de retirada das duas mamas. A primeira cirurgia foi
realizada em 1987 e, após o diagnóstico de câncer na outra mama, em 1999, foi realizada a
segunda mastectomia. Nesta ocasião, possivelmente com a intenção de consolá-la, o médico
falou-lhe que agora ela era “como homem”, segundo seu relato.
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Neste aspecto, a especialização dos profissionais, o saber científico hegemônico e
legitimado e a fragmentação dos corpos pelo modelo biomédico, entre outros, dificultam o
entendimento e o atendimento por parte dos profissionais de saúde em relação às mulheres.
Enquanto as mulheres forem vistas como corpos biológicos fragmentados e destituídos de uma
identidade (como sujeito feminino), uma mama (ou um câncer) que deve ser retirada(o), será uma
questão isolada de outros aspectos de sua vida.
Além da cirurgia em si e da marca que esta deixa, podem ocorrer seqüelas e
complicações. São as retrações e aderências cicatriciais, a restrição do movimento do braço do
lado em que foi realizada a cirurgia, as posturas viciosas pela dor e a vergonha de já não ter uma
mama, as alterações da sensibilidade na região da cirurgia e adjacências e o linfedema (ou edema
linfático). Considerado a pior de todas as seqüelas, este edema é um inchaço no braço que pode
ser tão grave a ponto de deformá-lo. Torna o braço pesado, fazendo com que a mulher encurve o
tronco para o lado numa tentativa de compensar a postura; dificulta o uso de determinadas roupas
(mais justas ou menos elásticas) e a realização das tarefas diárias. As dificuldades e
comprometimentos citados são relatos das mulheres que participam do projeto DE PEITO
ABERTO, e também estão descritas na obra de Camargo & Marx (2000).
Este edema pode surgir muitos anos após a cirurgia e, mesmo com a evolução das
cirurgias, continua ocorrendo. Seu volume já não é tão gigantesco, porém sua incidência ainda
permanece alta, atingindo cerca de 50% das mulheres. Já não é tão incapacitante, mas ainda causa
enormes transtornos para a paciente, não só estética, mas também psíquica e fisicamente
(CAMARGO & MARX, 2000).
Em relação à dor, estudiosas defendem que esta deve ser entendida como um sofrimento
global, no qual os fatores psíquicos, emocionais e de relacionamento se misturam totalmente com
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os elementos neurofisiológicos. Para Bittencourt (2000), o sofrimento emocional muitas vezes
transcende à dor física.
As complicações descritas podem acarretar um prejuízo funcional considerável,
dificultando a realização de atividades cotidianas como fechar o sutiã, lavar as costas no banho,
pentear os cabelos, vestir a roupa, etc. Estes movimentos, que parecem simples, fazem parte do
dia-a-dia e são necessários inclusive para as atividades produtivas, das quais muitas vezes as
mulheres e suas famílias dependem para sobreviver (CAMARGO & MARX, 2000).
A alteração da sensibilidade incomoda muito as mulheres, dificultando-as sentir aquela
região acometida. Por vezes, perguntamo-nos ‘por que algo que parece tão pequeno diante de um
quadro complicado, as incomoda tanto’? O ‘não sentir’ remete-nos à representação ocidental da
identidade feminina, na qual o prazer corporal está relacionado ao pecado. No entanto, elas
reclamam e querem se sentir! Será um desejo de sentirem-se mulheres, amadas e respeitadas,
cada uma com seu corpo, sua identidade, sua feminilidade, sua sexualidade? Talvez possamos
entender isto como parte do processo de resistência e acomodação descrito por Anyon (1990),
quando argumenta que as mulheres não aceitam passivamente o papel socialmente imposto de
submissão.
Camargo & Marx (2000) referem ainda outras conseqüências da cirurgia, como o
comprometimento do relacionamento com os familiares, especialmente com o companheiro.
Conforme Duarte (2001), à preocupação com a retirada da mama segue-se a ameaça à
sexualidade das mulheres, que não se detêm ao corpo físico, mas enquanto fenômeno complexo,
portanto biológico, psicológico e social. Após superarem o medo da morte e iniciarem o processo
de retomada de suas vidas é que surgem as preocupações voltadas ao corpo. As mulheres têm sua
sexualidade afetada, caracterizada pela diminuição do desejo sexual, dificuldade em responder às
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intimidades físicas, e a conseqüente diminuição da atividade sexual, como menciona Moraes
(1996). Considera que a exteriorização das mamas e sua relação com a sexualidade predispõem a
mulher mastectomizada a uma auto-imagem negativa, assim como a dificuldades nas relações
interpessoais. Esta situação é reforçada no contexto histórico e cultural atual, no qual a imagem
do corpo ‘belo’ é avassaladoramente vendida nos meios de comunicação de massa, associada a
produtos de consumo.
Embora todas estas situações/complicações citadas possam estar interferindo no processo
de recuperação das mulheres, os tratamentos se restringem à cirurgia e aos tratamentos
coadjuvantes. Simões Barbosa (2001, p. 3), complementando a perspectiva da assistência que tem
suas práticas calcadas no modelo biomédico e perpassadas pela ideologia de gênero4, entende
que:
no campo das ideologias, os profissionais de saúde, especialmente os médicos,
estão sujeitos às seculares representações da medicina sobre o corpo e a
sexualidade feminina, o que resulta em práticas assistenciais que não
consideram as mulheres enquanto sujeitos com direitos e desejos a serem
considerados e respeitados.
A (re)adaptação
No período de recuperação, a mulher poderá encontrar dificuldades de reinserção na vida
social e de convivência com uma nova realidade. Para Lima (2002), aprender a conviver sem a
mama e outras tantas alterações conseqüentes ao tratamento afetam a identidade feminina.
Ferreira et al. (2002) admitem que as complicações do tratamento cirúrgico podem pôr em
risco o desempenho das atividades cotidianas das mulheres, repercutindo em seu papel social.
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Ideologia de gênero está aqui referida às representações hegemônicas sobre homens e mulheres que permitem
manter e reproduzir os estereótipos sexuais e, desta forma, perpetuar a exploração e a opressão, tanto na vida
privada, como na pública (Simões Barbosa, 2001).
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Não obstante, Lima (2002, p. 1) reporta-se à discussão sobre a “ideologia capitalista, que
absorveu os conceitos de corpo do modelo cartesiano”, que valoriza a produção para o acúmulo
de riquezas. Inseridas neste contexto estão uma boa parte das mulheres com câncer de mama,
considerando que a faixa etária mais acometida pela doença, no País, é a época da vida em que
estão economicamente ativas e atuantes no núcleo familiar.
De acordo com Ferreira & Mamede (2003), elas encontram dificuldades em conviver com
seu corpo e em se readaptar numa realidade que valoriza os indivíduos que produzem, que
trabalham, enquanto elas estão limitadas pelas conseqüências e complicações dos tratamentos,
traduzindo um sentimento de inutilidade. Pese ainda que, por serem mulheres, são
responsabilizadas pelas atividades domésticas (na esfera privada) e produtivas (na esfera pública)
e, em sua maioria, não recebem ajuda dos parceiros na divisão das tarefas do lar.
Caracterizando a transversalidade entre gênero e classes, supomos que a recuperação da
doença se faz diversa nas diferentes classes sociais. As mulheres de classe trabalhadora são as
mais prejudicadas, pois, não tendo condições financeiras para pagarem alguém que cuide de seus
filhos e de seus ‘afazeres’, provavelmente elas próprias tenham que fazê-lo, mesmo no período de
tratamento e recuperação da doença. Muitas vezes, tendo que trabalhar fora para reforçar o
orçamento familiar, estas mulheres têm sua jornada de trabalho dobrada em troca de salários
irrisórios, tornando-se óbvia a ‘falta de cuidado’ com elas mesmas. Já as de classe média e alta,
geralmente são beneficiadas pela farta oferta de trabalhadoras domésticas e pelo acesso a serviços
privados de saúde, tendo um suporte maior para sua recuperação. No aspecto profissional, após a
recuperação, estas mulheres têm a perspectiva de retornar a um trabalho mais bem remunerado e
que lhes permita realizações pessoais (SIMÕES BARBOSA, 2001).
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Associado a isto, a valorização da estética, do corpo jovem e bonito, é veiculado na mídia
como sinônimo de felicidade (LIMA, 2002).
Por sua vez, as mulheres mastectomizadas já não correspondem mais ao estereótipo do
corpo belo porque a cirurgia implica na modificação da estética, de um símbolo da feminilidade,
da sexualidade, podendo provocar sentimentos de “deficiência” e anormalidade (FERREIRA et
al., 2002; FERREIRA & MAMEDE, 2003).
Esta desvalorização das mulheres, no que diz respeito ao corpo, à produção, às relações
sociais, vão ao encontro das representações culturais e sociais do feminino que o associam à
natureza, à emoção, ao doméstico e reprodutivo, situando-o como oposto e inferior ao masculino
(GIFFIN, 1995).
Na retomada gradativa do cotidiano, durante os contatos com a família, com o trabalho e a
vida social, as mulheres mastectomizadas passam a re-elaborar suas potencialidades e o
relacionamento com os outros, principalmente o parceiro. Para algumas, isto pode ser positivo,
mas, com certeza, não é um processo fácil. Elas também passam a (re)conhecer um novo corpo,
marcado pela doença e pela mutilação, a qual compromete, de certa forma, todos os âmbitos da
sua vida, inclusive a sexualidade .
Os avanços da cirurgia plástica têm proporcionado resultados satisfatórios na reconstrução
da mama, reduzindo o trauma causado pela mutilação, sustenta Duarte (2001).
Não obstante, Boff (1999, p. 132) identificou que, por vezes, as mulheres sentiam-se
frustradas “pelo fato da mama reconstruída não ser a verdadeira e perfeita”. Ambos os autores
mencionaram que o processo de readequação da sexualidade é lento e que as mulheres evitam
despir-se diante dos parceiros, evitam o toque e ocultam o lado operado. O autor ainda aponta
43
que as dificuldades na recuperação da auto-imagem e da auto-estima repercutem negativamente
no exercício da sexualidade.
Duarte (2001) relata que, para algumas mulheres, as mudanças provocadas pela doença
fazem com que valorizem mais suas vidas, descobrindo novos modos de expressar a sexualidade,
potencializando suas dimensões afetivas nas formas de sedução, carícias, toques e outros.
Denuncia que esta questão não é habitualmente abordada nas práticas médicas de rotina.
Simões-Barbosa (2001) perpassa por esta discussão em seu estudo sobre mulheres HIV+,
no qual evidencia que, em situações-limite entre vida e morte, muitas mulheres conseguem resignificar suas vidas.
Também na experiência do câncer – culturalmente representado como uma sentença de
morte – nasce uma força, um outro sentido de vida.
Sob esta ótica, percebemos a necessidade de uma abordagem mais ampla, com a
participação de uma equipe de profissionais que atuem de forma integrada na assistência à saúde
das mulheres. Para a efetividade da atuação desta equipe, é importante a integralidade no
atendimento, entendendo-a como uma compreensão global da mulher e, correlatamente, uma
atuação integrada da equipe de saúde.
A assistência após a cirurgia
Para Bittencourt (2000), a assistência às mulheres mastectomizadas vai além do cuidar
das necessidades biológicas, se estendendo ao cuidar psicológico, social e espiritual. Segundo ela,
as instituições formadoras devem preocupar-se em incitar em seus futuros profissionais, “um
comportamento fundado na afetividade, no cuidado mais humanizado, no toque, no diálogo”
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(ibid., p. 135). Dentre outros problemas enfrentados pelas mulheres, a autora identifica a falta de
orientação no pré e pós-operatório: os poucos cuidados que elas recebem, se recebem, referem-se
à “possibilidade de extirpação da mama e aos exercícios com o braço” (ibid., p. 27). A carência
dos aspectos emocionais e sociais na assistência evidencia as falhas no conhecimento sobre a
doença e as mulheres, especialmente se pensarmos em uma assistência integral e individualizada,
como propõe o PAISM. Somando-se a isto, observamos a escassez no conhecimento e na
discussão dos aspectos de gênero na abordagem às mulheres mastectomizadas, nos trabalhos de
pesquisa realizados sobre o tema até o momento.
Wolff (1996) pesquisa a ‘rede de suporte social’ que circunda as mulheres, o que pode
auxiliar em sua recuperação e adaptação. A rede é composta por médicos, enfermeiros, outros
profissionais, marido/companheiro, filhos, netos/sobrinhos, outros familiares, amigos/grupos,
grupo de apoio específico do hospital onde foi realizado o estudo (Santa Maria/RS) e crença
religiosa. Segundo a autora, após a alta hospitalar, os elementos que mais se destacaram para as
mulheres foram a participação efetiva do marido, o grupo de apoio específico, seguido de outros
familiares (especialmente do sexo feminino). Aponta a necessidade de uma assistência integrada
com toda a rede de suporte referenciada, principalmente com a família. Identifica ainda que
grupos de apoio podem exercer “grande poder para favorecer mobilização de forças no sentido
de facilitar o processo de readaptação a uma nova imagem corporal, melhoria de sua auto-estima
e relações sociais” (op. cit., p. 135).
Boff (1999) reforça a importância da organização de grupos para permitir às mulheres,
através da convivência com outras na mesma situação, uma melhor elaboração e compreensão de
sentimentos surgidos no decorrer do diagnóstico e tratamento da doença.
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Com o apoio de voluntárias mastectomizadas, Sant’Anna (1997) relata que o
enfrentamento da situação é fortalecido no grupo pelo desabafo das mulheres. Entretanto, critica
que, a despeito das diferentes formas de apoio, o tratamento do câncer depende cada vez mais dos
interesses de indústrias farmacêuticas e aparelhos médicos. Por conseguinte, os investimentos são
maiores neste tipo de intervenção comparando-se com a prevenção, ainda que secundária, da
doença. É a biotecnologia a favor da sociedade mercadológica que visa o lucro; é a
mercantilização da vida das mulheres para o enriquecimento sem limites.
Vivenciando de forma tão próxima a estas mulheres várias das situações descritas neste
capítulo, percebemos como fundamental a possibilidade de ouvi-las, de conhecê-las para
compreendê-las e compreender o impacto que a doença teve e tem sobre suas vidas e relações.
Da detecção ao tratamento: o calvário das mulheres em Juiz de Fora
Nas Unidades Básicas de Saúde, as mulheres recebem assistência por parte dos médicos
ou da enfermagem, que realizam o exame clínico da mama. No caso de achado de alguma
anomalia, a mulher pode ser encaminhada para um especialista em dois setores públicos
municipais diferentes que prestam assistência às mulheres, inclusive às que têm câncer de mama
ou já fizeram a cirurgia: no Pronto Atendimento Municipal (PAM) Marechal, setor de
ginecologia, ou no Departamento de Saúde da Mulher (conhecido como Instituto da Mulher).
Nestes locais, é realizada uma consulta médica e os exames solicitados para confirmação ou não
do diagnóstico - biópsia, mamografia e/ou ultra-sonografia. Se o(s) exame(s) acusar(em) um
achado de características malignas, a paciente é encaminhada para um médico ginecologista ou
mastologista do Instituto da Mulher, que vai encaminhá-la a um hospital especializado em
oncologia, credenciado pelo SUS para atender o município.
46
Em Juiz de Fora, três hospitais (dois privados e um filantrópico) oferecem estes serviços.
Realizada a cirurgia ou até mesmo antes desta, se for o caso, a paciente é encaminhada à
Comissão Ambulatorial de Oncologia, onde são confirmados os dados da paciente e a cidade de
origem. Esta comissão encaminha a mulher já com o resultado dos exames à Comissão Municipal
de Oncologia (CMO) para pegar a solicitação para o(s) tratamento(s) de quimioterapia e/ou de
radioterapia.
Caso o médico que tenha realizado a cirurgia não trabalhe na Prefeitura, ele encaminha a
mulher para um que ali atue, o qual fará a solicitação daqueles tratamentos ou de uma guia de
internação, se a mulher não residir na cidade ou não tiver onde ficar, o que é considerado um
“problema social”. De posse do encaminhamento, a paciente já sai direcionada para o lugar onde
realizará a aplicação das referidas terapêuticas.
A CMO atende as cidades relacionadas à Programação Pactuante Integrada (PPI). É um
setor ligado à auditoria que define em quais cidades, onde há determinada estrutura de
atendimento, haverá assistência para as demais. Atualmente, fazem parte da PPI de Juiz de Fora,
aproximadamente 128 cidades da região, tendo um gasto em torno de R$620.000,00 (seiscentos e
vinte mil reais) mensais, apenas para a realização da quimioterapia e da radioterapia. Vale
destacar que este valor corresponde ao tratamento liberado para todos os tipos de câncer, não
apenas ao de mama. Ainda assim, a quantidade de tratamentos liberados nem sempre é suficiente
para atender a demanda que, aliás, costuma ultrapassar o teto mínimo (neste caso, a Prefeitura
fica em débito com os hospitais)5.
5
As informações descritas foram colhidas em conversa informal com a enfermeira responsável pela requisição e
encaminhamento de tratamentos (quimioterapia e radioterapia) para o câncer da CMO/PAM Marechal, em Juiz de
Fora. MG.
47
O percurso descrito mostra o ‘calvário’ que as mulheres, usuárias do serviço público de
saúde, percorrem para fazer ou continuar seu tratamento, principalmente após a cirurgia. Isto
pode demorar meses, devido a pouca oferta de serviços públicos, os quais, por sua vez, deparamse com sérios problemas, como já discutido. Mesmo após a cirurgia e com grandes dificuldades
físicas (dificuldade para movimentar o braço) e suas implicações emocionais, elas ainda têm que
realizar os tratamentos complementares em diversos lugares.
Chamamos também a atenção para o fato de que se torna quase impossível estabelecer
uma relação de confiança duradoura entre as pacientes e a equipe de saúde por conta da
rotatividade dos procedimentos e instituições envolvidas no tratamento.
Como vimos, o câncer de mama é uma questão de saúde que envolve múltiplas,
complexas e sensíveis dimensões da vida das mulheres, o que demandou da pesquisa um olhar
igualmente complexo e sensível.
48
3 OBJETIVOS
De acordo com o objeto de estudo definido, esta pesquisa teve como objetivo geral
compreender e analisar, numa perspectiva de gênero, a vivência de mulheres sobre a mastectomia
e suas percepções a respeito da assistência no âmbito de um serviço público de saúde de Juiz de
Fora, visando contribuir, em última instância, para que as diretrizes do PAISM possam orientar, a
contento, a assistência à saúde das mulheres mastectomizadas.
Neste contexto, o presente estudo propõe como objetivos específicos:
a) Compreender a experiência do adoecimento e do tratamento cirúrgico (mastectomia) do câncer
de mama;
b) Analisar as implicações da mastectomia no cotidiano das mulheres sujeitos da pesquisa, após
um ano ou mais de cirurgia;
c) Identificar possíveis estratégias de superação e enfrentamento da doença, e readaptação sócioafetiva e familiar;
c) Apreender a qualidade da assistência em um serviço público de saúde de Juiz de Fora, a partir
da ótica das mulheres mastectomizadas atendidas neste serviço.
49
4 REFERENCIAL TEÓRICO–CONCEITUAL
4.1 OS CONCEITOS ADOTADOS
4.1.1 Gênero – o conceito
O conceito de gênero não se remete somente às características biológicas sexuais, mas às
formas como estas são representadas em cada sociedade, em determinado momento histórico.
Busca compreender o que social e historicamente se construiu sobre os sexos feminino e
masculino, entendendo-se que as práticas sociais atuam sobre os corpos, e que é, portanto, no
campo das relações sociais que se constroem e se reproduzem as relações entre os sujeitos
(GIFFIN, 1995; SCOTT, 1995; LOURO, 2001; SIMÕES-BARBOSA, 2001).
A construção e a adoção do conceito de gênero visa rejeitar o determinismo biológico das
diferenças sexuais para problematizar “...o caráter fundamentalmente social das distinções
baseadas no sexo” e “...o aspeto relacional das definições normativas da feminilidade” (SCOTT,
1995, p. 72).
Este conceito, elaborado pelas(os) estudiosas(os) feministas, vem questionar o discurso
ideológico hegemônico que buscou confinar a mulher à esfera doméstica, no papel de
reprodutora, usando suas características sexuais e biológicas para justificar a posição subalterna
(GIFFIN, 1995).
De acordo com Giffin (1999), a herança do dualismo cartesiano fez com que a ciência
moderna ocidental mantivesse modelos binários de apreensão e compreensão da realidade,
50
dicotomizando
instâncias
como
produção/reprodução,
sujeito/objeto,
cultura/natureza,
mente/corpo, razão/emoção. Assim, as diferenças entre os gêneros se refletem na identificação
dos homens com a produção e a razão, e das mulheres, com a reprodução e a emoção. Conforme
a autora, o homem é culturalmente significado como um sujeito com uma sexualidade ativa que
independe de relações afetivas ou reprodutivas. À mulher, por sua vez, cabe ser o oposto, com
uma sexualidade passiva voltada para a reprodução (mulher-esposa-mãe), tal como incorporada e
reforçada pelo modelo biomédico, o que serve, em última instância, para reforçar a ideologia de
gênero que impõe às mulheres um papel de subordinadas por uma determinação biológica.
Scott (1995) defende a importância de desconstruir esta oposição binária entre homens e
mulheres, que os concebe como pólos opostos numa lógica de dominação (do primeiro elemento)
e submissão (do segundo elemento), para a pluralização daqueles na problematização da oposição
e da constituição de cada pólo.
Desta forma, o conceito de gênero, na busca da compreensão das desigualdades, é tomado
como categoria de análise baseado nas representações sobre homens e mulheres, nas relações
sociais e na história. Isto é, considerando as distintas sociedades e os mais diversos momentos
históricos, observamos que as construções sobre o masculino e o feminino são fatores que
influenciam fortemente na construção das relações sociais, não esquecendo que há distinção das
mulheres entre si e dos homens entre si. (LOURO, 2001).
Numa contraposição à naturalização das diferenças entre os sexos, o conceito de gênero
leva-nos a pluralizar estas representações, ou seja, a compreensão de Homem e Mulher não é
estanque, nem única, nem universal.
Conforme Louro (2001, p. 23), “as concepções de gênero diferem não apenas entre as
sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de cada sociedade, ao se considerar os
51
diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem”. Para esta autora,
referir-se ao conceito de gênero apenas como construção dos papéis de homens e mulheres seria
reduzi-lo, escondendo as diversas formas destas representações e “das complexas redes de poder
que (através das instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos...)
constituem hierarquias entre os gêneros” (ibid., p. 24). Por isso, é importante entender que este
conceito faz parte das identidades dos sujeitos, que são múltiplas, se transformam e podem ser até
discrepantes, pois que os sujeitos pertencem a diferentes grupos, de acordo com classe social,
raça/etnia e gênero. Neste olhar dialético, gênero constitui as diferentes instituições, instâncias e
práticas sociais (política, religião, governo e práticas educativas, por exemplo), ao mesmo tempo
que é constituído por elas, numa via de mão dupla.
Louro (2001, p. 33) sugere que os grupos dominados são, por vezes, “capazes de fazer dos
espaços e das instâncias de opressão, lugares de resistência e de exercício de poder”. Para ela,
através de diferentes práticas sociais, as relações (entre mulheres e homens ou entre os sexos em
si) são constituídas por “negociações, avanços, recuos, consentimentos, revoltas, alianças” (ibid.,
p. 39).
Em expectativa semelhante, Anyon (1990), mesmo reconhecendo os estereótipos de
papéis sexuais, questiona sua aceitação – e rejeição – completa por parte das mulheres, e contesta
a visão hegemônica de que o desenvolvimento de gênero é unilateral e impositivo, pela
sociedade, de valores e comportamentos passivamente interiorizados pelas mulheres. Contraargumenta dizendo que, não processo dialético de acomodação e resistência, as mulheres
negociam seu estar/ser no mundo, sendo que o desenvolvimento do gênero é percebido tanto
passiva quanto ativamente em relação às discordâncias e contradições sociais (feminilidade e
auto-estima, sucesso profissional e atividade doméstica, por exemplo), numa tentativa de
52
‘elaborar’ as mensagens conflituosas que procuram ditar os papéis sociais das mulheres,
considerando-se as diferenças para cada classe social.
Conforme a autora, em nenhuma situação as mulheres são passivas, pois, “contrariando o
mito, as mulheres – e meninas – lutam ativamente para chegar a um acordo, ou superar os
conflitos envolvidos na condição de ser mulher”, não processo de resistência e acomodação que é
identificado de forma divergente no comportamento (público) e no pensamento (privado) das
mulheres (ibid., p. 15).
Suas respostas manifestam-se nas reações a estas situações de “degradação psicológica” e
da “auto-estima”, como forma de negociar (resistência e acomodação) a ideologia prevalente do
papel feminino: submisso, dependente, domesticado e passivo (ANYON, 1990, p. 16).
Assim, ainda que muitas mulheres incorporem a ideologia da feminilidade (ou da
sexualidade feminina), elas se apropriam desta(s), resistindo e usando-a(s) para alcançar seus
próprios interesses. Entretanto, a acomodação e a resistência funcionam como uma ação
defensiva, uma proteção que não objetiva a transformação das estruturas sociais nas quais elas
estão inseridas, pois não modificam suas bases; são ações individuais, necessárias, mas não
suficientes. Para tal propósito, é preciso a união das mulheres não movimento coletivo (ANYON,
1990).
