Sobre o regresso da casa branca em Adelaide

Transcrição

Sobre o regresso da casa branca em Adelaide
Concurso Novos Talentos Literários FAP (2.º Lugar / Menção Honrosa, 2010)
Sobre o regresso à casa branca em Adelaide
Era o mais íntimo desejo de Amalie Rouen que a sua casa se enchesse uma vez mais da
gritaria colossal trazida pelos filhos.
Começara a notar diferenças quando os primeiros bichos não foram desterrados à força de
repelentes. Trepavam pelas paredes e para dentro delas, formando no corredor um fio negro e
luzidio que ela integrara na sua rotina matinal dispersar à vassourada. À hora do almoço ouvia-os
mastigarem os móveis e receou um dia chegar à sala de jantar para encontrar a loiça antiga —
pratos escacados e nunca novos, o único tesouro dos tempos da fundação de Adelaide, um monte
milenar de areia e pedra branca junto ao mar — espalhada no chão, depois de a prateleira do
aparador ter servido de refeição. As suas tentativas de se livrar de tudo quanto os poderia atrair
revelaram-se infrutíferas, sem misericórdia nem sentido. Formigas faziam fila para comer fruta que
ela não tinha, abelhas entravam livremente pela casa para polinizar flores que ela tinha deitado fora,
cães vadios entravam pelas inúmeras portas abertas que deixavam o ar de Adelaide trazer o
contínuo sopro de vida àquela casa, para se sentarem confortavelmente nos sofás vermelhos
queimados pelo sol. Amalie percebeu que a estrutura cedia sobre si própria, e que os bichos
tomavam conta na ausência de carne e osso que os impedissem. Assim, ouvindo-lhe a fragilidade na
voz e o som de mastigar ao telefone, os filhos percorriam o país em direcção a Adelaide e à casa
branca, decorridos anos de ausência.
Foi Nelson Rouen o primeiro a ser convencido pelos bichos. Ao ouvir o som das trituradoras
minúsculas, que lhe soaram como escavadoras no próprio quintal, perdeu-se em planos para se
livrar da praga incessante: pulverizar as entradas, pôr veneno nas paredes — deitá-las abaixo, se
chegasse a isso — até expulsar o último deles. Ao cair da noite, durante o jantar, anunciou à família,
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ignorante do que lhe passava pela cabeça, que estariam em Adelaide no dia seguinte. Ele mesmo foi
a casa da irmã e do marido nessa noite. Encontrou-a envolta numa manta para a proteger do frio que
não tinha, em frente a uma lareira que acendera sem precisar. A ausência dos irmãos era o principal
responsável pelo estado de saúde de Sofia Loren, que se desfazia como terra sulcada pela água do
rio no tempo que duravam as separações. Embora nessa noite tivesse outra preocupação, pois já há
algum tempo viera a reparar numa centelha irascível e familiar na filha. Havia duas coisas pelas
quais os Rouen eram conhecidos, e uma delas eram as suas discussões e rompimentos de fúria
históricos, iniciados por igual pelos homens e pelas mulheres da casa. Não se compravam jarras
para a casa branca em frente ao mar enorme, sob o risco de serem estilhaçadas contra uma porta.
Contra todas as hipóteses, a geração de netos de Amalie Rouen tinha vindo a revelar-se
recatada, pouco dada a exageros, o que não suscitava alívio mas preocupação por parte dos pais,
que os olhavam com perplexidade e desconfiança, à espera da primeira asneira. A sorte coube a
Mia, que pagou com toda a expectativa sofredora da família, prestes a inventar um deslize qualquer.
Ainda muitos anos depois, quando a confusão originada se resumia a cinzas da carne queimada, ela
encontrar-se-ia a morar no outro extremo do país, perto do mar contrário, onde, num apartamento de
dois quartos que partilhava com o irmão e uma centena de filmes que trabalhava para
documentários, adquiriu sentido de humor e aparente leveza de espírito.
A avó já se dera conta do que agora Sofia Loren via na filha Elena. Uma vez de regresso à
casa branca, Amalie viria a confirmar que o sangue dos Rouen lhe fluía nas veias por inteiro — e
por isso esta geração mais nova saíra calada, por simples má distribuição. Suscitou assim a
vigilância falconídea de pais e tios, que tinha o efeito oposto ao desejado, já que Elena se regozijava
com a atenção e com a admiração que suscitava em Adelaide ao passear pela beira-mar.
Depois de a ouvir desabafar como quem desfia um novelo de mágoas, enrolada num manto
como quem antecipa o peso dos anos, Nelson convenceu a irmã a seguir para Adelaide por umas
semanas. Estava-se no pico do Verão. Deus sabia que ali não havia nada para fazer, enquanto que
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em Adelaide não teriam mãos a medir. Sofia reproduziu este discurso para o marido, absorto na
colecção de resenhas de um artista local. Matieu Loren tinha memórias soltas da mulher quando a
conhecera, quando o seu riso se ouvia a três salas de distância e os seus olhos reflectiam os peixes
mesmo quando estava longe do mar.
— Podemos sair depois do almoço — concordou.
No espaço de uma semana, Nelson conseguiu reunir todos os irmãos para o acompanharem
na viagem. A semana toda andou com ideias cheias de bichos e a reconstruir a memória dos últimos
Verões passados em Adelaide.
A casa branca em frente ao mar enorme existia desde a fundação de Adelaide. O primeiro
Rouen chegara vindo de uma terra nas montanhas subitamente invadida pelo calor, onde os dias
morriam antes do meio-dia e as pessoas acordavam em suores frios por sonharem que a água
brotava quente das nascentes. Depois de enterrarem os últimos mortos pela febre e insolação, os
restantes sobreviventes, abençoados com o remédio natural do cheiro a sal, peixe e algas, que a
princípio mal os deixava respirar, por nunca terem sentido odor tão pungente, ergueram do nada
uma cidade que ali permaneceria até hoje, alimentada pelo mesmo ar que manteria a casa viva ao
longo dos anos.
