ARTE CIRCENSE E FUNDAMENTOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO

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ARTE CIRCENSE E FUNDAMENTOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO
ARTE CIRCENSE E FUNDAMENTOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICOCRÍTICA: UMA EXPERIÊNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DA
REDE ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO PARANÁ
Nilo Silva Pereira Netto1 - SEED
Grupo de Trabalho - Formação de Professores e Profissionalização Docente
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O texto que segue apresenta esforço de sistematização acerca de uma experiência em
andamento de formação continuada de professoras e professores no âmbito da Rede Estadual
de Educação do Paraná, realizada por determinado centro estadual de formação em artes –
Curitiba. Trata-se da experiência vivenciada no curso intitulado “Arte Circense: a ginástica de
circo como elemento da Cultura Corporal” no qual se objetiva instrumentalizar educadores e
educadoras por meio de uma abordagem interdisciplinar, crítica e fundamentada para que
possam utilizar-se deste conhecimento no planejamento, execução e avaliação de aulas
regulares e projetos de intervenção. A abordagem teórica que lastreia a citada intervenção
formativa, e igualmente a constituição deste trabalho, refere-se à Pedagogia Histórico-Crítica,
concepção filosófico-pedagógica sob a qual se encontram assentadas as Diretrizes
Curriculares Estaduais do Paraná. O elemento inquietante que impulsiona o desafio aqui
descrito pode ser caracterizado pelo questionamento da necessidade de se trabalhar
fundamentos pedagógicos nos cursos de formação continuada oferecidos pela Secretaria de
Estado da Educação ou, ainda, pelo hercúleo desafio da indissociabilidade entre a teoria e a
prática a ser enfrentado nos diferentes patamares da ação pedagógica. O caminho que
percorremos neste relato de experiência subdivide-se em três momentos. No primeiro
momento, introdutório, buscamos ilustrar o marco contextual e histórico da problemática
apresentada. No segundo, debatem-se elementos centrais da fundamentação teórica que
constitui a referida formação. No terceiro tópico, apresentam-se os conteúdos tratados nas
etapas do curso, assim como as estratégias de trabalho adotadas. Nas considerações finais
refletimos sobre os percursos e percalços da formação e da prática pedagógica em Arte
Circense no contraditório contexto escolar.
Palavras-chave: Formação continuada. Pedagogia Histórico-Crítica. Arte Circense.
1
Docente na Rede Estadual do Paraná. Licenciado em Educação Física (PUCPR). Especialista em Educação
Física escolar (UFPR). Mestre e doutorando em Tecnologia e Sociedade (PPGTE/UTFPR). Pesquisador do
Grupo de Estudos em Trabalho, Educação e Tecnologia (GETET/UTFPR). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa
em Educação e Marxismo (NUPEMARX/UFPR). E-mail: [email protected].
ISSN 2176-1396
23040
Introdução
Nas ruas, nos picadeiros, embaixo das lonas, nos teatros, nas praças e semáforos. As
artes do circo atravessam a história nos distitintos territórios da sociabilidade humana. Não
sem contradições, não sem contratendências, o encanto pelo circo segue tocando
subjetividades em diferentes temporalidades. Múltiplas linguagens em cena, relação
permanente entre palco e público, percepção e dimensões estéticas intensamente ativas. Essas
são algumas das características que conformam a arte circense enquanto manifestação criativa
do trabalho humano, e enquanto expressão de sensibilidade pode-se perguntar: há espaço para
o circo no contexto escolar? Sendo um tema ou conteúdo escolar: a partir de qual disciplina
devemos abordá-lo? E por fim, que condições nosso professorado possui para tratar esse
conhecimento no âmbito educacional?
Sem a intenção de esgotar o debate sobre cada uma dessas questões, neste texto
buscamos nos debruçar sobre o tema da Arte Circense no âmbito escolar e relatar a partir de
determinada contextualização e de determinada concepção teórico-pedagógica uma
experiência de formação continuada de professores e professoras em andamento no âmbito da
Rede Estadual de Educação do Paraná, realizada em um centro estadual de formação em artes,
localizado na cidade de Curitiba.