Scott (1995) destaca quatro diferentes elementos que estruturam o conceito de gênero, e
que estão presentes nas mais diversas esferas sociais, inclusive nos conceitos da ciência, da
educação e dos conhecimentos sobre saúde. São eles: os símbolos culturalmente disponíveis (e
contraditórios) de diferentes tipos de mulher, como Eva (a prostituta, a pecadora, que representa a
escuridão, a poluição e a corrupção) e Maria (a mãe, a santa, que representa a luz, a purificação e
a inocência); os conceitos normativos e os estereótipos sobre ser mulher e ser homem expressos
53
nas mais diversas doutrinas (religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas) que
configuram o gênero numa oposição binária definidora das representações do masculino e do
feminino e que têm orientado, por exemplo, as práticas médicas e de saúde; a discussão política
com referência às implicações das instituições e organizações sociais na significação do poder e
na identificação do ‘papel tradicional das mulheres’; a construção de uma identidade subjetiva
que demonstra que as pessoas incorporam estes valores e conceitos, normativos e naturalizados,
como seus.
Embora considere gênero como um campo primeiro onde se articulam as relações de
poder, a autora admite que não é o único. Mesmo que estas reforcem as relações de gênero, nem
sempre dizem respeito ao gênero em si.
Simões Barbosa (2001) argumenta que a opressão de gênero está relacionada e imbricada
com as desigualdades sociais, postulando o paradigma da transversalidade entre gênero, classe
social e raça/etnia. Neste olhar, o conceito de gênero transpassa o social e é transpassado por ele,
porquanto compreendemos que a mulher não é universal e as experiências de gênero são
socialmente distintas. Segundo a autora, esta imbricação forma uma rede de entrecruzamentos,
onde “cada ‘nó’... apresenta propriedades próprias e distintas” (ibid., p. 66).
Desta feita, os sujeitos são múltiplos e contraditórios, engendrados nas relações de gênero
que atuam entrelaçadas com as de classe e de raça/etnia, em variadas situações e contextos sócioculturais, para DE LAURETIS (apud SIMÕES BARBOSA, 2001).
Neste sentido, Simões Barbosa (2001) toma gênero como um conceito que amplia o
entendimento sobre a estruturação da dominação masculina articulada à constituição das classes
sociais, não centrado exclusivamente na construção cultural dos significados das identidades
masculina e feminina, como algumas teorizações sobre gênero foram construídas. Entende que o
54
conceito serve como uma “ferramenta para compreender, denunciar e transformar a situação de
opressão e exploração das mulheres”, problematizando questões cotidianas da vida das mulheres
que não eram vislumbradas e chamando a atenção para as diferenciações sociais entre as
mulheres (op. cit., p. 57).
As “conquistas” das mulheres refletiram-se de maneira diferente em cada classe social,
caracterizando a transversalidade de gênero e classes. Giffin (2002, p. 105) alerta para uma
transição de gênero decorrente desta transversalidade, “em que as mulheres não somente
‘ajudam’ como também começam a ser responsabilizadas, e a se considerarem responsáveis, pela
provisão de renda...”. Esta transição é causada pela entrada maciça das mulheres no mercado de
trabalho, estimulada pelo evento do capitalismo, sendo que elas ainda mantêm suas atividades na
esfera doméstica, configurando uma dupla jornada de trabalho (mãe/dona de casa e trabalhadora).
Concomitantemente, os homens estão tendo seus salários diminuídos em função do excedente de
mão-de-obra acarretado pelo desenvolvimento tecnológico, o que aumenta o desemprego e
desvaloriza a mão-de-obra. É a derrota da idéia do homem como provedor único em uma
estrutura que vem se alterando pela situação política e econômica, em que aumentam as
desigualdades sociais.
A discussão sobre o conceito de gênero trazida aqui tem o intuito de esclarecer o enfoque
que será adotado para esta pesquisa que, partindo dos pressupostos acima mencionados, é
entendido como as diversas representações do masculino e do feminino construídas histórica e
socialmente que definem as relações sociais, ao mesmo tempo em que são uma instância de poder
na qual os sujeitos dominados, de alguma forma, negociam seu espaço, seu ser e estar no mundo,
mais especificamente, seu ‘ser mulher’.
55
Portanto, adotar o conceito de gênero implicou problematizar as relações sociais
constituídas a partir da naturalização das diferenças e as relações de poder ali existentes,
entendendo que este processo se reflete de diversas formas nas diferentes classes sociais e
raças/etnias. Através deste entendimento que as mulheres sujeitos desta pesquisa foram
interpretadas.
4.1.2 O corpo feminino como espaço de controle
No interesse de intervenção do Estado nas relações privadas, o corpo é historicamente
utilizado como lugar de controle social e de definição dos papéis de homens e mulheres no
sentido de justificar as desigualdades nas relações de gênero.
Pode ser visto como “um agente da cultura”, isto é, um lugar no qual as normas, as
hierarquias, os padrões culturais são impressos e reforçados pela própria linguagem corporal;
também pode funcionar como uma metáfora da cultura, pois sua representação fornece elementos
para a compreensão da vida social e política, já que, conforme Bourdieu e Foucault, é “um lugar
prático direto de controle social” (apud BORDO, 1997, p. 19).
Através dos hábitos cotidianos, das regras corriqueiras, os corpos adaptam-se às normas
da cultura, tornando-se “corpos dóceis”, “cujas forças e energias estão habituadas ao controle
externo, à sujeição, à transformação e ao ‘aperfeiçoamento’”, corpos que são “treinados,
moldados e marcados pelo cunho das formas históricas predominantes de individualidade, desejo,
masculinidade e feminilidade” (BORDO, 1997, p. 20). Na sociedade contemporânea, em
contraposição com um período em que as mulheres buscam sua libertação, a cada dia
submetemos nossos corpos à ‘docilidade’, à disciplina e ao aperfeiçoamento, estratégias usadas
56
como forma de controle social para manutenção e reprodução das relações de poder que, assim,
se atualizam constantemente.
Assim, a disciplina utiliza-se de vários recursos para controlar os corpos numa “relação
recíproca entre obediência e utilidade” (FERREIRA & FIGUEIREDO, 1997, p. 104).
Numa análise sobre desordens referentes ao feminino, como a histeria, a agorafobia e a
anorexia nervosa, Bordo (1997) identifica o papel sutil e involuntário executado pelos corpos das
mulheres na reprodução do gênero. Paradoxalmente, essas desordens simbolizam a construção
tradicional da feminilidade, enquanto representam um movimento de resistência à opressão de
gênero. No entanto, estas patologias de protesto não transformam, mas, antes, reproduzem as
próprias construções culturais que as produzem, sendo influenciadas e utilizadas para a
manutenção da ordem.
Para a autora, as concepções culturais modelam o corpo “útil”, prático, socialmente
adaptado, um corpo que é treinado e moldado por um conjunto de regras embutidas nas normas
de beleza, nos modelos de saúde e em outros aspectos essenciais na dominação de gênero.
A mama
Ferreira (apud LIMA, 2002) entende que a concepção que cada pessoa tem de seu corpo
sofre influência de sua história, suas crenças, seus valores e seus sentimentos; portanto, o corpo
possui, para além da dimensão biológica, uma dimensão sócio-cultural, que sofre influências dos
contextos social, político e econômico.
Compartilhando com a autora, Wolff (1996) postula que o significado da mama constitui
uma complexa interação de fatores culturais (coletivos) e psicológicos (individuais).
57
Bittencourt (2000) defende que a mama é uma parte do corpo da mulher altamente
valorizada, seja por imposição cultural ou pela influência da mídia.
Para Wolff (1996), Boff (1999), Bittencourt (2000) e Duarte (2001), a mama é símbolo de
identificação da mulher com sua feminilidade, expressa no poder de procriação (maternidade;
vida), fonte de alimentação para o filho (disposição de nutrir, doação), ligação entre mãe e filho
(diz-se do amamentar como ‘gravidez extra-uterina’, como ‘cordão umbilical afetivo’),
aconchego e proteção.
Ambigüamente, também é um símbolo de beleza, sensualidade, sexualidade, sedução,
prazer e erotismo, aparecendo sutilmente – ou não – nos corpos semi-expostos das mulheres na
mídia como parte da estratégia de venda de produtos. Reforçando o ideal social de beleza (e
corpo) em uma sociedade capitalista que dita as regras de consumo e disciplina os corpos das
mulheres, recentemente a mídia vem divulgando o uso crescente de silicone para aumentar o
volume das mamas, principalmente por parte de ‘celebridades’ nacionais.
Estas representações da mama são contraditórias em nossa sociedade. A maternidade e o
amamentar simbolizam a pureza, a santidade, a boa moça e a mulher de família (assexuada),
representadas na figura de Maria – a santa. Já a sensualidade e a sexualidade estão representadas
na figura de Eva – a pecadora, como já citado anteriormente.
Nesta pesquisa, importou-nos compreender como as mulheres mastectomizadas
vivenciaram e passaram a lidar, entre outras questões, com a retirada de uma parte do corpo tão
cultural e socialmente representativa para o feminino.
58
4.1.3 A medicalização do corpo feminino
Numa trajetória histórica, várias teorias a respeito da causação das doenças colaboraram
na construção dos conceitos sobre os quais a saúde pública está hoje edificada, dos quais a
medicina utiliza-se para situar o corpo feminino como objeto de seu saber e prática.
Machado et al. (1978) ressaltam o interesse da medicina na disputa por um lugar de
controle da vida social através do projeto de medicalização da sociedade, conquistando um poder
justificado na detenção do saber sobre a doença e a saúde dos indivíduos.
Xavier et al. (1989) e Vieira (1999) apontam que vem de longa data a preocupação dos
médicos com a reprodução e o corpo feminino, que se solidifica no séc. XIX, através dos
entusiasmados discursos sobre a maternidade, da institucionalização do parto como um fenômeno
hospitalar e da consolidação da disciplina de obstetrícia nas universidades. Boa parte do acervo
médico escrito pelos primeiros mestres (Hipócrates e Galeno) foi fornecida pelo saber das
próprias mulheres (parteiras e matronas). Na alta Idade Média, a emergência e sistematização da
arte médica são correlacionadas com a perseguição às “bruxas”, por seu conhecimento no campo
da saúde e da cura.
Até meados do séc. XIX, não existia um discurso estruturado, um saber ordenado ou
“uma prática social sujeita a dispositivos oficiais de controle” sobre a contracepção (XAVIER et
al., 1989, p. 214). Esta era, até então, uma prática privada, definida por interesses dos indivíduos
ou das famílias, passada de mãe para filha.
A partir deste período, o crescimento do campo de competência da medicina – inclusive e
especialmente acerca das mulheres – aumentou a necessidade de acesso e consumo dos serviços
médicos, validando cada vez mais o monopólio da medicina. “Com o advento do capitalismo
59
industrial, a prática médica se consolidou como exercício monopolizado dos médicos e, assim,
legitimado e reconhecido” (VIEIRA, 1999, p. 70).
Entre meados do séc. XIX e princípio do séc. XX, não período de reconfiguração da
ordem médica, são formuladas práticas e programas para os cuidados com a saúde da mulher.
Também no universo feminino há uma transição. Antes núcleo de trabalho e reprodução (família
extensa), o âmbito doméstico passa a ser limitado à reprodução (família nuclear), passando a
produção à esfera pública (XAVIER et al., 1989).
O corpo da mulher transforma-se, já sob o capitalismo, em objeto de saber e prática da
medicina como forma de controle social. Este controle rigoroso se dar pela medicalização do
corpo feminino, apoiada na sua naturalização (XAVIER et al., 1989; VIEIRA, 1999).
A medicalização, então, funciona como “um dispositivo social que relaciona questões
políticas – como o controle populacional – aos cuidados individuais do corpo da mulher,
normalizando, regulando e administrando os aspectos da vida relacionados à reprodução
humana” (VIEIRA, 1999, p. 68).
Segundo Ferreira & Figueiredo (1997, p. 106), “os recursos para efetivar o poder
disciplinar e o exercício do controle dos corpos foram aplicados na organização de várias
instituições”.
Na década de 30, no Brasil, quando o crescente capitalismo industrial começou a recrutar
a força de trabalho feminina, foi desenvolvido um programa de saúde materno-infantil que tinha a
criança como foco de atenção (XAVIER et al., 1989). As mulheres eram convocadas para
trabalhar nas indústrias, porém, sem abdicar de sua função doméstica.
60
As reflexões do movimento feminista denunciaram que o desconhecimento, por parte das
mulheres, sobre seus corpos, atua como dispositivo de controle, o que é reforçado pelo saber
médico para manutenção dos princípios morais e ideológicos da mulher-esposa-mãe (GIFFIN,
1995).
Atrelado a esse desconhecimento, o corpo feminino é representado como “doentio, senão
sujo”, pela menstruação e modificações hormonais, articulando elementos da cultura patriarcal
com definições do saber médico, na intenção de controlar a reprodução biológica por meio da
repressão da sexualidade feminina, de acordo com Xavier et al. (1989, p. 210). As autoras
argumentam que intenção de controle da reprodução biológica desencadeou a busca pelos
métodos contraceptivos que, inicialmente, foram vistos como uma possibilidade de libertação da
determinação social da reprodução. Posteriormente, foram descobertas suas implicações para a
saúde das mulheres, sendo que estas passaram a ser responsabilizadas pelas práticas
contraceptivas.
Percebida como fragilidade, a própria gravidez é envolta em proibições, sendo
transformada em objeto de intervenção médica, assim como outros elementos da vida da mulher:
menstruação, gravidez, parto e puerpério, secreções vaginais, etc.
E, neste processo de medicalização,
desde que as mulheres do séc. XIX quiseram se afirmar, (...) a própria
feminilidade transformou-se em sintoma de uma necessidade médica tratada
por universitários evidentemente do sexo masculino. Estar grávida, parir,
aleitar são outras tantas condições medicalizáveis, como são a menopausa ou
a presença de um útero que o especialista decide que é demais (VIEIRA, 1999,
p. 77).
Tendo em conta que essa ideologia de gênero ainda impregna e perpassa a assistência à
saúde das mulheres, problematizamos o caso específico da assistência às mulheres
61
mastectomizadas considerando que esta ideologia reproduz o modelo assistencial hegemônico,
mas que as mulheres podem resistí-lo e o transformá-lo.
62
5 ASPECTOS METODOLÓGICOS
5.1 DISCUSSÃO METODOLÓGICA
Para alcançar os objetivos desta pesquisa, propomos uma abordagem qualitativa. Estudar
as mulheres mastectomizadas em sua complexidade implica considerar que suas identidades, para
além de um corpo biológico, são constituídas por uma subjetividade modelada pelo contexto
sócio-cultural onde gênero é uma dimensão fundamental.
O comprometimento da pesquisadora
Nesta identidade, enquanto pesquisadora, também estou inserida. Quando, na assistência,
me relaciono com essas mulheres, o faço a partir do meu lugar, não só de profissional, porque,
antes de sê-lo, sou ser humano, sou mulher, também carregada de emoções e sentimentos que não
posso e não quero deixar de lado. Penso que não poderia fazer um bom trabalho se não entendo e
respeito o outro – as mulheres – como seres humanos antes de serem pacientes. São mulheres
impregnadas por suas experiências e sua sabedoria, forjadas na convivência familiar, no
cotidiano, na cultura, na sociedade.
Em conformidade com a perspectiva adotada por Vasconcelos (2002, p. 142), percebo “os
fenômenos humanos, sociais e de saúde (...) através do paradigma da complexidade, de forma
dialética, como processos complexos” que estão em interação com seu contexto, num processo de
transformação contínua.
63
A abordagem qualitativa
A escolha da abordagem qualitativa deu-se, portanto, pelo fato de compreender, como
Uchimura e Bosi (2002, p. 1567), que “uma investigação que pretenda desvendar um objeto de
natureza qualitativa deve, obrigatoriamente, prever a utilização de uma estratégia que permita a
apreensão dos sentidos dos fenômenos e, ao mesmo tempo, respeite sua complexidade, riqueza e
profundidade”.
A pesquisa qualitativa preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser
quantificado, trabalhando com o universo de significados, motivos, aspirações, valores e atitudes
(MINAYO, 1993). Esta abordagem, portanto, nos pareceu adequada para a pesquisa proposta,
uma vez que o objeto de estudo inseria-se no campo da subjetividade e pretendia entender o
significado e a intencionalidade de discursos e práticas em um contexto sócio-histórico
determinado, na perspectiva de gênero.
A partir destes pressupostos, fizemos a opção por esta vertente, por considerar que as
pessoas participam da construção do pensamento a partir das experiências vividas (dimensão
subjetiva), mas também a partir de uma construção social que contém valores, crenças e opiniões
que variam de sociedade para sociedade, dependendo da cultura e do contexto sócio-histórico em
que estão inseridas. Sendo assim, a forma como nós entendemos o mundo e o nosso modo de agir
são influenciados por estas construções.
A proposta de utilização de uma metodologia qualitativa neste estudo implicou a busca
dos significados – concretos e simbólicos – que a retirada da mama assume para as mulheres, e as
implicações dessa questão para suas vidas sob o ponto de vista subjetivo, familiar e social, num
64
enfoque de gênero que postula a necessidade de se abarcar a totalidade dos sujeitos, em
contraposição à visão fragmentadora do discurso biomédico.
5.2 TRABALHO DE CAMPO
A próxima etapa da pesquisa foi estabelecer os instrumentos que permitiram orientá-la de
modo a obter os achados passíveis de interpretação e discussão.
5.2.1 O cenário
O cenário inicialmente delimitado para este estudo foi o Ambulatório de Mama do
Hospital Universitário (HU) da UFJF, em Juiz de Fora, Minas Gerais. É referência para a região
sob influência de Juiz de Fora, compreendendo a Zona da Mata, Sul de Minas Gerais e alguns
municípios do Rio de Janeiro desde 1994, quando se incorporou ao SUS. Oferece à população
ambulatórios especializados que têm como objetivo referenciar toda a rede SUS da região. O
Ambulatório de Mama funciona às quartas-feiras, nos períodos da manhã e da tarde.
Sendo também um hospital-escola, constitui-se campo de prática e de estágio para os
alunos de graduação da UFJF nas áreas de Enfermagem, Farmácia e Bioquímica, Fisioterapia,
Medicina, Psicologia e Serviço Social, bem como para alunos de pós-graduação.
A escolha deste cenário para o desenvolvimento da pesquisa se deu em função de nossa
proximidade com as mulheres ali assistidas na prática docente. Entretanto, as mulheres eleitas
para participar da pesquisa não tinham nenhum contato prévio nem vínculo anterior com a
pesquisadora.
65
Durante a busca pelos sujeitos da pesquisa, descobrimos que o número de cirurgias de
mastectomia neste hospital é reduzido. Além disso, o retorno das mulheres que passaram por este
procedimento ao Ambulatório era mínimo, pois, em sua grande maioria, estavam não período de
controle anual da doença. Portanto, foi preciso encontrar outros caminhos para ter acesso a elas.
Como não havia uma listagem pronta de mulheres que realizaram esta cirurgia,
solicitamos a ajuda da equipe do Projeto DE PEITO ABERTO para fazer este levantamento. Em
junho de 2004, verificamos os livros de registro do centro cirúrgico, selecionando as mulheres
que haviam realizado a mastectomia nos últimos dez anos. As informações foram conferidas
manualmente com os dados dos prontuários do Ambulatório de Mama. Solicitamos, também,
auxílio do pessoal do setor dos Ambulatórios, que nos permitiu o acesso aos dados de
identificação de cada mulher.
Da listagem levantada, uma parte das mulheres não havia feito a cirurgia de retirada total
da mama, apesar de constar nos registro do Centro Cirúrgico (CC) como “mastectomia” na
descrição da cirurgia realizada. Após conversa com os funcionários do setor, foi-nos explicado
que o procedimento é anotado quando a usuária adentra no CC. Caso o procedimento mude, as
anotações permanecem as mesmas. Conseqüentemente, algumas mulheres que, segundo os
registros, haviam realizado a mastectomia, na realidade haviam feito uma retirada de nódulo
mamário ou uma retirada parcial da mama. Outrossim, um número muito grande de mulheres não
pôde ser localizada, pois telefones e endereços haviam mudado, e outras faleceram.
Identificamos, pois, uma falta de atualização dos endereços e dados das mulheres atendidas no
ambulatório, o que dificulta qualquer trabalho que pretenda ser desenvolvido pelas próprias
equipes do hospital, caso necessitem de acesso à comunidade atendida.
66
Desta forma, o número de mulheres foi insuficiente e o cronograma do estudo estava
avançando no tempo programado, forçando-nos a procurar outro serviço público que prestasse
assistência ambulatorial à saúde da mulher. Coincidentemente, vários profissionais médicos que
atuam na primeira instituição, atendem também na segunda, o que facilitou nossa inserção nesta
para a continuidade da pesquisa.
Partimos, então, para o próximo cenário, que foi o Departamento de Saúde da Mulher
(DSM), visto que a grande clientela – da cidade e região – que busca os serviços de mastologia é
ali atendida. É um instituto especializado da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora que visa
normatizar a Política de Saúde da Mulher no município. A atuação do DSM engloba:
intercorrência ginecológica; nódulos de mama; patologia do colo de útero; terapia de reposição
hormonal; gestação de alto risco; sexologia; grupo de apoio terapêutico à mulher
mastectomizada; doenças sexualmente transmissíveis com intercorrência; ligadura de trompa e
vasectomia. Fazem parte da equipe que presta assistência diária neste setor, cinco médicos
mastologistas, um médico urologista, médicos de outras especialidades, quatro enfermeiras, duas
assistentes sociais, duas psicólogas, uma fisioterapeuta (voluntária), técnicos de enfermagem,
entre outros. Mensalmente, todos os funcionários do DSM se reúnem para discussão dos casos e
andamento do serviço.
Já com o parecer consubstanciado aprovado pelo Comitê de Ética do HU, a chefia do
DSM aprovou o projeto de estudo, permitindo que ocupássemos o setor como campo para a
pesquisa. Em agosto de 2004, iniciamos a aproximação com os sujeitos. Dois profissionais do
serviço – uma psicóloga e um médico – intermediaram o contato com as usuárias, verificando
quais aceitariam participar da pesquisa, já que, eticamente, não nos seria viável acessá-las
diretamente, pois, assim, os profissionais estariam expondo a identidade das mulheres acometidas
67
pelo câncer ali atendidas. Agendadas as entrevistas, o procedimento padrão era realizado, como
apresentado a seguir.
5.2.2 O instrumento
De acordo com os objetivos da pesquisa, a técnica de entrevista em profundidade foi eleita
como instrumento para apreender o vivido e o representado pelas mulheres mastectomizadas.
Para Minayo (1993, p. 114), a entrevista não se limita a um trabalho de coleta de dados,
mas é “uma situação de interação, na qual as informações dadas pelos sujeitos podem ser
profundamente afetadas pela natureza de suas relações com o entrevistador”, especialmente neste
trabalho, onde entendemos que as relações são perpassadas pelos valores e conceitos que definem
as subjetividades e ações dos seres humanos. Assim, a entrevista possibilita a revelação das
representações e das experiências das mulheres através de sua fala, permitindo também a
identificação do entrelaçamento das ideologias que perpassam as relações sociais:
...o que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informações
para as ciências sociais é a possibilidade de a fala ser reveladora de condições
estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos e, ao mesmo tempo, ter a
magia de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos
determinados, em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas
(MINAYO, 1993, p. 110).
Inserindo-se nesta perspectiva, este estudo pretendeu entender o entrelaçamento das
ideologias que se reconstroem numa relação dialética que envolve processos de acomodação e
resistência dos sujeitos sociais.
Nesta técnica, utilizamos um roteiro de perguntas para auxiliar as informantes a falar
sobre o assunto, a expressar ‘sua verdade’ (BOURDIEU, 1997).
68
Segundo alguns autores, o material discursivo deve ser produzido pelos sujeitos da forma
mais espontânea possível, por isto, defendem o uso exclusivo de entrevistas não diretivas, e não
de questionários.
Os discursos foram coletados por meio de um roteiro separado por temas: perfil das
entrevistadas; representações de gênero; representações sobre a história da doença;
representações do tratamento; representações do serviço de saúde/assistência; momento atual;
futuro. No intuito de propiciar um perfil das mulheres que participaram da pesquisa, discutimos
seus contextos de vida, a formação de sua rede familiar, transitando inicialmente pelo concreto,
pelo que era vivencial, para, depois, adentrar em questões mais subjetivas. Em seguida, foram
exploradas as representações de gênero, visando surtir uma reflexão sobre os papéis sociais.
Abordamos, ainda, como elas se vêem diante de uma doença envolta em mitos, o impacto dos
tratamentos em suas vidas, e como perceberam a assistência prestada no setor público de saúde.
Finalizando, exploramos o momento atual no qual elas estavam vivendo e suas aspirações
futuras.
Jodelet (2001) advoga a necessidade de se fazer boas perguntas aos sujeitos, considerando
que o maior problema metodológico é a qualidade das perguntas, pois a espontaneidade não é a
garantia de ampla revelação das representações (às vezes, é o oposto). A autora sugere que se
inicie com perguntas de caráter mais concreto, factuais e relacionadas às experiências cotidianas
dos sujeitos para, gradativamente, passar a perguntas que envolvam reflexões mais abstratas e
julgamentos. As perguntas são formuladas para irem além da espontaneidade, pois, com
freqüência, o ‘não dito’ constitui o principal conteúdo da representação do sujeito.
