corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural
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corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” O CURRÍCULO ESCOLAR E AS POSSIBILIDADES EMERGENTES: CORPOREIDADE, DIVERSIDADE, IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL Amanda Macedo Singulani JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural O CURRÍCULO ESCOLAR E AS POSSIBILIDADES EMERGENTES: CORPOREIDADE, DIVERSIDADE, IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL Amanda Macedo Singulani1 RESUMO: O presente ensaio tem como finalidade trazer à tona o debate sobre as implicações do currículo para as diferentes formas culturais que convivem no ambiente escolar e os sujeitos envolvidos no processo sócio-histórico. Discute-se o lugar reservado ao corpo nos currículos escolares indiciando um silenciamento e submissão corporal fruto da dicotomia corpo/mente pertencentes dos sistemas de pensamento moderno, que tratam a diferença sob o ponto de vista da desigualdade de poder. Embora o ambiente escolar seja palco de hibridizadas corporeidades e identidades culturais, a padronização tem forte apelo institucional, moldando os currículos oficiais e ocultos. A legitimidade e urgência do debate parecem imprescindíveis em uma época em que as fronteiras socioculturais são fortemente abaladas em função de um processo de globalização que alcançou todo o mundo, dirimindo diferenças. Para isso, utilizou-se como metodologia os estudos com o cotidiano em conjunto com a revisão bibliográfica buscando autores e obras pertinentes com a temática em voga. Acredita-se que ao anunciar neste ensaio os ricos conhecimentos presentes no ambiente escolar contribuase conferindo visibilidade às potencialidades lá expressas, ainda que a escola não saiba o que fazer com o que emerge no seu dia-a-dia. PALAVRAS-CHAVE: Identidades Culturais; Corporeidade; Currículo. Introdução O presente ensaio tem como finalidade trazer à tona o debate sobre as implicações do currículo para as diferentes formas culturais que convivem no ambiente escolar e os sujeitos envolvidos no processo sócio-histórico. Discute-se a influência da idéias da modernidade nas instituições como forte apelo para moldar os currículos oficiais e ocultos sob a ótica da padronização transpondo um silenciamento corporal fruto da dicotomia corpo/mente pertencentes dos 1 Mestranda em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Pesquisa Estudo Culturais em Educação e Arte – IM/UFRRJ. Amanda Macedo Singulani 6504 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural sistemas de pensamento moderno, que tratam a diferença sob o ponto de vista da desigualdade de poder. Ainda que o ambiente escolar seja palco de variadas e hibridizadas racionalidades, corporeidades e identidades culturais, tanto o corpo quanto a cultura popular são desconsideradas como fonte e lugar de conhecimento denunciando as dificuldades de reconhecimento nas diferenças culturais como fontes ricas e latentes de crescimento pessoal e coletivo. O processo de globalização atual alastra-se por todo os cantos do globo suprimindo as diferenças e buscando através de um discurso único cooptar e anular as diferentes concepções próprias dos que se encontram em lugares distintos na classificação global tanto do ponto de vista étnico, como de classe, de gênero, sexual, de poder, etc. Tal abalo nas fronteiras socioculturais legitima a urgência deste debate, o qual deve ser, sob meu ponto de vista, ancorado na distinção política que fazem Bhabha (2003), Skliar (2003) e Silva (2000), entre diversidade e diferença. O significado destas palavras para os autores isenta-nos de sermos autômatos daqueles que buscam, no incitamento ao debate, uma outra forma de se manter o controle da situação e de regular as inevitáveis mudanças dentro dos limites da dominação. Para isso, utilizou-se como metodologia os estudos com o cotidiano em conjunto com a revisão bibliográfica buscando autores e obras pertinentes com a temática em voga. A noção de corpo, sujeito e identidade na modernidade e na pós-modernidade O cenário medieval conformou uma visão de mundo e de realidade em que o par “conhecimento e fé” teve forte entrelaçamento, sendo quase impossível desvincular um conceito do outro. Assim, a filosofia produzida pela Idade Média desenvolveu-se num mundo ordenado e sistematizado pela religião, voltando seu objetivo para a comprovação da existência de um único Deus criador como verdade inalienável do homem. Amanda Macedo Singulani 6505 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural Dois filósofos foram de grande importância nessa época, mas a concepção de corpo que encontramos próxima da que existe atualmente se deve a Platão, que focou uma concepção residida numa visão dualista de homem, dividido em corpo e alma. Com o Renascimento, há a ruptura com a cosmologia medieval, redimensionando o universo e a existência do homem, conferindo à noção de sujeito na sociedade moderna importância crucial para solidificação das novas concepções estruturais conferidas à modernidade. A Revolução Científica do século XVII pode ser considerada uma das maiores revoluções de todos os tempos da humanidade. Suas transformações atingiram e reformularam o intelecto humano, fornecendo-lhes uma infinidade de conceitos novos e reelaborando a concepção de natureza e ciência. Concomitantemente a esse inventário de modificações, inicia-se um processo que levou a humanidade, anos mais tarde, a se comunicar e se reconhecer universalmente através da linguagem matemática. René Descartes consagrou a metodologia que influenciou por mais de três séculos a organização e o desenvolvimento da ciência no ocidente. Descartes buscou na hegemonia da razão pura as condições para o encontro do conhecimento verdadeiro, isento de erros, edificado em argumentos firmes e seguros, capazes de atingir com objetividade a certeza de seus preceitos, tão almejada pela ciência. Assim, Descartes consolidou a sua grande máxima, que permaneceu por séculos influenciando a forma como os homens significaram a sua existência: “penso, logo existo”. É pelas vias da razão humana que se encontra a verdade, a certeza da existência, de origem e de substância distinta e superior à do corpo. Essa razão sistematizava a essência do conhecimento e do ser, indicando o cerne moderno do aprofundamento da dicotomia corpo/mente. Contraditoriamente a essa idéia de fragmentação propalada na modernidade é a idéia de “indivíduo soberano” instaurada nos períodos do Humanismo Renascentista e do Iluminismo do século XVIII, representando uma ruptura importante com o passado. No entanto, o sentido de fragmentação na filosofia cartesiana sugere analisar as partes com a finalidade de entrar em contato com a essência do fenômeno mais pura e verdadeira compondo uma concepção essencialista e fixadora de identidade. Durante a história moderna, a noção de sujeito individual reuniu significados de indivisibilidade, Amanda Macedo Singulani 6506 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural singularidade, conferindo consistência às reflexões e refinamentos para a filosofia ocidental daquela época. Para HALL (2006, p.10-11): (...) o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contínuo ou idêntico à ele - ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Essa concepção de sujeito centra a identidade no “eu” do indivíduo, como se este já nascesse com suas capacidades e personalidades definidas, havendo uma essência do ser humano. Mas as modificações sobre como compreender o humano continuaram a acontecer, abrindo espaço para a ruptura com essa visão meramente essencialista. A esse núcleo central, suturam-se os mundos culturais que exercem influência contínua e dialógica reformulando e elaborando uma concepção “interativa” da identidade e do “eu”. É através da imersão do sujeito nesses mundos culturais que as identidades culturais são formadas. Essa concepção, apesar de ainda sustentar uma visão fixadora de identidade, desloca o centro para uma mediação entre o exterior e o interior admitindo a influência do mundo público no mundo pessoal, uma concepção sociológica de sujeito - porém, insuficiente para compreender o humano, pois o mesmo torna-se dependente de seu meio para construção de sua identidade. As interpretações dos sujeitos que “representam” suas épocas tornam-se fator central para que possamos entender a movimentação fluida e cambiante entre as concepções, sejam modernas ou pós-modernas. A modernidade representa sociedades de mudança constante, rápida e contínua em relação às sociedades tradicionais, o que pode ser notado por escritos famosos como “tudo que é sólido se desmancha no ar” de Marx ou através de explicações metafísicas como de Descartes ao se perguntar onde fica a alma do ser humano. Mas, o que se aprofunda na chamada modernidade tardia são as desconstruções sobre narrativas legitimadoras do sujeito e de sociedade. HARVEY (1989, p.19) ao citar Terry Eagleto (1987) destaca que: Talvez haja consenso ao dizer que o artefato pós-moderno típico é travesso, auto-ironizador e até esquizóide; e que ele reage a austera autonomia do auto modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e Amanda Macedo Singulani 6507 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural sua falta de profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes através de uma brutal estética da sordidez e do choque. O sujeito torna-se cada vez mais fragmentado, sendo composto não de uma única identidade unificável e estável. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 2006). Não há a coerência que acomoda a identidade plenamente unificada, mas deslocamentos contínuos de sistemas de significações e representação cultural que destroem qualquer forma de rótulo identitário, confrontados por uma multiplicidade de identidades possíveis identificadas ou não, ainda que temporariamente. Esse descentramento de identidade e de sujeito tem forte influência dos estudos de Foucault que produziu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno”. O autor nos mostrou como as práticas e os saberes vêm funcionando, nos últimos quatro séculos, para fabricar a Modernidade e o sujeito moderno. Foucault se identifica com o pensamento pós-moderno de que se enfraqueceram sobremaneira as tentativas de totalização, colocando em xeque a idéia iluminista, unificadora e totalitária de razão. Concorda-se com Alfredo Veiga Neto (2003, p. 131) quando explica que: Em vez de aceitar que o sujeito é algo sempre dado, como uma entidade que preexiste no mundo social, o filósofo dedicou-se ao longo de sua obra a averiguar não apenas como se constituiu essa noção de sujeito, como também, de que maneira nós mesmos nos constituímos como sujeitos modernos, isto é, de que maneira cada um de nós se torna essa entidade a que chamamos de sujeito moderno. Essa concepção de sujeito que Foucault define como não estando desde sempre aí comunga com o pensamento de HALL (2006, p.17) que sustenta que as sociedades da modernidade tardia são atravessadas pelas diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições do sujeito”, isto é, identidades. Em consonância com essa concepção polivalente de compreensão do sujeito, o estudo das corporeidades - entendidas como a quebra da dicotomia corpo/mente e como materialidade corpórea imbricada por histórias que são plurais e singulares inscritas por experiências e vivências individuais e coletivas com as quais nos constituímos sujeitos no mundo - corroboram com os debates mais atuais que buscam elucidar outras possibilidades de conceber o humano. Amanda Macedo Singulani 6508 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural Dessa forma, e dando seguimento à discussão, discorre-se sobre as formas de corporeidades existentes nos currículos e espaços escolares e como estas são tratadas no campo da educação, muitas vezes enquadrada na rigidez identitária e nas oposições binárias as quais mantêm a estrutura escolar no seu formato hodierno. Currículo e corpo no ambiente escolar O currículo é considerado, segundo sua tradição crítica, um artefato social e cultural atuante na transmissão de determinações sociais, políticas e epistemológicas. Tendo uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação, produz identidades individuais e sociais próprias do seu enredamento com o poder. Seu papel dentro da escola tem se reduzido à manutenção das injustiças e desigualdades sociais, estando desafinado com os interesses dos grupos oprimidos. Segundo Apple (2002, p.42): Evidentemente, nunca agimos no vácuo. A própria percepção de que a educação está profundamente implicada na política da cultura deixa isso claro. Afinal, à decisão de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura de outros grupos mal veem a luz do dia, revela algo extremamente importante acerca de quem detém o poder na sociedade. Desde que se tornou objeto de estudo e pesquisa, a racionalização do currículo esteve presente, por parte de sujeitos, sobretudo ligados à administração da educação, que o entendiam como processo de resultados educacionais, cuidadosos e rigorosamente especificados e medidos, uma área voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas e métodos. Silva (1999, p. 12) contribui quando afirma que, “o modelo institucional dessa concepção de currículo é a fábrica e sua inspiração “teórica” é a “administração científica”, de Taylor. Idéias apresentadas no livro de Bobbitt, The curriculum (1918).” Portanto, nossas noções de educação, pedagogia e currículo estão solidamente fincadas na modernidade e nas ideias modernas de razão, ciência, racionalidade e progresso constante tendo no centro desse pensamento o tipo de sociedade que se desenvolveu nos séculos seguintes. O currículo tem sido racionalmente concebido como Amanda Macedo Singulani 6509 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural um espaço que se ensina a pensar, em que se transmite o pensamento, em que se aprende o raciocínio e a racionalidade. Essa concepção moderna atribui ao corpo no ambiente escolar funções secundárias e desprovidas de qualificação. Sua relação com o conhecimento aparece nas teorias pedagógicas que influenciam o currículo como opostas e antagônicas. Tendo por base a perspectiva cartesiana, a grande maioria delas, considera que o local de aquisição do conhecimento encontra-se localizado exclusivamente na mente pensante e racional cujo órgão central é o cérebro, sendo o corpo apenas o seu suporte e sustentáculo. As conseqüências desse modelo de pensamento aparecem no cotidiano escolar e nas práticas educativas de diferentes formas. Os rituais escolares obedecem a ordenamentos indicativos de que o silenciamento corporal é fator essencial ao bom desempenho e aquisição dos conhecimentos considerados importantes pela escola. A racionalidade, embora materializada no cérebro, aparece ainda numa perspectiva próxima à idéia cartesiana de uma mente abstrata e independente da corporalidade humana. Por outro lado, o investimento no corpo disciplinado e controlado emerge como questão central a ser trabalhada no ambiente escolar, sem o qual compromete-se o fazer político-pedagógico e didático. Esse investimento avançou e avança no cotidiano escolar buscando a consolidação de um sujeito autocontrolado e disciplinado em suas emoções, ações e movimentos. O que se observa é a existência de um complexo e entrelaçado jogo de visibilidade e invisibilidade corporal no ambiente escolar, em que a necessidade da invisibilidade corporal impulsiona um trabalho com o corpo que o torna visível na mesma medida em que o quer invisível, pois disciplinado e autocontrolado (FOUCAULT, 2005). Assim, o currículo como matriz auxiliadora de práticas escolares produz identidades, rotulando conforme seus desígnios os sujeitos ordinários do cotidiano (CERTEAU, 2003), legitima concepções cognitivistas do humano em detrimento de outras dimensões enunciadas pela corporalidade, dicotomizando corpo e mente, cultura erudita e cultura popular e tantos outros binarismos. Amanda Macedo Singulani 6510 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural Currículo, identidades e culturas no cotidiano escolar: o caso de Ramon O corpo é presença física e marcante de qualquer ser vivo, e apesar de muitas vezes desqualificado, não é possível ignorá-lo. É através dele que nossa presença no mundo é percebida e através do qual impiedosamente a escola rotula nossas crianças por estar respaldada em um currículo de uma cultura dominante. Para exemplificar essa afirmação traz-se à baila o caso de Ramon, um menino de 8 anos que fez parte de um dos estudos da pesquisadora sobre a questão da corporalidade no cotidiano escolar. Ramon era um menino como tantos outros alunos de uma escola pública da rede municipal de Seropédica: desacreditado e desqualificado pela escola em função de suas dificuldades para aprender os conteúdos escolares e por apresentar um comportamento “reprovável”. Nas aulas de Educação Física, ele encontrava espaço/tempo para demonstrar que, além do Ramon, disperso e incapaz de aprender, existia também o Ramon atento e com grande habilidade no desempenho corporal através da dança. Ramon teve seu dia de “exemplo” na escola. Em uma mostra de talentos, apresentou-se com mais dois amigos dançando uma música de hip-hop. Eles foram o sucesso da mostra, tendo que se apresentarem várias vezes. Posteriormente, Ramon relatou que todos o elogiaram, inclusive a direção da escola. E que o melhor foi dar autógrafo no final da apresentação. Porém, a escola não parece ver ambivalência em seu comportamento, reafirmando, através da utilização de rótulos, atitudes tipificadas relacionadas à sua origem de classe subalternizada e marginal. O caso de Ramon pode ser pensado por diversos pontos de vista, no entanto, para a discussão que se apresenta, a condição enigmática encontra-se em dois pontos principais: a incapacidade da escola em romper com a idéia de identidade fixa e única do ser humano, que se expressa no rótulo impingindo Ramon de incapaz cognitivamente e desatento; e sua esperteza e atenção na expressão corporal através da dança, capazes de propiciar faces diferentes do mesmo sujeito e de serem reconhecidas como potenciais e relevantes para o seu desenvolvimento em outras áreas que não exclusivamente motoras. Assim, incita-se a refletir sobre as diferentes formas culturais que convivem e transitam no ambiente escolar. Apesar de o cotidiano escolar ser um palco em que se Amanda Macedo Singulani 6511 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural debatem diversas e hibridizadas identidades culturais, a padronização cultural tem forte apelo institucional, moldando os currículos oficiais e ocultos. A origem sociocultural de Ramon – que não é aquela validada e valorizada pela escola – parece induzir os professores e a própria direção a ressaltar o seu comportamento reconhecido como insuficiente, identificando-o imediatamente como comum aos integrantes dessa parcela da sociedade, numa atitude que tangencia o preconceito e a desqualificação de sua comunidade e cultura. No entanto, ao mergulharmos no cotidiano escolar escorregadio e deslizante, somos tomados por inusitadas e imprevisíveis percepções que indiciam ser a vida real bem mais fluida e complexa do que podem narrar as teorias sociológicas que se ocupam de aprisionar o real para descrevê-lo em sua totalidade. A vida humana, sempre transbordante de complexidade, apresenta-se inapreensível, embora passível de compreensões provisórias e incertas. Assim como os caleidoscópios, as diferentes e inenarráveis ‘táticas dos sujeitos ordinários cotidianos’ (CERTEAU, 2003) vão nos oferecendo inúmeros e diferentes entrelaçamentos que, muitas vezes, ficam à sombra, invisibilizados pela excessiva iluminação da homogeneidade e unicidade do que se considera ser a realidade. É nesse sentido que são trazidos ao debate autores ancorados em outras concepções sobre a realidade para questionar os princípios e pressupostos do pensamento social e político estabelecidos e desenvolvidos a partir do Iluminismo. O pós-modernismo, compreendido como um movimento iniciado em algum ponto do século XX, não representa uma teoria coerente e unificada, mas um conjunto variado de perspectivas intelectuais, estéticas, políticas e epistemológicas. Ao coadunar com essas perspectivas, rompe-se com as ideias iluminista cujas influências para com o currículo são apontados por Silva (2000, p. 111): Seu objetivo consiste em transmitir o conhecimento científico, em formar um ser humano supostamente racional e autônomo e em moldar o cidadão e a cidadã da moderna democracia representativa. É através desse sujeito racional, autônomo e democrático que se pode chegar ao ideal moderno de uma sociedade racional, progressista e democrática. Todo cenário da contemporaneidade de dúvida, da incerteza e da indeterminação política, social, cultural e epistemológica fazem com que a ciência e a tecnologia não encontrem em si próprias as justificativas que antes as sustentavam. A descentralização Amanda Macedo Singulani 6512 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural da pós-modernidade indica uma incompatibilidade com o currículo linear, estático e sequencial da modernidade, colocando em xeque a teorização crítica da educação e do currículo que, em linhas gerais, segue os princípios das grandes narrativas da Modernidade que buscam homogeneizar, igualar e purificar os sujeitos da/na escola. Considerações Finais Múltiplas Possibilidades nas Múltiplas Identidades e Corporeidades Na contemporaneidade as disputas de poder são alavancadas pela enorme rede de informações que se efetivaram com os avanços tecnológicos e juntamente com a facilidade de locomoção de pessoas por toda parte do mundo. Na verdade, essas disputas de relações de poder e de dominação no campo cultural são constatadas em todas as fases da humanidade tornando-se pertinente relacioná-las ao debate sobre cultura e identidade uma vez que tais disputas foram responsáveis pelas formas de divisões entre dominados e dominantes. A instituição escolar é igualmente atravessada por disputas internas entre as diferentes culturas que ali convivem, sendo notório o fortalecimento e apoio a uma dominação eurocêntrica. O que se observa no seu interior é o empreendimento de esforços no sentido de imporse uma determinada forma cultural e subalternização das demais culturas, desde a formação dos professores até os conteúdos didáticos, passando pela disseminação de comportamentos linguisticos, morais, éticos, estéticos e religiosos. O que não pode ser legitimado como cultura padrão é tratada como atrasado ou meramente como inferior e exótico. No entanto, recorrendo à noção de hibridismo desenvolvida por Bhabha (2003), podemos reconhecer que, embora as tentativas de imposições culturais estejam presentes em vários espaços, não é possível falar em culturas puras, que não sejam híbridas e plurais. No próprio contato com aquelas que se deseja suplantar, as culturas predominantes, bem como as subalternizadas, sofrem processos de reconstrução, hibridizam-se e se refazem apesar da prevalência em termos de valorização e reconhecimento das que possuem raízes eurocêntricas (CUPOLLILO, 2007). Amanda Macedo Singulani 6513 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural O campo da educação sofre reordenamentos das intensas e rápidas transformações ocorridas a partir do processo de globalização cultural, mas apesar das disputas e dominações neste campo serem sempre duras e violentas, os jogos de imposição de poder não só atacam como são também atacados em formas de resistências culturais, que não são suficientes para que tais contra-ataques não passem simplesmente de pequenas aberturas oficializadas de acesso, de pseudovalorização e respeito à diversidade cultural. Ou, como bem alerta Skliar (2003), uma aceitação dos diferentes com vistas à normalizá-los, mantendo-se, discretamente, a mesma rejeição ao diferente numa outra roupagem. Na atualidade, busca-se aprofundar as repercussões dos encontros e desencontros culturais no ambiente escolar coincidindo nos currículos oficiais – tendo como exemplar os Parâmetros Curriculares Nacionais – onde nota-se atenção e o respeito pelo chamado multiculturalismo como uma saída para os graves problemas educacionais em vários espaços e publicações da área, o que reafirma a legitimidade e a urgência do debate. Neste sentido, os termos “diferença” e “diversidade” ainda que possam ser usados, tanto pelos dicionários quanto no cotidiano, como sinônimos de falta de “semelhança” e “dissimilitude” para o termo “diferença”, e de “discordância” e “desacordo” para o termo “diversidade”, precisam ser estudados com maior profundidade e cuidado para não serem alvos da superficialidade que reafirma ou ameniza a desigualdade no lugar de solapá-las. Sentidos estes, que conferem aos termos perspectivas epistemológicas e políticas bastante distintas. As propostas político-pedagógicas centralizam nas ações curriculares uma noção de diferença que não corresponde a noção de diversidade. Para propostas que tratam da diversidade, a noção de multiculturalismo difunde uma ideia de tolerância e benevolência com aquilo que parece diferente do “normal” (SILVA, 2000), denunciando uma cultura padronizada como superior, eurocêntrica a qual deve prevalecer e ser legitimada no ambiente escolar. Ou seja, formadora de uma identidade social padrão em detrimento de culturas que devem ser toleradas como comportamentos destoantes. Cupolillo (2007) alerta que: Amanda Macedo Singulani 6514 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural Embora o multiculturalismo seja uma terminologia propalada atualmente nos documentos oficiais relacionados à educação, o sentido dado, na maioria dos casos, está politicamente centralizada na noção de diversidade, no sentido de tolerância, de compreensão e acolhimento. Essas são atitudes político-pedagógicas que não tem estimulado e nem promovido as necessárias problematizações urgentes no mundo escolar; apenas tem sugerido ações pretensamente ingênuas de cristalização de identidades padronizadas e tolerância aos diferentes mundos dos “outros” sujeitos sociais. As diferenças culturais que convivem no cotidiano escolar carecem de atitudes políticas de inclusão e problematização, com as devidas teorizações que permitem mais do que simples a compreensão da situação, mas a consideração de que a diferença, por ser marca registrada do humano, sofre constantes e permanentes disputas (p.137). No caso de Ramon, a diferença é vista como fator agravante da sua incapacidade em aprender e não como forma diversa de expressão dos comportamentos do humano, devendo ser normalizada. No entanto, as duas posições do sujeito vivenciadas por Ramon em espaçostempos diferentes sugerem uma ambivalência de identidade tornando qualquer concepção fixa de sujeito redutora e insuficiente para os estudos vinculados à educação, principalmente quando nos remetemos ao currículo escolar. Entretanto, a política-social educacional não enxerga Ramon como ambivalente e enigmático. Os currículos oficiais e ocultos com seus conteúdos elencados como fundamentais se preocupam com a transmissão e veiculação da cultura dominante, dificultando a visibilidade de outros comportamentos que expressam a ambivalência inerente do humano. Diante de tudo que foi apresentado, acrescento a necessidade de se estar atento à tantos casos que corriqueiramente configuram o cotidiano, como este. Enxergar as múltiplas identidades que coadunam com a concepção de um corpossujeito no mundo poderá potencializar o ambiente escolar, constituindo-se em espaçotempo de reflexão e desenvolvimento de outras características latentes de valores individuais e coletivos mais sólidos e éticos. Esta maneira de olharsentir a realidade, parece uma necessária e vivaz tarefa para professores e participantes da escola que tomam para si a responsabilidade da educação de novas gerações. Ademais, para finalizar este ensaio surge como fato instigador perguntas que devem ser feitas aos mesmos participantes da escola citados acima: que outras possibilidades e potências podem emergir de tantos legítimos outros (SKLIAR, 2003) se retirarmos seus rótulos? Quais ganhos teríamos na construção de diálogos que pudessem ser mediados entre o currículo e a práxis escolar Amanda Macedo Singulani 6515 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural enxergando a enorme riqueza da diferença, no lugar de aprofundar binarismos como corpo/mente e cultura erudita/cultura popular? Acredito que ao conferir visibilidade ao caso de Ramon neste trabalho como um dos ricos e importantes conhecimentos presentes no ambiente escolar e exemplo de tantos outros apresentados por meninas e meninos frequentadores das escolas públicas brasileiras, possa alimentar o movimento de descoberta da imensa fertilidade das potencialidades vividas por estes filhos da injusta e desigualdade social em que vivemos, que embora desacreditados para o conhecimento, se expressam na escola mesmo que esta não saiba o que fazer com o que emerge. Referências APPLE, M. Repensando ideologia e currículo. In: MOREIRA, A. F. B; SILVA, T. T. (orgs.) Currículo, cultura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2002 BHABHA, H. K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 9. ed. Petrópolis,RJ: Vozes, 2003. CUPOLILLO, A. V. Corporeidade e conhecimento: diálogos necessários à Educação Física e à escola. Tese de doutorado (Doutorado em Educação), Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2007. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1993. SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. _______. A produção social da identidade e da diferença. In: _______ (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. SKLIAR, C. Pedagogia (improvável) da diferença: e se outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Amanda Macedo Singulani 6516 O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. Amanda Macedo Singulani 6517 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” ZERO EM COMPORTAMENTO: O INSPETOR HUGUET – CINEMA E A VIRTUALIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS PRATICADOS Aristóteles Berino JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Perfis da Cultura Escolar PERFIS DA CULTURA ESCOLAR Aristóteles Berino1 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo, com a virtualização dos currículos praticados, vista no filme francês Zero em Comportamento (1933), de Jean Vigo, discutir através do personagem do inspetor Huguet a criação, no cotidiano escolar, de ações pedagógicas que conflitam com o instituído das normas e regras constitutivas da regulação da vida nas escolas, projetando horizontes educativos de fortalecimento da autonomia juvenil e dos educandos. Filme realizado na tradição do cinema anarquista francês (1895-1935), narra, com elementos retirados da experiência onírica e do movimento surrealista, imaginativa e poeticamente, um plano rebelde de tomada da escola pelos estudantes. O inspetor Huguet, revertendo seu papel de vigia dos jovens, torna-se um educador fantasioso e encorajador das subversões e do levante que deve derrubar a autoridade escolar. Como meio de expressão, ética e esteticamente, o cinema é aqui uma oportunidade de pensamento a respeito da finalística de uma educação libertária e de tradução do currículo para as pretensões pedagógicas de fazer fulgurar a vida como uma experiência expansiva, sedutora e bela. Analiticamente, o trabalho se situa no campo metodológico da Pedagogia da Imagem e na teoria crítica dos estudos sobre o cotidiano escolar. PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia da Imagem – Cinema – Currículos praticados. A escola perde mais tempo controlando o “capeta” que vê em cada educando, sobretudo nos educandos dos setores populares, do que soltando o que há em cada um de humanos. E as normas perdem tempo controlando os corpos, os tempos, os sentimentos, a imaginação e os sonhos dos mestres. Miguel Arroyo (2007: 148) Imaginem o que o cinema pode colocar nas consciências e quantas transformações elas podem levar às mentalidades (...). Basta que o utilizemos a serviço do progresso, da justiça e da beleza. Miguel Almereyda (1914 apud Marinone 2009: 138) 1 Professor Adjunto do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de do Programa (IM/UFRRJ/Nova Iguaçu) e do Programa de PósGraduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc – UFRRJ). Membro do GRPESQ Estudos Culturais em Educação e Arte (IM/UFRRJ – IA/UERJ). Também membro do GRPESQ Currículos, redes educativas e imagens (UERJ). Idelsuíte de Sousa Lima 6521 Perfis da Cultura Escolar Voltar-se para um cinema social seria dizer simplesmente alguma coisa e despertar outros ecos e não somente os arrotos dessas senhoras e desses senhores, que vão ao cinema para digerir. Jean Vigo (1985 apud Marinone 2009: 137) À contrapelo, currículos praticados Mesmo atento às opressões vividas – Pedagogia do oprimido é o título do seu livro mais conhecido – Paulo Freire deixou uma imagem confiante das nossas possibilidades reativas e capacidades criadoras. Quando afirmou “que somos seres condicionados mas não determinados” (Freire, 1999: 21), considerou as fugas, os escapes ou os desvios que realizamos diante dos enredos da história que circunscrevem a existência, sem, no entanto, poder finalizar nossas ações. As agências de controle exercidas para fixar a vida social e assegurar uma previsão do comportamento nunca se realizam completamente. As pessoas reagem e elaboram outros modos de fazer a própria existência. “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”, vai dizer Michel de Certeau (1994: 38) para afirmar que a passividade e a docilidade não são as regras de vida dos dominados, e indicar também que o lugar do aparentemente banal e comum é, fundamentalmente, espaço próprio para significações e realizações impróprias, porque inesperadas e não outorgadas institucionalmente. Então, antes de tudo, o cotidiano é a oportunidade da desobrigação, da reparação e da criação, diante das metas impostas e dos horizontes prescritos. E assim será no cotidiano escolar. Nas escolas, a direção das ações educativas é uma pedagogia errática, que encontra caminhos múltiplos e efeitos surpreendentes. Se não se pode sumariamente eliminar o regime curricular, o currículo será praticado. O que significa dizer que a programação da vida nas escolas é uma norma, mas apenas até certo ponto. A norma será de alguma forma transgredida. “Embora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este”, diz Certeau (ibidem: 92). O código ritual do currículo será quebrado e no seu lugar serão cultivadas ações pertinentes às possibilidades, necessidades e compreensão dos receptores, aqueles que serão propriamente os seus praticantes, desenvolvedores, nunca seus fiéis replicantes. Idelsuíte de Sousa Lima 6522 Perfis da Cultura Escolar Pedagogia da imagem e cinema A pedagogia da imagem pode nos proporcionar uma analítica das visualidades dos praticantes no cotidiano escolar. Observando que as “táticas desviacionistas” não colaboram com o teatro dos costumes, modelos e regulamentos que a forma curricular enseja para a vida nas escolas, suas marcas são assinaladas pela diferença, inadequação e resistência. Com isso são produzidos impressões classificatórias, desenhos sumários e selos identificáveis. A diligência de uma pedagogia da imagem pode ser a busca de outra correspondência com a exibição dos deslocamentos que provocam os praticantes do currículo escolar. Os extravios são desfalques comunicativos e exibições conectivas ansiosas de encontros e trocas que fortalecem. Mas o que enxergamos é apenas o que nos dão as práticas educadas do olhar. Então, é preciso cultivar amplamente o olhar: o cinema é uma possibilidade dessa amplificação. “A presença pedagógica da imagem educando os sentidos é histórica. Todavia, a escola permanece entre o fascínio, o receio e a paralisia” (Barros, 1998: 206). À contrapelo do torpor que envolve o contato com as diferentes realizações imagéticas dos praticantes do currículo no cotidiano escolar, existe a possibilidade de incorporar, fruir e dialogar. “Tudo que no cinema faz pensar” (Bentes: 13), proporciona, através das suas capacidades de pedagogização do olhar, um modo peculiar de ver. Para a política do conhecimento do cotidiano, o cinema possui artes próprias de comoção. É com esta perspectiva de pesquisa do cinema para pensar os currículos praticados que pretendo discutir neste trabalho o filme Zero em comportamento, de Jean Vigo. E, especialmente através do personagem do inspetor Huguet, discutir a virtualização das imagens transgressoras para a concepção de formas educativas emancipatórias. Uma ressalva inicial deve ser feita: “como deve o educador posicionar-se diante das novas práticas do olhar (...), sem incorrer no viés da crítica que apenas resvala na substituição da oralidade do professor pela verbovisualidade técnica, mediada pela televisão ou multimídia?” (ibidem: 203). A pedagogia da imagem, tal como é aqui concebida, é antes uma ação comunicativa e dialógica. Ela não prescreve usos nem induz à assimilação “moderna” de novas mídias (neste caso, o DVD). Não pretende ser uma atualização pedagógica. Corre em outra via. É uma pedagogia do relacionamento, que busca conexões para integrar a extensa rede de visualidades que, entrelaçadas, Idelsuíte de Sousa Lima 6523 Perfis da Cultura Escolar exibem a cotidianidade dos currículos como pontos de encontro, aproximativa do que é criativo e vivificador na expressão dos praticantes, nas escolas. Jovens diabos no colégio2 “Fim das férias” e “o retorno às aulas” são as duas primeiras frases do filme Zéro de conduite (1933), de Jean Vigo. O que acontecerá depois mostra que, mesmo há décadas atrás, o cotidiano escolar nunca foi pacífico, nem para os alunos, nem para os mestres. A tentativa de organização do espaço e do tempo escolar sempre foi uma rocha perfurável. Todos os cuidados para estabelecer o controle das crianças e dos jovens é uma racionalidade vencida: aqui e ali há a demonstração da irrealização do poder. Ou seja, a incapacidade do poder ser tudo que quer, de ser absoluto. O poder é um mar aberto para piratas. O primeiro “desconforto” que nos causa Zero em comportamento é pensar que a vida nas escolas não mudou muito. Também a representação das escolas no cinema é um “lugar de memória” dos seus praticantes no cotidiano.3 Passados ¾ de século, o filme nos deixa a imagem tocante de que existe um mal-estar constante, que nos faz indagar sobre a futuridade da própria escola. A escola precisa ser vencida? O que deve acontecer pro dia nascer feliz?4 O que corre nas escolas, particularmente naquelas frequentadas pelos indivíduos mais fragilizados pelas ações/políticas de poder dominante (econômico, social, cultural), é que garotos e garotas interditam os currículos apresentados, com planos de rebeldia, sabotagens, desordens – mas nunca com apatia5. 2 Este é o subtítulo que Jean Vigo deu à Zéro de Conduite. De domínio público, o filme pode ser assistido no site http://leelibros.com/biblioteca/?q=node/3718, com legendas em inglês. No Brasil, faz parte do DVD Jean Vigo Integral, lançado pela Versátil Home Vídeo e COSACNAIFY. 3 “A representação da História na obra de um grupo significativo de cineastas nos permite considerar que este segmento do cinema brasileiro se instituiu, no dizer de outro historiador, Pierre Nora, como ‘lugar de memória’ onde diretores, roteiristas, atores e produtores, bem como o próprio público que prestigiou os filmes, se esforçaram em retomar e monumentalizar certos acontecimentos ou problemáticas da História do Brasil”. Cf. Soares; Ferreira (2006: 12) 4 Pro dia nascer feliz é título de um documentário brasileiro, de 2007, dirigido por João Jardim, que também trata da vida nas escolas. 5 Significativo, entre as representações da escola no cinema, com ênfase na composição diferenciada e culturalmente hierarquizada da população, característica das dinâmicas do imperialismo e da atual globalização, importante lembrar a recente produção francesa Entre les murs (Entre os muros da escola, no Brasil). Idelsuíte de Sousa Lima 6524 Perfis da Cultura Escolar Mas o cinema tem feito mais do que mostrar rebeliões nas escolas. Ele também produz narrativas pedagógicas visando ao acolhimento de práticas modificantes, alternativas. A pedagogia da imagem do cinema pode ser inquietante também através das suas fabulações – a procura de praticantes que queiram caminhar com as virtualidades que produz. Tornar as imagens parte do pensamento pedagógico e da estética das ações educativas. E aí ver realizar as expectativas de Almereyda (militante anarquita, pai de Vigo) a respeito do serviço do cinema: progresso, justiça e beleza. Este outro eco para as imagens, como também desejava o próprio Vigo. Garotos Caussat – Colin – Bruel – Tabard É o morto. Vamos sair daqui. 6 Hei, garoto feijão! Tinha um morto com a gente. Olhe o Sr. Pète-Sec... Mais um ano chato pela frente. – Você acha? Um garoto imita sons de animais. Ele pode ir, senhor? Ele está com dor de barriga. Pode ir, não ligue para esse idiota. De novo. Meus amigos, aqui está. Nossa conspiração está pronta. Todos os domingos ficamos de retenção, precisamos fugir. Aqui estão sótão e a munição. No grande dia, a gente iça a bandeira. Um menino abre a porta da cabine onde um colega estava sentado no vaso, que reage sem jeito, com as calças no joelho. Alguém pegou o meu chocolate. Ele está xeretando de novo? Me dêem seus potes de cola. 6 Em itálico serão reproduzidos diálogos ou episódios do filme Idelsuíte de Sousa Lima 6525 Perfis da Cultura Escolar Mamãe, feijão de novo! Feijão! Feijão! Abaixo a mãe feijão! A gente deteste feijão! Fazem uma guerra de comida. Tabard tem um esconderijo. – Ele tem? Onde? Bem, se você não sabe, fique quieto! Me largue! Bem, eu lhe digo: merda! Sr. Professor, eu digo: merda! A guerra está declarada! Abaixo os professores! Vamos fazer a revolução! Liberdade ou morte! Nossa bandeira precisa ser hasteada! Fiquem firmes amanhã! Vamos bombardear com livros velhos, latas de lixo e botas fedidas! A munição está no sótão! Vamos bombardear os velhos bonecos do dia da celebração! Vamos lá! Adiante! Professor Então, meu garoto, não está anotando esta manhã? Assim está melhor. Meu garoto eu estava só dizendo... Cozinheira Sim, senhor Supervisor Geral, feijão de novo. Sempre feijão. Não posso dar feijão todos os dias para essas crianças. Idelsuíte de Sousa Lima 6526 Perfis da Cultura Escolar Inspetor Pète-Séc Comporte-se Caussat! As férias acabaram! Dupont, ao pé da minha cama! Quem está aí? E o Dupont? Eu não chamei vocês. Agora fiquem aqui até as onze. De pé! De pé! Vamos, vamos! Vocês estão surdos? Vamos, de pé! Vocês querem um zero em comportamento? Atenção. Aos seus lugares. Não! Não! Caussat e Colin, tragam-me os seus livros de Álgebra! Não, não precisa. Zero de comportamento, com retenção no domingo. Caussat e Colin, para a sala do diretor! Querem ficar de retenção? Diretor Inspetor geral, por favor, venha até a minha sala. O dia da celebração está perto. É a nossa pequena festividade, não é? Não quero confusão nada de bagunça. A propósito, atenção com Bruel, Caussat e Colin. Quanto a Huguet, o que me conta é muito preocupante. Enfim, inspetor geral, você me diz que Tabard e Bruel não estão se comportando direito. Compreende a imensidão da nossa responsabilidade moral? Olha só, juntos ainda. Essa amizade se tornou excessiva. O inspetor geral tem razão. Eles precisam ser vigiados. Entre. Sente-se. Meu pequeno, sou quase como o seu pai. Na sua idade, há certas coisas, não é mesmo? Bruel é mais velho que você. Sua natureza, sua sensibilidade, não é mesmo? Neuropatas, psicopatas... 