Filhos e netos instalaram-se tão depressa como se nunca tivessem saído, os pés seguindo
naturalmente de memória e de sangue os contornos da casa que haviam deixado na infância. Para
festejar o regresso, Sofia veio abastecida de pedaços de papel laranja para pendurar nas varandas
para a Adelena. Os dois filhos de Daniellive, que mal se lembravam onde ficava Adelaide,
encontraram instintivamente os seus quartos, tacteando as paredes e andando descalços na madeira
negra.
Beaurouen fez as paredes tremer ao pôr um pé na entrada. Coubera-lhe transportar a fúria
centenária para aquela geração, papel que ele desempenhara tendo desenvolvido um corpo de
gigante e uma voz colossal. Nenhum dos irmãos sentia mais do que ele a frustração de não
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encontrar seguidores na descendência, principalmente porque o filho lhe saíra calado desde o
momento em que nasceu, abrigando-se à sombra da irmã mais velha.
Na altura, Simon e Mia Vonté tinham caído da borda do mundo e viviam num apartamento
no segundo andar, em frente a uma oficina de reparações de vidros de automóveis e ao lado de uma
loja que mudava de mãos a um ritmo regular, e que fora, no espaço de um ano, uma florista, uma
loja de antiguidades, uma loja de brinquedos e uma de antiguidades de novo. Mia alugava-o por
uma bagatela, porque o preço descera a pique com o aumentar do barulho de motores, engenhocas,
mangueiradas e todos os instrumentos que usavam para trabalhar, reparar vidros e polir capots. Ela
passava muito tempo fora enquanto Simon tomava conta da casa, acabando por sair do apartamento
que alugava por cima de uma pastelaria e por se mudar definitivamente, tendo convidado para
festejar os amigos que pensavam que ele se mudara há um ano. Mia sempre tivera curiosidade sobre
as máquinas que ouvia da oficina e por isso, uma tarde, desceu as escadas, atravessou a rua e
perguntou que barulho era aquele a um senhor que a aguentou durante cinco minutos até a
interromper:
— A menina precisa de ajuda?
Não conseguiu que lhe respondessem a mais perguntas. Por isso convenceu J., um amigo da
faculdade, a ajudá-la, e foi a casa dele e partiu-lhe um espelho retrovisor. Depois foram à oficina,
onde tomaram café de graça enquanto esperavam e punham a conversa em dia, até que chegou a
vez deles e Mia passou quarenta e cinco minutos a falar com um homem chamado Luís sobre os
meandros da reparação de vidros, sentada no banco da frente enquanto ele lhe explicava cada
procedimento.
J. deixou o carro na oficina durante dois dias. Entretanto, teve de se ausentar com outro
amigo, que também tinha carro, mas sugeriu a Mia que ficasse com ele enquanto J. não voltava e
que fizesse com ele — o carro — o que bem entendesse. Mia perguntou-lhe se podia usá-lo para
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uma viagem de uns dias e J. disse que sim, e se ela já tinha descoberto que barulho era aquele na
oficina.
Mia Vonté era toda ela constituída por uma felicidade translúcida, a despreocupação absorta
de uma criança. Quando recebeu o telefonema da avó a insistir que se deixasse de palermices e
fizesse as malas imediatamente, que já toda a gente os esperava, perguntou-se se de facto deixara
passar tanto tempo sem voltar a Adelaide, como se se inquirisse acerca de uma coincidência
estranha com a qual não tivera nada a ver. Nos dias que antecederam à partida, Simon notou na irmã
o silêncio parado de quem remói acontecimentos, uma tristeza calada e apreensiva de que se
lembrava nos dias após a partida súbita de Adelaide, quando Mia se entregou à tarefa de fingir que
aqueles dias não tinham acontecido.
Agora enclausurada nos seus documentários e numa alegria tão pura que era quase infantil,
Mia Vonté cometera em tempos a falta de se apaixonar por um homem casado. Dez anos depois,
Mia ainda acordava de manhã com o cheiro a riacho e agulhas de pinheiro das montanhas onde ele
crescera, que se lhe entranhara na pele ao longo de gerações. Fora por esse cheiro que Mia se
apaixonara, por se desadequar completamente ao cenário marítimo, onde as ruas tresandavam a sal
e peixe e o plano era sempre azul e igual. Mia não tinha vontade nenhuma de regressar a Adelaide.
— Porque não?
— Não me apetece.
— Sabes onde está a minha garrafa de água?
— Bebi um bocado, está no banco de trás. Não vás lá agora.
— Porque é que a atiraste para o banco de trás?
— Foi há bocado, quando foste à casa-de-banho, esqueci-me de a pôr no sítio. Eu já abrando
quando sairmos da estrada.
— Porque é que vais sair da auto-estrada aqui, nunca mais lá chegamos!
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De Adelaide, Simon possuía apenas a memória esfumada de uma infinitude de casas brancas
cruzadas por chãos de pedras cinzentas, gaivotas num céu expandido de azul, o sabor de sardinhas
grelhadas e sanduíches mistas que comiam misturadas com a areia da praia. Os irmãos guardavam
entre as principais memórias de infância, dos Verões passados na casa com o clã, longos dias na
praia, dormidas entre paredes e lençóis brancos, pinturas de rua e noites muito quentes em roupas e
chapéus azuis e com morangos estampados.
Era noite cerrada e as luzes estavam apagadas quando chegaram a Adelaide e o cheiro a
água salgada lhes invadiu os pulmões de tal maneira que as narinas lhes arderam. Amalie não
conhecia o estado da neta pelo telefone, e por isso, ao ver Mia, receou que os seus fantasmas
treinassem os de Elena e a levassem à exaustão. Nesta altura, os Loren tinham chegado há três dias
e Amalie já tivera tempo de sentir em Elena uma inquietação que fazia tilintar os copos e vibrar
algumas das janelas quando entrava.
