1 E TREVISTA A JOAQUIM VIEIRA Cesário Borga: Quando é que

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1 E TREVISTA A JOAQUIM VIEIRA Cesário Borga: Quando é que
ETREVISTA A JOAQUIM VIEIRA
Cesário Borga: Quando é que tropeçaste com o jornalismo?
Joaquim Vieira: Pouco depois do 25 de Abril. O primeiro governo provisório
promoveu um curso de jornalismo. Achavam que no novo regime devia haver
novos jornalistas. Candidatei-me porque estava com a vida um bocado numa
encruzilhada. Fui preso dois anos antes do 25 de Abril. O Tribunal Plenário
condenou-me a um ano e meio de prisão. Quando saí, em fins de 1973, estive na
iminência de voltar a ser preso. Então exilei-me. ão queria fazer a guerra em
África porque era contra a guerra. Pensava ir até à Suécia, visitando vários países
para escolher aquele em que me queria instalar, mas acabei por ficar em Paris.
Acabei por ficar só três meses. O 25 de Abril trouxe-me de volta.
C.B: Acabaste o curso do Técnico?
J.V: ão.
C.B: O jornalismo desviou-te?
J.V: essa altura ainda não. É verdade que, antes de ser preso, eu tinha
feito no Técnico um jornal, o “Binómio”. Mas era uma coisa de agitação estudantil,
não jornalismo na acepção do termo, e não tenho memória de que a experiência me
tenha atraído para o jornalismo. Regressado a Lisboa com o 25 d Abril, resolvi não
continuar a estudar mas procurar trabalho, para não continuar na dependência da
família. O primeiro trabalho que arranjei foi como dactilógrafo (tinha muita
experiência do Técnico, a bater à máquina os comunicados estudantis e outras
coisas do género). Entretanto, apareceu o anúncio desse curso e eu candidatei-me.
As provas foram na Faculdade de Letras. Havia 400 candidatos para 30 vagas. Fui
um dos escolhidos.
C.B: Querias trabalhar para seres independente, ou porque a tua família te
pressionava?
J.V: ão houve pressões familiares. Foi uma decisão minha. Como me tinha
atrasado nos estudos, devido ao meu envolvimento em movimentos estudantis, à
prisão e ao exílio, não queria continuar a ser uma carga para os meus pais. ão
porque eles não pudessem. Eram comerciantes, tinham várias lojas e podiam
sustentar-me e pagar os estudos. Mas já tinha 23 anos e estava ainda no terceiro
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ano de Engenharia de Minas. O curso era de cinco. ão meramente queria ficar ali
até os 26 anos...
C.B: esse contexto a opção pelo jornalismo é acidental.
J.V: De facto foi circunstancial.
C.B: O curso em Paris chegou a realizar-se?
J.V: Sim, no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Jornalistas, ligado
ao fundador do “Le Monde”, Hubert Beuve-Méry, que esteve lá na primeira
sessão. o Palácio Foz, introduziram-nos nas questões básicas e em Setembro
partimos para Paris, para um curso de três meses. Entretanto deu-se o 28 de
Setembro. O governo caiu. Os novos responsáveis pela Comunicação Social não
sabiam o que fazer aos 30 jovens que estudavam jornalismo em Paris. De Lisboa
diziam-nos que não conheciam a intenção do primeiro governo provisório ao
promover o curso. Ficámos ali um pouco pendurados até Dezembro, quando
voltámos.
C.B: É então que vais para a RTP?
J.V: Sim, mas contra a minha vontade. Antes de ir para Paris nunca tinha
pensado em ser jornalista. Quando regressei não queria ser outra coisa. Mas era a
escrita, não a imagem, que me apaixonava, em especial a actualidade
internacional. Porém, quando, ao fim de muitas confusões, decidiram conceder
estágios para os formandos que tinham estado em Paris, em órgãos de informação
ligados ao Estado ou onde o governo tinha influência, eu cheguei atrasado à
reunião para distribuição dos lugares e já só havia vagas na RTP.
C.B: E foste para a RTP porque não havia mais nada?
J.V: em mais. Éramos 10 estagiários na RTP. Em princípio, devíamos sair
ao fim de dois meses, mas, como no mês seguinte, Abril de 1975, se realizavam as
primeiras eleições livres e havia muito trabalho, deixaram-nos ficar mais um mês,
sem compromisso. o final desse mês seleccionaram cinco. Eu fui um dos
escolhidos.