Trata-se da experiência vivenciada no curso intitulado “Arte Circense: a ginástica de
circo como elemento da Cultura Corporal” no qual se objetiva instrumentalizar educadores
por meio de uma abordagem interdisciplinar, crítica e fundamentada para que possam utilizarse deste conhecimento no planejamento, execução e avaliação da produção de aulas regulares
e projetos de intervenção 2.
Os cursos de formação continuada oferecidos pelo referido centro, usualmente
consistem em cinco etapas de quatro horas semanais, totalizando vinte horas. São cursos nas
diversas áreas da arte: artes visuais, teatro, dança e música – desdobrando-se nas mais
diversas temáticas caras à Escola Pública. No ano de 2014 foi a primeira oportunidade em que
o curso “Arte Circense: a ginástica de circo como elemento da Cultura Corporal” foi
oferecido.
2
É o caso dos projetos para as Atividades de Complementação Curricular de Contraturno oferecidos pela
Secretaria de Estado da Educação, ou, ainda no âmbito estadual, das disciplinas complementares inseridas no
contexto da Educação Integral. No âmbito municipal, os projetos enquadram-se nas intervenções realizadas nos
projetos de Complementação de Carga Horária, nos Centros de Educação Integral ou nas atividades do Projeto
Comunidade Escola, que oferta atividades culturais aos finais de semana em escolas municipais de Curitiba. O
âmbito federal também se inclui nesse bojo por oferecer em um dos macrocampos do programa Mais Educação a
atividade de Arte Circense.
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A compreensão que explicita e justifica a escolarização do circo e a necessidade de
formação do professorado na trilha da socialização deste conhecimento encontra respaldo na
concepção ampliada e crítica da arte como trabalho criador livre, forma de conhecimento do
ser humano e do mundo, resguardando inegável potencialidade nos processos de humanização
do ser humano (SCHLICHTA; PEIXOTO, 2013). Do mesmo modo, compreendendo as
manifestações circenses como distintas objetivações e subjetivações das expressões do corpo,
vê-se na sua socialização uma ferramenta fundamental na apropriação da cultura corporal pelo
alunado (COLETIVO DE AUTORES, 1992).
Nessa acepção, escolarizar o circo é trajetória de humanização, é socialização da
produção genérica humana, é apropriação pelos indivíduos singulares do desenvolvimento das
forças produtivas. Trata-se da defesa da concepção histórico-crítica (SAVIANI, 2003) sobre o
papel da escola, dos conteúdos escolares e da função do professorado, mediada pelas
abordagens da educação estética e da cultura corporal, articuladas pelas distintas
manifestações das artes circenses.
O estado do Paraná carrega consigo uma relação de acentuada proximidade com a
pedagogia histórico-crítica via política pública educacional. É o que nos indica Alexandra
Vanessa de Moura Baczinski (2011) quando aponta em sua obra que logo no início dos anos
oitenta – caracterizado pelo marco histórico e político nucleado no avanço das forças sociais e
populares que impuseram a derrocada ao regime militar – abre-se um novo horizonte histórico
e político no Brasil com o processo de redemocratização do país. Neste contexto, as eleições
participativas e diretas, embora não representassem uma ruptura com o sistema de
organização político-econômica capitalista, simbolizavam um novo momento para o campo
educacional progressista, que passava a imprimir singelas alterações nas concepções
pedagógicas. Singelas, pois – conforme categoriza Baczinski (2011) – ficaram marcadas por
um controverso processo de apropriação discursiva em torno da questão da superação da
pedagogia tecnicista pela concepção da pedagogia histórico-crítica. Uma apropriação
discursiva que se defrontava contraditoriamente com ações reais longínquas dessa perspectiva
e de sua inspiração filosófica.
Essa contradição e ainda outras se somam a distintas dificuldades de implementação
da pedagogia histórico-crítica no período das décadas de oitenta e noventa. Num momento
posterior, o alinhamento da política estadual às referências ideológicas do Banco Mundial
trouxe ao Estado a reconfiguração da política educacional com base na pedagogia das
competências, fundada nos controversos Parâmetros Curriculares Nacionais (BACZINSKI,
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2011). A concepção educacional que é centro deste debate só seria retomada enquanto política
estadual mais recentemente, em documento intitulado Diretrizes Curriculares Estaduais,
datado de dois mil e oito e ainda vigente.