69
Minayo (1993) entende que a dessimetria nas posições do entrevistador/ entrevistado, seja
pela troca desigual ou pela posição institucional de poder, tem que ser assumida de forma crítica
em todo o processo de construção do saber.
Bourdieu (1997) compartilha este pensar, ressaltando que o tipo de interação entre o
entrevistador e o entrevistado pode interferir nas falas destes últimos. Para o autor, uma relação
de “escuta ativa e metódica” – a qual não é fácil colocar em prática – associa uma postura de
disponibilidade do entrevistador a uma disposição do entrevistado a expor, em seus pontos de
vista, sentimentos e pensamentos. Segundo o autor, esta relação também será facilitada pela
proximidade social e pela familiaridade, que são condições de uma “comunicação não violenta”
(ibid., p. 697).
Para Amatuzzi (1989, p. 17), “as palavras de uma pessoa adquirem um significado no
contexto de seu discurso, de toda a sua presença e da relação que ali se estabelece”.
Esta pesquisa apresentou algumas destas características. A proximidade e a familiaridade
ocorreram por nossa identificação - de sujeito feminino - com as entrevistadas, o que pôde darlhes algumas garantias contra a ameaça de ver suas razões subjetivas reduzidas a causas
objetivas, conforme advoga Bourdieu (1997).
O tema abordado neste estudo - mastectomia em mulheres com câncer - envolveu
questões de gênero, ou seja, a mulher e sua relação com a família, com a equipe de profissionais
de um serviço público de saúde, seu papel na sociedade contemporânea. Especialmente na
relação médico-paciente, a mulher é destituída de poder, pois, como já referido, as práticas
assistenciais desconsideram e desrespeitam as mulheres enquanto sujeitos de suas vidas
(SIMÕES BARBOSA, 2001). Envolveu também a transversalidade de gênero e classes,
70
porquanto as relações de gênero se apresentam de formas diferentes para as mulheres
trabalhadoras e as de classe média e alta.
Partindo para o passo seguinte, conforme aquiescência das informantes, os discursos
foram gravados com o intuito de nos facilitar a apreensão dos detalhes das entrevistas que, por
vezes, desvelam aquilo que a própria palavra possa estar velando. O fenômeno, ao mesmo tempo
em que se revela, se vela relativamente a um outro sentido, pois, segundo Merleau Ponty (1996),
“há sentido e mais sentidos”. O humano não se esgota em nenhuma representação; cada sentido é
um foco, uma faceta.
Então, buscamos considerar as várias facetas e a diversidade das mulheres participantes da
pesquisa, para procurar compreendê-las em sua complexidade e individualidade. Afinal, as
mulheres não são apenas portadoras de um corpo, mas vivem em um momento emocional
específico, inseridas em um determinado contexto sócio-econômico (OSIS, 1998).
5.2.3 Os sujeitos
Os sujeitos eleitos para a pesquisa foram mulheres submetidas à cirurgia de mastectomia
para tratamento por câncer de mama que se encontravam não período que chamamos de pósoperatório (PO) tardio. Usamos esta expressão para caracterizar o período de um ano ou mais
após a cirurgia, esclarecendo que não corresponde ao referido como ‘tardio’ na literatura médica.
Este período foi escolhido por considerarmos que a mulher, já retornando ao convívio
familiar, talvez até ao seu trabalho, possa estar menos fragilizada, mais (re)adaptada à sua vida,
mas provavelmente enfrentando novas situações advindas de seqüelas ou complicações da
própria cirurgia6. Nesta fase, provavelmente, elas já tenham terminado os tratamentos
coadjuvantes e estão fazendo apenas o controle da doença e/ou a hormonioterapia. Podem,
71
portanto, avaliar e expressar o impacto da retirada da mama em suas vidas de forma mais
distanciada da cirurgia, e já levando em conta todos os aspectos que envolvem sua readaptação.
Foram abordadas mulheres atendidas no Ambulatório de Mama do referido hospital que
realizaram a cirurgia há pelo menos um ano. Como descrito no item 5.2.1 (O cenário), também
abordamos mulheres atendidas no DSM/Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.
Fizemos esta opção por entender que a clientela deste hospital/setor municipal tem uma
inserção sócio-econômica homogênea na medida em que o atendimento é realizado através do
SUS. Portanto, são usuárias, em sua maioria, de baixa renda.
Para inclusão das mulheres no estudo, não consideramos os critérios de idade, estado
civil, escolaridade, local de residência, renda, ocupação ou religião. Foram excluídas as mulheres
que estavam ou já haviam realizado o atendimento fisioterapêutico no HU, por entendermos que
a proximidade com a pesquisadora poderia causar constrangimentos e interferir nos achados do
estudo.
Vale destacar que, apesar das entrevistas terem sido realizadas com mulheres de dois
cenários diferentes, não discriminamos os discursos e resultados em função de muitos
profissionais médicos atendem em ambas instituições e, em muitos casos, a cirurgia foi realizada
em um local, e o acompanhamento em outro, mas ainda pelos mesmos profissionais.
Quanto ao número de sujeitos a serem abordados, empregamos as técnicas de
representatividade já consagradas. No caso das entrevistas, aplicamos o critério conhecido como
“saturação” para chegar a esse número limite, ou seja, quando os temas e/ou argumentos
começaram a se repetir, lembrando, conforme Minayo (1993), que grandes números só seriam
necessários para controle estatístico das variáveis. Quando percebemos que os relatos
6
Referidas no capítulo 2.2.2 Aspectos psicossociais, médico-assistenciais e terapêuticos.
72
começaram, de certa forma, a se repetir, interrompemos o processo de coleta das informações,
por entender que a pesquisa havia atendido às suas proposições. Assim, chegamos ao número de
doze mulheres entrevistadas.
5.2.4 A construção do conteúdo
Após o envio e a aprovação do Projeto de Pesquisa pelo Comitê de Ética do hospital onde
realizamos a pesquisa, demos início ao processo de busca das informantes.
Para ter acesso às participantes do estudo, fizemos contato prévio com o médico
responsável pelo Setor de Ginecologia e do Ambulatório de Mama do HU. Conforme já descrito,
também buscamos mulheres em um setor público municipal, pretendendo complementar o
número de entrevistas que nos permitisse observar o critério de saturação que garantisse alcançar
os objetivos propostos na pesquisa.
Mediante parecer favorável destes locais, contatamos as mulheres, explicando sobre a
pesquisa e convidando-as a participar da mesma com a garantia de sigilo de suas identidades. No
momento da entrevista, nos apresentamos como docente da UFJF atuante no HU, e também como
pesquisadora através do NESC/UFRJ.
Esclarecendo as dúvidas após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido7,
as mulheres tiveram a oportunidade de escolher se desejavam ou não participar do estudo. Tais
esclarecimentos foram pautados nas Normas Regulamentadoras de Pesquisa com Seres Humanos
do Conselho Nacional de Saúde, editado pelo Ministério da Saúde, em 2003.
7
Vide Anexos.
73
Minayo (1993) faz considerações a respeito de cuidados que devem ser adotados para
realização das entrevistas: a introdução do entrevistador no campo (apresentação, menção do
interesse da pesquisa, explicação dos motivos da pesquisa em linguagem acessível, justificativa
da escolha do entrevistado, garantia de anonimato da entrevista e conversa inicial); o conteúdo
(perguntas ou itens do roteiro); e a situação de entrevista (cada situação de entrevista é única e
não se repete).
Com o objetivo de testar e adaptar o roteiro, bem como de introduzir-nos na prática de
entrevistas e possibilitar-nos o desenvolvimento de habilidades na execução destas, realizamos
entrevistas ‘preliminares’ com algumas mulheres mastectomizadas na mesma situação dos
sujeitos (com mais de um ano de cirurgia). Totalizamos três entrevistas preliminares que nos
auxiliaram no aprimoramento do roteiro.
Para a abordagem das informantes, havia duas possibilidades diferentes: no dia em que as
mulheres retornam ao Ambulatório de Mama para o controle periódico do câncer, ou no próprio
domicílio das mulheres. Este último local, familiar a cada uma delas, talvez permitisse que se
sentissem mais à vontade, já que estariam inseridas em seu contexto de vida, em seu âmbito
familiar. Acreditamos, em certo momento, ser uma experiência interessante, pois a intenção era
entender como estas mulheres vivenciam o período do PO tardio e suas implicações no dia-a-dia.
Para definição exata deste aspecto, as entrevistas preliminares foram cruciais, já que uma
delas foi realizada no domicílio da entrevistada como forma de testar esta estratégia de
abordagem. Nesta experiência, os familiares da entrevistada interromperam a entrevista algumas
vezes o que nos trouxe certo constrangimento e à entrevistada.
Sendo assim, concluímos que seria mais apropriado realizar as entrevistas no local em que
as mulheres eram assistidas, pois o cotidiano do lar e a presença de familiares poderiam inibir a
74
expressão de sentimentos tão profundos e particulares concernentes, inclusive, à sua relação com
a família e/ou companheiro.
Iniciamos, então, as entrevistas com as mulheres que aceitaram colaborar com o estudo,
de acordo com o roteiro. Duas mulheres se dispuseram a realizar a entrevistadas no dia da
consulta médica, no próprio DSM, em um consultório desocupado temporariamente. No entanto,
as entrevistas foram interrompidas em alguns momentos por necessidade dos profissionais de
pegar algum material ali guardado. Por este motivo, as demais foram realizadas – através de
agendamento – em uma sala do HU, onde não seríamos interrompidas no proceder da coleta de
dados.
Com o consentimento das informantes, as entrevistas foram gravadas em fita cassete, com
posterior transcrição integral de seus conteúdos. Após cada entrevista, a transcrição foi, dentro do
possível, realizada não período imediato para não perder nenhuma impressão do momento.
Na transcrição, Bourdieu (1997) destaca alguns cuidados, tais como não substituir
palavras nem alterar a ordem das perguntas e procurar manter a ‘fidelidade’ e a ‘legibilidade’
para evitar ou minimizar a perda que a passagem do oral para o escrito poderá acarretar. O autor
insiste no zelo, agora da transcrição, que pode ser considerada até como uma interpretação, pois
uma vírgula pode mudar o sentido da frase.
Visando acelerar o processo de transcrição, tivemos ajuda de quatro pessoas que não
participaram do estudo. Por isto, conferimos cada transcrição com as gravações das fitas,
corrigindo possíveis erros que pudessem ter modificado o sentido das falas.
75
5.2.5 Análise e interpretação do conteúdo
Com a escuta das gravações das entrevistas e a leitura dos discursos das mulheres já
transcritos, procedemos à análise dos mesmos. Neste momento, procuramos estar abertas e
atentas a tudo o que pudesse emergir dos relatos dos sujeitos, buscando o sentido destes
discursos, como uma tentativa de compreender o significado pleno da fala do outro, do mundo do
outro, como defende Amatuzzi (1989).
Mas não na neutralidade, uma vez que “o olhar de cada observador é profundamente
afetado por sua história, que inclui seus valores e preconceitos, seus interesses na pesquisa em
curso, sua formação acadêmica, sua posição social, etc.” e, por fim, seus conceitos, que são
fundamentos para a análise do conteúdo (SOUSA, 1998, p. 67).
Nas ciências humanas e sociais, a relação entre sujeito e objeto é necessária para êxito da
pesquisa, já que envolve o afeto, a subjetividade, o alcançar a ‘verdade do outro’, principalmente
se partilhamos, com os sujeitos, um mesmo conjunto de experiências humanas, como é o caso
desta pesquisa, ‘de mulher para mulher’. Para Minayo (1993, p. 124), este envolvimento, ao
contrário de ser tomado como “uma falha ou um risco comprometedor da objetividade, é pensado
como condição de aprofundamento de uma relação intersubjetiva”.
Para o ‘tratamento do conteúdo’ dos discursos, propusemos a análise hermenêuticadialética, entendendo que esta contemplava a possibilidade de compreender e discutir o vivido e o
representado pelas mulheres mastectomizadas e seu olhar sobre a mastectomia e a assistência à
saúde, dialogando com os conceitos do referencial teórico proposto.
De acordo com Minayo (1993, p. 219), “a hermenêutica consiste na explicação e
interpretação de um pensamento”, destacando as condições cotidianas da vida, enquanto que a
76
dialética apresenta a totalidade da vida social, entendendo que a linguagem expressa as relações
sociais entre classes, grupos e culturas, sendo relações historicamente dinâmicas. Assim, a união
da hermenêutica com a dialética leva o pesquisador a entender “o depoimento como resultado de
um processo social (trabalho e dominação) e processo de conhecimento (expresso em
linguagem), ambos frutos de múltiplas determinações mas com significado específico” (op. cit.,
p. 227).
Neste sentido, Simões Barbosa (2001, p. 4) argumenta que esta análise aponta para as
contradições e conflitos gerados nas relações e nos processos de dominação e exploração, “pois
os sujeitos oprimidos também resistem e (re)constroem sentidos sobre suas experiências de vida,
re-significando-as”. Cabe ao(à) pesquisador(a) captar esse processo dinâmico nas entrevistas.
Percorrendo este caminho, pleiteamos alcançar os objetivos propostos no estudo. Não
com a pretensão de esgotar o assunto abordado, mas de responder algumas questões para uma
melhor compreensão das mulheres, iniciando uma série de questionamentos que nos permitam profissionais de saúde - modificar nossas práticas e melhorar a assistência às mulheres
mastectomizadas.
5.2.6 Aspectos éticos da pesquisa
Nas propostas desta pesquisa, assim como no Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – cujo modelo está nos Anexos – nos apoiamos na Resolução n° 196, de dez de
outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que aprova diretrizes e
normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
77
6
APRESENTAÇÃO DOS DADOS EMPÍRICOS E ANÁLISE DO
CONTEÚDO
Para facilitar a apresentação e a análise dos dados empíricos, dividimos o conteúdo das
entrevistas em cinco grandes módulos: i) perfil das entrevistadas; ii) representações de gênero;
iii) representações sobre a história da doença e do tratamento; iv) representações do serviço de
saúde/assistência; v) momento atual e futuro.
Impressão da entrevistadora: a emoção na pesquisa
À medida que as mulheres participavam da entrevista, traziam consigo sentimentos muito
íntimos, relatos que, segundo elas próprias, muitas vezes não foram divididos sequer com a
família. Por vezes foi difícil não me emocionar com suas falas. Emoção de ouvir relatos de
vivências dolorosas, emoção de ver mulheres que, apesar de ter passado por tudo o que passaram,
venceram ou estão vencendo esta situação.
Acredito que esta relação, perpassada pela emoção, tenha me permitido compreender
melhor as mulheres com as quais lido no dia-a-dia, no trabalho, o que, de certa forma, me
constrange a uma relação com um vínculo maior com elas, permitindo-me passar-lhes afeto,
respeito e cidadania, o que considero fundamental para o relacionamento “terapeuta-paciente”.
Apresentamos, a seguir, as mulheres que fizeram parte deste grupo e que, ao final da
pesquisa, nos propiciaram acesso a achados essenciais para alcançar a proposta de melhorias na
assistência à saúde na perspectiva de gênero.
78
6.1 PERFIL DAS ENTREVISTADAS
Para melhor compreensão dos contextos sócio-familiares, apresentamos uma breve
caracterização dos dados colhidos nos relatos. Discutimos brevemente as circunstâncias de vida
das entrevistadas, suas trajetórias de trabalho, suas histórias de composição familiar, suas
condições sócio-econômicas atuais. Enfim, comentamos sobre seus contextos de vida como que a
desenhar um pano de fundo do grupo participante desta pesquisa, para ilustrar e nos permitir
adentrar nas discussões mais centrais, referentes às representações de gênero, do adoecimento,
dos tratamentos e da assistência relativos ao câncer de mama. Encontra-se uma descrição
resumida de cada entrevistada nos Anexos.
Entrev. Idade
E1
43
Tempo
cirurgia
02 anos
Escolaridade
Profissão
Trabalho Atual
1º grau incompleto
E2
57
02 anos
1º grau incompleto
E3
45
09 anos
2º grau completo
E4
52
02 anos
1º grau incompleto
E5
34
08 anos
2º grau incompleto
E6
62
01 ano
1º grau incompleto
E7
67
09 anos
2º grau completo
E8
50
07 anos
1º grau incompleto
E9
50
09 anos
1º grau incompleto
E 10
78
02 anos
1º grau incompleto
Diarista /
do lar
Balconista /
recup. calçados
Técnico de
Enfermagem
Empregada
doméstica
Operadora de
máquinas
Do lar /
lavadeira
Professora /
costureira
Do lar /
salgadeira
Empr. doméstica /
biscates
Passadeira têxtil
Encostada9
(beneficiária)
Aposentada por
invalidez
Auxiliar em distrib.
alimentícia
Encostada
E 11
74
04 anos
1º grau incompleto
E 12
63
04 anos
1º grau completo
Renda Familiar
(base: sal. mín. 8)
3,5 salários
1,5 salário
5 salários
3 salários
Operadora de
máquinas
Encostada
4 salários
Aposentada por
invalidez (câncer)
Faz salgados
esporadicamente
Doméstica / biscates
9 salários
1,3 salário
Aposentada
3,5 a 4 salários
Do lar
Do lar / pensionista
5 salários
Auxiliar de
enfermagem
Aposentada
2 salários
3 salários
4 salários
QUADRO 1 – Perfil Sócio-Econômico
8
O salário mínimo de referência, na época de realização da pesquisa, era de R$260,00.
O termo aqui usado como “encostada” se refere a uma licença gozada durante o período de tratamento. Em caso de
impossibilidade de retornar ao trabalho, comprovada por laudo médico, poderá se aposentar por invalidez.
9
79
O Quadro 1 mostra que o grupo de mulheres entrevistadas é heterogêneo quanto à idade,
que varia entre 34 e 78 anos, havendo uma predominância na casa dos 50 (quatro) e dos 60 anos
(três). Este quadro reflete o panorama geral de incidência da doença, que geralmente atinge
mulheres numa faixa etária mais avançada.
O tempo de cirurgia é muito diverso. A contar da cirurgia de mastectomia, o período de
pós-operatório varia entre um a nove anos, sendo predominante o número de mulheres que
realizou a cirurgia há dois anos (quatro entrevistadas) e há nove anos (três entrevistadas).
Quanto à escolaridade, a maioria tem o 1º grau incompleto (oito), uma tem o 1º grau
completo, uma, o 2º grau incompleto, e duas, o 2º grau completo, o que caracteriza um grupo
com baixa escolaridade.
A profissão das entrevistadas é muito diversa, mas quase todas estão ligadas às atividades
socialmente definidas como femininas, realizadas no espaço doméstico (do lar, doméstica ou
diarista, lavadeira, salgadeira, costureira), relacionadas aos cuidados com os outros (auxiliar de
enfermagem), ao ensino (professora) ou a atividades de baixo status, onde realizam tarefas
‘simples’ e repetitivas em fábricas ou semelhantes (passadeira têxtil, operadora de máquinas).
Apenas uma pode ser caracterizada como ‘pequena empresária’, pois trabalha junto com o
companheiro na distribuidora de produtos alimentícios. Esta, assim como as outras atividades,
fazem parte do ramo de prestação de serviços, mesmo não trabalho “informal”, como muitas
vezes se caracteriza a ocupação de diarista.
Este cenário parece reforçar a construção social da identidade de gênero, que imputa às
mulheres funções relativas ao âmbito doméstico/reprodutivo ou como operárias de baixa
qualificação.
80
Das 12 mulheres, apenas três estão trabalhando atualmente. Uma nunca trabalhou. As
demais estão “encostadas” (três) ou aposentadas por conta da doença/tratamento (duas) ou já
estavam aposentadas em sua profissão quando o câncer de mama foi diagnosticado (duas).
Portanto, somente uma delas não contribui para a renda familiar. As outras contribuem com
alguma forma de renda, por serem assalariadas (três) e/ou por receberem alguma forma de
benefício, seja por invalidez, aposentadoria e/ou pensão (oito).
A renda familiar varia entre 1,3 e 9 salários mínimos. Cinco mulheres têm uma renda
familiar entre 1 e 3 salários (inclusive), e seis, entre 3 e 5 salários. Vale ressaltar que apenas uma
tem renda familiar mensal acima de 5 salários.
Muitas vezes, segundo relato das próprias mulheres, a renda familiar é insuficiente
obrigando-as a arrumar outras formas de incrementar o ganho, como no caso de E9, que faz
biscates, pois sua renda é a que exclusivamente sustenta a casa. O mesmo ocorre no caso de E6,
que aluga parte da casa para auxiliar nos gastos com saúde (sua e de seu marido), pois não pode
contar com ajuda dos filhos. Algumas têm ajuda externa, seja de parentes mais abastados, expatrões, vizinhos ou pessoas da igreja, que integram uma rede de apoio social que permitem a
sobrevivência das famílias mais pobres. Entretanto, geralmente são colaborações esporádicas e
precárias, que não solucionam o problema social e econômico das famílias.
Destacamos que a maioria delas vem de famílias numerosas (quatro a 17 filhos), pobres,
que moravam na roça, onde trabalhavam desde criança. Sobreviviam com dificuldade e, por isso,
tiveram que sair para trabalhar precocemente. Todas as entrevistadas estão morando atualmente
em Juiz de Fora, mas a maior parte (oito) veio de outras cidades do interior de Minas Gerais.
Este quadro evidencia a transição de gênero e o empobrecimento que provocam este
movimento migratório do campo para as cidades, em que a população do campo tem dificuldades
81
para sobreviver do trabalho rural e ruma para cidades maiores em busca de melhores
condições/oportunidades de trabalho e/ou de acesso ao tratamento de problemas de saúde. Com
pouco estudo e precárias condições financeiras, essas mulheres vieram para esta cidade, boa parte
delas sem suas famílias, o que, provavelmente influenciou sua inserção em ocupações
socialmente desqualificadas como a de empregada doméstica/diarista ou mesmo auxiliar de
enfermagem e, conseqüentemente, com uma remuneração precária, conforme ilustra a fala
abaixo:
E4 - ... eu... e minhas irmãs trabalhavam aqui em Juiz de Fora como empregada
doméstica, que a gente não tem estudo.
Entrev.
Religião
Estado civil
E1
Evangélica
praticante
Evangélica
praticante
Católica
praticante
Católica
praticante
Católica não
praticante
Evangélica
praticante
Católica
praticante
Católica
eventual
Católica
eventual
Católica
eventual
Espírita
eventual
Católica
eventual
Casada
E2
E3
E4
E5
E6
E7
E8
E9
E 10
E 11
E 12
QUADRO 2 – Perfil Familiar
Casada
Viúva
Viúva
Casada
Casada
Solteira
Casada
Casada
Viúva
Situação Conjugal
Atual
Vive com
companheiro
Vive com
companheiro
Vive com
companheiro
Viúva
Vive com
companheiro
Vive com
companheiro
Solteira
Vive com
companheiro
Separada
Viúva
Vive com
companheiro
Tem namorado
Viúva
Viúva
Filhos
(idades)
Não tem
Com quem mora
Não tem
marido
2 filhos
(24, 22)
2 filhos
(26, 29)
Não tem
companheiro
3 filhos
(39, 38, 34)
Não tem
2 filhos
(26, 23)
1 filho
(25)
Não tem
(ele tem 7)
4 filhos (50,
49, 47, 44)
3 filhos
(40, 37, 34)
marido
filha (26) + 2 netos
marido
marido
irmã (solteira)
marido + filha
filho
companheiro
filha (47) + genro +
neta (17)
prima (20)
82
No que diz respeito à religião, o Quadro 2 mostra que quase a totalidade das entrevistadas
participa, de alguma forma, de uma denominação, sendo a maioria católica. Das que participam
com freqüência, três são evangélicas e três são católicas. Das que praticam eventualmente, quatro
são católicas e uma é espírita. A única que referiu não ser praticante, diz-se católica.
Quanto à situação conjugal, sete convivem com companheiro fixo numa relação estável,
uma tem uma relação estável, mas não co-habitam, duas são viúvas e duas não têm parceiros. As
histórias conjugais têm uma característica de estabilidade, geralmente marcadas por
relacionamentos duradouros.
Quase metade das entrevistadas (cinco) não tem filhos, por opção ou algum tipo de
impossibilidade. Das que são mães (sete), o número de filhos varia entre 1 a 4, com idades
diversas entre 22 e 50 anos. A maioria dos filhos é casada ou independente, isto é, não mora mais
com os pais.
Metade das entrevistadas mora só com o companheiro (seis). Uma mora com o marido e a
filha. O restante (cinco) mora com outro(s) familiar(es).
6.2 REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
Com o objetivo de desvelar como as entrevistadas se percebem no mundo enquanto
mulheres, confrontando esta percepção com suas experiências concretas de vida, foram
exploradas as representações de gênero, com suas nuanças e contradições.
Iniciando por esta percepção, as mulheres foram instigadas a pensar sobre suas vidas,
como se vêem enquanto mulher na sociedade, a situação dos homens, a convivência familiar,
83
para, então, iluminar suas apreensões sobre os demais temas explorados: o adoecimento, os
tratamentos, o serviço de saúde, sua situação atual e futura.
Ser mulher
Para a maioria das mulheres (oito), a identificação com o ser mulher foi positiva.
Entretanto, elas citaram pontos favoráveis e desfavoráveis em suas representações de gênero,
frente ao seu cotidiano.