C.B: Como é que te integraste?
J.V: Como já disse, eu não tinha estado ligado ao jornalismo antes do 25 de
Abril, feito sob censura. Por isso não tive nenhum complexo, achava-me livre de
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constrangimentos. Dizia para mim: “Estou aqui, estou num novo ambiente e agora
o jornalismo é diferente. É livre. Portanto, não tenho nada a temer. Eu até estudei
jornalismo em Paris. Já vi que os jornalistas daqui são autoridades, mas nunca
estudaram jornalismo. Logo, não tenho de me sentir diminuído”. Estava optimista.
Achava que podia fazer coisas interessantes, mas, na realidade, não fazia quase
nada.
C.B: Porquê? ão te davam trabalho?
J.V: ão nos conheciam e não sabiam se éramos ou não capazes. os
primeiros tempos, passava os dias no arquivo da redacção. Lia a imprensa
internacional, fazia recortes e fotocópias para os meus dossiers de política
internacional, que afinal não me serviram para nada.
C.B: Eu já estava nessa altura na RTP e não me lembro de ti no Internacional.
Sempre me lembro de ti como repórter. Ainda há pouco tempo estive a fazer uma série
de pequenas histórias sobre o PREC e veio-me parar às mãos uma reportagem tua
sobre o incêndio da embaixada de Espanha em 1975.
J.V: De facto, acabei por ir para a reportagem. Mas por mero acaso. Devo
isso à Maria Augusta Seixas. Convivia muito com ela no arquivo, de que era a
responsável. Em certa altura, ela disse ao Joaquim Letria, que tinha uma certa
posição de responsabilidade na redacção: “Vocês têm aqui um tipo sem fazer nada,
que podiam aproveitar para fazer reportagem”. Então mandaram-me fazer a
primeira reportagem, depois a segunda e assim comecei a entrar na rotina da
redacção. Eu tinha visto em Paris, e também em emissões da CBS ou da BC, que
a reportagem era produzida de modo completamente diferente do então praticado
na RTP. Comecei a usar mais a voz off e vivos para a câmara (apesar de uma voz
inadequada e da minha falta de jeito para falar para a câmara, algo que eu odiava
mas que achava que era uma obrigação, se queria fazer as coisas como devia ser).
a RTP privilegiavam os discursos dos protagonistas noticiosos, poucas vezes
ilustrados com imagem, e quase nunca a voz off. Tentei aplicar aqueles princípios,
fazer mais a síntese da informação, e acabei por me integrar no trabalho da
redacção.
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C.B: A RTP estava, ela própria a integrar-se no jornalismo. O que ali se fazia
antes do 25 de Abril não se podia considerar jornalismo. Sentes que há uma
identificação com os jornalistas da RTP mas também com toda a classe?
J.V: Muito através das lutas sindicais e também das lutas no interior da
RTP. A RTP, tal como todas as outras empresas de comunicação, estava em luta
porque todo o país estava em luta por alguma coisa. Era praticamente obrigatório
que as pessoas lutassem pelos seus interesses profissionais dentro de certo quadro
político e ideológico.
C.B. Como te situavas politicamente?
J.V: a área da extrema-esquerda. Também me envolvi em agitação, em
activismo político dentro da própria RTP. Tinha um grande sentido de
solidariedade de classe com os colegas da profissão. a altura o Sindicato dos
Jornalistas promovia reuniões com frequência, em que eu participava. Estava
muito comprometido com os movimentos reivindicativos. a RTP houve também a
questão da lista dos elementos a sanear elaborada pelo PCP. Os 10 estagiários
também faziam parte dessa lista, porquanto, por desconhecimento, não inspiravam
confiança à célula comunista da empresa. Participei no célebre plenário realizado
no Teatro Maria Matos, onde o caso dos estagiários também desencadeou
discussão, embora nessa altura já só fôssemos cinco.
C.B: Essa não é uma altura em que os jornalistas se preocupam muito com o
“feedback” do seu trabalho.
J.V: Isso é verdade, mas a partir de certa altura começam a preocupar-se
com a linha editorial. Havia um intervencionismo muito grande na linha editorial.
