35º Encontro Anual da Anpocs GT 09 – ESPORTE E SOCIEDADE

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35º Encontro Anual da Anpocs GT 09 – ESPORTE E SOCIEDADE
35º Encontro Anual da Anpocs
GT 09 – ESPORTE E SOCIEDADE
Os espaços físicos e o habitus dos torcedores
brasileiros em estádios de futebol: o que pode mudar
com a adoção do ‘padrão Fifa’ para a Copa de 2014?
Túlio Velho Barreto e Cristiano Nascimento
(Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj)
1. INTRODUÇÃO
A partir do momento em que o Brasil foi confirmado como sede da Copa do
Mundo de Futebol para o ano de 2014, a organização local escolheu doze
subsedes (doze capitais) para a realização dos jogos, tendo em conta as suas
condições macroestruturais para receber o público dos jogos (capacidade de
atração turística, infra-estrutura urbana, tradição em realização de grandes
eventos, segurança pública, transporte, rede hoteleira).
Tornou-se mandatório, ainda, que todas as suas subsedes contassem, cada
uma, com um estádio adequado às demandas contemporâneas para o futebol,
embora àquele momento, nenhuma delas efetivamente possuísse nenhum
equipamento com tal perfil (De La Corte, 2009). Imediatamente, portanto, foram
exigidas urgentes reformas dos antigos equipamentos – ou mesmo a construção
de novos – para que se atinja o padrão contemporâneo, nivelado ao dos
melhores e mais moderno exemplares do cenário internacional – o chamado
“padrão FIFA”.
Sabe-se, contudo, que nos países em que tal padrão se tornou usual para os
novos estádios, foi verificada uma mudança forçada no comportamento do
torcedor em campo.
Mas, até que ponto se pode inferir sobre a existência de tal relação?
Segundo Hillier e Hanson (1984), para cada evento social que se deseja
promover, configuram-se uma série de possíveis relações entre os indivíduos
que são traduzidas na arquitetura pela delimitação de séries de unidades
espaciais e pela permissão ou restrição ao estabelecimento de conexões entre
elas.
(...) edifícios funcionam socialmente agindo como interfaces
entre diferentes grupos de pessoas - entre os sexos, entre o
núcleo e os membros externos de uma família, entre os membros
de uma instituição e convidados, e assim por diante. Na criação
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de interfaces, os edifícios tornam-se depositários de um
conhecimento social implícito, que é o conhecimento
das diferenças de status, das normas e regras de
comportamento associados com definições particulares e a
interação relativa aos membros de diferentes categorias
sociais. Na verdade, às vezes, muito do conhecimento social
seria difícil de construir e manter, se este não
fosse atrelado internamente ao espaço. (Bafna & Shah, 2007)1
Pode-se ainda fazer uma interpretação mais profunda para o entendimento
desta relação: é possível afirmar que o espaço é um elemento constituinte da
sociedade e que um não existe sem o outro (GIDDENS, 2003). A arquitetura
não é um produto isolado nem há viabilização de relações sociais sem a
determinação de distintas posições para distintos indivíduos no espaço edificado
– há uma eterna dualidade nos papéis desempenhados por um e ou por outro, e
não um determinismo direto.
Em síntese, de acordo com os autores, edifícios são criados a partir de
prescrições e programações de uso que atendem a demandas específicas de
uma sociedade. No seu processo de definição, as regras sociais que motivam a
sua elaboração, e que o precedem, influenciam no modo em que potenciais
situações de encontros entre agentes tenderão a se dar no seu sistema
espacial. Entretanto, posteriormente, os mesmos edifícios têm, também, a
capacidade de potencializar e/ou restringir determinadas utilizações – o sistema
espacial imprime determinadas condições de uso para os agentes, ou exercem,
probabilisticamente, um certo grau de influência sobre o comportamento dos
indivíduos, sendo possível, através da sua descrição, estimar certos padrões de
uso no edifício.
1
Livre tradução do autor para o original em inglês: “(…) buildings function socially by acting as
interfaces between different groups of people—between the sexes, between the core and
extraneous members of a household, between members and guests, and so on. In creating
interfaces, buildings become depositories of implicit social knowledge, which is knowledge of
status differences, norms, and behavioral rules associated with particular settings and concerning
interaction with members of different social categories. In fact, at times, much of that social
knowledge would be difficult to construct, and to maintain, if it were not hitched onto space.”
3
A relação, então, não é estática. O indivíduo, e a sociedade, também possuem a
liberdade de se apropriar da estrutura espacial que lhe é dada de modo
particular e redefinir regras de utilização, até mesmo subvertendo certas
predefinições da concepção de uso original. Na verdade, o que se estabelece é
uma relação necessária e inevitável entre sociedade e espaço que, quando
consolidada, termina por fazer da dimensão espacial um componente desta
própria sociedade.
De tal modo, e partindo-se do pressuposto de que existe uma lógica social
subjacente ao espaço edificado (Hillier & Hanson, 1984), seria possível afirmar
que o habitus do torcedor, não se restringe apenas a aspectos de sua vida
social a-espacial ou a-arquitetônica – o conjunto de regras sociais, rotinas e
padrões de relações entre indivíduos, seus rituais. Ele também é composto pela
chamada vida espacial do torcedor – padrões de utilização do espaço edificado
do estádio, considerando que sua utilização é, em certa medida, condicionada
pelas possibilidades impostas pelas variáveis dos padrões espaciais, próprios
da arquitetura de cada edificação (HOLANDA, 2002). Portanto, pode-se
efetivamente falar que desenvolvimento da relação entre clube e torcedor e os
estádios ao longo da história consolida um padrão de vida espacial – um habitus
espacializado – típico a cada estádio e a cada torcida.
É de se prever, portanto, que uma inevitável mudança dos edifícios deve trazer
possíveis mudanças no comportamento e no perfil do torcedor brasileiro,
acarretando uma sensível transformação na cultura socioespacial do futebol no
Brasil. Questiona-se se a padronização das estruturas espaciais dos estádios
também não deverão acarretar uma padronização no modo de se assistir às
partidas de futebol no Brasil, a ponto de caracterizar um iminente processo de
elitização no público do futebol nacional.