Também Nelson não percebera pelo telefone a magnitude dos estragos do abandono, mas
um olhar sobre a casa branca bastou-lhe para saber que estava inabitável. As colunas centenárias, os
quartos longuíssimos vazios, estavam fracos da falta de vozes. A casa teria desabado sobre si
própria não fosse o contínuo sopro do Verão: continuava tão cheia de sol como dantes, as janelas e
as portas abertas dando passagem à luz derramada de um dia inteiro. Era o estuque rachado, os
móveis de pés roídos aos pedaços e as cortinas desbotadas que mostravam os anos que a agastavam.
Amalie Rouen não tinha mãos a medir numa casa onde outrora coubera a família inteira, de
proporções impossíveis para uma pessoa só. Confinara-se portanto a uma zona, deixando que as
memórias habitassem o resto.
— Inabitável por falta de almas — foi a resposta categórica de Amalie, enquanto Nelson
observava as colunas rachadas e a madeira carcomida das portas brancas.
— Falta de almas? É a primeira vez que penso que o pai tinha razão.
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A Adelena aproximava-se, por isso os irmãos trataram de dirigir um processo exaustivo de
limpezas. Sabiam instintivamente o que fazer, porque perceberam que a casa tinha mudado com
eles durante os anos de ausência. Enquanto se ocupavam em pintar paredes, desfazer teias de aranha
com as mãos e à vassourada, sacudir o pó dos móveis e das cortinas, deitar fora gavetas cheias de
roupa comida pelas traças, num esforço de acordar o esplendor da casa adormecida, Nelson Rouen
receava que os bichos tivessem comido pedra e madeira no interior das paredes e que um dia
qualquer alguém no andar de cima pisaria a tábua errada e acabaria na sala de costura no rés-dochão. No seu antigo quarto, com o irmão, os filhos e um punhado de sobrinhos, esburacou a parede
à martelada só para espreitar. Os bichos, sobressaltados pela luz, escoaram do buraco e apoderaramse do quarto, atirando-se aos móveis como a um banquete inesperado, devorando o tampo de uma
secretária, a cabeceira da cama, uma fila de livros na estante que se deixara para trás na mudança,
com intenção de reduzir o antigo quarto de Nelson a pó. Quando se aperceberam do que tinham
feito, os homens trancaram o quarto e puseram argamassa por baixo da porta, para os impedir de
sair para os corredores.
Nelson apressou-se a partilhar a sua previsão, segundo a qual a casa poderia desabar a
qualquer momento, e insistiu que fossem para um hotel antes que chegasse a Adelena, altura em que
nem no bar do Franco haveria lugar. Amalie Rouen recusou-se a sair, Daniellive e Sofia estavam
mais em casa do que nunca e a favor do que os irmãos decidissem, e Matieu, desnorteado pela
transformação da mulher, não conseguia transportar palavras à boca, muito menos opiniões. Mia
decidira explorar o mundo da mecânica automóvel e passou boa parte das primeiras semanas em
oficinas e fechada no quarto a escrever.
Enquanto Nelson se perdia em planos e cal, Sofia Loren entregara-se com afinco perdido à
preparação da Adelena, que celebrava a chegada dos primeiros exilados pelo calor e a fundação de
Adelaide. Era a festa mais importante do ano, de tal maneira enraizada na vivência de Adelaide que
os seus habitantes não contavam o tempo pela passagem dos anos mas pela quantidade de Adelenas
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presenciadas. A cidade em peso preparava-se para os festejos que duravam uma semana e que
enchiam a noite e o dia. Muitos tinham aprendido a arte de acumular horas de sono, para que,
chegando aquela semana, não precisassem de dormir. O dia era preenchido pelas peças de teatro e o
comércio de Adelaide para os turistas que atulhavam as ruas. Bancas montadas nas bordas da rua
vendiam estátuas de madeira do primeiro Rouen e dos mortos pelo sol, pergaminhos em que
artesãos decrépitos escreviam a história de Adelaide e do seu nome, trajos típicos da época da
fundação, jóias feitas a partir dos fios laranja, inúmeras formas esculpidas na pedra branca que
abundava nas orlas da cidade. Pratos típicos cozinhados dentro de casa e embrulhados em papel
branco eram trazidos em sucessivas corridas para as bancas improvisadas à porta. Na sua maioria,
os menos experientes passavam o dia aos caídos, para aguentar durante a noite os espectáculos de
fogo e a música que enchiam as ruas. Durante uma semana, Adelaide não dormia. Os festejos
culminavam na manhã do cortejo gigantesco da Adelena, representando os maiores eventos que
haviam ocorrido em Adelaide desde a chegada dos primeiros exilados pelo calor.
A Adelena exigia semanas de preparação. Tiras de papel laranja adornavam as bainhas dos
vestidos brancos das raparigas, que todos os anos tinham que os coser e descoser até ao fim da
semana. Os quartos vagos eram abertos e limpos e postos a alugar às centenas de turistas que
apareciam como formigas todos os anos. Era necessário costurar e remendar fatos para o cortejo,
preparar os cestos dos doze Adelenos que carregavam doze dúzias de pães, verificar que as camisas
brancas que os rapazes e os homens usavam estavam perfeitamente limpas. Os músicos ensaiavam
o ano todo até serem capazes de tocar enquanto corriam, comiam e dormiam, estando um professor
sempre a postos para atestar na presença da família as capacidades do músico aspirante na altura do
sono. As bancas tinham de ser montadas e arranjados os ingredientes para as receitas que não
davam aos pescadores mãos a medir, quando uma multidão de gente estava já na praia de
madrugada. Na semana antes da Adelena, a igreja era lavada de cima a baixo e de cinco em cinco
anos pintada de novo para manter um branco imaculado. A entrada era adornada do mesmo papel
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laranja preso em toda a ombreira de pedra e no topo dos bancos corridos, que devia ser colocado na
noite anterior ao cortejo e retirado até ao fim do dia. E todas as varandas, parapeitos das janelas e as
ombreiras das portas em todas as casas eram adornadas com fios de papel laranja que, na sua
fragilidade, tinham de aguentar a semana toda.