Os responsáveis editoriais eram, quase sempre, homens de mão dos governos. Por
outro lado, os jornalistas ou eram independentes e adaptavam-se ou eram
militantes de uma linha política. Eu também puxava a brasa à minha sardinha. Só
mais tarde, depois da normalização democrática, é que começo a apreender mais
os valores da independência jornalística. E também com a reflexão sobre o que se
fazia no estrangeiro.
C.B: Hoje no jornalismo televisivo é impossível não ligarmos às audiências, às
reacções do público. Como era nessa altura?
J.V: Durante muito tempo ignorámos as reacções do público.
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C.B: O que queres dizer com muito tempo?
J.V: Se calhar até ao fim dos anos 70. ão sei. Pelo menos até à
autonomização da RTP2. Fiz parte dessa nova redacção. Foi um salto positivo na
minha carreira. É a partir daí que se começa a profissionalizar mais a actividade
jornalística na RTP. Queríamos distinguir-nos da RTP1, e uma das marcas era
passarmos a ter mais atenção à reacção do público ao nosso trabalho. Mas não
havia um feedback. Quando muito um registo de telefonemas e os críticos,
especialmente o Mário Castrim. Ele tinha sempre uma posição mais política do que
profissional sobre a nossa actividade. Apesar disso era leitura obrigatória. o
fundo era o crítico que nós adorávamos odiar. Escreveu várias vezes sobre o meu
trabalho, que não apreciava porque eu não fazia o jogo do PCP. Mas de tudo o que
disse só me lembro de ter escrito que eu tinha voz de óleo de rícino, e aí acho que
ele tinha razão, seja lá o que isso for.
C.B: Concretamente o que fazias de novo na RTP2?
J.V. a Informação 2 comecei a fazer grandes reportagens, jornalismo de
investigação em televisão. Mas a experiência não durou muito. a presidência da
RTP de Victor Cunha Rego, primeiro, e Daniel Proença de Carvalho, depois, as
coisas complicaram-se. A autonomia da RTP2 foi muito condicionada. Houve
movimentações da redacção contra certos estrangulamentos e eu comecei a sentirme desconfortável. Entretanto, o meu trabalho de investigação tinha sido
apreciado no “Expresso” e, em 1981, o Augusto de Carvalho, na altura directoradjunto do jornal (era director o Marcelo Rebelo de Sousa, estando Francisco
Balsemão como primeiro-ministro), convidou-me para ingressar na redacção e
aceitei.
C.B: E não te sentiste tentado a voltar à televisão?
J.V: Em certa altura, desafiaram-me para fazer parte da equipa fundadora
da TDM, a televisão de Macau. Para mim era uma coisa nova, uma aventura no
Extremo Oriente, e aproximava-se de algo que eu gostava muito de ter sido:
correspondente. Ainda cheguei a ser enviado do “Expresso” a vários sítios, mas ser
correspondente é que me fascinava. Infelizmente nunca foi possível.
C.B: Por que é que gostavas de ser correspondente?
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J.V: Porque o correspondente abarca todo um universo completo. Há um país, um
microcosmo, ou um macrocosmo, e a possibilidade de tocar nos vários aspectos da
actividade política e social desse país ou dessa cidade. Mas ser correspondente não
é algo que se pratique com muita frequência em Portugal. Daí a atracção que senti
pelo projecto da TDM. Seria regressar à televisão, sem um cargo de grande
responsabilidade. Lá seria apenas repórter. Já tinha até feito um jantar de
despedida do “Expresso”, mas, no dia seguinte, a TDM entrou em crise. O
governador da altura, Almeida Costa, decidiu pôr na rua a equipa liderada pelo
Eduardo Cruz. Disseram-me que já não precisavam de mim. Fui falar com o Dr.
Balsemão e ele aceitou o meu reingresso no “Expresso”. Esse meu novo projecto
televisivo ficou interrompido. Mais tarde voltei à RTP como director adjunto para
a área dos programas, uma experiência que nada tinha a ver com a que estive para
encetar na TDM.
C.B: Agora tens uma produtora de documentários. Parece que a televisão não
te larga, ou és tu que não a largas?