O interesse deste artigo é de justamente discutir a relação entre o habitus do
torcedor de futebol e o espaço do futebol – o contexto urbano e a arquitetura
dos estádios – no intuito de se estabelecer uma questão para futuros
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aprofundamentos teóricos e analíticos a serem desenvolvidos no decorrer do
próprio processo de realização da competição internacional no Brasil.
Operacionalmente, a discussão sobre esta possibilidade se realizar no contexto
brasileiro se baseia nos caso da cultura do futebol da cidade do Recife –
exemplo paradigmático de como o futebol se estabelece como dado constituinte
da sociedade urbana brasileira contemporânea. Para tanto, serão utilizados
alguns exemplos da relação entre indivíduos e espaço identificáveis no habitus
dos seus três maiores clubes – Clube Náutico Capibaribe, Sport Club do Recife
e Santa Cruz Futebol Clube – mediante a iminente implantação de dois novos
estádios FIFA na cidade.
2. ESPAÇO, SOCIEDADE E FUTEBOL – DO BRASIL AO RECIFE
A maioria dos estádios de futebol brasileiros são edifícios surgidos num intervalo
de cerca de 30 anos, entre as décadas de 402 (os mais antigos, do Rio de
Janeiro e São Paulo) e 70. Agregados às sedes sociais dos clubes, localizavamse no contexto urbano já estabelecido, comumente associando o seu nome ao
próprio local de sua instalação nas cidades.
Quando surgiram, o rádio já era um veículo de mídia importante, mas a televisão
ainda não – embora tenham se tornado célebres as coberturas cinematográficas
dos jogos de futebol nas décadas de 40 e 50 pelo chamado Canal 100, a cultura
da transmissão do futebol no Brasil nasce e se perpetua através do rádio – meio
que sempre demandou menos aparatos infra-estruturais dos edifícios (De La
Corte, 2009).
Sendo assim, para que se pudesse ver o futebol e conhecer pessoalmente os
atletas, o estilo de jogo e mesmo o padrão dos uniformes, era necessário ir
presencialmente ao estádio. Em principio, considerando as dificuldades de
2 Uma célebre exceção é estádio de Álvaro Chaves (depois chamado Manuel Schwartz), ou
estádio das Laranjeiras, do Rio de Janeiro, inaugurado ainda em 1919.
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deslocamento por transporte público na época, quanto mais próximo da casa do
potencial torcedor, mais provável seria a sua identificação com o clube.
Por outro lado, em descompasso com a profissionalização, tanto do futebol
como da imprensa desportiva, as normas de segurança não eram específicas
para a atividade. Tal condição faz surgirem certos hábitos próprios do esporte
brasileiro. Uma vez que nem a educação do público era satisfatória e nem a
segurança pública sabia lidar com multidões, desenvolvem-se estruturas
espaciais de segregação entre os espectadores e o evento esportivo, como a
existência de cercas ou fossos para separar público de atletas e deixar mais
definidas as restrições de acesso e as separações de grupos de visitantes (De
La Corte, 2009).
Só os estádios que surgem nas décadas de 60 e 70 são os que começam a
apresentar espaços próprios para os equipamentos de televisionamento.
Entretanto, com exceção dos grandes centros de Rio e São Paulo, nesta época,
apenas algumas poucas cidades apresentavam uma estrutura de fomento ao
esporte de caráter mais profissional (Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador,
Recife e Belém). A organização da partida, portanto, ainda se mantinha próxima
do amadorismo, mantendo uma tendência à permissividade entre público,
imprensa e atletas (De La Corte, 2009).
O que se entende é que, até então, as instalações e a estrutura de espaços era
pouco especializada, fazendo com que o estádio fosse basicamente dividido
entre: (a) assentos para o público; (b) campo de jogo; (c) vestiários; (d) cabines
de imprensa. Não havendo maior separação de fluxos, menor era a quantidade
de circulações e maior a necessidade de se instalarem barreiras improvisadas,
como os alambrados, para que a hierarquia entre usuários fosse definida.
A visibilidade também não era especialmente projetada, o que fazia com que a
simples sustentação do maior número de assentos possível fosse suficiente.
Curvas de visibilidade e subdivisão de grupos de assentos em relação a áreas
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de acesso e de escape não eram claramente percebidos – dificilmente se torna
possível ao torcedor assistir aos jogos sentado.
Segundo De La Corte – pesquisador brasileiro interessado nos aspectos
técnicos e construtivos dos estádios nacionais – a visibilidade de alguns dos
principais estádios brasileiros, como o Pacaembu e o Morumbi em São Paulo, o
Mineirão em Belo Horizonte e o Maracanã no rio de Janeiro, sofrem de algum
tipo de obstrução visual às suas fileiras de assentos. Respectivamente, 65%,
63%, 49% e 60% das fileiras desses estádios, hoje, sofrem tais obstruções. Se
convertidos a um padrão contemporâneo, inevitavelmente sofreriam redução
nas suas capacidades de público (perdas entre 30% e 40% nestes estádios
citados). Considerando que estes são edifícios voltados aos torneios mais
importantes e ricos do país (paulista, carioca e mineiro), a situação só tende a
piorar nos demais estados (Souza, 2004).
Da mesma forma, em muitos estádios dificilmente se torna possível ao torcedor
assistir aos jogos sentados ou, mesmo quando há assentos, estes se tornam de
pouca utilidade, pois os torcedores tendem a permanecer de pé (até mesmo de
pé sobre os assentos).
Outro fato chama a atenção. Também não havia coberta em grande parte dos
assentos dos estádios. No Pacaembu, em São Paulo, inaugurado em 1940,
todos os lugares são descobertos. Por outro lado, os estádios que foram
construídos tendo como modelo o Maracanã, como o Morumbi e o Mineirão, têm
apenas a ala nobre dos assentos – com cadeiras alugadas, vendidas ou
reservadas a sócios e personalidades de maior status social – com cobertura,
reforçando a tendência segregacionista da época.