As contradições entre o plano discursivo e as ações políticas reais na direção dos
pressupostos da pedagogia histórico-crítica não apenas se reapresentaram à superação durante
a constituição e implementação desse novo documento, como no atual momento se asseveram
por uma linha governamental diametralmente distinta daquele que retomou a concepção
educacional em questão, ao ponto de nem mesmo a alocução pedagógica dessa concepção ser
reivindicada com veemência nas atuações político-educacionais atuais.
É neste devir histórico e contraditório onde se localiza a experiência de formação aqui
relatada, que, no interior de uma das únicas ações permanentes de formação continuada
presencial aos educadores e educadoras da Rede Estadual da atualidade, encontra no diálogo
interdisciplinar – arte, cultura corporal, linguagem, história e outras – um espaço privilegiado
para reafirmar a importância da retomada dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica na
implementação de conteúdos significativos no contexto escolar 3.
Sabe-se que o duro percurso dos fundamentos aos conteúdos atravessa uma infinidade
de contradições, e nessa trilha se justifica a reflexão sobre os elementos fundantes da
pedagogia histórico-crítica, pois permite-se nela o pensamento por meio do contraditório, que
não se confunde com inércia, ou com imobilismo, mas o contrário, são forças que
impulsionam, que movimentam (SAVIANI; DUARTE, 2012).
Compreendendo ainda, que o ato educativo implica identificação dos elementos
culturais que precisam ser assimilados e a descoberta das formas mais adequadas para atingir
esse objetivo (SAVIANI, 2003), o curso aqui relatado busca trabalhar transitando
permanentemente entre esses dois momentos. Nesse esquema, permite-se superar a dimensão
pragmática e esvaziada da formação como instrumentação ao savoir faire4 do professorado,
marcadamente presente no âmbito das formações continuadas, assim como permite superar a
3
No início dos anos oitenta Dermeval Saviani imprimira dura crítica às diretrizes e bases educacionais do
período ditatorial sob a alegação de que a reformulação curricular imposta pela legislação teria diluído os
conteúdos da aprendizagem voltada às camadas populares por meio do desenvolvimento de atividades e áreas de
estudo. Saviani anuncia então a defesa dos conteúdos em contra-tendência ao esvaziamento do ensino. Sublinha
o autor que os conteúdos são fundamentais, e que sem conteúdos relevantes, significativos a aprendizagem deixa
de existir. Os conteúdos são prioritários – nessa perspectiva – pois o domínio da cultura se constitui como
instrumento indispensável para a participação política e consciente em sociedade (SAVIANI, 2003). Essa
concepção fundante será retomada pelo autor e colaboradores mais recentemente para o enfrentamento às
pedagogias construtivistas ou pós-modernas (DUARTE, 2003).
4
Contrária à instrumentalização que visa à práxis criadora nos termos de Vázquez (2007).
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percepção da pedagogia histórico-crítica como se fosse exclusiva e limitadamente uma
proposta pragmática de ensino.
Fundamentos educacionais e o espaço da arte circense na escola
Partindo do exposto, busca-se nesse pequeno espaço remontar pressupostos teóricos
fundamentais da pedagogia histórico-crítica, mas não apenas como praxe acadêmico-textual e
sim como exercício descritivo do curso aqui retratado.
A educação escolar encontra eco político em um embate de projetos históricos. Ela é
carregada de mediações e contradições, e no seio da sociedade capitalista, esse movimento de
enfrentamento pode se produzir em pelo menos duas direções. Destaca-se uma direção
hegemônica na contemporaneidade que articula o amoldamento dos seres humanos à
sociabilidade hodierna, uma direção que imprime nas práticas pedagógicas a adaptação dos
educandos ao regime societal. Essa direção encontra como projeto a manutenção das relações
sociais capitalistas e postula à escola amplas funções, menos a transmissão sistemática de
conhecimentos. Nessa concepção, organiza-se o sistema escolar
de forma fragmentada,
reproduz-se a divisão social do trabalho e a lógica hierárquica do mercado, para o qual não
interessa o acesso da classe trabalhadora ao saber científico, artístico e filosófico. O acesso ao
conhecimento é desigual e seletivo (SAVIANI; DUARTE, 2012)5.
