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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO
NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL.
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI
GT28 – Ruralidades: ambiente, processos e atores sociais
Espaço rural e mercados ilícitos: plantadores de cannabis na
região do submédio São Francisco e gestão diferenciada de
ilegalidades
Autor: André L. C. Costanti ([email protected])
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF)
Espaço rural e mercados ilícitos: plantadores de cannabis na região do
submédio São Francisco e gestão diferenciada de ilegalidades
André L C Costanti1 (UFJF) - Autor
A literatura sociológica clássica sempre demarcou grande oposição entre o espaço
urbano e rural. Porém, com a crescente complexização e integração da sociedade,
não se pode mais compreender esses dois mundos como opostos. Tendo por base
o argumento foucaultiano de gestão diferenciada das ilegalidades, este trabalho
visa investigar como o plantio de cannabis na região do submédio São Francisco
(região atingida pelas construções de barragens) se insere nessa lógica –
negociando as brechas entre legal e ilegal, lícito e ilícito – e mostrar como esse
fenômeno característico das grandes cidades opera no campo, descortinando suas
rupturas e continuidades.
***
O presente trabalho visa demonstrar a operação dos mercados ilícitos em
ambiente rural. O trabalho será guiado pela perspectiva de modificação do
espaço rural e sua semelhança, cada vez maior, com o espaço urbano 2. Para
tanto, foi realizado um estudo comparativo com os resultados obtidos em
estudos sobre redes criminais no Rio de Janeiro e São Paulo. Quanto ao
plantio ilícito, contei com os trabalhos já realizados na região, como os estudos
pioneiros de Bicalho e Hoefle e, notadamente, os trabalhos de Fraga e
Iulianelli. O trabalho conta também com parte original, onde foram analisadas
entrevistas realizadas com agricultores da região de Belém do São Francisco,
que, em alguma época, estiveram envolvidos com o plantio ilícito de cannabis.
Essas entrevistas são parte integrante de um projeto que visou investigar o
papel dos plantios ilícitos na formação da renda do trabalhador, e contou com
verba de pesquisa do CNPQ (recursos) e FAPEMIG (bolsa de iniciação
científica). Para garantir a segurança dos informantes foram omitidas suas
identidades.
***
1
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrando do
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora
2
Para uma discussão sobre a construção sociológica do espaço rural ver o artigo de Carmo
(2009). O autor propõe uma visão integradora de espaço urbano e rural, para além da sua
tradicional oposição/relação.
Os centros urbanos – Rio de Janeiro e São Paulo
Michel Misse, ao partir da lógica foucaultiana para analisar a criminalidade no
Rio de Janeiro, define como são formados os mercados ilícitos, mostrando o
poder institucional que, atendendo à demanda social por controle das paixões,
passa a regular socialmente o mercado:
As tensões que o mercado coloca para toda e qualquer sociabilidade
demandaram sempre uma definição dos limites legítimos da realização dos
interesses. Um desses limites é o que determina quais os bens e serviços
que podem, legítima e legalmente, constituir-se em mercadorias: a
institucionalização do mercado avançará a partir desse tipo de regulação.
Retirados, no entanto, da esfera institucional, muitos desses bens e
serviços transformam-se em mercadorias ilícitas, principalmente aqueles
afins às paixões controladas (prazer físico, perversões, vinganças, jogos,
proteção, drogas, escravos, objetos de saque, morte do adversário ou do
concorrente, etc.) cuja comercialização, tornada clandestina, passa a
constituir mercados ilícitos (prostituição; tráfico de drogas, de mulheres, de
crianças; saques e receptação de bens saqueados; sicariato e pistolagem;
contrabando, etc). (MISSE, 1999)
É nesse ponto que é realizada a passagem da lei à norma: “A ‘normalização’ é,
assim, a dinâmica de produção da sociabilidade entre sujeitos sociais
considerados como potencialmente desafiliáveis, egoístas
e, portanto,
perigosos” (MISSE 1999, P 52). A separação entre self e subjetividade é um
importante mecanismo dessa dinâmica de produção da sociabilidade, pois
representam não apenas polos opostos, mas pontos de constante tensão, entre
independência e autonomia, valorização social do individuo e valor de si
(MISSE, 1999). “Chamo, aqui, de ‘normalização’, ao complexo processo
histórico-social que mobilizou os ‘indivíduos’ [...] a auto-regularem sua
premência e sua ganância (de necessidades, interesses e desejos), através da
socialização do ‘valor de si’ como o valor próprio que deriva do desempenho do
‘auto-controle’” (MISSE, 1999, p 53). De maneira diferente de Foucault, Misse
define o processo de normalização como uma espécie de racionalização a fins,
na abstinência da força para fins individuais, na emulação de um status
individual.