Além disso, a falta de gestores profissionais (são patrimônio dos próprios clubes
ou dos governos) termina por provocar o desgaste das estruturas físicas, sendo
que muitos apresentam graves problemas de segurança. As condições físicas
somam-se ao comportamento do torcedor. Edifícios com pouca definição
espacial tendem a permitir um comportamento menos controlado. É comum que
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torcedores, na busca por melhor visibilidade, ocupem áreas como marquises e
alambrados, sentem-se em guarda-corpos, potencializando as possibilidades de
acidentes (De La Corte, 2009).
Por outro lado, historicamente, o Brasil desenvolveu uma relação muito íntima
entre o futebol e os mais variados aspectos da sua sociedade. Tal processo
levou à construção não de uma só cultura futebolística hegemônica, mas de
variadas maneiras de se relacionar com o futebol – inclusive perceptíveis nos
diversos “modos de torcer” do brasileiro.
Como não havia padronização nas soluções arquitetônicas, distintas
localidades desenvolveram estádios com características próprias. Tal variação,
ao longo do tempo, termina por levar também os torcedores a desenvolverem
distintos padrões de comportamento, intimamente relacionados às
particularidades das estruturas espaciais das suas respectivas praças
desportivas tradicionais.
Para além das restrições técnicas, o que se percebe é que algumas torcidas
terminaram por desenvolver certos tipos de comportamento dentro das
condições permitidas pelos estádios.
Para citar apenas um exemplo, que não deixa de paradigmático, pode-se
lembrar a existências dos chamados ‘geraldinos’, isto é, os torcedores que
assistiam às partidas de futebol em pé e quase no mesmo nível do gramado de
jogo. Tais torcedores se notabilizavam por um comportamento diferenciado e
sua condição econômica em função do baixíssimo valor dos ingressos de
acesso àquelas dependências.
Entretanto, fora dos centros mais ricos e mais influentes do futebol brasileiro –
nomeadamente, São Paulo e Rio de Janeiro, seguidos de Porto Alegre e Belo
Horizonte – entende-se que o caso do Recife emerge como um exemplo
especialmente interessante para o estudo, sendo tratado a seguir no artigo.
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2.1 O CASO RECIFE: EMERGÊNCIA, APOGEU E (POSSÍVEL) CRISE DE
UMA CULTURA DE FUTEBOL
O estudo fará uso da cidade do Recife como caso exemplar para a discussão
que se propõe a realizar porque se entende que o cenário da cultura do futebol
na cidade apresenta alguns aspectos que o fazem particularmente eficiente para
tratar da ameaça de uma padronização – ou globalização, ou elitização – do
torcedor e da sua relação com a estrutura espacial dos estádios.
Primeiramente, o Recife detém uma notável história relacionada à implantação e
à adoção do futebol como elemento constituinte da sua identidade cultural. A
prática competitiva e sistemática do futebol no Recife tem início ainda na
primeira década do século XX, tendo produzido quatro clubes de expressão, em
termos de presença de torcedores e tradição – Clube Náutico Capibaribe
(fundado em 1901), Sport Club do Recife (1905) – imediatamente seguidos pelo
Santa Cruz Futebol Clube e o América Futebol Clube (ambos de 1914).
Na cidade há, visivelmente, a construção de um perfil de cada grupo de
torcedor, associado à história de cada clube. Seria possível afirmar que a
identificação com determinado clube é, também, a construção de uma distinção
social.
A cidade conta com três estádios dentro do seu núcleo urbano, cada um
associado a um dos três maiores clubes e reconhecido pelo nome do bairro em
que se situa: (a) o José do Rego Maciel, ou do Arruda, pertencente ao Santa
Cruz; (b) o Adelmar da Costa Carvalho, ou da Ilha do Retiro, pertencente ao
Sport; e (c) o Eládio de Barros Carvalho, ou dos Aflitos, pertencente ao Náutico.
Curiosamente, dos quatro clubes principais, apenas o Sport detém títulos
nacionais expressivos em sua categoria profissional principal, e, ainda assim, o
título mais recente conquistado foi o da Copa do Brasil, em 2008, de menor
importância que o do campeonato nacional. Seu outro título nacional, de 1987,
embora judicialmente reconhecido, é ainda alvo de controvérsias dado o caráter
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particular do campeonato daquele ano3. E, junto ao Náutico, não apresenta
constância na participação na divisão de elite nacional nesta última década.
O América, que chegou a ser campeão estadual na primeira metade do século
passado, praticamente faliu na década de 1980, só tendo retornado à ativa nos
anos recentes.
E o Santa Cruz, time considerado “maior”, com grande destaque nacional na
década de 80, viveu a experiência de descer de divisão no campeonato nacional
por três anos consecutivos, estando, hoje, apenas na chamada Série D, uma
divisão de acesso, sem presença garantida – sempre dependente da
classificação no campeonato estadual anterior.
Mas, curiosamente, no Recife tudo se passa como se a rivalidade local tivesse
mais peso que a projeção nacional das equipes. A adesão dos torcedores aos
clubes parece se manter inabalada. Tal adesão está também relacionada a uma
fidelidade clubística local, muito particular ao Recife e pouco perceptível em
demais cidades brasileiras que se encontram fora do circuito hegemônico da
economia do futebol nacional. No Recife, é notável a torcida exclusiva a apenas
um dos seus clubes, sem nenhuma filiação a nenhum outro clube tido como
nacional, como é comum ocorrer em demais localidades da região Nordeste –
quando torcedores se dizem filiados a um clube local e mais um outro tido como
“nacional”, como no caso de Flamengo e Corinthians, por exemplo. Sobre tal
questão, inclusive, são comuns os comentários, entre os torcedores recifenses,
independentemente do time, de que os adeptos dos clubes nacionais das
cidades vizinhas não possuem times para os quais torcer, como também não é
raro que sejam chamados nos confrontos realizados no Recife de “vergonha do
Nordeste”.
3
Em âmbito nacional, é comum se atribuir este título ao Flamengo, dado o desentendimento
entre a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e uma emergente liga de clubes na
organização do campeonato nacional daquele ano.