Os discursos confirmaram como a ideologia de gênero se reflete nas representações sobre
o feminino, visto que, dentre os pontos favoráveis apontados, as entrevistadas destacaram como
atribuições tipicamente femininas ser: delicada/amorosa, companheira, inteligente, mãe, forte,
independente, sendo estes três últimos os mais citados.
A divisão sexual do trabalho foi naturalizada por metade delas, que referiram ser da
mulher a responsabilidade de cuidar da casa e dos filhos:
E10 - ... serviço de homem é [de] homem, né? Da mulher é da mulher. Eu gosto muito de
cuidar com minhas obrigações... que é o meu dever, não é? (...) a obrigação dele é dar a
ela casa e comida, e ela tem também que fazer por ele.
Mas cinco entrevistadas citam situações em que percebemos a utilização de estratégias
para agenciar o ser mulher, o “estar no mundo”, como identifica Anyon (1990).
E2 - Antes de casar ele [companheiro] falou pra mim: “eu não quero que você continue
trabalhando fora”. Eu falei assim: “então não vai ter nada feito. Porque eu vou
continuar trabalhando porque foi o espaço que eu conquistei (...)”. Aí ele aceitou.
E12 – ... custei a trabalhar, porque ele não deixava (...) mas eu fui insistindo (...)
conversando, pondo na cabeça dele que era bom, que eu ia ajudar (...) foi indo, ele
aceitou.
84
Durante a leitura e análise dos depoimentos, emergiram deste tema duas categorias
empíricas: ‘eu tudo posso’ e ‘independência’.
Eu tudo posso: a força das mulheres
Metade das entrevistadas acredita que a mulher pode tudo, é guerreira, é forte para
suportar todas as adversidades, tanto no âmbito doméstico como no produtivo. A força feminina é
naturalizada: “a mulher é mais forte que o homem” - porque ela é mãe. Como atributo biológico,
da natureza, a maternidade daria a elas a força e a resistência para suportarem a dupla jornada de
trabalho.
A ideologia de gênero institui e generaliza o papel da mulher como esposa e mãe, a
guerreira, que luta, que faz tudo pelos filhos, conforme também identifica Aguiar (2004) em seu
estudo com mulheres HIV + e as interfaces com o serviço de saúde. Essa “mulher guerreira”,
além de tudo, ainda vai enfrentar de peito aberto uma doença que é significada como tragédia,
aliada aos seus contextos de vida difíceis, com poucos recursos para estar enfrentando estas
situações.
E2 - ... a mulher que é forte ela vai à luta... enfrenta tudo.
E9 – ... tudo que eu quero eu posso e é agora, eu posso tudo (...). Eu acho que a mulher é
forte. Mulher é dona do mundo (...). Tem mulher acomodada, mas a maior parte são
guerreiras.
E7 – ... a grande.... importância da mulher na (...) direção da família (...) na criação, no
fato da mulher ser mãe. É ela que carrega a família, que vai dar força (...) acho que a
mulher tem... mais força...
85
Geralmente, estes atributos são comparativos, tomando como referência as características
masculinas, numa oposição binária descrita por Scott (1995) e por Giffin (1999) com herança do
dualismo cartesiano. Os depoimentos de duas entrevistadas ilustram esta questão:
E7 - ... o homem não agüenta os rojões que a mulher agüenta, não.
E11 - ... mulher sofre muito... pra ter filho, é doença (...). O homem sofre menos.
Embora E9 tenha sido a que mais enfatizou a força das mulheres, admite certa fragilidade
e que, muitas vezes, ‘ser forte’ é uma exigência social do feminino idealizado, assim como E4:
E9 - Eu sou mulher, eu sou muito forte. Claro que eu não sou nenhum super-homem,
super-mulher, eu tenho meus cantinho que dói, né, lógico ...
E4 - Tem muita gente que (...) fala que eu sou forte (...) então tem que manter [forte] pra
ajudar os outros também, sabe?
Apesar de muitas defenderem que a mulher é forte, que está dando conta do recado, a
maioria (sete) das entrevistadas trouxe à tona o excesso de responsabilidade, preocupação e
sofrimento, e a sobrecarga de trabalho – discutidos a seguir - a que as mulheres estão expostas:
E6 - A gente passa por muito sacrifício, muita luta...
E12 - ... mulher trabalha demais! (...) tem muito mais responsabilidade...
Independência
A independência surgiu como uma categoria empírica importante, pois foi
consensualmente apontada por todas as mulheres que participaram do estudo.
A entrada das mulheres no mercado de trabalho (remunerado) foi vista por todas como um
êxito, que lhes trouxe maior poder de decisão, participação na sociedade, respeito,
86
reconhecimento,
liberdade
e
independência,
percebidos
como
vantagens
alcançadas.
Principalmente se comparada com outras épocas, quando as mulheres tinham uma posição de
submissão e dependência na sociedade – Amélia, como referiram algumas delas – e ficavam mais
restritas ao âmbito doméstico:
E1 - ... a mulher era Amélia, a dona de casa, né? (...) tinha que assumir aquela
responsabilidade o dia inteiro. Que hoje é muito difícil ela ser submissa ao marido
porque ela procura (...) sair em campo de trabalho.
E5 – As mulheres hoje (...) Não depende muito do homem (...) [risos] Sinal que a gente
não precisa deles, em certo ponto (...) fica mais independente (...) é em serviço, em
dinheiro, em tudo!
Entretanto, três entrevistadas apontaram que a mulher permanece, de certa forma,
explorada, pois a responsabilidade do serviço doméstico e a criação dos filhos continua da mulher
que, muitas vezes, não conta com ajuda do marido:
E3 - ... pesa muito pra mulher. Porque mesmo ela tendo ajuda, mas é ela que tem aquela
obrigação: é casa arrumada se quiser. Porque o homem não liga muito também para isso
não (...) eles acham que é obrigação da mulher e acabou...
Sete reconhecem que não se pode generalizar as situações, pois existem companheiros
que dividem as responsabilidades da casa com as mulheres:
E3 - Eu conheço casais que fazem tudo junto (...) olham filhos juntos...
E7 - É muito complicado porque cada um é cada um, eu acho que a gente não tem
condição de julgar. Mas que eu acho que tem muito homem que ajuda (...). E não é por
causa disso que eles deixam de ser homens, não é?
Como salientado, a maioria das mulheres incorporou a ideologia da mulher moderna, que
tudo pode: é independente, trabalha e ainda assume “suas” responsabilidades do lar.
Poucas entrevistadas (quatro) identificaram-se positivamente com o masculino, alegando
que o homem não possui tantas preocupações e responsabilidades, é o provedor, faz o trabalho
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pesado, sofre menos. Entretanto, discutindo com mais detalhes essas representações, seis
entrevistadas afirmaram que os homens perderam aquele papel de provedores e protetores, numa
oposição à representação da mulher forte. Para elas, eles estão fragilizados pelas dificuldades do
atual mercado de trabalho, e pela perda do poder masculino.
E1 - Para o homem, está sendo difícil. Porque hoje (...) Quantos chefe de família estão
desempregado, não têm condições de levar o pão de cada dia para os seus filho, né? (...)
para o homem hoje está mais difícil, o trabalho.
E11 – Os homens agora trabalham e muitos ainda vivem... passando dificuldade com os
filhos, desempregados, a gente vê muita coisa errada, né, nesse Brasil...
Como esclarece Giffin (2002), esta transição de gênero é conseqüência de mudanças na
situação política e econômica do país que agravam as desigualdades sociais e o empobrecimento
crescente de homens e mulheres das classes populares.
Interpretando a situação dos homens, quase todas as entrevistadas pensam que muitos
ainda são machistas e, apesar da crise que o papel masculino vem enfrentando, ainda não aceitam
que a mulher trabalhe fora, seja independente e/ou inteligente, ou seja, não aceitam outra atitude
que não aquela idealizada pela ideologia de gênero: a esposa-mãe.
Porém, quando confrontadas com seu cotidiano de vida, as entrevistadas fizeram um juízo
crítico a respeito das conquistas femininas, admitindo que estas trouxeram conseqüências
negativas e perdas, como a dupla jornada de trabalho que interfere no relacionamento conjugal e
na qualidade da criação dos filhos (estes dois últimos pontos estão sendo discutidos mais
adiante). Em especial, E7 demonstra certa consciência de um sistema capitalista que explora as
pessoas, sobrecarrega as mulheres, ao contrário do discurso ideológico que propugna que elas
tiveram somente ganhos:
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E7 – Mas eu conheço muita mulher de fibra que dar conta do trabalho dela, dar conta
das coisas todas que ela se mete e dar conta da família. É preciso que haja aí um
equilíbrio. Né? Agora é aquilo que eu te falei, eu acho que a sociedade de consumo, o
capitalismo, tudo isso levou muitas pessoas a perderem.
Mesmo assim, algumas ainda resgataram a representação da super-mulher em detrimento
das situações adversas que enfrenta:
E9 - Tem coisas negativas, mas superáveis. Se você tiver uma cabeça boa, você supera.
Não tem nada que a mulher não supere. (...) a mulher é forte ...
Em sua avaliação crítica, a maior parte das mulheres (dez) destacou a sobrecarga que
estão enfrentando. O preço que se paga para ser mãe, forte e independente é alto.
Observamos também a transversalidade entre gênero e classe social, como pontuada por
Simões Barbosa (2001) e Giffin (2002). As mudanças podem ter efeitos diferentes, de acordo
com a classe social do indivíduo. Levando em conta o contexto social, político e econômico
atual, onde predominam os baixos salários, o desemprego e a pobreza, estas mulheres geralmente
não têm condições de ter uma trabalhadora doméstica que cuide de seu lar e filhos, nem de contar
com apoio das famílias, as quais já vivem suas próprias dificuldades de sobrevivência. Neste
panorama, sua própria saúde vem em último lugar na fila de prioridades. Já no caso das mulheres
mais abastadas, que podem pagar uma empregada doméstica, há mais liberdade, com
possibilidades maiores de estudar, de trabalhar sem esta sobrecarga e de conquistar melhor
colocação no mundo produtivo.
E6 - Se a mulher hoje tem a liberdade de trabalhar fora, e tudo, ela tem a família, tem os
filhos, ela tem que cuidar (...) tem dois serviços, tem fora, tem em casa, tem filhos, então é
muito sacrificado pra mulher, cuidar de tudo, né?
E8 – ... elas ficam mortas de cansadas. Ficam escravas, da onde está trabalhando e
escrava dentro de casa, do marido (...) e dos filhos, né?
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E12 – ... na época que nós estamos atravessando agora eu acho que a mulher tem muito
mais responsabilidade às vezes até que certos homens.
Assim, elas mostraram uma visão crítica da sociedade, apontando o quanto a dupla
jornada torna suas vidas pesadas. Apesar de acharem que as mulheres conquistaram seu espaço,
apontam o quanto essas condições, pelo menos para aquelas com menor poder aquisitivo, estão
desfavoráveis: têm que trabalhar dobrado, não por opção, mas por uma necessidade trazida pela
transição de gênero - a luta pela sobrevivência.
E10 – ... coitada da que não se vira...[risos] porque a vida hoje está muito difícil, não é
como era antigamente, não.
E12 – ... mesmo pros homens também mudou né, porque quando têm uma boa esposa que
se entende, trabalha, ajuda (...) hoje em dia, do jeito que está as coisas, tem que os dois
trabalha (...) a não ser um oficial ou um grande, mais graduação (...) as coisas estão
muito difíceis...
Embora todas tenham concordado que a liberdade foi algo tão almejado e tenha sido uma
conquista positiva, surge, por parte de cinco entrevistadas, uma visão sobre uma excessiva
liberdade sexual que reitera o modelo feminino hegemônico da ‘boa moça’, provavelmente
atravessado pela ideologia cristã que busca normatizar a sexualidade feminina através de regras
de comportamento. Colocaram que esta perda de limites, conseqüência da modernidade, está
fazendo com que problemas que antigamente atingiam mais os homens, como álcool e drogas,
agora se tornem também femininos, somando-se à gravidez precoce e doenças sexualmente
transmissíveis:
E3 - ... não namora mais ... no mesmo dia já está transando (...) eu acho que (...) já é
libertinagem. Meu marido fala: “as mulheres (...) se tornaram muito fáceis”.
E8 – ... essas menina que com doze, treze anos estão se engravidando, né, sem saber
direito quê que é uma gravidez, sem se prevenir (...) esse problema da Aids...
E12 – ... não tem um pingo de responsabilidade (...) por causa de droga, por causa de
muita bebida, isso tudo atrapalha.
90
Vale ressaltar que, quando as mulheres passaram a freqüentar o mercado de trabalho, o
espaço público, passaram a ser objeto-sujeito na sociedade capitalista. Ou seja, viraram
consumidoras, fazendo com que esses problemas, que antes existiam, mas estavam restritos ao
espaço doméstico, adquirissem maior visibilidade.
Ao abordarmos a questão do trabalho feminino remunerado frente à maternidade, sete
entrevistadas referem o quanto esta situação interfere na criação e na convivência com os filhos:
E3 - ... atrapalhou na educação dos filhos.. a mulher que fica o dia inteiro fora, ou ela
não vai ter tempo, quando ela chega em casa ela está cansada...
E8 – ... é muito difícil pra mãe, né, sair, deixar o filho ... e trabalhar... a criança fica
carente, sente falta do carinho da mãe e tudo.
Na representação da mulher que tudo pode - a mulher forte - algumas defenderam com
afinco que, de um jeito ou de outro, a mulher-mãe-guerreira dar conta de tudo; para isso, muitas
vezes, ela conta com apoio de familiares ou vizinhos. Vale lembrar que nem sempre esta rede de
ajuda supre todas as necessidades. Quatro entrevistadas falam a respeito da facilidade para criar
filhos na atualidade, colocando como ponto positivo o crescimento do número de creches, o que
facilitaria a vida das mães que trabalham fora, como explicitado nas seguintes falas:
E5 - ... sempre alguma coisa (...) a mãe faz. Minha mãe (...) me levava pro Correio...
estava lá ela trabalhando e eu no carrinho do lado dela...
E12 - ... as minhas cunhadas olhavam pra mim, vizinhos também (...) hoje em dia tem
mais facilidade porque existe (...) creche da Prefeitura (...) berçário...
No entanto, três avaliam que a creche não substituiu o cuidado da mãe, já que, para elas,
educar filho não é só colocá-lo na escola. Apresentam o outro lado da questão, que não é
valorizado em nossa sociedade: o convívio, a relação afetiva, o cuidar, naturalizado como papel
da mulher, aquela que dar carinho, o amor maternal:
91
E10 – ... ah, [na creche] tem é... uma guarda (...) alimentação. Mas o carinho da mãe, o
coisa da mãe, não. Ninguém dar o carinho que a mãe dar...
O processo de formação de uma criança envolve uma convivência que está cada vez mais
difícil para as mulheres. A falta de condições para criar direito os filhos é problematizada por três
participantes da pesquisa, que reconhecem as diferentes possibilidades de enfrentamento em
relação a este problema de acordo com as classes sociais:
E3 - ... aquela que pode pagar é ótimo, e aquela que não pode pagar (...) que o filho fica
na rua? (...) no bairro que eu moro, que é pobre, tem muitas mães que trabalham fora o
dia inteiro e as crianças (...) não ficam dentro de casa (...) [ficam] na rua...
E11 – ... mulheres que têm a classe melhor, arranja empregada, babá. Mas mulher pobre
tem que pôr na creche pra trabalhar. Essas faxineiras, por exemplo aí, né, coitada. Que
luta, né?
Metade das participantes da pesquisa argumentou que a relação conjugal sofre, por vários
motivos, interferência destas mudanças nos papéis sociais. O impacto que as transformações
sociais trazem observa-se nos desequilíbrios, conflitos e competições gerados pela transição de
gênero, onde os homens estão sendo destituídos do papel de provedores e as mulheres estão
assumindo uma postura de poder, tornando-se, muitas vezes, as provedoras da família.
E4 - ... tem até um caso na família que [ela] saiu pra trabalhar e o marido acomodou. E
aí ela fica revoltada (...) o relacionamento deles não anda bom (...) seria [bom] os dois,
trabalhando.
E9 – Interfere, porque quando você é assim [forte, independente] o homem tem medo.
Porque a mulher, quando tem poder de decisão, ela te olha dentro do olho, ela fala as
coisas batido. Se não quiser aceitar, a porta da rua é serventia da casa. Não é que (...)
você também tem que aprender a ceder. A vida é uma troca.
A outra metade das entrevistadas acha que não houve comprometimento na relação
homem-mulher, pois pensam estar conseguindo lidar com a situação:
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E3 - ... eu acho que não, pelo menos a minha não afeta (...) é lógico que nós temos as
nossas desavenças. Mas a gente vive muito bem
Arriscamos inferir que estas constatações podem estar sendo influenciadas por sua
condição sócio-econômica menos desfavorável e/ou uma maior estabilidade nas relações
conjugais, como é o caso desta entrevistada.
Como pudemos depreender, a ideologia de gênero esteve presente em boa parte dos
discursos, refletida nas representações predominantes do papel feminino de esposa-mãe, que
naturaliza a força das mulheres.
Entretanto, em muitos momentos elas problematizaram as “conquistas” femininas no
contexto contemporâneo, no qual as mulheres têm que sair para trabalhar por uma necessidade de
sobrevivência da família. Neste sentido, denotamos uma inversão do papel feminino nas classes
sociais menos abastadas, como uma conexão e transversalidade entre gênero e classes sociais. A
“independência” foi problematizada pelas mulheres com as condições desgastantes e a
remuneração precária do trabalho assalariado. Ou seja, elas apresentaram uma visão crítica do
outro lado da moeda: as perdas desencadeadas pelo sistema capitalista, identificadas, entre outras
situações, através da interferência do convívio familiar.
A seguir, veremos como essas mulheres, vivendo essas contradições, estão percebendo,
vivenciando e enfrentando o câncer de mama e seus tratamentos.
93
6.3 REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA DA DOENÇA E DO TRATAMENTO
Neste módulo, abordamos a descoberta da doença (como descobriu, quem informou sobre
o diagnóstico, sua reação à notícia), a cirurgia de retirada da mama (o que representou a retirada
da mama, se teve ajuda de alguém, etc.) e o que mudou na vida dessas mulheres após este
processo (seu corpo, sua vida pessoal, social, familiar, sua sexualidade, se recebeu apoio...).
Questionamos também como foi o retorno às suas atividades diárias, incluindo o trabalho
remunerado, para aquelas que retornaram. Visamos compreender, através deste tema, como elas
se vêem como mulheres diante do diagnóstico de uma doença envolta em mitos, como vêem os
tratamentos, suas reações, e o que isto as modificou, ou seja, o impacto prático da retirada da
mama em suas vidas, levando em conta o contexto da assistência em um serviço público de
saúde.
Durante a leitura e análise do conteúdo dos discursos dos temas ‘história da doença’ e
‘tratamento’, surgiram as seguintes categorias empíricas: ‘o mito’, ‘saber ou não saber’, ‘o chão
se abriu’, ‘viver... estou viva! precisa falar mais?’, ‘bicho de sete cabeças’, ‘apesar dos
pesares, eu venci’ e ‘pela fé, estou curada’.
O mito: câncer mata
Na expectativa de apreender as representações sobre o adoecimento, surgiram
representações comuns sobre a doença em si. Os mitos em torno do câncer que estão no
imaginário popular e persistem até hoje, vêm à tona quando se recebe o diagnóstico – mesmo que
ainda em período de confirmação, conforme relata Sontag (1984). As representações do câncer,
94
assim como de outras doenças, são construídas a partir da associação do discurso médico, da
representação simbólica da sociedade e das experiências individuais sobre a patologia.
Quase a totalidade das entrevistadas referiu que a idéia de morte foi uma das primeiras
coisas que lhes veio à cabeça, ou à de seus familiares, exemplificado nas falas:
E6 - ... isso não está normal. Ele não quer me falar, mas (...) deve ser tumor maligno
mesmo. E já é o fim...
E9 - ... todo mundo tem muito medo de câncer, né? (...) ‘câncer mata’, não gostam de
falar nem câncer, né? A doença ruim. Separar vasilha, porque câncer pega, sabe?
Bossalidade.
Como refere Lima (2002), nesta tentativa de compreensão do acometimento do câncer, as
mulheres podem amparar-se na religião, no discurso médico e nas informações às quais tiveram
acesso ao longo da vida.
No processo de enfrentamento, as mulheres tentam desvendar os mistérios da doença, não
questionamento sobre o que a causou. Aqui emergiram representações muito próximas às teorias
médicas e psicológicas que defendem as causas emocionais do câncer:
E8 - ... “doutor, porque que me deu câncer”? Aí ele falou: “porque (...) você é muito
triste, tem muitos problemas (...) procura (...) ser feliz, que tudo vai dar certo”.
E8 - ... tem casos de câncer da família do meu pai (...) de mama, eu sou a primeira. E eu
não sei se foi... porque (...) minhas duas filhas eu não conseguia amamentar...
E9 - Eu acredito até que o câncer é uma doença da alma, não é uma doença do corpo,
sabe? Eu acredito, porque nessa época eu estava muito mal, assim, sabe?
E11 - ... meu Deus, que foi que eu te fiz, que eu fui ter isso?
A despeito destas teorias, Sontag (1984) e Souza (1998) criticam esta visão por entender
que ela, além de excluir uma série de variáveis que interferem no processo de adoecimento,
responsabiliza a própria pessoa porquanto associa o câncer à tristeza, à depressão, isto é, à uma
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incapacidade pessoal de ser feliz. Somando-se ao fato de serem acometidas por uma doença
conhecida como “maldita” e terem de se submeter à extirpação de uma mama, estas mulheres
ainda são culpabilizadas pelo surgimento da mesma.
Segundo Gomes et al. (2002), no enfrentamento da situação, as mulheres tendem a
(re)organizar suas relações sociais. No receio da discriminação, às vezes elas mesmas, como
relataram duas entrevistadas, se afastaram de um relacionamento mais íntimo com seus
companheiros, pelo menos inicialmente (esta questão está sendo explorada com mais detalhes na
categoria “apesar dos pesares, eu venci”):
E9 - ... quando você tem um câncer, você mesmo se retrai...
Uma parte delas (três) prefere não comentar sobre a doença, mas a maioria (nove) revela
que, atualmente, não mais se envergonha, preferindo falar abertamente como forma de enfrentar
o estigma e de ajudar outras pessoas:
E6 - ... tem muitas pessoas que nem sabem (...) prefiro que não fique sabendo, que tem
muita gente que tem medo até de chegar perto...
E10 - ... não sinto vexame nenhum de falar eu tirei a mama, tal (...) tirei e daí? Pra quê
que eu vou ficar com fingimento? Não gosto de mentira, né? [risos]
Muitas, no entanto, referiram não terem percebido o afastamento por parte das outras
pessoas. E, outras (duas) disseram que apenas algumas relações sociais permaneceram e se
estreitaram, como registra uma entrevistada:
E4 - ... muita gente fala que teve discriminação, mas eu, ninguém afastou de mim por
causa da doença, graças a Deus. Quem tem amizade ficou mais ainda.
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Saber ou não saber: eis a questão
Na maioria dos casos (nove), elas mesmas descobriram um “caroço na mama”. Nos
demais, uma delas pediu para fazer uma mamografia, outra já fazia um controle por histórico de
câncer na família, e outra, ainda, o médico descobriu no exame clínico das mamas, embora a
consulta fosse por outro motivo. Da descoberta do nódulo até a confirmação do diagnóstico
através dos exames, conforme relatado por elas, foi um período muito angustiante, por ser o
câncer uma doença ainda pouco conhecida, assustadora, no qual surgem fantasias sobre a morte.
Algumas suspeitavam da malignidade da doença, mas não esperavam que fosse tão grave a ponto
de precisar tirar toda a mama, como reportam E2, E4, E6 e E8.
Na confirmação do diagnóstico pelo médico, pudemos observar situações diferenciadas.
Para a entrevistada E6, o médico não confirmou o diagnóstico, provavelmente para preservá-la,
considerando que seu estado de saúde já era bastante debilitado (vide Anexos). Para as demais, o
diagnóstico foi confirmado de maneiras diferentes.
De acordo com os discursos, a forma como a notícia do câncer foi dada demonstrou como
os mitos sobre a doença estão presentes nas posturas médicas. Para cinco mulheres, alguns
médicos tiveram certo receio no momento de informar-lhes o diagnóstico, o que representou
segundo elas, um preparo, um cuidado por parte dos profissionais no impacto da notícia de uma
doença tida como fatal, como destaca esta entrevistada:
E1 - ... o médico (...) ficou assim meio... para me dar a notícia, né, que eu estava sozinha
no dia da resposta...
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Conforme E9, apesar deste preparo, a assertividade do médico foi fundamental, pois não a
vitimizou, não a colocou na posição de “coitadinha”. Ao contrário, deu-lhe apoio para lutar
contra a doença:
E9 - ... quando ele [o médico] olhou o exame (...) ele é muito assim taxativo, ele não tem
rodeio. Ele falou: “sei que você está muito esperançosa, você é uma pessoa muito
religiosa, mas vou te falar uma verdade: existe um nódulo aqui e esse nódulo é irradiado.