A outra direção possível é a que buscamos construir enquanto contra-tendência ao
esvaziamento da escolarização, à desmetodização do ensino, à secundarização da arte e da
cultura corporal. Essa, favorável aos interesses de emancipação da classe trabalhadora,
postula a defesa da efetivação da especificidade da escola, fazendo do trabalho de
socialização do conhecimento o eixo essencial de tudo que se realiza no interior da instituição
(SAVIANI; DUARTE, 2012).
Essa luta requer ações organizadas no plano dos embates políticos, no plano da
formação de quadros altamente qualificados, no plano da produção de conhecimento
sobre a educação e no plano de construção teórica e prática de uma pedagogia que
fortaleça o trabalho de produção direta e intencional, em cada aluno e em todos os
alunos, do domínio dos conhecimentos necessários ao seu pleno desenvolvimento
como seres humanos (SAVIANI; DUARTE, 2012).
5
Nessa concepção, preconiza-se como ambiente próprio a uma escola dinâmica e adequada aos dias atuais a
reprodução da dispersão de diversas tarefas simultâneas que só se podem realizar de forma superficial e
imediatista. Concentração, esforço intelectual e abstração – caminhos para aproximar o alunado aos
conhecimentos científicos são coisas tidas como pertencentes a um passado inapelavelmente superado. Enquanto
isso, são realizados debates e mais debates tentanto entender as causas do bullying. Generaliza-se o uso de
medicamentos antipsicóticos para solução de supostos transtornos de aprendizagem. Pelo lado do corpo docente,
o adoencimento torna-se quase que um aspecto inrente ao exercício da profissão (DUARTE, SAVIANI, 2012).
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A defesa dessa compreensão escolar é apresentada no decorrer do curso logo nas
considerações introdutórias aos pressupostos teóricos em educação. Indica-se com base em
Saviani (2003) que o papel da escola básica se principia na constituição de uma instituição
formal, cuja função consiste na socialização do saber sistematizado. Não se trata, pois, de
qualquer tipo de saber, mas, do saber sistematizado, não-fragmentado. Trata-se na escola do
problema da ciência, do saber metódico em contraposição ao saber cotidiano. A exigência de
apropriação desse saber é o que torna necessária a existência da instituição escolar. A escola
existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber
elaborado, bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber (SAVIANI, 2003).
Vimos defendendo no decorrer do curso, que a escola é um espaço de contradição. A
primeira delas é a que acabamos de expressar entre o saber cotidiano e o saber sistêmico. O
espaço escolar deve possibilitar a contradição entre o senso comum e o pensamento crítico
por meio de instrumentos cognitivos. Quer dizer, se trabalho educativo diz respeito na sua
categorização imaterial à produção direta e intencional em cada indivíduo singular da
humanidade produzida coletivamente e historicamente pelo gênero humano, o objeto da
educação diz respeito por sua vez, de um lado à identificação de elementos culturais a serem
assimilados pelos educandos e por outro lado – concomitantemente – à descoberta das formas
mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI, 2003).
Nesse caminho dialético é que o curso de Arte Circense busca transitar,
instrumentalizando o professorado na expectativa de identificar as potencialidades formativas
das atividades circenses, aprofundando a apropriação deste conhecimento, e ao mesmo passo,
na expectativa de identificar formas adequadas para disseminação deste conteúdo,
promovendo a formação humana numa concepção emancipatória.
Defendemos a emancipação enquanto projeto consciente da humanidade a partir da
formação de subjetividades ricas (DA MATA, 2014) e assim, no esforço de identificação de
elementos culturais a serem assimilados pelo alunado, observamos a necessidade de
considerar as Artes Circenses nas suas amplas possibilidades formativas, justificadas no
currículo escolar a partir da sua articulação com o próprio papel da escola na socialização do
saber científico, artísitico e filosófico.
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É imprescindível compreender as atividades circenses enquanto produto da atividade
humana, um resultado do desenvolvimento histórico que precisa se apropriado. Cada
um dos elementos que constituem o circo (malabarismo, equilibrismo, mágica, etc.)
é carregado de sentidos e significados, construídos historicamente e modificados
socialmente, identificando, assim, o homem como produtor e transformador da
cultura. Cabe à escola trabalhar com esse conteúdo, contextualizando-o,
problematizando-o, estabelecendo correlações pertinentes entre as atividades
circenses e o processo histórico em que se desenvolveram, desmistificando algumas
modificações pelas quais passou ao longo dos tempos. Assim, torna-se possível
articular o ensino das atividades circenses com a formação do sujeito histórico,
consciente da necessidade de superação das relações sociais de dominação (REIS;
PEREIRA; TOSTES, 2013).