7 7 Gomes (1984: 122) apresenta uma versão mais compreensível deste diálogo, que na legenda da edição brasileira do filme de Vigo parece incompleta: “Bruel é mais velho que você. Sua natureza, sua sensibilidade... Já a dele, não?... é de psicopata, de neurupata... Como posso explicar?” Idelsuíte de Sousa Lima 6527 Perfis da Cultura Escolar Tabart! Meu garoto, o conselho disciplinar consentiu sob a forte pressão do seu generoso professor de grande magnanimidade, Sr. Viot... consentiu por consideração por sua família e por você e por ocasião de nosso dia de celebração amanhã lhe perdoar. Especialmente por você ter decidido se desculpar em público. Desculpas que só têm valor se repetidas diante de seus colegas. Nós estamos esperando. Bem, nos diga, o que você quer nos dizer. Diga o que você quer dizer então. Inspetor geral Bec-de-Gaz Ao lado do inspetor Pète-Séc e do diretor, o inspetor geral Bec-de-Gaz é um personagem proeminente na vigilância escolar. No entanto, não há diálogos para salientar seu autoritarismo. Bec-de-Gaz não aparece falando. O que está à vista não é o que diz, mas a protuberância dos seus atos. É através deles que a face mais insidiosa do controle (da tentativa de controle) é estudada por Vigo. Uma exceção, possivelmente8, acontece em uma cena no dormitório. Pète-Séc levanta-se e logo procurar acordar os rapazes, que resistem. A porta se abre e aparece a figura do inspetor geral. Enquanto atravessa o dormitório os rapazes vão ficando de pé na cama, demonstrando/simulando reverência. Quando Bec-de-Gaz fecha a porta, na outra extremidade do dormitório, deixando o local, logo os garotos vão retornando para a posição de dormir. Bec-de-Gaz retorna inesperadamente e diz: “Bruel, Cassaut, Colin. Zero em comportamento e retenção no domingo”. Neste momento, o gesto traiçoeiro de Bec-de-Gaz será emblemático para toda a sua conduta no cotidiano da escola (será que o detalhe do menino que esconde o estilingue, na capa da Revista Época, é na verdade uma projeção das práticas súbitas e inesperadas de vigilância?). O inspetor geral será visto, em todo o filme, em atitudes de onipotência (cuja presença deve inibir qualquer tentativa de burla dos escolares) ou de observação dissimulada. Em pé no pátio, sua existência sugere a capacidade de inibir qualquer ação comprometedora da ordem. Bec-de-Gaz está também sempre olhando através dos vidros, abusando da transparência para ver o que está acontecendo na sala de aula. As duas posturas são complementares. Sua aparição deverá ser suficientemente 8 Em uma e outra passagem do filme há imprecisão para identificar o autor do diálogo, é preciso considerar. Idelsuíte de Sousa Lima 6528 Perfis da Cultura Escolar intimidadora ao mesmo tempo em que procura saber o que estão fazendo quando está ausente. Jogo claro-escuro que mira, principalmente, a produção de interstícios, oportunos para a virtual desobediência e a ação pedagógica da punição. Mais até do que obter o controle, a satisfação da aplicação da pena. Um gozo excessivo que, para ser realizado, transforma-o em devasso e perverso. Em uma cena aproveita a ausência dos alunos na sala de aula para investigar, revirar e até apanhar coisas entre os pertences dos alunos. Embora não apareça mais falando, na sala do diretor priva de uma comunicação privilegiada, recompensadora: “o inspetor geral tem razão”. Bec-de-Gaz é um manual da perfídia que pode ser praticada pela autoridade escolar. Bedel Huguet O inspetor Huguet é um personagem mágico9. Sua aparição no filme, logo no princípio, deixa ver como se comportará diante das armações juvenis: não irá interromper, apesar da vigilância que deveria exercer. Desligamento do seu trabalho que será substituído pela participação ativa na insurgência dos garotos. Huguet possui uma atmosfera aérea, lunática ou excêntrica, que longe de representar uma postura alheia (estranho) no cotidiano da escola, sugere a imagem de um homem sonhador de outras práticas educativas e que não se furtará à aliança com os garotos diante das suas agitações. Em um vagão do trem que traz Cassaut e Bruel das férias e conduz para o retorno às aulas, Huguet dorme descuidado. Os dois se revezam em mostrar as brincadeiras aprendidas nas férias e até um charuto resolvem fumar, infestando a cabine de fumaça. Olham para Huguet e um deles diz: “É o morto”. Diante de tudo que já haviam feito, sem esboçar qualquer reação, o homem que os acompanhava só poderia estar “morto”. Exanimação que permitirá interromper a monitoração dos alunos para ingressar na própria rede de aspirações juvenis de liberação – apresentada de forma onírica ou fabulosa por Vigo. A cena seguinte, com a participação do inspetor Huguet, se dá no pátio, quando Cassaut, Colin e Bruel organizam um complô. Ele atravessa o pátio, passando próximo dos garotos e observa. Quando se depara com a presença do inspetor geral, retorna para o local onde os três estavam reunidos e fica diante deles, escondendo o plano da revolta (desenhado em uma grande folha). Excitando o conhecimento da sua extraordinária 9 Gomes (idem: 103) chamará de “personagem feérica” o inspetor Huguet. Idelsuíte de Sousa Lima 6529 Perfis da Cultura Escolar personalidade, depois que os garotos abandonam o local para se reunirem novamente em uma sala de aula, Huguet prossegue seu trabalho de conferência realizado como inspetor: dois meninos fumam nas cabines que servem de banheiro. Para ao lado e permanece como se nada de anormal estivesse acontecendo. Uma bola então corre até as suas mãos. Apanha e corre com ela, arrastando os meninos na brincadeira. Bec-deGaz se aproxima e Huguet devolve a bola fingindo normalidade. Caminha. Em uma das mãos tem uma bengala e com a outra levanta o chapéu para cumprimentar o inspetor geral. Já fora do seu alcance, mas mirando Bec-de-Gaz, novamente levanta o chapéu comicamente e prossegue a sua caminhada, imitando o andar característico de Carlitos, agora já observado com curiosidade pelos meninos. Filmado de costas, é uma transmutação que acontece. O chapéu da reverência educada à autoridade do inspetor geral e a bengala que possui, com o jeito de andar, levam-nos imaginativamente ao universo terno de Charles Chaplin – bem longe da severidade prescrita para aquela escola10. Assim como ocorre com o inspetor geral, Huguet também não tem diálogos significativos na história. Circunstância que acentua a comparação entre os dois personagens e as duas concepções de escola que se estabelecem no filme. Existe a escola do rigor (e terror) cotidiano e da celebrização para personalidades honoríficas externas. Existe também a escola da vivência mais comunicativa e dialógica, suposta pelo comportamento de Huguet. Uma escola mais centrada nos investimentos e autenticidades juvenis, sem concessões para exploração destas existências. Em uma oportunidade, quando Huguet se dirige aos meninos através de palavras, quando se ocupa de tomar conta do estudo na sala de aula, diz: “Aos seus lugares! Vamos!” Logo os estudantes iniciam suas ações condenáveis. Em uma delas um garoto resolve caminhar “plantando bananeira”. Huguet ajuda. Diz: “Devagar”. E resolve mostrar como é: “Vejam isso”. Enquanto o diretor faz discursos moralizantes, Pète-Séc emite comandos, e Bec-de-Gaz espiona, todos com a previsão da punição, Huguet conversa e se mistura com eles. Desviante, é outra escola que imagina e pratica. 10 “O ensino, segundo Vigo, deve ser o lugar da formação da personalidade livre. É por isso que surge o inspetor Huguet que consola o espírito vingativo dos garotos. Com ações diferentes das dos outros adultos, ele distrai e diverte os meninos, imitando Carlitos – representante do cinema caro a Vigo – e injetando doses de liberdade. Podemos considerá-lo como gerador da subversão que cuida das almas sensíveis dos garotos maltratados”. Cf. Marinone (2009: 140). Idelsuíte de Sousa Lima 6530 Perfis da Cultura Escolar Uma das sequências mais poéticas do filme é o passeio de Huguet com os garotos. Alegres, caminham e cantam. Em uma esquina, Huguet desvia (novamente) do sentido percorrido pelos garotos e segue para outro lugar. Bec-de-Gaz surpreende o inspetor saindo de um café, sem a presença dos garotos, que deveria acompanhar e cuidar. Prosseguindo sua caminhada, um close da câmera se detém no seu rosto e mostra um olhar que é devaneio e um sorriso contente do instante vivido. Sonho e contemplação desmaterializando da vida o artificialismo dos momentos honoríficos, uniformes e lineares. Reagindo à prostração ensinada nas escolas, com seus caminhos e descaminhos, cruzamentos e pessoas inesperadas, a rua é uma via sedutora para outras pedagogias do olhar. Não é preciso expiar indecentemente, como faz Bec-de-Gaz. Uma encantadora mulher aparece. Huguet é gentil e amável para demonstrar seu prazer. Os rapazes já estão novamente com ele e aprendem agora sobre o cultivo da beleza. Sem comandos, Huguet é também um mestre para ensinar a arte da paquera cortês. E como inspetor é, na verdade, um professor insuperável. Mesmo quando confunde a batina de um padre com o vestido da mulher que persegue e, atrapalhado, vê escapar, sem poder reter, parte dos seus sonhos expostos... 1,2,3, conseguimos, vamos, vamos! O brado que serve de subtítulo para o final deste artigo é o último diálogo que aparece no filme. De cima do telhado da escola, Caussat, Colin, Bruel e Tabard promovem a revolta organizada, estragando o dedicado dia de festividade e celebração. Uma bandeira negra, com a imagem rebelde de uma caveira serve de emblema para a tomada da escola. No pátio, outros garotos regozijam-se com o acontecimento e recebem a bandeira da vitória enquanto jogam no chão a tricolor bandeira nacional. Protegidas, as autoridades presentes apenas observam. A câmera fecha com os rapazes de costas, caminhando para o plano mais elevado do telhado e vibrando com as mãos para cima. Na França, Zero em comportamento foi logo proibido. Em todo o filme são inúmeras as cenas de desobediência e rebeldia, culminando com a conquista da escola, diante da autoridade da direção e da autoridade externa, moral e cívica, do padre e do delegado. Então, se examinarmos o filme em perspectiva, insubordinações rarefeitas acumula-se até que o dia da revolta acontece com a vitória final – a escola foi capturada, sem que as autoridades pudessem impedir. Mas, neste caso, o próprio final parece Idelsuíte de Sousa Lima 6531 Perfis da Cultura Escolar inverossímil. Não parece factível manter a escola sob controle dos alunos. Uma analítica das imagens de Zero em comportamento pode sugerir outra concepção para a própria revolta. Uma das leituras possíveis para o acontecimento final do filme não é a admissão de que a escola finalmente foi derrubada e as autoridades derrotadas. As cenas da batalha têm outra dureza para dizer. Educar é impossível. A impotência da escola não é a contenção dos alunos, mas conseguir realizar integralmente o que propaga como dever: normalização, civilização, correção. A insolência estará sempre presente, com o domínio ou não da escola pelos estudantes. Esta é a praga disseminada em todo o filme. Escolher quatro garotos para executar uma vigilância ostensiva e punir sistematicamente (como fazem as autoridades da direção escolar no filme) ou colocar a questão sobre o que fazer com crianças e jovens que não respeitam ninguém é uma tentativa de circunscrever a inconveniência escolar e anular potências indisciplinadas, coisa improvável de acontecer. A vida mesmo é extravagante – ela é um passeio desobediente, como as andanças de Huguet pelas ruas. A vida é um absurdo, portanto, está fora de controle. Vigo extrapola os limites da realidade (o que supostamente realmente existe) em uma cena no dormitório, na noite que antecede a revolta. Os garotos fazem uma guerra com os travesseiros, que explodem. Penas que voam e criam um ar sublime, atingido também pela filmagem, em câmera lenta, e pela música composta para o episódio. A bagunça/loucura é geral. Uma procissão-carnaval se inicia. É possível ver o pênis de um rapaz, sentado em uma cadeira que é erguida. Pète-Séc é amarrado na cama, que também é erguida, enquanto permanece dormindo. Não há monitoração escolar que se realize competentemente. E não é porque um dia a escola será feita refém dos estudantes. A inversão acontece a todo instante. O cotidiano escolar é pedagógico. É ali que tudo é visto/pressentido razoavelmente. A vista do cotidiano permite analisar a própria ambiguidade do poder, que escorrega como se pudesse, como coisa, passar de mão em mão, manuseado por todo mundo, autoridades ou não, inspetores ou alunos. Admitir que educar, afinal, é impossível não é um niilismo. É um sopro (impulso prodigioso) desconfiado, mas fascinante para considerar uma educação possível. Ela começa atenciosa, às vezes de onde menos se espera. Diz a cozinheira, com algum atrevimento: “Sim, senhor Supervisor Geral, feijão de novo. Sempre feijão. Não posso dar feijão todos os dias para essas crianças”. Ou o Idelsuíte de Sousa Lima 6532 Perfis da Cultura Escolar inspetor Huguet, amável: “Devagar”. A educação possível pode iniciar assim: movente, sem fixar a própria autoridade/identidade de quem ensina. E também comovente, que enternece e suaviza. Sem garantias, incerta, apenas encarnada. Referências bibliográficas ARROYO, Miguel. Aprendendo nas transgressões. In: Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 135 - 149. BARROS, Armando Martins, Educando o olhar: notas sobre o tratamento das imagens como fundamento na formação do pedagogo. SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 199-206. BENTES, Ivana. O cinema como virtualização. In: BENTES, Ivana (org.). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007. p. 7-9. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 12ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 12ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. GOMES, Paulo Emilio Salles. Jean Vigo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. MARINONE, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história “obscura” do cinema na França (1895-1935). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge. Introdução. In: SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge (orgs.). A História vai ao cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 11-15. Idelsuíte de Sousa Lima 6533 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA “ENSINO MÉDIO INNOVADOR” NUM CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL (OUTEIRO – BELÉM – PA) Breno Rodrigo de Oliveira Alencar JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA “ENSINO MÉDIO INOVADOR” NUM CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL (OUTEIRO, BELÉM-PA) Breno Rodrigo de Oliveira Alencar Fundação Escola Bosque/Belém-PA [email protected] RESUMO: O presente estudo, no âmbito de uma proposta de implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” em nível municipal, pretende ser uma exposição das discussões acerca do currículo integrado em escolas públicas. Em que pese sua formulação nos termos de um ensino que busca relacionar o propedêutico ao técnico, o mesmo visa analisar a correção de possíveis desvios existentes no cenário curricular de instituições como o Centro de Referência em Educação Ambiental “Escola Bosque” Eidorfe Moreira, localizado na Ilha de Caratateua, distrito do Outeiro (Belém-PA), cujo objetivo é formar educandos no ensino regular, ao mesmo tempo em que os prepara para o exercício da atividade de Técnico em Meio Ambiente. Desse modo, os estudo traça um perfil do programa e os mecanismos de sua implementação segundo as especificidades da instituição, numa intenção clara e objetiva de tornar públicas as suas diretrizes curriculares. PALAVRAS-CHAVE: Ensino médio; Centro de referência; Educação ambiental. Introdução O Ensino Médio ao longo de sua breve história tem se constituído na educação brasileira, como o nível de maior complexidade na estruturação de políticas públicas de enfrentamento aos desafios estabelecidos pela sociedade moderna, em decorrência de sua própria natureza enquanto etapa intermediária entre o Ensino Fundamental e a Educação Superior e a particularidade de atender a adolescentes, jovens e adultos em suas diferentes expectativas frente à escolarização, levando-se em consideração que estes conceitos são estabelecidos por uma construção social e como estes sujeitos se vêem neste processo, que está intimamente ligado com a representação social que lhes é atribuída. Conforme Hilário Dick, Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6537 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) O pressuposto fundamental da discussão é que a idade é um fenômeno social, e não apenas biológico. O que existe em cada período histórico é um conjunto multifacetado de jovens, condicionados e interagindo com meio social em que vivem. (DICK, 2003, p. 26) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9394-96), ao situar o Ensino Médio como etapa final da Educação Básica, define-a como a conclusão de um período de escolarização de caráter geral. Trata-se de reconhecê-lo como parte de uma etapa da escolarização que tem por finalidade o desenvolvimento do indivíduo, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania, fornecendo-lhe os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (art. 22). É oportuno salientar também que LDB indica para o Ensino Médio as funções de: 1. Possibilitar o prosseguimento de estudos, mediante “consolidação e aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental”; 2. “Preparação Básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamentos posteriores”; 3. “Aprimoramento do Educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”; 4. “A compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando teoria e prática no ensino de cada disciplina”. Portanto, as disposições legais sobre o ensino médio deixam clara a importância da educação geral como meio de preparar para o trabalho e formar pessoas capacitadas à sua inserção social cidadã, de se perceberem como sujeitos de intervenção de seu próprio processo histórico, atentos às transformações da sociedade, compreendendo os fenômenos sociais e científicos que permeiam o seu cotidiano, possibilitando, ainda, a continuação de seus estudos. Paralelamente à expansão do atendimento, as políticas públicas educacionais se concentraram também em aspectos relacionados à permanência do aluno na escola e à qualidade dos serviços oferecidos. Questões como as condições de funcionamento das Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6538 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) escolas, a formação e a capacitação dos professores, a qualidade do material didático, a leitura no trabalho escolar, a participação dos pais na escola e a qualidade da merenda escolar foram priorizadas para compensar os efeitos da maior incorporação de alunos provenientes de famílias de menor escolaridade. No caso do Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque “Eidorfe Moreira”, o Ensino Médio integrado com a Educação Técnica prevê a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, estabelecendo assim o desenvolvimento de uma política pedagógica voltada para intensa labuta escolar. Algo expressamente peculiar tendo em vista a natureza dessa integração em termos de educação pública a nível municipal. A identidade do ensino médio aí se define, portanto, pela superação do dualismo entre propedêutico e profissionalizante. Contudo, importa, ainda, que se configure um modelo que ganhe identidade unitária para que esta etapa da educação básica na Escola Bosque “Eidorfe Moreira” assuma formas diversa e contextualizada, tendo em vista a realidade do ensino público brasileiro e as especificidades da Ilha de Caratateua, onde a mesma encontra-se situada. Nela se prioriza uma escola que não se limite ao interesse imediato, pragmático e utilitário. Entender a necessidade de uma formação com base unitária implica em perceber as diversidades do mundo moderno, no sentido de se promover à capacidade de pensar, refletir, compreender e agir sobre as determinações da vida social e produtiva – que articule trabalho, ciência e cultura na perspectiva da emancipação humana, de forma igualitária a todos os cidadãos. Por esta concepção, o ensino médio carece de se estruturar em consonância com o avanço do conhecimento científico e tecnológico, fazendo da cultura um componente da formação geral, articulada com o trabalho produtivo. Isso pressupõe a vinculação dos conceitos científicos com a prática relacionada à contextualização dos fenômenos físicos, químicos e biológicos, bem como a superação das dicotomias entre humanismo e tecnologia e entre a formação teórica geral e técnica-instrumental. Em resposta a esses desafios que permanecem, algumas políticas, diretrizes e ações atuais do governo federal delineiam um cenário de possibilidades que apontam para uma efetiva política pública nacional, para a educação básica, comprometida com as múltiplas necessidades sociais e culturais da população brasileira. Nesse sentido, o Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6539 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) presente trabalho apresentar uma perspectiva de implementação de tais políticas públicas, buscando situar a Escola Bosque “Eidorfe Moreira” num cenário de avanços na educação nacional. Nesse sentido, a fim de colaborar na consolidação das políticas de fortalecimento do ensino médio, o presente estudo analisa os mecanismos de implantação destas políticas, manifestando, assim, a tendência desta instituição em garantir a melhoria do ensino público na cidade de Belém. Há de se advertir que este trabalho propõe-se estar em consonância com as ações do governo federal, e nestes termos reconhece as limitação orçamentárias e técnico-propedêuticas do município, uma vez que ações renovadoras, como tais, sempre implicam em mudanças estruturais, por vezes radicais e imprevisíveis. Esta é a razão de este estudo vir à tona, e, por essa razão, chamar atenção a um amplo debate. Trata-se, portanto, de discutir o pioneirismo no processo de implementação das políticas públicas por meio de um programa específico e particular, respeitando as especificidades pedagógico-estruturais da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”, de maneira a viabilizar inovações para o currículo do ensino médio, de forma articulada aos programas e ações já em desenvolvimento no âmbito federal e estadual, com linhas de ação que envolve aspectos que permeiam o contexto escolar: fortalecimento da gestão do sistema integrado de ensino e profissionalização, fortalecimento da gestão escolar, melhoria das condições de trabalho docente e formação inicial e continuada, apoio às práticas docentes, desenvolvimento do protagonismo juvenil e apoio ao aluno jovem e adulto trabalhador, elaboração de pesquisas e, com isso, o mais importante, qual seja a maximização do rendimento escolar. O Programa Ensino Médio Inovador da Escola Bosque “Eidorfe Moreira” discute a melhoria da qualidade do ensino médio e técnico profissionalizante, promovendo, ainda, os seguintes impactos e transformações: maior exposição à discussão oferecida pelos conteúdos; consolidação da identidade desta etapa educacional, considerando a diversidade de sujeitos; oferta de aprendizagem significativa para os estudantes, procurando levar em consideração o reconhecimento e a priorização das mesmas na sua interlocução com as realidades sociais de cada um; e redução da repetência e desistência escolar em razão do elevado número de disciplinas a serem estudadas. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6540 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) Pressupostos para um Currículo Inovador no Ensino Médio O Programa Ensino Médio Inovador da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”, quando de sua discussão, buscou estabelecer mudanças significativas, revertendo os dados negativos (a saber, desistência e reprovação) relativos a esta etapa da educação básica, de maneira que seja possível incorporar componentes que garantam maior sustentabilidade aos objetivos da instituição. Para este fim, resta salientar, o Ministério da Educação vem promovendo ações de incentivo, como apoio técnico e financeiro, além de consultoria técnica1. Essa nova organização curricular pressupõe uma perspectiva de articulação interdisciplinar, voltada para o desenvolvimento de conhecimentos - saberes, competências, valores e práticas. Considera ainda que o avanço da qualidade na educação brasileira depende fundamentalmente do compromisso político e da competência técnica dos professores, do respeito às diversidades dos estudantes e a garantia de sua autonomia. Dessa forma, o presente trabalho discute inovações nas práticas educacionais da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”. Entendo que o desenvolvimento de novas experiências curriculares estimula práticas educacionais significativas e permite que a escola estabeleça outras estratégias na formação do cidadão emancipado e, portanto, intelectualmente autônomo, participativo, solidário, crítico e em condições de exigir espaço digno na sociedade e no mundo do trabalho. O programa, em sua implementação, entre outros aspectos, demonstra seu interesse em enfrentar a tensão dialética entre pensamento científico e pensamento técnico; entre trabalho intelectual e trabalho manual na busca de outras relações entre teoria e prática, visando instaurar outros modos de organização e delimitação dos conhecimentos. Dessa forma, propõe-se estimular novas formas de organização das disciplinas articuladas com atividades integradoras, a partir das inter-relações existentes 1 Esta proposta foi apresentada verbalmente pela Professora Maria do Pilar, Secretária de Educação Básica do MEC, na reunião ordinária da Câmara de Educação Básica do CNE do mês de fevereiro do corrente, ocasião na qual entregou versão preliminar da proposta. Foi, de imediato, debatida pelos Conselheiros da Câmara com os Técnicos da Secretaria de Educação Básica do MEC, da Diretoria de Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica – Coordenação Geral do Ensino Médio. Para maiores esclarecimentos consultar o site: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me004803.pdf Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6541 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) entre os eixos constituintes do ensino médio, ou seja, o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura. Neste sentido é preciso conceber o trabalho, na concepção de produção de bens e serviços, como um dos princípios educativos no ensino médio, posto ser por meio deste que se pode compreender o processo histórico de produção científica e tecnológica, bem como o desenvolvimento e a apropriação social desses conhecimentos para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das potencialidades e dos sentidos humanos. O trabalho é um princípio educativo no currículo do ensino médio também porque o processo social de produção coloca exigências específicas para a educação, visando à participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produtivo. Porém, deve-se ter claro que essa perspectiva de formação que possibilita o exercício produtivo não é o mesmo que fazer uma formação estritamente profissionalizante. Ao contrário, essa participação, que deve ser ativa, consciente e crítica, exige, antes, a compreensão dos fundamentos da vida produtiva em geral. Somente atendido esse pressuposto é que o trabalho diretamente produtivo pode se constituir no contexto de uma formação específica para o exercício de profissões. Portanto, o trabalho, do ponto de vista do capital, na dimensão ontológica (mediação primeira da relação entre homem e natureza que viabiliza a produção da existência humana) e histórica (formas específicas com as quais manifesta essa mediação, condicionadas pelas relações sociais de produção), torna-se princípio quando organiza a base unitária do ensino médio, por ser condição para superar um ensino enciclopédico que não permite aos estudantes estabelecer relações concretas entre a ciência que aprende e a realidade em que vive. A essa concepção de trabalho associa-se a concepção de ciência e tecnologia como: conhecimentos produzidos, sistematizados e legitimados socialmente ao longo da história, como resultado de um processo empreendido pela humanidade na busca da compreensão e transformação dos fenômenos naturais e sociais. Nesse sentido, a ciência conforma conceitos e métodos cuja objetividade permite a transmissão para diferentes gerações, ao mesmo tempo em que podem ser questionados e superados historicamente, no movimento permanente de construção de novos conhecimentos. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6542 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) Por sua vez, a cultura, que também deve ser inserida nesse contexto, deve ser entendida como as diferentes formas de criação da sociedade, seus valores, suas normas de conduta, suas obras. Portanto, a cultura é tanto a produção ética quanto estética de uma sociedade; é expressão de valores e hábitos; é comunicação e arte. Uma formação que não dissocie a cultura da ciência e do trabalho possibilita aos estudantes compreenderem que os conhecimentos e os valores característicos de um tempo histórico e de um grupo social trazem a marca das razões, dos problemas, das necessidades e das possibilidades que orientaram o desenvolvimento dos meios e das relações de produção em um determinado sentido. Por esta perspectiva a cultura deve ser compreendida no seu sentido mais amplo, ou seja, como articulação entre o conjunto de representações e comportamentos e o processo dinâmico de socialização constituindo o modo de vida de uma população determinada. Portanto, cultura é um processo de produção de símbolos, de representações de significados e ao mesmo tempo, prática constituinte e constituída do e pelo tecido social. Outro elemento relevante é a produção científica que pode se constituir num contexto próprio de formação no ensino médio, formulando-se, entre outros objetivos, projetos e processos pedagógicos de iniciação científica. Também a prática e a produção cultural podem adquirir uma perspectiva própria de formação no ensino médio, de modo que objetivos e componentes curriculares com essa finalidade sejam inseridos no projeto de ensino médio. Na perspectiva de conferir especificidades a estas dimensões constitutivas da prática social que devem organizar o ensino médio de forma integrada – trabalho, ciência e cultura – entende-se a necessidade de o ensino médio ter uma base unitária sobre a qual podem se assentar possibilidades diversas de formações específicas: no trabalho, como formação profissional; na ciência, como iniciação científica; na cultura, como ampliação da formação cultural. Dessa forma, proporcionar a compreensão do mundo do trabalho e o aprimoramento da capacidade produtiva e investigativa dos estudantes; explicitar a relação desses processos com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e formá-los culturalmente, tanto no sentido ético – pela apreensão crítica dos valores da sociedade em que vivem – quanto estético, potencializando capacidades interpretativas, criativas e Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6543 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) produtivas da cultura nas suas diversas formas de expressão e manifestação, são finalidades que devem estar presentes e organicamente integradas no ensino médio. Do ponto de vista organizacional, não se acrescentaria mecanicamente ao currículo componentes técnicos, ou de iniciação à ciência, ou, ainda, atividades culturais. Obviamente, tais componentes já estão presentes no currículo do curso Técnico em Meio Ambiente, mas seriam necessariamente desenvolvidos de forma integrada aos diversos conhecimentos. Não se trata de uma proposta fácil; antes, é um grande desafio a ser construído processualmente através de uma articulação entre o corpo técnico, o corpo docente e o alunado, visando a práticas curriculares e pedagógicas que levem à formação plena do educando e possibilitem construções intelectuais elevadas, mediante a apropriação de conceitos necessários à intervenção consciente na realidade. Uma política de ensino médio nessa perspectiva visa fomentar, estimular e gerar condições para que o processo de ensino-aprendizado na Escola Bosque “Eidorfe Moreira” torne-se um componente prazeroso no exercício da cidadania. Dimensões para um Currículo Inovador Entende-se que o currículo é um dos elementos orientadores da Organização do Trabalho Escolar, pressupondo desde o planejamento da gestão da escola até o momento destinado a coordenação dos docentes. O currículo apresenta uma proposta educativa que deve ter as condições adequadas à sua concretização. Ainda, a organização curricular deve considerar as diretrizes curriculares nacionais e dos respectivos sistemas de ensino e apoiar-se na participação coletiva dos sujeitos envolvidos, bem como nas teorias educacionais. Ninguém mais do que nós mesmos, enquanto comunidade escolar, conhecemos melhor a nossa realidade e, portanto, estamos habilitados para apresentar indicativos e tomar decisões a respeito do currículo que vai, efetivamente, ser praticado. Neste sentido, cabe a instituição a responsabilidade de criar as condições materiais e aporte conceitual que permitam as mudanças necessárias no âmbito do currículo vigente atualmente, de modo que possa evitar a excessiva evasão e reprovação observada. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6544 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) Na proposta do Projeto Ensino Médio Inovador da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”, o percurso formativo será organizado seguindo a legislação em vigor, as diretrizes curriculares vigentes e as orientações metodológicas estabelecidas por este projeto. Sendo, portanto, possível redistribuição das disciplinas por eixos temáticos. A intencionalidade de uma nova organização curricular, baseada em eixos temáticos, é erigir uma escola ativa e criadora construída a partir de princípios educativo que unifique, na pedagogia, ethos, logos e tecnos, tanto no plano metodológico quanto no epistemológico. Entendendo que o nosso projeto político-pedagógico materializa-se através de um processo de formação humana coletiva, no entrelaçamento entre trabalho, ciência e cultura, e que se pressupõe os seguintes objetivos: Contemplar atividades integradoras de iniciação científica e artísticocultural; Incorporar, como princípio educativo, a metodologia da problematização como instrumento de incentivo a pesquisa, a curiosidade pelo inusitado e o desenvolvimento do espírito inventivo, nas práticas didáticas; Promover a aprendizagem criativa como processo de sistematização dos conhecimentos elaborados, como caminho pedagógico de superação a mera memorização; Promover a valorização da leitura em todos os campos do saber, desenvolvendo a capacidade de letramento dos alunos; Fomentar o comportamento ético, como ponto de partida para o reconhecimento dos deveres e direitos da cidadania; praticando um humanismo contemporâneo, pelo reconhecimento, respeito e acolhimento da identidade do outro e pela incorporação da solidariedade; Articular teoria e prática, vinculando o trabalho intelectual com atividades práticas e experimentais, uma vez que estarão associadas ao ensino regular as atividades do Curso Técnico em Meio Ambiente; Estimular a capacidade de aprender do aluno, desenvolvendo o autodidatismo e autonomia dos estudantes; Organizar os tempos e os espaços com ações efetivas de interdisciplinaridade e contextualização dos conhecimentos; Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6545 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) Garantir o acompanhamento da vida escolar dos estudantes, desde o diagnóstico preliminar, acompanhamento do desempenho e integração com a família; Intensificar o reforço da aprendizagem, como meio para elevação das bases para que o aluno tenha sucesso em seus estudos. Avaliação da aprendizagem como processo formativo e permanente de reconhecimento de saberes, competências, habilidades e atitudes. Proposições Curriculares Na organização curricular da Escola Bosque “Eidorfe Moreira” são consideradas as diretrizes curriculares nacionais, as diretrizes complementares e orientações do respectivo sistema de ensino, ou seja, a formação integrada, e de modo que se apóiem na participação coletiva dos sujeitos envolvidos, bem como nas teorias educacionais. Neste sentido o presente trabalho estabelece um referencial de proposições curriculares e condições básicas que orientam sua implementação, através dos seguintes objetivos: a) tornar a leitura elemento basilar de todas as disciplinas; b) estimular as atividades teóricas-práticas apoiadas em discussões intra ou extra-sala, mediante articulação com os professores do Curso Técnico em Meio Ambiente; c) fomentar as atividades interdisciplinares de forma que promovam a ampliação do universo cultural do aluno; d) garantir a divisão da grade curricular por eixos temáticos, isto é, Códigos e Linguagens e suas tecnologias; Ciências da natureza, Matemática e suas tecnologias; e Ciências humanas e suas tecnologias2. Concepção de Currículo 2 Curiosamente, sem que na proposta do MEC conste explicitamente o tratamento curricular por áreas de conhecimento, como, aliás, prescrevem as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução CNE/CEB nº 03/98, e Parecer CNE/CEB nº 15/98), ganhou destaque na imprensa que essa articulação interdisciplinar consistirá no fim da “divisão por disciplinas”, distribuindo as “atuais 12 matérias” (sic) em grupos mais amplos. Lembra-se, a propósito, que as provas do ENEM e do ENCCEJA são organizadas por áreas de conhecimento. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6546 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) O último item do tópico anterior pretende chamar atenção para um conceito ampliado do currículo, de modo que abranja todos os elementos relativos ao que se deve fazer para atingir os objetivos da escola. Do ponto de vista organizacional, o presente estudo não pretende acrescentar mecanicamente o currículo os componentes listados, mas desenvolvê-lo de forma integrada aos diversos conhecimentos já existentes, por exemplo, no Curso Técnico de Meio Ambiente. Nesse sentido estou considerado que o pioneirismo dessa ação chama atenção para o caráter modernizador que a Escola Bosque “Eidorfe Moreira” pretende implementar, visto ser ela, no cenário Amazônico e Ambiental, a principal referência em termos de uma ensino inovador. Minha preocupação com o currículo advém das observações que tenho efetuado em sala de aula, quanto ao rendimento de meus alunos nas duas disciplinas que leciono na instituição: Sociologia e Iniciação à Pesquisa Científica. Extraí, portanto, a concepção de que a fadiga e o excesso de trabalhos e provas a serem realizadas, interferem profundamente no rendimento dos alunos, além do que no próprio resultado das avaliações até então efetuadas. Minhas práticas avaliativas têm demonstrado que a heterogeneidade das notas está relacionada à disparidade no processo de absorção dos conteúdos. Isso tem se notabilizado pela excessiva quantidade de notas baixas, ou abaixo da média. Comparativamente, pode-se notar que os alunos do Ciclo 4 do Ensino Fundamental, individualmente, apresentam uma média avaliativa muito próxima a média do conjunto, ou seja, da turma (exemplo das turmas Tamuatá [C42304] e Arraia [C42303 ], ambas do turno da tarde), enquanto a nota dos alunos de todos os “Primeiro Ano” do Ensino Médio varia consideravelmente em relação a média de cada turma (Pescada-Manhã [A11101], Pescada-Tarde [A11303] e Dourada-Tarde [A11302]). Segundo relatos obtidos dos próprios alunos, em que se pese a observação de suas intencionalidades, verifica-se uma expressiva rejeição pelo sistema atual, no sentido de uma intensa reclamação acerca do excessivo número de disciplinas, que varia em cerca de 16 a 18 disciplinas. Suas considerações chamam a atenção para o fato de que o excesso de disciplinas implica uma deformidade no processo de avaliação, em vista da pouca disponibilidade de tempo para a execução das tarefas exigidas pelos docentes, o que traz conseqüentes frustrações em relação aos resultados avaliativos obtidos. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6547 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) Uma divisão curricular por eixos temáticos, tornaria pedagogicamente viável a implementação de uma nova forma de acolher seus interesses. A idéia é que os eixos Códigos e Linguagens e suas tecnologias, Ciências da natureza, Matemática e suas tecnologias e Ciências humanas e suas tecnologias, sejam realizadas por módulos, observadas, claro, a diferença entre a carga horária de cada disciplina e a sua relação com o horário dos professores. Desse modo um professor expunha sua disciplina durante o período correspondente a sua carga horária anual. Acompanharia, em melhores condições, pois, o processo de avaliação do aluno, além de poder contar com uma melhor coerência na organização de seu conteúdo. É bem provável que a intensa presença do professor em sala de aula durante um prolongado período de tempo possa incorrer em inconvenientes, como por exemplo, a sobrecarga de conteúdo. Por essa razão é que o sistema por eixos temáticos possibilita que num dia de aula, ou numa semana, por exemplo, mais de um docente, habilitado para aquele eixo, possa fazer-se presente em sala. Além dessas vantagens, é possível considerar que a política curricular de divisão das disciplinas por eixos temáticos estimula a pesquisa e a leitura, de modo que no período em que os docentes não se encontrarem em sala de aula, poderão implementar seus projetos individuais ou coletivos voltados para a Instituição. Conclusão: um plano de implementação Por plano de implementação estou considerando a maneira pela qual o presente projeto, associado com as possíveis modificações que venham a surgir em seu desenvolvimento, deve proceder em seus objetivos, cujo principal é a reestruturação curricular. Num primeiro momento o programa discute, através de reuniões, entre o corpo técnico e docente, suas condições e recursos disponíveis a sua implementação. Em seguida o mesmo é exposto à comunidade escolar, por meio de debates, fóruns, colóquios ou palestras, de modo a suprir possíveis carências em sua formulação. Em seguida é importante que sejam avaliadas as competências de cada profissional, em suas respectivas áreas e de acordo com seus eixos temáticos. Também deve ser levado em consideração as estruturas que formam a ossatura do ensino regular Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6548 A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental (Outeiro – Belém – PA) e técnico, de modo que possa haver diálogo na integração de possíveis propostas diferenciadas. Noutro momento é decidido sua forma de implementação, de modo que sejam abrangidos os três níveis do ensino médio. Referências Bibliográficas BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº. 9394, de 20/12/1996. BRASIL. Congresso Nacional. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Câmara de Educação Básica, nº 3, de 26/06/1998 ALENCAR, Breno. Projeto Ensino Médio Inovador na Escola Bosque “Eidorfe Moreira”. ESCOLA BOSQUE "PROF. EIDORFE MOREIRA": Belém, 2009. DICK, Hilário. Gritos Silenciados, mas evidentes: Jovens construindo juventude na História. São Paulo: Edições Loyola, 2003 CORDÃO, Francisco Aparecido. Parecer sobre proposta de experiência curricular inovadora do Ensino Médio. Ministério da Educação/ Conselho Nacional De Educação: Brasília, 2009. Breno Rodrigo de Oliveira Alencar 6549 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” A PRODUÇÃO DOS SABERES CULTURAIS NO ÂMBITO DO CURRÍCULO ESCOLAR: POSSIBILIDADE DE UMA FORMAÇÃO CULTURAL CRÍTICA E EMANCIPATÓRIA? Carlos Antônio Barbosa Firmino JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? A PRODUÇÃO DOS SABERES CULTURAIS NO ÂMBITO DO CURRÍCULO ESCOLAR: POSSIBILIDADE DE UMA FORMAÇÃO CULTURAL CRÍTICA E EMANCIPATÓRIA? Carlos Antônio Barbosa Firmino RESUMO: O artigo faz uma análise do currículo e da organização escolar que dele emana para responder se é possível que os mesmos favoreçam uma formação cultural crítica e emancipatória. Nesse sentido, discutimos como os currículos influenciam a organização e a transmissão do conhecimento na escola e quais as contribuições desse conhecimento para a sua transformação a fim de que ela favoreça uma formação cultural desalienante da onipresença do mercado e de suas combinações deformativas. Concluímos que essa formação será efetivada se a educação for realizada em todas as suas dimensões político-social-econômica, subsumida por um currículo crítico e/ou progressista que dê conta de desnudar os arranjos sociais pela superação de todos os tipos de violência, preconceitos, subordinações, exclusões e exploração humana. Um currículo que surja do encontro de educadores e estudantes, que lhes resgate o dom da solidariedade e lhes devolva uma racionalidade verdadeiramente desinteressada e humana. PALAVRAS-CHAVE: currículo; formação cultural; formação crítica e emancipatória. 1. INTRODUÇÃO O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele. A cobiça envenenou a alma dos homens, levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da produção veloz, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura! Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido. (Charles Chaplin, em discurso proferido no final do filme “O grande ditador”) Essa pesquisa de natureza teórica, impulsionada pelas preocupações com a formação humana, conforme ressalta Chaplin na citação acima, investiga como os saberes culturais são produzidos pelo currículo escolar. Nesse sentido, pretendemos Carlos Antônio Barbosa Firmino 6553 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? responder aos seguintes questionamentos: Pode o currículo, com a organização escolar que dele emana, ser objeto de uma formação cultural crítica e emancipatória? De que forma e que ações pedagógicas são necessárias para resgatar nos indivíduos uma racionalidade mais desinteressada e humana? Para começarmos a análise e discussão das nossas indagações, partimos de um relato feito pelo professor Ferdinand Röhr1 em ocasião de sua participação numa banca de defesa de tese na UFPE. Dizia ele: __ um menino de dez anos, baleado no estômago e agonizando, dá entrada num hospital público e é atendido por um aluno residente do curso de medicina da universidade pública. A criança assustada sobre uma maca, se reporta ao médico: __ doutor, eu estou com medo! O senhor pode segurar a minha mão? O médico imediatamente responde: __ para quê! Não é com essa mão que você segurava uma arma? Esse fato, envolto de imensa frieza, demonstra a situação de desumanização em que se encontra a nossa sociedade atual2, uma sociedade do simulacro, do efêmero, do tudo superficial e descartável - incluindo as relações humanas - portanto, substituível. Nela, os indivíduos se comportam de forma totalmente descomprometida com os problemas dos outros; não há amizades; é como se a vida girasse apenas em torno dos seus próprios interesses. Tal comportamento, na visão de Adorno & Horkheimer (1985) se deve ao fato de o burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade mal-humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, rompido consigo mesmo e com todos, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como contato social de pessoas que não se tocam intimamente (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 145-146). Essa necessidade de substituição constante das coisas, esse consumo desenfreado, é que tem comandado, infelizmente, as ações humanas e tornado o mundo fragmentado e sem sentido. “As imagens que estimulam o consumo acompanham o 1 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco. 2 A desumanização implantada pelo processo capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação e, acima de tudo, o ócio’ (ADORNO, 1996: 393). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6554 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? indivíduo do nascimento à morte. As palavras de ordem nessa sociedade não são mais as guardadas nos livros santos, tampouco as de escritores seculares, mas sim as marcas comerciais de produtos prontos para o consumo” (PALANGANA, 1997: 178-179). Segundo a autora, esta racionalidade traduz-se nos próprios locais de comércio, atualmente concentrados pela unicidade dos shoping centers que congregam, simultaneamente, todos os tipos de produtos para todos os tipos de gostos. Dessa forma, sobre a ótica da sensibilidade humana de onde brota a ética e a sensatez, será sempre desaprovador e ontologicamente incompreensível, que um médico que estuda para salvar vidas, não tenha um mínimo de sensibilidade para entender que aquela criança já nasceu condenada à morte, não pelas enfermidades naturais, mas pela crueldade da ordem social vigente. Do médico, a criança queria apenas atenção, carinho, solidariedade que a sociedade não lhe deu durante sua breve vida e que, o residente, incoerentemente, que estava se formando com recursos públicos para salvar vidas, também lhe negava no seio de morte. Este paradoxo é o reflexo de uma formação cultural equivocada que se encontra em colapso por toda a parte e continua se agravando ao longo dos tempos, que perpassa todas as classes sociais, não se esgota na estrutura educacional, seja de natureza ideológica ou organizacional e que vem sendo conduzida pela educação formal em todas as suas instâncias e níveis de organização. No entendimento de Adorno (1996), tal processo se traduz em uma semiformação socializada, uma forma dominante da consciência atual, sedimentando-se numa espécie de espírito objetivo negativo, em que tudo fica aprisionado nas malhas da socialização, renunciando à autodeterminação e prendendo-se a elementos culturais aprovados, que orientam à barbárie3. O resultado desta pseudo-formação, que vem sendo construída historicamente pela burguesia, é pior do que a não-cultura, anteriormente por ela combatida e uma de suas promessas libertadoras4, pois a semiformação cultural atrofia a consciência e a liberdade, unindo as noções ideológicas dos indivíduos de forma homogênea. 3 É o antônimo de civilização. Etimologicamente, segundo consta no Dicionário Prático Ilustrado (1956: 152) significa falta de civilização; selvageria; crueldade. “Barbárie significava o preconceito delirante, a repressão, o genocídio, a tortura, a continuidade do potencial autoritário, das condições que geraram aquela situação de terror” (OLIVEIRA, 1992: 93). 4 “Teoricamente, a sociedade burguesa adulta compor-se-ia de indivíduos livres e auto-suficientes. O sonho não se materializou, e o discurso burguês prossegue não admitindo que a emancipação humana só é possível numa outra organização social, diferente da que o abriga” (PALANGANA, 1997: 201). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6555 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? Com o progresso, há uma elevação geral no nível de vida e, por conseguinte, uma maior demanda por formação. O acesso aos bens culturais acaba por atingir na mesma proporção todas as classes sociais. O que antes era reservado ao ricaço e ao novo rico, se popularizou. É essa nova realidade que passa a determinar a formação semicultural. Nesse sentido, “o entendido e experimentado medianamente – semientendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal” (Ibdem: 402). Em que pese a uma boa formação ter como condições intrínsecas a autonomia e a liberdade, remete sempre a “estruturas pré-colocadas a cada indivíduo em sentido heteronômico e em relação às quais deve submeter-se para formar-se. Daí que, no momento mesmo em que ocorre a formação, ela já deixa de existir. Em sua origem já está, teologicamente, seu decair” (Ibdem: 397), quer dizer, por vir definida a priori, ela perdeu seu caráter espiritual, filosófico e metafísico que foi substituído por uma formação controlável regida por meio de normas e qualificações. Pior, é altamente seletiva porque atende a critérios avaliativos meritocráticos subjugados a um contexto de privilégios. Essa é uma educação que caminha na contra-mão de uma verdadeira “educação” no sentido kantiano 5, que “deve ser adaptada ao Homem e não aos interesses particulares ou transitórios da economia, da política, nacional ou internacional, das ideologias arraigadas em preconceitos, nacionalidades ou culturas” (LIMA, 1998: 13). Esse equívoco da natureza e condução da educação é muito bem sintetizado por Policarpo Jr. (2006): Quando a educação se subsome completamente aos ditames de uma sociedade ou cultura, aquela dimensão educativa praticamente se extingue, o que necessariamente implica a falsificação da prática e do próprio conceito de educar. Uma vez que esse acontecimento não é raro na educação, a teorização sobre o educar muitas vezes termina por consagrar essa subordinação da educação aos ditames sociais e culturais (POLICARPO Jr., 2006: 5). Entretanto, apesar deste clima cético com que Adorno (1996) trata da questão da formação cultural, ao mesmo tempo ele aponta alternativas para ela quando assinala o fato de que a asserção da universalidade da semicultura é indiferenciada e exagerada, pois seria possível a inúmeros trabalhadores, pequenos empregados e outros grupos não 5 Unicamente pela educação o homem pode chegar a ser homem (KANT, 1983: 31). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6556 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? caírem na sua tentação, motivados por resquícios de uma consciência de classe. Martin Jay (1988), confirma a assertiva quando afirma que “muito embora Adorno enfatizasse o atual poder ‘do sempre igual’ (...) o fazia na esperança de acabar com o seu domínio no futuro” (JAY, 1988: 99). Portanto, com base neste entendimento de formação cultural elaborado pelos teóricos da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno e Horkheimer, o nosso trabalho pretende discutir como os currículos influenciam a organização e a transmissão do saber cultural escolar e quais as contribuições do conhecimento produzido para a transformação da escola a fim de que ela favoreça uma formação cultural desalienante da onipresença do mercado e dos arranjos deformativos advindos dele e possa se preparar para realizar as promessas liberais6, que nunca foram cumpridas, “de uma humanidade sem status e sem exploração” (ADORNO, 1996: 392). Uma formação para a autonomia do indivíduo e não apenas para a sua cidadania no sentido formal, que conforme assinala Lenhardt (1996), propicie uma educação que não seja semiformação, mas formação. 2. FORMAÇÃO CULTURAL: PRESSUPOSTOS NA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR A formação cultural costuma ser presa fácil do modelo hegemônico, porque, em geral, este determina, através das estratégias estabelecidas nas políticas públicas e na sua concretização no interior da escola, o que pode ou o que não pode ser considerado válido. Um exemplo típico desse controle está presente no currículo escolar porque ele serve, na maioria das vezes, para legitimar o aprisionamento das idéias e das experiências dos indivíduos, ao invés de cumprir, como advoga Matos (1996), o papel de fomentador de uma educação para a sua emancipação. Nas palavras da autora, “compreender seu eclipse é interrogar a permanência da barbárie no interior da 6 Segundo Lenhardt (1996), Adorno ao teorizar sobre a semiformação, mostra o fracasso da educação liberal. Esta não seria uma educação para a emancipação, para a autonomia, não por alguma falha por parte dos indivíduos em incorporarem a cultura, mas por uma razão objetiva – porque a própria estrutura da cultura o impede. Isto é, o predomínio do princípio de troca do capitalismo impede a autonomia dos indivíduos e, por isso, a educação para a autonomia fracassa e necessariamente resulta em semiformação. Carlos Antônio Barbosa Firmino 6557 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? civilização, e questionar as relações entre autonomia e repressão para que Auschwitz7 não se repita” (MATOS, 1996: 22) Segundo ela, na concepção adorniana, há barbárie sempre que qualquer grupo se auto-intitule representante legítimo da organização social e, para alcançar o seu intento, se utilize da violência física, dos genocídios, racismo, tortura, fundamentos religiosos e guerra. O resultado deste processo é confirmado por uma ação docente que é pouco consciente, em que o professor celebra rituais pedagógicos sem uma reflexão profunda sobre o seu conceito, reproduzindo práticas tradicionais ou deixando-se levar por mudanças periféricas. O ambiente social e cultural em que vive o professor interfere fortemente no ensino, que é uma prática social. Esta prática se concretiza pela interação entre professor e alunos tendo reflexos sobre a cultura e os contextos sociais a que pertencem. Dessarte, para que possamos entender a formação cultural precisamos desnudar uma das principais estruturas sociais onde ela é gerada – a escola. Como falamos de formação, por zelo de concepção, nos obriga primordialmente verificar a prática pedagógica que vigora na maioria das nossas escolas mesmo porque, conforme ressalta Silva (1999), ainda que tenhamos avançado na produção de conhecimentos teóricos, a prática pedagógica, na maioria das nossas escolas, ainda não sofreu modificações mais substantivas. É essencial compreendermos o contexto histórico-social em que essa prática é produzida e, especialmente, como condiciona seus principais atores. Nesse sentido, estudar a natureza do conhecimento escolar como formação cultural é procurar entender os conteúdos escolares e o currículo que os orienta sob o ponto de vista ideológico, ou seja, compreender a quem eles servem para definirmos, conforme assinala Silva (1999), qual o nosso lado no jogo. Isto porque, a estrutura dos conteúdos e da organização escolar manifesta uma posição teórica de conceber o conhecimento e revelar de que forma a civilização o produz e o consome, mesmo quando sabemos que “nem todo conhecimento humano é necessário para a perpetuação da cultura humana, ou mesmo passível de ser ensinado” (LOPES, 1999: 84). Nós professores, não temos tido a oportunidade de refletir sobre as nossas próprias concepções de cultura e como as veiculamos no processo de ensino que 7 Auschwitz é o nome do campo de concentração onde, na Segunda Guerra Mundial, milhões de judeus foram executados pelo nazismo de Hitler – “emblema do mundo administrado – não é um acidente de percurso político, mas o resultado do vitorioso desenvolvimento da ratio, cuja matriz é a ciência moderna, desde Bacon, vinculada ao desenvolvimento industrial agressivo, sob auspícios expressamente materiais” (MATOS, 1996: 22). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6558 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? desenvolvemos. Muito menos temos analisado estas concepções como definidoras de formas de organização curricular e da maneira como selecionamos e desenvolvemos os conteúdos escolares. Se a intervenção pedagógica do professor é influenciada pelo modo como pensa e age nas diversas facetas de sua vida, é fundamental analisar alguns conceitos envolvendo a formação cultural e a prática escolar que os determina. O primeiro conceito diz respeito aos conhecimentos produzidos pela humanidade e a forma que estes conhecimentos devem ser repassados. Numa primeira interpretação, cabe ao professor repassá-los com segurança e certeza. Nada deve ser questionado, e o aluno deve ser alguém que reproduz, fielmente, aquilo que a escola ensina. Ora, esta é uma compreensão equivocada, porque o conhecimento, ao contrário, é dinâmico e sempre relativo. Compõe um processo histórico e sempre inacabado. O que vale hoje pode não valer amanhã, porque novas descobertas e análises já superaram as anteriores. Dessa forma, a não-superação da autoridade educacional, mas só sua negação; a ênfase em conteúdos exatos e lógicos sem maior atenção para a imaginação; a transmissão de informações que devem ser substituídas rapidamente pelas mais atuais dificultam qualquer possibilidade de formação de um indivíduo que, ao poder perceber as contradições da realidade, possa resistir à adaptação heterônoma. (CROCHIK, 1996:98). Na escola, dificilmente esta percepção é passada aos alunos. Em geral, os conteúdos são dados como definitivos e sinônimos de verdades inquestionáveis. Não há a preocupação de fazer o aluno entender em que contexto eles foram produzidos e, muito menos, de tomá-los como relativos. Daí, segundo Adorno (1996), dá-se a consciência progressivamente dissociada, que faz com que o conteúdo dos bens culturais seja entendido em seu sentido isolado, dissociado das coisas humanas e, se esquecendo disso, a formação absolutiza-se e converte-se em semiformação. Os próprios professores não produzem os conhecimentos que são chamados a produzir, e, muitas vezes, o domínio estrutural de sua matéria de ensino deixa muito a desejar. Reforçam esta concepção as relações de poder que estão presentes na organização escolar, em especial a avaliação. Embora o poder do castigo físico tenha sido legalmente abolido das escolas, a “violência persiste como realidade, pois os professores exercem ações autoritárias que se estendem desde o castigo físico mesmo Carlos Antônio Barbosa Firmino 6559 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? até formas mais sutis e ‘modernas’, como o uso da avaliação para oprimir o alunado” (OLIVEIRA, 1994: 130). Um segundo conceito reivindica um conhecimento neutro, livre de implicações sociais e políticas. Esta perspectiva foi absurdamente instalada na comunidade escolar na tentativa de servir àqueles que estavam interessados em que o processo educativo não fosse emancipatório, capaz de instrumentalizar os homens para pensar e tomar decisões. Ora, é óbvio que os resultados de uma formação que tenha este sentido não se sedimentam porquanto o homem é um ser axiológico por excelência: nada do que ele faz está liberto de valores. De acordo com Prestes (1994), o próprio papel da escola está subjugado à razão subjetiva. Quando definimos produzir um conhecimento que responda a um tipo de problema já estamos evidenciando que há um tipo de interesse que move a ação investigatória. Um terceiro conceito se prende à idéia da separação entre teoria e prática e, na mesma direção do anterior, também tem servido de escopo para manter o saber cultural e o conhecimento escolar deslocado do fazer dos homens. Para muitos de nossos alunos e até alguns professores, a construção do conhecimento sistematizado não consegue revelar a relação entre teoria e prática posto que para eles, na maioria das vezes, a teoria tem que vir primeiro do que a prática. Ora, para quem realmente tem compromisso com uma boa formação, é absolutamente claro que a teoria e a prática são duas faces inseparáveis do mesmo ato de conhecer. Corroborando com este entendimento, Pucci (1994), se referenciando em Adorno, ressalta que “se a prática fosse o critério da teoria, ela não poderia alcançar o que pretende; se a prática se orientasse apenas pelas diretrizes da teoria, se endureceria doutrinariamente e falsificava a teoria” (PUCCI, 1994: 44). É “na intersecção da teoria com as várias práticas educacionais existentes, historicamente localizadas, que se podem plantar as bases do desenvolvimento dos vários currículos críticos e progressistas ou das várias pedagogias críticas” (SILVA, 1992: 36). Um quarto conceito prediz que o ato de conhecer requer, especificamente, um esforço individual. Ser individual é ser unidade vital de particularidade e genericidade tendo em conta que a proporção entre estes valores “variam de indivíduo para indivíduo, em função das relações sociais, das quais é parte integrante e atuante” (LOPES, 1999: 140). Toda nossa organização escolar está centrada no individual, propondo, inclusive, aparatos que procuram dificultar a comunicação entre os aprendizes. Isso acontece Carlos Antônio Barbosa Firmino 6560 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? porque o entendimento que se dá hoje à individualidade é o recorrente da determinação capitalista, ou seja, de total adaptação. “A defesa do indivíduo serve à sua libertação se levada a efeito dentro da história da sociedade que o escravizou em nome da emancipação” (PALANGANA, 1997: 203). Segundo Adorno (1996), na atualidade, quanto mais o indivíduo acha que é, menos ele é, e o pior, mais é coisificado pela ausência de identidade. A estrutura política-econômica imutável desumaniza porquanto obriga as pessoas a viverem uma individualidade fictícia. “O cativeiro do espírito é real. E, o que é pior, o cativeiro é apreendido como liberdade, de modo que o indivíduo não tem consciência da sua escravização” (PALANGANA, 1997: 206). É nessa percepção que se organizam os espaços de sala de aula, as tarefas de ensino e os procedimentos de aprendizagem. O conceito de disciplina é tomado na perspectiva do bom comportamento, que, em geral, é sinônimo de imobilismo, ordem, passividade. A obediência, neste paradigma, é o valor maior. A competência, sinônimo de competição, é bastante estimulada, inclusive com prêmios e castigos. Qualquer movimento dos alunos no espaço escolar, fora dos muros da sala de aula, é visto com cautela pela estrutura organizacional da escola. O ideal é que eles fiquem quietos e sós com sua capacidade de pensar8 em segundo plano. O último conceito se refere às ações desmotivadoras que envolvem os processos de aprendizagem. Quando se libertam as idéias literárias ou satíricas sobre a escola, é que se percebe o quanto a experiência escolar é vista como algo cansativo e enfadonho quer dizer, fica sempre o entendimento de que “dentro das paredes da escola desenvolve-se uma vida que não é, de fato, a vida e que, portanto, todos os que lá se encontram em múltiplas atividades e reflexões estão fora da vida” (OLIVEIRA, 1994: 133). As nossas lembranças da escola, fora as relações pessoais e as experiências particulares, são na maioria das vezes negativas. Para que esse processo seja revertido, segundo Snyders (1988), é necessário desorganizar, a partir de novos conteúdos, o abismo entre o que a escola é e o que poderia ser. Trata-se de conceber a apropriação cultural como algo gratificante, se provida de um sentido. Se os alunos forem 8 “Devido às mudanças que vêm sendo feitas na base técnica e organizacional do processo produtivo, a intervenção na subjetividade, na consciência, na conduta, no disciplinamento do indivíduo, é considerada estrategicamente fundamental. Donde se percebe que, a capacidade para pensar, antes referida, se estabelece regulada de perto pelas necessidades do capital” (PALANGANA, 1997: 182). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6561 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? partícipes da construção do conhecimento, e se este conhecimento tiver algum significado para eles, certamente viverão, ao aprender, uma experiência prazerosa. Como podemos perceber, estas são algumas posturas sobre a formação cultural na escola que, historicamente, foram passadas aos docentes, por meio da sua trajetória escolar e acadêmica, e precisam ser examinadas com maior profundidade. Se os professores estão insatisfeitos com a prática escolar que têm, se desejam fazer que o ato pedagógico seja mais adequado a uma concepção crítica de educação, que responda aos desafios da modernidade, sem dúvida, é necessário que revejam suas crenças sobre cultura e, nela, a percepção que está contida de mundo e de sociedade. Nesse sentido, ao falarmos em educação, temos como anteriormente referenciado, a perspectiva de uma formação cultural ética, crítica e emancipatória, capaz de preparar o homem para intervir historicamente na sociedade em que vive. Assim, o ponto de partida para a análise da seleção de conteúdos escolares é o compromisso com a mudança que nos leve à construção de um saber escolar mais estimulador da inteligência e da independência do pensamento. Essa construção não é aleatória, solta, mas dependente da forma como o currículo é assumido no espaço da organização escolar. 3. O CURRÍCULO: LIÇÕES E DÚVIDAS PARA UMA FORMAÇÃO CULTURAL É fácil perceber que as mesmas concepções equivocadas de formação cultural se repetem e se multiplicam na organização curricular. Esta organização é fruto de uma política curricular que, segundo Dias & Abreu (2006), é definida em três contextos: o contexto da influência, no qual as definições e os discursos políticos são iniciados e/ou construídos; o contexto da produção, no qual textos com as definições políticas selecionadas anteriormente são produzidos; e o contexto da prática, no qual as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas. Ela é a expressão da transmissão cultural na escola, entendida, aqui, como aquilo que se ensina, a maneira como se portam os alunos e o que realmente a escola assume como aceitável. Dessa forma, estamos tomando o conceito de currículo no seu sentido amplo, isto é, na sua intenção, elaboração, implementação e todas as experiências escolares vividas pelos alunos. Isso Carlos Antônio Barbosa Firmino 6562 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? significa analisar as suas intenções, não apenas as de caráter explícitos, mas, também, as embutidas nas ações da comunidade social e denominadas de currículo “oculto”. O currículo oculto, conforme assinala Oliveira (1994), é composto pelo conjunto dos valores culturais que, por não serem explicitados nem tornados conscientes, suplantam os oficialmente codificados. São ocultos para quem os recebe, mas explícitos para quem os elabora. Por não constarem dos documentos oficiais, surgem a partir da história de vida e das experiências cotidianas dos aprendizes, tais como os preconceitos de classe, de sexo e de raça e, freqüentemente, são veiculados pelos próprios professores, pelos livros didáticos9 e pelos meios de comunicação de massa, principalmente o rádio e a televisão. Pior, esses conteúdos são determinados e regidos pela chamada Indústria Cultural10. É ela que orienta a postura ideológica que está presente na relação pedagógica e, que é a responsável, por passar formas de pensamento e de ação. “Não é mais novidade alguma o conhecimento de que a cultura, sob o capitalismo, se tornou indústria. Há muito tempo que ela deixou de ser o acervo de obras singulares e processos capazes de cultivar o espírito, restando apenas vestígios de realizações singulares não massificadas” (POLICARPO Jr., 2000: 143). Na Indústria Cultural, os indivíduos estão privados da atividade intelectual, da crítica e da opção e atrofiados de sua espontaneidade e imaginação. Resta-lhes o “desideratum da acomodação, da adaptação aos esquemas de dominação progressiva, da domesticação animal, da integração na sociedade planificada pelo capital” (PUCCI, 1994: 28). É a democracia liberal que ostenta “a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (ADORNO & HORKHEIMER, 1986: 156). Assim, as formas dominantes dos currículos escolares refletem as idéias predominantes na sociedade. Talvez por isso, “não concebemos, ainda, nenhuma 9 “O livro didático não é apenas um reprodutor das políticas curriculares, na medida em que o campo editorial se apropria das concepções das propostas oficiais e da prática e as reinterpreta de acordo com as suas próprias concepções e finalidades. Novos significados e interpretações formam-se, influenciando não só o contexto escolar como também os contextos que lhe deram origem” (DIAS et ABREU, 2006: 301). 10 A Indústria Cultural transfere a magia do conhecimento para o mero fazer, formaliza a razão intelectual como meio de produção maquinal que acaba institucionalizando a injustiça, disseminando o ódio e a destruição dos ideais humanos em favor do caráter da necessidade e objetividade. Conforme ressalta Horkheimer (1971), ela é uma manifestação viva da razão instrumental e seus produtos certamente vão ser consumidos indistintamente. Ela confere a tudo um ar de semelhança organizando a sociedade para o pensar e o agir totalizante. “Esta totalização inversora, esta necessidade do capitalismo em submeter toda experiência do diferente ao sempre igual, ao idêntico, seria, na designação de Adorno, a ‘sociedade integral’, a chamada ‘sociedade global’, uma socialização que inverte e oculta sua essência social efetiva (MAAR, 1996: 65). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6563 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? maneira de fazer o currículo oculto funcionar em favor de objetivos mais democráticos e igualitários” (SILVA, 1992: 29). Nesse sentido, a função da escola não é só de instruir, mas, sobretudo, educar. Cabe aqui ressaltar que apesar de ser a escola instrumento inequívoco de reprodução social, também é espaço de resistência. Numa visão dialética da compreensão da “realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação” (KONDER, 1981: 8), é ao mesmo tempo reprodutora do pensamento social dominante como capaz de produzir a mudança. Corroborando com o tema, Oliveira (1994) nos diz que “como todas as instituições criadas pelo homem, a escola é ambígua, mas é ambígua porque, acima de tudo, é uma realidade dialética. Tem plasticidade. Pode ser transformada. Pode transformar também” (OLIVEIRA, 1994: 137). Sobre a resistência, é tratada por teorias que procuram explicar como determinados segmentos da sociedade, em momentos específicos, produzem comportamentos alternativos que procuram romper com a ordem vigente. Esta é uma característica humana que é o motor da história, sendo responsável pelas grandes transformações e revoluções. Corrobora com a assertiva Crochik (1996), quando admite que “o indivíduo, ao mesmo tempo em que deve se reconhecer na cultura, deve também negá-la. Negá-la quando não contempla suas razões e seus motivos, quando pela sua irracionalidade fomenta a irracionalidade individual” (CROCHIK, 1996: 91). Portanto, para contrapor a ordem dominante precisamos admitir que a reprodução e resistência, compõem o currículo oculto e precisam ser tomadas na escola como valores pedagógicos. Quanto aos aspectos formais do currículo, as chamadas grades curriculares ou, atualmente, matrizes curriculares, são objetos permanentes de avaliação que, quando desgastadas, necessitam ser reformadas. Entretanto, Adorno (1996), já advertia que é impossível às reformas pedagógicas, mesmo que consideradas indispensáveis, isoladamente, contribuir de forma efetiva para a superação da crise, podendo, inclusive, em alguns casos, até reforçá-la, uma vez que elas poderiam abrandar “as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação diante do poder que a realidade extra-pedagógica exerce sobre eles” (ADORNO, 1996: 388). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6564 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? Por certo, podemos reconhecer que os problemas vivenciados com os currículos são mais profundos do que uma simples alteração da matriz curricular. Um deles é sua concepção positivista. De acordo com essa concepção, o conhecimento se origina a partir de um real dado em que a razão deve se apoiar. O real é um todo único, composto de fatos, fenômenos que se apresentam como (...) única razão capaz de dar conta da multiplicidade desconexa” (LOPES, 1999: 38). Parte do geral para o específico, do abstrato para o concreto, do teórico para o prático, do básico para o profissionalizante. Segundo Oliveira (1994), “as contaminações positivistas já enterraram muito sonho, muita luta e muito heroísmo humano nas malhas de seus enganos” (OLIVEIRA, 1994: 138). O pressuposto deste modelo é o de que primeiro o aluno tem de aprender os conteúdos gerais, para depois tentar aplicar ou reconhecer a aplicação destes conteúdos na realidade. Isso não se efetiva porquanto nos estudos iniciais o aluno não encontra significado para a aprendizagem, porque não consegue relacionar os conteúdos com sua aplicação. Eles estão fracionados, descontextualizados, não geram problemas. Sem questionamentos não se estimula o pensamento criativo e estaciona-se no ensino reprodutivo, com ênfase na repetição e na memória, uma memória que segundo Palangana (1997) é alienante porque a atividade gasta na sua construção está centrada na adaptação ao existente. Em resumo, a lógica positivista revela “a classificação, a fragmentação do saber, a desvinculação com uma verdade universal e o atrelamento ao chamado ‘interesse pessoal (no caso o interesse de grupos sociais) presentes nos processos educacionais” (PRESTES, 1994: 97). Quanto ao professor, ele é o centro do processo de ensino; detém toda a informação e conhecimento e, para a sua transmissão, utiliza métodos que praticam a certeza e a resposta única em detrimento da dúvida. Segundo Lopes (1999), os professores trabalham com regras e valores já previamente estabelecidos pelos acadêmicos especialistas e pesquisadores da área e que determinam a seleção de conteúdos da matéria a ser ensinada. “Os estudantes são iniciados numa tradição competitiva, que gera violência, que não observa “o entendimento do significado da própria competição” (CROCHIK, 1994: 99) e, suas atitudes, aproximam-se da passividade e da resignação – um prelúdio ao desencantamento” (LOPES, 1999: 169). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6565 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? Outro problema freqüente é a quantidade de carga-horária que compõem as matrizes curriculares e, pior, com o aval da maioria dos professores, como se esse fator fosse garantia de qualidade. É coerente, também, com o paradigma de ensino reprodutivo, com centralidade no tempo do professor, que carrega muitas informações a transmitir a alunos dispostos a ouvirem, exercitarem e reproduzirem aquilo que ouviram. Essa prática se perpetua numa rotina que concentra um grande número de aulas não sobrando tempo para o aluno utilizar uma boa biblioteca, pesquisar ou exercitar sua capacidade intelectual e criativa. Não podemos, ainda, deixar de considerar a questão da interdisciplinaridade. Como os conhecimentos são organizados de forma estanque, hierarquizados, em disciplinas, a preocupação é sempre verificar o que deve e o que não deve ser ensinado em cada matéria escolar, entre o que faz parte do campo científico de uma área do conhecimento e o de outra. Essa fragmentação faz com que os professores supervalorizem o seu campo de conhecimento, iluminando-o como objeto de estudo, em detrimento dos demais. Dias e Abreu (2006), corroboram com o enunciado observando que na elaboração dos materiais didáticos os professores levam em consideração apenas os interesses e concepções incorporadas pelo seu grupo disciplinar, desprezando outros discursos curriculares. Uma última questão importante a considerar é o próprio enquadramento a que está sujeito o conhecimento escolar, ou seja, tudo que não se enquadra na matriz curricular oficial não tem significado, é desprezível. Esta perspectiva desconecta o saber científico, com seus conhecimentos anteriores, do saber cotidiano; o aluno é visto como tabula rasa, como alguém que é ignorante, com baixo status e poucos direitos. “E amalgamados aos conhecimentos, estão os preconceitos, as imagens familiares, a certeza das primeiras idéias” (LOPES, 1999: 128). De acordo com a força dos enquadramentos, o conhecimento é considerado num contexto em que o professor tem o controle ou vigilância máxima, não sendo visto como um direito a ser alcançado, mas qualquer coisa de sagrado, que tem de ser ganho ou merecido. Carlos Antônio Barbosa Firmino 6566 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas continuidades e rupturas do currículo apresentadas, percebemos que para alcançarmos uma formação cultural que se funde na emancipação e autonomia dos alunos, é preciso rediscuti-los em toda sua dimensão, seja pelo fator consensual da tradição que carrega, pelo controle das regulamentações estatais, pela natureza de suas determinações e pelo plano das disciplinas e suas respectivas cargas-horárias. Esta discussão tem que ser feita a partir das bases, com a participação dos interessados diretos, a própria comunidade escolar para que possam reunir forças contra todos os tipos de controle e determinação. É preponderante a compreensão de que a escola e o currículo não são motores da história, a origem de todos os problemas do capitalismo. O que é fundamental para a mudança da ordem social vigente, não é que as escolas sejam espaços dotados de plena democracia, mesmo porque isto pouco afetaria a estrutura dominante, mas que, a sua função de reprodutora do processo de acumulação e legitimação do modo de produção capitalista seja desviado para o que ela é centralmente responsável, a formação de homens descomprometidos com a exploração e o controle da natureza e dos seus semelhantes. Se o projeto de humanização não está presente na educação, então não é educação. Nesse sentido, para que ela seja exercida em sua plenitude, é necessário que primeiro entendamos o que é “ser humano”, o que ele foi, está sendo e deverá ser, pois “decifrar o mistério que nos torna humanos é o primeiro passo para impedir que um dia possamos ser desumanizados” (LENT, 2006: 13). Se, estamos indo nessa direção, isso já é humano. As chamadas Pedagogias Progressistas11 foram tentativas de uma formação com essa concepção. Entretanto, elas ainda não se efetivaram nos sistemas de ensino. Isso se explica pelo predomínio da razão formalizada em todas as esferas da sociedade que impedem a evolução de projetos emancipatórios. “Freqüentemente essas experiências são obstaculizadas por interesses reacionários e falta de investigação sistemática” (PRESTES, 1994: 99). O certo é que, se essas pedagogias progressistas conseguem 11 “As pedagogias progressistas referem-se àquelas propostas que pretendem vincular o processo educativo à promoção da consciência crítica, através de um processo de libertação pessoal das condições de opressão, de forma que, sobretudo as classes subalternas brasileiras e latino-americanas, possam assumir seu papel de sujeito da história. Paulo Freire é a maior expressão desse pensamento no Brasil” (PRESTES, 1994: 99). Carlos Antônio Barbosa Firmino 6567 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? produzir alguma mudança na escola, refletem na comunidade um sentimento teleológico de possibilidade de transformação da sociedade. Ainda que saibamos que os currículos escolares “não são um empreendimento neutro, puro e inocente e, igualmente, não são meros cúmplices servis dos poderes” (LOPES, 1999: 117), ainda que certos educadores o sejam, no cotidiano escolar nos tornamos inertes quanto ao modo de agir contra ele porque nossas atitudes de mudança continuam dominadas pela burocratização, centralização, regulamentações, conceitos reificados e tradições eternamente estabelecidas. Precisamos de uma educação que seja em todas as suas dimensões política-social-econômica, subsumida por um currículo crítico e/ou progressista que possibilite a preservação de nossas escolhas, que dê conta de desnudar os arranjos sociais existentes, disseminadores de atitudes machistas, racistas e de exploração humana. Adorno (1996) nos alerta que a falta de reflexões sobre esse tipo de educação alimenta um narcisimo coletivo de que não há nada a fazer. Um verdadeiro conformismo se instala. É como se tudo fosse de responsabilidade de um ser mais elevado e amplo, que tudo determina e todos devem a ele obedecer naturalmente, sem resistir, porquanto não há nada a fazer. Esse conformismo coletivo produz nos indivíduos a sensação de estarem a par de tudo, de serem bem informados, levando-os a uma acomodação frente a sua situação cultural, não se contrapondo a ela e, ainda, apoiando as suas determinações. Este currículo não virá por decreto, goela abaixo, deve surgir do encontro de educadores, estudantes e de pessoas envolvidas em lutas específicas e comprometidas com uma revolução cultural de utopias indefinidas pela libertação do homem e do processo educativo conservador. É imprescindível que seja rompido o isolamento entre as esferas teórica e acadêmica para que o conhecimento produzido sobre educação e currículo não se feche, em torno de si mesmo, num movimento de auto-satisfação. Este rompimento se traduziria numa integração de ambas propiciando um grau acentuado de cooperação entre professores e pesquisadores de todos os níveis de ensino, organizações não governamentais e organizações populares como sindicatos e associação de moradores. É preciso pensar novas alternativas para dar resposta a estas questões educacionais intermitentes que historicamente, nunca tiveram solução. É “no encontro Carlos Antônio Barbosa Firmino 6568 A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica e emancipatória? da teoria com a História que residem nossas esperanças de uma educação e de uma sociedade mais democrática” (SILVA, 1992: 39). Para finalizar, sem que façamos uma reflexão profunda sobre este estado coisificado pelo espírito de feitiço da mercadoria, que inculca nas pessoas a necessidade ilimitada do consumo desnecessário, da efemeridade dos objetos e do pensamento universal e homogêneo, continuaremos investindo indefinidamente, em reformas que nunca alcançarão a qualidade de ensino tão propalada e, por conseguinte, uma formação cultural ética, emancipatória; que seja digna de preservação; que resgate nos indivíduos o dom da solidariedade e lhes devolva uma racionalidade verdadeiramente desinteressada e humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Teoria da semicultura. In: Educação e Sociedade, nº 56. Campinas, SP: Papirus, 1996, p. 388-411. ADORNO, Theodor W. et. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 1ª ed. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. CROCHIK, José Leon. Notas sobre psicanálise e educação em T. W. Adorno. 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É precisamente esta questão que pretendemos explorar, a partir das análises de alguns exercícios propostos nos livros didáticos e das orientações de respostas apresentadas nos manuais do professor de coleções avaliadas e classificadas pela edição de 2008 do Programa Nacional do Livro Didático. Apoiadas na contribuição da teorização social do discurso (LACLAU & MOUFFE, 1995) trabalhamos com a hipótese de que os conhecimentos escolares são produzidos em meio a um sistema de diferença que pode ser apreendido em dois planos estreitamente relacionados, mas que nem sempre operam da mesma forma. No primeiro plano, o que está em jogo é a sua condição de conhecimento “verdadeiro”, o segundo envolve, mais diretamente, a produção de narrativas identitárias que este tipo de conhecimento contribui para fixar em sua condição de vetores de múltiplos fluxos culturais. Neste artigo, compreendemos que tais práticas espaciais , validadas como conhecimento escolar, são enunciados de práticas sociais de fixação da alteridade que mobilizam diferentes recursos retóricos na luta hegemônica travada neste campo da discursividade. PALAVRAS-CHAVE: currículo, diferença, conhecimento escolar, espaço geográfico. (...) a questão do outro está mal colocada na tradição ocidental, o outro é sempre o outro do mesmo, o outro do próprio sujeito e não um outro sujeito a ele irredutível e de dignidade equivalente. Isto significa que ainda não existiu realmente o outro para o sujeito filosófico, e mais geralmente o sujeito cultural e político, nesta tradição. (IRIGARAY, 2002) Falar da produção do “outro”, da diferença, não é novidade no campo do currículo. Diria mesmo que não apenas a discussão está posta como o significado do “outro” tem sido objeto de disputa entre os representantes deste campo. Afinal , quem é esse “outro” dos currículos escolares? Esse texto se insere nesse debate e, sem pretender responder a essa pergunta, aceita a provocação que ela encerra. É assim, mais um texto Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6575 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia que pretende entender os mecanismos discursivos da produção da diferença nos currículos e que para tal investe na potencialidade analítica de pensar o campo da discursividade como terreno das lutas hegemônicas. Um texto que, apoiado na concepção de discurso de Ernesto Laclau e Chatal Mouffe ( 2004) não nega a existência do objeto fora do discurso, mas afirma que nada tem sentido a não ser no interior de um discurso. (JARDIM PINTO,1999) Um texto pois, que não fala de “culturas diferentes” para argumentar a favor de identidades coletivas plurais do ponto de vista de raízes, de fundamentos, de origens Um texto que não aposta em sentidos pré-definidos, em identidades puras, ou memórias comuns “ancestrais”, a não ser como estratégia de luta onde se lança mão de “essencialismos estratégicos” para usar uma expressão de Gayatri Spivak, ou se inventam tradições como já argumentavam os historiadores Hobsbawn e Tanger nos idos dos anos 80. Um texto que embora aposte na diferença, na heterogeneidade, na proliferação de sentidos, na provisoriedade, na instabilidade, no movimento, em fluxos culturais que se hibridizam em permanência nas leituras de mundo em disputa, se distancia das análises celebratórias de afirmação das diferenças.Um texto que desse modo aposta em uma nova ordem política do cultural para pensar politicamente o campo do currículo (MACEDO, 1996). Mais um, que busca alternativas teóricas para pensar e combater reprodução das relações assimétricas de poder que ocorrem no plano da distribuição e classificação dos conhecimentos científicos. Mas um texto que ainda quer falar de escola, de cultura escolar, de conhecimento a ser ensinado e aprendido. Um texto que quer continuar investindo no sentido de “escola pública” como espaço de possibilidade de subversão e para tal se propõe a explorar os mecanismos discursivos que dificultam essa possibilidade. Não pelo prazer da denuncia, mas pelo entendimento que uma melhor compreensão da lógica da dominação pode contribuir para a reinvenção da emancipação social. Um texto que ainda acredita na crítica radical como importante instrumento de luta. Conhecimento escolar, fluxos culturais, diferença, Como as demais escritas, esta traz a marca da autoria, do lugar de onde se enuncia. Marca comum, a autoria é, no entanto, o que também lhe diferencia dos outros, Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6576 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia pois só pode ser singular. Singularidade essa, expressa na forma de entrar no debate, “carregando” sentidos disponíveis e projetando outros nos espaços discursivos onde a temática da produção da diferença é pensada. Entendendo currículo como “um espaço-tempo de fronteira entre saberes” (Macedo, 2006:105), continuamos apostando na politização do campo por meio do enfrentamento teórico em relação à questão do conhecimento. Interessa-nos neste texto perceber como a lógica política que produz o outro, seja como “fonte de todo o mal”, “como sujeitos plenos de uma marca cultural, ou ainda como “alguém a tolerar”(DUSCHATZY e SKLIAR, 2001)) se faz presente ou se “deixa ver” também por de dentro dos conhecimentos legitimados como verdadeiros e válidos a serem ensinados e transmitidos às gerações futuras. Como “textos particulares”(HOWARTH, 2005), produzidos pois, em condições históricas específicas, os saberes escolares reatualizam mecanismos por meio dos quais, o significado é produzido, fixado, contestado e subvertido. (HOWARTH, 2005, p. 342) 1. Afinal, como afirma Veiga-Neto (2000) os saberes escolares não estão soltos no mundo, e sim “mais ou menos ligados por outros enunciados, numa série discursiva que institui um regime de verdade fora do qual nada tem sentido. A idéia aqui é a de analisarmos os processos de fixação de significado de alguns conhecimentos geográficos que ocorrem em meio a um sistema de diferenças lingüísticas. Isso significa explorarmos, no campo da epistemologia social escolar, a seguinte afirmação: “algo é o que é somente por meio de suas relações diferenciais com algo diferente” (LACLAU, 2005, p. 92). Saberes esses que, nessa perspectiva passam a ser vistos como significantes cujos significados são provisoriamente fixados sempre de forma incompleta, em movimento instável e ambivalente. Saberes–palavras, palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos [ e que] são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga 1 Embora não seja o foco desta nossa análise, importa salientar que essa afirmação não se pauta, todavia, no entendimento de “verdade” e de “conhecimento” como equivalentes ou redutíveis a “poder”. Howarth (2005) quando afirma que o conhecimento resultado de pesquisa está “sujeito aos limites habituais da evidência confiável, objetividade e consistência interna, consoante com os regimes de verdade prevalente” (Howarth, 2005, p.328), nos oferece elementos para pensar igualmente a dimensão objetiva do conhecimento escolar que pela complexidade da tarefa não pode ser feita nos limites desse trabalho. Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6577 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras ( LARROSA, 2002,p.21) Saberes pois, atravessados por “fluxos culturais” (APAPDURAI, 2001 BHABHA, 2003) híbridos e em processo de fixação provisório e hibridização permanente. Saberes que reatualizam e subvertem leituras de mundo onde o jogo de interpretação na luta hegemônica acontece, com o intuito de dominar o campo da discursividade. Neste trabalho apostamos que as contribuições da teorização social do discurso na perspectiva privilegiada na nossa análise, permitem potencializar a carga analítica da noção de “colonialidade do saber” (QUIJANO, 1999) elaborada no âmbito dos Estudos pós-coloniais latino-americano. Esta noção ao denunciar a “violência epistêmica”(SPIVAK, apud, CASTRO-GOMEZ, 2005) que está na emergência das ciências sociais e é elemento constituinte do próprio projeto de modernidade, nos indica pistas de fluxos culturais que qualificam as disputas que ocorrem em textos curriculares nos quais são produzidos e recontextualizados os saberes escolares disciplinares, no caso desse texto, os do campo da Geografia. Com efeito, na perspectiva dos estudos pós-coloniais latino-americanos, a análise do projeto da modernidade deve incluir, como elemento chave, para a sua compreensão o colonialismo europeu do além-mar, responsável, nesse quadro teórico, pela dominação não apenas de bens materiais mas também de bens simbólicos. E é nesse movimento que as ciências sociais emergem para justificar e fundamentar a invenção do “outro” não-colonizador como “o outro” da razão”, (re)configurando o espaço epistemológico onde são travadas as lutas pela legitimidade e veracidade em torno do conhecimento produzido sobre o mundo. A análise que nos propomos trabalha com a hipótese de que os conhecimentos escolares são produzidos em meio a um sistema de diferença que pode ser apreendido em dois planos estreitamente relacionados, mas que nem sempre operam da mesma forma. No primeiro o que está em jogo é a sua condição de conhecimento “verdadeiro”, condição essa cujo significado se fixa nos limites dos regimes de verdade prevalentes nos domínios discursivos disciplinares aos quais estão relacionados. Isso significa dizer que, esse “algo-saber–verdadeiro e legítimo”, considerado como conhecimento válido a ser ensinado nas escolas, é fixado como tal em relação a “algo-saber não-verdadeiro e não-legítimo”. É neste primeiro plano que a noção de “colonialidade do saber” permite Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6578 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia perceber como o significado de verdade, em particular no âmbito das ciências sociais, está investido de marcas eurocêntricas. O segundo plano do sistema de diferenças no qual são fixados os sentidos de “conhecimento escolar”, envolve, mais diretamente, a produção de narrativas identitárias que este tipo de conhecimento contribui para fixar em sua condição de vetores de múltiplos fluxos culturais. Neste trabalho enfatizamos este segundo plano, procurando desenvolver nossa argumentação a partir da análise textual2 de alguns saberes geográficos que circulam nos exercícios de livros didáticos dessa disciplina.. Narrativas espaciais que qualificam o outro: alguns flagrantes nos exercícios de Geografia Vale salientar que a geografia, como bem alerta James Anderson (1978), cumpriu um papel mais de divulgadora do que de geradora de algumas das teorias conservadoras que se hegemonizaram a partir do século passado. Na verdade, pouca coisa é própria dessa disciplina ou da tradição acumulada sob esse antigo rótulo (Claval, 1974). (MORAES, 1991, P.166) A citação acima nos dá algumas pistas sobre o que fazemos quando ensinamos Geografia. Na condição de disciplina e de objeto de ensino, o discurso geográfico muitas vezes contribui para hegemonizar narrativas sobre pertencimentos no espaço. Cumprindo o papel de difusão 3, de “teorias conservadoras”, a Geografia, na Escola, tem operado com mecanismos de fixação de algumas versões sobre as apropriações do espaço. É precisamente esta questão que pretendemos explorar, a partir das análises de alguns exercícios propostos nos livros didáticos e das orientações de respostas apresentadas nos manuais do professor de coleções avaliadas e classificadas pela edição de 2008 do Programa Nacional do Livro Didático. 4 Buscar pois, no terreno das 2 Na concepção de análise do discurso aqui privilegiada, a análise textual constitui um componente interno de uma empresa maior, inviável nos limites de um texto desta natureza. 3 Embora nessa formulação o termo “difusão” permita pensar a relação entre conhecimento geográfico acadêmico e conhecimento escolar em termos de subalternidade do segundo em relação ao primeiro, não é essa a concepção aqui defendida. Defendemos, apoiadas nas contribuições da epistemologia social escolar que os discursos geográficos – na condição de objeto de ensino - incorporam recontextualizações das teorias conservadores, da mesma forma que as difundem por mecanismos especificamente escolares, como os livros didáticos. 4 Na última edição do PNLD Geografia/2008, voltada para as séries finais do ensino fundamental, podemos identificar (itens c04 e c05) perguntas formuladas intencionalmente com o objetivo de avaliar e classificar os exercícios e as demais atividades propostas para os alunos, como, por exemplo:. Possibilitam a articulação dos conteúdos adequadamente para se atingir os objetivos propostos nas Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6579 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia aprendizagens as marcas das disputas em torno do controle social do que deve ser considerado legítimo a ser ensinado (GABRIEL, 2009) em um quadro de significância onde o livro didático pode ser entendido como (...) um texto curricular que reinterpreta sentidos e significados de múltiplos contextos e que constitui uma produção cultural a se efetivar nas diferentes leituras realizadas no espaço escolar. Tais textos recontextualizam (Bernstein, 1996, 1998) orientações oficiais, mas também discursos das escolas, da academia, do contexto internacional e de produções pedagógicas que penetram no mercado editorial. Nessa recontextualização esses discursos são hibridizados, visando finalidades distintas. (LOPES, 2007, p. 214) Textos curriculares, os exercícios legitimam a seleção de conhecimentos considerados válidos sobre o que se define como Geografia escolar. Textos híbridos os exercícios dos livros didáticos fazem circular, discursos pedagógicos e geográficos, configuradores de sentidos de saberes a serem ensinados e aprendidos buscando fixar (não por acaso os chamamos de exercícios de fixação!) entre outras, as narrativas espaciais. É desenvolvendo estas atividades que o aluno se insere no jogo de interpretações das experiências espaciais, sejam aquelas autorizadas pelos textos pedagógicos (a fala do professor, do livro didático, do exercício), sejam ainda outras não arbitradas pelo que conhecemos como ciência geográfica. Neste jogo de fixação de regimes de verdade, as suas experiências são confrontadas com outros sentidos de espaço, também tutelados pelos textos pedagógicos. Essa compreensão dos exercícios e das respostas sugeridas pelo Manual do Professor como textos curriculares híbridos é fortalecida nos enunciados do Guia de analise do PNLD de 2008 relativos à avaliação das atividades propostas para o aluno mencionadas anteriormente. Aliás, este é um dos critérios5 utilizados para classificar a coleção didática. Neste artigo, consideramos esse critério para nos auxiliar no recorte dos exercícios a serem aqui analisados. No Guia de análise das coleções didáticas, unidades temáticas?(c04) ou.ainda em c05: Propiciam a problematização dos conteúdos estimulando a capacidade de produzir textos e o desenvolvimento de habilidades diversificadas?” (GUIA/PNLD/2008/p.105) 5 Na última edição do PNLD de Geografia voltada para as séries finais do ensino fundamental, realizada no biênio2007/2008, foram adotados os seguintes critérios para fundamentar a avaliação: organização dos conteúdos, desenvolvimento das atividades, manual do professor e projeto gráfico. (Guia de análise/PNLD, 2008). Nesta edição, o Programa empregou o seguinte campo semântico para discriminar a qualidade da coleção classificada didática: inovador, adequado e regular Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6580 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia focalizamos as avaliações de qualificação dos exercícios e dos manuais do professor, para fundamentar a escolha das coleções didáticas aqui abordadas. Neste artigo, selecionamos volumes do sétimo ano avaliadas no PNLD nos critérios de classificação “desenvolvimento das atividades” e “Manual do Professor como “inovador” e/ou “adequado”. Após uma leitura preliminar dos resultados da avaliação, chegamos a três coleções: “Série Link do espaço”, “Geografia: construção do espaço geográfico” e “Trilhas da Geografia”. 6 Nessas coleções, a escolha dos exercícios aqui explorados ocorreu em função da opção de centrar nossa reflexão, nesse artigo, em torno da temática das narrativas espaciais como mencionado anteriormente. Entendemos que o “espaço geográfico”, além de ser um conceito muito caro para ciência geográfica, tem a sua importância também reconhecida nos textos curriculares dessa área, de modo que diferentes temáticas sujeitas à “gramática” didática são desenvolvidas a partir da análise, da comparação das práticas espaciais e, logo, da qualificação de diferentes formas de produzir e de se apropriar do espaço. Isto posto escolhemos um grande tema – ‘a composição populacional brasileira’ – como recorte para seleção dos exercícios. A própria idéia de população mereceria maiores esclarecimentos, mas considerando os limites deste artigo, tomamos de empréstimo as palavras de Moraes (1991) para discorrer, ainda que brevemente, sobre as implicações políticas desta idéia. Cabe recordar com Michel Foucault que o exercício do poder nos Estados territoriais implicou uma espacialização da política, onde emerge o conceito de população - objeto primeiro da dominação estatal - qualificado como os habitantes de uma dada porção de espaço (Foucault, 1979). Pode-se dizer que os geógrafos “pedagogizam” a ótica da identidade pela localização espacial, vulgarizando a perspectiva utilizada pela reflexão intra-estatal. (Idem, grifo nosso) A concepção de população como unidade de pertencimento, que fixa os sujeitos a uma porção do espaço, tem sido muito valiosa para o discurso geográfico 6 Segundo a última avaliação do PNLD, os manuais do professor tanto da Coleção Trilha da Geografia quanto da Série Link do Espaço obtiveram a qualidade de “inovador”. Já o da Coleção Geografia: construção do conhecimento geográfico” foi classificado como “adequado”. Das coleções abordadas neste artigo, somente a Coleção Série Link do Espaço teve o grau máximo de “inovador” para o critério do desenvolvimento das atividades (exercícios). Enquanto, para o mesmo critério, as demais coleções aqui citadas foram avaliadas como “adequadas”. Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6581 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia hegemonizante, como nos mostra Moraes (id.). Na mesma citação, o autor anuncia a eficiência do conceito de população para oferecer interpretações sobre a identidade, a partir da perspectiva espacial. Isso significa dizer que sentidos identitários, neste caso, de pertencimentos no espaço, são enunciados e organizados por narrativas espaciais. E a Geografia como disciplina escolar tem sido prodigiosa nesta tarefa. Entendemos que na temática em foco estão em disputa narrativas que justificam a apropriação do espaço, que tutelam formas de usar o espaço. Ao explorarmos os exercícios, portanto, operamos com uma das possíveis concepções do espaço geográfico já explorada por Santos (1997, 2005). Ao nosso ver , a questão a colocar é a da própria natureza do espaço formado, de um lado, pelo resultado material acumulado das ações humanas através do tempo e, de outro lado, animado pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e funcionalidade. (SANTOS, 1997, p. 85) Desse modo, entendemos igualmente que na superfície textual dos exercícios e das respostas dadas no texto “Manual do Professor”, emergem processos de identificação e de diferenciação que se materializam nos discursos produzidos sobre índio, migrante, caboclo, europeu. Essas expressões aparecem em nossa análise não como significantes aos quais correspondem sentidos unívocos, mas como materializações discursivas provisórias e contingentes de diferentes fluxos de sentidos hibridizados que, nos textos curriculares em questão, conformam-se em enunciados configuradores de grades de inteligibilidade que disputam leituras hegemônicas de mundo Os estudos enunciativos, a despeito de suas filiações teóricas, têm sublinhado a potencialidade analítica sobre “o emprego das palavras” como marcadores da distribuição do poder. Como aponta Fairclough (2001): (...) e o sucesso em obter aceitação para significados particulares de palavras, e para uma estruturação particular do seu significado potencial, é sem dúvida interpretável como uma forma de adquirir hegemonia. (Op.cit.p.235-6, grifo nosso) Ou ainda como nos faz pensar Larossa (2002), ao afirmar : Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,creio que fazemos coisas com as palavras e, também,que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6582 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.(Larossa, 2002, p.21) Essas abordagens nos parecem interessantes para operar metodologicamente com os processos de validar interpretações sobre a apropriação do espaço, aqui chamadas provisoriamente de narrativas espaciais Assim, as práticas discursivas que significam os deslocamentos espaciais, por exemplo, podem ser percebidas como atos de produção e de distribuição de discursos geográficos. O aspecto reiterativo dos vocábulos europeu, índio, migrante nesses textos (exercícios e respostas do MP) pode ser entendido como um movimento híbrido que reatualiza discursos sobre fenômenos do espacial, como a [des]colonização, aqui compreendida como narrativas da territorialização. Dentre as ações humanas que dinamizam o espaço destacamos a significação das ações no espaço, que interferem na distribuição de poder pelo e no espaço (MASSEY, 2008). Para ilustrar esse jogo de interpretações sobre e pelo espaço, compreendido no âmbito de uma ação pedagógica, escolhemos três exercícios, localizados em diferentes unidades de conteúdo dos livros didáticos selecionados. Em comum, os exercícios operam com os termos acima destacados - “europeu”, “índio”, “migrante” – que, como defendemos, qualificam posições políticas destas práticas espaciais. Percebidos como enunciados de práticas sociais de mobilidade e de acesso ao espaço, esses exercícios põem em jogo a interpretação de tais práticas, como, por exemplo, dos deslocamentos espaciais evidenciando as lutas hegemônicas que se travam nesse campo da discursividade. Desse modo, a busca do “singular”, como estratégica da produção da diferença própria do processo de Globalização, que se manifesta segundo Milton Santos (2005) em meio a dialética entre a razão global e a razão local se faz presente nestes textos curriculares analisados. No exercício (anexado no final deste artigo), estão destacadas, em primeiro plano, imagens cuja composição anuncia a “diversidade” étnica, reforçando um discurso associado a uma concepção de população brasileira, fortemente veiculada no pensamento social no século XX.7 7 Para um maior aprofundamento sobre essa questão ver Póvoa , 2006. Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6583 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia As imagens, convertidas em textos pedagógicos, autorizam sentidos de pertencimento no espaço. Nas narrativas espaciais, validadas pelo exercício, houve seleção de práticas espaciais associadas aos processos de identificação e diferenciação. A composição do exercício aqui citado, como narrativa espacial, sustenta a localização e a apropriação do espaço de forma a simultaneamente anunciar a “diversidade” e reforçar pertencimentos identitários que operam com reducionismos das experiências espaciais vividas pelos grupos sociais eleitos pela proposta do exercício. Com efeito, a intencionalidade de fixação de uma marca identitária por meio da localização espacial se faz presente por meio da utilização de determinados recursos retóricos na elaboração do exercício. Nesse artigo, destacamos o uso da generalização por meio da qual são mobilizados sentidos relativos a pertencimentos identitários de cunho homogeneizante e essencialista. Desse modo, o mesmo movimento que - ao congelar nos significantes “negros africanos”, “cultura dos imigrantes alemães”, “índia da tribo Tucano” ou “descendentes de japoneses” alguns fluxos culturais - faz operar a “lógica de equivalência”, apagando as heterogeneidades, posiciona esses mesmos significantes, por meio da “lógica da diferença” (“não–negro”; não-índio”; “não imigrante”), nas relações assimétricas de poder - ao definirem essas “singularidades”em meio as lutas pelos processos de significação de “espaço” e de sua apropriação. Aliás, essas duas lógicas se manifestam igualmente na própria significação de “espaço”. Podemos observar no exercício aqui analisado, que o sentido de espaço tende a ser fixado pela reatualização do discurso da “singularidade” a partir da qualidade do exótico. Esta reflexão pode ser ilustrada pelo fato de a única imagem que autoriza a definição de espaço por meio da sua relação com as práticas sociais de produção é a da “índia” produzindo seu alimento. As demais imagens fixam sentidos de espaço por meio do apelo aos “costumes”; “tradições” “modos de vida” que permitem visualizar “espacialmente as contribuições dos vários povos na constituição de nossa nação”. O lúdico da capoeira, homogeneizando as sociabilidades do negro e da África conforme o enunciado da legenda - é retratado por iluminação que enaltece o movimento em detrimento das feições dos sujeitos. As faces dos sujeitos, por sua vez, são iluminadas no protagonismo de mulheres sem movimento, transvestidas da fantasia “imigrante”, insinuando o sucesso do deslocamento espacial. Outro discurso exitoso de pertencimento no espaço. A composição das imagens do espacial convertida em texto Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6584 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia pedagógico é finalizada com uma imagem da forma do espaço, também produto da fantasia “imigrante”, enunciada pela arquitetura “oriental”. A oferta limitada de pertencimentos espaciais/identidades serve assim, como subsídio para o aluno significar a diversidade de relações étnico-espaciais. O intento afirmado no exercício é reiterado nas orientações propostas pelo Manual para o professor. Nelas, o Manual define as ações do aluno para qualificar “a diversidade” sócioespacial, fazendo-o entrar no processo de significação das experiências espaciais “Reconheça que a realidade social é diversificada (múltipla, contraditória e descontínua) Reconheça a si mesmo e os outros como agentes de construção e transformação do espaço em suas várias escalas (local, regional, nacional e mundial)” (Manual do Professor, do 7º. Ano da coleção Série Link do espaço, p. 24) Este tipo de ação pedagógica ilustra o caráter do político presente na seleção de narrativas espaciais e, logo, presente na seleção de conteúdos a ensinar. A questão da seleção, por sua vez, é determinante para discutirmos o processo de validar o conhecimento escolar. Podemos explorar esta questão no exemplor abaixo. “Os indígenas e os europeus tinham modos muito diferentes de se relacionar com a natureza. Explique a diferença entre estes pontos de vistas. Resposta no Manual do Professor “Os indígenas enxergavam-se como parte da natureza, e esta era vista como fonte de vida. Os colonizadores viam a natureza apenas como fonte de lucro imediato – incluídos os indígenas, de quem exploravam a mão-de-obra inicialmente na forma de escambo e depois, como trabalhadores escravos. (A construção do espaço geográfico brasileiro, sétimo ano, p28) Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6585 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia Novamente, a nominalização de grupos sociais fixa sentidos de prática espacial e vice-versa. O espacial configura e é configurado pelas marcas identitárias. O enunciado do exercício investe na fixação dicotômica de formas de apropriação do espaço: ‘o indígena e o europeu’. Esta escolha de narrativas espaciais homogeneíza pertencimentos no espaço/identidades, fortalecendo a compreensão essencialista de unidade ‘singular’ indígena/europeu. Do mesmo modo, portanto, que homogeneíza interpretações sobre a relação sociedade/natureza, recuperando, por exemplo, o discurso oitocentista do índio romântico. Enunciados ligados à associação da conquista e do uso do espaço também estão presentes no próximo exemplo, que assim como os anteriores propõe a fixação da identidade pelo viés da localização espacial. Até a década de 1960, a população da Amazônia era predominantemente formada por caboclos e indígenas (isolados ou aculturados). Houve uma tentativa de ocupação da região a partir da década de 1970. Com base nessa leitura, escreva um pequeno texto guiando-se pelas perguntas a seguir: 1. Qual é a origem dos novos moradores da região? 2. Por que eles migraram para lá? 3. Que problemas enfrentaram? Respostas no Manual do Professor: 1. “Nas últimas décadas se deslocaram famílias do Brasil inteiro para a Amazônia, mas o maior contingente saiu das regiões do Nordeste e Sul. 2. Embora o garimpo e o extrativismo tenham atraído muitos migrantes, a maioria foi para a região em busca de terras para cultivar. 3. Logo, descobriram que o solo era predominantemente pobre e que a infraestrutura de transportes, energia educação, saúde etc) era precária.” (Manual do Professor, sétimo ano, Trilhas da Geografia, p.12) Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6586 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia Neste último exercício selecionado, o enunciado da atividade reatualiza os discursos do “isolamento” e “aculturamento” para qualificar os grupos que viviam nos espaços, que nomeamos como região norte, antes da expansão das fronteiras agrícolas dos anos 60. Nestes termos, é flagrante o silêncio acerca da complexidade das organizações societárias ali presentes, favorecendo, logo, as narrativas espaciais mais hegemônicas empreendidas pela idéias de progresso e de atraso presentes principalmente no vocábulo do “isolado” para caracterizar experiências espaciais. Mais uma vez temos como foco o emprego do vocabulário que nos dá pistas sobre os mecanismos essencialistas acionados para fixar nominalizações das marcas identitárias no espaço. Mas afinal... Que “outro” é esse nos currículos de geografia? Nesta breve análise procuramos evidenciar por meio de alguns exemplos extraídos de livros didáticos de Geografia alguns mecanismos discursivos das lutas hegemônicas que se travam em torno da fixação de sentidos de “espaço” e de “identidades”. Apoiadas nas reflexões desenvolvidas no âmbito da teorização social do discurso, procuramos apresentar algumas reflexões, ainda que provisórias, a respeito da fixação da alteridade nos currículos escolares em ações pedagógicas corriqueiras nas aulas de Geografia na educação básica. Com efeito, os nomes dados aos grupos sociais “presos” a uma porção do espaço tem sido uma tarefa da ciência geográfica (Moraes, 1991) assim como da Geografia escolar. Embora preliminares, nossas reflexões apontam no sentido de confirmar o pressuposto com o qual estamos trabalhando que consiste em reconhecer que a fixação do “outro” nesses textos curriculares, sejam eles “inovadores” ou “adequados” continuam reforçando a tradição ocidental de que nos fala Irygaray (2002) pela qual o “outro” é “sempre o outro do mesmo”, “o outro do próprio sujeito”, neste caso o “nãobranco- civilizado-urbanizado”. Um “outro” que não potencializa a escola como espaço da “irrupção da diferença” e não apenas como espaço de “aceitação do diferente”. Nessa perspectiva o retorno às singularidades (Haesbaert, 1999), que ocorre em meio as disputas por poder de significação das narrativas espaciais fixando determinados fluxos culturais em detrimento de outros seria menos um aprendizado da “manifestação da Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha 6587 Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia diversidade territorial” do que uma estratégia de posicionamento político no jogo das interpretações disponíveis nos contextos escolares. Referências bibliográficas ADAS, M. Geografia: construção do espaço brasileiro, sétimo ano, Editora Moderna, 5ª. Edição, São Paulo, 2006. APPADURAI, A. La modernidad desbordada: dimensiones culturales de la globalizacion. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001. BHABHA, H. O local da cultura. 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Leal2 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o currículo enquanto documento estabelecido pelos órgãos educacionais e a influência da cultura, considerando a maneira que este (currículo) oportuniza a sua (cultura) ressignificação a apreensão de elementos e características culturais locais onde está inserida a Escola enquanto espaço social receptiva a diversidade. Buscando perceber como se dá essa relação currículo e cultura e considerando esta última como prática social dos seres humanos, foi utilizada a abordagem qualitativa como método investigativo, tendo como espaço de análise uma escola pública de primeiro grau sediada em uma cidade de porte médio. A análise dos dados permitiu chegar à conclusão de que a liberdade dada às escolas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação para trabalhar na parte diversificada conteúdos locais, faz com que esta desconsidere no seu currículo a cultura local e dê prioridade a outras disciplinas tidas como de maior relevância para os alunos. PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Cultura; Escola. Introdução A aprendizagem escolar está diretamente vinculada ao currículo, organizado de maneira a orientar as atividades educativas. O currículo representa a síntese dos conhecimentos e valores que caracterizam um processo social expresso no trabalho pedagógico, como um percurso a ser seguido. (GOODSON, 1996). Diversos autores, principalmente os ligados à teoria crítica do currículo (KEMIS, 1996; SCHWAB, 1983; STENHOUSE, 1991), discutem as influências e inter1 Mestranda em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social (CEPPEV – CAIRU). Professora de Língua Portuguesa da rede pública estadual; e-mail: [email protected]. 2 Doutor em Administração pela Escola de Administração da UFBA; professor titular do curso de Mestrado Profissional em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social (CEPPEV – CAIRU); professor da Escola de Administração da UFBA; e-mail: [email protected] Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6595 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? relações do currículo com o poder político e econômico e seus componentes ideológicos, permitindo analisar sua seletividade, seu significado e práticas. Nesta mesma linha a seleção cultural sofre determinações políticas, econômicas e culturais, configurando-se em resultado de lutas, conflitos e negociações. A sua concepção envolve os fundamentos filosóficos, sociais e políticos da educação até à sua concretização na sala de aula. O currículo em ação na escola traz consigo a marca específica que os professores lhes dão, como concretização de propostas e concepções educacionais que fazem parte de suas formações. No presente artigo questionamos se o currículo que orienta as práticas da escola tem contribuído para que seus atores manifestem as diversas culturas que fazem parte do seu contexto, pois neste podemos vislumbrar a compreensão das relações entre a cultura e os significados transpostos nesse espaço. Percebemos esta ocorrência no espaço escolar investigado e perguntamos: qual a relevância da cultura no aporte curricular que orienta a escola? A partir de uma abordagem qualitativa, com uma pesquisa no ambiente em que essas manifestações acontecem, aplicamos um questionário aos professores com o intuito de discutir aqui e analisar em suas respostas como se dá esse trajeto de suas concepções até a prática na sala de aula. O artigo está estruturado em quatro partes. Na primeira parte abordamos as concepções de currículo e como alguns teóricos o concebem; em seguida enfocamos a cultura e a escola, demonstrando as suas relações e tensões; mais adiante evidenciamos o currículo e cultura, ressaltando a postura do professor diante desse panorama; por fim apresentamos o recorte metodológico utilizado na pesquisa e a descrição dos dados coletados com suas referidas análises e conclusão. Concepções de Currículo Segundo Sacristán (1973) currículo é um conjunto de responsabilidades da escola para promover uma série de experiências que a escola utiliza com a finalidade de alcançar determinados objetivos, enquanto que Silva (2005) tem o entendimento que o currículo expressa um percurso, trajetória, caminho, lugar, espaço e território. Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6596 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? Para Coll (1997) diz que o currículo é um elo entre a declaração de princípios gerais e sua tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática pedagógica, entre o planejamento e a ação. Já Pedra (1997, p.73) expressa de modo peculiar, articulando elementos presentes nos autores acima apontados, conceituando currículo como: toda representação tem seu objeto e, ainda, não se pode responder cabalmente a que termo currículo efetivamente se refere. Não é possível “objeto” currículo que é o representado, ele apenas dá título a uma determinada proposta educacional, que, por sua vez, deriva de um conjunto de representações sobre o ser humano, como ser educacional. Ora, o currículo é uma representação da cultura no dia-a-dia da escola, nas ações que surgem da prática educativa, trazendo o conhecimento escolar de maneira a propiciá-los, através da mediação didática do professor num componente que possa ampliar e transformar os sujeitos capazes de mudarem seus contextos, através da ampliação de seu universo cultural. Diante de diversas posições referentes a currículo, abordaremos o seu significado, os seus reflexos, num sistema de educação pública, como uma proposta que está incorporada de uma perspectiva da complexidade e das transformações aceleradas que vivemos, com o intuito de contextualizar e situar as manifestações culturais de seus atores, e de que maneira está refletida no fazer pedagógico dos professores. Não intencionamos chegar a um consenso sobre tal conceito, pois que, conceituar ou definir, já o faz estabelecido, negando sua própria perspectiva dinâmica e diversificada em que o mesmo está imbuído. O currículo escolar supõe a concretização dos fins sociais e culturais, de socialização, que se atribui à educação escolarizada. (SACRISTÁN, 1973) Com isso, este vem a ser a representação da cultura no cotidiano da escola, abrigando as concepções de vida social e as relações estabelecidas entre a educação - consecução cultural de bens a serviço de uma comunidade – e os atores que dela fazem parte. Conforme Forquin (1993, p.28) Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6597 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? ... a transmissão cultural da educação é essencialmente um patrimônio de conhecimentos e competências, de instituição de valores e de símbolos, constituído ao longo de gerações e característico de uma comunidade humana particular, definida de modo mais ou menos amplo e mais ou menos exclusivo. A escola traz consigo uma carga de significação muito forte quanto à transmissão cultural para o ser humano, porque é esta instituição que ao longo do tempo tem legitimizado como válido para a sociedade o conteúdo do processo pedagógico, mesmo que observemos que a cultura escolar seja pouco permeável ao contexto em que ela está inserida, podemos perceber que isto ainda perdura. Moreira e Candau (2008, p. 32) sugerem “que se procure, no currículo, reescrever o conhecimento escolar usual, tendo-se em mente as diferentes raízes étnicas e os diferentes pontos de vista envolvidos em sua produção”. Não podemos deixar de destacar que a palavra currículo também tem sido utilizada para indicar atitudes e valores nas relações sociais - é o currículo oculto - que são transmitidos subliminarmente no cotidiano da escola e concorrem para fortalecer, ou contribuir para a opressão em relação ao gênero, sexo, raça ou classe social. A Cultura e a Escola Quando o aluno chega à escola, ele não chega “vazio”, ele traz consigo uma carga de conhecimentos e representações, construídas com os elementos oferecidos pelo meio social no qual ele vive. No entanto, no processo de construção do conhecimento escolar, - o currículo demonstra-se como uma opção política e historicamente configurada - esse conhecimento que deverá ser somado a outros, mostra-se neutro, com uma visão monocultural dos diversos grupos que fazem parte da sociedade, inclusive os excluídos do processo social, pois conforme Santos (2005, p.27) a exclusão “é um mecanismo que retira as pessoas do eixo social central, assim, podemos entender a exclusão como sendo a ausência dos componentes essenciais à cidadania”. Quando na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB nº 9394/96, esta, que funciona como orientação legal para a construção das diretrizes curriculares nacionais, confere a liberdade de organização aos sistemas de ensino no currículo, quanto à parte diversificada, devendo às escolas darem ênfase às suas características regionais e culturais. As escolas desconsideram o seu público, sabendo que o mesmo é Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6598 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? composto de uma diversidade de culturas e desmerece destes seus conhecimentos culturais. Segundo Arroyo (2006, p.56) a divisão do núcleo comum com a parte diversificada presente na lei 5692/71 trouxe uma visão reducionista e fragmentada do conhecimento escolar e o currículo, onde as características locais e regionais, a cultura, as artes e a sexualidade não são integrantes do eixo central. Desta forma a Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB ao dar liberdade às escolas para explorarem a parte diversificada, faz com as mesmas explorem os aspectos e conteúdos que lhes são mais apropriados ou convenientes. Vivemos no contexto da diversidade cultural. São as características regionais e locais, que formam os atores desse espaço escolar e lhe dão identidade. Quando a escola é indiferente a isso na sua composição curricular, está agindo como se a diversidade cultural não dialogasse com os seus atores, suas vivências e suas práticas, desviando-se assim do eixo central da parte diversificada do currículo. Mais do que uma multiplicidade ou pluralidade de culturas, cabe a escola assumir no seu currículo que essas variedades são marcadas por singularidades que são construídas nos processos históricos porque passam os seres humanos. Desta forma, o currículo deve ter uma nova organização frente à diversidade de saberes e culturas que estão representados nesse espaço escolar pelos atores sociais que o compõem, como grupo que não deve deixar suas formas de vida e cultura serem desvalorizadas e proscritas. Neste caso percebemos que estes não encontram no mesmo um lugar definido, e que tem na escola pública um lócus privilegiado de atuação, como sistema democrático e inclusivo, aberto às diversas culturas. Currículo e Cultura Por que a questão do currículo está relacionada com a cultura? Porque o currículo também é a identidade da escola, e como tal este impõe sua cultura, sua concepção social, suas práticas e significados – na qual foi concebido – subordinando a cultura dos atores no espaço escolar. São nas práticas de sala de aula, nas interações e mediações didáticas entre professor e aluno, entre aluno e aluno, nas trocas de conhecimento e aprendizagens, que irão contribuir para a formação e cristalização de determinados significados que são Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6599 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? construídos por variados grupos sociais, e também onde os mesmos serão formados, rejeitados ou compartilhados pelos sujeitos que fazem parte desse espaço. Por isso, o currículo contribui na construção de identidades, quando os atores do processo educacional vêm seus conhecimentos e suas culturas ali representadas. Desta forma, o professor, como intelectual transformador, conforme Giroux (1998, p.33), deve neutralizar as influências que concorrem para demonstrar certas discriminações ou preconceitos diante das situações e atitudes que surgem na classe, orientando seus alunos para um posicionamento de respeito. Esse estudo tem o objetivo de desvelar quais fatores interferem desde o currículo prescrito até o currículo realizado, onde queremos compreender nesse percurso, como o professor “molda” ou representa esse currículo na sua prática e suas relações com a cultura. Ao discutir as relações possíveis do professor frente ao desenvolvimento de um currículo estabelecido, pode-se localizar uma interação linear que irá considerá-lo desde o papel passivo de mero executor até o de um profissional que ousa, subverte e tem uma posição crítica frente às diversas situações educativas. Conforme Moreira e Silva (1994, p57) O currículo é um território em que se travam ferozes competições em torno dos significados. O currículo não é um veículo que transporta algo a ser transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que, ativamente, em meio a tensões, se produz e se reproduz a cultura. Embora o currículo tenha em seu teor a cultura hegemônica, devemos reconhecer que a questão cultural, hoje faz parte de nossa vida social, pois é inegável a pluralidade cultural no mundo em que vivemos, e a escola deverá agora, mais do que nunca fomentar em seu cotidiano discussões sobre o currículo, suas práticas pedagógicas e o conhecimento escolar com o intuito de preparar-se para socializar aos estudantes como maneira de favorecer aos mesmos outros saberes. Este estudo entremeia-se pela abordagem sociológica, onde perpassam os processos sociais da educação, em que a escola, por ser em sua natureza uma instituição política, encorajam e promovem visões particulares de cultura. As práticas pedagógicas Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6600 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? que a escola adota, estão, de certa forma ligadas à estrutura social à qual esta instituição pertence, como os seus valores, as idéias e o legado cultural que cada geração produziu. Esta abordagem reveste-se também de um caráter antropológico como seres pertencentes à linhagem hominídeo conforme Maturana (1997), na nossa maneira de viver como seres sociais na linguagem, e também em consonância com Geertz (1989) o comportamento humano é visto como uma ação simbólica, sendo que, através da linguagem poderemos compreender as ações práticas na vida cotidiana, nas interações entre os atores sociais. Para Giroux (1998, p. 46-47) Considero a cultura como uma forma de produção, cujos processos estão intimamente ligados à estruturação de diferentes formações sociais. [...] A cultura não é simplesmente um depósito de conhecimentos, formas, práticas sociais e valores que são acumulados, armazenados e transmitidos aos estudantes. [...] a cultura deve ser compreendida como uma forma de produção, por meio da qual os seres humanos tentam mediar a vida diária pelo uso da linguagem e de outros recursos materiais. Cremos que pensar a educação a serviço de uma sociedade democrática é assumir a pluralidade cultural que vivemos, dando o direito aos educadores e educandos de se apropriarem de suas práticas e valores culturais, como processo central na apreensão do conhecimento Para Geertz (1989) o homem não pode ser definido por suas habilidades inatas, como o fazia o iluminismo, nem por seu comportamento real, como o fez grande parte da ciência social, o que nos tornamos tem um viés pela cultura como um dos elementos na determinação do tornar-se e do devir, assim também como de que forma os mecanismos simbólicos desta cultura modelaram-nos como uma espécie única, como um “ser humano é ser uma espécie particular de homem”. O que temos é que o homem se transforma, se modifica, independente de lugar, costumes ou tempo, e ele foi “tornando-se”, pela capacidade de transmissão de suas crenças, valores, práticas, conhecimentos e costumes através da linguagem, é então a partir daí que temos os avanços desses hominídeos em homo sapiens pela acumulação cultural, como tecido orientador da sua evolução. Para Geertz (1989, p. 5) Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6601 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? ... o símbolo representa uma intermediação no contato do homem com o mundo, sendo que a cultura torna-se um conjunto de símbolos elaborados pelo homem na construção de sua existência, como as práticas, as teorias, as instituições, os valores materiais e espirituais, etc. A cultura vem demonstrar-se dessa forma uma identidade entre os grupos que compartilham seu universo de significados como visão de mundo, maneiras de interagir, modos de legitimar e negar seus conceitos. Recorte Metodológico Na fase inicial de pesquisa fizemos uma pesquisa documental no Projeto Político Pedagógico da escola de onde buscamos perceber se neste, como instrumento que dá identidade à escola, se há o posicionamento quanto às questões culturais que a escola deve enfocar. Temos lá como missão da escola: ... a de formar cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e compreender os novos processos da sociedade moderna, dando-lhes um ensino de qualidade, relacionando com seu cotidiano, priorizando uma ação democrática e de respeito mútuo através de atividades associadas às dimensões: sociais, artísticas e culturais da clientela. (BAHIA, 2005, p. 16) Ainda neste mesmo documento temos como um dos objetivos conceituais “relacionar os conteúdos estudados aos diversos contextos, principalmente aos do cotidiano do aluno”. (BAHIA, 2005, p. 18) Os conteúdos curriculares das disciplinas são elencados pelos professores no início do ano letivo na Jornada Pedagógica da escola, e posteriormente entregue ao articulador da área de conhecimento. Neste momento percebemos que em maioria os professores “copiam” dos livros didáticos seus conteúdos da série correspondente, sem a devida preocupação de analisá-los criticamente. Na matriz curricular da escola da 5ª à 8ª série do ensino fundamental e do 1º ao 3º ano do ensino médio, onde tem as áreas de conhecimento a serem trabalhadas vem a seguinte observação: “O currículo deve ser composto de uma Base Nacional e da Parte Diversificadas, ambas integrando e articulando os Aspectos da Vida Cidadã, que é Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6602 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? descrita da seguinte forma: Saúde, Sexualidade, Vida familiar e Social, Meio Ambiente, Trabalho, Ciências e Tecnologia, Cultura e Linguagens”. Quanto à parte diversificada do ensino fundamental na escola temos as seguintes disciplinas: Educação Artística, Educação Religiosa, Língua Estrangeira – Inglês, Educação Física, Introdução à Informática, Computação Gráfica e Geometria. Mudouse Introdução à Informática e Computação Gráfica por aulas de Redação, por questões financeiras – falta de verba para manutenção dos computadores do laboratório de informática; assim como também pela necessidade das aulas Redação levar a um aprimoramento da escrita dos alunos. No ensino médio temos a Base Nacional Comum: Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Artes; Matemática, Física, Química e Biologia; História, Geografia, Filosofia e Sociologia. A parte diversificada compreende Língua Inglesa e Redação. O caráter metodológico desse estudo constrói-se na confluência de várias contribuições, com o intuito de aproveitar as suas características que podem identificar através das falas e dos textos dos professores, a externalização de uma cultura que a escola demanda e como uma variável que demonstra a sua organização. A pesquisa é de cunho predominantemente qualitativa conforme Godoy (1995) pela mesma ter o ambiente natural como fonte direta de dados, e por permitir perceber o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador. No contato com os professores utilizamos a observação participante - neste caso pelo observador pertencer ao grupo investigado (LAKATOS (2009) Nosso instrumento de pesquisa foi o questionário semi-estruturado, e entrevistas informais não transcritas na pré-análise. Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos pelo critério de acessibilidade. A amostra não probabilística envolveu 61% dos professores da escola (matutino, vespertino e noturno), dois coordenadores; os professores compreendendo as diversas áreas de conhecimento como: Matemática, Biologia, Geografia, História, Inglês, Português, Pedagogia e Educação Física. Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6603 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? Apresentação e Análise dos Dados Utilizamos a análise de conteúdo na elaboração de indicadores que fundamentam a interpretação final, conforme Bardin (2006), com uma leitura flutuante, categorização para análise temática, que posteriormente são transformados em gráficos, permitindo uma descrição das características pertinentes ao conteúdo. Nosso aporte teórico de análise das respostas foi a Teoria das Representações Sociais que, segundo Moscovici ( 2007, p.216) as representações sociais são sempre inscritas dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”, “sempre dependentes, de sistemas de crenças ancorada em valores tradições e imagens do mundo e da existência”. A escola possui 74 professores e, pelo método de amostragem por acessibilidade ou conveniência, que, segundo Gil (1999, pg. 109) é destituída de rigor estatístico, onde o pesquisador seleciona os elementos a que tem acesso, admitindo que estes possam, de alguma forma, representar o universo, então foram distribuídos questionários a 45 deles. Quando indagados sobre os documentos oficiais que regem as propostas curriculares da escola são usados como base para a proposta pedagógica da escola, 60% respondeu que sim e um percentual significativo 36% respondeu que não tem conhecimento e 4% respondeu que não. Questão nº 2 perguntados de onde resulta a cultura que a escola promove aos alunos obteve-se um grande percentual 58% dos respondentes disseram que resulta de grupos que compõem a própria realidade, 38% de variados grupos e 4% da classe dominante. Questão nº 3 perguntados se há uma consistência e/ou permanência das políticas educacionais implementadas pelo MEC/ SEC – BA na escola que trabalha, os resultados foram os seguintes: 82% responderam que crê que sim, 11% dizem que acha que sim, e 7% diz que desconhece. Questão nº 4 como os professores encaram as manifestações culturais de seus alunos, 60% diz que respeitam, 38% diz que é pertinente ao convívio e 2% não percebe as manifestações culturais dos alunos. Questão nº 5 quanto aos valores da escola se todos percebem e primam por isso, obteve-se as seguintes respostas: 78% nem todos percebem 18% disse que sim e 7% diz que não percebe. Com isso, constatamos que os valores culturais que a escola tem como Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6604 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? prioritários não são respeitados pelos professores. Daí instiga-nos saber se em relação aos valores dos alunos, será que os professores realmente respeitam. Em outro momento voltaremos a analisar essa questão. Resgatando o Projeto Político Pedagógico da escola onde na sua missão diz “formar cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e compreender os novos processos da sociedade moderna, dando-lhes um ensino de qualidade, relacionando com seu cotidiano”, donde não conseguimos perceber nas respostas dadas pelos professores e na proposta curricular, como é que isso acontece. Também retomando o Projeto Político Pedagógico que tem como um dos objetivos conceituais “relacionar os conteúdos estudados aos diversos contextos, principalmente aos do cotidiano do aluno”. Analisando às respostas dadas pelos professores na questão de onde resulta a cultura que a escola promove aos alunos em que 58% dos professores disseram ser “resultante dos grupos que compõem a própria realidade”, podemos perceber que a maioria dos professores não faz uma mediação da cultura erudita e a cultura do aluno, donde podemos concluir que a escola na pessoa do professor deve estar aberto às diferentes manifestações da cultura, não minimizando os conteúdos culturais por supor que os sujeitos desse espaço não precisam entender como o conhecimento socialmente valorizado tem sido representado nos espaços sociais, demonstrando um caminhar na contramão no processo de transposição didática, desconsiderando a construção histórica dos saberes. Nas questões discursivas quando perguntados sobre quais conteúdos culturais fazem parte da vida do professor neste âmbito os respondentes têm conteúdos culturais que estão ligados muito mais às culturas dito eruditas, sendo a “música”, não importando qual seu estilo eleita como o primeiro conteúdo cultural que mais elencado. Já “festejos populares” aparece como o segundo que mais ocorre, como marca típica de nossa região nordestina em que os festejos populares tem uma importância enorme no referencial cultural de seus habitantes. “Leitura e teatro” aparecem em último plano por corresponder a uma resposta do cânone cultural, tido como mais “adequada”, pelo professor em si ser identificado na sociedade enquanto ser de cultura. Quando perguntados o que você professor entende por cultura o deslocamento deste conceito tomou inúmeras abordagens pelas várias áreas de conhecimento, que depois agrupamos por temas semelhantes. Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6605 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? Para Moscovici (2007) esse tema cultura está complexamente interligado com certa memória coletiva, que também são combinações, iguais às representações que eles sustentam. As imagens que desse tema derivam são categorizados socialmente. As formações imaginárias dos sujeitos pesquisados aparecem entrelaçadas como crenças ou pré-concepções ao termo cultura e temos como a resposta mais recorrente: “manifestação cultural de um povo, costumes e hábitos”, logo depois “conjunto de tradições e valores passados de uma geração para outra”, em seguida “ o “saber e o fazer popular”, nesta resposta permeia a questão social, em outra resposta “modo particular de cada sociedade”, ressaltando as características próprias de cada cultura,“ identidade de um grupo tecida no cotidiano”, demonstra as formações imaginárias dos sujeitos que a vida cotidiana sustenta e se constituem nas relações sociais e que são historicamente mantidos. Retomamos a resposta da questão nº 2 em que 58% dos professores disseram que a cultura que a escola promove aos alunos resulta de grupos que compõem a própria realidade, refletindo-se nas respostas de como os professores compreendem o que é cultura e dos conteúdos culturais que fazem parte de sua vida, essa tríade vem demonstrar na visão do discurso (respostas) dos professores, enquanto construção social, como os professores constroem a realidade social e a si mesmos através dessas representações. Quando perguntados quais os valores e significados culturais que o grupo de professores da escola compartilha em maioria aparece “Semana da Consciência Negra”,a seguir “Semana do Meio Ambiente”, e por último “Gincana da Matemática”. Lembramos que não aparece em nenhuma das respostas outros aspectos sobre cultura como fazendo parte do variado e conflituoso cenário cultural em que estamos imersos, e se apresenta diariamente nas salas de aula. Quando perguntados quais as concepções de cultura orientam a escolha da prática educativa, temos como mais recorrente a resposta: “considero os conhecimentos dos alunos”, em seguida vem “desconheço”, logo depois “diversificada, cada professor adota a sua”, e por último “cultura da classe dominante”. A resposta mais recorrente neste quesito é coerente com as respostas da questão nº 4, em que 60% dos professores dizem respeitar as manifestações culturais de seus alunos. No entanto, a resposta que aparece logo em seguida “desconheço” demonstra Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6606 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? que esse percentual de professores não demonstra compromisso com a questão cultural que deve ser enfocada em sala de aula. Diante da resposta “diversificada, cada professor adota a sua” apresenta-se difuso, sem clareza, e nos lembra Bakhtin que diz “o que somos é construído por meio de nossas práticas discursivas”, denotando práticas individualizadas. Quando perguntados quais concepções de currículo fazem parte da prática educativa, foi com o intuito de investigar de que forma este tem uma projeção direta na prática pedagógica como mecanismo que intervém na qualidade da aprendizagem também, e sabemos que o professor “molda” o currículo na sua prática. A resposta que aparece em primeiro plano como mais recorrente da questão é “dar conteúdo/ tradicional”e “determinado pela Secretaria de Educação –SEC”, este último sem muita certeza, porém, confirmando que na escola pública trabalha-se ainda pautado no aspecto conteudista, tradicional, sem considerar as transformações por que passaram e passam a sociedade, a educação, e como reflete-se no desenvolvimento da aprendizagem dos alunos. Em seguida temos como segunda resposta “não sabe” demonstrando que uma parte dos professores estão alheios às concepções que a escola possui, ou a escola, nas pessoas dos coordenadores e articuladores não conseguiram demonstrar isso aos seus professores. Por último, poucos professores disseram ser “interdisciplinar” e citaram alguns aspectos dessa interdisciplinaridade que ocorrem, “no desenvolvimento de projetos e atividades que envolvem várias disciplinas”. Os coordenadores pedagógicos responderam: “apesar de certa autonomia ainda abraçamos um currículo voltado para a reprodução da sociedade, da classe dominante” e outra “currículo construído como conhecimentos construídos através dos tempos, trabalhados relacionados com a realidade”. Dessa forma percebemos que há uma contradição entre a resposta dos coordenadores e as respostas da maioria dos professores, pois que, um currículo tradicional, determinado pela Secretaria de Educação, como também alguns professores “não sabem” qual é a concepção curricular que orienta sua prática, demonstra que não há uma orientação curricular cumprida pela maioria, devendo-se considerar também, embora que nas suas respostas 60% dos professores digam que os documentos oficiais são usados como base para a proposta pedagógica da mesma. Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6607 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? Resgatando o Projeto Político Pedagógico da escola onde na sua missão diz “formar cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e compreender os novos processos da sociedade moderna, dando-lhes um ensino de qualidade, relacionando com seu cotidiano”, donde não conseguimos perceber nas respostas dadas pelos professores nas questões citadas acima, como pode-se ter uma educação de qualidade sem que todos tenham conhecimento do direcionamento curricular que deve dar à sua prática pedagógica. Dessa forma os professores fornecem as “pistas” que indicam como um enunciado particular torna-se contextualizado nos seus discursos, desvelando a realidade social – a escola – e a si mesmos. Concordamos com Moreira e Candau (2008, p38) quando ressaltam que “é o professor esse artífice na construção dos currículos que se materializam nas salas de aula”, pois é ele quem depara-se com a pluralidade cultural na sala, e esta normalmente gera conflitos, resta-lhe agir com sabedoria e respeitar as diversas visões de mundo como manifestação e representação da realidade. Considerações Finais Concordamos com Arroyo (2006, p. 56) quando ele diz que a divisão do currículo em núcleo comum e diversificada trouxe a visão fragmentada e não engloba nas escolas as características regionais e locais, constatamos isso na grade curricular que faz parte da escola quanto a parte diversificada do ensino fundamental e médio, não contempla nenhuma disciplina específica que venha dar conta das características de nossa região ou de nossa cidade, assim como a questão da cultura fica subjacente à questão curricular, mesmo que os professores demonstrem não ter certeza se o currículo que faz parte da escola é determinado pelos órgãos superiores. Vimos confirmar mais uma vez que o conhecimento que a escola aborda é distante da realidade que o aluno vive, e a realidade do aluno, ou o “conhecimento do aluno” tão abordado nas respostas dos professores, não demonstra ser significativo neste espaço escolar, embora seja colocado pelos professores. No currículo, assim como na cultura se manifestam os conflitos pela manutenção e superação de seus significados, porém nessa construção em que alteridade e contexto são cruciais, estes são situados neste trabalho de forma a compreender institucional e historicamente. Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea 6608 Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura? A cultura nesta pesquisa apresenta-se subordinada ao currículo como se dele esta não fizesse parte integrante, porém colocamos à escola e aos professores um propósito de repensar e promover discussões em torno do caráter multicultural que há em nossa sociedade, que traz conflitos no espaço escolar e tão pertinente de ser discutido. Dessa forma propiciará aos professores uma nova forma de ação pedagógica, e consequentemente, será um novo aprendizado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, M. G. Os educandos, seus direitos e o currículo. In: PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. 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Quais são os conceitos ou categorias fundamentais do pensamento freireano para referenciar esta teoria? Objetiva-se explicitar e caracterizar essa contribuição, destacando os conceitos fundamentais que a configura em suas inter-relações. Elegemos como fio condutor no desenvolvimento da nossa problemática, a Pedagogia do oprimido, por considerarmos que nesta obra estão os conceitos mais importantes do pensamento político-educacional de Paulo Freire, reafirmados e ressignificados em obras como Pedagogia da esperança e Pedagogia da autonomia (Freire, 2005, 1992, 1996). O estudo desenvolveu-se a partir de fontes bibliográficas sobre as quais foram aplicados os procedimentos da leitura aprofundada das unidades de sentido previamente selecionadas, a análise do conteúdo textual – explicação, comentário e dissertação -, o que deu corpo a uma reflexão crítica (Folscheid; Wunenberg, 1999; Cossuta, 2001). Pôde-se destacar após a apresentação da problemática, como se articulam as categorias de sujeito, liberdade, cultura e práxis, entre outras, e de que modo esse conjunto se constitui em relevante contribuição para uma teoria na qual o currículo não se restringe à escola, mas se constitui do conjunto de experiências existenciais de homens e mulheres, devendo-se observar a continuidade dessas experiências nas relações que se estabelecem entre a cultura escolar e aquela que constitui os sujeitos mais amplamente. PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Paulo Freire. Cultura. Sujeito. Liberdade. Considerações iniciais Transformou-se em verdadeiro truísmo considerar o pensamento freireano uma das maiores contribuições para a pedagogia da segunda metade do século XX e que mantém ainda a vitalidade neste início de século XXI. Talvez o que não seja tão comum é se falar da importância das contribuições de Freire para a teoria do currículo. 1 Aluno do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal do Pará (UFPA). 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6614 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo O problema da investigação constitui-se, pois, de duas interrogações interligadas: em que consiste as contribuições de freire para a teoria do currículo? Quais são os conceitos ou categorias fundamentais do pensamento freireano para referenciar esta teoria? O nosso objetivo é explicitar e caracterizar essa contribuição, destacando os conceitos fundamentais que a configura em suas inter-relações. Como todas as teorias educacionais, a de Freire também pressupõe uma concepção de homem, de conhecimento e dos objetivos da ação educativa. Para o autor, o alcance do currículo e dos elementos que o constitui não se restringe à escola; uma das mais emblemáticas intuições de Freire foi compreender o currículo em múltiplas situações educacionais, numa clara valorização das experiências cotidianas vividas pelos sujeitos da educação. Numa primeira aproximação, pode-se dizer, portanto, que o currículo para Freire constituir-se-ia do conjunto de experiências existenciais de homens e mulheres, devendo-se observar a continuidade dessas experiências nas relações que se estabelecem entre a cultura escolar e aquela que constitui os sujeitos mais amplamente. Como o currículo escolar se constrói a partir de uma seleção mais ou menos arbitrária de experiências e significados, o autor elege aqueles significados existenciais reconhecidos como relevantes pelos próprios sujeitos da ação educativa como devendo ser os fios condutores das atividades curriculares. Sem excluir a relevância da chamada cultura escolar formal, entende que esta precisa ser situada e ressignificada pelos sujeitos nas ações educativas concretas. Freire parte da referência à vocação ontológica do humano, sem, contudo, pressupor uma essência humana, uma natureza fixa e substantiva no homem. Mesmo recusando o relativismo, o autor reconhece a relatividade da condição humana, entendida como situada, de modo que se pode dizer que Freire possui um profundo respeito pelas singularidades existenciais dos sujeitos, o que favorece o ideal de pluralidade cultural que atualmente circula nas teorias educacionais. Em suas contribuições para a teoria do currículo, Freire revela-se herdeiro dos sonhos iluministas de um homem emancipado, autônomo e crítico, aproximando-se, portanto, do ideal moderno de educação; no entanto, sob vários aspectos, supera e ressignifica essa posição de vínculo com a modernidade. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6615 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Elegemos como fio condutor teórico no desenvolvimento da nossa problemática, a Pedagogia do oprimido, por considerarmos que nesta obra estão as principais teses e os conceitos mais importantes do pensamento político-educacional de Paulo Freire, reafirmados e ressignificados em obras como Pedagogia da esperança e Pedagogia da autonomia (Freire, 2005, 1992, 1996). Neste sentido, este trabalho não está tomado da preocupação de flagrar os conceitos do autor no momento da sua emergência histórica, mas de entendê-los na teoria do pensador quando já estão bem configuradas as suas próprias teses, quando seus argumentos estão consolidados e os compromissos políticos estão claramente assumidos. O estudo desenvolveu-se a partir de fontes bibliográficas sobre as quais foram aplicados os procedimentos da leitura aprofundada das unidades de sentido previamente selecionadas, a análise do conteúdo textual – explicação, comentário e dissertação –, o que deu corpo a uma reflexão crítica (Folscheid; Wunenberg, 1999; Cossuta, 2001). Apresentando a problemática Na compreensão das contribuições de Freire para a teoria do currículo faz-se necessário interrogar sobre o lugar da cultura como ponto de partida da sua práxis político-pedagógica. A possibilidade de realização da liberdade é inseparável da assunção de si como sujeito. Como a liberdade e a condição de sujeito são atributos inalienáveis dos seres humanos, a educação e o currículo apresentam-se como importantes mediações no estabelecimento de uma relação de continuidade/descontinuidade dialética entre as experiências culturais cotidianas e a cultura escolar, nas relações dos seres humanos com a natureza e entre eles. Diferentemente da tradição marxista que reconhece a centralidade da infraestrutura na compreensão do que seja o social e no como proceder na ação revolucionária, Freire apostará na centralidade da cultura, naquilo que a teoria social marxista denomina de superestrutura (Bedeschi, 2006). Não se trata, contudo, de afirmar que Freire desconhecesse ou desconsiderasse a relação dialética entre as duas instâncias estruturantes da sociedade, mas de reconhecer que ele ressignifica a relação entre a infra e a superestrutura, o que não deixa de ter conseqüências na forma de conceder sentido à ação político-revolucionária. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6616 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Assim, a luta pela libertação e a criação de um ser humano novo, passariam necessariamente pela conscientização que, na sua radicalidade, só se concretiza mediante a revolução cultural, justa reação à colonização cultural que se coloca na base da opressão. Evidente que esta revolução não se realizaria como ação apenas sobre as consciências em uma espécie de guerra simbólica. Não parece possível a conscientização do opressor e a sua libertação por meio somente do diálogo. Em qualquer que seja o caso, o essencial é pensar em uma ação revolucionária que tenha consciência de si, que se saiba meio inevitável de transformação social que não deve se estender indefinidamente, mas precisa ter um termo, pois deve ser apenas um meio doloroso que precisa se auto-abolir, ao abolir o que a gerou. Daí porque a violência revolucionária só se justifica caso não sirva para que haja uma mudança de posição: os oprimidos virem opressores dos que oprimem (Freire, 2005). O que deve ser abolido não é uma forma ou outra de cultura, mas todas as expressões culturais de opressão. Por isso se pôde constatar que, na Pedagogia do oprimido, a cultura e a sua expressão pelos próprios sujeitos da educação mostram-se como uma ancoração antropológica fundamental no processo de conscientização e de desalienação que devem ser concomitantes às práticas sócio-culturais de libertação. Portanto, mesmo que fale de uma “vocação ontológica” do homem a ser mais – apesar dos exemplos históricos que o rebaixa na sua dignidade intrínseca –, Freire (2005) insiste na compreensão situada das formas variadas de ser-no-mundo. Em razão disso recusa-se em aceitar qualquer postura etnocêntrica, impositiva ou invasora das identidades em nome de práticas dialógicas, participativas e libertadoras que passam pelo auto-reconhecimento ontológico de que ser sujeito é, também, assumir-se pelo pertencimento sócio-cultural e histórico a determinado ethos, que não deve ser, por sua vez, aceito passivamente, mas compreendido, criticado e se necessário, transformado. Freire sabe dos potenciais do logos, da necessidade de o ser humano pensar por conta própria e isso já seria uma primeira manifestação de um sujeito emancipado, não tutorado. Contudo, o ser sujeito e a liberdade, indispensáveis ao ser mais, não se esgotam e nem terminam no espaço privado da consciência de si individual, em algo como o eu penso cartesiano ainda presente em uma fenomenologia transcendental e idealista da qual Freire se afasta. Mais próximo de uma fenomenologia existencial e hermenêutica, o autor repete com insistência que entende o homem como ser-com-o- Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6617 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo outro-no-mundo: o mundo social e público é o espaço da liberdade, de modo que a consciência solipsista e individualista perde o lugar de fundamento da ação ou do conhecimento humano. O logos, a palavra, a voz, são atributos humanos que, quando autênticos, contrapõem-se ao silêncio ou à reprodução, como eco, de um discurso “hospedado”, assumido, alienadamente, como próprio. Deve-se recusar igualmente o monólogo, o discurso gerado por uma subjetividade isolada e que pretende impor-se como tal. O diálogo passa a ser o único meio apropriado para o encontro dos sujeitos que se reconhecem nesta condição. Os pressupostos filosóficos que permeiam as contribuições de Freire para a teoria do currículo são da maior atualidade em um tempo em que se procura repensar o sentido da revolução, do socialismo, da democracia, das políticas educacionais e curriculares levando-se em conta as diversas experiências culturais dos sujeitos e os mecanismos de participação na construção da vida política e sócio-econômica. Freire não foi de nenhum modo insensível à diversidade e à pluralidade destas experiências educativo-culturais não escolares dos variados grupos humanos, por isso critica com sincera veemência os paradigmas monológicos das práticas escolares existentes, destacadamente nos processos de ensino-aprendizagem de alfabetização de jovens e adultos. Pode-se constatar em Freire contribuições das filosofias existencialistas de Karl Jaspers e Mounier, particularmente no que concerne aos conceitos de sujeito e liberdade. Paiva (2000) defende com suficiente fundamentação histórica este vínculo. No entanto, já se pode verificar em Pedagogia do oprimido a influência da teoria crítica, como se evidencia nas citações explícitas de Erich Fromm. Não se pode negar, igualmente, a presença da filosofia hegeliana nos argumentos de Freire e mesmo a citação de Hegel, mas é do mesmo modo claro o esforço por ir além do idealismo, como se verifica na insistência com que o autor enfatiza que a libertação exige engajamento concreto, ação e reflexão e não apenas conscientização definida como resultado de uma ação educativa cognitiva. Não se poderia deixar de destacar que o conceito de práxis na teoria freireana não se confunde com uma simples prática teórica ou com mera atividade sensível, definindo-se, efetivamente, no sentido marxista de unidade dialética entre ação e Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6618 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo reflexão, teoria e prática (Marx, K.; Engels, F., 1986). Toda argumentação de Freire em Pedagogia do oprimido, assim como em sua última obra publicada em vida, Pedagogia da autonomia, é permeada pela categoria “práxis”: a palavra, o logos, só ganha força quando não se separa o discurso do fazer, a sintaxe da semântica, a liberdade dos seus condicionamentos sócio-históricos, evitando, concomitantemente as visões voluntaristas e o reducionismo mecanicista na compreensão da ação humana. Contribuições de Freire para a teoria do currículo A obra de Freire permeia-se, do início ao fim, pelo conceito de liberdade. Esta é uma das categorias fundamentais do autor para referenciar a teoria do currículo. Não menos importante é o conceito de sujeito que só pode ser entendido quando remetido ao de liberdade e vice-versa. Por fim, mas igualmente relevante, é a compreensão freireana de cultura, que aqui será pensada de modo orgânico com os dois conceitos anteriores, com a mediação do de diálogo e o de práxis. Por fidelidade ao pensamento do autor, deve-se destacar que as palavras e os conceitos só ganham sentido quando são compreendidos no interior da totalidade das vivências de sujeitos determinados. O engajamento em prol de vivências livres dos sujeitos da cultura como expressão de uma autêntica existência fez parte da luta teórica e prática de Freira. Este era um dos meios de construção de uma democracia radical, buscada por Freire, tanto no seu país quando em diversos outros solos por onde passou este andarilho esperançoso e visionário atuante. Identificou-se com a luta de uma diversidade de oprimidos, como: operários urbanos, trabalhadores rurais, mulheres, desempregados e até com os párias indianos (Zitkoski, 2006). É certo que foi muitas vezes criticado por ter preferido falar de relação opressoroprimido e não ter adotado a terminologia marxista de luta de classes já suficientemente consagrada nos anos 1960 como instrumento heurístico e teórico-prático nos engajamento dos grupos político-revolucionários. Contudo, o seu pensamento converge com o marxista no que concerne aos fins da ação revolucionária: uma sociedade justa e igualitária em que os seres humanos até então negados tivessem a sua humanidade reconhecida teórico e praticamente pela superação dialética das contradições entre opressores e oprimidos, sem que neste movimento a subjetividade fosse subsumida Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6619 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo numa totalidade social, mas antes se mantivesse relativamente livre em uma forma de sociabilidade que a favorecesse. Por não abrir mão de um núcleo de liberdade subjetiva que não se depravasse em subjetivismo ou em individualismo, Freire apostou na necessidade de conscientização como ocorrência simultânea à ação transformadora. Parecia inadmissível que a consciência do projeto, dos fins, só aparecesse após a consumação da ação. Contraria a idéia de que ser sujeito implica na capacidade de projetar-se, de antecipar o sentido da ação no pensamento e em modificá-la em função dos resultados daquelas, dialeticamente. Freire deu ênfase a conscientização como um importante passo na efetuação de uma educação libertadora da alienação a que estão submetidos os oprimidos ao ponto de temerem a própria liberdade. Mas como compreender esta categoria, uma das mais relevantes do pensamento de Freire e particularmente para a teoria curricular? Estaria a liberdade nele limitada às determinações do liberalismo, que Paiva (2000) reconhece ter sido herdado, por Freire, dos isebianos e que ainda poderia ser flagrado na gênese do pensamento freireano, especialmente no período que vai do final da década de 1950 a meados dos anos 1960? Ou Freire compreende a liberdade como algo que transcende a simples idéia de uma possibilidade de mobilidade individual na sociedade? William Westermann citado por Arendt (1999), na obra Between Slavery and freedom, define o que Aristóteles entendia como pressupostos da liberdade: “[...] status, inviolabilidade pessoal, liberdade de atividade econômica e direito de ir e vir” (p. 21, nota de rodapé). Observa-se que a liberdade é compreendida, antes de qualquer coisa, por atributos públicos, relacionados à vida política. A escravidão, por sua vez, se configura pela ausência de todos ou de alguns desses atributos. Em outro contexto, mas fazendo referência, recorrentemente, aos exemplos históricos de que se quer herdeiro, sabe-se que o capitalismo liberal sempre se apresentou como defensor da liberdade3 de fé, de expressão, de pensamento, do direito de ir e vir. Indissociáveis do atomismo social, tais direitos são entendidos como propriedades individuais básicas que seriam inerentes a todos os seres humanos às quais 3 Os títulos de duas importantes obras inspiradoras do ressurgimento do liberalismo já indicam a centralidade do conceito de liberdade: Capitalismo e liberdade, de Milton Friedman e Caminhos da servidão, de F. A. Hayek, que contém idéias que antes foram publicadas em um artigo denominado “Liberdade e sistema econômico” (HAYEK, 1990). Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6620 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo se junta a conservação da propriedade privada de bens materiais. O Estado e o governo só podem justificar a sua existência e legitimar o poder que exercem na medida em que trabalham em prol de tal liberdade. Sustentamos que esta compreensão de liberdade liberal não se identifica ou se assemelha à de Paulo Freire. Muito embora seja inegável a influência do existencialismo de Jaspers e mesmo da Fenomenologia do espírito de Hegel, como lembra Paiva (2000), sustentamos que a visão de liberdade de Freire avança a posição clássica, liberal ou idealista, buscando inspiração no marxismo. Por isso, em Pedagogia do oprimido, Freire (2005) desqualifica não o ideal liberal de liberdade, mas a impossibilidade de sua efetividade sob as condições do capitalismo. Tal ideal é ideológico e por isso não resiste ao teste da práxis: uma análise da “lógica” do real funcionamento do capitalismo mostra em toda parte a desumanização da maioria dos homens, a sua submissão às necessidades da vida a condições alienantes de trabalho. O Estado liberal, ao invés de garantir a liberdade, a igualdade e a solidariedade efetivas, passa a ser o instrumento de opressão e injustiça legal. Pode-se deduzir do pensamento de Freire (2005, 1996), o seu reconhecimento de que o liberalismo e o neoliberalismo não têm sido radicais na discussão da alienação do homem e da sua desumanização diante das relações de produção capitalistas concretas, assim como não questionam o axioma que é a sua condição de possibilidade: a prioridade do lucro econômico, da propriedade privada e da apropriação do excedente por uma minoria. Sob o capitalismo, como falar, pois, de autêntica liberdade como valor éticopolítico, se as relações entre os homens e mulheres se baseiam na igualdade formal sem força para abolir a desigualdade real? O que significa fazer da liberdade o valor fundante, se a igualdade e bem-estar são negados na prática à maioria dos seres humanos? Pode-se dizer com Adorno (2006) na sua crítica ao ideal liberal de liberdade, que [...] o apelo à liberdade do indivíduo isolado tem algo de vazio, a liberdade não é um ideal, que se ergue de um modo imutável e incomunicável sobre a cabeça das pessoas – não é por acaso que esta imagem lembra a espada de Dâmocles –, mas a sua possibilidade varia conforme o momento histórico (p. 72). Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6621 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Também o pensamento freireano não entende a liberdade como livre-arbítrio ou qualidade interna e substancial da vontade individual, mas como construção humana, sócio-historicamente condicionada. Faz-se necessário que homens e mulheres, na condição autêntica de sujeitos, engajem-se na conquista e constituição concreta da liberdade. Por ser tomado de profundo respeito pelo outro, Freire (2005) não admite a consciência prévia do objetivo da ação – uma das condições da liberdade – seja atributo somente de uma vanguarda, que só seria compreendido pelas bases após a consecução do projeto. Uma Pedagogia do oprimido deve ser entendida, portanto, como uma proposta curricular político-revolucionária que concede um lugar essencial aos processos educativos dialógicos com alcance que transcende ao âmbito da escolarização instituída, embora não deixe de considerá-la em tudo o que propõe. Passa-se, agora, à reflexão da noção de cultura, sem deixar de remeter esta categoria às de sujeito e liberdade, como se vem procedendo até o momento, ao se fazer mútuas remissões com o fim de explicitar as relações entre estas categorias. Na elucidação do que seja a cultura, o pensamento freireano confronta e compara homem e animal. A humanização se realiza enquanto processo de tomada de consciência da condição de sujeito que, com a sua atividade de trabalho transforma o mundo e a si mesmo como componente dessa totalidade mundana. É pela consciência de si que se procede à superação da animalidade, na medida em que esta é entendida como embrutecimento frente ao mundo e inconsciência dos objetivos da ação. Muito freqüentemente o autor explicita o comportamento de autodesvalia por um reconhecerse e identificar-se dos seres humanos com a sua condição animal. Embora se fale universalmente da cultura como marca do humano, não se desconhece a diversidade do existir e a sua pluralidade que se expressa em muitas manifestações culturais e estas são entendidas como formas de vida, modos de homens e mulheres se fazerem, constituírem as suas subjetividades. Assim, a idéia de vocação ontológica do ser mais, de acordo com uma ética universal (Freire, 1996), admite, concomitantemente, a legitimidade das maneiras ricas e variadas de singularização dos sujeitos no interior de uma totalidade dialética. Não se pode pensar, no entanto, que as culturas, por si mesmas e na sua totalidade, representem uma positividade, pois o movimento de civilização e de inserção Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6622 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo cultural e educativa pode voltar-se e historicamente tem se voltado contra o ser mais dos seres humanos. O ser consciente e o conhecer como atos meramente cognitivos não libertam e nem humanizam, uma vez que há sempre a possibilidade de alienação, de o produto subordinar e oprimir o produtor “reificado”. Ficam-se diante da “naturalização” do cultural, do medo à liberdade, da existência inautêntica, fenômenos em que o sujeito toma a história, a realidade econômica e sócio-cultural por destino e fatalidade frente aos quais só restaria entregar-se ao porvir como processo inexorável (Freire, 2005, 1992). Considerando essa complexidade, pode-se dizer que a compreensão freireana de cultura emerge da análise da relação entre homem e natureza, da qual derivará formas diversas de existência. A cultura, por si só, possibilita tanto a humanização quanto a desumanização, dependendo do grau de liberdade e auto-reconhecimento dos sujeitos como das formas de suas relações. Desse modo, a constituição do mundo humano resulta das relações entre os sujeitos e desses com a natureza. Há uma ligação do cuidado com a natureza e o culto ao divino ou às forças que se sobrepõem ao ser humano. Este tipo de consciência relaciona-se de perto a um tipo de reificação que consiste em minimizar as possibilidades de ação transformadora da realidade, por se pensar as relações históricas como submetidas a forças que transcenderiam a capacidade humana de interferência, de modo que a “fatalidade” e o “destino” assumem um lugar fundamental na forma de estar no mundo com os outros (Freire, 1982, 2005). Não se pode esquecer que uma forma de cultura, a letrada, tem sido negada, historicamente, à parte da população brasileira pobre, especialmente no território do campo. Daí porque se tem considerado um sério problema a resolver para o estabelecimento de formas mais democráticas de relação social. Freire realizou uma leitura fortemente política desse fenômeno: soube como ninguém conceder-lhe uma importância antropológica e político-cultural ao superar uma visão ingênua e técnica da alfabetização (Freire, 1982, 2005). Sem negar que se devam dominar as competências procedimentais de leitura e de escrita, ele procurou redimensionar o seu sentido. Ao definir o ensino-aprendizagem – significativo e humanizante – próprio aos sujeitos em contraposição à forma animalesca de aprender no adestramento, Freire Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6623 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo observa que “[...] estudar, no fundo, é uma atitude frente ao mundo. Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto” (1982, p. 11). Mesmo sem dominar as técnicas de leitura de escrita, é possível realizar uma importante leitura do mundo como campo existencial que contém além dos signos gráficos da língua natural e da matemática, uma enorme variedade de outros signos e sentidos passíveis de compreensão e expressão. A supervalorização da cultura letrada provocava uma dificuldade essencial na aproximação desta com outras experiências existenciais de indivíduos ou grupos em que aquela não se fazia presente, porque se partia da pressuposição de uma falta, da carência e da alteridade negativa do não alfabetizado, como se ele devesse ser visto pela ausência de um componente civilizacional que estaria na origem do seu embrutecimento e desumanização. Para entender o real sentido da desumanização, fez-se necessário a redefinição do lugar do ler e do escrever e mesmo da escolarização de maneira ampla que não se restringe a ser somente uma nova forma de entender a ação metodológico-pedagógica dos educadores, mas implica também e de maneira mais profunda uma redefinição de caráter ontológico-antropológico da educação (Freire, 2005). A noção de leitura proposta por Freire é uma das chaves na compreensão dos homens no processo de educação, sendo mais, portanto, que a sustentação metodológica da alfabetização de adultos. O pressuposto curricular para o acesso ao campo de sentido não são as técnicas de leitura e escrita e os campos de inscrição e de interpretação que elas possibilitam, mas é antes a capacidade de pensar, de expressar esse pensamento e fazer da palavra experiência de liberdade. Inegavelmente o modo de Freire pensar as fontes da educação difere da crença tradicional e esse respeito. O meio essencial da ação educativa já não é mais, preferencial e restritamente, os símbolos inscritos em livros e em outros campos semelhantes de fixação do sentido, mas passa a ser o mundo em que o homem se faz com os outros: é a experiência que nele se tem que deve mediar o processo dialógico entre as pessoas e deste resulta a formação. O diálogo, contudo, não é uma simples conversa em que se trocam e reproduzem as idéias, reafirmam-se convicções arraigadas e apreendidas de modo espontâneo. Não se identifica, do mesmo modo, à tradição curricular do disputatio, do debate de idéias Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6624 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo envolvendo uma diversidade de interlocutores em uma espécie de jogo que se contenta em permanecer no campo do rigor dos raciocínios, da tese e antítese, da comparação dos argumentos cujo julgamento é pautado pela consistência interna das assertivas. Freire visa algo mais que um ensinar a raciocinar, a se apropriar de conceitos e teorias e comentá-los com esmero retórico ou lógico-gramatical. As questões que interessam não são as formalmente levantadas pelos livros, pensadores e teóricos autorizados, mas aquelas que emergem da existência, das experiências vivenciadas e que tocam os sujeitos de modo profundo. As questões relativas ao conhecimento e à verdade devem ser inerentes a concretude da existência, daí porque não podem ser decididas de modo sintático, por critérios de consistência lógico-discursivos, mas tão-somente na práxis, pela qual a palavra é remetida à ação e vice-versa. A sintaxe e a semântica só ganham sentido em referência às situações existenciais das quais emergem o discurso, pela sua força de mobilização e engajamento, enfim, por representar o feito e se dispor a fazer o que se antecipa como representação do futuro. Os questionamentos, geradores dos diálogos, nascem de um processo de exame de crenças, de confronto amoroso de opiniões com relação às experiências compartilhadas do mundo: trata-se de uma experiência de “ad-miração” na qual está implicado o ser do ente humano na sua totalidade, o que concede importância à reflexão e à elaboração lingüística. O diálogo e a dialética em Freire, não são, portanto, fenômenos eminentemente lógico-lingüísticos, mas implicam um movimento que vai do pensamento à ação e viceversa. Mais que dialética conceitual, dinâmica de idéias, exige-se a materialidade do discurso, a consideração de um contexto, de uma situação espaço-temporal em que sujeitos localizados sócio-histórico e culturalmente existem de determinadas maneiras. Sendo assim, todo ato de ensino-aprendizagem e de aprendizagem-ensino, deve levar em consideração os sujeitos como dotados da capacidade de pensar e atuar, de refletir sobre uma situação em que vive no mundo, não somente com o fim de constatar que o mundo é assim, mas que por ser como é, necessita de mudar em um sentido determinado, coletivamente. Embora os condicionamentos históricos e sócio-culturais possam limitar as possibilidades de os homens exercerem a condição de sujeitos do seu discurso e da sua Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6625 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo ação, todos estão potencialmente habilitados a expressar a sua existência. Faz-se necessário substituir a compreensão da consciência como res cogita pela de consciência-atividade. Neste caso, mais importante do que acumular representações na memória e apreendê-las de maneira erudita como um tesouro cultural a guardar para exibir, seria a compreensão das possibilidades de criar cultura e formas mais perfeitas de existência no mundo. A cultura como tesouro acumulado cuja referência principal seria a temporalidade passada, deve ceder lugar à construção coletiva de um mundo projetado como inédito viável (Freire, 2005) cuja concretização não se dará mecanicamente por uma dinâmica espontânea, mas pelo engajamento e pelas ações que apostem em um ainda-não, em um dever-ser antecipado intersubjetivamente e avaliado como poder-ser. O pressuposto antropológico-epistemológico dessa esperança-engajada é o de que há incompletude e inacabamento do homem que conhece, projeta e se constitui historicamente. O ente humano só pode ser compreendido por meio de uma ontologia da finitude, da incompletude, o que se reflete na sua forma de conhecer. Tal modo de posicionar o homem cria o espaço de exercício da liberdade, não como um lugar interno onde se situa o livre-arbítrio para decidir o que escolher entre as opções dadas, já existentes, mas como modos inéditos de ser-com-os-outros-no-mundo. A carência de plenitude, tanto do saber quanto do ser, não é uma condição provisória e passageira, mas um constitutivo da condição humana. Daí porque se justifica a necessidade da comunicação, do encontro com o outro. Tais ações em direção ao outro e ao inédito viável são motivadas pela consciência da magnitude do não saber e da imperfeição da existência em meio a pequenez do que se conhece e se é provisoriamente. O diálogo faz todo sentido para sábios-ignorantes que estão sendo no mundo. Experiência cultural dos sujeitos Paulo Freire valorizou uma práxis educativa que se alimenta das experiências e necessidades dos sujeitos, fonte dos reais problemas em face dos quais eles são desafiados ao pensamento e à ação. A dissociação de experiência e pensamento gera a alienação, o distanciamento do homem de si mesmo, da sua vocação ontológica a ser mais. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6626 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Valoriza-se, portanto, a cultura como condicionante do existir, mais especialmente como processo de construção de homens e mulheres. Longe de valorizar uma postura de imersão apassivadora dos sujeitos na natureza, considera-se indispensável a consciência de ser agente em face dos objetos, o que implica a responsabilidade ética e política pelas conseqüências das ações para o mundo humano ou natural. Assim, a cultura seria um traço histórico comum central à compreensão do ser humano. Em qualquer que seja o momento ou o local, se é possível falar de um ser humano, o é em razão de ele poder apresentar-se culturalmente constituído e em processo de constituição. Por isso, as idéias freireanas antes apresentadas não se referem a uma condição ontológica específica, mas querem dizer respeito à condição humana em geral, que só ganha sentidos autênticos nas situações diversas vividas pelos sujeitos. Isso não significa, portanto, que se esteja operando a partir de ontologia da natureza ou essência fixa, universal e necessária do ser humano. A opressão e a liberdade, por exemplo, só adquirem sentido nas situações concretas que singularizam as experiências humanas como são vivenciadas. Tendo isso em vista, pode-se dizer que a humanização não começa com a educação escolar e nem com a cultura formal que marca historicamente a escolarização. O homem oprimido pode desconhecer diversas experiências valorizadas pela chamada cultura científico-tecnológica e filosófica, assim como os ditos intelectuais ignoram uma infinidade de experiências culturais não escolares. Ambos sabem e ignoram, sem que o não-saber de cada um represente um estar fora do mundo cultural. Sensível a violência simbólica de todas as formas e graus de etnocentrismo, Freire sustentou com vigor a tese de que não se deve pensar o homem separado da sua cultura. As culturas são diferentes, mas a falta da cultura escolar, por exemplo, não deve ser interpretada, pura e simplesmente, como uma situação de incultura. A teoria freireana trabalha com a idéia de que a educação desloca-se nas fissuras existentes entre saber e ignorância: ninguém se coloca em um dos dois extremos. Os saberes e as experiências culturais são diferentes, variadas e diversas. Por isso, nem incultura e ignorância, por um lado nem saber e cultura, pelo outro. Trata-se de reconhecer a necessidade de trocas culturais, de complementação dos saberes, numa relação que visa à horizontalidade e evita a hierarquização. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6627 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Diante disso, a cultura pode se apresentar enquanto um componente de realização dos sujeitos em que eles devem assumir e reconhecer o pertencimento e expressá-lo existencialmente, inclusive nas suas contradições. Ou, por outro lado, a cultura pode representar “violência”, “invasão” em que os sujeitos são assujeitados, por assumirem ideologicamente e contra os seus próprios interesses, formas de representação, de existência impostas e, por isso, formadoras de consciências inautênticas. Considerações finais Sujeito e liberdade são noções correlatas, inseparáveis, e podem ganhar efetividade nas práticas de auto-constituição do humano por meio da cultura, entendida como livre e consciente expressão da existência nas diversas circunstâncias. A cultura, quando autêntica, representa o que o homem faz de si com a sua liberdade enquanto ser histórico e social. Esta maneira de definir a liberdade e a cultura não representa, contudo, a descrição do que tem sido as práticas culturais dos sujeitos, pois sempre é possível, em algum grau, a alienação, visto que a liberdade jamais se completa, em função de haver condicionamentos e determinações, situações-limites inexoráveis e outras históricas. As últimas são superáveis pela liberdade engajada. Pensar a liberdade como plenitude, seria entender mal a vida humana na sua materialidade, desconhecer a resistência do real, que o homem faz a sua história sob determinadas circunstâncias coletivamente criadas, mas que se interpõem enquanto realidade instituída, portanto não é eliminável por simples atos voluntariosos. O término prático de toda alienação implicaria na identidade entre querer e poder, materialidade e idealidade, liberdade e necessidade. Desse modo, só do ponto de vista teórico o sujeito pode reconhecer a totalidade de suas possibilidades e impossibilidades. Parte da liberdade consistiria na consciência dessas impossibilidades. Freire tem consciência de que ser sujeito é assumir a liberdade, mas também revela não desconhecer a dialética entre liberdade e necessidade, natureza e cultura. É neste jogo que se define a sua ontologia da finitude, a idéia de inacabamento do ser humano e de persistência da dialética e do movimento das contradições. Para além dos limites reais da liberdade, há as reificações auto-impostas, o medo à liberdade que inventa condicionamentos e cria situações-limites, mesmo quando se Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6628 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo trata somente de uma circunstância difícil de superar e que exige um engajamento efetivo e a assunção dos riscos implicados em todas as ações humanas, na medida em que toda escolha livre implica contingência. Em nome dessa liberdade assim compreendida, Freire contrapõe-se às doutrinas que vêem a história como determinada por leis inflexíveis que conduziriam os sujeitos, inexoravelmente, a determinados fins. A idéia de vocação ontológica do homem a ser mais, não se confunde nem com destino nem com uma história mecanicista e pautada numa teleologia que fosse independente das decisões conscientes dos entes humanos. Freire não desconhecia a importância dos antagonismos de classe e estava ciente das contradições entre os meios e relações de produção. Contudo, prefere construir o seu pensamento em torno da contradição entre opressores e oprimidos. Assim, a ação cultural libertadora, sem excluir as relações de classe, mostra-a em círculos concêntricos que envolvem diversas outras relações de opressão: entre países pobres da periferia do capitalismo e os centros imperialistas, do confronto das classes que atravessam fronteiras e efetua interpenetrações, de modo que se descobre uma periferia no centro e vice-versa. Dentro desta lógica, há, também, relacionamentos baseados na opressão no interior das regiões, dos países, das cidades, da área urbana em relação à rural, no interior desta, permeando os grupos sociais, as famílias e nas demais relações micros, como as existentes em instituições escolares. O compromisso freireano com o oprimido na luta por liberdade se expressa no amor revolucionário e engajado aos “esfarrapados” e aos “condenados da terra” a que se refere Frantz Fanon (1979), uma das inspirações de Freire. A busca de liberdade coloca-se como movimento contra a colonização objetiva e subjetiva em suas diversas manifestações e modalidades, sem que esquecer as contradições materiais da existência em que a posse, o ter é um dos meios de humanização do ser mais. Uma teoria do currículo em Freire só pode ser compreendida no interior dessa complexa rede conceitual. Ampara-se em uma pedagogia do oprimido, por ser esta indispensável em face da crença do autor na necessidade da mudança de consciência que não ocorre mecanicamente, como um efeito imediato de mudanças na infraestrutura. Por isso Freire enfatiza, com base no freudomarxismo de Erich Fromm, a necessidade de uma tomada de consciência dos condicionamentos introjetados Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6629 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo historicamente e solidificados como uma espécie de “inconsciente”. Estes processos objetivos e subjetivos atendem a uma dinâmica histórica e dialética só superável numa práxis sócio-educativa em que o currículo é essencial. A ação educativa dos sujeitos é incompatível com uma teleologia antevista como legalidade da história; mas esta concessão à contingência não leva a teoria freireana ao pessimismo, pois há perspectivas abertas pela esperança. Não se trata de esperar algo inscrito no destino ou em uma necessidade histórica, mas antes de se engajar em uma “esperança ativa”, de apostar nas capacidades humanas de agir de modo informado e consciente, visando a efetivação de um projeto coletivo que objetive o ser mais de homens e mulheres. Liberdade e ser sujeito são atributos essenciais que contribuem para referenciar uma teoria do currículo de inspiração freireana. Contudo, essa teoria não pode ser definida como idealista, pois só enxerga a possibilidade de se criar uma subjetividade emancipada no caso de os seres humanos assumirem, consciente e efetivamente, a luta comum para atingir este objetivo. Fiel a sua ontologia da finitude e da incompletude do humano, o pensamento de Freire não estaciona e enfrenta as suas circunstâncias. Em obra como a Pedagogia da autonomia, o filósofo critica severamente o neoliberalismo e o seu projeto de sociabilidade humana, não apenas pela desumanização, injustiça e pobreza que promove – reatualizando e ampliando a opressão –, mas principalmente por tentar se constituir em teoria da história que fecha as possibilidades de mudança, a esperança de emancipação e da possibilidade se ser sujeito. O que há de mais cruel no neoliberalismo é o seu fatalismo, o querer se constituir em única possibilidade de sociabilidade em uma negação brutal da liberdade dos sujeitos para se autoconstituírem e criarem uma nova realidade sócio-econômica e cultural que seja pautada por relações realmente humanas e fraternas. O neoliberalismo leva a educação e o currículo para o pragmatismo extremado que sacrifica a ética do ser mais e os seus valores ao mercado, que passa a medir e determinar o que vale ou não, ou que tem ou sentido. Nega-se, enfim, a possibilidade de os sujeitos se realizarem como tal, na medida em que são desestimulados pela nova ideologia a acessarem outros sentidos da existência e a investirem em autênticos projetos de existência contrários à lógica estabelecida e às suas possibilidades. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6630 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo Referências ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. 4ª. Ed. 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MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia alemã (Feuerbach). 5ª. Ed. São Paulo: HUCITEC, 1986. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6631 Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. São Paulo: Graal, 2000. ZITKOSKI, Jaime José. Paulo Freire e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage 6632 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” O COTIDIANO ESCOLAR E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA COMO POTÊNCIA PARA A INVENÇÃO DO CURRÍCULO Dulcimar Pereira Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo O COTIDIANO ESCOLAR E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA COMO POTÊNCIA PARA A INVENÇÃO DO CURRÍCULO1 Dulcimar Pereira2 Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni RESUMO: O presente estudo busca apresentar as práticas de alunos e alunas produzindo/inventando currículos, no cotidiano escolar, a partir das maneiras de saber, fazer e brincar. Assim, buscamos compreender como os alunos e alunas das séries iniciais de uma escola de ensino fundamental do município de Vitória, ES, tecem seus conhecimentos entrelaçados com os outros tantos do coletivo em um movimento de criação curricular. Utilizamos, para a produção dos dados, o “mergulho” (ALVES, 2001) no cotidiano escolar, entendendo-o como potência para a criação, produção e invenção de possibilidades, discussões, busca de alternativas, fabricação, enfim, como espaçotempo que potencializa a criação e invenção da vida. Como intercessores teóricos utilizamos Alves (2001), Certeau (1994), Foucault (2006), Snyders (1993), dentre outros. Concluímos que, com seus modos de ser, fazer, brincar... e com as linhas de fuga em relação aos engessamentos dos horários, das regras, das filas, das aulas...alunos e alunas vão desenhando os currículos a partir das experiências vividas, vão inventando uma poética e estética da vida na sua relação com si e com o outro. PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano escolar. Currículo. Estética da existência. Nos corredores da escola... Uma das minhas estudantes contou-me que, na escola onde ela leciona, um dos meninos de uns cinco anos foi flagrado pela diretora em plena disparada pelos corredores. Imediatamente, a autoridade resolveu exercitar seu poder. _Rafael, você sabe onde você está? Está numa es-co-la! _Professora, eu sei que estou num cor-re-dor. Parou um minuto e completou vitorioso: _Não é um andador. E seguiu veloz... (LINHARES; QUELUZ;LINHARES, 2008, p.70) 1 Este trabalho é parte integrante da pesquisa “O cotidiano escolar como comunidade de afetos/afecções em suas conversações e imagens: cultura, currículo e formação de professores”. Equipe responsável: Profª Drª Janete Magalhães Carvalho (coordenadora), Dulcimar Pereira (doutoranda), Larissa Rodrigues (mestranda), Sandra Kretli, (doutoranda), Sandra Machado (mestranda), Tânia Delboni (doutoranda). Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Agência de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Doutorandas em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6638 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo Crianças! Elas sempre têm muito que falar... E como nos surpreendem! É claro que muitas vezes não são ouvidas, mas encontram maneiras de dizer e de praticar o espaço onde estão. Na escola, também isso acontece: elas estão durante todo o tempo cercadas com seus deveres e responsabilidades, mas subvertem essas lógicas e encontram outras maneiras de ser e estar nesse espaçotempo3 e “[...] continuam seu velho ofício, reeditado em cada tempo e espaço, girando o mundo ao contrário, estremecendo velhas maneiras de percebê-lo e intervindo despretenciosa e repentinamente, virando tudo de ponta-cabeça (LINHARES; QUELUZ;LINHARES, 2008)”. Dessa maneira, inventam outros currículos e vão incorporando-os às suas vivências na escola. Segundo (CARVALHO, 2007) o currículo apresenta tanto a dimensão do vivido como a do concebido (diretrizes, propostas, planos, etc.), no cotidiano escolar e para além dele. Sendo o concebido e o vivido diferentes faces do mesmo fenômeno, uma atravessa à outra, envolvendo nesse movimento tanto processos de normalização, de sujeição, como a produção de movimentos de resistência em seus saberes, fazeres e poderes. O ambiente escolar, ainda que sob a égide da disciplina, com o rigor das filas, dos horários, dos regulamentos, vive outros atravessamentos que incorporam às suas histórias as táticas (CERTEAU, 1994) de seus praticantes. E as crianças, com as suas brincadeiras, sejam no pátio, no momento do recreio, ou da sala de aula inventam currículos que alteram as lógicas da escola e que também proporcionam encontros, a partir do cuidado de si e do outro, o que Foucault (2006a) chama de uma estética da existência. Entendemos que há modos de fazer e de criar conhecimentos diferentes daqueles instituídos/legitimados pela modernidade, pautados na linearidade e hierarquização de saberes organizados em um tronco comum. A noção de rede nos ajuda a pensar em uma outra maneira, em uma arte de tecer saberes e fazeres de conhecimentos e significados no cotidiano escolar e em tantos outros cotidianos da prática coletiva. É nessa direção que o presente estudo busca apresentar as práticas de alunos e alunas produzindo/inventando currículos, no cotidiano escolar, a partir das maneiras de 3 Arte aprendida com Nilda Alves na qual a junção de duas ou mais palavras aproxima, entrelaça e amplia os seus sentidos. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6639 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo saber, fazer e brincar. Assim, buscamos compreender como os alunos e alunas das séries iniciais de uma escola de ensino fundamental do município de Vitória, ES, tecem seus conhecimentos entrelaçados com os outros tantos do coletivo em um movimento de criação curricular. Utilizamos, para a produção dos dados, o “mergulho” (ALVES, 2001) no cotidiano escolar, entendendo-o como potência para a criação, produção e invenção de possibilidades, discussões, busca de alternativas, fabricação, enfim, como espaçotempo que potencializa a criação e invenção da vida. Pensar o cotidiano e erguê-lo à condição de espaço e tempo privilegiado de produção da existência e dos conhecimentos, crenças e valores que a ela dão sentido e direção, considerando-o de modo complexo e composto de elementos sempre e necessariamente articulados, implica em não poder dissociar a metodologia em si das situações estudadas por seu intermédio. Essa talvez seja uma das forças dessa metodologia, que não coloca como partes distintas as diversas dimensões que envolvem a pesquisa, ou seja: a teoria e a prática; os saberes formais e os saberes cotidianos; o modelo social e a realidade social; os dados relevantes e os irrelevantes cientificamente; os observadores e os observados; o conteúdo e a forma, etc (OLIVEIRA, 2002, p. 41). Acreditamos que a criação curricular se dá em processo, em redes de conhecimento que são tecidas, entrelaçadas, trançadas com os conhecimentos de outros tantos sujeitos e seus processos de subjetivação. Entendemos que o cotidiano escolar é o espaçotempo de uma experiência coletiva em busca de outras/novas invenções possibilitando maneiras felizes e expansivas de conviver, de viver com si e com os outros. Nas suas artes de fazer (CERTEAU, 1994) os praticantes do cotidiano inventam, criam, descobrem outras/novas maneiras de usos dos espaçotempos. Assim, mesmo que a instituição escolar tenha a sua organização espacial, o regulamento que rege sua vida interior, as atividades organizadas e as diversas pessoas que lá vivem têm suas funções, lugares e rostos bem definidos, Certeau (1994) nos mostra em suas teorias das práticas cotidianas maneiras de fazer que produzem outros modos de existir, praticar e ressignificar o cotidiano escolar. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6640 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo Essas outras formas possíveis de fazer se engendram nesses processos produzindo outros modos de subjetivação, diferenciados e diversos, que caminham na contra-mão da hegemonia criando espaços de liberdade em que se inventam outros sujeitos e maneiras de viver, produzindo uma estética da existência, a partir do cuidado de si e do outro. Os processos de invenção praticados no cotidiano escolar potencializam saberes e fazeres em favor da valorização da vida, da criação, da liberdade, da imaginação e da construção de outros modos de existir que se deslocam ou desviam das ações que os interrompam. Assim, entendemos que o cotidiano escolar, em sua complexidade, possibilita a invenção e a construção de outros modos de existir, de viver e de conhecer, expandindo a vida para uma estética da existência, baseada no cuidado de si e do outro. Aí está a potência do cotidiano escolar: intensificar, gerar e transbordar o movimento na/da vida. A estética da existência como o cuidado de si Foucault (2006a) parte do conceito do “cuidado de si” para investigar o modo pelo qual um sujeito pode se constituir analisando-o a partir de práticas que tinham grande importância na Antigüidade clássica e que têm relação com o que se chamava, em grego, epiméleia heautoû e, em latim, cura sui. Segundo Foucault (2006a, p. 4), “epiméleia heautoû “é o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc” e na antigüidade, a ética como prática de liberdade, girou em torno desse imperativo: “cuida-te de ti mesmo”. Entretanto, o autor admite que a sua escolha em estudar a relação sujeito e verdade a partir da noção de epiméleia heautoû contraria os princípios básicos e gerais que costumam orientar a historiografia da filosofia, já que para esta, a questão do conhecimento do sujeito, do conhecimento do sujeito por ele mesmo foi apresentada pela expressão “conhece-te a ti mesmo” (em grego, gnôthi seautón). Ele questiona o fato da filosofia ocidental, ao refazer sua própria história, ter privilegiado o uso do “conhecimento de si”, desconsiderando e esquecendo a noção do “cuidado de si”. O cuidado de si, assim entendido, remete não somente ao plano de intelecção ou do conhecimento _ embora o inclua _, não apenas ao âmbito das teorias _ embora as justifique _, não somente à ordem da representação _ embora a fundamente _, mas também ao plano das Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6641 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo atitudes, ao âmbito do olhar, à ordem da práticas, que constituem um modo de existência (GROS, 2004, p. 9). Foucault procura potencializar a filosofia como um estilo de vida e não com o objetivo de descobrir uma verdade (tal como o propõs a racionalidade moderna). Ao mesmo tempo desvincula a noção de ética às tradições morais: o “bem” e o “mal” não são contraditórios, entre o um e o outro não há uma lei transcendental que diga o que cada um deva ser. Como diz Costa (1999, p. 11), a preocupação de Foucault “[...] é com a ética, com o que rompe as fronteiras das morais vigentes e leva o sujeito a se transformar, estilizando sua existência na presença do outro”. Problematizar a ética, no presente, é entendê-la como processo de subjetivação, isto é, de como nos constituímos como sujeitos de nossas próprias ações. O convite que Foucault nos faz é para que reflitamos constantemente nossa relação com a verdade, para então, nos questionarmos: como devemos nos conduzir? É através desse trabalho de problematização que se modifica nossa relação com a verdade e nossa maneira de nos conduzir. O “cuidado de si” ou o “rapport à soi” _ relação consigo _ não nos remete a uma prática individualista, pois, para Foucault trata-se de uma prática social. Na relação com o si, reside as relações com o outro: “O outro ou outrem é indispensável na prática de si [...]” (FOUCAULT, 2006a, p. 158). O cuidado de si necessita da presença, da inserção, da intervenção do outro como relação de si para consigo e para com o outro. Prática de si que é, ao mesmo tempo, uma prática social, sendo que a dimensão da prática é sempre política: “A estética da existência, na medida em que ela é uma prática ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um gesto eminentemente político” (REVEL, 2005, p. 44). A ética não consiste em uma proibição, mas numa relação consigo mais criativa que nos leva à prática da liberdade. A liberdade, para Foucault, são as possibilidades de ação e é o que potencializa o fazer de nossa vida uma obra de arte. Uma vida criativa e inventiva, onde haja experimentação de novas formas de afetos, de novas formas de relacionamento. E como se pode praticar a liberdade? Para Foucault (2006b, p. 267) “a liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade”. A ética é a prática da liberdade. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6642 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo Os alunos e alunas, no cotidiano escolar, são praticantes da cultura de si? Desejam, anseiam por uma outra estética da existência na invenção de si e do outro engendrando, inventando novos/outros currículos? Alguns movimentos praticados no cotidiano escolar parecem demonstrar a busca por outros modos de praticar o cotidiano escolar, baseando-se nos espaçostempos de encontros de si e com o outro, engendrando outras/novas relações de saber, conhecer e viver. As brincadeiras, seus espaços e regras próprias4... Não é por falta de brinquedo Que a gente vai deixar De sorrir e cantar com alegria Não é por falta de brinquedo Que a gente vai deixar de brincar Se não tem, a gente cria. (Brincadeira Barata)5 Hora do recreio. Correrias, gritos, alegrias, brincadeiras, lanches, conversas... Inicialmente, o que nos chamou a atenção, foi a grande quantidade de meninos sentados em um elevado (cerca de 50 cm do chão) que fica no pátio coberto da escola. A falta de um espaço ao ar livre na escola também chama a atenção 6. Os dois únicos espaços disponíveis para os alunos ficarem no horário do recreio são o pátio coberto e a quadra de esportes (onde também acontecem as aulas de Educação Física). Aproximamo-nos dos meninos e perguntamos o que eles estavam fazendo: “Estamos jogando bafo!”, responderam. Vimos que eles estavam, em duplas, com várias cartas na mão, sendo que algumas eram colocadas no chão (uma em cima da outra, formando um monte), viradas para baixo, para que outro colega, ao bater forte no chão com a mão aberta ou com a mão levemente em "forma de concha", tentasse virá-las pelo avesso. Se o colega 4 Os dados da pesquisa foram produzidos através de observações, conversas, cheiros, toques, idas e vindas no/do/com o cotidiano escolar e seus praticantes. 5 GUEDES, Hardy. CD Pra cantar na escola. 6 A questão do barulho da e na escola sempre foi uma problemática. As casas vizinhas são muito próximas e as reclamações do barulho eram constantes. Também o bairro é próximo ao aeroporto o que também causava problemas para a escola. A cobertura no pátio e na quadra é justificada por essas situações. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6643 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo conseguisse virar as cartas, ele ficava com elas. Eles jogavam em duplas, um tentando virar o máximo de cartas para ganhá-las. É preciso fazer muita força. Tentamos jogar, mas as mãos doem muito, ficam bem vermelhas. As cartas são do “Pokemon” e do “X Men”, sendo que, conforme um aluno explicou-nos, alguns elementos das cartas (ou personagens) representam a evolução de outros. Um personagem vai se evoluindo em vários outros, onde cada um ganha um nome e uma valoração utilizada em outro jogo. Para esses meninos, o tempo disponível para o recreio é todo usado para o “jogo do bafo”. Há algumas cartas novas, outras já velhas e amassadas por tantas mãos que já a pegaram. Perguntamos se eles não se importavam em perder (alguns perdem muitas cartas, de 15 a 20 em cada jogada) e eles nos explicaram: “Não! Porque a gente pode ganhar em outras rodadas”. Notamos que há um movimento próprio desses alunos: ninguém pega cartas a mais, não há brigas, discussões, ninguém se vangloria de ter ganhado uma quantidade maior de cartas. O movimento do jogo é o que importa, é a relação que se estabelece no espaçotempo do cotidiano escolar, que potencializa encontros, amizades e mais brincadeiras mesmo sendo em um espaço físico exíguo. As professoras nos disseram que até na sala de aula eles pedem para jogar: “Professora, depois que eu terminar o dever eu posso jogar?”. Elas disseram que é “a febre do momento”. As meninas não participam do jogo com os meninos. É como se aquele “terreno” (tanto o jogo quanto o espaço físico) fosse exclusivo para os meninos. Quando algumas alunas nos viram fotografando os jogos, elas começaram a se aproximar: “Tia, deixa eu ver.”. “Tia, tira foto da gente!”. “Tia, ficou bom?”. Sentimos uma aproximação com as crianças das séries iniciais. Elas querem conversar, perguntam sobre nós, o que estamos fazendo na escola, ficam “grudadas”, próximas, mexem com os nossos cabelos, tocamnos. Bem, já que elas não jogam bafo, perguntamos o que elas mais gostavam de fazer na hora do recreio. A resposta foi: “Brincamos de pique pega”. Mas, logo a conversa se estendeu: “Tem também: pique alto que, para a pessoa não ser pega, ela deve subir em algum lugar mais alto que o chão; pique baixo onde a pessoa deve se abaixar para não ser pega); pique fruta que, ao ser pega, a pessoa deve dizer o nome de uma fruta; pique parede, onde a pessoa deve encostar a mão na parede para não ser pega;, pique esconde, onde a pessoa se esconde para não ser pega;, pique gelo, onde a pessoa deve ficar igual uma estátua, sem se mexer”. Perguntamos também qual o local da escola Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6644 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo que elas mais gostam de ficar: “A quadra! Porque a gente pode brincar de pular corda, de bola, de queimada... “. Nessas brincadeiras praticadas e inventadas no pátio ou na quadra, elas vão promovendo encontros (também desencontros!), mas produzindo os currículos da escola através do que aprendem, vivem e usam. O recreio, os cheiros, as burlas... Assim que o sinal bate às 15h30 os vão alunos saindo das salas e seguindo direto para a fila no refeitório. Ou melhor, eles vão iniciando uma fila, já que ainda não havia ninguém ali. Após alguns poucos minutos já há um grande número de alunos dispostos um atrás e, algumas vezes, ao lado de outro/s. Dentre as regras do refeitório, eles já sabem também que para repetir a merenda só depois de todos terem sido servidos uma vez. “Qual será a merenda de hoje?”, perguntamo-nos. Era macarrão a bolonhesa com salada de alface. Que cheiro bom vem da cozinha!!... Mas... e que cheiro de fritura é esse? Hoje é terça-feira, dia de feira na rua da escola! Há também um cheiro que vem de fora e que compete com o da merenda da escola: Uma barraca que fica na direção da entrada da escola e onde é vendido pastel com caldo de cana. Mas fritura, refrigerante, maionese, presunto, catchup.... Com certeza não fazem parte de um cardápio orientado por um profissional da área de Nutrição. Nessa escola, a alimentação servida para as crianças é orientada por uma nutricionista da Secretaria de Educação e esse tipo de alimento definitivamente não entra. Não mesmo?! Em uma das idas e vindas na escola, vimos várias alunas comendo pastel com caldo de cana, no horário do recreio, mas não sabíamos como elas tiveram acesso ao lado de fora da escola, já que há dois portões para serem vencidos, além do/a agente de vigilância que controla a entrada e a saída. Perguntamos à coordenadora como as alunas compravam o lanche, se alguma pessoa da feira vinha vender no portão da escola, etc. Ela nos respondeu que era proibida a venda desse lanche na escola, pois pastel é fritura e ainda mais aqueles que contém presunto que é vetado pela nutricionista da SEME7: “Se a equipe de nutrição vir isso, dá até processo contra nós”. Mas, ela disse: “Se 7 SEME - Secretaria Municipal de Educação. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6645 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo alguma mãe, ao trazer os filhos para a escola, compra o lanche, não podemos fazer nada”. Dizendo isso, a coordenadora saiu e nos deixou à procura de mais respostas para nossas indagações. Como havia vários alunos e alunas comendo pastel com caldo de cana, ficamos instigadas para saber como conseguiram. Para a nossa surpresa, alguns falaram: “A professora de Artes foi lá na barraca e eu pedi para comprar para mim”. E ainda: “A avó da minha amiga toda a terça-feira traz para ela e eu peço também para mim”. A tática é a seguinte: os alunos levam o dinheiro para a escola e assim que aparece alguém “disponível”, eles pedem para comprar o lanche para eles. Quanta criatividade! Assim, os praticantes do cotidiano escolar utilizam-se de desvios, burlas, para inventar outros modos de viver, para além dos valores, fazeres e saberes determinados e normalizados pela escola. Além da merenda da escola (macarrão com salada) e do pastel com caldo da feira na rua da escola, há outras guloseimas que os alunos consomem e compram na cantina: biscoito de polvilho, picolé, misto quente. E há os que trazem de casa: barra de cereal, biscoito doce, mini-bolinho, maçã e o “chips”. Mas também há o que é “conquistado”: nesse dia, junto a um aluno que estava com um pacote de “chips”, três colegas estavam seguindo-o tentando abocanhar algumas porções. As cores, os cheiros e os sabores do recreio também são variados e são compostos pelas táticas das crianças e das suas maneiras de viver a escola e seus espaçostempos. A “caverna”, os encontros, as confidências... Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades [...] ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum. (NUNES, 2002) A “caverna” é um espaço debaixo da escada que dá acesso às salas de aula do segundo andar. É muito disputado no horário do recreio, apesar de ser impossível ficar em pé ali. Como fica embaixo da escada, o vão entre o chão e a estrutura da escada deve ter, aproximadamente, 70 centímetros. É ali também que nos intervalos entre as Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6646 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo atividades, os alunos do tempo integral8 refugiam-se, trocam segredos, sentem-se mais à vontade. Quando indagados sobre o que de “bom” havia ali na “caverna”, os alunos respondem: “É o lugar da solidão [abaixa a cabeça com vergonha], da paixão, dos recadinhos(risos), dos lero-leros, das fofocas, das Anas-Carolinas, dos beijos, não escreve isso não, em tia. É uma verdadeira cama, tem gente que até dorme”. Como eles mesmos disseram, a “caverna” é um espaço praticado que as crianças vão incorporando aos seus currículos tecidos no cotidiano escolar. É um lugar onde só eles entram, é lugar de encontros, de confidências. É a possibilidade de ficar “fora” da confusão, da correria dos outros alunos e “dentro” de si, habitado por tantos outros. É um lugar onde não se é visto por todos, mas por si próprio. Na “caverna” a tessitura dos currículos dá-se por meio do entrelaçamento das redes de conversações (CARVALHO, 2008) vividas pelos alunos, na escuta, no silêncio, no toque, na fala... na solidão sozinha e conjunta. Enfim, dos movimentos praticados: currículos produzidos pelas crianças O cotidiano escolar praticado pelas crianças dessa escola e as maneiras como vão encontrando maneiras não só de burlar, mas de buscar na relação com outros a estética da existência, potencializa entre e para elas momentos felizes. Nesse sentido, Snyders (2001) ressalta a importância de dar visibilidade aos fragmentos felizes existentes na escola, contrapondo a visão de unidade de ensino desprovida de prazer, de beleza, de alegria. Nesse sentido, afirma que [...] gostaria de uma escola onde a criança não tivesse que saltar as alegrias da infância, apressando-se, em fatos e pensamentos, rumo à idade adulta, mas onde pudesse apreciar em sua especificidade os diferentes momentos de suas idades (SNYDERS, 2001, p. 29). Assim, com seus modos de ser, fazer, brincar... e com as linhas de fuga em relação aos engessamentos dos horários, das regras, das filas, das aulas...alunos e alunas vão desenhando os currículos a partir das experiências vividas, vão inventando uma 8 Programa de Educação em Tempo Integral: instituído pelo governo do município em algumas escolas a partir do ano de 2007. Os alunos atendidos são aqueles considerados em situação de “risco social”. Nas escolas participantes há uma média de 40 alunos por turno que além das aulas regulares, têm a jornada diária ampliada, almoçam e realizam atividades dentro e fora da escola. Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6647 O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo poética e estética da vida na sua relação com si e com o outro. O cotidiano escolar com os seus atravessamentos, sua complexidade e multiplicidade potencializa a ação, invenção e criação de currículos. O cuidado de si não significa a possibilidade de descobrirmos a nós mesmos, mas sim a possibilidade de criarmos novos/outros processos de subjetivação. Antes de ser um encontro, a subjetividade implica movimentos de processos inventivos. Trata-se, assim, de produzir, criar, inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos modos de relações, novas formas de vida que potencializam nosso viver numa ou para uma obra de arte, na vida cotidiana, na ação de relação, do estar junto, na problematização de nossos processos de subjetivação questionando o que temos feito de nós mesmos para, então, engendrarmos diferentes formas de ser e estar no mundo em outros/novos processos de subjetivação que nos constitui. Referências ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: ALVES, N.; OLIVEIRA, I. B. (Org.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 13-39. CARVALHO, Janete Magalhães. Redes de conversações como um modo singular de realização da formação continuada de professores no cotidiano escolar. In: II Congresso Internacional Cotidiano: Diálogos sobre Diálogos, 2008, Niterói. 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Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni 6649 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESTADO DO PARÁ Gilson Rocha de Oliveira JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESTADO DO PARÁ Gilson Rocha de Oliveira RESUMO: Os jogos de RPG se amalgamam harmoniosamente às práticas de leitura, escrita e pesquisa, criando empatia de crianças e adolescentes por esses hábitos. E sendo este estudo embasado em pesquisas bibliográficas específicas e também de campo, relacionadas no que tange a formação de professores no Estado do Pará, está sendo constatado o súbito interesse pela leitura, escrita e pesquisa de alunos que tiveram contato com os jogos de RPG mesclados aos conteúdos de sala de aula, gerando resultados satisfatórios e surpreendentes por professores que desconheciam a possibilidade. PALAVRAS-CHAVE: RPG. Narração. Educação. A PESQUISA A falta de interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa, fundamentais em todo alicerce da construção do conhecimento de cada indivíduo, é um fato que educadores encontram em alguns de seus alunos. Conforme Nóvoa (2008) não existe um ato de vontade de estar na escola por parte dos alunos, mas uma obrigação social e familiar. Entretanto, se a escola se ressente do descaso juvenil pela educação, os jovens por sua vez consideram a escola um lugar tedioso e a educação sem significado, uma vez que ela ainda está atrelada a um princípio educativo centrado em conteúdos desvinculados da realidade concreta vivenciada cotidianamente pelos jovens e de suas culturas. “Para os jovens, a escola se mostra distante dos seus interesses, reduzida a um cotidiano enfadonho, com professores que pouco acrescentam à sua formação, tornando-se cada vez mais uma “obrigação” necessária, tendo em vista a necessidade dos diplomas” (DAYRELL, 2003). Dessa forma, muitas vezes a evasão escolar tem sido precedida de uma silenciosa evasão da “presença” por inteiro do jovem na escola, ou Gilson Rocha de Oliveira 6653 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará seja, mesmo antes de abandonarem a escola, eles já não se interessam por ela, e passam a frequentá-la por obrigação. Isso se torna mais grave nas práticas da leitura, escrita e pesquisa, já que são necessárias a todas as demais disciplinas. Os educadores ainda competem com todo o tipo de distração moderna que variam pelo poder aquisitivo, mas podem ser encontradas em diversos níveis de intensidade: computador, acesso à internet, aparelho de videogame, tocador de música em formato digital e telefone celular, para citar os mais evidentes, que roubam a atenção e dedicação dos alunos de forma desigual quando comparados à escola. Os jogos de RPG (role playing game; jogo de interpretação) conseguem transformar em alguns alunos a repulsa e resistência às práticas de leitura, escrita e pesquisa em desejo e paixão, onde elas ganham importância fundamental e são levadas para uma gradativa melhoria espontaneamente onde a produção literária e a busca por informações em leituras tornam-se evidentemente intensas. RPG é uma atividade oral que requer fontes diversas para fomentar as criações dos jogadores. Como instrumentos os participantes usam livros, blocos de anotações, lápis e, sobretudo, imaginação. Um jogador chamado ‘narrador’ tem a função de apresentar ao grupo uma história, uma aventura contendo enigmas, situações e conflitos que exigirão escolhas por partes dos jogadores, além do uso de dados que acrescentam o fator sorte. Os jogadores são participantes ativos, que como atores representam um papel e, como roteiristas, escolhem caminhos e tomam decisões nem sempre previstas pelo narrador, contribuindo na recriação constante e ininterrupta da aventura. (BRAGA, 2000). No RPG ninguém ganha, ninguém perde e ninguém compete. O objetivo é participar da história proposta pelo narrador de forma cooperativa. O uso dos jogos de RPG como ferramenta educativa vem sendo pleiteado por jogadores, editores, autores e educadores que já tiveram contato com esta modalidade de jogo, onde o aluno é transformado em construtor do conhecimento e numa figura ativa em vez de passiva, através da narrativa oral e dos registros pela prática da escrita (PAVÃO, 2000), seja amalgamando aos conteúdos da sala de aula, dentro ou fora dela, ou usando temáticas diversas, ampliando o contato com diversas fontes culturais. Gilson Rocha de Oliveira 6654 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará A inserção do RPG amalgamado ao conteúdo da sala de aula transforma a construção de narrativas orais e escritas em algo prazeroso e profundo para crianças e jovens. O RPG surgiu em meados dos anos 70 nos Estados Unidos e ganhou o mundo na década de 90, chegando ao Brasil por volta de 1991. Primeiramente inspirado nas histórias fantásticas de J.R.R. Tolkien, autor de livros como O Hobbit e O Senhor dos Anéis, obras transportadas para os cinemas1 que fascinam e conquistam fãs, depois as criações se inspiraram em super heróis, na ficção científica, mitologia, filmes e em muitas outras fontes, mas foi com os ambientes históricos que a linha entre diversão e educação tornou-se positivamente tênue. Fazendo parte da cultura de uma parcela de crianças, jovens e até de adultos de várias partes do mundo e do Brasil, o RPG é um jogo prazeroso, significativo, uma atividade lúdica que visa apenas o entretenimento e faz parte das novas formas de manifestação da cultura contemporânea, que possibilitam outras formas de acesso ao conhecimento e novas maneiras de compreensão do sentido da escola, pois tem uma base formativa como mostra pesquisas já realizadas sobre RPG e educação (BRAGA, 2000; PAVÃO, 2000; RODRIGUES, 2004). Todavia, para que o RPG se transforme numa ferramenta que contribua para o incentivo à leitura por meio de um processo de ensino-aprendizagem significativo na escola, os professores precisam conhecer a culturas juvenis e valorizá-las, em especial o RPG como parte dessa cultura em construção no século XXI. A sociedade contemporânea tem incorporado os direitos da juventude em políticas públicas de saúde, educação, trabalho, mas quando se trata de cultura e da relação desta com a educação ainda são incipientes as experiências positivas de articulação entre essas duas dimensões, sobretudo na escola. Para Pérez Gómez (1993), a escola deve ser considerada um espaço de cruzamento de culturas: da cultura social, acadêmica, crítica, institucional e experiencial. Porém para que haja esse cruzamento é necessário uma formação de professores que valorize as diferentes culturas juvenis, incluindo os jogos de RPG, que vem fomentando as práticas de leitura, escrita e pesquisa por aqueles que conhecem o jogo. 1 Filme O Hobbit em duas partes previsto para 2011 e 2012. Gilson Rocha de Oliveira 6655 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará Jovens se reúnem em espaços públicos ou reservados para jogar RPG, geralmente nos finais de semana, formando grupos fixos ou aleatórios, conhecendo outros jogadores, interagindo e se socializando. No Estado do Pará essa é uma experiência inédita de aplicação do RPG na educação. Uma das possibilidades educativas, pedagógicas e didáticas é a utilização do RPG como uma metodologia lúdica em diferentes disciplinas, conteúdos, assuntos e discussões como demonstram Marcatto (1996) e Riyis (2004). De forma interdisciplinar, o RPG pode ser utilizado na construção de narrativas, o que envolve as habilidades de leitura, escrita e pesquisa, visando o aumento de interesse por essas práticas. Os professores precisam de formação continuada que lhes permitam refletir sobre sua atuação docente, sobre o processo ensino-aprendizagem, as culturas juvenis, entre outros temas. Com os novos tempos de tecnologias, disseminadas por muitas camadas sociais, a educação deve adaptar-se aos novos tempos com a capacidade de tornar as aprendizagens mais ricas e significativas para os alunos (MORGADO, 2004). Os importantes desafios que hoje se colocam a nível curricular carecem de professores com capacidades de iniciativa e de decisão, não só em termos de gestão curricular, mas também no domínio da concepção de projectos, do recurso a metodologias inovadoras e a estilos de ensino que lhes permitam adaptar os processos de ensinoaprendizagem às características, interesses, motivações e ritmos de aprendizagem dos alunos com que trabalham (MORGADO, 2004, p. 131). Nesse sentido, pensando no aumento do interesse de jovens pela escola por meio de um processo de ensino-aprendizagem significativo e prazeroso é que pesquiso uma das manifestações das culturas juvenis, o RPG, na formação dos professores como fomentador do interesse das práticas de leitura, escrita e pesquisa. Dessa forma, podemos contribuir para que a escola valorize as culturas juvenis e para que a educação seja valorizada pelos jovens. A relevância social e acadêmica dessa pesquisa está na possibilidade desta se transformar num projeto alternativo de formação de professores que promova o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola, não apenas em termos de acesso à escola, mas de permanência com sucesso, motivação e interesse Gilson Rocha de Oliveira 6656 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará pela educação que precisa ser um processo prazeroso, criativo, crítico e marcado pela diversidade que está presente na região amazônica. Ao pretender ressignificar a formação de professores para promover a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola por meio do RPG, esta se configura numa pesquisa inédita no Estado do Pará e que tem também uma relevância pessoal, no que tange o gosto pelo RPG e as inquietações em relação à educação nas escolas públicas no Estado do Pará. PROBLEMA Analisar a formação de professores tendo em vista a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude por meio do RPG exige que problematizemos a concepção de formação presente na literatura corrente e na escola, ainda considerado um espaço tradicional de controle e disciplina que, às vezes, se torna um ambiente estranho para os alunos, especialmente para os jovens. A sensação de insatisfação de ter que frequentá-la decorre em muitos casos pela escola excluir de seus espaços múltiplos as culturas dos jovens, o que se configura numa exclusão da própria juventude. Como alternativa a esse problema que envolve a formação de professores, a juventude, a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa e a escola, é que me empenho nesta pesquisa sobre a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa por crianças e principalmente jovens, através dos jogos de RPG. E dadas as várias perspectivas da formação de professores, que vem sendo amplamente discutidas há anos por diversos docentes dos mais diversos países, que observam as mudanças do mundo, da profissão, do ambiente escolar, dos aspectos políticos e dos próprios estudantes, é que considero a cultura juvenil dos jogos de RPG como uma das possibilidades pedagógicas para a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa. Mas para que haja a possibilidade de criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa por meio do RPG, os professores precisam ressignificar sua concepção de pedagogia. Gilson Rocha de Oliveira 6657 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará Os professores/as devem ampliar a definição de pedagogia a fim de ir além de uma limitada ênfase no domínio de técnicas e metodologias. Isto capacitaria os/as estudantes a compreender a pedagogia como uma configuração de práticas textuais, verbais e visuais que objetivam discutir os processos através dos quais as pessoas compreendam a si próprias e as possíveis formas pelas quais elas interagem com outras pessoas e seu ambiente (GIROUX, 1995, p. 85-103). Sendo assim, a pedagogia amplia seu domínio para além dos conteúdos e metodologias formais consagrados pela escola tradicional e encontra elementos para lidar com a competição que a escola e os educadores enfrentam com todo o tipo de distração moderna que variam pelo poder aquisitivo, mas podem ser encontradas em diversos níveis de intensidade: computador, internet, aparelho de videogame, tocador portátil de música e telefone celular entre outros, que roubam a atenção e dedicação dos alunos, dentro e fora da sala de aula, de forma desigual quando comparados à escola. No que tange os jogos de RPG, sendo uma atividade lúdica que faz parte da cultura de uma parcela juvenil e com ramificações de possibilidades em agregar vários outros interesses juvenis, fica mais fácil construir a ponte entre o interesse e sua cultura inserida na sala de aula. Como artefato cultural e ferramenta de construção da linguagem, da leitura, da escrita e textualidade, os jogos de RPG conseguem transformar a repulsa e resistência às práticas de leitura, pesquisa e escrita em desejo e paixão, fazendo com que estas experiências ganhem importância fundamental e contribuam com uma espontânea e gradativa valorização da educação, onde a produção de narrativas e a busca por informações tornam-se evidentemente Dessa forma, é preciso problematizar essas interfaces, o que faço a partir das seguintes questões: como a formação de professores pode ser ressignificada de forma que compreenda o RPG como recurso pedagógico e didático que proporcione o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa dos jovens na escola? Ainda elenco as questões norteadoras seguintes: Quais as concepções de formação de professores na literatura corrente que podem contribuir para a valorização das culturas juvenis na escola?; Quais as configurações da juventude na atualidade e suas culturas?; De que formas o RPG pode contribuir com a valorização das culturas juvenis?; De que formas o RPG pode contribuir com a inclusão social da juventude na escola, por meio da valorização das culturas juvenis? Gilson Rocha de Oliveira 6658 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará Esses questionamentos possibilitarão a articulação entre formação de professores, interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa, inclusão social da juventude na escola e RPG, proposta na pesquisa, almejando atingir os objetivos abaixo relacionados. OBJETIVOS Geral Analisar como a formação de professores pode ser ressignificada de forma que compreenda o RPG como recurso pedagógico e didático que proporcione o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa dos jovens na escola; Específicos Mapear as concepções de formação de professores presentes na literatura corrente que podem contribuir para a valorização das culturas juvenis na escola; Compreender as configurações da juventude na atualidade e suas culturas; Entender as potencialidades pedagógicas e didáticas do RPG; Analisar as formas que o RPG pode contribuir com o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola, por meio da valorização das culturas juvenis. METODOLOGIA A produção de conhecimento na área de educação exige um enfoque de pesquisa que favoreça a crítica, a reflexão e a análise das questões educacionais de forma que contribua para a superação dos problemas enfrentados na realidade brasileira e amazônica. Assim sendo, para pesquisar “OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESTADO DO PARÁ” faz-se necessário uma abordagem qualitativa que permita uma atitude investigativa que dá ênfase à dinâmica histórica e social que constrói o sujeito Gilson Rocha de Oliveira 6659 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará cognoscente, na busca da compreensão do mundo e da explicação dos fatos. Assim, as abordagens qualitativas primam por métodos que podem captar dados que se prestam à análise da ação social, pois “Os métodos qualitativos enfatizam as especialidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser” (HAGUETTE, 2000, p. 63). A partir do enfoque qualitativo, realizo a investigação dos questionamentos levantados, por meio de uma pesquisa bibliográfica enfocando os temas de formação de professores, o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa, juventude e suas culturas e RPG. A pesquisa bibliográfica, teórica ou estudos exploratórios “[...] permitem ao investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema” (TRIVIÑOS, 1987, p. 109), assim como permite uma compreensão maior de uma teoria a partir da análise, reflexão e crítica do referencial teórico que orienta a pesquisa, o que desmistifica sua aparente simplicidade e fragilidade científica e confere credibilidade à pesquisa (RIBEIRO, 2004). O levantamento inicial sobre os eixos de análise dessa proposta de pesquisa assinala a possibilidade da mesma, uma vez que esses temas tem sido pesquisados sob diferentes perspectivas teórico-metodológicas, mas sua articulação ainda não fora realizada, sobretudo pelo preconceito que se tem na escola e na formação docente em relação às culturas juvenis. Sobre formação de professores, os estudos das últimas décadas apontam em muitas direções, para as mais diversas possibilidades, com destaques para identidade e profissionalização docente, formação inicial e formação continuada, que são observadas em diversos trabalhos, artigos e publicações (ROLDÃO, 2007; FREITAS, 2004; NÓVOA, 1992). Sobre juventude as pesquisas assinalam para sua pluralidade, não sendo possível falar de uma juventude nacional ou amazônica, mas de múltiplas juventudes nos diferentes espaços sócio-culturais (DAYRELL, 2003). Sobre RPG e sobre RPG e educação as pesquisas tem se concentrado no centro-sul do país, o que não impede que pensemos em sua inclusão na realidade amazônica (BRAGA, 2000; HIGUCHI, 2000; MARCATTO, 1996; PAVÃO, 2000; RIYIS, 2004). Articulando essas dimensões, é possível pensar numa formação de professores que vise o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola, a partir da valorização das culturas juvenis, aqui representada pelo RPG, um Gilson Rocha de Oliveira 6660 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará jogo que faz parte da vida de grande parte da juventude no ambiente extra-escolar, mas poderia adentrar os muros escolares e a sala de aula para tornar a educação escolar mais prazerosa e significativa para a juventude. A formação de professores precisa estar em constante movimentação e compreendendo o espaço que o rodeia, englobando o que seus alunos vivenciam como cultura, onde também encontramos os jogos de RPG. Por este ponto o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa deve iniciar por quem já está neste universo, os professores, entrando em sintonia com seu público - os alunos - e sua gama de fontes e referências culturais que é vital para um processo de conquista, de valorização da educação escolar pelos alunos. Como assinalei anteriormente, na pesquisa teórica/bibliográfica a análise, a crítica e a reflexão assumem um papel fundamental, o que exige inicialmente uma revisão da literatura a ser utilizada no desenvolvimento da mesma, no intuito de perceber o que já foi pesquisado sobre a temática em discussão. A bibliografia utilizada nesta pesquisa em andamento é formada por livros (em língua portuguesa e/ou inglês), revistas e periódicos especializados que tratam do tema em discussão e observações de campo. Após a revisão teórica da bibliografia, realizarei a documentação bibliográfica que permite a triagem de informações importantes nas obras escolhidas e facilita a localização das informações para se proceder a crítica e a reflexão (SEVERINO, 2002). BIBLIOGRAFIA BRAGA, Jane Maria. Aventurando pelos caminhos da leitura e da escrita de jogadores de role playing games (RPG), 2000, 140 p. (Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora). DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. In: Revista Brasileira de Educação. Set /Out /Nov /Dez, nº 24, 2003. GIROUX, Henry A. Praticando Estudos Culturais nas Faculdades de Educação. In SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 85 - 103. GÓMEZ, A. I. Pérez. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: ARTMED, 2001. HAGUETTE, Teresa Mª Frota. Metodologias qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2000. Gilson Rocha de Oliveira 6661 Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará HIGUCHI, Kazuko Kojima. RPG: o resgate da história e do narrador. In: CITELLI, Adilson (coord.). Outras linguagens na escola. São Paulo, Cortez, 2000 (Col. Aprender e Ensinar com Textos), p. 175-211. MARCATTO, Alfeu. Saindo do quadro – uma metodologia lúdica e participativa baseada no role playing games. 2ª ed. São Paulo: A. Marcatto, 1996. MORGADO, José Carlos. Educar no Século XXI: que papel para o(a) professor(a)? In: Antonio Flavio Barbosa Moreira; José Augusto Pacheco; Regina Leite Garcia. (Org.). Currículo: pensar, sentir e diferir. 1 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, v. 1, p. 131 NÓVOA, Antonio. Os professores e o “novo” espaço público da educação. In: TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O oficio de professor: história, perspectivas e desafios internacionais. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, p. 217-233, 2008. __. Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. NUNES, Cely do Socorro Costa. Políticas de formação e valorização dos profissionais da educação do estado do Pará: discutindo iniciativas governamentais. In: SEDUC-PA: A educação básica no Pará: elementos para uma política educacional democrática e de qualidade Pará todos. Belém: SEDUC-Pa, v. 1, p. 97–119, 2008. PAVÃO, Andréa. A Aventura da Leitura e da Escrita entre Mestres de Roleplaying Game (RPG). São Paulo: Devir, 2000. RIBEIRO, Joyce Otânia Seixas. A pesquisa teórica nas investigações acadêmicas: questões teóricas e metodológicas. In: Margens/Revista Interdisciplinar do Núcleo de Pesquisa CUBT/UFPA – V.1, nº 1 (jan.) – Abaetetuba, PA: CUBT/UFPA, 2004. RIYIS, Marcos Tanaka. Simples – sistema inicial para mestres-professores lecionarem através de uma estratégia motivadora. 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Gilson Rocha de Oliveira 6662 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” PERFIS DA CULTURA ESCOLAR Idelsuíte de Sousa Lima JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Perfis da Cultura Escolar PERFIS DA CULTURA ESCOLAR Idelsuíte de Sousa Lima RESUMO: A cultura escolar como objeto de investigação científica evidencia configurações da internalidade da escola no desenvolvimento do processo de escolarização. Este trabalho apresenta um estudo sobre culturas escolares reveladas na literatura e em uma pesquisa sobre práticas culturais incorporadas e manifestadas na instituição escolar. O artigo está organizado em duas partes. Na primeira, apresenta uma discussão acerca de definições da cultura escolar e da difusão de idéias de autores mais utilizadas pelo campo. Na segunda parte, sublinha indícios que conferem às fontes documentais o estatuto de reveladoras das culturas escolares e destaca aspectos identificados nos registros ordinários da escola. PALAVRAS-CHAVE: culturas escolares – fontes documentais - práticas culturais. Introdução Este estudo coloca em foco a apreensão da cultura escolar como objeto de investigação para o campo do currículo. O uso recorrente do conceito de cultura escolar nas pesquisas históricas evidencia também a sua potencialidade para análise de processos de construção histórica do currículo escolar. A investigação sobre cultura escolar busca compreender práticas e processos educativos que acontecem em um espaço específico de organização e distribuição do conhecimento e, por isso, relacionados a decisões e articulações impulsionadas pelas políticas e práticas curriculares. A organização e o funcionamento da escola compõem uma multiplicidade de traços culturais, caracteres e valores que estão na base da cultura da instituição, representados, de acordo com Viñao Frago (2000), por inúmeros elementos Idelsuíte de Sousa Lima 6664 Perfis da Cultura Escolar constituidores das culturas escolares, tais como, o papel desempenhado pelos professores e alunos, os modos de comunicação, as formas de distribuição do espaço, as práticas cotidianas, os comportamentos dos sujeitos, as concepções e modos de organizar o ensino, bem como as definições e proposições que permeiam a escola. O presente estudo contempla uma discussão acerca de definições da cultura escolar e da difusão de idéias de autores mais utilizadas pelo campo, e discorre sobre o intramuro de uma instituição escolar, no processo de produção de uma cultura entrelaçada no desenvolvimento curricular da escola. Situando a cultura escolar A cultura escolar como campo de investigação tem sido apropriada pela área da História da Educação em virtude da sua especificidade com a narrativa histórica e pelo exercício do levantamento documental que sua pertinente elaboração exige. Nesse sentido, o desvendamento de questões históricas acerca da constituição do conhecimento escolar também potencializa a sua especificidade como categoria de análise e campo de investigação nos estudos da história do currículo. Os estudos que tomam como referência os pressupostos da cultura escolar inauguram uma riqueza de elaboração e potencialidade para a apreensão de questões da internalidade da escola. Tais estudos, ainda que recentes no Brasil, conferem ao campo um aprofundamento epistemológico, além de alternativas de reelaboração de definições (Nunes, 1992; Faria Filho, 2004) e análise da interpenetração de políticas e práticas curriculares (Souza, 2000; 2005; Lima, 2006). A emergência teórica sobre a cultura escolar tem impulsionado estudos de historiadores da educação e de educadores preocupados com o cotidiano da escola numa perspectiva histórica. Em termos de publicação de referência, o artigo do francês Dominique Julia denominado ‘A cultura escolar como objeto histórico’, traduzido e publicado na Revista Brasileira de História da Educação, em 2001, tem recorrente citação na maioria dos estudos sobre cultura escolar. Tal artigo, publicado Idelsuíte de Sousa Lima 6665 Perfis da Cultura Escolar originalmente na Revista Paedagógica Histórica, em 1995, contrapõe-se à idéia da reprodutividade da escola, apontando possibilidades de estudos voltados para o interior das instituições de ensino, indicando elementos para desvendar a ‘caixa-preta’ da escola. O texto de Julia (2001) além de indicar a possibilidade de ampliação das fontes, no sentido de recontextualizá-las, coloca em destaque a necessidade de não exagerar o silêncio existente nos arquivos escolares, de modo a entender o funcionamento interno da escola, seus hábitos, comportamentos, práticas e manifestações. Ainda que o texto do autor citado referencie parte das publicações brasileiras, a discussão em torno da cultura escolar é antecipada por outros autores. Em artigo publicado na Revista da USP, em 1991, denominado ‘Cultura escolar brasileira: um programa de pesquisa’, José Mário Pires Azanha propunha a realização de uma análise das políticas públicas no desenvolvimento das práticas escolares, colocando em relevo a constituição histórico-social da escola na realização de sua função cultural. Outros textos, como o de André Chervel denominado ‘história das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa’, publicado em 1990 na Revista Teoria e Educação, colocam em epígrafe a escola como produtora de cultura, no engendramento de suas atribuições. O texto de Jean Claude Forquin, resultante de sua tese de doutorado, em 1987, somente publicada no Brasil em 1993, sob o título Escola e Cultura constitui-se em um texto clássico para a discussão sobre a cultura escolar. Nesta obra e em artigo publicado na Revista Teoria e Educação em 1992, denominado 'Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais’, o autor caracteriza a cultura escolar como seletiva e utiliza-se da metáfora da bricolagem para afirmar que a escola não transmite uma cultura. Para Forquin (1993:15): a escola transmite, no máximo, algo da cultura, elementos da cultura, entre os quais não há forçosamente homogeneidade que podem porvir de fontes diversas, ser de épocas diferentes, obedecer a princípios de produção e lógicas de desenvolvimento heterogêneas e não recorrer aos mesmos procedimentos de legitimação. Idelsuíte de Sousa Lima 6666 Perfis da Cultura Escolar Seguindo a lógica de entendimento da escola como produtora de cultura, Antonio Viñao Frago em artigo publicado na Revista Brasileira de Educação, denominado ‘Historia de la educación e historia cultural’, em 1995, e no artigo intitulado ‘Culturas escolares’ defende essa categoria de análise para entender práticas instauradas no interior da escola. Para Viñao Frago (1995) os elementos constituidores da cultura escolar perpassam desde aspectos institucionais, organizativos, curriculares até distribuição dos espaços, discursos, comunicações, processos de formação, desempenho. De forma mais elaborada, Viñao Frago e Escolano, em 1998, na obra ‘Currículo, espaço e subjetividade’, traduzida e publicada no Brasil pela editora DP&A, em 2001 destacam a não neutralidade dos espaços e tempos escolares e reforçam a idéia de que o espaço educa. Sublinham o espaço escolar como constituidor de corporeidades dos sujeitos escolares na materialidade da aprendizagem espacial e motora. A partir da influência dos autores citados ou não, despontam, no Brasil, inúmeras pesquisas centradas na análise da cultura escolar. Em 2000, o Cadernos Cedes dedicou uma de suas edições a uma coletânea de artigos de vários pesquisadores sob o título ‘Cultura escolar: história, práticas e representações’ e em 2005 a Revista Pro-posições edita um dossiê dedicado à questão. A temática cultura escolar também foi objeto de discussão do II Congresso Brasileiro de História da Educação, cujos textos compuseram a obra ‘Escola, culturas e saberes’, publicada em 2005, pela editora da Fundação Getúlio Vargas. Em 2003, foi realizado na UNESP de Araraquara o I Seminário sobre cultura escolar, cujos textos organizados por Rosa Fátima de Sousa e Vera Tereza Valdemarin compuseram a obra ‘A cultura escolar em debate’, publicada pela editora Autores Associados, em 2005. Inúmeros textos sobre cultura escolar têm sido publicados mais recentemente, em livros e períodos de destaque, o que demonstra a sua fertilidade, seja como categoria de análise, seja como campo de investigação. A cultura escolar tem sido apresentada sob diversas perspectivas e várias são acepções a respeito da sua abordagem, cujo inventário realizado por Viñao Frago (2000) acentua as marcas de um campo de estudos em formação. Idelsuíte de Sousa Lima 6667 Perfis da Cultura Escolar Forquin (1993) ao apresentar uma distinção tênue entre cultura da escola e cultura escolar, entende a primeira na correlação com a cultura de outros espaços, com características de vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seus modos próprios de gestão. Para o referido autor a cultura escolar define-se como “o conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, ‘normalizados’, ‘rotinizados’, sob o efeitos dos imperativos da didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas (FORQUIN, 1993:167). Numa interpretação mais aprimorada o próprio Forquin (1992:35), em texto escrito posteriormente, reconhece que é preciso ir mais longe e adverte para a necessidade de a escola ser pensada “como produtora ou criadora de configurações cognitivas e de habitus originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura sui generis’. A conceituação apresentada por Julia (2001: 10) define a cultura escolar como sendo: o conjunto de normas de definem os conhecimentos a ensinar e as condutas a inculcar e, um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas, as finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização. Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional, os agentes que são obrigados a obedecer a essas normas e, portanto, a pôr em obra os dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar a sua aplicação, a saber, os professores. Essa formulação voltada para o processo de transmissão cultural coloca o estudo da cultura escolar como sendo um desafio no sentido de examinar processos de produção, circulação e apropriação de conteúdos culturais. Constitui-se em um campo instável que se altera conforme a instituição que o respalda ao conferir-lhe base e sustentação (LIMA, 2006). Numa visão mais ampla acerca da conceituação da cultura escolar, Viñao Frago (2000:03) a define como sendo: Idelsuíte de Sousa Lima 6668 Perfis da Cultura Escolar un conjunto de teorias, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y prácticas – formas de hacer y pensar, mentalidades y comportamientos – sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y reglas de juego no puestas en entredicho y compartidas por sus actores en el seno de las instituciones educativas. Destacam-se, desse modo, as características eminentemente escolares, colocando, em relevo, significados, modos de ser e de exercitar práticas cotidianamente, num movimento que comporta aspectos institucionalizados, hábitos cotidianos do fazer escolar, práticas de funcionamento do processo de distribuição do conhecimento. Constitui-se, em um novo olhar, em uma reconfiguração de um campo de estudo que privilegia, para a análise, aspectos internos da escola. As relações entre educação, cultura e poder expressam-se na cultura escolar, no entrecruzamento de diversos campos de investigação temática, como a história da leitura, a história das disciplinas escolares, a história do currículo, da profissionalização docente, entre outros (SOUZA, 2000). O estudo do espaço escolar, da arquitetura, do calendário e horários escolares, da organização didático-pedagógica, das práticas de ritualização, das festas cívicas, das exposições escolares, entre tantas outras, constituem elementos da cultura escolar a serem investigados sob o ponto de vista histórico. Fontes para estudo das culturas escolares Tomar a cultura escolar como objeto histórico implica em enfrentar o desafio de lidar com as fontes, dada a escassez das mesmas no interior das instituições. De acordo com Julia (2001:15) “a história das práticas culturais é, com efeito, a mais difícil de se reconstruir, porque ela não deixa traço, [mas] o historiador sabe fazer flechas com qualquer madeira”. Para o referido autor é imprescindível a procura às fontes e a necessidade de captar, no interior dos arquivos escolares, a história da sua existência. Indubitavelmente, as fontes existentes na escola são raras e de difícil acesso. Paralelo à intenção de guardar ‘coisas velhas’ convive o advento simultâneo de novos documentos que, somado à limitação do espaço físico dos arquivos e da seleção do Idelsuíte de Sousa Lima 6669 Perfis da Cultura Escolar que deve ser arquivado resulta na limitada expressão do que fora a escola em épocas passadas. Ademais, a noção de registrar idéias, princípios, rituais, hábitos e práticas, passa subliminarmente pelas ações dos educadores. Essa omissão gera um quase anonimato das práticas, sem exaltação ao desenvolvimento do processo de escolarização e à própria história da escola. Com efeito, registrar seu cotidiano não tem sido uma opção da Escola. Manter sob sua guarda outros documentos além dos oficiais constitui uma dificuldade para a instituição. Porém, algumas escolas fogem a essa regra e permitem a existência de um arquivo alternativo, sem uma codificação específica ou um tratamento mais adequado, onde mantém recolhidos determinados objetos, como exemplares pontuais de uma vivência. Assim, gravitam nos guardados de algumas escolas fotografias, cartas, anotações, álbuns, programação de atividades que, quase por um acaso, não foram considerados para o descarte. Na pesquisa que realizei sobre a história do currículo, no sentido de compreender as políticas e práticas curriculares, a organização do arquivo da escola apresentava algumas particularidades. Em meio a outros guardados, a existência de cadernos, planos, bloco de anotações, agenda da coordenação, fragmentos de cartazes, pautas de reuniões e recortes do quadro de avisos. Espalhados em vários espaços, colocados em pastas avulsas ou em gavetas diversas, tais papéis, ainda que sem uma delimitação temporal, ali estavam, meio escamoteados pelo tempo, sem uma clara intenção de serem arquivados. O fato de permanecerem nos armários da escola abre prerrogativas para se interrogar os motivos pelos quais aqueles documentos não foram descartados e sobre os princípios que permearam a guarda daquele material. O fazer da escola, sua forma de organização, regras e rituais considerados válidos faziam-se representar nos traços daqueles registros escritos, contando uma história do Idelsuíte de Sousa Lima 6670 Perfis da Cultura Escolar viver da instituição. Através de tais fragmentos a revelação das ações tomadas para o ensino, as formas de preparação das festividades, as normas e códigos estabelecidos, as invenções do cotidiano, para usar uma expressão cara a Certeau (1994). De acordo com este autor a inventividade das pessoas, as ‘artes de fazer’ constituem suas práticas. Tais práticas congregam jeitos de ser e viver, os indícios sobre a sistemática do exercício profissional, a dinâmica do trabalho pedagógico, as convenções e liturgias incorporadas, os acordos e convencimentos estabelecidos para organizar o ensino, para apresentar-se à comunidade, para cumprir rituais. Nas palavras de Certeau (1994) são os ‘usos e táticas de praticantes’ que criam maneiras de fazer. No registro de reunião anotado na agenda coordenadora a discussão sobre a relocação da sala dos professores e do ambiente de recepção dos alunos, confirma a assertiva de Dayrell (2001:147) de que: a arquitetura e a ocupação do espaço físico não são neutras. Desde a forma de construção até a localização dos espaços, tudo é delimitado formalmente, segundo princípios racionais, que expressam uma expectativa de comportamento dos seus usuários. Nesse sentido a arquitetura escolar interfere na forma da circulação das pessoas, na definição das funções para cada local. Para o referido autor o espaço arquitetônico da escola expressa determinada concepção educativa. Concepção expressada na discussão sobre a organização dos ambientes, na localização dos recintos propriamente ditos e na projeção das ações sociais a serem efetivadas em tais espaços. De acordo com Viñao Frago; Escolano (2001: 64): “o espaço jamais é neutro: em vez disso, ele carrega em sua configuração como território e lugar, signos, símbolos e vestígios da condição e das relações sociais de e entre aqueles que o habitam. O espaço comunica; mostra a quem sabe ler, o emprego que o ser humano faz dele mesmo”. Idelsuíte de Sousa Lima 6671 Perfis da Cultura Escolar O espaço de convivência é entremeado pela organização político-pedagógica da escola. As deliberações em torno da reforma curricular, as reuniões de estudo, as ações de seleção de conteúdos para as festas escolares registradas no caderno da coordenadora indicam a potencialidade desse material para entender as políticas e práticas curriculares. Para Viñao Frago; Escolano (2001:27): “os espaços educativos como lugares que abrigam a liturgia acadêmica estão dotados de significados e transmitem uma importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do chamado currículo oculto, ao mesmo tempo em que impõem suas leis como organizações disciplinares”. Os significados das ‘artes de fazer’ refletem o projeto cultural da escola, o desenvolvimento do currículo. De acordo com Souza (2005:77): “a investigação histórica da cultura escolar não pode passar ao largo do currículo”, uma vez que através deste se configuram as práticas e as políticas curriculares. Na singeleza dos documentos a expressão de intensas e diversificadas ações do passado da escola localizadas nos arquivos escolares. Livros de atas, diários de classe, livros didáticos, planos anuais, instruções normativas, propostas de trabalho, programa das disciplinas, fotografias, imagens constituem fontes para a história do currículo. Porém, a investida por esse itinerário demanda ética, arte e percurso teóricometodológico. Para analisar os registros do passado da escola é necessário entendêlos, segundo Le Goff (1994), como monumentos, como vestígios, perpetuação do passado e instrumentos de democratização da memória coletiva. Com efeito, os arquivos escolares contêm rastros, indícios, fragmentos das práticas da instituição, como características da sua cultura escolar. Referências: AZANHA, José Mário Pires.