Amalie, entregue à tarefa de manter os filhos e netos alimentados, passava metade do dia na
cozinha. Rejubilava por dentro. A casa respirava de novo sozinha, sem ajuda do sopro de Adelaide
para a suster, resgatada das garras do tempo. A única coisa que a perturbou na cozinha foi
Daniellive ofegante com uma mão no peito e outra na entrada da casa, com os olhos tão abertos
como a mãe os conhecera:
— O pai acabou de entrar.
Daniellive foi a última dos filhos de Amalie e Gros Rouen. Enquanto foram crianças, a sua
voz soava de tal maneira semelhante que a única maneira de Livo, o cego tostado pelo sol
repousado na esquina, os distinguir, era se cada um se identificasse no início da conversa. Amalie
orgulhava-se dos laços simbióticos entre os filhos que se moviam como se partilhassem raízes
invisíveis, sabendo sempre onde os outros se encontravam.
À falta de ligação simbiótica, Gros Rouen empreendia sobre os filhos uma vigilância em
nada comparada com a que eles viriam a exercer sobre a neta Elena. Sabia por vezes tão bem
quanto os filhos onde cada um estava. Até ver Beaurouen pela primeira vez e a casa se ter enchido
dos gritos desmesurados de um corpo que lhe cabia na palma da mão, Gros Rouen nunca tinha
sentido a força da pronta disposição para se atirar para debaixo de um comboio se tal fosse
necessário para manter os filhos em segurança. E por isso nunca ninguém percebeu o que lhe
passara pela cabeça para nunca mais pôr os pés em casa.
Todas as noites antes de se deitar, Gros Rouen fazia uma ronda pela casa para verificar se as
portas certas estavam abertas e as portas certas fechadas, passava os dedos pela janela do quarto,
observava o panorama do resto da pequena encosta que separava a casa do mar alto e que fazia o
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resto da cidade. Passaram anos até Amalie se lembrar de lhe perguntar o que achava da vista e ele
responder que nunca reparara.
— Mas olhas para ela todas as noites.
— Eu? Estou a ver outra coisa.
Claro que Amalie pensou que fossem mulheres, porque soubera pela mãe, cujo coração fora
carcomido pelos mesmos bichos que agora devoravam as paredes da casa de dentro para fora, que
havia de um bordel próximo onde não fechavam as janelas, estando toda a casa para se mudar por
causa disso, mas após noites de observação conjunta com o marido, Amalie concluiu que não havia
nada para ver e foi-se deitar.
Uma noite, depois de observar a descida da encosta com as mãos pousadas no parapeito da
janela, Gros Rouen tirou do armário uma malinha de viagem, guardou algumas roupas que a mulher
passara a ferro nesse dia e chegou ao bar do Franco a perguntar se tinha uma almofada que lhe
emprestasse, porque não queria tirar a sua e acordar a mulher.
Na manhã seguinte, não houve prantos de súplica nem de fúria de Amalie que fizessem o
marido voltar para casa. Quando Nelson o encontrou no bar e lhe perguntou porquê, respondeu sem
pejo nem outra razão:
— Aquela casa vai ruir.
Nelson respondeu sem compreender:
— Vai ruir, mas só daqui a muito tempo.
A sua resposta permaneceu a mesma para desconcerto de toda a família e para desespero de
Amalie, que não percebia o que lhe passava na cabeça e a certa altura deixou de distinguir se
gostaria de saber ou simplesmente de o matar. Acabou por ficar tão zangada que nunca mais lhe
falou nem nunca mais atravessou a Avenida da Guarda para descer até à praia, porque era onde
ficava o bar onde Gros Rouen passou a esperar os seus dias. Foi neste Verão que afogou o orgulho e
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desceu a Avenida mais poeirenta do que se lembrava e o encontrou sentado, tostado e negro pelo
sol, com os cabelos tão brancos como os dela.
— Os teus filhos estão a voltar.
Gros Rouen ajeitou o chapéu de palhinha esfiado à dentada quando o tédio imperava.
— Há quanto tempo estão fora?
Amalie Rouen reconheceu a mesma vontade de o matar que tinha carregado nos anos após a
sua partida, mas estava demasiado velha para perder tempo com palermices e respondeu:
— Acho que devias vir vê-los.
Gros Rouen coçou a cabeça e levantou-se.
— Suponho que sim.
E quando Gros Rouen entrou de novo em casa, vinte anos depois de ter desaparecido, bastou
o mesmo olhar de Nelson para abanar a cabeça e confirmar o que já sabia:
— Eu tinha razão. Esta casa vai ruir.
Sofia incluiu outro prato na mesa no momento em que soube pelas paredes que o pai tinha
regressado. Beaurouen, por outro lado, dispôs-se a morrer à fome antes de se sentar na mesma mesa
que o pai. A ausência de Gros Rouen da cadeira à entrada do bar do Franco foi suficiente para pôr
toda a gente a procurar saber se ele estava morto ou se finalmente fora deitar a casa branca abaixo, à
força de esperar que ela caísse. Souberam, por fim, que alguém o tinha visto na noite anterior,
sentado nos degraus da entrada, com um prato de peixe. Com a mesma velocidade, toda a gente
ficou a saber do regresso de Rouen à casa branca —embora aparentemente disposto a regressar aos
poucos.
A Adelena aproximava-se a passos largos. Durante um almoço, os netos recordaram os
festejos, sobretudo a primeira vez que puderam correr em frente ao cortejo, chamada primeira
Adelena, o que deu novo sopro às reparações e pinturas e criou anseio crescente. Saíam para a praia
e voltavam com enfeites de papel laranja para pendurarem nas varandas, nos parapeitos das janelas
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e nas ombreiras das portas. Amalie Rouen viu-se obrigada a pendurá-las na despensa da cozinha
como chouriços, por não ter outro sítio onde as guardar. Enquanto Nelson prosseguia nos seus
esforços para eliminar os bichos e enchia de argamassa as entradas dos quartos capturados, os
rapazes voltavam com latas da mesma tinta branca que guardavam em recordações vagas, e com
jornais e plástico da fábrica que usavam para cobrir os móveis e pintar as paredes.
Entretanto, Gros Rouen passara os últimos quatro dias nos degraus da casa branca, sem que
Beaurouen lhe dirigisse a palavra quando entrava ou saía. No quarto dia, voltou-se para ele:
— Pergunto-me o que ainda está aqui a fazer.