Todo nódulo irradiado é câncer. Não é benigno. Pelo meus anos de experiência que eu
tenho, isso aqui... é 90% provável que eu tenha que remover a sua mama”. [lágrimas]
Outras (duas) perceberam que a notícia foi transmitida de forma muito direta, sem que
houvesse um preparo adequado, o que repercutiu negativamente no processo de aceitação e
enfrentamento da doença e seus tratamentos, o que foi qualificado por E8 até como um “descaso”
do profissional (esmiuçado no módulo “Representações do Serviço de Saúde/Assistência”):
E4 - ... eu percebi esse carocinho (...) mas... nunca podia imaginar que seria esse rombo
que deu na minha vida. (...) [médico] falou que era um tumor maligno, foi aonde eu
recebi a notícia.
E8 - ... [médico falou:]“vamos fazer... uma biópsia”. Eu falei assim: “mas por quê? O
senhor acha que deu alguma coisa séria”? Ele falou assim: “há possibilidade de 90% de
ser câncer”. (...) quando (...) saiu o resultado, aí (...) vim eu, meu marido e minha
cunhada. Ele abriu e falou assim: “ó, deu câncer, é maligno e você pode chorar, berrar,
fazer o que você quiser, fique à vontade”. Desse jeito comigo.
A despeito da forma como foi transmitida a notícia, a dúvida parece incomodar boa parte
das mulheres (cinco), visto que interpelaram os médicos no desejo de saber o diagnóstico preciso:
E5 – Ela... ficou me rodeando (...) perguntou se tinha caso na família, de câncer (...)
como eu não sou boba eu fui ligando uma coisa com outra. (...) aí eu que perguntei: “ô,
doutora, pode falar, eu estou com câncer?” Aí que ela abriu o jogo comigo.
Como demonstrado nas falas das entrevistadas, o modelo biomédico não admite a
subjetividade do ser humano, preconizando a generalização das usuárias na tentativa de
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enquadrá-las em um padrão de normalidade e normatização, como menciona Canguilhem (1979).
No entanto, cada indivíduo é forjado na sua convivência familiar, no seu cotidiano, na sua
cultura, impregnados por suas experiências de vida. E, por isso, suas percepções e reações
poderão ser diferentes diante de determinadas situações. Isto será mais detalhado logo adiante.
Outrossim, a formação médica não prepara o profissional para considerar esta subjetividade, mas
para lidar com a doença, focando a cura na retirada do problema físico: a região onde o tumor foi
localizado. Nestes casos, a mama.
Gostaríamos de destacar aqui a necessidade de uma equipe multidisciplinar no cuidado às
mulheres com câncer de mama, pois a notícia do diagnóstico e da possível necessidade de
remoção da mama não se limita à extirpação da doença através da retirada de um pedaço do
corpo biológico, mas envolve o que é, em nossa sociedade, um símbolo da feminilidade, como já
discutido. Quanto à retirada completa da mama, todas elas ficaram sabendo antecipadamente
desta possibilidade.
O chão se abriu: fortaleza ou fragilidade?
Mesmo com todo o cuidado que a maioria dos médicos pareceu ter, a reação inicial das
mulheres quanto ao diagnóstico da doença e à notícia da retirada da mama foi, para quase todas
(nove), de desespero, tristeza, decepção, medo da morte associado à preocupação com os
familiares. Uma delas (E8) chegou a pensar em suicídio. Aquelas (cinco) que acompanharam
algum caso de câncer - geralmente de familiares - tiveram reações distintas, de desespero ou de
força para superar a doença, de acordo com o desfecho de cada situação: morte ou cura do câncer.
Uma delas (E6), por exemplo, falou que preferia morrer a passar o mesmo sofrimento do pai e do
irmão. Outra (E5), falou que não quer morrer como a tia, pois ainda é muito nova. Outra (E7)
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ainda acompanhou o caso de uma irmã que ficou curada, o que a incentivou a realizar o
tratamento.
E5 – ... na hora eu fiquei tranqüila... Mas depois eu chorei porque vi minha mãe
chorando. Meu pai (...) só pensava neles (...) “(...) quero viver bastante tempo”...
E8 - Eu senti o mundo cair aos meus pés (...) eu sai daqui em grito, chorando, fui lá pro
meu serviço, de lá eu fui pra casa... eu me senti perdida. Noites e noites eu ficava na
janela chorando. Achando que eu já ía morrer.
E11 - ... na hora do curativo, primeiro curativo eu chorava tanto (...) não conformava, eu
ficava triste demais...
Ainda que tenham reagido com desespero, algumas referiram, ao mesmo tempo, uma
atitude de aceitação, como parte de um processo de enfrentamento da doença e frente à
possibilidade de tratamentos agressivos, como no caso do câncer. As demais referiram uma
reação mais tranqüila, seja por conformar-se com a situação (E10), por já estar “pressentindo” a
doença (E1), ou por já haver passado por cirurgias anteriores - retirada de nódulos benignos (E3).
Estas reações podem significar uma maneira pessoal de enfrentar a situação, através da
banalização ou da negação, como uma reação de defesa para se adaptar a este processo.
E11 - Não, não tive reação nenhuma. Fiquei conformada, que se há de fazer?
E2 - ... eu cheguei lá no quarto (...) levei a mão assim, achei uma diferença, estava tudo muito
murcho em cima da roupa. [risos] Aí perguntei: “tiraram a minha mama”? Ela [colega de quarto]
falou: “tirou”. Eu aceitei com naturalidade. Ainda brinquei, falei: “está estragado tem que tirar
mesmo, tem que jogar fora, não está prestando...”.
Embora socialmente seja esperado que as mulheres sejam fortes, capazes de suportar
qualquer adversidade, como colocado por elas mesmas em suas representações de gênero, em
certos momentos elas expressaram sua própria fragilidade. No entanto, E4 e E12 procuraram não
demonstrar fragilidade com o intuito de manterem a estrutura da família. Muitas vezes, torna-se
difícil para elas assumirem este papel de super-mulheres em uma situação que as fragiliza,
assusta, desestrutura e requer apoio.
100
E4 - ... eu fiquei pensando: “(...) se eu ficar naquela tristeza, se eu não tivesse ânimo de fazer o
tratamento e levantar, se eu não chegar lá em casa pra cima, todo mundo vai cair”. Aí eu ... fiz de
forte (...) por dentro, só Deus sabe.
O momento de vida de cada uma, a situação conjugal, o relacionamento com a família
foram decisivos para superação do adoecimento/tratamento, em detrimento de outros fatores
como, por exemplo, a idade em que a cirurgia foi realizada. Também observamos a importância
da confiança e incentivo dos profissionais para o enfrentamento da doença, o que está sendo mais
detalhado no módulo “Representações do Serviço de Saúde/Assistência”.
Viver... estou viva! Precisa falar mais?
A retirada da mama teve diversos significados de acordo, inclusive, com o contexto de
vida de cada entrevistada.
Para a maioria delas (sete), representou uma mutilação, uma perda que trouxe tristeza por
atingir uma região do corpo tão significativa para a identidade feminina:
E8 - ... eu preferia ter morrido... Porque (...) a mama da mulher é a vaidade da gente,
sabe? Assim, por exemplo, igual eu vejo essas moça na televisão com aqueles seios tão
bonitos, entendeu? Então, eu me sinto péssima como mulher...
E6 - ... sabe como que é, a gente é mulher, e a mama pra nós é motivo de, de orgulho, né?
Então eu fiquei triste, sabe? Mas (...) perdi a mama, mas estou viva, né?
Entretanto, observamos que, com exceção de E8, as mulheres se “conformaram” com a
retirada, pois fazia parte da solução do problema, alegando que existem coisas piores, como a
perda de familiares próximos ou outras doenças que não têm cura e trazem muito sofrimento.
Para elas, foi mais importante preservar a vida. Mesmo abatidas pela cirurgia, superaram o
desespero. Relataram que não foi fácil no princípio, mas, com o tempo, se acostumaram e se
101
adaptaram. Pudemos observar que, para algumas, essas representações da retirada da mama
fizeram parte de um processo de reavaliação do contexto de suas vidas e de enfrentamento da
situação.
E7 - ... não foi a pior coisa que eu tive na minha vida a perda da mama não. Sabe? A
perda do meu irmão foi dolorosíssimo. A pior coisa (...) foi essa herpes. Até hoje eu tenho
dores tremenda (...). E da mama eu não tenho mais nada, eu não tenho câncer.
Para duas - que não têm companheiro - a significação da retirada da mama pareceu ter
menor importância, facilitando o processo de aceitação e adaptação ao “novo corpo”. Contudo,
E8, apesar de atualmente ser viúva, ainda tem dificuldade de conviver com a falta da mama. As
que têm companheiro revelaram o quanto o apoio destes foi fundamental, o que será visto com
mais detalhes quando abordarmos o que mudou na vida destas mulheres (categoria “apesar dos
pesares, eu venci”).
E4 - ... não é o que a gente quer. Mas... pra mim tirar significava tirar o problema. Perdi,
sabe... a mama é importante, mas... se fosse preciso pra mim continuar vivendo (...) não
fiquei alegre claro, mas também assim de desesperar não, sabe? (...) eu pensei: “eu não
tenho mais neném pra mamar [risos], não tenho um companheiro (...)”. (...) ficaria muito
constrangedor se eu tivesse...
E11 - Ah, a gente fica triste (...) de ficar sem meu peito, né? (...) mas eu sou conformada,
boba. Eu levo a vida...
Outras (cinco) já foram mais incisivas – algumas mais, outras menos - ao afirmarem que
estariam dispostas a fazer qualquer coisa para solucionar o problema. Ou seja, para elas, a
retirada da mama representou viver, já que estavam lidando com a possibilidade da morte. Como
adverte Aguiar (2004), a imagem da mulher guerreira é um mecanismo importante para enfrentar
situações-limite que despertam o sentimento de morte iminente.
102
Alguns fatores, como a preocupação com os familiares, foram uma motivação para elas
não se entregarem, para irem à luta, enfrentarem os tratamentos agressivos e mutilantes para o
câncer, se curarem e poderem continuar cuidando da família. Identificamos, aqui, a centralidade
do papel reprodutivo para essas mulheres que, na ideologia hegemônica de gênero, são
responsabilizadas pelo cuidado com os filhos, marido e até familiares enfermos. Dialeticamente,
esse papel também lhes infunde motivação para viver.
E3 - ... de coração,... pra mim a retirada foi um alívio, porque (...) era a sétima ou oitava
vez que eu estava indo [para cirurgia] (...). Uma hora eu não ia agüentar. Ficava triste
sim, não vou mentir... mas ao mesmo tempo (...) eu orava pra Deus e agradecia..
E5 - Viver! Não precisa de falar mais nada né?! [risos] Viver! Estou viva! [risos]
E9 - Morrer ainda é pior do que tirar uma mama. Porque eu tinha,muita coisa pra fazer
ainda... não era a minha hora. Eu estava disposta até a tirar as duas mamas pra viver. Eu
tinha que viver porque o meu filho dependia de mim.
Amparando este processo de aceitação e adaptação do tratamento (agressivo) da doença,
como forma de resistir à idéia de morte, estas mulheres explicitam uma vontade de viver que lhes
dar força para enfrentar todo este processo doloroso, muitas vezes impulsionadas pelo sentimento
de proteção em relação aos familiares, principalmente os filhos.
Bicho de sete cabeças: humilhação
Referente aos tratamentos complementares para o câncer, a maioria das mulheres precisou
realizar a quimioterapia e a radioterapia (oito). Cinco fizeram, além destes dois tratamentos, a
hormonioterapia. Uma necessitou somente da hormonioterapia e duas não precisaram de nenhum
tratamento além da cirurgia. Estes tratamentos foram considerados, por muitas, mais agressivos
que a própria cirurgia.
103
Foi consenso entre todas que a quimioterapia é a pior parte do tratamento, pois é
humilhante para as mulheres a perda do cabelo o que, além de tornar o problema visível - a
retirada da mama é mais “fácil” de esconder - também representa a feminilidade. Sendo assim, a
perda do cabelo revela que a mulher está ou esteve acometida pelo câncer - doença tida como
maldita, da qual as pessoas tendem a se afastar. Mesmo aquelas que não realizaram esta terapia,
também a representam como a mais deprimente, por ser uma idéia que já está no imaginário
popular, ou por terem acompanhado algum caso próximo.
E1 - ... a cirurgia não é tanto, mais agressivo é o tratamento. Porque... humilha muito
(...) através disso, que pessoas entram em depressão (...) eu não quero que o meu cabelo
caia. Acho que é muita humilhação pra gente.
E4 - A quimioterapia (...) é... um bicho papão (...) eu fiquei mais (...) chateada assim de
fazer quimioterapia do que a cirurgia... me dava muito mal estar e o cabelo caiu, eu (...)
andava de lenço... na cabeça.
Foi questionado com as mulheres o que elas gostariam que mudasse no tratamento. Neste
sentido, três referiram que não precisava mudar nada, que elas aceitavam o tratamento,
considerando que adoeceram por câncer. Duas gostariam que a mama tivesse sido preservada,
como atesta esta entrevistada:
E4 - ... eu ouvi falar, que agora tem um jeito de retirar [o câncer] sem tirar a mama. Eu
gostaria de ter tido sem ter precisado tirar... a mama [voz baixa].
Duas, que fizeram a reconstrução, desejariam que ela pudesse ser feita imediatamente
após a mastectomia. E9 aponta para a necessidade de um período para assimilação e elaboração
da extirpação da mama, posto que não seja só uma questão estética, mas também emocional. Não
sendo uma simples substituição, a reconstituição física imediata não estaria necessariamente
interferindo na superação da retirada, como propõe a assistência médica:
104
E9 - ... falava assim: “quem reconstituir o peito imediato não se conscientiza que teve um
câncer (...)”. Não... um peito feito não tem nada a ver com um peito de verdade.
Reconstituir o seio imediatamente (...) ía poupar muita coisa às pessoas.
Uma delas também cita a reconstrução, que queria ter feito, mas, por sua idade, pensa que
não vale a pena, pois é um sofrimento ter que passar por mais três cirurgias.
Duas
ainda
relataram que seria importante uma maior atenção por parte dos profissionais, pela importância
que estes têm na sua recuperação.
E8 refere que percebe a necessidade de um acompanhamento maior em um período mais
tardio após a cirurgia, dando-lhe um suporte para além do tratamento médico e psicológico. Algo
que ocupasse seu tempo, fazendo-a sentir-se útil, já que muitas vezes tem limitações para realizar
todas as atividades que realizava antes.
E8 – ... umas atividades (...) pra gente sentir que a gente continua viva. Que apesar de
perdido um seio, que a gente é mulher (...). Não tem nada que estimula a gente a querer
viver, a querer produzir ...
Nesta fala, E8 critica o foco da assistência na cura do câncer enquanto uma doença
biológica, quando, na realidade, a saúde envolve também as questões subjetivas destas mulheres,
o que escapam ao olhar biomédico predominante.
E, finalmente, E6 diz que gostaria de um tratamento para dor, pois, além do câncer de
mama, ela tem uma série de outras doenças associadas, destacando a necessidade de uma visão
mais abrangente do indivíduo, contrapondo a fragmentação da ciência médica ocidental.
Identificamos, nos depoimentos das entrevistadas, a importância da mama, como
elemento primordial da identidade feminina, simbolizando a sensualidade, a sexualidade e a
105
maternidade, reforçada pelo ideal social de beleza explorado em nossa sociedade capitalista que
pretende controlar os corpos das mulheres. Entretanto, relembramos que, para a maioria, a
importância da retirada da mama ficou minimizada em relação ao perigo de morte iminente. Ou
seja, para elas, o mais importante era viver, o que confirma os relatos de Boff (1999) e Duarte
(2001).
As questões relacionadas à reconstrução da mama e à assistência estão sendo abordadas
mais adiante, respectivamente nos módulos “Momento Atual e Futuro”, e “Serviço de
Saúde/Assistência”.
Apesar dos pesares, eu venci
No período imediatamente após a cirurgia, muitas mulheres (nove) referiram ter tido
dificuldades de encarar seu corpo sem a mama, no tocar, no olhar (ou deixar-se olhar) e no falar
sobre a retirada. No entanto, dizem que o processo de aceitação veio com o tempo.
E4 - Pra mim é muito, eu acho muito chato quando eu vou tomar banho (...) eu custei, às
vezes eu vinha assim com a mão, minha mão passava direto, custei. Até hoje, às vezes a
gente na hora do banho e tudo... mas eu aceitei bem.
E6 - É difícil a gente encarar, sabe? Quando eu cheguei no espelho e que me vi eu fiquei
apavorada, chorei muito, senti muita falta, e tudo, mas depois eu fui conformando, né?
E9 - Eu tinha [vergonha]... eu era muito fechada com as minhas coisa (...) eu acho que
isso aí... foi uma batalha que eu venci.
E2, E8 e E12 referem que, até hoje, mesmo alguns anos após a cirurgia, não conseguem
defrontar-se com as modificações corporais com tranqüilidade. Neste sentido, percebemos que o
tempo de cirurgia não facilitou a aceitação da retirada da mama para todas. E8 e E7 ainda falam
que gostavam de usar roupas mais decotadas, mas não se sentem mais à vontade:
106
E2 – ... eu ainda não consegui pôr a mão. Não tive coragem.
E8 – ... assim, não gosto de me ver no espelho (...) me sinto horrível ...
Num processo diferente de aceitação da nova imagem, E1 e E5 quiseram olhar o resultado
da cirurgia logo no início:
E1 - Eu ía no espelho e olhava. Fiquei tranqüila (...) tem gente que desmaia, acontece
uma montão de coisas, mas comigo (...) não aconteceu nada.
E5 - Olhei rápido. Eu reagi normal.
Percebemos que o processo de re-adaptação ao novo corpo, agora sem a mama, é
influenciado pelas representações de gênero e pelo ideal de beleza socialmente imposto, que
cultua o corpo perfeito e discrimina o “defeituoso”, o que foge às regras da normatização estética.
Obviamente, estas representações são perpassadas pelas histórias de vida particulares, o que faz
com que cada mulher enfrente as conseqüências dos tratamentos de forma diferenciada. Mesmo
assim, o estigma da mutilação da mama, que representa a sexualidade e, dialeticamente, a
maternidade é, ainda que diferentemente, sentido por elas.
Na ideologia da mulher forte, espera-se que elas consigam superar todas estas
dificuldades. Mas, não seria um direito destas mulheres sentirem vergonha, querer esconder o
corpo? Não poderíamos dizer que são reações perfeitamente normais e aceitáveis dentro do
processo que estão vivendo? Não podem as mulheres mostrar sua fragilidade não momento tão
assustador e delicado?
De uma maneira geral, a vida de todas mudou, seja no lazer, no relacionamento familiar e
conjugal, e/ou nas atividades cotidianas e de trabalho, como também identifica Duarte (2001).
107
Algumas entrevistadas (E8 e E12) manifestaram um sentimento de tristeza por terem que
deixar de realizar algumas atividades sociais e de lazer em função do constrangimento de não ter
mais a mama, mesmo usando uma prótese (no sutiã). Também a auto-estima foi afetada,
deixando o cuidado consigo próprias em último plano, tanto no aspecto da saúde como no
estético.
E12 – Isso aí já é um trauma, né? Gostava muito de nadar, hoje em dia não entro mais...
[na] piscina. Agora eu não vou. [lágrimas] Eu (...) tenho tudo (...) comprei um maiô com
prótese, mas não vou não, não sinto bem não... [choro]
E4 - ... eu tinha vontade de arrumar uma pessoa depois que eu fiquei viúva [risos] Eu ia
cuidar de mim, eu ia fazer um regime (...) com esse problema não tenho mais vontade. Ah,
eu acho que uma pessoa...[pausa] que está procurando (...) está procurando uma pessoa
sadia...
Em outro sentido, as atividades cotidianas e relações sociais foram aludidas positivamente
por cinco mulheres. E7, por exemplo, diz que agora está fazendo atividades físicas (yoga,
alongamento).
E9 relatou que o afastamento de sua família - inclusive o marido - trouxe-lhe muita
mágoa, mas que depois superou tudo. Uma das filhas de E8 saiu de casa por um desentendimento
com os pais, mas a entrevistada considera que o verdadeiro motivo tenha sido porque ela não
suportou ver seu sofrimento:
E8 - ... um dia que eu fui tomar banho (...). Quando ela me viu sem o meu seio, cheia de
pontos, ela desmaiou. Então eu acho que foi uma fuga (...) que ela não teve a capacidade
de agüentar ver o meu sofrimento da quimioterapia...
Contudo, E4 relata uma aproximação maior de sua família por conta do adoecimento, e
outras afirmam que as pessoas com quem convivem também se aproximaram mais:
108
E4 – ... teve uma mudança pra melhor (...) a aproximação mais da minha família e (...) da
minha filha que a gente não se dava muito bem e ela está mais presente”.
Quanto ao relacionamento conjugal, a maioria das que tem companheiro (cinco) refere
que o relacionamento se alterou positivamente. E5, por exemplo, relata que o marido reduziu a
bebida, melhorando, conseqüentemente, o relacionamento. Três delas disseram que eles se
tornaram mais carinhosos (E2, E1 e E10). E11 relata que seu relacionamento permanece estável.
No caso de E8 e E9, houve um afastamento de ambas as partes, sendo que a última foi
abandonada pelo marido que já apresentava uma doença social: o alcoolismo. Reporta-se ao
sentimento de rejeição que sentiu frente às ofensas do marido, que a chamava de “cancerosa” e
“mutilada”. Mas percebeu que o problema não estava nela, motivando-se a reconstruir a mama.
E3 e E6 relatam que houve um afastamento da parte delas, por constrangimento.
E8 - Desde de que eu operei ele nunca mais teve relação comigo... sabe? (...) parece que
ficou com trauma (...) deu um bloqueio (...). E eu, por outro lado também, eu sinto assim
medo de procurar ele e sentir que ele vai me rejeitar, que ele não vai conseguir ter
relação comigo (...) isso está me fazendo muito mal.
Confirmando os achados de Clapis (1996) e Moraes (1996), os relacionamentos
estruturados na confiança, afeto e amizade antes da mastectomia, tendem a minimizar o impacto
da cirurgia na auto-estima da mulher e até fortalece o relacionamento sexual, ocorrendo o
contrário quando a relação já estava desgastada.
Algumas falas representam enfaticamente esta importância do apoio dos cônjuges na
readaptação e recuperação da auto-estima, demonstrando como alguns homens, a despeito das
ideologias de gênero, são capazes de ser sensíveis, solidários e companheiros em momentos
cruciais de sofrimento das mulheres:
109
E3 - ... [o companheiro diz:] “eu não amo a sua mama (...) eu amo é você”. [ela
desabafa:] (...) o medo que a gente tem, eu acho que na hora é esse.
E5 – [o marido] Falou assim: “olha, se com dois eu não falava nada... com um é que eu
vou continuar te amando do mesmo jeito”... [ela respondeu:] “ah, então isto é que
importa”.
E10 - ... eu perguntei [ao meu companheiro]: “você não fica aborrecido de olhar pra
mim (...)”? Ele falou: “(...) pra mim eu estou olhando eu estou vendo as duas mamas
suas”. E fiquei feliz com aquilo, né?
Seis entrevistadas relataram inicialmente ter sentido vergonha de tirar a roupa durante a
relação, mas se adaptaram, principalmente aquelas que fizeram a reconstrução da mama.
Como já descrito, a cirurgia e os demais tratamentos podem acarretar complicações,
identificadas nos relatos de todas as entrevistadas. Variaram desde alterações na sensibilidade
(duas), muita ou pouca dificuldade de movimentar o braço (todas), pequeno inchaço (duas), dor
(cinco), até uma limitação completa com paralisação dos movimentos da mão (uma). As
complicações, com o passar do tempo e tratamentos específicos, tendem a ser minimizadas ou até
sanadas completamente. Mas o tempo de recuperação poder ser muito variado de indivíduo para
indivíduo. Algumas ficam com seqüelas permanentes, se não tratadas em tempo adequado.
A cirurgia acarreta certos cuidados, como não carregar peso, não esforçar demais o braço,
citados por elas como orientação médica e que são importantes para evitar complicações. Não
obstante, são interpretados por muitas mulheres como impeditivos para o trabalho e,
principalmente, àquilo que hegemonicamente é imputado como parte fundamental do papel
feminino, conforme também exposto por Clapis (1996): as atividades domésticas.
E2 - Todo o meu serviço de casa (...). Tinha um legume eu descascava, picava (...) eu já deixava
tudo arrumadinho (...). Lavava as vasilhas, lavava banheiro, tirava poeira dos móveis (...). Hoje
eu não estou podendo fazer nada, isso me incomoda. Por não está podendo fazer nada.
E3 - O doutor não deixou eu levantar o braço. Eu tive que ficar três meses praticamente
com o braço assim [perto do corpo]. (...) aí eu tive que fazer fisioterapia pra movimentar
ele outra vez. Só não agüentava levantar, entendeu? O resto, não (...). Já voltei [para
casa] fazendo tudo.
110
Abrir mão de algumas de suas atividades, que são do âmbito do dia-a-dia, foi representado
por algumas mulheres como um sofrimento. Provavelmente esta percepção tenha relação com o
que advoga Boltansky (1989): para os indivíduos de classes populares, o corpo tende a ser
valorizado por sua funcionalidade, ou seja, sua capacidade de realizar as atividades físicas
associadas à sobrevivência material. Entretanto, elas parecem realizar um movimento de
resistência e acomodação, como refere Anyon (1990), pois muitas delas não se acomodaram,
lutaram de uma forma ou de outra, mesmo com dores e limitações para manterem-se em
atividade.