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A identificação com os times chega mesmo a extrapolar o limite clubístico e, em
alguns momentos de confronto com equipes de fora do estado, ouve-se nas
torcidas alusão ao próprio estado de Pernambuco – como se o time contivesse a
representação de um sentimento de territorialidade.
Nos últimos anos, a importância local destes clubes tem sido confirmada por
alguns fatos marcantes. O América, por exemplo, após décadas de inatividade,
ao retornar à primeira divisão da competição estadual não apenas contou com o
retorno de antigos torcedores como também angariou uma considerável adesão
de novos adeptos – até aqueles que não eram torcedores tradicionais, vira no
ressurgimento do time uma possibilidade de se destacar perante os três outros
maiores, numa evidente ação de necessidade de identificação dentro da cultura
futebolística local, tão baseada na rivalidade tradicional.
Quantitativamente, as médias de público nos estádios locais dos três maiores
clubes – Sport, Náutico e Santa Cruz – mesmo no torneio estadual, estão
sempre entre as melhores do país. Ressalta-se, inclusive, que este último
apresenta as melhores médias do ano de 2011 mesmo atuando na quarta
divisão do campeonato nacional de clubes.
Uma outra característica de destaque no caso do Recife é uma histórica e
notável relação dos clubes – personificados nos seus torcedores – e seus
aspectos urbanos e arquitetônicos. Esta espacialização da cultura do futebol
recifense é tratada com maior detalhamento na sequencia.
2.1.1 Futebol e espaço no Recife
A cultura futebolística no Recife é intimamente ligada a questões de ordem
espacial, desde a escala urbana, até a relação da torcida com as idiossincrasias
da arquitetura dos seus estádios.
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Antes de tudo, e como antecipado acima, a própria localização das praças
desportivas é um componente de identificação das torcidas com os seus clubes.
Além das alcunhas dadas aos três estádios principais – Aflitos, Arruda e Ilha – a
história de formação dos perfis dos torcedores possui, também, um caráter
locacional, diretamente associado à formação urbana da cidade e ao contexto
histórico em que cada clube se estabeleceu.
O Náutico – o mais antigo dentre os três – e o seu estádio situam-se em na
região de mais alta qualidade de vida do Recife. Aflitos, Espinheiro e Jaqueira
são os bairros com os mais altos IDH’s da cidade (entre 0,93 e 0,97). Além
disso, é uma zona de alto grau de urbanidade (Holanda, 2003), ou seja, ruas de
pouca extensão, muitas variações de direção, reduzidas dimensões de caixa e
alta conectividade entre si, associada a uma considerável oferta de espaços
públicos – praças, jardins, parques – e um padrão de uso e ocupação denso e
diversificado (com equilíbrio entre uso residencial, comercial e de serviços). O
estádio, enclausurado em meio à densa ocupação do solo, funciona
praticamente como mais um equipamento do sistema urbano da região.
A torcida do clube ainda é predominantemente composta por moradores desta
mesma região. O acesso ao campo, em dias de jogo, é notavelmente realizado
a pé. Uma característica própria, e decorrente desta condição, é de uma certa
“pontualidade” do torcedor do Náutico – o estádio tende a permanecer pouco
ocupado até os últimos minutos que precedem o início da partida, haja vista a
facilidade de deslocamento até o estádio, que não demanda uma antecipação
do horário de chegada.
Por outro lado, a chegada do adversário – torcedor ou equipe visitante – mesmo
por meio ônibus, inevitavelmente se dá pelas mesmas ruas locais, onde vive o
torcedor do Náutico. A pressão de “invadir” o terreno do adversário, ainda no
contexto urbano, é, também, uma particularidade locacional do clube.
As dimensões restritas do estádio (22 mil pessoas) fizeram com que a distância
entre as arquibancadas e o campo seja mínima. O torcedor se vê muito próximo
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aos participantes do jogo e a movimentação entre os degraus das
arquibancadas e a beira do campo – com a separação do alambrado – é
constante e rápida.
Tal intimidade, somada às dimensões reduzidas do campo e do próprio tipo de
gramado, é tida como um fator potencializador do chamado mando de campo do
clube – a proximidade favorece a pressão psicológica sobre o adversário.
O estádio do Santa Cruz, por sua vez, está localizado no Bairro do Arruda.
Diferentemente do anterior, surge praticamente como um marco urbano
monumental e referencial à região em que se insere, dado o seu porte (60 mil
pessoas) e algumas características arquitetônicas marcantes – o seu anel
superior de arquibancadas suspenso como se flutuasse sobre o inferior, apoiado
sobre pilares de concreto que se montam por sobre um canal adjacente ao
estádio, como se constituísse pórticos de passagem para a via.
A região do próprio Arruda, e de seus bairros vizinhos de Água Fria,
Encruzilhada e Campo Grande apresenta uma menor densidade que o anterior,
também seno bem menos verticalizado – ou seja, é constituído
predominantemente por casas e não por edifícios de habitação multifamiliar. O
estádio se situa na confluência de duas vias estruturantes do sistema viário da
Zona Norte da cidade, localmente: Avenida Beberibe e Avenida Professor José
dos Anjos. Embora haja também uma marcada territorialização da torcida, os
deslocamentos até o estádio nos dias de jogo, praticamente passeatas
ritualizadas, compõem o cenário que prepara os ânimos para os momentos das
partidas.
As dimensões do estádio, que fazem com que o torcedor se localize mais
distante do campo, obriga a uma programação de chegada – chegar mais cedo
significa ocupar melhores lugares para assistir à partida.
Se a distância é maior, a capacidade do estádio também o é. A referida pressão
psicológica sobre o adversário procura se realizar pela dimensão da massa de
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torcedores. A ocupação dos dois anéis de arquibancadas é uma demonstração
de apoio ao time dono da casa, de verdadeira devoção e identificação com toda
a sua representatividade.