— Continuo à espera que me deixes entrar, como a tua mãe pediu.
— E se eu nunca o deixar entrar? Pôr um pé naquela casa?
— Então suponho que tenha que ficar aqui. Não saio destes degraus a não ser que me peças
para o fazer.
Beaurouen tinha os maiores acessos de fúria quando dava de caras com o pai. Fora o único
dos irmãos que nunca saíra de Adelaide, e o único dos quatro para quem a presença de Gros Rouen
era como óleo fervente debaixo da pele. Saber que ele vivia do outro lado da praça impedia-lhe por
vezes o sono, levando-o a cirandar pelos quartos até de madrugada. Ana, que amava Beaurouen
como desde o primeiro dia em que o vira, variava entre acompanhá-lo nas suas insónias com chás,
histórias e noites de amor, e fingir que dormia enquanto ele moía em grãos o desejo indeciso de
matar o pai ou de se atirar aos pés dele.
Mas as noites que passaram na casa branca foram as únicas em que se atreveu a dar-lhe
conselhos. Vendo o marido dançar com a febre, Ana agarrou-se aos ombros dele como se pudesse
impedi-lo de desaparecer.
— Deixa-o entrar — pediu — Deixa-o comer contigo, antes que te desfaças por dentro.
Beaurouen desceu as escadas de madrugada e abriu a porta para os degraus onde Gros
Rouen dormitava abrigado do vento fresco contra uma das colunas.
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— Entra. — e desapareceu de novo escada acima, onde chegou tão cansado que mal caiu na
cama antes de adormecer e gozou a primeira noite de sono puro em vinte anos.
Gros Rouen subiu as escadas até ao quarto de Amalie. Ao abrir-lhe a porta, ela deu por si no
lugar oposto do espectro, porque pensava que o desprezaria quando finalmente o visse dentro de
casa, e em vez disso, o mínimo de quatro dias que passara à porta haviam sido suficientes para
restaurar todo o amor que sentia por ele. Tremeu de surpresa e mal teve tempo de dizer fosse o que
fosse antes de ele lhe pegar pela mão e a deitar de novo na cama, para se juntar a ela com a mesma
rapidez e ficar com ela até ir alta a manhã, ambos relembrados de si próprios nas artes secretas do
quarto.
Com a alegria restaurada em Adelaide e a sala pronta, restabeleceram-se os jantares na casa
branca e as dissensões entre amigos foram desfeitas. Gros Rouen foi visto no dia seguinte na
pedreira e, como se nunca tivessem passado vinte anos, retomou o trabalho junto do encarregado
que se ofereceu para acompanhá-lo como assistente.
A casa branca encheu-se de gente como nunca antes visto, de amigos de Amalie, de Gros
Rouen, dos irmãos, dos netos. O terraço destruído pelas ervas daninhas que cresciam por entre as
pedras foi recuperado. Elena e os primos levaram uma manhã inteira a arrancá-las do chão, do
pequeno muro que cercava o terraço e das escadas de pedra que desciam a colina até junto da praça.
Sem explicação alguma, a força de Gros Rouen permanecera inalterada, equiparável à de
Beaurouen, com quem ele e Nelson substituíram as pedras rachadas. Sofia, Simon, Pedro,
Daniellive, Mia e Lorena, a única rapariga dos filhos de Nelson, lavaram e limparam a pedra nova,
para onde Pedro e os três irmãos, Simon e Beaurouen, carregaram a mesa gigantesca com que Ana e
Louise, mulher de Nelson, tinham passado a manhã, a sentir lascas com as mãos para as lixar e a
livrá-la do pó e do sal que se entranhara na madeira.
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Matieu já se dera conta do que antes ignorara — que nos limites de Adelaide estava Sofia
como ele a conhecera, presa à cidade, aos irmãos, como a raiz do carvalho. Amou o regresso da
mulher que julgava já não existir.
Enquanto as limpezas continuavam, enquanto Simon e Daniellou arrancavam a ferrugem das
varandas de ferro negro, Lorena e os irmãos saíam e regressavam com papel laranja suficiente para
três anos de Adelenas na casa branca, e se repetiam os jantares barulhentos com todas as luzes
acesas que abafavam o som de mastigar dos bichos na parede, a casa branca dos Rouen em frente ao
mar enorme foi recuperando vagarosa a fama perdida. Na semana da Adelena, os Rouen eram
reconhecidos tal como eram lembrados há vinte anos atrás — a família mais influente de Adelaide,
com uma tendência inóspita para a pancadaria.
Elena Loren tinha consigo muito poucas recordações de Adelaide. Reconhecia o entusiasmo
das reparações desesperadas como se fossem de outra casa qualquer, que não podia ser temperado
com as recordações que os primos e os tios partilhavam. A sua recordação mais nítida vinha da
partida de Mia e Simon, de Mia dentro do carro de calções muito brancos e um vestido curto azul,
apagada como uma luz de presença fundida, tão bonita como ela desejava ser um dia. De manhã,
saía com os primos para comprar enfeites que guardavam num saco comprido de plástico, e que
arrastavam todo o dia pela rua num rugir constante anunciado da festa. Passavam metade do dia
sentados em cadeiras de praia com os pés na areia, revisitando amigos que se lembravam de ter.
Entretanto, Elena sentia em Adelaide, mais do que nunca, o som perpétuo da tristeza que a
acompanhava. Quer sozinha, quer rodeada de gente, fantasmas e culpas antigas que ela não
conhecia permaneciam junto dela martelando-lhe a cabeça pelo silêncio. Agora, enfiada na casa
branca, acompanhavam-na noite e dia sem que se permitisse dirigir-lhes a palavra, fechada sobre si
própria como uma noz.