Para quatro delas, estas alterações não tiveram tanta importância, pois tiveram uma boa
recuperação, ficando menos limitadas. Vale ressaltar que apenas uma destas não trabalha.
E10 - ... três semanas (...) eu já comecei, afogava um arroz (...) mas com o braço direito.
Aí depois... engrenei no meu serviço mesmo (...) menos de um mês eu já estava fazendo
meu serviço todinho ...
Três mulheres reclamaram muito, revelando certa revolta por não poderem mais realizar
suas tarefas cotidianas e até mesmo seu trabalho, importantes para sua auto-estima, seja pela
necessidade de sustento da família ou no sentido de sentirem-se úteis, no cumprimento da
expectativa de realizar um papel generificado como feminino:
E4 - ... tive que parar de trabalhar (...) eu ainda não voltei por causa de mexer... com esse braço
né, não posso mais fazer certos (...) como é o serviço de casa... Então, eu cheguei até... procurar
assim, pra ver se eu arrumava (...) [serviço] de acompanhante... mas... eu nesse braço eu não
posso fazer muita força (...) me faz muita falta sair pra trabalhar
E12 – Então, não podia pegar [o pão]. Aquilo pra mim, eu olhava o forno assim... ah, que
tristeza que me dava (...) eu chegava amassar 30 Kg de farinha por dia.
111
Como encontrado por Clapis (1996), o sentimento de ambigüidade também surgiu nos
relatos, pois, ao mesmo tempo em que as mulheres sentem-se incapazes de realizar os afazeres
domésticos sozinhas, reportam a responsabilidade destes para si próprias. Além disso, as
mulheres das classes populares, como discutido anteriormente, necessitam muitas vezes trabalhar
para a sobrevivência da família. É o caso, por exemplo, de E9, que é a única provedora da
família, no qual o filho depende totalmente dela, sendo o motivo principal para sua luta contra a
doença e busca da recuperação. Vemos aqui, como a maternidade lhes infunde força e coragem
para enfrentarem difíceis questões de vida:
E9 - Eu fiquei dezoito dias em casa. Mas, não te digo que eu fui trabalhar sem dor não.
Eu tinha dores horríveis, que até sarar (...) eles falaram que eu não ía fazer isso... fazer
aquilo, pensava: “duvido que eu não vou”. (...) meu filho dependia de mim. Eu tinha que
voltar à ativa. Sabe, cada dia que eu vivia, eu senti que eu tinha que ficar boa, que eu
tinha que trabalhar...
Durante o período de recuperação, as pessoas que mais se fizeram presentes para ajudar
nas atividades pessoais e da casa foram, na maioria dos casos, os familiares e/ou os
companheiros. Onze mulheres tiveram ajuda de familiares, seis de cônjuges, três de vizinhos, e
uma de membros de sua igreja. Duas mulheres puderam contratar uma empregada para auxiliar
nas tarefas do lar e nos cuidados com elas.
E1 - A minha família (...) meu esposo (...) os meus irmãos da igreja evangélica também
me ajudaram muito; minha vizinha (...) deu até banho, cuidou mesmo de mim como se
fosse uma filha.
Apesar de muito importante, esta ajuda foi praticamente restrita ao pós-operatório mais
imediato, ou seja, aproximadamente dois meses. Entretanto, muitas delas recebem assistência de
112
seus companheiros até o momento atual, o que contraria a visão de que os homens não têm
participação alguma no trabalho doméstico:
E6 – ... ele [marido] que fazia tudo. Olhava as criança, cozinhava, só não lavava roupa, e
passava. O resto ele fazia, sabe? (...) mais mesmo foi ele. Dia e noite, né?
E9 parece ter sido um caso à parte, pois teve pouca ajuda de uma irmã - com quem depois
se decepcionou muito – e seu companheiro não a ajudava em nada. Muitas atividades eram
realizadas por ela mesma, com muito sacrifício e dor. Porém, como descrito logo acima, declara
ser “forte” e ter conseguido superar tudo. Diz ter recebido apoio de conhecidos, pois lhe deram
oportunidade de trabalho:
E9 – ... acho que apoio é te dar serviço, né? Eu posso trabalhar... Eu sou forte.
Pela fé, estou curada
Buscamos apreender, durante as entrevistas, o que deu força às mulheres para
enfrentarem o câncer que, como discutido, é uma doença ainda envolta em muitos mitos.
Predominou, nos discursos, a opinião de que Deus foi a fonte principal da força para viver (dez),
seguida do apoio da família (nove). Deve ser também destacado o apoio dos companheiros (seis),
relatado por elas como bastante significativo, assim como dos profissionais (sete), que será
explorado no módulo “Serviço de Saúde/Assistência”. Algumas afirmaram, ainda, que o auxílio
de amigos, vizinhos, pessoas da mesma religião e até patrões, também teve um papel
predominante no sentido de ampará-las não momento tão difícil de suas vidas. Wolff (1996)
alega que a crença religiosa passa a ter um papel importante em situações-limite como o câncer,
pois ajuda as mulheres a lidar com a doença, proporcionando-lhes esperança e força.
113
E6 - ... só mesmo pela misericórdia de Deus é que eu agüentei, que eu superei (...) pela
fé eu creio que estou curada. E o meu marido, que foi o maior companheiro, tudo pra
mim. Mãe, pai, irmão, amigo, tudo, sabe?
Não obstante, algumas delas (três) passaram por situações de “desamparo”, nas quais
faltou um sustentáculo em que pudessem se firmar. As falas abaixo explicitam as várias nuances
desse desamparo:
E2 - ... se a gente não tiver, como diz o outro, uma bengala nessa hora (...) pra apoiar
fica muito difícil.
E9 - Ele [marido] é fraco, ele não apóia ninguém não. (...) ele teve descaso porque ele é
fraco. Então quando a pessoa é fraca (...). Ela bate em retirada.
E12 - ... eu tenho muita amizade, todas elas me deram muita força (...) agora, com
relação a irmãs, nenhuma vieram (...) nem me visitar...[choro]
Porém, para os familiares que acompanham um ente querido acometido pelo câncer, não
é fácil conviver com uma doença até então misteriosa em muitos aspectos e que causa um
sofrimento muito grande, como denota Bittencourt (2000) em sua pesquisa.
Como já citado, a experiência de acompanharem familiares com a doença, ou, durante a
quimioterapia, no hospital, verem pessoas com outros tipos de câncer – incuráveis, para algumas
foi negativo, pois “ficaram para baixo”; e para outras foi positivo, pois viam que existiam
situações piores, o que as motivava a continuarem o tratamento.
Segundo Wolff (1996), esta rede de suporte social é básica para favorecer o tratamento
e o processo de readaptação dessas mulheres. Como confirma E2, elas necessitam desta
assistência e apoio, mesmo dentro do contexto social onde a mulher é representada como forte, a
guerreira que tudo suporta. Elas também devem ter o direito de explicitar sua necessidade de
ajuda, de um apoio que lhes dê forças numa situação que as fragiliza muito. E, para tanto, os
114
serviços devem estar preparados para poder assistí-las, segundo suas necessidades objetivas e
subjetivas, até que possam superar o problema.
Em alguns casos, verificamos que as mulheres assumem os papéis de super-mulher
como um mecanismo de enfrentamento da situação de adoecimento e dos tratamentos agressivos
que lhes são imputados. Outras se permitem expressar esta fragilidade. Os relatos identificam a
representação significativa do sentimento de força para lutar a favor de suas vidas, face a uma
enfermidade que representa a morte. Mais uma vez, destacamos que o sentimento materno as
fortalece para lutarem pela vida:
E5 - ... força de viver! [pausa] Meu pai e minha mãe apoiando (...) família (...)
E9 – ... saía das quimioterapia quase morria (...) não dava meu braço a torcer não (...)
meu filho dependia de mim.
Desta forma, elas se amparam na afirmação/esperança da cura, como abordado na
categoria “o mito”.
6.4 REPRESENTAÇÕES DO SERVIÇO DE SAÚDE/ASSISTÊNCIA
Com o objetivo de compreender como as mulheres percebem e avaliam a assistência
prestada no setor público de saúde, questionamos, na perspectiva de gênero, a relação com os
profissionais enfocando os aspectos relativos à assistência, as oportunidades de expressarem seus
sentimentos e tirar suas dúvidas, e a participação de outros profissionais, além do médico, no
tratamento e recuperação. Neste módulo, emergiram as categorias empíricas: ‘humanidade ou
descaso’ e ‘sujeito ou objeto’.
115
Humanidade e/ou descaso: aspectos relativos à assistência
Foi unanimidade, entre as mulheres, que o SUS presta um bom serviço na assistência ao
câncer de mama, pois, em sua avaliação, tiveram acesso a bons profissionais, medicamentos,
exames e demais tratamentos sem ônus financeiro direto.
Também foi unânime a representação de que o atendimento dos profissionais de saúde é
de boa qualidade. As entrevistadas identificaram que ser um bom profissional é: ser
alegre/simpático, cuidadoso, humanitário, dedicado, atencioso, amigo, carinhoso, amoroso, que
passa segurança e confiabilidade, que dar apoio e incentivo, que acompanha o processo de
tratamento com oportunidade de escutá-las. Como discorre E2, a confiança no profissional gera
segurança e motivação, o que garante um bom resultado no tratamento.
E2 - ... se a gente tem a atenção do médico e a gente se sente bem, já é 50% de cura. Que
[o médico] é uma pessoa abaixo de Deus que a gente confia, né?
E4 – Ele não foi só um profissional. Teve aquele jeito certo de falar: “talvez eu não vou
tirar sua mama”. Aí pensei: “(...) eu confio no senhor”(...). [O médico responde:] “Pode
deixar que vou fazer o que for melhor”. Então, põe a gente pra cima.
A personalização na assistência e a identificação de cada uma pelos profissionais, mesmo fora do
âmbito do serviço, foi destacada por muitas entrevistadas como uma valorização da usuária em sua
singularidade, explicitando a formação de um vínculo “terapeuta-paciente” muito importante para elas:
E2 - Deu mais atenção. E até hoje quando ele encontra com o meu esposo na rua ele
pergunta.
E4 - Aonde [o médico] me ver me conhece... me chama pelo nome (...). Isso me levanta
muito pra cima. Quer dizer, ele lembra da gente. E ele deve atender muita [gente] (...) e
isso pra mim é uma bênção. Que isso que é ser um profissional humano.
E4 - A Z10 [psicóloga] também, nosso Deus, né?! É muito especial pra mim (...). Muito...
carinhosa (...) só dela ter lembrado [para a entrevista], né? Ligar lá pra minha casa quando você
10
Esclarecemos que as letras (Z, X, Y, W) utilizadas para representar os profissionais de saúde foram escolhidas
aleatoriamente, ainda que tenham se repetido, mantendo o sigilo ético adotado na pesquisa.
116
falou... quer dizer, quantas pessoas ela não deve atender? Ela lembrar de mim... [lágrimas] (...)
ela, me... me ajuda muito.
Entretanto, cinco mulheres tiveram experiências negativas durante a assistência médica
(hospitalar e ambulatorial), na realização de exames (de sangue e mamografia) e em tratamentos
coadjuvantes (no acompanhamento oncológico e na fisioterapia):
E1 - ... [na] mamografia ... parecia que... não sei quem fica lá, se é a enfermeira ou a
médica, que estava muito nervosa. Então ela apertou muito o meu seio. Aí (...) eu senti
(...) uma humilhação muito grande ela fazendo aquilo ali comigo.
E2 - É, na fisioterapia. Ele só me chamou no dia de fazer o laudo. Aí ele perguntou: “a
senhora quebrou o braço, né”? Eu falei: “não, eu nunca quebrei o braço. Quê que está
acontecendo, o senhor está com a ficha errada”? Já tinha feito nove ondas curtas e que
não era preciso. Eu achei muita falta de atenção da parte dele. Achei descaso. Continuo
lá, porque o INPS só manda pra lá... Quando pede pra outro lugar não tem vaga. E é por
isso que muita gente às vezes é prejudicada. Em vez de melhorar, piora. Falta de atenção.
E8 - ... esse doutor X [oncologista] falou que o meu caso era seríssimo e que jogaram
uma bomba em cima dele. Então eu achava que qualquer hora eu ía morrer, pelas
palavras que ele me disse, entendeu? E o doutor Y [mastologista]. Que eu não posso nem
ver ele. Meu marido também não gosta nem de ver ele na rua, sabe? Que ele me
maltratou muito mesmo Me senti um... animal! Me senti péssima! Que eu tinha que ter
um apoio, e eu me senti péssima com ele.
Apesar da falta de explicação sobre o procedimento ser um fator que pode ter influenciado
no sentimento de E1, já que para fazer a mamografia a mama realmente deve ser comprimida,
podendo até causar dor, ela reclama da agressividade da profissional que a atendeu no momento
do exame. Em um segundo exame que realizou, ela relata que a assistência foi positivamente
diferente, tendo a profissional tratado-a com carinho e delicadeza.
Algumas delas desenvolveram uma maneira de negociar sua situação de submissão, numa
relação de poder, como é a relação médico-paciente. E7, por exemplo, discorre ter criado
amizade com um médico oncologista após ter-lhe chamado a atenção sobre o atendimento
117
“desumano” que presenciou. Com esta atitude de resistência à hegemonia do poder médico, ela
conseguiu sensibilizar este profissional a tal ponto que ele mudou sua forma de atendimento:
E7 – ... era uma pessoa séria e não olhava, não dava carinho (...) Aí falei: “Eu assisti o
senhor hoje lidando com um menino (...) que isso é uma falta de caridade. Um médico
tem que ser amigo! (...) ninguém vem aqui com alegria (...) o senhor já pensou (...) quê
que essa mãe está passando sabendo que o menino de doze anos está quase morrendo
com câncer?
Já E8 usou de outra forma de negociação para obter um melhor tratamento - mais humano
- com determinado médico no período da radioterapia: levava-lhe balas de caramelo, que
observou que ele gostava. Através disso, alcançou seu propósito de aproximação com este
profissional. Outras ainda procuravam brincar com os profissionais para conquistar sua simpatia e
atenção, e, com isso, uma melhor assistência.
Como pontua Boltansky (1989), os indivíduos de classes populares avaliam a
competência profissional com critérios difusos usados cotidianamente, como amabilidade, boa
vontade e complacência, provavelmente pela distância social que os separa do médico. Contudo,
parece-nos que, não processo ora de acomodação, ora de resistência ao modelo biomédico, as
usuárias desejam, a despeito de competência técnica, uma relação mais próxima, afetiva e
humana com os profissionais, permeada pela confiança e incentivo, o que revela-se importante
para elas.
E8 - E o doutor W (...) é um anjo! Quem dera que todos os médicos fossem iguais ele.
Tenho todo o apoio dele, a hora que eu preciso (...). Ele é muito carinhoso comigo,
conversa muito comigo quando eu venho consultar com ele... E a Z [psicóloga] (...). Eu
tive principalmente apoio dela. E ela foi importante demais na minha vida e é até hoje.
118
Sujeito ou objeto: acessibilidade no modelo biomédico
Além da equipe médica, grande parte das entrevistadas recebeu atendimento por parte de
outros profissionais de saúde. Dentre estes, foram citados: psicólogo (sete), fisioterapeuta
(quatro), assistente social (um) – no período da cirurgia – enfermeiro (dois) – no período da
cirurgia e da quimioterapia.
Identificamos que, muitas vezes, o encaminhamento é realizado por solicitação das
próprias mulheres ou por outros profissionais que não o médico. Levantamos algumas hipóteses
para explicar a demanda delas por outros profissionais: talvez pelo não acolhimento da sua
subjetividade; talvez pela falta de integração entre os profissionais que não conhecem nem
reconhecem a atuação de outras áreas que não a sua; talvez os médicos não estejam preparados
para identificar o grau de comprometimento emocional e, assim, encaminhar para os profissionais
que poderiam somar na recuperação e reinserção das mulheres no seu cotidiano; e talvez porque,
em determinados lugares, realmente não haja uma equipe multidisciplinar que possa atender às
necessidades individuais das usuárias.
E1 diz que não precisou da assistência de outros profissionais além do médico. Entretanto,
conta que sente dor e dificuldade para movimentar o braço, o que poderia ser minimizado pelo
trabalho do(a) fisioterapeuta.
Em contrapartida, E9 avaliou que não precisava de atendimento psicológico, pois não
tinha tempo para realizá-lo, o que, confirmando a transversalidade entre gênero e classes sociais,
mostra o quanto as mulheres de classe trabalhadora não podem abrir mão das prioridades de
subsistência, próprias e de sua família para se cuidar. A representação preponderante da mulher
forte se faz clara quando afirma que “tudo pode”. Ainda em seu relato, explana que, no serviço
municipal, no qual recebe assistência, todas as mulheres são encaminhadas para a psicologia e, no
119
ínterim de algumas entrevistas, decidem se gostariam de continuar o acompanhamento.
Infelizmente, isto não ocorre em muitos serviços, onde as equipes se restringem a profissionais
com área de atuação semelhante.
Também detectamos, nos comentários de E2, a falta de integração da equipe atuante no
hospital-escola, pois, na época de sua cirurgia, em 2002, já havia a atuação de vários
profissionais, inclusive através do projeto DE PEITO ABERTO, que funciona desde 2001. A
despeito das complicações da cirurgia, pelas quais ela ainda hoje não consegue movimentar a
mão, não ficou sequer sabendo que poderia lançar mão de recursos que estariam a sua disposição
no próprio local onde realizou a cirurgia e o acompanhamento médico pós-cirúrgico. Por acaso,
esta entrevistada manifestou o desejo de que toda a assistência fosse realizada numa mesma
instituição, para não ocorrer a “falta de atenção e descaso” pelo qual passou no serviço de
fisioterapia conveniado com o SUS, como descrito anteriormente na categoria “humanidade ou
descaso”.
O fato de a assistência ser realizada em lugares diferentes dificulta a formação de vínculo
com os profissionais, tão importante para o tratamento e a recuperação das mulheres acometidas
pelo câncer, como esta entrevistada coloca:
E2 - ... eu acho os médico meio assim... um pouco distante. Eu acho que eles deviam
apoiar mais a gente, conversar. Quando a gente se dar bem com o médico, eu acho que é
50% de cura. Está faltando (...) um acompanhamento total, no próprio hospital (...) eu
acho que teria mais chance deles acompanhar a gente, sabendo o quê que tinha
acontecido...
E2 – E também foi-me falado (...) quando eu fosse para casa, que iria uma médica de
família me explicar como que eu tinha que proceder (...) pro meu esposo, e não apareceu
até hoje.
120
Para Simões Barbosa (2001), esta suposta neutralidade pode estar sendo adotada como
estratégia de defesa dos profissionais para evitar ou minimizar um possível sofrimento advindo
do envolvimento emocional com situações de intenso sofrimento. Afinal, ter que extirpar a mama
de uma mulher - representada como mãe pelo sistema médico - é uma situação aflitiva. Numa
certa contradição, a autora identifica que equipes de saúde que tratam de situações-limite, que
lidam com vida e morte, parecem ter um diferencial que se expressa através da consciência sobre
a importância da motivação da paciente para o tratamento, para a vida, para a cura, na medida em
que a situação é muito grave e dolorosa. Por isso, estes profissionais têm um grande compromisso
com o trabalho, e muitos, inclusive, revelam posturas por vezes heróicas.
Todavia, o modelo biomédico tenta generalizar as situações, esquecendo-se das
particularidades de cada indivíduo, que pode responder diferentemente a situações semelhantes.
A preocupação com a ‘vida da mulher’, restrita ao biológico, desvaloriza sua subjetividade, seus
anseios e medos, restringindo a possibilidade de ocuparem o espaço da consulta como uma
oportunidade de expressar seus sentimentos:
E2 – Eu fiquei muito triste. Não me explicaram nada [da quimioterapia]. É um
comprimido por dia. Eu tenho que ir pra apanhar o remédio. Eu chego antes pra poder
consultar, o médico já passou e já deixou o remédio. Raramente eles ficam lá no dia da
consulta.
Entretanto, a maioria das mulheres declarou ter tido espaço para tirar dúvidas, fazer
perguntas ou, ainda, expor seus sentimentos. Segundo relato das que tiveram assistência
psicológica (sete), este foi o momento mais oportuno para expressar sentimentos pois, na consulta
médica, as dúvidas giravam em torno da doença, da cirurgia, de medicamentos, etc.
121
E10 – Eu gosto demais da Z [psicóloga]. Eu acostumei tanto com ela...[risos]
Ajuda,
porque a gente escuta muita coisa boa, né? Ela explica muito, ela é muito amável... é um
sonho pra mim. [risos]
Gostaríamos de destacar o mérito da intervenção de determinada profissional, mencionada
por várias entrevistadas, expresso no apoio às pacientes não momento que tanto fragiliza as
mulheres, atingindo sua mama, Afinal, é uma situação acarretada por uma doença que desperta o
medo da morte eminente. Em suas falas, elas ainda atentam para o vínculo criado com esta
profissional, que lhes ofereceu um suporte psicológico essencial.
Da mesma forma, algumas salientaram a positividade da assistência médica na
oportunidade de escuta, de atenção, com algo fundamental no decorrer do tratamento:
E3 - O doutor X sempre me tratou com muito carinho, com muito respeito. Quando ele ia
fazer a biópsia, ele estava ali segurando a minha mão, sabe? (...) ele não deixou ninguém
me por a mão. Era ele, tudo era ele que fazia, entendeu?.
E6 – Ela [médica Y] trata a gente com igualdade, não tem orgulho, não tem nada, ela é
simples, humilde, então gosto muito dela também, ela foi muito boa. Doutor W [outro
médico] (...) teve muito carinho comigo (...) conversava e me dava liberdade de conversar
com ele...
Esta valorização da humanização no atendimento, sobrepuja a visão do modelo biomédico
que restringe a relação profissional enquanto competência técnica e desvaloriza os outros
aspectos da vida das mulheres. Em seus discursos, as entrevistadas deixam claro que o
estreitamento das relações entre elas e os profissionais é, não só relevante, como produz
resultados positivos na sua recuperação.
Entretanto, este discurso de estranhamento no tratamento do profissional de saúde pode
representar um reconhecimento dos diferentes papéis sociais desempenhados na relação
terapeuta-paciente.
122
6.5 MOMENTO ATUAL E FUTURO
Atentando para o momento atual no qual as entrevistadas estão vivendo, buscamos
compreender como elas percebem seu corpo, sua readaptação, como é seu cotidiano de vida e
suas aspirações futuras.
Partindo de suas falas, as seguintes categorias empíricas despontaram: ‘o novo corpo’, ‘o
cotidiano’ e ‘quero ser feliz’.
O novo corpo
Para perceber o impacto da retirada da mama, perguntamos às mulheres como viam o seu
corpo hoje, sem a mama ou, para algumas, com a mama reconstruída. Estas representações são
importantes porque, segundo Ferreira & Figueiredo (1997, p.103), o corpo tem uma significação
concreta, sendo a materialidade do indivíduo, ou seja, “o objeto concreto, material, a prova de
que uma pessoa existe na sua singularidade”. Na complexidade do ser humano, o corpo não é só
biológico, mas representa um contexto de vida inserido não determinado momento histórico, ao
qual são aplicados valores, crenças e princípios sociais, políticos e econômicos. Na ótica das
autoras, a estrutura social capitalista concorre para perpetuar a ideologia dominante e as relações
de poder que atingem e modelam nossos corpos.
A categoria “apesar dos pesares, eu venci” engloba as modificações gerais do corpo
percebidas pelas mulheres, mostrando que, em um processo contínuo de readaptação, a maior
parte delas (nove) considera ter conseguido superar as dificuldades de se tocar, de se ver e se
123
deixar ver, assim como de falar e mostrar a cirurgia, pois já podem ver e sentir seu corpo atual,
sem a mama, “com naturalidade”, como “normal”.
Numa ambigüidade de representações, quatro destas avaliam que, ainda hoje, não
conseguem ter relações sexuais, não trocam de roupa na frente de familiares - inclusive o
companheiro - ou amigos, sentem vergonha de seu corpo e não usam mais roupas justas ou com
decote baixo.
E2 – [percebe seu corpo] Com naturalidade. Não tem dificuldade nesta parte, não.
Conseguir tocar eu não consegui ainda, não.
E8 – ... eu não consigo tirar a minha roupa não... ficar sem a parte de cima perto dele
[marido], não. Me sinto inibida, envergonhada...
Da mesma forma, a recuperação é revelada por muitas (sete) de várias maneiras. Em seus
depoimentos, notamos que a retirada da mama pode desencadear retraimentos ou aceitação
através de um processo de acomodação nesta nova e delicada situação – o corpo mutilado.
Apesar de referir “naturalidade”, elas conscientemente admitem reservas na relação com o novo
corpo – mesmo que ditas inconscientes.
E2 – ... não me incomoda, eu nem lembro que eu tirei uma mama, sabe? Eu mudo a
roupa, tiro a roupa, ponho, não quero saber. Agora... lá dentro, no meu inconsciente, tem
alguma coisa ainda que me incomoda... não sei se... seria... vergonha com os outro.
Numa reafirmação da vida e resistência em relação à doença, elas pronunciam sua
superação e cura – a fortaleza. Contudo, o mito da morte ainda traz inseguranças para algumas,
no medo da recidiva da doença – o emergir da fragilidade.