De acordo com Foucault a punição ou simplesmente sanção de um crime pode
ser focada no transgressor ou na transgressão, variando de acordo com a
situação sócio-histórica. O estado moderno é individualizado e dessa maneira o
foco centra-se no sujeito da agressão. Nas palavras de Misse: “Quando essa
separação se extingue, quando transgressão e transgressor se tornam uma só
coisa, e a separação entre o fato e a lei torna-se maior, o que passa a ocorrer
na modernidade, busca-se através da razão identificar no transgressor motivos
e razões que o levaram à transgressão” (MISSE, 1999, p 57). Nesse ponto está
concluída a “passagem da lei à ordem” (FOUCAULT, 1987).
Tal abordagem implica na consciência da relativização do crime, posto que
determinadas práticas de um sujeito podem ser consideradas crime ou não,
dependendo do lugar e do tempo histórico que este ocupa. Assim, a definição
de um crime enquanto tal dependerá do contexto. Porém, a acusação passa a
ser simultaneamente descontextualizada e individualizada, passando por
controles locais de acusação3 (MISSE, 1999).
Tal perspectiva permite que o autor trate, de maneira diferente da concepção
usual da relação entre drogas e violência, ou simplesmente tráfico de drogas e
violência, o fenômeno da violência urbana no rio de janeiro. Assim, a violência
decorre de dois aspectos principais da acumulação social da violência: o
primeiro é a sobreposição e acumulação histórica de diversos mercados ilícitos
desde a contravenção do jogo do bicho e lenocínio até o moderno varejo de
drogas (MISSE 1999; MISSE 2008); o segundo aspecto fundamental é a
sobreposição de mercadorias políticas a mercados ilícitos, sobretudo o varejo
de cocaína (MISSE, 1999; MISSE 1997; MISSE 2002).
As mercadorias políticas somadas aos mercados ilícitos e informais formam o
que o autor chama de ligações perigosas. Parte do aparato estatal e
paraestatal armado, a exemplo da polícia e das milícias, negociam essas
mercadorias políticas4, vendendo proteção, cobrando comissão, taxas e
3
O autor demonstra através de uma crônica publicada em um jornal no inicio do ano de 1970,
que relata o estrangulamento de uma patroa pela sua empregada. A transcrição, que devido
aos limites físicos desse trabalho não pode ser aqui incluída, está presente na página 59 de
sua tese de doutorado referenciada ao final.
4
Michel Misse parte da idéia weberiana de capitalismo político e busca fundir esse conceito às
noções de clientelismo, corrupção e extorsão. “existe um outro mercado informal cujas
trocas combinam especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas, de tal modo
impostos dos comerciantes do ilícito, utilizando a violência para manter o
controle de territórios e sujeitar os transgressores (MISSE, 1999; MISSE 1997;
MISSE 2002).
O autor, bem como Vera Telles, como será demonstrado adiante, parte da
provocativa imagem da cidade ocidental como um bazar, mostrando uma
marca de orientalidade, onde tudo é negociado (RUGIERRO & SOUTH, 1997).
“Para esses autores, é próprio à cidade moderna-tardia, que as fronteiras
morais entre legalidade e ilegalidade se atenuem ou sejam constantemente
negociadas. Como suas referências são as grandes cidades européias e
norte-americanas, a diferença com a cidade moderna clássica, fabril, fordista
e organizada, fica ressaltada. No caso do Rio de Janeiro (como de outras
grandes cidades brasileiras e do chamado ‘terceiro mundo’), no entanto, que
em certo sentido sempre hospedou (ainda que diferencialmente) um « bazar »
de mercados desse tipo, a análise deve privilegiar menos a oposição ao tipo
ideal de cidade moderna, que por aqui não se realizou completamente, que
as diferenças de conjuntura e territorialidade de sua história.” (MISSE, 1999, p
291)
Vera Telles parte do mesmo ponto de Misse e, através de uma etnografia
experimental da cidade, procura analisar como são negociadas pelos atores as
brechas entre lícito e o ilícito em São Paulo, a maior metrópole brasileira.