Já o estádio Adelmar da Costa Carvalho, pertencente ao Sport, no bairro da Ilha
do Retiro está às margens de uma via radial do sistema viário da cidade, a
Avenida Abdias de Carvalho, com uma importância, inclusive, metropolitana,
pois é um dos eixos de saída da cidade que se liga diretamente a outra via
estruturante da cidade, inclusive me termos de transporte público – a primeira
perimetral, constituída pela avenida Agamenon Magalhães.
O bairro possui uma ocupação bastante heterogênea, tanto do ponto de vista
morfológico quanto no seu perfil-econômico e social. Áreas de ocupação
irregular e zonas de interesse social se localizam ao redor do estádio, enquanto
que em um dos seus flancos, voltado para a margem do rio Capibaribe, principal
rio do Recife, desenvolve-se nos últimos anos um intenso polo imobiliário para a
classe média alta e alta da cidade. Novas torres de alto gabarito têm suas
janelas posteriores voltadas para o estádio. Seria até precipitado fazer uma
comparação com o próprio perfil do torcedor do Sport, que, por ter conquistado
maior número de adeptos nas últimas décadas, é composta tanto por membros
da classe média alta como por torcedores assumidamente ligados às
comunidades de mais baixa renda da região, como o Coque
Entretanto, outros espaços púbicos locais detêm o caráter de congregação da
torcida do Sport Clube do Recife, como é o caso do pequeno largo que dá
acesso ao estádio, entre a avenida, as avenidas Abdias de Carvalho e Prefeito
Lima Castro e o complexo viário do túnel Chico Science e da ponte Professor
Lima de Castilho. Nos dias de jogos, a concentração de torcedores na praça
demarca o território pertencente ao clube ante os rivais.
O estádio, de dimensão média (37 mil torcedores) repete o modelo
socioeconômico supracitado – se por um lado as cadeiras cativas e os
camarotes se localizam nos pontos de melhor visibilidade e são parte do
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patrimônio dos sócios do clube, a arquibancada oposta, bastante inclinada, é o
palco para massa das torcidas organizadas se apresentarem, inclusive às
imagens de televisão.
A representatividade que possuem, hoje, se deve à própria história de
apropriação dos torcedores e da identificação com os seus lugares na cidade.
Tal identificação – todos aqueles modos de torcer – são componentes das
idiossincrasias de cada clube, assim como suas cores ou seus gritos de guerra.
Fazem parte do sistema de signos que e de posturas que mantém a rivalidade
local acirrada e a integra à própria identidade recifense.
Como dito acima, porém, nenhum dos três estádios existentes na cidade se
enquadra nos modelos exigidos para uma Copa do Mundo. Diante da
provocação advinda do mundial, o governo estadual decidiu pela construção de
um novo estádio, independente dos três maiores clubes. Com mais de quarenta
e seis mil lugares, está em fase de execução no município de são Lourenço da
Mata, na Região Metropolitana do Recife (RMR), mas totalmente à parte de
qualquer bairro tradicional da cidade. Em verdade, é proposta uma nova zona
urbana, advindo de um projeto urbanístico completo para o ordenamento da
expansão territorial dos municípios da zona Norte da RMR.
Tal decisão, pode-se dizer, levou, por outro lado, à decisão do Sport em ter a
sua própria arena de padrão internacional, um edifício novo, substituindo o atual
estádio. O Náutico também aponta para uma parceria com investidores
internacionais que poderiam, em troca do terreno do estádio dos Aflitos,
localizado em uma área nobre, com interesse do mercado imobiliário de
habitação da cidade, construir um novo edifício. Muito provavelmente, este novo
estádio seguiria os mesmos moldes dos anteriores, sendo fiel ao caderno de
encargos da FIFA e localizado fora da área urbana tradicional.
Antes de discutir o que tal mudança representará aos clubes, ao futebol e à
própria identidade cultural da cidade, convém descrever em que medida os
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novos projetos se distanciam dos exemplares hoje existentes e utilizados pelos
clubes.
3. O ESTÁDIO FIFA
Alguns estádios vêm assumindo papéis simbólicos de grande destaque na
cultura global contemporânea (Bale, 1993; Baudrillard, 2007), pois têm servido
como representação das identidades culturais de programas de
desenvolvimento urbano em diversas cidades do mundo – quando se
constituem em verdadeiros empreendimentos-âncora em processos de
especulação/valorização imobiliária (Bale, 1993; Sheard, 2005, Favero, 2009).
Estas funções e características são percebidas na realização de eventos
internacionais recentes, como os jogos olímpicos e os campeonatos de futebol –
casos de cidades, como Barcelona, Atenas, Pequim (Olimpíadas) e Rio de
Janeiro (Jogos Panamericanos) ou de países como África do Sul, Alemanha,
Japão e Coréia do Sul (copas do mundo de futebol) e Áustria, Suíça e Portugal
(campeonatos europeus de futebol) (Favero, 2009).
Assim, estima-se que tal papel deverá se intensificar nos próximos eventos
programados, como sugerem os planejamentos de Londres (Olimpíadas de
2012) e Brasil (Copa do Mundo de Futebol de 2014), onde neste, muito
provavelmente, a arquitetura das praças desportivas suscitará o interesse da
opinião pública internacional (Sheard, 2005).
Para Rod Sheard (2005) – realizador de estudos sistemáticos sobre a
arquitetura dos estádios – ao longo dos anos, além da padronização das regras
e procedimentos internos aos esportes, tem cabido às confederações, também,
uma padronização cada vez mais estrita dos ambientes em que eles serão
realizados (em termos de dimensões dos edifícios, capacidade de público,
serviços de recepção/acomodação de delegações). A tendência se manifesta,
inclusive, na versão mais recente do manual técnico da FIFA (Fédération
Internationale de Football Association), com indicações estritas de
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dimensionamentos, organização de plantas e fluxos de usuários (FIFA, 2011).
Tais evidências confirmam a idéia de um tipo de edifício praticamente universal
(Geraint, Sheard, Vickery, 2007).
Segundo Sheard (2005), porém, estádios contemporâneos compõem o
momento culminante do processo de evolução do tipo não só em termos
cronológicos, mas também quanto à sua complexidade programática e à sua
função social.
