cultura

Transcrição

cultura
c u lt
c u lt u r a
Aroeira
Chargista
Crise?
Que crise?
Quando o pessoal da Democracia Viva me pediu para escrever um artiguinho sobre a
crise, coisa pouca, seis mil caracteres, por aí... gelei. Demorei vinte minutos no Word só
pra descobrir como contar os tais caracteres. E esse preâmbulo foi só pra mostrar quão
pequena é a minha intimidade com editores de texto.
É que não tenho escrito nada na mídia por mais de vinte anos. Estou enferrujado. Ouço as minhas circunvoluções cerebrais rangendo e estalando. Receio até quebrar
alguma coisa, danificar alguma sinapse, sei lá...
Pra meu alívio, me explicaram que este é apenas um texto introdutório para um
montão de charges sobre a dita crise. Gostaria de colocar cartuns de vários colegas, mas
a logística disso não é mole. Portanto, peguei os desenhos do chargista mais próximo e
mais à mão, eu mesmo. Então... a crise? Não preciso explicá-la, não preciso pesquisá-la,
não preciso sequer compreendê-la... Só preciso rir dela. E, se possível, fazer com que
vocês também riam.
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Democracia
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Viva
Viva
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Mesmo que seja apenas um “rir de
nervoso”, como dizemos lá em Minas... Hoje,
olhando pra trás, o monstro pode até parecer
menor, se você mora por aqui. Ainda que também apanhássemos “cá o nosso talhão”, coisa
do idioma luso, ficamos com uma fatia bem
menor. Dizem que na Espanha, na Grécia ou na
Califórnia todo mundo quer migrar pra cá... O
Brasil ganhou um certo respeito lá fora, na base
do “last man standing”, o último de pé. Foi um
Halloween gigante (estourou, pra quem não é
economista, em outubro de 2008!), um tsunami
econômico que passou em nossas vidas, o fim
do mundo “tal como o conhecíamos”...
E etc. Repetido ad nauseum. Imprensa
é um negócio bem divertido: em 15 minutos,
todos os jornais acharam especialistas e economistas dispostos a compartilhar sua sapiência.
Todos em pânico. Todos com razão e com razões... muitas e contraditórias. Todos sabiam,
todos ensinaram e todos os brasileiros se tornaram economistas da noite pro dia, entendendo
de “spread” e “commodities”, acumulando isso
com o cargo vitalício de técnico de futebol,
que temos desde criancinhas. Analisávamos as
quedas abissais da bolsa com o mesmo interesse
com que analisávamos a seleção do Dunga. E
com o mesmo pessimismo, claro. É da nossa
alma. Coisa muito nossa.
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crise? que crise?
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Ah, e o(s) governo(s)? Aqui, o governo
dizia “Marolinha”, e a oposição respondia
“Tsunami” e “Fim do Mundo”. As empresas
demitiram preventivamente, os clientes secaram, e tudo virou uma enorme crônica de
uma morte anunciada. O mundo acabou,
gente... Corram em círculos e gritem socorro!
Governo corre daqui e dali, corta IPI disso e
daquilo, oposição acusa governo de esconder
a gravidade do Apocalipse, governo responde
com um clássico “pessimistas, incentivadores
do pânico”, oposição rebate com “escamoteadores, pilantras mentirosos”, governo retruca
com “fomentadores do caos”, e daí pra um
xingar a mãe do outro foi um fio de cabelo.
Todo mundo em pânico! Algum tempo depois,
recontrataram, recuperaram os clientes, passou
o susto e, ressabiadamente, nossos “agentes
econômicos” saem debaixo das camas e voltam
a fazer o que faziam... Ou seja, sugar o sangue
dos trabalhadores, para uns, ou fomentar o
progresso e o desenvolvimento, para outros.
Ou alguma coisa mais no meio...
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crise? que crise?
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Lá fora não foi diferente, se falamos só
do pânico. Acusações mútuas entre posições
políticas e visões econômicas em doze línguas
diferentes fazem um barulho e tanto! Já ouvi
falar de perdas de até 10 trilhões de dólares.