Considerando esses elementos, é que a contradição entre as questões cotidianas e as
questões do saber elaborado passam a conduzir as formas de transmissão-assimilação de
conhecimentos. Dois exemplos tratados durante o curso podem ser aqui evocados. O primeiro
é tratado durante os debates e faz referência à questão da alienação versus apropriação dos
elementos culturais produzidos pelo gênero humano. O exemplo se refere às apresentações da
companhia de circo canadense chamada Cirque du Soleil – a companhia é expressão
referencial da organização empresarial da arte na sociabilidade capitalista – e as
possibilidades de acesso do grande público – classe trabalhadora – aos seus espectáculos. Um
questionamento é lançado ao grupo de cursistas buscando analisar a partir da crítica filosófica
a dicotomia alienação/separação versus acesso/apropriação. O segundo exemplo vem à tona a
partir de uma das leituras obrigatórias do curso, na qual a relação de apropriação dos
elementos circenses – mais propriamente o malabarismo – e sua realização enquanto atividade
profissional nas ruas e semáforos dos grandes centros urbanos dispara a reflexão sobre os
caminhos histórico-sociais do circo. O movimento das ruas ao picadeiro e do picadeiro às ruas
caracteriza o próprio desenvolvimento as atividades circenses. Todavia – o exemplo apresenta
essa reflexão –, na contemporaneidade a apropriação dos malabarismos circenses, refere-se
por vezes, à alienação da própria infância – quando são instrumentos do trabalho infantil.
Enfim, uma análise interdisciplinar, mediada por abstrações, vivências, instrumentos
históricos – e demais formas de organização do trabalho pedagógico – é capaz de promover a
compreensão dos fenômenos sociais e assim promover a elevação teórico-prática.
Nessa concepção, o trabalho do professorado se caracteriza por ser um processo de
mediação. Um processo intencional e sistematizado de transmissão de conhecimentos para
que o alunado vá além dos conhecimentos sincréticos e desorganizados, apropriando-se dos
conhecimentos sintéticos, científicos, sistematizados e vinculados à prática social (DUARTE,
2001; FACCI, 2004).
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Cabe ao docente partir da prática social buscando alterar qualitativamente a prática
de seus estudantes, como agentes de transformação social. O conhecimento, os
conteúdos clássicos serão a ferramenta para passar o conhecimento cotidiano ao
conhecimento científico. Na concepção histórico-cultural, preocupada com a
formação das FPS, tem-se na apropriação do conhecimento científico, do saber
sistematizado, por parte dos seres humanos, seu alvo principal (FACCI, 2004, p.
233).
Trata-se de apropriação das objetivações humanas e no caminho da mediação no
processo de ensino-aprendizagem o professor, ao abordar o conteúdo curricular, levará o
alunado a patamares superiores de compreensão, pois provoca neles e nelas outra relação com
os objetos da realidade (FACCI, 2004).
Percorre-se assim, o caminho para a formação das Funções Psicológicas Superiores –
atenção arbitrária, memória, abstração, imaginação, pensamento e linguagem – tema central
no referido período de escolarização, pois estas funções representam a produção da
humanidade no individuo e, portanto, questão fulcral para a escola básica. Nessa perspectiva
os conceitos – a serem apreendidos – são entendidos como um sistema de relações e
generalização contido nas palavras e determinados por um processo histórico-cultural. É
generalização, pois depende de outros conceitos anteriormente apropriados por meio das
relações sociais. Na trilha da psicologia histórico-cultural, a apropriação dos conceitos
permite aos indivíduos compreender a realidade que vivencia (VYGOTSKY, 2001).
O curso que ora relatamos assume como indicação para o procedimento de trato com o
conhecimento a realização – concomitante e dialética – dos passos metodológicos anunciados
pela pedagogia histórico-crítica, quais sejam, a prática social, a problematização, a cartase e o
retorno à prática social6. Essa última, enquanto passo derradeiro, tão logo se caracteriza como
novo passo incial, possibilitando o desenvolvimento espiral e as aproximações sucessivas
tanto do grupo de docentes cursistas, quanto do alunado com o qual esse coletivo virá a
trabalhar.