J.V: De facto, é outra maneira de regressar. Sempre gostei do
documentário. O facto de ter sido responsável pela programação da RTP
aumentou esse interesse. O documentário é um tipo de programa televisivo que,
não sendo propriamente jornalismo, tem uma componente de informação, uma
componente jornalística. Pessoas amigas desafiaram-me e eu disse que a fazer
qualquer coisa em televisão seria na área do documentário, ainda que não seja
grande negócio. Em Portugal não há um mercado de documentário consistente.
Apesar disso, continuo com essa actividade no meio de muitas outras que não têm
a ver directamente com o jornalismo. Há também o Observatório da Imprensa,
que não é prática jornalística mas insere-se no seu âmbito. É também uma reflexão
sobre o jornalismo.
C.B: Como comparas a abordagem que se faz hoje da ética jornalística e a que
se fazia no tempo em que chegaste ao jornalismo?
J.V: As pessoas da nossa geração costumam dizer que houve uma
degradação. Eu prefiro falar em evolução. Os tempos são diferentes, os valores são
outros, o jornalismo é mais complexo porque aborda um leque de novos temas que
antes eram ignorados. ão quero participar no discurso catastrofista que diz
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serem sempre piores as gerações mais novas. Há, de facto, uma evolução no sentido
de inserir na actividade jornalística a componente de espectáculo. Quando comecei
a fazer jornalismo essa componente era ignorada. O que contava era a verdade, a
independência, a integridade (pelo menos assim o considerava eu). Contava pouco
a maneira como se embrulhava, digamos, o “produto”, a forma de comunicar e
conquistar o público, de maneira mais apelativa, mais atractiva.
C.B: Tu, que então estiveste em Paris, podes comparar. A prática de um
jornalismo de certo modo divorciado das reacções do público era essencialmente um
caso português?
J.V: Penso que não era só em Portugal que isso acontecia, mas as convulsões
políticas da altura ajudavam. A componente económica e o “feedback” do público
preocupavam pouco as pessoas. Hoje isso é impensável. A internet torna isso ainda
mais exigente. Todos os órgãos de informação têm sites, e nos sites a reacção do
público ao nosso trabalho acontece praticamente em directo. Depois, as empresas
devem ser geridas com rendibilidade. Muitas são cotadas na bolsa e têm que
maximizar os lucros no fim do ano. Hoje é preciso vender papel, ter audiências,
conquistar o público. É umas das lutas permanentes que não podemos ignorar.
Estamos todos nesse circuito. Mesmo um pequeno órgão de informação procura o
máximo de audiência possível. Isso é normal. inguém gosta de comunicar para o
boneco, transmitir ideias, informação e ninguém lhe prestar atenção.
C.B: Essa dinâmica não pode entrar em confronto com a ética profissional, o
rigor tal como está previsto no código deontológico?
J.V: Penso que não, mas, relativamente a essa matéria, também não penso
como pensava há 20 anos. essa altura achava que era preciso haver uma forte
regulação externa para obrigar ao cumprimento de certos parâmetros
deontológicos. Hoje tenho uma visão mais liberal. O jornalismo é uma actividade
da sociedade civil para a sociedade civil desenvolvida no âmbito de um direito
fundamental: a liberdade de expressão e informação enquanto direito universal. O
que eu quero dizer é que qualquer pessoa tem o direito a informar e ser
informado, tal como está inscrito na Constituição. Isto significa que o jornalismo
tem de ser uma profissão aberta. Qualquer pessoa deve ter o direito de ter acesso à
profissão de jornalista, sem precisar de uma licenciatura. O jornalismo não é uma
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profissão como a dos médicos e dos engenheiros, que exigem um grau de
especialização e uma autorização especial, da respectiva Ordem, para serem
exercidas. A Constituição diz que informar e ser informado é um direito universal,
mas não diz que ser engenheiro ou médico é um direito universal; há, portanto,
uma diferença fundamental.
C.B: Isso quer dizer que o jornalista não necessita de qualquer preparação
profissional?
J.V: Precisa de uma prática profissional, mas não de habilitações especiais.
O jornalista deve estar preparado porque tem o dever do rigor, mas também o
direito à falta de rigor, ainda que deva corrigir as faltas nas edições seguintes.
C.B: Defendes que não devem existir regras?