Para o autor, o momento atual dos estádios seria precedido por outros quatro4.
O primeiro é representado pelos edifícios mais simples da segunda metade do
século XIX, logo após a consolidação da revolução industrial na Inglaterra.
Embora admita a existência de praças desportivas desde a Grécia antiga (pelos
próprios jogos olímpicos da antiguidade), o autor compreende que o estádio se
caracteriza, de fato, quando os esportes modernos são regulamentados –
deixam de ser atividades recreativas restritas à nobreza e passam a ser
apreciados como espetáculos pelas massas. Neste primeiro momento, as
estruturas físicas dos estádios eram voltadas apenas a permitir a atuação dos
atletas e a acomodação de expectadores (Sheard, 2005).
O segundo momento é caracterizado pela adaptação das estruturas às
transmissões televisivas, na década de 1950. O processo de especialização
programática se intensifica e repercute no conjunto de regras para os edifícios
destinados a cada modalidade desportiva. Este momento é representado pela
maioria dos estádios ainda existentes no mundo, muitos em processo de
obsolescência (ou de adaptação) das suas capacidades de utilização para as
exigências atuais dos esportes (Bale, 1993; Sheard, 2005; Geraint, Sheard,
Vickery, 2007; Favero, 2009).
4
De modo semlehante, mas com menos aprofundamento, Bale (1993) também propõe
estágios de evolução do estádio como um objeto cultural que acompanha tanto o
desenvolvimento do esporte como a sua apropriação pela sociedade.
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Já o terceiro momento é notável pela transformação do esporte em um produto
cultural, oferecido regularmente por clubes e patrocinadores e comprado por um
público cativo de torcedores/expectadores (Baudrillard, 2007; Favero, 2009).
Nos edifícios, as empresas responsáveis pelos eventos iniciam um processo de
padronização programática, com agregações de outros programas, como salas
VIP, restaurantes, bares, lojas e equipamentos de lazer não necessariamente
vinculados ao momento de realização dos jogos. Estes passam a ser voltados
para o público em geral – não só torcedores ou sócios – possuindo acesso mais
franco e ficando à parte da programação de uso e das restrições típicas ao
momento de realização da atividade desportiva propriamente dita. O esforço é
destinado a garantir a lucratividade dos edifícios, também, como
empreendimentos imobiliários (Sheard, 2005).
O quarto, e penúltimo momento, define-se quando os esportes passam a ser
comercializados em escala global como um produto-evento altamente lucrativo –
atletas são associados a marcas e a estilos de vida – e os edifícios passam a
ser administrados por corporações especializadas que muitas vezes lhes
emprestam seus nomes de fantasia, ao invés de utilizar os nomes dos clubes
(Sheard, 2005).
Atualmente, as determinações são guiadas por três eixos fundamentais: (a)
segurança – principalmente motivada pelo exemplo dado pelos estádios
ingleses, que reduziram seus índices de acidente e vandalismo após uma
reforma massiva das condições dos seus edifícios5; (b) lucro - gerar mais
visibilidade e, conseqüentemente, mais lucro para o mercado internacional
desportivo (as marcas de materiais desportivos, patrocinadores em geral e as
próprias “marcas” internacionais das equipes); e (c) conforto - garantir maior
5 As normativas inglesas passaram a ser conhecidas pelo termo “green guide”, e são base para
o padrão FIFA atual. Como exemplo das recomendações mais imediatamente perceptíveis,
estão as práticas de dotar os estádios de cadeiras, ao invés de arquibancadas simples, só
vender assentos numerados e abolir fossos e alambrados, aproximando mais o público do
evento esportivo. Segundo seus princípios, maior definição física e espacial, também garante
maior conforto, segurança e controle sobre o público – expectativas comprovadas pelas
estatísticas medidas após a implantação dos novos padrões (Sheard, 2005; De La Corte, 2009;
Favero, 2009).
18
padronização em níveis de conforto e de acordo com as responsabilidades das
entidades e federações internacionais que regem os esportes e fazer justiça ao
preço cobrado pelos ingressos (Sheard, 2005; De La Corte, 2009; Favero,
2009).
No caso específico do futebol, o mercado e a gestão federativa atuam em
parceria. Campeonatos nacionais (como o inglês, o espanhol e o italiano) são
vitrines para os melhores jogadores do mundo, ao mesmo tempo em trabalham
para a divulgação de suas marcas patrocinadoras. A copa do mundo FIFA –
principalmente a partir da sua edição de 1994, realizada nos Estados Unidos –
passou a ser um evento não só voltado para a celebração da esportividade e
para a eleição do melhor futebol. Torna-se evidente como os interesses políticos
(a escolha do local do mundial) e econômicos (participação de marcas e atletas
vinculados às marcas, preço dos ingressos, venda conjunta de ingressos e
pacotes turísticos) dominam a realização do evento (Favero, 2009).
A credibilidade para o investimento do público em um ingresso cada vez mais
caro ocorre ao mesmo tempo em que se procura garantir a presença cada vez
maior dos patrocinadores. Em paralelo, têm-se a presença do poder da
imprensa internacional, que dá visibilidade aos atletas, às marcas e à própria
instituição promotora. A partir da geração de imagens oficiais, redes de televisão
de todos os países compram os direitos de transmissão – ou seja, tornam-se,
também, clientes do evento.
A recepção em condições adequadas e o controle das atividades jornalísticas na
transmissão dos jogos, então, se estabelecem como um quarto eixo do “produto
futebol” contemporâneo, paralelo aos de segurança, conforto e lucratividade.
Os estádios contemporâneos são, mais do que nunca, dispositivos
desenvolvidos para participar do ciclo produtivo do futebol internacional
(Kaltenbach, 2005). Preocupada com a adequação a todas essas demandas, a
FIFA (2007; 2011) publica, de modo sempre atualizado, seu caderno de
encargos, definindo o que deve constar em cada edifício.