Telles (2009; 2009b) e Telles e Hirata (2007; 2010), não abordam a
criminalidade, como é comum na visão corrente, como constituinte de um
mundo diferente do da ordem. As fronteiras entre lícito, ilícito e ilegal são
porosas e difíceis de serem determinadas. Práticas ilícitas convivem
diariamente com práticas lícitas e além da justaposição muitas vezes estas se
sobrepõem. Os autores se preocupam, assim, com “um cenário urbano no qual
se expande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as
diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de
que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor econômico e cálculo
monetário. O preço das mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, ganha a autonomia de
uma negociação política, algo como um mercado de regateio que passa a depender não
apenas das leis de todo mercado, mas de avaliações estratégicas de poder, de recurso
potencial à violência e de equilíbrio de forças, isto é, de avaliações estritamente políticas. Para
distinguir a oferta e demanda desses bens e serviços daqueles cujo preço depende
fundamentalmente do princípio de mercado, proponho chamá-los de “mercadorias políticas””
(MISSE, 20XX)
sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas ou delituosas.” (TELLES &
HIARATA, 2007)
Os trabalhadores precários do urbano negociam a cada contexto e a cada
situação os imperativos morais que envolvem suas atividades, sem, todavia,
constituírem necessariamente carreiras criminais5.(TELLES & HIARATA, 2007)
A opção dos autores pela perspectiva descritiva analítica, através da etnografia
experimental, partindo de cenas cotidianas e sem importância (FOUCAULT,
2003) se justifica metodológica e teoricamente no seguinte trecho:
“Se é verdade que o mundo urbano – o “bazar metropolitano” em suas
modulações locais – é atravessado pelas forças estruturantes que redefinem
as relações do trabalho e não-trabalho, entre o formal e o informal, o legal e o
ilegal, esses processos operam em situações de tempo e espaço. Processos
situados, portanto. E agenciados por meio de mediações e conexões de
natureza e extensão variada. Por isso mesmo, só podem ser compreendidos
nessas constelações situadas.” (TELLES & HIARATA, 2007 p 177)
Assim, os autores fogem das dicotomias que analisam os aspectos da ilicitude
sob a ótica do mercado internacional de drogas ou das populações em risco
social. O enfoque é nos atores que, diariamente, constroem as relações entre
licitudes e ilicitudes. (TELLES & HIARATA, 2007):
“São campos de força que se deslocam, se redefinem e se refazem conforme
a vigência de formas variadas de controle e também, ou sobretudo, os
critérios, procedimentos e dispositivos de incriminação dessas práticas e
atividades, oscilando entre a tolerância, a transgressão consentida e a
repressão conforme contextos, microconjunturas políticas e relações de poder
que se configuram em cada qual.” (TELLES, 2009, p 102)
As cenas cotidianas de um jovem gerente de biqueira que não mede esforços
para construir boas relações com os moradores da ‘comunidade’, financiando
festa junina, providenciando o ‘gato’ que garante luz – negociado com o
funcionário terceirizado da concessionária de energia elétrica - e por vezes
livrando a precária região de especuladores imobiliários do ilícito (TELLES &
HIARATA, 2007), e a de Doralice, uma diarista que tem contatos no mercado
5
FRAGA. Vida Bandida: Socialização e Produção de Subjetividades na formação de carreiras
criminais
de venda de receitas, possui uma banquinha de CDs piratas em seu bairro e,
eventualmente, para se safar de grandes embaraços financeiros leva um
pacote, sem fazer muitas perguntas, para algum endereço no caminho do seu
trabalho (TELLES, 2009).
Assim, podemos perceber que ambos autores, Misse e Telles, utilizam a lógica
foucaultiana de gestão diferenciada de ilegalidades6 para explicar a
criminalidade, a ilicitude e a violência no centros urbanos.
O plantio ilícito de cannabis no Brasil
O plantio de cannabis no Brasil concentra-se na região do médio e submédio
São Francisco. A região, devido à grande produção da planta, recebeu da
mídia a alcunha de Polígono da Maconha. Sua produção destina-se
prioritariamente ao mercado nacional, abastecendo cerca de 40% deste,
predominantemente as regiões norte e nordeste (FRAGA & IULIANELLI, 2011).