Mais. Isso é possível? Havia tanto dinheiro
assim no mundo financeiro, correndo essa
“rat race”, nas sábias palavras de Bob Marley?
Ou era igual ao dinheirinho do
Banco Imobiliário, de mentirinha? Sempre desconfiei.
Eu, cartesiano naïf que sou,
vivia me perguntando como
era possível todo mundo
ganhar aquela dinheirama
toda, como prosseguir com
aquela espiral de lucro incessante sem coisa nenhuma sair de
lugar algum. Principiozinho básico
da Física... A lei da conservação da energia.
Mas, se falamos de resultado final, os
gringos se saíram bem pior do que nós. Será
por causa das dezenas de planos econômicos,
desvalorizações e renomeações de moedas,
confisco de poupança, o escambau a quatro
que temos na nossa história? Será porque,
após tantas décadas de malucos de carteirinha
gerenciando nossos destinos (desenhei vários
deles, pombas!), estamos imunes à “economia
enquanto tal”, “em bloco e dentro do contex-
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crise? que crise?
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crise? que crise?
to”? Ai, que saudade do Paulo Francis... Ou
simplesmente acertamos, ultimamente?
Alguns dizem que escapamos por causa
do consumo interno, graças à distribuição de
renda promovida por esse governo. Simplista,
eu sei, mas é só pra resumir. Outros dizem que
foi o Programa de Estímulo à Reestruturação e
ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que saneou os bancos brasileiros,
explicação também simplista (não assino nem
uma das duas visões, nem nada que tenha a ver
com economia – vocês precisam ver as MINHAS
contas). Provavelmente uma combinação de
ambas as ações.
Sempre achei que os governos FHC e
Lula fizeram algumas das tarefas essenciais
pra esse país, só que em pontas diferentes
da sociedade. Pontas opostas, pra ser bem
claro... mas fizeram. Bancos com carteiras
relativamente seguras, pouquíssimas hipotecas, empréstimos mais amarrados (já tentou
arrancar um empréstimo de um banco se você
não tem carro ou casa? Fiu!), mais Bolsafamília na mão de um bocado de gente, e
outras formas de “assistencialismo populista e
eleitoreiro deslavado”, como diria a oposição.
Talvez tenha funcionado. O fato é que aqui nós
passamos e ainda passamos pelas turbulências
da crise, mas indiscutivelmente menores...eu
acho. Pode ser que algum economista leia isso
e diga “Mas que grande besta, esse cara!”.
Não seria a primeira vez.
Mas em outros cantos o desastre foi
feio pra burro. Existem lugares aí fora onde o
mundo caiu de verdade. Eu até achava que a
Islândia tinha sumido do mapa, mas pelo visto,
não. Sobrou pelo menos um vulcão, que fechou
o espaço aéreo da Europa por uma semana. Se
eu fosse o presidente da Comunidade Europeia,
mandava benzer aquele lugar...
Europeus e americanos não estão tão
acostumados à miséria como nós, me dizem.
Por isso, gente no sinal lavando para-brisa em
Paris, Londres, Madri e Los Angeles poderia
ensinar uma lição ao planeta. Bobagem. Paris
nem está notando as favelas de migrantes crescendo em sua periferia, a não ser pra votar leis
de exclusão e expulsão. O mesmo para essas
outras cidades. Tenho muitas dúvidas sobre a
capacidade de entendermos o desastre que
isso significa e como evitar “más de lo mismo”.
Assim que a re-acomodação acabar, os novos
donos daquele dinheirinho de Banco Imobiliário assumirão os dados (já estão a fazer isso
nesse exato instante) e o tabuleiro. E a espiral
volta a rodar, sempre pra cima e além. Mas
não liguem pra mim, sou só um chargista. Um
pessimista profissional...
Aqui entre nós: Eta pessoalzinho burro,
esses meninos ricos... não aprendem mesmo.
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