19
Os encargos vão desde definições e determinações de caráter desportivo –
dimensões do campo e dos componentes do jogo – até recomendações de viés
mais indireto, como a manutenção do gramado e estratégias para garantir a
sustentabilidade econômica do equipamento (daí a tendência às arenas multiuso). Esquemas de organização espacial, como a relação entre os vestiários
das equipes e dos árbitros, a sala de exame anti-doping e a zona mista são
precisamente indicados, inclusive com as dimensões mínimas exigidas;
fluxogramas muito bem definidos determinam como cada grupo social envolvido
no espetáculo da partida deve ou pode se movimentar no edifício (FIFA, 2011).
Em termos de operação do edifício, a visibilidade é uma das questões mais
valorizadas nos encargos da FIFA, uma vez que o preço pago pelo público deve
ser proporcional à capacidade de apreciação do esporte – os preços podem até
variar de acordo com a proximidade do campo. A localização e o
dimensionamento de áreas VIP – nos pontos de melhor visibilidade dos estádios
– aparecem com especial destaque (Nixdorf, 2005; FIFA, 2011).
Em termos do funcionamento desportivo propriamente dito, a programação de
uso prevê todos os fluxos, restrições e direcionamentos das diferentes
categorias de usuários em dias de jogo. Atletas e comissões técnicas chegam e
circulam por ambientes isolados dos árbitros e da imprensa. Os profissionais de
imprensa têm acesso direto aos atletas apenas na chamada “zona mista”, por
exemplo, sem possibilidade de invasão fora dos momentos programados do
campo ou de entrada nos vestiários (Geraint, Sheard, Vickery, 2007; FIFA,
2011).
O controle sobre o espectador, por exemplo, é muito mais rígido que nos
primórdios da história do tipo. Hoje existem vários momentos de filtragem, que
dirigem o visitante-espectador para seu respectivo assento, sempre comprado
com antecedência. O controle de bilhetes e ou credenciais – o código que define
não só a posição do indivíduo dentro do edifício como sua a categoria e o status
– é feita já a uma grande distância do edifício (até 500m). O direcionamento é
20
executado pela empresa gestora do edifício no dia do jogo, que distribui grupos
de indivíduos para outros pontos de verificação de credenciais e bilhetes mais
próximos das entradas, que por fim dirigem o espectador para a sua respectiva
ala (Geraint, Sheard, Vickery, 2007; FIFA, 2011).
A distribuição de assentos, inclusive, é diretamente ligada à capacidade de
evacuação do estádio, reforçando a preponderância de elementos de circulação
vertical internas e externas (normalmente rampas, pois permitem o movimento
de pedestres de modo mais fácil e seguro que as escadas), além da segregação
dos corredores comuns dos corredores VIPs. Mesmo para os assentos comuns,
são garantidas ares de descanso e circulação por trás das arquibancadas. O
torcedor circula e descansa sem interferir na capacidade apreciação do evento
desportivo dos demais, que preferem continuar nos setores de assentos
(Geraint, Sheard, Vickery, 2007; FIFA, 2011).
A existência e exigência dessas salas e corredores, ambientes comerciais e de
reunião, fazem o estádio se tornar um edifício com diversos níveis de circulação,
vertical e horizontal. As indicações reforçam o interesse em contar com espaços
com atividades paralelas ao evento esportivo, como lojas, bares, cafés,
restaurantes e demais equipamentos de entretentimento, assumindo a alcunha
de “arenas multi-uso”. Esta tendência vem fazendo com que o programa
desportivo se hibridize com todos os demais agregados, constituindo
praticamente uma derivação contemporânea do tipo original: estádios fechados
e com aspecto de bloco compacto, semelhante a grandes “pneus” ou “tigelas”6,
bem diferentes dos exemplares mais antigos, formalmente reconhecíveis pela
imagem dos planos e elementos lineares das suas estruturas construtivas –
praticamente toda aparente7 (Nixdorf, 2005; Thompson, P.; Tolloczko, J. J. A.;
Clarke, J. N., 2005).
6 Ou “bowl”, em inglês (Thompson, P.; Tolloczko, J. J. A.; Clarke, J. N. (Eds.), 2005; Sheard,
2005; Geraint, Sheard, Vickery, 2007)
7 Considerando que os estádios mais antigos costumavam ter sua forma geral definida só pelas
placas horizontais das arquibancadas e os elementos verticais e/ou inclinados da estrutura
portante.
21
Em paralelo, a idéia de sustentabilidade econômica – interesse direto das
cidades que deverão receber os jogos – passa a ser um paradigma para a
concepção dos projetos. A manutenção do equipamento – respeitando-se os
padrões de segurança e conforto, além das próprias condições do gramado – é
de alto custo. O empreendimento, portanto, precisa ser rentável mesmo quando
não estiver recebendo as partidas – ou seja, acredita-se que o futebol não é
suficiente para o equipamento. Sendo assim, o modelo contemporâneo da
"arena multiuso" é o preferido porque contempla outros programas
complementares que ajudariam a gerar renda para a manutenção do
equipamento.
Na verdade, a arquitetura de estádios “padrão FIFA”, hoje, é item mandatório
para que qualquer cidade, clube ou empresa faça parte do círculo econômico do
futebol internacional atual e possa pleitear, quiçá, a sua inclusão como uma
subsede de uma copa do mundo ou outro torneio internacional (THOMPSON,
P.; TOLLOCZKO, J. J. A.; CLARKE, J. N., 2005; Favero, 2009).
4. ESTÁDIOS PADRÃO, TORCEDORES PADRÃO? CONSIDERAÇÕES
SOBRE UMA AMEAÇA IMINENTE
Até então, este artigo procurou estabelecer: (a) uma relação entre a sociedade
do futebol e os espaços urbanos e arquitetônicos tradicionais e regionalizados
do futebol; e (b) uma descrição do que seriam os novos espaços do futebol
globalizado.
Como proposto no início, procura-se tentar estabelecer um discussão – ou um
pensamento crítico-reflexivo – sobre como os últimos podem vir a afetar o
primeiro.
Considerando que foi utilizado o caso particular da cidade do Recife – e seus
clubes – como exemplo emblemático de como a cultura do futebol se especializa
22
e, ao mesmo tempo, se torna constituinte da própria identidade de uma dada
sociedade, convém manter o mesmo caso como referência para algumas
elucubrações a respeito do processo por que passam as cidades brasileiras,
subsedes da Copa de 2014.