A concentração da produção nos mercados do norte e nordeste do Brasil devese especialmente ao abastecimento do sul e sudeste já ser dominado pela
produção paraguaia7. Isso porque, além da maconha paraguaia ser
considerada de melhor qualidade, por possuir maior concentração de THC 8,
entre o Paraguai e o sudeste brasileiro há maior número de rotas seguras para
o escoamento da produção (FRAGA. 2010).
Os
estudos
brasileiros
baseiam-se
nas
experiências
internacionais,
notadamente as plantações de cannabis em Rif no Marrocos e na África
subsaariana, de cannabis no México, além das plantações de coca na
Colômbia.
6
“riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte,
tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (FOUCAULT, 1997, p. 227)
7
O Paraguai consolidou-se como o maior produtor de cannabis da América Latina. Como possui um
mercado interno pequeno, expandiu o comercio para outros países da América Latíca (FRAGA, 2012)
8
FRAGA, 2006. Não tive acesso à estudos sobre concentração de THC nas diferentes produções. No
entanto, este não é o objetivo do presente trabalho. Basta que saibamos que o mercado consumidor
considera a maconha paraguaia “mais forte” do que a nordestina, não interessando se essa idéia
corresponde realmente às concentrações de THC de cada planta.
Os três casos, tipificados em recente estudo (FRAGA, 2012), apresentam
peculiaridades, advindas não só das especificidades culturais regionais como
também das características de sua produção, atores envolvidos, papel
econômico, fatores políticos, nível de violência e etc.
Há importantes estudos sobre o plantio de cannabis no México. Porém, é
preciso ter em mente que há algumas ressalvas a serem feitas antes de utilizálos para pensar a realidade brasileira. A produção mexicana é voltada ao
mercado americano, conhecidamente um grande mercado consumidor de
substâncias ilícitas. Possui também uma vasta fronteira, que propicia o
escoamento em larga escala. Seu plantio e comercialização são controlados
por cartéis, que costumam fazer uso de grande violência para intimidar e
controlar a população (FRAGA, 2012).
O plantio de coca na Colômbia apresenta uma grande especificidade que é o
uso tradicional de suas folhas. Além disso, há a coexistência de grupos
guerrilheiros, das FARC e de grupos paramilitares, o que, certamente, é de
grande importância para a compreensão da dinâmica da violência na região.
Estudos demonstram como a guerra às drogas, o combate ao plantio através
de fulminação de plantações ilegais, empurrou os plantadores para regiões sob
o controle paraestatal, onde é mais difícil a repressão, e aumentou o número
de desplasados (deslocamento forçado da população) (FRAGA, 2011;
TOKATLIAN).
O exemplo do Marrocos é o que mais se assemelha à realidade brasileira. O
plantio é destinado a suprir o mercado europeu, notadamente Espanha e
França, sob a forma de haxixe (produto derivado da planta). Segundo estudos
realizados em Rif, a produção de cannabis tem um importante papel no
acréscimo do IDH da região. Os autores espanhóis observaram uma crescente
qualidade de vida na região, com a construção de moradias melhores (paredes
de alvenaria e telhado de amianto), implemento de veículos automotivos,
principalmente motos. Apresentando-se assim, como a fonte principal de
recursos na região (FRAGA & IULIANELLI, 2010).
Para além, das peculiaridades de cada região, já apresentadas acima, os
plantios ilícitos têm em comum o fato de estarem presentes em locais de
precarização da mão de obra, ora como cultura principal, ora como cultura de
substituição (FRAGA & IULIANELLI, 2010), o mesmo fenômeno observado nos
mercados ilícitos dos grandes centros urbanos (TELLES 2009; TELLES &
HIRATA 2010; MISSE 1999).