J.V: Pelo contrário, defendo a existência de regras exigentes que
correspondam à responsabilidade que existe no acto jornalístico. Mas é também
um acto de liberdade, e nesse sentido preocupam-me as sanções que se querem
instituir quando alguém acusa este e aquele jornalista de não respeitar as regras.
Desde que o jornalista não viole as leis gerais em vigor, acho que é preciso admitir
a possibilidade de erro: em democracia, quando se fala em liberdade de expressão,
até o disparate é livre. Bem sei que as pessoas não encaram bem esta ideia do
direito à falta de rigor. Mas entendo que se deve admitir no jornalismo uma
margem de erro que não é permitida (e bem) noutras profissões, controladas por
ordens profissionais. É por isso que não concordo com uma ordem dos jornalistas.
Ter uma ordem é limitar o acesso à profissão, que, de facto, deve ser ilimitado.
Concordo antes com a auto-regulação e o cumprimento de certas regras
deontológicas, não forçosamente as actuais, exactamente porque aceito uma certa
margem de incumprimento. o fim de contas, o regulador supremo será o público,
que sobretudo através do mercado tem a última palavra. Por exemplo, o código
deontológico diz que os jornalistas devem combater o sensacionalismo. o entanto,
na prática, há muitas pessoas que gostam do sensacionalismo e querem ser
informadas através do sensacionalismo. Por que não admitir como normal a
existência de órgãos sensacionalistas? Aliás, eles existem e ninguém se preocupa
em tirar a carteira profissional aos jornalistas que aí trabalham. Seria um
atentado à liberdade de expressão e ao jornalismo livre.
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C.B: Queres dizer que tudo o que vende é bom?
J.V: ão que é bom, mas que tem direito a existir, o bom e o mau. O que eu
digo é que tem que haver espaço para uma informação sensacionalista e espaço
para uma informação de referência. Depois, o público é que escolhe (e diferentes
segmentos de públicos escolhem diferentes formas de serem informados). o
jornalismo tablóide, tal como no jornalismo de referência, há bom e mau
jornalismo, mas, em última análise, é o público que diz se tem confiança neste
jornalista ou naquele órgão de informação. Se a sociedade civil ganhar consciência
e desenvolver meios de crítica do jornalismo (que acho muito importante que
existam), o mau jornalismo é inevitavelmente denunciado. Esse é o jogo da
liberdade de informação.
C.B: Resumindo, és contra todas as regulações estranhas aos jornalistas e às
empresas de comunicação?
J.V: Sou pela auto-regulação, a qual, consciente ou inconscientemente,
aproveita os contributos da sociedade civil. Sou sobretudo muito crítico em relação
às tentações do Estado em regular o sector. Particularmente as intervenções do
governo, justificadas por aquela ideia de criar o jornalismo novo, o jornalista
perfeito. Por exemplo da área da actual maioria, o PS, um partido com uma
tradição de liberdade mas que, ao mesmo tempo, tem tido uma relação difícil com
a comunicação social, que tenta fazer uma engenharia social nos jornalistas e
transformá-los em jornalistas supostamente cem por cento idóneos, isentos,
independentes, cumpridores do código deontológico. Acho que isso não existe, e dá
para desconfiar sempre que um partido anuncia esse desígnio. Se as pessoas não
querem ser informadas apenas de uma só maneira que é a que o governo admite
como boa, se preferem ser informadas através de um jornalismo que
eventualmente seja visto como deturpando a realidade, que é que podemos fazer
contra isso? Podemos bater-nos pelo rigor, pela exigência, mas apenas no plano de
uma denúncia de carácter moral, sem intervenções administrativas, de carácter
punitivo, contra essa formas de jornalismo. Bem, mas este é um debate
permanente, e, a meu ver, é assim que deve ser numa sociedade aberta e
democrática.
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C.B: Como vês a ligação de jornalistas a partidos políticos?
J.V: Pessoalmente não vejo com bons olhos, porque acho que vai contra os
princípios de integridade que defendo (e quando falo de partidos falo também de
qualquer outro centro de poder na sociedade – há muitos). Mas, dentro do que
atrás disse, tenho de aceitar que essas ligações existem, embora eu não as admitisse
numa redacção dirigida por mim. Depois há também as pressões sobre os
jornalistas, mas essas fazem parte do jogo diário que se pratica na comunicação
social. Desde que sejam pressões legítimas, tudo bem; temos apenas de estar
preparados para elas e para as rejeitar. Claro que não estou de acordo que se
comprem jornalistas, que haja trocas de favores. Porém, a tentativa para
conquistar influência e espaço nos média é algo perfeitamente normal, no passado
e nos dias de hoje. ão vale a pena fazer disso um drama.