E4 - Eu sei que eu sou [sadia]. Me falta... a mama, mas eu...[pausa] não me acho linda
maravilhosa, mas também, não me acho um caco... [risos]. Eu... fico insegura... queria ter
124
certeza que eu não tenho mais nada. Mas eu não tenho essa segurança. Ainda estou
superando. [lágrimas]
A obscuridade das causas do câncer desperta a dúvida: cura ou recidiva? Mesmo
“sentindo-se curadas”, paira a incerteza de que a doença pode voltar ou pode ter-se espalhado
pelo corpo. Ainda assim, muitas delas (11) contestam esta representação e, numa luta incessante
pela vida, reafirmam sua cura, na esperança de que o desfecho seja diferente. Isto pode ser uma
estratégia para o enfrentamento da possibilidade de recidiva de uma doença que, na representação
popular, ainda significa uma condenação à morte:
E1 - Me sinto, curada! Liberta de tudo [risos].
E6 - ... eu já tive o câncer, já fui operada, eu creio que estou curada. Então eu não tenho
mais câncer. Por quê que eu tenho que aprender a conviver com o câncer? ... quero saber
do médico se pode a qualquer momento voltar... A gente já passou por tanta coisa e
ainda tem que aprender isso? [risos]
O triunfo sobre a possibilidade de morte e o enfrentamento dos tratamentos para o câncer
são vivenciados de forma singular, perpassados pela história de vida de cada mulher. Como
demonstrado por Simões Barbosa (2001), a superação do problema faz com que as mulheres
repensem suas vidas, atribuindo-lhes um outro valor. A experiência da doença, uma experiência
de sofrimento, de dor, de perda, fortalece as pessoas, quando estas conseguem dar a volta por
cima. Conseqüentemente, melhoram sua maneira de ser e de se relacionar com os outros. O
depoimento de E9 expressa este achado, relatando como repensou seus valores e, com isso,
cresceu como pessoa:
E9 – ... aí você vai vendo a vida de outro jeito. Você vê que muita coisa que você dá valor
não vale a pena. O que vale mesmo é a sua saúde, é a sua força de vontade, é o seu
convívio, dessa turma toda, você tirar as pessoas boas e continuar... É isso aí. Eu fiquei
uma pessoa bem melhor depois que eu tive câncer. Não é que era ruim, mas (...) eu cresci
muito como pessoa.
125
A percepção sobre o corpo também provocou re-significações de suas histórias de vida.
Quando inquiridas sobre o assunto, algumas (três) se reportaram aos aspectos gerais da vida, tais
como casamento, família, cotidiano. Ou seja, a percepção do corpo está, aqui, relacionada com
uma auto-avaliação e com o modo como vêem a vida, conforme identificam Duarte (2001) e
Ferreira et al. (2002).
O fato de a mama ter sido reconstruída parece não interferir tão profundamente na
representação do corpo, visto que, das oito mulheres que hoje referem ter conseguido superar a
retirada da mama e suas conseqüências, somente três optaram por realizar cirurgia reparadora.
No entanto, destacamos que a decisão de não fazer a cirurgia também pode estar apoiada
no medo do enfrentamento de novas cirurgias e suas conseqüências, já que é um processo não
muito fácil, como descrito logo abaixo. O papel dos parceiros foi fundamental na opção pela não
reconstrução da mama, os quais tiveram reações de aceitação positivas, colocando o amor por
suas respectivas mulheres como superior às dificuldades acarretadas pela doença, pela mutilação
e pelos tratamentos:
E1 – Ele me apoiou muito (...) na reposição da mama, ele ainda falou comigo: “que
venha de você, você que vai fazer, você tem que pensar”. Então ele acha que eu não
devo... fazer porque (...) é muita cirurgia, ficar cortando pra lá e pra cá. Ele falou comigo
que... se fosse ele, ele não ía fazer. Que eu me sinto bem assim do jeito que eu estou. E
ele tem sido muito carinhoso comigo assim, sabe?
A despeito disto, algumas ainda decidiram fazê-la. Interessantemente, as que fizeram a
reconstrução, tomaram a iniciativa sem avisar antecipadamente suas famílias e/ou seus
companheiros, enfrentando o risco de mais cirurgias, possivelmente numa tentativa de assumirem
o controle sobre seus corpos, e também de preservarem seus familiares de mais sofrimento.
126
E3 - Quando vim fazer a... a recomposição ninguém queria. eu vim escondido, só
souberam o dia que eu internei, que eu falei assim: “ó, estou internando”. Entendeu? Ah,
eu acho que o negócio é meu...
E4 - ... ele [companheiro] só soube na hora que, que eu já estava quase dentro do
hospital que eu avisei: “estou internando pra fazer recomposição”. Entendeu? Porque
ninguém queria, eu já tinha passado por muitas cirurgias (...) eu fiz mais três ainda, da
recomposição. (...) e todo mundo ficou com medo... Mas aí eu fiz.
Apesar de auxiliar na retomada da auto-estima, da auto-imagem e da própria sexualidade,
o processo de reconstrução da mama é complicado e doloroso. Mesmo depois de ter passado pelo
diagnóstico da doença e pela retirada da mama, a mulher ainda tem que encarar três cirurgias para
reconstituir essa mama, o que torna esta trajetória um novo calvário. Daí o papel determinante do
serviço de saúde para dar suporte e apoio para as mulheres acometidas pelo câncer.
Além disso, não serviço público de saúde, do qual depende a classe trabalhadora, a espera
da cirurgia para reconstituição é longa e sofrida, por envolver, além de tudo, a convivência com
um corpo mutilado no que ele tem de sagrado em nossa sociedade, que tanto exalta o corpo
perfeito.
E9 - ... eu não tinha noção quê que era a reconstituição. Eu achava que era ‘tum’, ‘tum’ e
fazia. Do jeito que tirou, eu achava que fazia. Mas nada disso, né? É uma coisa assim tão
penosa quanto tirar. Aí eu vim aqui e coloquei... aí abriu, colocou o expansor, aí começa
a injetar líquido pra... criar pele onde não tinha., né? São dores horríveis, né?... é três
dias de dor, depois passa. Mas dói, quem fala que não dói é mentira. Aí quando chega na
hora de por a prótese, o INSS não paga a conta, não entrega a prótese. Aí eu fiquei mais
um mês na espera. Eu esperei nove anos pra reconstituir meu peito. Sendo que assim que
eu tirei eu me inscrevi. Eu já coloquei a prótese, falta fazer o bico.
Como menciona Boff (1999), por não ser “a verdadeira”, nem sempre a nova mama
alcança as expectativas das mulheres, especialmente no que diz respeito à sexualidade.
127
E3 - ... o período que eu fiquei sem seio, a minhas relações sexuais eu nunca tirei a blusa
(...) nunca deixei por a mão (...) depois que eu fiz a prótese, pondo a mão, não pondo a
mão eu não sinto mesmo nada... não faz muita diferença.
Mesmo assim, elas ainda demonstraram satisfação pela possibilidade de uma reintegração social mais fácil através do resgate da integridade estética do seu corpo.
E5 - Hoje eu vivo, eu saio. Antes eu não saía muito, porque (...) eu achava assim: “um
seio só... como é que eu vou saí (...) depende do decote, blusa, roupa, isso e aquilo...”
Hoje não, hoje é outra coisa! Mudou muito.
O cotidiano
Além da não-aceitação do “novo corpo” - e algumas vezes por causa dela - algumas
entrevistadas passaram a limitar suas atividades cotidianas em função das restrições da cirurgia.
Três mulheres restringiram sua vida social, deixando de fazer atividades que as
satisfaziam muito, tais como andar de bicicleta, ir à piscina ou à praia e ir a lugares muito
populosos ou bailes.
Por não terem um trabalho remunerado, oito entrevistadas ocupam seu tempo com suas
tarefas do lar e outras atividades ocupacionais que lhes dão prazer:
E1 - Assim, a minha atividade de casa eu não deixei de fazer. Só crochê que eu deixei
porque tem que ficar tecendo, aí eu deixei de fazer.(...) que incha [o braço].
E7 – ... eu não fico à toa, não. Leio, sabe? Faço... sei duma reunião boa, eu vou,
participo... eu estudo, eu bordo, invento moda. [risos]. Ontem, meia noite, eu... peguei o
crochê, fiz uma florzinha de crochê [risos]. Eu não paro, não. Sabe?
Outras quatro necessitam de muita ou pouca ajuda para as funções domésticas e, no caso
de E2, que apresenta complicações graves, para os cuidados mais pessoais, como, por exemplo,
tomar banho.
128
E2 - Só o que está me incomodando é a mão mesmo, que eu não posso fazer nada. Só isso
que me incomoda muito. [Fico] Triste... gostaria de fazer mais.
Como a maioria não tem condições financeiras de contratar uma auxiliar que as ajude a
realizar estas atividades, geralmente a ajuda vem de algum familiar, principalmente do esposo.
Nesta categoria, assim como na “apesar dos pesares eu venci”, identificamos que as
mulheres não tiveram reações iguais, mesmo com graus de dificuldade semelhantes. Como
advoga Clapis (1996), além do tratamento para o câncer, é necessário considerar o impacto da
doença no estilo de vida de cada mulher, isto é, na sua subjetividade, no seu modo de ser e de
sentir-se mulher, alterados pela retirada de um órgão que simboliza a identidade feminina. Desta
feita, a assistência à saúde deve levar em conta as individualidades de cada mulher, identificando
o modo particular de ser e de reagir à doença e aos tratamentos.
Quero ser feliz: perspectivas futuras
Na indagação sobre seus sonhos e desejos futuros, as respostas das mulheres foram as
mais variadas possíveis, mas a maioria apontou para um projeto de vida humano, no qual a
solidariedade ocupa lugar central.
Quatro mulheres referiram perspectivas relacionadas à possibilidade de ajudar a família
(E4, E9, E10) e/ou outras pessoas em situação semelhante (E1, E2). Cinco (E2, E5, E6, E8, E12)
relacionaram à necessidade de se sentirem úteis, de trabalhar como um sentido para viver.
E1 - ... abriu um trabalho lá na creche, pra criança (...) classe humilde, né, que precisa, e
eu tiro (...) duas vez na semana que eu passo à tarde toda com elas lá, brinco com elas.
E1 - Pessoa mesmo, que fizeram cirurgia como eu (...) com depressão, angústia, tristeza,
né? Não querem nem saí de casa mais, não quer mais saber da vida, né? (...) então a
129
gente faz a visita, passa pra eles que é uma benção, né, a gente confiar em Deus... e temo
visto pessoas já bem tranqüilas com esse argumento que está passando, né?
E2 – Eu pretendo ficar boa, se Deus quiser, a minha mão voltar a funcionar, eu voltar a
trabalhar, fazer o trabalho que eu fazia e fazer muito mais. Ajudar (...) quem precisa mais
do que eu.
Mais uma vez reconhecemos a força da ideologia de gênero que reforça o papel das
mulheres como cuidadoras da família, de tal forma que esta questão surge em seus sonhos e
perspectivas futuras.
Na contramão desta representação, o sonho de E9, assim como o de E7, ilustra um
processo em que algumas mulheres parecem, finalmente, se permitir o prazer, o lazer, rompendo
com a ideologia que as institui como cuidadoras dos outros, em detrimento do cuidado consigo
próprias:
E9 - Quero que meu filho se forme (...) que ele seja muito feliz (...) Quero emagrecer,
quero ir na praia, ficar trinta dia de perna pro ar lá, me bronzeaaando. Quero aproveitar
a minha vida, sabe? Quero passear um pouco, que eu sempre só trabalhei. Quero
passear, se for possível...
E7 – Queria ter mais sossego [risos]. Ficar bem quietinha, ninguém me incomodar (...) o
resto deixa correr do jeito que está. [risos]
E11, numa certa contradição, refere desejar ter saúde, mas não ter mais sonhos, apenas
espera a “mortinha”. Esta perspectiva, assim como demonstram E6 e E12 que gostariam de voltar
às atividades, é influenciada pela idade avançada das entrevistadas, que referem um desânimo
para concretizar suas aspirações. E12 profere “não ter mais ilusão depois da doença”.
E6 – ... eu tinha vontade de voltar a estudar, sabe? Mais eu falei: ‘já estou tão atrasada,
tão aparada assim no tempo, né? Ah, vai ser difícil’. Aí ponto, desanimo, sabe?
E12 – Agora não tenho nem sonho mais não (...) maior sonho da minha vida era uma
moto. Era apaixonada (...) não pode, não pode, né? Plano agora é esperar [morte]
mesmo e pronto... não ligo pra mais nada não... pra mim (...) é indiferente. [lágrimas]
130
Apesar desta suposta visão de derrota, se utilizam de mecanismos para driblar a
determinação da ciência médica de que, daqui para frente, teriam certas limitações para realizar
suas atividades cotidianas:
E6 - Saio pra ir à igreja, e tudo... Visto normalmente, ponho meu enchimento, ponho meu
salto e saio, sabe? Não estou nem aí (...) tem pessoas que (...) fala: “é verdade que você
operou da mama? E você tirou a mama (...). Mais está aí?”. Falei: “ah, mais isso aqui é
enchimento”. Pronto! Normalmente, sabe? Eu falo assim e já não tenho mais aquele...
medo de falar, aquele preconceito, sabe?
E12 – ... que eu parei, foi o de fazer os pães e andar de bicicleta (...) o médico mesmo
proibiu. Que eu posso... cair e machucar justamente do lado que foi a cirurgia (...) mas
de vez em quando eu ando, [tosse] só na rua lá, eu dou uma voltinha... Agora já mexo
com forno, tenho forno refratário...
Algumas mulheres demonstram pessimismo em relação aos seus projetos de vida. Mas,
não processo de resistência e acomodação, verificamos que elas sempre tentam alcançar seus
objetivos, seus sonhos, olhando para o futuro e mantendo a esperança.
Não esforço para serem felizes, elas expressaram esta garra em suas inquietações e
reações. São mulheres guerreiras, que lutam para viver e não querem se entregar. Mulheres que,
apesar de não terem mais uma mama (pelo menos a “verdadeira”), não deixaram de ser mulher.
E, como várias delas mesmas relataram, “mulher é mais forte”, embora a ciência médica
diga o contrário, em se referindo ao biológico. Mas, em certos momentos, também expuseram sua
fragilidade, permitindo-se vivenciar o sofrimento de perdas e modificações em suas vidas e em
seus relacionamentos, sem abandonar o desejo de viver.
131
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa pôde apontar, através das falas das mulheres, questões pertinentes para os
modelos assistenciais de saúde na ótica de gênero. Particularmente no que se refere à assistência
ao câncer de mama, que, como vimos, é uma experiência dolorosa, sofrida, que traz impactos e
repercussões subjetivas e objetivas na vida das mulheres. O estudo possibilitou, ainda, aprofundar
os conhecimentos sobre as mulheres e suas questões sociais e de vida neste contexto sóciohistórico, onde a transição de gênero se faz presente.
Assim, as maneiras de se lidar com uma doença estigmatizada pela morte e que afeta a
identidade feminina – retirada da mama – é, para além das particularidades de cada mulher,
perpassado pelos papéis sociais atribuídos ao feminino na sociedade ocidental, o que também está
intrínseco na assistência à sua saúde.
Confirmando o que a literatura diz, as entrevistadas mostraram que as mulheres estão
acumulando funções nas esferas pública e privada, o que traz uma sobrecarga que, muitas vezes,
interfere no relacionamento familiar, afetando as relações sociais entre homens e mulheres.
Entretanto, observamos que nem todos os homens se enquadram na ideologia de gênero
que identifica o masculino como desobrigado do trabalho doméstico. Antes, muitos se mostraram
solidários e companheiros, demonstrando sua afetividade e apoio em situações difíceis para suas
mulheres. Para elas, este apoio foi essencial no enfrentamento de toda a situação do adoecimento,
na sua auto-estima e na opção pela reconstrução da mama, ou não.
Identificamos também, conforme apontam diversos autores, que as questões de gênero
estão profundamente entrelaçadas com a classe social, raça e etnia, o que vai determinar
132
diferentes circunstâncias de vida para as mulheres, interferindo tanto na forma de vivenciar e
enfrentar a doença, quanto nos seus processos de tratamento e readaptação à vida, à família e à
sociedade.
Na acomodação e na resistência às ideologias de gênero, estas mulheres se utilizaram de
mecanismos para negociar o ser mulher nas relações sociais com os seus pares e com os
profissionais de saúde, objetivando uma melhor atenção e assistência.
Atentamos também para o olhar crítico de muitas entrevistadas que, a despeito das
representações hegemônicas do papel feminino de esposa-mãe “guerreiras”, se revelaram, em
certos momentos, fragilizadas, demonstrando que não é possível generalizar todas as mulheres,
nem esperar que todas respondam igualmente ao tratamento e recuperação da doença. Diferiram,
entre as mulheres, o tempo e o processo de elaboração, aceitação e superação dos problemas,
revelando a complexidade de cada ser humano que tem uma história de vida que pode facilitar ou
dificultar a vivência de um processo de adoecimento. Elas também descortinaram certa
consciência das desigualdades sociais que interferem em seus contextos de vida e, portanto, na
sua forma de experienciar todo o processo de recuperação e adaptação às novas situações
impostas em conseqüência à doença.
Embora a Saúde seja um direito de todos, como no princípio constitucional da
universalidade e da eqüidade, dialeticamente o serviço de saúde também deve entender as
usuárias como seres singulares, identificar e responder adequadamente às necessidades e
particularidades pertinentes a cada caso, já que a integralidade entende a assistência organizada e
voltada para o indivíduo na sua singularidade e totalidade holística (Costa, 1999).
133
Nesse sentido, constatamos que, além do serviço de saúde, essas mulheres têm suas redes
de apoio sócio-familiar. Apesar do desemprego, essas redes de solidariedade auxiliam na
sobrevivência das famílias mais pobres, que se apóiam entre si.
Em um panorama de abandono social, muitas entrevistadas, apesar de ainda estarem em
idade produtiva, encontravam-se desempregadas ou afastadas (impossibilitadas de exercerem
suas atividades laborais), necessitando da ajuda da família/externos.
Entretanto, este mecanismo informal é insuficiente e não des-responsabiliza o papel do
Governo, das políticas sociais e, particularmente, das políticas de saúde no que se refere à
assistência ao câncer de mama.
Agravando a situação, ressaltamos a retração do Estado no investimento de políticas
públicas que amparem àquelas que não tem mais condições de trabalhar em conseqüência das
limitações impostas pela doença e/ou as seqüelas do tratamento.
Apesar das entrevistadas reconhecerem que a assistência recebida no SUS foi satisfatória,
e embora não seja esta a regra geral em um serviço público, evidenciaram certas carências e
dificuldades, como a desarticulação dos setores e serviços, o que gera uma fragmentação do
atendimento que impede a integração dos profissionais das diversas áreas e especialidades
direcionada ao cuidado das mulheres acometidas pela doença, dificultando o vínculo com uma
equipe de saúde e, em última instância, a assistência integral preconizada pelo PAISM.
Valorizando a humanização, as mulheres destacaram com muita propriedade a
importância da integração entre os profissionais, da personalização e da integralidade na
assistência, trazendo contribuições relevantes para a assistência à saúde pela ótica da
integralidade e da qualidade.
134
Entendemos que os achados desta pesquisa vêm, de certa forma, ao encontro dos
princípios preconizados pelo PAISM, não fazendo uma apologia ao programa como se apresenta
atualmente, já que enfrenta diversas dificuldades para sua implantação. Mas considerando-o,
como destacam Osis (1998) e Costa (1999), um modelo atualmente reconhecido como ideal em
sua proposta de promoção de um atendimento integral, de boa qualidade e eficaz nas ações para
assistência à saúde das mulheres.
Neste sentido, os dados da pesquisa contribuem e reforçam a necessidade de
implementação das diretrizes deste programa em sua totalidade, bandeira defendida por aquelas e
aqueles comprometidos em transformar e aperfeiçoar a assistência à saúde das mulheres no setor
público de saúde.
A escolha do cenário para o desenvolvimento da pesquisa deu-se em função de nossa
proximidade com as mulheres ali assistidas na prática docente. Entendemos que esta inserção
facilita a divulgação dos achados da pesquisa para as próprias usuárias, vistas aqui como sujeitos
no processo de saúde. A partir da compreensão da vivência destas mulheres, pudemos produzir
um conhecimento que visa colaborar com uma assistência humanizada e que seja realmente
eficiente e eficaz, porquanto dá voz às usuárias.
Além disto, apresentamos como um desafio aos profissionais a tentativa de incorporar a
perspectiva de gênero na assistência dentro do SUS.
Neste sentido, a pesquisa tem trazido um impacto positivo em nosso trabalho como
docente. Desde o início do estudo já vimos inserindo as discussões de gênero e os conhecimentos
desvelados na experiência de cada mulher na disciplina, nas aulas práticas, no estágio de Atenção
Primária e no Projeto de Extensão multiprofissional realizado no HU/UFJF. Incrementando a
formação profissional através de reflexões dialéticas, visamos colaborar com uma formação mais
135
crítica, humanitária e integrada em relação aos diversos aspectos que perpassam as questões de
saúde das mulheres.
É extremamente gratificante ver que os futuros profissionais começam a despertar para
um olhar mais integral, mesmo que num processo lento de reflexão e compreensão da
subjetividade do ser humano, o que, futuramente, pode vir a mudar a atenção à saúde das
mulheres.
Em contato com alguns alunos e profissionais de outras áreas na Universidade, tem
surgido o desejo coletivo de aprofundar os estudos sobre gênero, o que vemos como uma
oportunidade de fortalecer os princípios de uma política adequada de assistência à saúde.
Ainda que num processo lento e complexo, este conhecimento pode colaborar na
elaboração de propostas e ações para melhoria desta assistência. Acreditamos que os profissionais
de saúde devem ter o compromisso de produzir mudanças sociais à partir da incorporação da
perspectiva dessas mulheres para, em última instância, mudar a assistência que a elas é prestada.
E que, somente através da reflexão e de um olhar crítico a respeito de nossas práticas, podemos
discutir propostas de mudança no modelo assistencial em saúde vigente.
136
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203-222.
143
ANEXOS
144
ANEXO 1
Roteiro para entrevista com as mulheres
1. Perfil sócio-econômico
Š Sexo:
Š Idade:
Š Naturalidade:
Š Escolaridade:
Š Composição familiar (com quem mora):
Š Estado Civil:
Š Filhos:
Š Situação conjugal atual:
Š Idades:
Š Profissão/trabalho atual:
2. História de vida:
- Fale-me um pouco sobre você, de onde veio, sua vida (origem familiar; migração; uniões;
filhos; trabalho/sobrevivência)?
3. Representações de gênero
- Se pudesse escolher, gostaria de ser homem ou mulher? Por quê?
- Como você vê a situação das mulheres, hoje em dia? E a dos homens? Acha que interfere na
relação familiar?
- Como se vê enquanto mulher, em sua vida?
4. História da doença
- Como foi, para você, saber que estava com câncer de mama?
- Mudou alguma coisa em sua vida/de sua família?
- O que representou a retirada da mama?
- Algo mudou em sua vida por conta desta cirurgia?
145
- Teve algum tipo de ajuda no período de recuperação?
- Teve algum tipo de apoio (familiares, amigos, outros)?
- Como está sendo/foi o retorno às atividades diárias / ao trabalho? Algo mudou?
5. Tratamento
- Que tipo de tratamento você realizou? Recebeu algum tipo de informação ou orientação sobre
os cuidados com a cirurgia, com o braço, seu corpo, ou outros?
- O que você acha do(s) tratamento(s) para o câncer de mama? O que te ajudou a passar por isso?
- Teve alguma complicação da cirurgia?
- O que gostaria que mudasse no seu tratamento?
6. Serviço de Saúde / Assistência
- Com quais profissionais teve contato? Participou de algum grupo de apoio ou recebeu
assistência de algum profissional além do médico?
- Entendia tudo que lhe era dito? Teve oportunidade de expressar seus sentimentos?
- O que você acha da assistência recebida? E o relacionamento com os profissionais?
7. Momento atual (após um ano de cirurgia ou mais)
- Atualmente, você ainda realiza algum tipo de tratamento ou acompanhamento?
- Como está hoje, sua vida, como é seu dia-a-dia, seu trabalho...?
- Como você percebe seu corpo agora?
- (Caso tenha feito a reconstrução mamária:) Como é estar com a nova mama?
8. Futuro
- Você tem sonhos, projetos (quais)? O que pretende fazer a partir de agora?
146
ANEXO 2
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para as Mulheres Mastectomizadas
Você está sendo convidada a participar da pesquisa De peito aberto: falando de mulher
para mulher sobre a mastectomia e a assistência à saúde das mulheres numa perspectiva de
gênero, através de uma entrevista. Vamos conversar, por mais ou menos uma hora, sobre o
câncer de mama e seu tratamento, a mastectomia, sua vida depois que retirou a mama, como é ser
mulher agora sem a mama e a sua relação com a equipe de profissionais que a atendem neste
hospital.
Você não é obrigada a aceitar este convite e pode desistir a qualquer momento, mesmo que
a entrevista já tenha sido começada ou depois de terminada. Caso você não queira participar, não
terá, por causa disso, nenhum tipo de problema comigo, nem com os profissionais que a atendem,
nem com o hospital. De forma alguma isto será anotado no seu prontuário ou comentado com
qualquer outro profissional desta instituição.