A cannabis possui grandes vantagens em relação a grande parte do plantio
lícito, pois necessita de poucos cuidados e adapta-se bem a solos secos, como
é o caso do semi-árido brasileiro9. Apresenta também grande vantagem
econômica quando comparada às culturas tradicionais da região do submédio
São Francisco, como a cebola e o pimentão. Além de possuir uma maior
lucratividade, com preços mais elevados, a estocagem é fácil e barata10, e a
cannabis pode ser guardada para ser vendida em épocas de elevação do
preço, como períodos de festa. Quanto à cebola, cultura comum na região,
uma agricultora nos fala sobre a instabilidade nos preços:
Eu reclamei muito de meu pai que só plantava cebola e hoje eu continuo só
na cebola. Quando pega um precinho bom dá uma levantada depois cai de
novo....[...] Com a cebola você consegue uma renda maior né, mas não é
sempre. Mas o pessoal que planta milho a renda é sempre mais baixa. A
gente planta também o pimentão e o coentro, mas é para consumo. A gente
leva pra uma Ceasa da cidade, lá tem os compradores da cidade e os de
fora. Dependendo do valor a gente prefere vender para o da cidade, pra
fortalecer a economia local. O valor da saca está hoje de 12 a 14, mas mês
passado ela chegou até 30. Ela sobe, cai.... Tem gente que fala que é a
maconha, mas eu acho que o produto principal da região ainda é a cebola
(Dalva, agricultora)
O plantio de cannabis no Brasil apresenta a característica de cultura de
substituição ilícita, sendo realizado em épocas de dificuldades financeiras ou
até mesmo para prover implementos na qualidade de vida, como comprar uma
moto, vestimentas ou bancar os estudos de um filho. Depois de um tempo
plantando cannabis, os agricultores retornam para as culturas convencionais.
9
No Lesoto, onde não só o uso para fins recreativos é bastante difundido como também para fins
medicinais, há registros do uso do plantio de cannabis como alternativa a solos desgastados. FRAGA
(2010).
10
Costuma-se enterrar o produto do plantio, colocando-se açúcar para garantir a qualidade (FRAGA,
2010)
Assim, podemos perceber a característica de “ilegalidade transitória”, presente
na região. (FRAGA & IULIANELLI, 2011).
Nota-se também o importante aspecto da coexistência e sobreposição de
mercados lícitos e ilícitos (FRAGA & IULIANELLI, 2010). Os plantadores
costumam cultivar simultaneamente culturas lícitas e ilícitas. As culturas lícitas
são realizadas em suas próprias terras, ao passo que as ilícitas costumam ser
realizadas em terras pertencentes ao poder público (como as beiras de
estradas e as margens e ilhas do Rio São Francisco) para que, caso
descobertas, os proprietários não tenham suas terras desapropriadas para fins
de reforma agrária (FRAGA, 2006).
O recrudescimento da violência na região, observado com o aumento do
plantio (BICALHO, 1995; BICALHO & HOEFLE, 1999), relaciona-se a uma
questão já bastante conhecida e que rendeu (PINTO, 1949) e rende
(BARREIRA, 2006; BARREIRA, 2002) grandes estudos: as brigas de família e
a concentração de poder destas. As famílias que controlam o agronegócio
assumiram o controle do plantio ilícito de cannabis:
“A CPI do Narcotráfico, implementada pela Câmara Federal, em 1999,
identificou, como veremos mais a frente, que em municípios do Submédio
São Francisco, como Floresta e Salgueiro, as rixas entre famílias, o
envolvimento das mesmas com atividades ilícitas e de grilagem de terra e os
conflitos históricos, migraram para o plantio de maconha, quando esta
atividade econômica tornou-se possível, rentável e alternativa”. (FRAGA,
2006)
Podemos perceber esse aspecto na fala de uma agricultora da região de Belém
do São Francisco, que, ao falar sobre o deslocamento dos agricultores para
terras não férteis, nor informa que este:
“.... é associado também com as brigas de família, tá? Que está associado,
estritamente aqui, pelo menos aqui, em Belém, ao tráfico de drogas (...) que
foi aos Aracuãs. O que vai fazer com que essas pessoas elas só plantem
cebola. Só cebola. Um ou outro planta um abacaxizinho, um ou outro, mas é
impressionante [...] E também não tem estímulo nenhum do Estado para
plantar. Então vai plantar maconha mesmo. E aí, quem tá nas ilhas vem
porque os Gonçalves estavam nas ilhas. Eles mandavam nas terras deles.
Eles mandavam lá. Ainda mandam, mas não do tamanho que era antes.
Aqui dá pra andar sem levar um tiro agora. Antes não, antes era ‘festa’. E aí
como essas famílias mandavam antes, era o tráfico que mandava antes, e aí
você plantava cebola e no meio da cebola ‘punha’ maconha. Até hoje, viu?
Até hoje.” (Moradora)
“Tem umas áreas que a própria população sabe que não pode ir. Se você for
você não volta. Se você entrar você não pode sair, porque você pode
procurar a polícia, né. Se você chegar numa área dessas você não volta não.