P: Do teu ponto de vista continua a existir esquerda e direita?
R: Acho que sim, não sei, muitas vezes, é onde está a direita e onde está a esquerda.
Isto é, há uma zona de governação ao centro, para onde hoje em dia tendem os
governos, e aí todos os gatos são pardos. Mas é uma característica que não é
universal. Em Espanha, por exemplo, esquerda e direita estão muito mais bem
definidas do que em Portugal. Ou em Itália. Quando as coisas tendem a confundirse, acho que é mais a esquerda que cede à direita do que o contrário. É a prova de
que a esquerda andou enganada com muita coisa durante todo o século XX (e
talvez mesmo durante os mais de dois séculos que decorreram desde a sua
invenção, com a Revolução Francesa).
P: a década de 70 identificas-te com a extrema-esquerda. Até hoje como evoluiu o teu
percurso político?
R: Depois de ter percebido o erro, entendi que devia deixar de ter qualquer
intervenção política. Em consciência, não me sentiria bem como activista saltapocinhas, a passar de umas áreas políticas para outras (só admitiria intervir em
caso de graves ameaças à liberdade, de algo que pusesse em causa os direitos
essenciais).
Sentimentalmente
sempre
me
senti
mais
à
esquerda,
mas
racionalmente acho muitas vezes mais acertadas certas ideias, posições, atitudes e
medidas assumidas ou tomadas pela direita. Tento manter-me equidistante, sem
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porém perder de vista um conjunto de valores que eu definiria como um
cruzamento entre humanismo e progressismo (sem dar qualquer conotação
ideológica a estas palavras). Se existir um progressismo humanista, eu estou nessa.
Enquanto jornalista no activo, entendi a partir de certa altura não participar em
actos eleitorais, com receio de criar brechas na minha independência. Foi uma
opção pessoal, nada que eu ache que tenha de ser obrigatório para os jornalistas,
mesmo para aqueles que se preocupam com a sua consciência profissional (votar é
um dever cívico, até para os jornalistas, mas é um acto de liberdade, não
compulsivo). Agora, que não sou jornalista praticante, voltei a ser eleitor
praticante. Mas não mantenho qualquer fidelidade a um partido, ou sequer a uma
área ideológica.
P: Que atitude assumes perante as religiões?
R: Fui educado numa religião cristã (não católica). Pouco após a entrada para a
universidade afastei-me de qualquer prática religiosa, e hoje considero-me ateu.
Essa é talvez a única característica do meu radicalismo de juventude que nunca
perdi. Assumo perante as religiões uma atitude de tolerância mas, ao mesmo
tempo, de desconfiança, por todo o histórico que é conhecido e não vale a pena
estar aqui a invocar. Entendo que a separação da igreja e do Estado é uma
importante conquista civilizacional do nosso tempo. Acho que em Portugal a
religião católica goza de uma série de privilégios não declarados ou escritos na lei
(até por parte dos órgãos de informação, em especial os audiovisuais), o que faz
com que na realidade não exista no nosso país o princípio da igualdade de direitos
das religiões. Posto isso, reconheço a matriz cristã na configuração da nossa
civilização ocidental, cujos valores (os da civilização ocidental) prezo acima dos de
qualquer outra. Mas foi com alívio que verifiquei que, apesar de todas as pressões
e tentativas, não ficou nenhuma referência ao cristianismo no falhado projecto de
Constituição europeia (que lamento não ter sido aprovado) ou no documento que o
substituiu – o Tratado de Lisboa (aqui nem tinha cabimento). É muito positivo
para a Europa ter-se livrado desse lastro, o que permite abrir a nossa União no
futuro a países como a Turquia, com cuja adesão concordo plenamente. É um país
islâmico que adere aos nossos valores, não nós que cedemos aos valores “deles”
(aqueles que não têm a ver com os do mundo ocidental – democracia, tolerância,
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liberdade, igualdade de direitos e oportunidades, laicismo -, como se verifica na
generalidade dos países islâmicos).
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