Para que eu possa anotar tudo o que você quiser me falar precisarei gravar esta entrevista
em fita cassete. Mas estas informações serão confidenciais e nem o seu nome nem o deste
hospital serão revelados no meu trabalho. Isto quer dizer que o que você tem para me falar é
importante para que eu possa estudar e conhecer mais sobre a vida das mulheres que fizeram a
mastectomia, mas ninguém saberá que foi você quem me disse isso.
Se você não se sentir bem depois de falar sobre estas questões ou quiser conversar mais
sobre isso outras vezes poderei encaminhá-la para um atendimento com uma psicóloga. Mas
lembre-se: você é livre para desistir de participar desta pesquisa a hora que quiser.
Você receberá uma cópia deste termo no qual consta o meu telefone e o meu endereço,
podendo fazer qualquer pergunta sobre algo que não tenha entendido agora ou em qualquer
momento.
____________________________________________
Simone Meira Carvalho
Pesquisadora
Endereço: NESC/UFRJ – HU/UFJF – Rua Catulo Breviglieri, s/nº, Ambulatório de Fisioterapia
Samarão Brandão (térreo), Morro da Glória, Juiz de Fora, MG.
Tel.: 9958-0429 ou 3229-3084 (5ª feira, pela manhã).
Eu, ___________________________________________, entendi as informações que me foram
ditas acima e aceito participar desta pesquisa com esta entrevista.
Juiz de Fora, _____ de _______________ de 2004.
147
ANEXO 3
Perfil individual das mulheres entrevistadas
E1, 43 anos, natural de S. João Nepomuceno – MG. Filha de pai agricultor, trabalhava na roça
ajudando os pais e estudava. Saíam de casa às 6 horas e voltavam às 17 horas. Considera que sua
infância foi abençoada, embora a vida fosse difícil por morar distante da cidade. Tem o 1º grau
incompleto, começou a trabalhar aos 19 anos de idade como babá, quando foi para Brasília (DF).
Quando sua mãe morreu, em 1982, veio para Juiz de Fora (JF) e, depois, para Matias Barbosa,
onde se casou. Não pode ter filhos. Após o casamento, o marido não a deixou trabalhar, alegando
que não precisava. Atualmente, mora com o marido. É evangélica (praticante freqüente). Sua
profissão é diarista/do lar, mas atualmente está encostada (beneficiária), tem como renda pessoal
1 salário mínimo (benefício) que, somando à renda familiar, (aposentadoria e comissão que o
marido recebe – continua na ativa) totaliza 3,5 salários. Realizou a mastectomia há
aproximadamente dois anos, fez também tratamento com hormonioterapia.
E2, 57 anos, natural de Juiz de Fora – MG, e vem de uma família de oito filhos. Considera ter
tido uma infância ótima, com uma boa criação, apesar de sem conforto. Por questões financeiras,
estudou até a 4ª série (1º grau incompleto). Começou a trabalhar aos 11 anos de idade, entregando
almoço. Depois foi trabalhar em casa de família, por pouco tempo. Consegui emprego no
comércio, numa sapataria, onde exercia a atividade de recuperação de calçados e a de balconista
da loja. Trabalhou ali por aproximadamente 20 anos e se sentia muito satisfeita. É casada e mora
com o marido, que era mecânico (trabalhava por conta própria), mas não pode ter filhos. É
evangélica (praticante freqüente). Sua profissão é balconista/recuperação de calçados, mas
atualmente está aposentada por invalidez (ficou cega por uma retinopatia diabética), tem como
renda pessoal 1 salário mínimo que, somando à renda familiar, totaliza 1,5 salário. Tem uma
pequena ajuda financeira mensal de uma irmã que mora em Belo Horizonte. Quando ela não pode
mandar dinheiro, ajuda de outra forma. Mesmo assim, por vezes “a situação fica difícil”.
Realizou a mastectomia há aproximadamente dois anos, fez também tratamento com
quimioterapia e radioterapia.
E3, 45 anos, natural de Piau – MG, vem de uma família de sete filhos. Sua família veio para JF
em busca de oportunidade de trabalho. Aqui, seu pai conseguiu emprego na CEMIG (empresa
estadual de energia elétrica) e sua mãe era professora o que, com certo sacrifício, permitiu que
todos os filhos estudassem. Tem o 1º grau completo (fez curso técnico de enfermagem) e
começou a trabalhar aos 17 anos de idade, depois que se formou, em consultório médico, por
pouco tempo. Casou-se com 18 anos e veio para JF. A família era contra o casamento, pois ele
era negro. Teve dois filhos (hoje com 24 e 22 anos) que moram com a tia. Na época em que eles
eram pequenos (cinco e sete anos), o marido foi preso (pediu sigilo quanto ao motivo),
provavelmente por injusta causa, mas nunca foi provado. Lutou para tirá-lo da cadeia. Quando foi
solto e retornou para casa, conviveram pouco tempo, pois ele começou a usar drogas e E3 se
separou, “para que isso não afetasse os meninos”. Neste período, tinha 22 anos de idade. Certo
tempo depois soube que ele faleceu. Nesse ínterim, teve ajuda da família para sobreviver. Seus
pais levaram as crianças para sua casa (Piau/MG) e permaneceram com eles até atingirem a idade
de 14 (menina) e 17 anos (menino). Nenhum dos filhos mora com ela, mas com uma tia.
Conheceu um companheiro com quem está amasiada há 13 anos. Eles começaram a trabalhar
148
juntos, primeiro vendendo verduras, trazendo coisas do Paraguai e, finalmente, montaram uma
distribuidora de produtos alimentícios (balas, pirulitos, etc). É católica (praticante freqüente).
Auxilia na distribuidora, tem como renda pessoal 2 salários mínimos e meio que, somando à
renda familiar, totaliza 5 salários. Realizou a mastectomia há aproximadamente nove anos, não
necessitando de outro tipo de tratamento. Fez a reconstrução mamária com prótese de silicone.
E4, 52 anos, natural de Dona Eusébia – MG, vem de uma família de dez filhos. Seu pai
trabalhava na roça e sua mãe lavava roupa para fora, e criaram os filhos com muita dificuldade.
Tem o 1º grau incompleto, pois de dia tinha que ajudar na roça e, à noite, o pai não deixava sair.
Começou a trabalhar antes dos 13 anos de idade como babá e, depois, como empregada
doméstica. Casou-se aos 22 anos e teve dois filhos (atualmente com 26 e 29 anos). Neste período
não precisou trabalhar, pois tinha uma “vida boa”. Depois de oito anos se separou, pois o marido
arrumou outra pessoa. Foi procurar emprego para ajudar a criar os filhos porque ele não pagava a
pensão, e mudava constantemente de emprego para burlar a justiça e se desvencilhar desta
obrigação. Depois de muito lutar na justiça e de “muita humilhação”, E4 desistiu de tentar que ele
pagasse a pensão. Hoje, mora em uma casa conjugada com a dos pais e outros irmãos. Mora com
a filha (mãe solteira aos quatorze anos) e dois netos (sete e 11 anos). O mais novo é portador de
necessidades especiais. Conta com o apoio da família para cuidar deles. Quando necessita, recebe
ajuda do pessoal da igreja (mantimentos). Seu filho mora com uma companheira e também lhe
deu um netinho. Antes de adoecer, enquanto trabalhava, podia ajudar o filho em caso de
necessidade, agora já não consegue mais. É católica (praticante freqüente), e atualmente está
viúva. Sua profissão é empregada doméstica, mas atualmente está encostada, tem como renda
pessoal 1,5 salário mínimo (somando o benefício e a aposentadoria) que, somando à renda
familiar, totaliza 3 salários (a filha recebe benefício em função da doença do neto). Realizou a
mastectomia há aproximadamente dois anos, fez também tratamento com quimioterapia,
radioterapia e hormonioterapia.
E5, 34 anos, natural de Juiz de Fora – MG, vem de uma família de sete filhos. Seus pais eram de
uma pequena cidade do interior de Minas. Vieram para JF em busca de trabalho, que
conseguiram na empresa de Correios, permitindo que os filhos estudassem sem precisar trabalhar.
Estudou até o 2º ano do 2º grau, parando para trabalhar porque “queria ter uma vida mais
independente”, pois “já não gostava muito de estudar” (logo depois casou). Começou a trabalhar
aos 21 anos de idade em uma firma, onde conheceu aquele que hoje é seu marido. Logo depois
casou, mas não teve filhos (opção). Quando a firma fechou, foi trabalhar em uma padaria.
Depois, foi para uma indústria de plásticos em que trabalha até hoje. Ao descobrir a doença, ficou
de licença um ano e meio para fazer os tratamentos. Quando fez a reconstrução, tirou outra
licença, mas retornou ao trabalho e “não pretende parar”. Atualmente é casada e mora com o
marido, em casa conjugada com a dos pais. É católica (não praticante). Sua profissão é operadora
de máquinas há nove anos, tem como renda pessoal 2 salários mínimos que, somando à renda
familiar, totaliza 4 salários. Realizou a mastectomia há aproximadamente oito anos, fez também
tratamento com quimioterapia e radioterapia. Fez reconstrução mamária em 2001, cinco anos
depois da cirurgia. Teve uma tia que faleceu com câncer de mama, pois não tratou há tempo.
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E6, 62 anos, natural de Tabuleiro – MG, é de uma família de quatro filhos. Sua família veio para
JF em busca de trabalho e acesso à saúde, que seu pai era muito doente (epilepsia), e a maior
parte de seus parentes estava aqui. O pai conseguiu um emprego na Prefeitura e a mãe lavava
roupa para fora esporadicamente, pois tinha que cuidar da casa e dos filhos. Eram muito pobres,
moravam todos em uma casa de um cômodo apenas. Começou a trabalhar aos sete anos de idade
em casa de família. Começou a estudar em um Grupo Escolar e, com 14 anos, foi para a Escola.
Aos 17 anos de idade, antes de completar o 1º grau, saiu do colégio e voltou a trabalhar em casa
de família. Ainda nesta idade, ficou noiva, mas logo desmanchou o noivado. Conheceu um rapaz
e, seu pai muito doente (câncer no intestino) pediu que eles casassem antes dele falecer, e assim
fizeram. Casou, teve três filhos (atualmente com 39, 38, 34), sendo que o mais novo mora numa
casinha nos fundos do terreno e é casado. Já tem oito netos. Quando casou, parou de trabalhar
fora porque o marido não deixava. Começou a lavar roupa para fora, mas depois ele achou que
“estava muito pesado”. Na época, ele “ganhava bem” e pagava uma lavadeira e uma ajudante
para o serviço de casa. E6 tem muitos problemas de saúde: pressão alta, diabetes, catarata (fará
cirurgia ainda este ano), artrose, bursite; completou 20 cirurgias, sendo, destas, sete de mama
(seis retiradas de nódulo – em ambas as mamas – e uma mastectomia completa, da mama direita).
Teve dois infartos no coração, no mesmo período da mastectomia; a última mamografia mostrou
dois nódulos na mama esquerda, mas com características de benignidade. Seu esposo também
tem problemas de saúde, com pressão alta, glicose alta e hérnia de disco. Quando E6 teve o
último filho, já estava com nódulos nas mamas e, no período das cirurgias de retirada dos
nódulos, o marido ajudava no cuidado com a casa e os filhos. Atualmente está casada (este ano
completa 41 anos de casamento) e mora somente com o marido. É evangélica (praticante
freqüente). Sua profissão é do lar e lavadeira, mas atualmente está afastada, tem como renda
pessoal 1 salário mínimo (benefício) que, somando à renda familiar, totaliza 2 salários; conta
ainda com o dinheiro do aluguel de uma parte da casa (aproximadamente 1 salário), que teve que
locar para auxiliar nos gastos com saúde (dela e do marido). Não conta com a ajuda dos filhos,
pois cada um já luta com sacrifício para pagar seus próprios gastos. Relata que a igreja já
ofereceu ajuda, mas, até agora, não foi necessário. Realizou a mastectomia há aproximadamente
um ano, fez também tratamento com quimioterapia e radioterapia. Além de seu pai, perdeu um
irmão com câncer na garganta. Uma neta e uma irmã também tiveram nódulos mamários
(benignos).
E7, 67 anos, natural de Pequeri – MG, vem de uma família de cinco filhos, tem o 2º grau
completo, começou a trabalhar aos 19 anos de idade, após completar os estudos. Seu pai foi
“farmacêutico” muitos anos; foi “médico”, “ortopedista”, “parteiro”... (“profissões” práticas, na
época). O irmão mais velho casou e foi para Belo Horizonte (BH). O mais novo estudar em JF,
assim como E7 e outras duas irmãs. Depois de algum tempo, seus pais venderam a farmácia e
vieram para JF, pois seu pai havia sido acometido pela doença de Parkinson. Seu irmão mais
novo faleceu em um acidente de carro com 25 anos de idade, o que, segundo ela, foi a maior
perda em sua vida, pois ajudou a criá-lo. Seus pais lutaram muito para vencer as dificuldades,
mas deram um exemplo de virtudes, de ética e de valores, destacados por ela. Sua mãe “viveu
para a família”. Trabalhava em casa, bordava para fora e ainda ajudava o marido na farmácia.
Todos os filhos do casal começaram a trabalhar só depois de formados. E7 se formou em JF, e foi
trabalhar como professora em Pequeri, depois em BH. Retornou para JF com quase 30 anos de
idade, e permaneceu na mesma profissão, apesar de reconhecer que monetariamente é pouco
valorizada. Teve alguns namorados, mas nunca se casou. Gosta muito de criança e, pelo fato de
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ser a irmã mais velha, abraçou a família, auxiliando no cuidado e criação dos irmãos, como se
fossem seus filhos. Portanto, não se deu ao direito de constituir sua própria família. Não possui
filhos. É solteira e mora com uma de suas irmãs. É católica (praticante freqüente). Sua profissão é
professora e costureira, mas atualmente está aposentada por invalidez (câncer), recebe 1 salário
(benefício) e a aposentadoria (4 salários), ou seja, tem como renda pessoal 5 salários mínimos
que, somando à renda familiar, totaliza 9 salários. Quando necessita de ajuda financeira, recorre
ao irmão mais velho. No período do diagnóstico da doença, sua mãe estava doente e veio a
falecer. Por este motivo, sua cirurgia de extirpação do câncer foi prorrogada por alguns meses.
Realizou a mastectomia há aproximadamente nove anos, fez também tratamento com
quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia. É a sétima pessoa da família que teve câncer,
quase todos de mama, inclusive a irmã com quem mora.
E8, 50 anos, natural de Juiz de Fora – MG, veio de uma família de nove filhos. Sua infância foi
muito difícil. Seu pai era operário, ganhava salário mínimo e, sua mãe lavava roupa para fora,
cuidava dos filhos e da casa e era muito doente. Teve que começar a trabalhar aos 13 anos de
idade, numa malharia, através de autorização judiciária. Todo o seu ganho era para ajudar em
casa. Considera-se uma pessoa pessimista pelos traumas da infância. O pai era muito bruto e
estava sempre reclamando que não tinha dinheiro para comprar as coisas. A mãe não tinha muito
tempo para se dedicar aos filhos, que andavam descalços e usavam roupas doadas por outros.
Começou a estudar à noite, pois trabalhava de dia, não tendo completado o 1º grau. Trabalhou até
os 23 anos de idade, quando se casou. Teve duas filhas (atualmente com 26 e 23 anos), uma
casada e uma solteira. Continua casada, mora com o marido e a filha mais nova. É católica
(praticante – eventual). Atualmente, está com diabetes, pressão alta e depressão. Sua família é
muito problemática. Recentemente seu pai teve os dois pés amputados por causa da diabetes, tem
um irmão com AVC (acidente vascular cerebral). Além disso, todos os problemas que eles têm,
ligam para E8, o que, segundo ela, a prejudica muito, pois não sabe negar ajuda e acaba se
envolvendo e sofrendo. Sua profissão é do lar e fazia salgados para fora, mas atualmente está
parada (só faz salgados esporadicamente, para família), portanto, não possui renda pessoal,
apenas a renda familiar que totaliza 4 salários. Esta não é suficiente, o que os leva a pedir
dinheiro emprestado, pois os gastos com remédios para ela e seus pais são muitos. Os produtos
dietéticos também são muito caros e nem sempre pode comprar para seguir a dieta que o médico
recomendou. Realizou a mastectomia há aproximadamente sete anos, fez também tratamento com
quimioterapia e radioterapia. Outros familiares já foram acometidos por câncer, mas, na mama, é
o primeiro caso.
E9, 50 anos, natural de Juiz de Fora – MG, vem de uma família muito numerosa, de 17 filhos.
Teve uma vida sofrida, com muita luta. Praticamente não estudou, pois tinha que trabalhar para
ajudar em casa. Tem o 1º grau incompleto. Seu pai era maquinista da Central (rede ferroviária), a
mãe era dona de casa. Sua família era tão pobre que só usou calçado quando pode comprar.
Começou a trabalhar em casa de família com seis anos de idade. Também costurava (sem nunca
ter aprendido) e “fazia” dinheiro revendendo alguns produtos por um preço maior do que
comprava. Sempre teve seu dinheiro e, com ele, ajudava no sustento da família. Casou-se com o
primeiro e único namorado. Teve um filho (25 anos, atualmente) que é solteiro e estudante (não
trabalha). O marido bebia muito e gastava o dinheiro que recebia. Com seu ganho, E9 ficava com
a maior parte do sustento da casa. Ao beber, o marido a ofendia. Por conta do câncer, a chamava
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de mutilada. Após 27 anos de casada (dois anos depois da mastectomia), separou-se. Voltou a
morar com a mãe, o que considera ter sido a pior coisa que fez na vida, pois seus familiares a
desprezaram por conta do câncer, achando que ela iria morrer. Sua mãe havia deixado que
construísse uma casinha em seu terreno. Ao construir parte da casa, seus familiares “jogaram
tudo no chão”. Então foi morar numa casa que a mãe comprou, em situação de uso fruto, um
barraco na beira da linha do trem, em péssimo estado. Com dificuldade, fez algumas melhorias:
construiu um banheiro, fechou a fossa, montou o “barraco” com móveis doados por amigos
(alguns ex-patrões). Trabalhou durante 38 anos não laboratório que, no final, estava inadimplente
com seus funcionários. Mesmo assim, E9 se virava para ganhar seu dinheiro, pagar suas contas e
realizar seu sonho, que era ver seu filho na faculdade. Ainda permanece casada, mas está
separada há seis anos. O filho mora com ela. É católica (praticante eventual). Sua profissão é
doméstica e também faz biscates para auxiliar na renda, que é de 1,3 salário. Realizou a
mastectomia há aproximadamente nove anos, fez também tratamento com quimioterapia e
radioterapia. Fez a reconstrução mamária em 2004.
E10, 78 anos, natural de Ubá – MG, vem de uma família de 11 filhos, sendo a mais velha de
todos. Nascida e criada na roça, ajudava na lida e no trabalho doméstico desde pequena.
Considera ter tido uma criação relativamente boa. Segundo ela, apesar de ser “uma luta pesada”,
vivia-se tranqüilo. Nunca teve doença grave, só uma osteoporose. Quando ficava doente,
procurava auxílio com o farmacêutico, o que era praxe, pois só havia dois médicos na cidade, na
época. Estudava na roça mesmo, mas não completou o 1º grau. Depois de adulta, abandonou os
estudos e foi trabalhar fora. Ajudou a cuidar dos irmãos com seus filhos. Mudaram-se para a
cidade quando seu pai teve um derrame e ficou paralítico. Começou a trabalhar em uma
confecção que, posteriormente, fechou. Ficou em casa certo tempo e foi embora para o Rio de
Janeiro, morar em casa de uma família conhecida. Lá, arrumou trabalho em uma escola. Depois
de 16 anos, levou sua mãe e alguns irmãos para lá, mas ficaram pouco tempo e quiseram voltar.
Alguns anos depois veio para Caxias (RJ) e ficou morando na casa de uma tia durante seis ou sete
anos. A escola em que trabalhava fechou e foi trabalhar em uma fábrica. Aposentou-se aos 65
anos de idade, mas permaneceu alguns anos, ainda, na ativa. Conheceu uma pessoa, o motorista
de uma empresa de ônibus que fazia a rota para o seu trabalho. Após anos de amizade, aos 70
anos de idade, resolveram morar juntos, em 1994. E10 parou de trabalhar e mudou-se para Ubá
(MG), depois para Juiz de ora, onde fixaram residência. Ele tem sete filhos, com quem ela se
relaciona muito bem. Da mesma forma, ele é com a família dela, a qual ajuda constantemente,
como se fossem seus próprios familiares. Ela mora somente com o companheiro, que se
aposentou. É católica (praticante eventual). Sua profissão é passadeira têxtil, mas, como está
aposentada, tem como renda pessoal 1 salário mínimo que, somando à renda familiar, totaliza 3,5
a 4 salários. Com o que recebem, vivem com certa dificuldade. Apesar disso, não contam com a
ajuda da família. Pelo contrário, quando esta precisa, eles é que ajudam. Realizou a mastectomia
há aproximadamente dois anos, fez também tratamento com hormonioterapia e radioterapia. Sua
mãe faleceu há 12 anos, com câncer.
E11, 74 anos, natural de Teixeiras – MG, vem de uma família de sete filhos. Moravam não sítio,
mas tinha empregados que faziam o trabalho, portanto, nenhum dos filhos precisou trabalhar.
Apenas estudavam e ajudavam nas atividades de casa. Com sete anos de idade foi para a casa de
uma prima, para se alfabetizar. Tem o 1º grau incompleto, mas nunca trabalhou fora. Considera
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ter tido uma vida boa na infância, que “era feliz e não sabia”. Pela ânsia de casar largou tudo o
que tinha na casa dos pais, a fartura e a tranqüilidade. Em 1969, casou-se com um rapaz muito
pobre e foi para Coimbra (MG). Ainda passou por outras cidades, onde o marido conseguia
emprego. Logo depois veio para JF. Não foi muito feliz no casamento, pois o marido “não tinha
juízo”, bebia e jogava. Apesar de ser trabalhador, não parava nos empregos e, quando ficava
desempregado, dependiam da ajuda dos seus familiares. Mesmo assim, refere que não precisou
trabalhar, mas que criou os filhos com muita dificuldade. Depois de 20 anos seu marido faleceu.
Veio para JF há 45 anos. Possui quatro filhos (50, 49, 47 e 44 anos), todos casados. É viúva, mas
tem um namorado, mora com uma das filhas (47 anos), o genro e a neta (17 anos; trabalha). É
espírita (praticante eventual). Sua profissão é do lar, e é pensionista, tem como renda pessoal 1
salário mínimo (pensão), que somando à renda familiar totaliza 5 salários. Realizou a
mastectomia há aproximadamente quatro anos, fez também tratamento com quimioterapia e
radioterapia.
E12, 63 anos, natural de Patrocínio de Muriaé – MG, vem de uma família de sete filhos, sendo a
mais velha. Refere ter tido uma vida um pouco conturbada, pois a mãe morreu de parto (da irmã)
quando ela tinha pouco mais de um ano de idade. Quatro anos depois, o pai casou-se novamente.
Apesar de conviver bem com os novos irmãos, o relacionamento com a madrasta não era bom.
Por isto, foi criada com a avó paterna, quem chamava de mãe. Contudo, passava certa privação,
pois a avó era viúva e não tinha pensão, viviam do sustento do pai, que era marceneiro. Muitas
vezes E12 desejava algo mas “não podia querer” porque não tinha dinheiro e percebia que a vida
de outras crianças era diferente. Entretanto, refere ter superado tudo isto. Mais tarde, seu pai
conseguiu um emprego na empresa de Correios, em Muriaé (MG). Neste período, E12 estava
com 14 anos de idade e começou a trabalhar em uma oficina de malacacheta. Saía de casa de
madrugada (03:30h). A fábrica faliu e, como não pagava INPS, deixou-a sem nada. Então, foi
para a casa de tios maternos, em Belo Horizonte (MG), onde começou a estudar, aos 16 anos.
Pouco tempo depois largou os estudos e voltou para Muriaé, pois foi aprovada em um concurso
da Companhia Telefônica Brasileira, retornando ao convívio da avó. Casou-se aos 23 anos e veio
para JF. Durante o casamento, praticamente não trabalhou porque o marido não deixava. Depois
de muita insistência, conversa e negociação, ele a deixou trabalhar e, um ano depois disso, ele
veio a falecer. E12 estava com 34 anos de idade, na época, e suas filhas com 12, 10 e 07 anos.
Trabalhou como ascensorista no SUS, durante quase dez anos. Neste ínterim, fez um curso de
auxiliar de enfermagem e foi trabalhar em um hospital. Quando ficou viúva, arrumou outro
emprego para manter o estudo das filhas. Saía de casa às 05h30m e chegava às 22h, mas fazia
com satisfação, pois sempre gostou de trabalhar. Por ser recatada, nunca teve outro
relacionamento conjugal. Com seu esforço, duas de suas filhas completaram o 3º grau. A terceira
filha adoeceu aos 24 anos, já casada (aneurisma pós-parto). Suas três filhas (40, 37 e 34 anos,
atualmente) estão casadas. Há cinco anos mora com uma prima que é estudante (não trabalha) e é
diabética. É católica (praticante eventual). Sua profissão é auxiliar de enfermagem, mas está
aposentada, tem como renda pessoal 2 salários mínimos (um da aposentadoria e um da pensão).
Realizou a mastectomia há aproximadamente quatro anos, não necessitando de nenhum outro
tratamento complementar.