Outro ponto abordado já ao final do curso é a questão da avaliação. Essa
compreendida nos marcos da legislação vigente, como ação pedagógica qualitativa,
processual e cumulativa, cuja trajetória pressupõe diferença – heterogeneidade – no ponto de
partida e a homogeneidade – igualdade – no ponto de chegada (SAVIANI, 2003). Essa
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Poderíamos inferir que o debate sobre os passos metodológicos desta pedagogia são amplamente conhecidos.
Todavia, nossa experiência vem demonstrando não apenas o contrário, mas também certa confusão em relação a
autoria dessa elaboração. Saviani desenvolve tais assertivas em sua obra Escola e Democracia, na qual contrapõe
sua propositura tanto à escola tradicional, quando ao escolanovismo e ao tecnicismo. No curso apresentamos
esse debate, explicitando cada um dos estágios metódicos desenvolvidos pelo autor. Para mais ver Saviani
(1983).
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abordagem traz à tona tanto o elemento da auto-avaliação dos participantes do curso, quanto a
reflexão relativa ao processo da avaliação escolar atual.
Arte circense: etapas e estratégias adotadas
A compreensão de Arte Circense que vimos tratando neste texto – referendada pela
fundamentação do curso em questão – caracteriza-a enquanto uma produção humana
histórico-cultural e que, portanto, pode e deve ser socializada no âmbito escolar.
Outro aspecto fundamental dessa compreensão reside no fato de que as atividades
circenses enquadram-se enraizadas nas mais diversas áreas do conhecimento escolar, da arte
dramática à ginástica acrobática, da história da arte à literatura, enfim, sua abordagem
interdisciplinar se coloca como necessidade e como problema nos termos designados por
Gaudêncio Frigotto (2008)7.
Também é possível remontar o contexto de secundarização da arte na instituição
escolar (SCHLICHTA, 2002), assim como da desportivização e mercadorização da cultura
corporal (PARANÁ, 2008) como situação de entrave para o ensino das artes circenses na
escola. Todavia, a defesa apresentada durante o curso segue a linha das autoras e autores aqui
referenciados, segundo a qual, a viabilização de uma educação estética, da apreensão da
cultura corporal, da humanização dos sentidos enfrenta limites drásticos, mas há
possibilidades absolutamente inegáveis para o trabalho na escola, especialmente nas
proposituras pedagógicas críticas. Pensar a educação estética na escola é pensar,
conjuntamente, as formas de ampliar e enriquecer a fruição artística, elevando e enriquecendo
a sensibilidade humana. Isso implica em ultrapassar os limites do consumo de massa dos
subprodutos artísticos e possibilitar aos diferentes sujeitos aprofundar o diálogo entre a
produção artística de ontem e hoje, superando a contradição arte para minorias e arte de
massas, num claro compromisso com uma arte para todos e todas (SCHLICHTA, 2002).
Outra questão apresentada por Duprat e Bortoleto (2007) é que dados os
conhecimentos engengrados pelas artes circenses e seu alto valor educativo – que lhe
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Frigotto (2008) ao refletir sobre a questão da interdisciplinariedade no contexto educacional coloca-a em duas
perspectivas dialéticas articuladas. Primeiro como necessidade, por um lado, dada a própria apresentação do
realidade social, que não aparece aos sentidos em compartimentações organizadas, mas sim no seu caráter
dialético, ao mesmo tempo, una e diversa. Quer dizer, compreender a totalidade requer uma abordagem de
totalidade, não fracionária. Por outro lado, como problema, especialmente por vivermos numa sociedade fundada
em cisões sociais refletidas nas formas de consciência e conhecimento, o que torna complexa a atividade de
refletir conjuntos articulados e diversos. É o caso da arte circense no âmbito escolar: impossível de ser pensada –
sem impor limites empobrecedores a ela – em outra metodologia que não seja interdisciplinar e ao mesmo
tempo, difícil de ser compreendida na totalidade por uma formação fragmentada e disciplinar dos sujeitos.
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conferem coerência e justificativa no currículo escolar – essa requereria uma pedagogia
própria, ou pelo menos uma preocupação importante com suas particularidades.