Foi precisamente assim imersa que a presença de Loupin Lorenzi se tornou mais evidente,
como olhar e dar de caras com um espelho. Ele fora introduzido num dos vários jantares como
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amigo de um dos primos, quando a casa estava de tal forma pejada de gente que ninguém deu pela
sua presença, da mesma maneira que mais tarde, inebriados pela Adelena e pelos festejos de
regresso a casa, que se expandiam no espaço e na noite como tentáculos de um polvo estendido, não
dariam pela sua ausência. Tinha a mesma idade de Elena e, como ela, conhecia apenas de nome os
tempos áureos de que os tios e os avós falavam. Elena notou-lhe a arte de ficar calado, que não
abundava pela família, que Loupin aprendera com a mãe, tal como um ódio fininho pelo pai que
mantinha sem saber para quê. Loupin elevara o passar despercebido à arte da invisibilidade, sendo
capaz de estar numa sala com outra pessoa sem ela dar por ele. Fascinou-o a tal ponto a paciência
com que ele observava e só falava quando lhe dirigiam a palavra, que sentiu uma pedra afundar-selhe no peito a primeira vez que lhe ouviu a voz.
Em vez de se perder em recordações que não tinha e no desassossego que nela imperava,
Elena passou a perder-se nele. Colou-se a Daniellou como uma lapa, sem uma única vez mencionar
Loupin, na esperança de o encontrar de passagem. Por um momento, recuperou alguma da alegria
que não se lembrava de possuir, mas que acalmou os tios que lhe sentiram o alívio momentâneo
como uma cura, deixando apenas Amalie ainda desconfiada. Esta pediu a Gros Rouen que exercesse
os seus dotes de vigilância sobre a neta, mas Gros Rouen hesitava, por não querer ainda
perturbações de qualquer espécie, e por ter olhado para a neta e não perceber que algo de mal se
passasse.
— Esse não é o teu forte de qualquer maneira, lembras-te? Nunca conseguiste perceber nada
de mal nos teus filhos, e por isso é que os vigiavas.
A Adelena estava à porta. Ao longo da semana, a maior inundação de gente que já se vira na
cidade encheu todos os hotéis, motéis, estalagens, quartos alugados e bancos de pedra na praça. As
pessoas estenderam sacos cama ao longo da esplanada à beira-mar e quando a esplanada ficou sem
lugares, estenderam sacos-cama na areia. As que não estavam habituadas ao calor de Adelaide
receavam os seus efeitos, vendo o sol colar-se a tudo como um forasteiro insistente. Aproveitavam
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os cortes negros que deixava contra as paredes com alívio, embora estivessem tão quentes que as
pessoas receavam morrer de qualquer maneira encostadas à parede fervilhada.
Os Rouen juntaram-se aos festejos desde a primeira noite, saindo com toda a cidade para as
ruas. Depois de duas semanas a picar dedos a coser os vestidos umas das outras, Elena e as amigas
enfiaram-se na amálgama de gente que enchia as ruas de tal maneira que era impossível seguir a
direito, e as oscilações da multidão tinham de ser acompanhadas como ondas do mar. A Avenida da
Guarda apresentava espectáculos de fogo de uma ponta à outra, lançando sombras laranja e
disformes sobre as paredes. Ao fundo da Avenida, música cantada absorvia, ritmava e distribuía a
energia da multidão. Conseguiram chegar até perto das dunas, onde uma fila de barracas oferecia
espetadas e espectáculos de marionetas. Loupin encontrou Elena junto da primeira barraca. A
melhor amiga de Elena beijou-a no rosto e afastou-se a correr com as outras. Ao ver a precisão com
que decorava o caminho desde as dunas até Loupin, Elena arrependeu-se de não estar no torpor
inebriado que as amigas lhe tinham oferecido que pudesse usar para dizer que não estava em si
quando os pais descobrissem. Constatou, aborrecida, que cada pormenor se prendia na sua memória
como carne em arame farpado, que os dez anos seguintes chegariam e talvez ela olhasse para trás e
achasse que fora uma idiota. Com a imagem da mãe a descobrir e de si muito mais velha e
tranquila, seguiu a mão de Loupin até uma escuridão de lençóis. No dia seguinte, demorar-se-ia a
tomar o pequeno-almoço ao som de insistentes chamadas de atenção para se despachar, o que
levaria a uma queimadura contra o bule de chá acabado de fazer.
Entretanto, os bichos ameaçavam ignorar as almas e tomar de assalto o andar de baixo.
Nelson desesperava e ele e Beaurouen tentaram encontrar outra solução que não fosse tão
temporária, não envolvesse argamassa nem desfazer outra parede numa casa já desfeita por dentro.
Enquanto Sofia e Daniellive ensinavam os filhos e sobrinhos a conceber de raiz o almoço de
Adelena e os punham a verificar sem tréguas cada janela, porta e varanda, substituindo todas as
tiras laranja soltas ou rasgadas, os dois irmãos iam desimpedindo os quartos afectados enquanto não
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lhes ocorria uma solução melhor, e os sobrinhos voltavam para encontrar quatro a dormir na mesma
cama.
Mia, que finalmente saíra do quarto onde se enclausurara para escrever sobre os meandros
da profissão de mecânico, regressara paulatinamente à vida familiar que se materializava diante das
recordações. Lembrava-se agora do quanto queria estar perto da avó, dos abraços de gigante de
Nelson e mesmo da voz colossal do pai. Entregou-se à busca das receitas que Amalie deixava
espalhadas em folhas soltas, blocos de notas e livros de recortes por toda a casa, à procura daquela
receita de peixe que, apesar de todos saberem de cor, era expressamente proibido cozinhar de
memória, sob pena de saber a estuque. Era a receita que Amalie Rouen decidira servir no almoço da
Adelena, porque tinha mais do que motivos suficientes de gratidão. A procura servia a Mia para se
afastar de si mesma, porque, mesmo fechada no quarto, uma dor trabalhada devorava-a por dentro a
um ritmo certo, deixando-a numa tristeza frágil como uma jarra de vidro a um toque de se
pulverizar. Ao mesmo tempo, as culpas antigas que se sentavam junto de Elena tinham-se levantado
e começado a mastigá-la. A presença de Loupin aliviou-a no início, mas depressa se tornou como
sal numa ferida aberta. Durante o dia estava tão cansada que mal se aguentava de pé, enquanto toda
a gente atribuiu os olhos vermelhos e o cambalear ondulante ao choque da Adelena.