A primeira preocupação sobre as consequências do aporte dos novos estádios à
cidade diz respeito ao impacto urbanístico da provável nova condição.
Se for considerado o projeto proposto pelo Sport Club do Recife, uma primeira
questão se apresenta: que repercussões uma arena multiuso, dotada não só do
campo de jogo, mas toda uma nova oferta de serviços, poderá acarretar à sua
zona de inserção?
É sabido que grandes investimentos no setor de comércio e serviços, quando
centralizados em um modelo “shopping center”, tendem a modificar a dinâmica
do pequeno comércio e dos pequenos ofertantes de serviços da região. Não
tendo condições de oferecer a mesma densidade de concorrência que um
equipamento de grande porte oferece, termina por se processar um declínio,
com posterior esvaziamento da área. Tal fenômeno, muito comum em áreas
centrais – e inclusive já verificado no Centro do Recife após a implantação de
alguns shopping centers – pode ser agravado pela proximidade que a arenashopping do Sport tem sobre o bairro do Derby, imediatamente contíguo e
complementar ao centro tradicional da cidade.
Este fenômeno, inevitavelmente virá atrelado a um outro – o apelo ao mercado
imobiliário residencial nas suas proximidades. Tal pressão de mercado tenderá a
dar continuidade ao processo de especulação sobre o solo urbano que já
acontece na região de beira-rio imediatamente contígua ao terreno da Ilha do
Retiro. Considerando que em outras áreas próximas existem, hoje, comunidades
de baixa renda, sem serviços de infraestrutura, pode-se supor que uma
substituição tipológica e socioeconômica tende a se desenvolver. Entretanto,
dado o histórico em eventos de tal tipo na cidade, estima-se que se
desenvolverá um adensamento rápido e em descompasso com a capacidade
23
infraestutural instalada, além de um posterior problema de migração intraurbana
não planejada da população de baixa renda original.
O caso da arena prevista oficialmente para a Copa do Mundo, por sua vez,
inspira uma atenção diferente. Localizada em São Lourenço da Mata, é alvo de
um projeto urbanístico mais detalhado. Em teoria, deve servir para o
ordenamento da expansão da RMR. Entretanto, sua maior ameaça está na
possibilidade de ser a moeda de troca utilizada por um clube como o Náutico.
Se se confirmam as expectativas e o Náutico adere ao projeto da nova arena,
inevitavelmente o terreno hoje destinado aos Aflitos virá a ser ocupado por um
empreendimento imobiliário que fará do atual bairro uma zona ainda mais
adensada, porém dentro de uma estrutura de vias nitidamente desproporcional –
concebidas como vias locais para residências unifamiliares, como se daria a
relação entre infra e superestruturas urbanas? Além do mais, a cidade perderia
mais uma área de solo natural permeável em uma região já deficitária em tal
quesito.
Pode-se discutir, ainda, os deslocamentos até o novo estádio, uma vez que a
maioria dos seus torcedores se localiza no seu bairro original. Embora exista o
planejamento de dotação de transporte público para o local e de toda uma zona
residencial nova no seu entorno, a relação do deslocamento local, a pé, será
perdida. Considerando a faixa de renda dos torcedores do clube, é provável que
o percurso de se dê de carro, ao mesmo tempo que não se pode garantir que os
moradores da nova nucleação do município de São Lourenço será identificada
com o clube detentor do campo. A cidade perderá uma dinâmica urbana
tradicional e optará por uma dinâmica rodoviária para os dias de jogo?
Finalmente, pode-se discutir as mudanças no padrão da utilização dos edifícios,
os estádios, interfaces últimas entre o público e o clube e seus representantes, o
motivo de uma série de padrões de interações sociais tão caros à identidade da
cidade.
24
Em primeiro lugar, destaca-se uma diferença fundamental entre os estádios
FIFA e os exemplares tradicionais da cidade: o fim das arquibancadas. Os
novos estádios são dotados exclusivamente de cadeiras, assentos que são
numerados e comprados antecipadamente. A característica principal da
arquibancada é indiferenciação. Como não há programação de posicionamento,
os encontros entre usuários se tornam mais aleatórios. Não há um ordenamento
visível de permanência ou de movimento.
Certas manifestações típicas das torcidas espontâneas, tendem a não poderem
mais se desenvolver. O vai-e-vem de torcedores dos Aflitos, entre pontos mais
altos e o alambrado, se torna impossível. A construção de palco para a
apresentação da bandeira da Ilha do Retiro pode não ser permitida, uma vez
que todos torcem sentados.
O ritual de ocupação dos anéis do estádio do Arruda deixam de fazer sentido,
uma vez que que a distribuição das cadeiras busca a homogeneidade.
Um outro ponto que tende a ser definidor de um novo perfil de torcedor é o
próprio preço dos ingressos. Considerando que todos os assentos são cadeiras,
deverá haver uma substituição do torcedor de menor poder aquisitivo por uma
elite mais próxima ao perfil dos sócios e detentores de camarotes nos atuais
estádios.
Corre-se o risco de se ter um público mais contemplativo que participativo. Esta
tendência, já verificada em jogos de seleções – principalmente nas Copas do
Mundo – podem se repetir nas partidas dos clubes locais. Porém, considerando
o perfil socioeconômico do Recife, será possível manter as médias de público
hoje observadas no estádio do Arruda por exemplo, em um estádio elitizado?
A mudança do público e do seu comportamento pode levar ao afastamento do
torcedor mais aguerrido, que dá suporte à clássica rivalidade local. Entende-se
que em um cenário como o do Recife, onde a técnica e o status nacional são
menos importantes do que a tradição, o fenômeno pode vir a desencadear uma
25
fragilização das estruturas do futebol da cidade. Se os resultados são
secundários hoje, e mais importante é a reprodução do habitus, o que poderá se
esperar quando houver a quebra do habitus e os clubes não tiverem condições
de compensar tecnicamente?
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