A não ser que você seja muito íntimo de quem esteja lá.” (Agricultora)
A região que, como vimos, é marcada historicamente pela violência, também
sofre com o acumulo de anos de descaso por parte do poder público e
ineficácia de investimentos. A euforia gerada pelo incremento da irrigação
capitalizada não propiciou distribuição de renda (em muitos casos tendo o
efeito contrário, o de ampliar a concentração de renda) nem incremento
significativo da qualidade de vida (BICALHO, 1995; BICALHO & HOEFLE,
1999).
A violência, entretanto, é gerada, assim como observado por Michel Misse no
Rio de Janeiro, mais pela repressão policial, pela maneira como o poder
público e, em certa medida, a sociedade, gesta essas ilegalidades. Afinal,
existem registros históricos do uso e cultivo da planta na região, para fins não
comerciais (FRAGA, 2006). O cultivo passa a ser um problema a partir do início
de sua comercialização e o consequente combate a ela:
“Os dados sobre homicídios em cidades da região como Belém de São
Francisco e Floresta apontam para a coincidência do aumento das taxas
deste evento com o incremento da produção e da conseqüente repressão de
forças policiais. De 1997 a 2000, as taxas de homicídios de Floresta
credenciaram-lhe a condição de município com a mais elevada taxa deste tipo
no país. Nesse período, das 10 cidades mais violentas do país, considerando
esse indicador, duas estavam situadas na área do Polígono (Floresta, Belém
do São Francisco).
A maior coerção ao plantio, a partir dos anos de 1990, acarretou a presença
mais
freqüente
de
armamento
com
poderio
maior,
como
fuzis
e
submetralhadoras. Quando havia uma repressão mais incisiva da polícia,
parte do armamento se deslocava para outras atividades criminosas, como
assalto a ônibus e caminhões de cargas”. (FRAGA, 2006, p 107)
As ações governamentais, salvo em curto período da administração de
Fernando Henrique Cardoso, não possuíam políticas de substituição do plantio
ilícito, de acordo com Fraga (2006):
“Todavia, as ações desencadeadas pelo Governo Federal na Região
restringiram-se à repressão da atividade, não se verificando articulações do
mero combate ao plantio com medidas que proporcionem aos agricultores e
atores envolvidos com o negócio, alternativas econômicas e sociais de
sobrevivência.” (FRAGA, 2006)
A situação piorou com a construção da barragem de Itaparica, como mostra
relatório
da
CHESF
(Companhia
Hidro
Elétrica
do
São
Francisco)
encomendado à FUNDAJ (Fundação Joaquim Nabuco) para avaliar o impacto
social do reassentamento das famílias que habitavam as áreas a serem
inundadas. Na fala de um dos entrevistados dessa pesquisa, podemos
perceber os mesmos elementos. Uma ex-plantadora da região queixa-se do
fato das terras férteis terem sido inundadas, o que propiciou, juntamente com
outros fatores, a formação de uma monocultura da cebola:
Belém era uma região produtora de arroz, todas essas ilhas aqui eram antes
da barragem em 70, 80. Tinha tudo aqui em Belém. Hoje, na feira, nem o
coentro é de Belém. Tinha tudo. Nenhum dos feirantes é de Belém.
(Agricultora)
Desde 1987, quando os relatórios começaram a ser produzidos, até 1996, ano
do ultimo relatório, foram registrados diversos problemas, como a não garantia
do acesso à água encanada, interrupções no fornecimento de luz, condições
precárias de acesso à educação (quando essa era disponibilizada) e saúde e,
principalmente, desemprego (LIMA et al. 1996).
À época do inicio do reassentamento, 1988, a maior parte das famílias
reassentadas, vítimas de um processo de urbanização forçada11, sem
condições de plantar, pois os lotes coletivos ainda não haviam sido divididos e
a irrigação ainda não havia sido iniciada, era dependente da “bolsa” paga pela
11
As famílias atingidas pelas inundações necessárias à construção da barragem foram reassentadas nas
agrovilas. Estas consistiam em casas de alvenaria, formando uma vila, onde seria disponibilizado um lote
coletivo para usufruto de todos e outro individual, para que cada família pudesse plantar o que quisesse.
CHESF, no valor equivalente a 2,5 salários mínimos da época. Afinal, não
existiam (e até o ano do último relatório ainda não existiam) alternativas de
trabalho fora da agricultura (LIMA et al. 1996).