Uma tarde, numa das travessias da sala para a cozinha, carregando copos, taças e garfos de
sobremesa, Mia viu Loupin, através das inúmeras portas abertas, à entrada, deixando cair o
tabuleiro cujo conteúdo se estilhaçou junto dos pés que em Adelaide usava descalços. Sentiu os
cortes dentro do corpo, em vez do lado de fora, ignorando durante o resto da tarde o sangue que
parou de escorrer por exaustão, deixando Simon sem saber o que fazer com o choro que lhe veio
gutural durante horas. Mia reviveu o cheiro de Arnould Lorenzi a montanhas e o dia em que fora
apanhada ao regressar pela janela do quarto onde a mãe a esperava, enquanto Beaurouen
desaparecera com o irmão pelo meio da Adelena à procura dela. Ana foi visitar os Lorenzi no dia
seguinte, escondendo o caminho todo que estava desconjuntada como um boneco de peças soltas,
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subindo uma hora depois ao quarto de Mia, trancado por fora e com duas tábuas pregadas em fúria
sobre a janela por Beaurouen. Despejou numa frase a soma da conversa.
— Os Lorenzi dizem que a minha filha inventou tudo.
Nessa altura tinham-se esgotado as forças de Mia para chorar, pousada seca como uma passa
em cima da cama. De tal maneira lhe pareceu descabida a ideia de Arnould mentir, que procurou
entender a princípio se através das palavras da mãe ele não estaria a mandar-lhe uma mensagem
velada. Quando Ana repetiu toda a conversa, até Mia sentir que a presenciava, um novo alento para
chorar apossou-se dela durante os dias que se seguiram, mas não sem antes se levantar e estender à
mãe, tiradas da gaveta da mesinha-de-cabeceira, junto de um caderno esgotado de notas, um maço
de quinze cartas abertas atadas num cordel e enfeitadas com restos de papel laranja da última
Adelena. Foi o único dos pedidos de Arnould que Mia não foi capaz de cumprir, porque durante a
noite, quando era incapaz de adormecer e as recordações do seu amor pareciam capazes de a comer
viva, para a encontrarem pela manhã desfeita em duas metades numa poça de sangue e esterco, um
olhar sobre as cartas que devia destruir e as palavras na letra pequena e redonda de Arnould
ofereciam a Mia o alívio temporário de que precisava até poder estender-se ao outro lado da cama e
fazê-lo repetir o seu amor por ela até acreditar.
— Mas que idiota escreve seja o que for se não quer que seja encontrado?
— Não é óbvio? — respondeu Amalie — Ele nunca pensou que a tua filha o traísse.
Arnould negou até ao fim o que as cartas repetiam sucessivamente, na esperança de que isso
lhe valesse a mais pequena sombra de dúvida. Foi preciso que Vera Lorenzi, devorada durante a
noite pelo ciúme, encontrasse as que ela lhe escrevera, precisamente no momento em que Arnould
sonhava que se livrava delas escondendo-as no estômago. No dia seguinte, a existência dessas
cartas chegou a Beaurouen e foi Vera quem lhe abriu a porta.
— Não sei o que se passa na cabeça da tua filha, mas o meu marido diz que nada disto
aconteceu.
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— O teu marido que se cuide e venha falar comigo cá fora, antes que eu entre aí e parta isso
tudo.
Arnould não estava em casa. O único lugar que restava era o bar do Franco. Assim que
Beaurouen entrou, todos souberam ao que vinha. Franco somou de cabeça o valor da conta de
Nelson, de Beau e de Gros Rouen, que na altura ainda descansava debaixo do guarda-sol
esburacado de lona amarela e do chapéu de palha comido à porta do bar, no espaço de tempo em
que Beaurouen se dirigiu a Arnould Lorenzi e lhe perguntou:
— Onde estão as cartas?
Arnould sabia que já não tinha por onde negar o evidente, mas ainda lhe restava alguma
coragem para aceitar a penitência, e por isso a sua resposta soou seca, embora trémula.
— Achas que te vou dizer?
E, no acto de pancadaria que foi falado à larga escala, o bar de Franco foi destruído até as
portas da frente e os bancos do bar serem cepos para a lareira. Beaurouen já se afastava quando o
pai, sem levantar a cabeça, se pronunciou:
— Fizeste bem.
— O Inferno que o coma, pai — foi a resposta de Beaurouen guardada desde que soubera da
sua partida.
Na manhã seguinte, uma luz branca que o sol do meio-dia em breve tornaria incandescente,
entrava fininha e suave pelos buracos das persianas, lançando Mia num estado de felicidade tal que
os próprios acontecimentos se atropelavam e demoravam a chegar-lhe de novo à memória,
empurrando-a de novo para debaixo de um torpor adormecido. Enquanto isso, Ana e Beaurouen
anunciavam a sua partida lá em baixo na mesa de pequeno-almoço. Ana foi buscar Mia, quando só
ela faltava para saírem, que desceu sem resistência e deixou que a enfiassem no carro sem uma
palavra, enquanto Elena hesitava entre aproximar-se da prima e afastar-se do carro, porque ainda
não controlara o seu medo irracional de monstros de motor. Mudaram-se para as montanhas que
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Mia e toda a família vieram a odiar, porque acharam o calor parado insuportável, como repousar
dentro de uma terrina de água ao sol. Quando Beaurouen e Ana voltaram para a casa que tinham
fechado, Mia e Simon seguiram sem hesitar o caminho oposto, não trazendo nada a não ser o nome
da mãe. Passariam anos até Mia concluir que a raiva do pai vinha do mesmo amor que Gros Rouen
nutrira pelos filhos.
Quanto a Arnould, Mia sentira todos os dias desde essa altura que a morte não lhe era
castigo adequado, imaginando-lhe todo o género de suplícios e humilhações públicas durante anos,
quando os quilómetros colossais que os separavam não eram nada para o ódio que por ele sentia.