É nessa trilha e concepção, que o curso de formação de educadores e educadoras “Arte
Circense: a ginástica de circo como elemento da cultura corporal” apresenta o seguinte rol de
conteúdos divididos não-rigidamente em cinco etapas/semanas: 1) Pressupostos teóricos em
educação; 2) Aspectos históricos da cultura circense: do surgimento à contemporaneidade; 3)
Elementos da cultura circense: manifestações artísticas e ginásticas; 4) Manipulação ou
malabarismo: tules, bolas, diabolô, flower sticks, claves e contato; 5) Equilibrismo ou
funambulismo: corda bamba, bola suíça, rolo americano e barril; 6) Acrobacias: tecido
acrobático, acrobacias de solo ou acrobalance; 7) Arte do palhaço: tipos de palhaço, cenas
clássicas, análise de cenas e filmes; 8) Oficina de criação de implementos circenses em
material alternativo; 9) Debate sobre o circo contemporâneo: entre a mercadorização e a
socialização escolar.
Esse trabalho atendeu durante o ano letivo de 2014 aproximadamente 190 educadores
e educadoras, abrangendo as mais diversas áreas de ensino, passando pelas formações em
arte, educação física, pedagogia, educação infantil, educação especial e outras. Seu alcance
nas realidades escolares, embora difícil de ser mensurado quantitativamente, vem sendo
relatado qualitativamente pelos educadores e educadoras participantes por meio de fotos e
narrativas.
A fundamentação pedagógica (SAVIANI, 2003; SAVIANI, 1983), a historicização do
circo (DUPRAT, 2010; REIS; PEREIRA; TOSTES, 2013), a classificação dos elementos
circenses (DUPRAT, 2010) são articuladas aos momentos experimentais, onde são
vivenciados na corporalidade de cada sujeito os diferentes aspectos circenses, ao passo que
também é objeto de reflexão permanente o ato de ensinar. O jogo cênico e a experimentação
lúdica são ferramentas que lançamos mão no trabalho formativo, chamando atenção aos traços
específicos de cada um dos conteúdos, buscando superar os patamares de apropriação dos
conhecimentos dos próprios cursistas.
Nas avaliações descritivas destes profissionais destaca-se a positividade da
abordagem, além da frequente recorrência ao reconhecimento da importância da abordagem
dialógica e permanente da relação teoria e prática. Acredita-se que o formato adotado na
realização do curso auxilia na compreensão dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica
quando os aborda a partir da manifestação da mesma dentro de conteúdos escolares a serem
tratados pelas áreas do conhecimento. Contribui, assim, para assimilação de conteúdos por
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parte dos docentes, assim como para a reflexão acerca das estratégias de ensino que
favoreçam a compreensão dos princípios da lógica dialética materialista (COLETIVO DE
AUTORES, 1992).
Considerações Finais
Arquitetar uma escola cheia de sentido, na trilha da produção de ricas subjetividades
aptas à construir um novo projeto societário, igualitário, emancipado, é também tarefa da
formação continuada de educadores e educadores. Afirmar essas questões, coloca-nos diante
da perspectiva que seria impossível atingir tais objetivos sem um método que considere a
importância do ensino em sua relação práxica de mediação entre conteúdo, metodologia e
sujeito.
Embora encantadoras, as artes circenses no âmbito escolar adentram ao espaço
educacional com fins formativos claros, no campo da humanização dos sentidos,
fundamentando as práticas transformadoras por meio de teorias transformadoras. Essa
compreensão também busca romper com o recente frenesi pelas chamadas boas práticas
escolares, que em sua versão mais comum, apresentam-se esvaziadas de lastro teórico, em
uma espécie de nova fenomenologia do incomum, que parece identificar sentido e significado
em ações diferenciadas, sem questionar sua fundamentação significante.
Com o picadeiro iluminado teoricamente, sonorizado pela ampla procura que vem
experimentando nos últimos períodos, os caminhos da Arte Circense ainda possuem uma
longa jornada para ampliação de seu impacto nos diferentes espaços escolares do Estado do
Paraná. E para isso, não bastará malabarear educacionalmente alguns truques na forma de
atividades superficiais, há que se resgatar os porquês, as justificações, os portôs-circenses
para as figuras pedagógicas transformadoras.
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