Quando se iniciou a irrigação, foi possível observar a presença de pequenas
ilicitudes, através da realização de “sangrias12” por parte dos moradores de fora
da vila – portanto sem direito à irrigação – nos dutos que levavam a água para
as plantações de dentro da agrovila (LIMA et al. 1996).
Observa-se também um grande laço com a terra, o que oferece uma
resistência ao assentamento em região semi-urbana e um descontentamento
quando este é inevitável:
Eu também sou agricultora de origem ribeirinha. Meus pais teriam que ser
reassentados, mas meu pai não quis sair da área onde viviam, que seria
alagada, mas graças a deus não foi alagada, meu pai não quis deixar as
origens dele. Pegava uma parte nas ilhas, e uma parte no lado de cá, eram
duas propriedades. A propriedade era dos meus avós, dos pais da minha mãe.
Tínhamos titulo da terra e tudo, mas meus pais não quiseram sair, porque ia
ficar longe os projetos né. (Agricultora, ex-plantadora)
O plantio de cannabis na região não se apresenta como cultura emancipadora.
Nela reproduzem-se as desigualdades e processos de dominação, como a
meação, que pode ser observado na feira (FRAGA, 2006):
“Em geral é feita a “feira”, ou seja, a compra de alimentos para a manutenção
do grupo nos dois ou três meses em que permanecem acampados. [...]
“Fazer a feira” requer recursos mais elevados, pois são muitas pessoas que
precisam de alimentos e outros gêneros para sobrevivência por um período
que pode ultrapassar três meses. Custeiam a feira aqueles que têm mais
recursos, chamados por muitos entrevistados de “grandes”, “maiores” ou
“patrões”” (FRAGA, 2011, p 28)
Na região também nota-se a peculiaridade, da presença da figura do
“boiadeiro”, mais um elo de dependência do plantador. Este é a pessoa que faz
a ligação entre o plantador e o comprador.
12
As sangrias consistem na utilização de mangueiras de borracha para direcionar parte do fluxo de água
dos dutos de irrigação para plantações particulares fora das agrovilas. Tal método é utilizado tanto em
culturas lícitas como no plantio de cannabis. São também realizadas por moradores das agrovilas que
desejam plantar fora dos limites dos lotes coletivos e individualizados, para fins lícitos e ilícitos.
Geralmente eles chamam um boiadeiro, ele sempre acha um comprador.
Geralmente é uma pessoa que tem acesso a outras cidades, outros
municípios e depois ele dá um jeito de encaminhar a mercadoria. (Plantadora)
***
No presente trabalho procurei demonstrar como os plantadores de cannabis da
região do médio e submédio São Francisco sofrem o que Michel Foucault
chamou de gestão diferenciada de ilegalidades. Partindo da premissa que rural
e urbano não podem ser considerados (ou ao menos não mais) como mundos
distintos e separados iniciei com a exposição dos argumentos de Michel Misse
e Vera Telles, sobre estudos relacionados a mercados ilícitos em dois centros
urbanos brasileiros, Rio de Janeiro e São Paulo. Esses estudos mostram como
a questão da violência urbana associa-se mais à sobreposição do comercio
das mercadorias políticas aos mercados ilícitos, e do combate policial ao trafico
de drogas. Foi elucidado, também, a grande rede de ilegalidade e ilicitudes
presente no cotidiano das grandes cidades, onde os atores envolvidos não
constituem necessariamente uma carreira de delinquência. Na segunda parte
busquei analisar as rupturas e continuidades desse fenômeno – gestão
diferenciada de ilegalidades -, característico dos grandes centros urbanos, no
sertão do são Francisco, região predominantemente rural. Onde foi possível
observar também uma acumulação social de desigualdades e violências
(embora distintas das identificadas por Michel Misse em suas investigações), e
identificar pequenas ilegalidades cotidianas, como a realização de sangrias nos
dutos de irrigação até o plantio ilícito de cannabis. A violência, histórica na
região, sofre um incremento quando aumenta-se o plantio e consequentemente
seu combate a ele, gerando outros tipos de criminalidade. A região, que
apresenta indícios de uso tradicional da substancia ilícita, como para ocasiões
festivas, passa a tê-la como problema a partir do momento em que o comercio
desta gera o combate policial.
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