A mesa tinha de ser posta antes do cortejo. Amalie contava-se entre as primeiras senhoras de
madrugada na areia, uma vez que não havia tempo de esperar que a pescaria daquela noite chegasse
às lojas da praça. Era o único dia do ano em que os padeiros batiam a todas as casas sem excepção
para fazer entregas que, caso contrário, custariam horas em filas capazes de atravessar a praça que
ninguém podia desperdiçar.
Foram tirados do armário copos usados uma vez por ano, limpos os pratos e escolhidos os
talheres do faqueiro novo. Os guardanapos que tinham sido salvos a tempo das traças foram
reunidos e atados com fios laranja entrançados em cordas com miniaturas de nós de pescador. Tudo
o que se pôde fazer foi feito antes, para que depois do cortejo houvesse o mínimo para fazer para o
almoço da Adelena.
Ignorando por fim o que fora feito e o que ficara por fazer, não havia uma única pessoa que
não estivesse na praça ao meio-dia, quando o sol estava tão quente que derretia o ar a cinco palmos
do nariz, e o dia era um forno gigante no qual as pessoas mal se podiam mover. Ao meio-dia em
ponto o ressoar dos tambores rasgou os murmúrios da multidão e as crianças expectantes correram
ao sinal para a frente do cortejo, onde os dançarinos representando os pescadores nocturnos davam
já os primeiros passos. Num ápice, os gritos e a música encheram a praça que o cortejo atravessou
em direcção à Rua de Montives, subindo a colina. Para onde quer que se olhasse, em qualquer
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direcção, centenas de tiras de papel laranja adornavam as casas brancas e agitavam-se com o chão
que tremia à passagem do cortejo, porque no dia mais quente do ano não soprava vento algum em
Adelaide. Nas bordas do cortejo agitavam-se bandeiras, as pessoas batiam palmas e atiravam arroz.
As raparigas de vestidos brancos corriam de um lado para o outro à procura dos amigos no cortejo
disfarçados de pescadores ou militares, e os mais velhos choravam ao verem as filhas e netas
espalharem areia da praia à sua passagem antes dos exilados. A agitação só aumentou quando o
cortejo principiou a descer a Avenida da Guarda de onde se avistava a praia e os músicos tocaram a
última música da fundação solene. As crianças deram saltos de alegria na areia imitadas pelos
restantes que mal se conseguiam conter, quando os tambores cessaram. No momento exacto em que
o último músico pôs os pés na areia, a última nota foi tocada e o professor esgotado de sono
comoveu-se como todos os anos ante a perfeição. A um grito, a multidão lançou-se em direcção ao
mar quieto como uma placa de chumbo, mergulhando, deixando a água pelos joelhos, pousando-lhe
apenas os pés. As crianças tocaram na água rodeadas de uma dezena de mães. Uma a uma, as
famílias reuniram-se, subiram a praia e entraram na igreja. Lorena, uma das que permanecera até de
madrugada, chorou de alegria ao ver a luz que incidia sobre as flores de papel nos bancos corridos.
Pela primeira vez desde a partida de Gros Rouen e dos filhos, toda a família Rouen ocupou os
bancos da frente. À medida que concluíam orações de gratidão, uma a uma, as famílias retiravamse, até ficarem aquelas que restavam dos primeiros exilados do calor.
Amalie e as filhas passaram ainda duas horas na cozinha enquanto alguns dos sobrinhos
contemplavam as filas de argamassa entranhada que os tinham posto a dormir nos sofás vermelhos
e na sala de costura.
Com a azáfama do almoço, ninguém reparou que os bichos que comiam as paredes tinham
deixado de se ouvir há uma hora.
O pão em cestos, os queijos, os enchidos grelhados, as taças de ovos cozidos, os tabuleiros
de amêijoas foram levados para o terraço e postos sobre a longuíssima mesa de almoço. Quando
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Amalie e Sofia saíram com as duas travessas de peixe azul reluzente sob o sol de Verão, o sopro de
Adelaide trazido àquelas paredes cessou e a casa ficou vazia.
Só quando se iam sentar notaram a ausência de Gros Rouen. Iam procurá-lo dentro de casa
quando Daniellou viu através das inúmeras portas abertas até à entrada a figura de Loupin voar para
dentro da sala com o avô no seu encalço. Elena soltou um grito ao vê-lo atravessar a casa e surgir
no terraço, enquanto Gros Rouen o perseguia possuído da força colossal que toda a gente lhe
conheceu. Nelson gritou “Mas que raio!” e uma cadeira voou e por pouco não lhe acertou na
cabeça. Loupin fugia de Gros Rouen agarrando-se às colunas e entrando e saindo como louco pelas
inúmeras portas abertas, partindo duas jarras pelo caminho.
Nesse momento, que Simon Vonté nunca mais esqueceria, sendo o único que o viu
acontecer, a pedra de esquina da casa branca rachou. Fininha, subiu pela parede até à segunda janela
do quarto de Sofia Loren e um som de areia e pedra esmigalhadas ecoou como o troar de uma salva
de espingardas. Loupin parou de correr dentro de casa apenas a tempo de Gros Rouen o agarrar e
correr todas as portas até ao terraço, porque reconhecera sem alegria nem tristeza os sinais que
interpretara há vinte anos, quando notara a inclinação da casa branca sobre a encosta. A racha
prolongou-se numa cruz desenhando uma linha entre os dois andares e o segundo andar comeu o
primeiro, cuspindo uma onda de pó e parede sobre o terraço.
Subindo de novo as escadas, a família contemplou a mistura de escombros de pedra, as
farpas gigantescas de madeira do chão negro da casa, as paredes que agora rasgadas se viam
inteiramente vazias por dentro e nascentes de água brotadas dos canos rebentados. Contaram-se
mutuamente e Amalie contemplou a mesa destruída e a casa branca desfeita.
— Bom... Suponho que devíamos reconstruir.
Gros Rouen contemplou o espectáculo de pedra, aliviado da carga que trazia com Loupin
ainda seguro por cima dos seus ombros.
— Suponho que sim.
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A. Monteiro
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