(1991). Cultura escolar brasileira: um programa de pesquisas. In: Revista da USP. São Paulo, nº 08, p.65-69. Idelsuíte de Sousa Lima 6672 Perfis da Cultura Escolar CERTEAU, Michel de. (1995). A cultura no plural. Campinas: Papirus. _______. (2000). A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes. CHERVEL, André. (1990). História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. In: Teoria e Educação, nº 02. DAYRELL, Juarez. (1996). A escola como espaço sócio-cultural. In: Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG. FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (2004). A cultura escolar como categoria de análise e como campo de investigação na história da educação brasileira. In: Educação e Pesquisa. v. 30, n. 01. São Paulo, jan/abr. FORQUIN, Jean Claude. (1993). Escola e cultura – as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artmed. _______. (1992). 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Idelsuíte de Sousa Lima 6675 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” O “USO” DOS ARTEFATOS CULTURAIS COMO MOVIMENTOS TÁTICOS E ESTRATÉGICOS, EM ESPAÇOS LISOS E ESTRIADOS, NOS CURRÍCULOS PRATICADOS NO COTIDIANO ESCOLAR Janete Magalhães Carvalho Sandra Kretli da Silva JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar O “USO” DOS ARTEFATOS CULTURAIS COMO MOVIMENTOS TÁTICOS E ESTRATÉGICOS, EM ESPAÇOS LISOS E ESTRIADOS, NOS CURRÍCULOS PRATICADOS NO COTIDIANO ESCOLAR Janete Magalhães Carvalho1 Sandra Kretli da Silva2 RESUMO: Este estudo tem como objetivo acompanhar os movimentos curriculares, em suas táticas e estratégias, em espaços lisos e estriados, e também a experimentação de alguns produtos culturais em circulação no cotidiano escolar de uma escola pública de ensino fundamental de Vitória, ES. Busca cartografar como professores e alunos experienciam artefatos culturais em circulação no currículo vivido no cotidiano escolar, tomando como campo de produção dos dados as conversações e/ou a produtividade dialógica e, nesse sentido, a problematização de um espaçotempo singularizado e tecido com os fios da experiência individual e coletiva. Utiliza, como aportes teóricos, Certeau, Deleuze, Guatarri, Pais, dentre outros. Aponta que a movimentação, entre espaços lisos e estriados, se mostra incessante nas redes de relações de professoras e alunos no cotidiano escolar, onde os produtos culturais são constantemente significados, transformados e inventados por múltiplas redes de saberes, valores, sentimentos, pensamentos, que são tecidos na produção do currículo praticado. Como conclusão, levanta a hipótese da exploração que as professoras fazem de espaços planos e lisos no cotidiano escolar, assim como da fuga aos espaços somente determinados por formas prescritivas no uso dos artefatos culturais. PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Cultura. Cotidiano Escolar. O “uso” de táticas e estratégias entre espaços lisos e estriados O estudo objetivou acompanhar, em movimentos curriculares, em suas táticas e estratégias, em espaços lisos e estriados, a experimentação de alguns produtos culturais em circulação no cotidiano escolar de uma escola de ensino fundamental. 1 Doutora em Educação; professora do Departamento de Educação, Política e Sociedade e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq: Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos. 2 Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq: Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos. Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6679 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar Dessa forma, a pesquisa buscou cartografar, em uma escola pública de ensino fundamental, durante o primeiro semestre letivo de 2009, como professores e alunos experienciam artefatos culturais em circulação no currículo vivido no cotidiano escolar, tomando como campo de produção dos dados as conversações e/ou a produtividade dialógica e, nesse sentido, a problematização de um espaçotempo singularizado e tecido com os fios da experiência individual e coletiva. No cotidiano escolar, professores e alunos, como qualquer dos cidadãos de uma comunidade, estão inseridos em uma formação sociocultural que eles engendram, mas são, também, por ela engendrados. Segundo Pais (2006), há duas maneiras de olharmos as culturas: a) por meio dos processos de socialização que as prescrevem; b) pelas expressividades e/ou performances cotidianas. No primeiro caso, relacionadas com as formas prescritivas que as circunscrevem; no segundo, pela abertura da expressividade. Nesse sentido, o autor aborda os conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari (1997b) de espaço liso e espaço estriado aos quais, e para a análise que propomos, associamos as noções de tática e estratégia de Certeau (2001). Para Deleuze e Guattari, o espaço estriado é revelador da ordem e do controle, estando os seus trajetos confinados às características do espaço que os determinam. Em contraposição, o espaço liso abre-se ao caos, ao nomadismo, ao devir, ao performativo, ou seja, como um espaço de um patchwork (colcha de retalhos, de misturas) e, portanto, de abertura para novas sensibilidades e realidades. As formas-forças performativas abrem-se ao experimentalismo e/ou às novas experimentações por meio de três vetores principais: o lúdico, a ênfase visual, o excesso. Nesse sentido, o espaço liso seria um espaço nômade, sem trajetos previamente determinados. Para Deleuze e Guattari (1997b), se o nômade pode ser chamado de desterritorializado, é porque a reterritorialização não se faz, como no caso do migrante, depois; nem como outra coisa, como no caso do sedentário (visto que a relação do sedentário com a terra está mediatizada pelo aparelho de Estado, pelo regime de propriedade). No caso do nômade, a relação com o espaçotempo é sempre desterritorializante, já que o nômade se reterritorializa na própria desterritorialização, em seu movimento experimental que sempre em fazimento produz uma “terra” desterritorializada. Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6680 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar Desse modo, ao espaço liso corresponde um espaço no qual se desenvolve a “máquina de guerra”;3 ao espaço estriado, um espaço sedentário, instituído pelo “aparelho de Estado” como máquina abstrata de poder hegemônico e sobrecodificante que “[...] se exerce sobre segmentos que ele mantém ou deixa subsistir, mas possui sua própria segmentaridade e a impõe” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 78). O poder, entretanto, manifesta-se de modo específico, pela forma como a sociedade se institui, ou seja, pela natureza de suas instituições e pela ação de seus praticantes. Importa considerar que, para Deleuze e Guattari (1997b, p. 180), os dois espaços só existem coexistindo, ou seja, graças às misturas entre si, “[...] o espaço liso não pára de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso”. Esses conceitos de espaço liso e estriado guardam aproximação com os conceitos de tática e estratégia desenvolvidos por Certeau (2001), que trabalha explorando a problemática de usos, modos de fazer dos usuários, insistindo em sua capacidade de desviar, contornar a racionalidade dos dispositivos estabelecidos pela ordem estatal e comercial. Para Certeau, as evidências são contingentes e, sendo assim, o que é evidente não é senão o resultado de uma disposição do espaço, de uma particular (ex)posição das coisas e de uma determinada constituição do lugar do olhar. Por isso, nosso olhar, inclusive naquilo que é evidente, é muito menos livre do que pensamos. E isso porque não vemos tudo o que o constrange no próprio movimento que o torna possível. Nosso 3 Para Deleuze e Guattari (1997b) uma máquina de guerra distingue-se do aparelho de Estado. “Note-se que a guerra não está incluída nesse aparelho. Ou bem o Estado dispõe de uma violência que não passa pela guerra: ele emprega policiais e carcereiros de preferência a guerreiros, não tem armas e delas não necessita, age por captura mágica imediata, ‘agarra’ e ‘liga’, impedindo qualquer combate. Ou então o Estado adquire um exército, mas que pressupõe uma integração jurídica da guerra e a organização de uma função militar. Quanto à máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte[...]. Seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose. Desata o liame assim como trai o pacto. Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho. Testemunha de uma outra justiça, às vezes de uma crueldade incompreensível, mas por vezes também de uma piedade desconhecida [...] que ultrapassa tanto as dualidades de termos como as correspondências de relações. Sob todos os aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, v.5, p. 12-13). Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6681 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar olhar está constituído por todos esses aparatos que nos fazem ver e ver de uma determinada maneira, ver e crer. Entretanto, Certeau, quer nos ensinar que o nosso olhar é também mais livre do que pensamos, porque o que o determina não é tão necessário nem tão universal quanto acreditamos. O que determina o olhar tem uma origem, depende de certas condições históricas, socioculturais e práticas e, portanto, como todo o contingente, está submetido à mudança e à transformação, dando margem a que seja possível ver de outro modo. O autor argumenta que, se é verdade que, por toda parte, se estende a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos disciplinadores e não se conformam a eles? De acordo com Certeau (2001, p. 201), Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ´próprio`: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que o define. E mais adiante: Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo [...]. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidades polivalentes de programas conflituais ou de proximidades contratuais. Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres (p. 201). Dessa forma, os espaços são ações de sujeitos históricos. Uma escola geométrica e arquitetonicamente definida é transformada em espaço pelos professores, alunos e por outros agentes por meio de suas práticas discursivas que transformam incessantemente lugares em espaços ou espaços em lugares. Os espaços exibem operações que permitem Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6682 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar percursos, passagens, intercâmbios, trocas, compartilhamentos e não apenas a determinação da lei de um “lugar próprio”, pois a lei de um “lugar próprio” se expressa pela autoria definida e, portanto, pela criação, mesmo que personalizada, individualizada. Por sua vez, a ideia de “táticas”, conforme a elaboração proposta por Certeau, busca descrever a resistência contra operações que visam a controlar e organizar o espaço social, visto que o conceito de resistência aparece como uma fissura no espaço praticado, constituindo-se como uma subversão ao lugar controlado. Considerando que, para Certeau (2001), o lugar é um espaço próprio e o espaço um lugar praticado, deve-se compreendê-los como uma dinâmica que não pode ser reduzida a uma situação de diferenciação entre espaço e lugar, pois um pressupõe o outro. Certeau (2001) apresenta a noção de tática não em oposição à noção de estratégia, mas como uma série de procedimentos que, constantemente, utiliza para subverter as referências de um lugar próprio como um espaço que é controlado por um conjunto de operações (estratégias) fundadas sobre um desejo e sobre um conjunto desnivelado de relações de poder. Para ele, estratégias e táticas devem ser lidas como partes de um único processo: a tentativa de uma sociedade se organizar e, dessa forma, a distinção entre táticas e estratégia tem um caráter enunciativo e um caráter operacional que busca compreender as relações de poder e, nesse caráter enunciativo, inscreve-se a não aceitação de uma linguagem privilegiada: científica, cotidiana ou popular. Se as estratégias têm por objetivo a organização de um espaço controlado, as táticas dirigem-se para a possibilidade de operações e enunciações que não supõem um controle ou uma regra universal e, evocando um movimento contínuo, porém, indeterminado, abrem fissuras no poder estabelecido, Tais fissuras se apresentam como resistência ao estabelecido e, como escreveu Certeau, longe de se constituírem como uma revolta ou uma revolução, apresentam-se como subversão comum e silenciosa, mas não deixam de ser resistência . Assim, as táticas (espaço de reconhecimento da criatividade cotidiana) não pretendem se constituir como uma teoria revolucionária, visto sua indeterminação e contingência. Porém, se o ato estratégico organiza o espaço próprio (lugar), o momento Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6683 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar tático tem a mesma ambição. Um como o outro, um pressupondo o outro visam à organização espacial. O primeiro de forma determinada, e o segundo em sua indeterminação (espaço liso) e/ou recusa de operar com regras modelares ou modelizantes (espaço estriado). Como o lugar é próprio, um espaço que é controlado por um conjunto de operações, estratégias fundadas sobre um desejo e sobre um conjunto desnivelado de relações de poder (espaço estriado), as táticas organizam um novo espaço (espaço liso), o qual é um lugar praticado; elas implicam um movimento que foge às operações de poder que tentam controlar o espaço social. Importa, portanto, considerar as estratégias e as táticas em sua relação. Como afirma Certeau (2001, p. 105), é necessária a relação entre estratégias e táticas, pois “O estudo das táticas cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o horizonte de onde vêm e, no outro extremo, nem o horizonte para onde deveriam ir”. E prossegue: [...] as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder. Ainda que os métodos praticados pela arte da guerra cotidiana jamais se apresentem sob uma forma tão nítida, nem por isso é menos certo que apostas feitas no lugar ou no tempo distinguem as maneiras de agir (p.105). A relação entre estratégias e táticas condiciona, dessa forma, o campo dos possíveis à ação política e pedagógica dos “praticantes ordinários” no cotidiano escolar. Assim, a fuga de uma gestão funcionalista dos espaçostempos escolares implica uma configuração em que os “grandes relatos” não esmaguem os “pequenos relatos” (CERTEAU, 2003), como numa concepção de dinâmica social que busque compreender como os “acontecimentos” se articulam na dinâmica entre espaços lisos e estriados (lugares), visto que, como apontamos, lugares e espaços devem ser pensados juntos e, se lugares e espaços devem ser pensados juntos, estratégias e táticas também (CARVALHO, 2009). Alguns trajetos e tracejos dos praticantes ordinários do currículo no uso de artefatos culturais na escola Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6684 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis, e pessoas incomparáveis (FERNANDO PESSOA). O poeta Fernando Pessoa, assim como Deleuze (2003), ensina-nos a importância de estarmos atentos aos inúmeros acontecimentos cotidianos, a fim de potencializarmos as forças presentes entre os movimentos: “O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (p.152). A citação da epígrafe estava colada em um dos cartazes expostos na sala dos professores, junto com outros poemas, anúncios dos aniversariantes do mês, avisos de pedidos de licença médica e de maternidade, propaganda política, divulgação de resultados da gincana, listagem de nomes de pessoas responsáveis pelas barracas da Festa Junina e muitos outros recados e avisos ocorridos nos inúmeros acontecimentos cotidianos da pesquisa. Utilizando, como dito, o enfoque de Certeau (2001), que entende por artefatos culturais todos os produtos disponibilizados pelo poder proprietário, variando de produtos tecnológicos a simples recursos materiais ordinários que são usados pelos praticantes em seus cotidianos, percebemos, no dia a dia escolar, professores e alunos comentando sobre o que veem nas novelas, revistas, jornais e ainda sobre o que vivenciam em diversos espaçostempos. Esses assuntos atravessam os diferentes processos curriculares, favorecendo calorosas reflexões sobre temas, como ciências, sexualidade, tecnologia, drogas, história, preconceito, dentre outros. Os artefatos culturais, além de serem vistos nos cartazes espalhados nas escolas, também se apresentam nos cadernos, nas falas, como possibilidades de integração entre professores e alunos. Assim, com base nas conversações dos praticantes do cotidiano, apresentamos alguns acontecimentos em que as redes de diálogos foram atravessadas pelos usos desses aparatos: A) Na escolha dos livros didáticos a serem recomendados para o próximo ano, percebemos os professores trocando suas experiências quanto aos usos desses artefatos. Ficou bastante evidente o peso dos discursos legitimados como científicos em contraposição à linguagem dos praticantes ordinários do currículo. À sugestão de uma professora sobre os livros a serem selecionados para 2010, alguns comentários foram estabelecidos, tais como: “Eu gostei muito deste, pois tem muito a ver com o trabalho Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6685 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar que estamos desenvolvendo no Núcleo de Estudos e Práticas de Alfabetização do Espírito Santo (NEPALES/UFES), com a assessora da UFES”. Assim, podemos observar, na fala da professora, a necessidade que os espaços escolares sentem de ter alguém ou algo que dê respaldo teórico às suas práticas e às suas convicções, ou seja, no âmbito dos possíveis da abertura da expressividade (espaço liso), sente-se a busca do prescrito anulando os saberes “ordinários”. Outra evidência da importância do saber autorizado pode ser observada quando as professoras aproveitam a chegada de um dos palestrantes da formação continuada e solicitam sugestões na seleção do livro de Geografia, já que o professor é dessa área. O professor, além de indicar algumas fontes, justifica a sua escolha: Observo muito as imagens dos livros. Este aqui, por exemplo, contempla diferentes tipos de moradias... de práticas culturais diferentes e de povos diferentes e as autoras são professoras da USP. Já este outro, as autoras também são professoras da USP, elas apresentam casamentos diferentes, famílias numerosas e pequenas, mas foram infelizes nas escolhas das imagens. A minha preocupação é não silenciar as diferenças. Observo muito as poesias, as músicas, as histórias em quadrinhos selecionadas nos livros. Entretanto, nesse mesmo episódio, pode-se observar como efetivamente nos espaçostempos praticados parecem conviver espaços lisos e estriados, táticas e estratégias. Nesse sentido, destacamos que, como não houve tempo disponível para que as professoras das séries iniciais escolhessem o livro coletivamente, a seleção foi feita por série. Porém, para se discutir sobre a Festa Junina, foi possível obter horário agendado com todos os professores e a equipe técnica, ou seja, há movimentos característicos de espaços lisos que taticamente subvertem as prescrições normativas escolares. Outro detalhe importante: os pedagogos não estavam participando das reuniões para a seleção do livro. Ouvimos uma professora comentar que, após as escolhas, os títulos selecionados seriam comunicados aos pedagogos. Em sentido inverso, observamos que o Programa Gravidez na Adolescência foi apresentado, em uma das reuniões semanais, em poucos minutos, pela direção. Esse projeto foi encaminhado pela Secretaria Municipal de Educação (SEME), dizendo: “Na semana que vem, serão colados adesivos nas portas dos banheiros, por isso preciso contextualizar para vocês o que é que isso significa. Faz parte do programa: São frases Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6686 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar como: Deixe sua primeira vez para mais tarde”. Uma professora interveio afirmando que seria necessário fazer um trabalho com os alunos, senão eles não iriam entender nada. A diretora respondeu que trataria do assunto na reunião com os pedagogos. Ainda nesse encontro, uma professora comentou sobre as críticas recebidas em relação às músicas tocadas no recreio. A diretora concordou: “Realmente, no ano passado tínhamos uma estagiária que cuidava da seleção das músicas. Vamos ver se conseguimos alguém para nos ajudar”. Não se cogitou da possibilidade de abertura desse espaço de expressividade como um movimento que deveria se constituir a partir de conversações e ações coletivas que integrassem os espaços lisos e estriados, articulando criativamente táticas e estratégias. B) Uma ilustração interessante de ação potencialmente de abertura da expressividade e “uso” criativo do espaçotempo escolar refere-se à utilização do laboratório de informática. O professor responsável pelo laboratório nos relata os “usos” que as professoras fazem das imagens retiradas da Internet, nos seguintes termos: Antes, a orientação é que se usasse o laboratório a partir de um projeto feito pelo pedagogo e pelo professor, agora está mais ampliado, basta que o professor justifique no planejamento o que está querendo, traz a idéia para conversar comigo. Por exemplo: a professora de Artes está trabalhando construções e vai levar os alunos para Santa Teresa e Petrópolis. Falou da construção francesa colonial e veio aqui para mostrar aos alunos. Usamos o data-show acessado à Internet e projetamos as imagens para ilustrar sua fala. Entretanto, algumas professoras só usam a Internet para aprofundar algum assunto. Imprimem os textos e levam para a sala de aula. Portanto, ainda se constata um “uso” potencialmente inventivo e por parte de alguns professores. C) Os “usos” de filmes e livros são bastante limitados pelo material disponível, assim como pela iniciativa dos professores, já que a SEME e a escola não têm acervo significativo de filmes e a biblioteca escolar não é sufucientemente explorada. Em um encontro de formação continuada, a palestrante convidada indicou filmes e livros de referência para ilustrar suas concepções. Ao recomendar o filme “Escritores da Liberdade” para as professoras, comenta: “É um filme muito interessante, principalmente, quando um dos personagens (que é um aluno) pergunta para a professora: ‘O que você ensina que tem valor para a minha vida’”. Entretanto, Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6687 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar argumentando falta de tempo, não continua a conversar sobre o filme, voltando-se para outro assunto e não sendo interpelada pelos professores nem pelos membros do CTA que assistiam à palestra. Em outro encontro de formação continuada, a palestrante afirma: “Homens têm uma linguagem, as mulheres outras”, indicando a seguir a leitura do livro “A língua de Eulália”, de Marcos Bagno, que apresenta um vasto contexto de diferenças linguísticas. A palestrante cita outros livros do autor: “Preconceito lingüístico” e “Nada na língua é por acaso”. Este último diz respeito aos aspectos sociais interferindo na linguagem. Nenhum movimento a mais nessa direção é feito quer pela palestrante, quer pelo CTA, quer pelos professores em conjunto ou individualmente. D) O jornal na sala de aula é considerado pelas professoras como um artefato muito usado para favorecer a aprendizagem dos alunos. Exemplificam dizendo: Usamos na Matemática, mostrando aos alunos gráficos, porcentagens, índices, pedindo que façam comparação de quantidades, cálculos. Na Leitura e Escrita, pedimos que os alunos façam resumos, leitura em grupos. Fazemos, ainda, recortes de matérias que tratam dos assuntos que, constantemente, estamos conversando com a turma: gripe suína, sexualidade na adolescência, violência[...]. Na outra escola que trabalho, tem um projeto que a gente recebe vários números de jornal diariamente. Então, sempre deixamos os jornais disponíveis na hora do recreio. Percebemos que os alunos ampliaram o hábito de leitura e ainda chegam à sala comentando os assuntos que acharam interessante, provocando debates importantes na sala de aula. Nesse sentido, uma das professoras solicitou a uma aluna que trouxesse os seus cadernos, mostrando-nos com orgulho o seu trabalho, denotando assim um movimento tático bastante interessante por parte do coletivo dos professores, para, integrando espaços lisos e estriados, contribuir para a abertura da expressividade no cotidiano escolar, olhando, entretanto, para além dele. Observamos que a movimentação entre espaços lisos e estriados se mostrou incessante nas redes de relações de professoras e de alunos no cotidiano escolar. Ao mesmo tempo em que presenciamos alunos e professoras em práticas discursivas que parecem ser reprodutoras, mecânicas, individualizantes e sem sentido, percebemos também práticas de criação, invenção e muita interação e trabalho coletivo nos usos e consumos dos produtos culturais que circulam na escola. Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6688 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar Observamos que os produtos culturais que circulam na escola: jornais, revistas, imagens e textos retirados da Internet, narrativas de novelas, filmes, músicas são usados pelos professores e alunos nos processos curriculares. No entanto, percebemos falta de espaçostempos para que os praticantes do cotidiano dialoguem sobre esses usos e consumos e ampliem a sua utilização de forma a incrementar os espaços lisos em movimentos taticosestratégicos. Recorremos mais uma vez a Certeau (1995, p. 9): “Para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”. O autor acrescenta que “[...] a cultura não consiste em receber, mas em realizar o ato pelo qual cada um marca aquilo que os outros lhe dão” (p. 9). Algumas questões decorrentes poderiam ser: a relação didático-pedagógica tem sido produtora de comunicação, de dialogicidade ou é o canal pelo qual se aplica um saber estabelecido? Tem havido comunicação, tem-se possibilitado a criação da cultura escolar promotora de conhecimentos significativos? Sabemos que, cada vez mais, a cultura está nas mãos do poder. Entretanto, aprendemos, com esse mesmo autor, que a cultura no singular é mortífera e ameaça a criação e a invenção. Sendo assim, defendemos que seja desvelada toda a riqueza da pluralidade das culturas presentes nos currículos praticados por professores e alunos no/do cotidiano escolar, ou seja, que deixem emergir os diversos sistemas de referências e significados que estão silenciados e mortificados na escola. Acrescenta ele, ainda, que, quanto mais a economia se unifica, mais a cultura deve diversificar-se, pois ela é uma prática significativa que não consiste em receber pronto, mas em se fabricar tudo o que nos é oferecido para viver, pensar e sonhar. Toda cultura requer, portanto, uma ação, um modo de apropriação, uma transformação pessoal, lembrando que “[...] o currículo praticado envolve as relações de poder, cultura e escolarização, representando, mesmo de forma nem sempre explícita, o jogo de interações e/ou as relações presentes no cotidiano escolar” (CARVALHO, 2004, p.1). Assim, faz-se cada vez mais necessário divulgar todos os projetos coletivos que estão sendo produzidos nas escolas, explicitando os objetivos, as ações, as realizações e os resultados. Muitas vezes, o desconhecimento dessas experiências, dessas referências, desses diálogos partilhados faz com que os professores fiquem aquém de um “lugar Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6689 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar próprio”, ou seja, se sintam ocupando, no espaço estriado, um “não lugar” (AUGE, 1994). Essa sensação mortificante da falta de criação, de desejo, acarreta acomodação, doenças, cansaços intermináveis, fadiga e stress. Percebemos que semanalmente o quadro de avisos se diversifica com a listagem dos professores de licença médica. Enfim... A questão que atravessa o estudo, portanto, vem a ser: como trabalhar os espaçostempos escolares como espaços nômades, como espaços de inventividade e incremento de expressividade, como característica das experiências dos professores e dos alunos mediados por artefatos escolares que circulam no cotidiano escolar? A extensão totalitária dos sistemas de produção (televisiva, comercial, escolar, etc.) não deixa aos “consumidores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A escola não deixa aos professores e aos alunos um “lugar próprio” de criação e/ou de autoria do produto de seu trabalho. O resultado de seu trabalho é, para a maior parte dos professores e dos alunos, profundamente indiferente do ponto de vista do significado atribuído por eles ao conhecimento e/ou à ação praticada. Tem-se, porém, que considerar que esse processo é resultante de uma rede intrincada de relações. De um lado, a análise mostra que a relação (sempre social) determina seus termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais. Nessas determinações relacionais, incluem-se as combinatórias de operações entre consumidores e usuários, fundadas no status da relação reproduçãodominação e/ou no estatuto de sujeitos (individuais ou coletivos) dominados, mas não necessariamente passivos ou dóceis. Por exemplo, assim como as imagens difundidas pela televisão e o tempo gasto junto ao televisor só adquirem concretude se completados pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” durante essas horas e com essas imagens, do mesmo modo as ações dos professores, às quais os alunos estão submetidos durante horas, diariamente, pressupõem o exame dos seus efeitos sobre os alunos como “consumidores ou usuários”, tais como: passividade, interesse/desinteresse, violência, evasão, aprendizagem, etc. Temos, ainda, que considerar que a pluralidade, aparentemente, incoerente das relações, aponta a necessidade de o trabalho pedagógico considerar a singularidade Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6690 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar pessoal/grupal como uma unidade na diversidade, não reduzindo, porém, um ao outro, pois, como foi visto, a instauração dos espaçostempos escolares se faz tomando por base o “lugar próprio” que deve se abrir para a produção de redes relacionais. Considerando que, para Certeau (2001), o lugar é um espaço próprio e o espaço um lugar praticado, deve-se compreendê-los como uma dinâmica que não pode ser reduzida a uma situação de diferenciação entre espaço e lugar, visto que um pressupõe o outro. No caso da escola e da prática pedagógica dominante, o uso, a presença e a circulação de uma significação (ensinada por pregadores, vulgarizadores ou educadores) não indicam, de modo algum, o que ela é para os seus usuários. O professor, assim como o aluno, ao chegar à escola, não abandona os mitos, as crenças, as ideias próprias de seu grupo social, e nem conseguiria fazê-lo, pois carrega consigo processos de subjetivação e/ou formas de subjetividade de algum modo instituídos a partir de um sistema sociopolítico, econômico e cultural. Portanto, pode-se dizer que não existe escola, mas escolas, assim como uma multiplicidade de significados/significações (CARVALHO, 2004). Na medida em que os professores deixam de ser responsáveis pela produção dos objetivos, conteúdos, métodos de seu trabalho, transferidos para equipes técnicas, livros didáticos e outros, ocorre um estranhamento entre os professores e sua produção/trabalho, com consequências evidentes para o uso por parte dos alunos. Nesse processo, tanto professores como alunos tendem a ser consumidores e/ou usuários de saberes e lógicas alienígenas para eles. Isso, porém, não ocorre de modo sempre passivo. Muitas vezes, os alunos fazem das ações rituais, representações ou leis que lhes são impostas outra coisa que não aquela que o doutrinador julgava obter. Os alunos as subvertem, não as rejeitando diretamente, pela sua maneira de usá-las para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podem fugir. O mesmo se pode dizer em relação ao professor e à tecnoburocracia escolar. Supõe-se, dessa maneira, que os usuários [...] façam uma bricolagem com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras [...]. Desta atividade de Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6691 O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos Currículos Praticados no Cotidiano Escolar formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as possibilidades (CERTEAU, 2001, p. 40). O adoecimento e o excesso, frequentemente, constituem-se como “linhas de fuga” (DELEUZE; PARNET, 1998) de um limite visto como caminho de saída de um sistema fechado (espaço estriado), entretanto alguns “usos” do lúdico e as experimentações vistas e ensaiadas no modo “taticista” permitem-nos levantar a hipótese da exploração que as professoras fazem de espaços planos e lisos no cotidiano escolar, assim como da fuga aos espaços somente determinados por formas prescritivas no uso dos artefatos culturais. Referências: AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et alii; Brasília: CNPq, 2009. CARVALHO, Janete Magalhães. Diferentes perspectivas da profissão docente na atualidade. Vitória: EDUFES, 2004. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2001. CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. 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In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de (Org.). Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006. p. 7-21. Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva 6693 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” CURRÍCULO E CULTURA: REFLETINDO O LUGAR DAS IDENTIDADES NA ESCOLA Josevandro Chagas Soares JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola CURRÍCULO E CULTURA ESCOLAR: REFLETINDO O LUGAR DAS IDENTIDADES NA ESCOLA Josevandro Chagas Soares RESUMO: A temática identidade vem chamando a atenção de pesquisadores do campo do currículo. Nossa pretensão com esse trabalho é refletir sobre o lugar da identidade na escola, entendendo-a enquanto um espaço polissêmico constituído pelo encontro dos diversos grupos sociais, tendo o currículo e a cultura escolar como locus de nossa reflexão. A escola é a instituição social criada para a socialização de conhecimentos e desenvolvimento da cultura. Contudo, nos dias de hoje essa idéia de função social da escola se perdeu e a escola virou alvo da grande mídia, da violência e do descaso inclusive por parte daqueles que a constituem. Podemos compreender que a escola tem o dever de promover condições para que seus atores educativos tenham consciência de si e do lugar que ocupam nos seus espaços e grupos sociais, bem como de seu papel na sociedade. Partindo dessas percepções, entendemos a relevância de se compreender não só a formação dos sujeitos aprendentes e educadores, mas sim propor outro olhar na relação entre estes sujeitos. A construção das identidades e a cultura dos sujeitos educativos devem ser compreendidas enquanto elemento curricular. PALAVRAS-CHAVE: Escola - Atos de currículos - Currículo - Identidade. 1. Introdução A questão da identidade é um tema que vem chamando a atenção dos pesquisadores do campo do currículo. Nesse sentido pretendemos com esse trabalho refletir o lugar da identidade na escola, entendendo-a enquanto um espaço polissêmico constituído pelo encontro de diferentes grupos sociais, tendo o currículo e a cultura escolar como locus de nossa reflexão. Partiremos da premissa que a escola tem sua função social, na qual se tem o objetivo de educar os sujeitos de uma sociedade para o exercício da cidadania. Bem como Josevandro Chagas Soares 6697 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola possibilitar o encontro desses sujeitos com a cultura. Nesse sentido podemos compreender que a escola tem historicamente o objetivo de socializar conhecimentos sistematizados e homogeneizar a aprendizagem. É preciso compreender a escola enquanto um espaço não só de produção de identidade, mas que também é ontológico na unidade de cada um de seus sujeitos, passando pela especificidade do currículo em relação ao tema, bem como os atos de currículo entendido como um importante dispositivo para as nossas reflexões acerca da temática identidade. Sendo assim, pretendemos com este estudo pensar as aproximações entre a instituição escolar e um currículo como propõe Macedo (2007), uma ágora polínia, compreendendo com Apple que o currículo é uma produção mediada pelas ações humanas na qual seus agentes e atores sociais mobilizam-se numa relação dialógica e dialética constante. “O currículo corresponde, em síntese, a uma forma política cultural, acentuando-se, com a expressão ‘política cultural’, a dimensão sócio-cultural do processo de escolarização” (MOREIRA apud GIRUOX e MCLAREN, 1995, p.10). Tomaz Tadeu da Silva (1995, p. 184), por sua vez, compreende o currículo enquanto um conjunto de experiências de conhecimentos, ou seja, entende que “o currículo constitui o núcleo de processo da institucionalização da Educação”. Para Silva (1995) a escola aparece enquanto locus de produção de identidades, pois estas se constituem numa construção social. Nesse sentido a escola em seu processo histórico se manteve estática na sua base de sustentabilidade. As políticas para educação propõem melhorias de fachadas a exemplo das TVs Pen drive enquanto tecnologia educacional. Contudo como afirma Silva: Há, entretanto, uma distância enorme entre as experiências atualmente proporcionadas pela escola e pelo currículo e as características culturais de um mundo social radicalmente transformado pela emergência de novos movimentos sociais, pela afirmação de identidades culturais subjugadas, pelas lutas contra o patriarcado, pelos conflitos entre poderes imperialistas e resistências pós-coloniais, pelo processo de globalização e pela generalização dos novos meios e técnicas de comunicação. No novo mapa cultural traçado pela emergência de uma multiplicidade de atores sociais e por um ambiente tecnicamente modificado, a educação institucionalizada e o currículo Josevandro Chagas Soares 6698 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola continuam a refletir anacronicamente, os critérios e os parâmetros de um mundo social que não existe (SILVA, 1995, p. 185). A configuração atual da escola e as suas políticas curriculares, bem como as políticas públicas para educação, não refletem as verdadeiras necessidades das escolas, que vão além da sua estrutura física, mas sim têm muito a ver com sua estruturação interna. O sucateamento ao longo dos anos, a distancia entre a formação (teoria) e o trabalho dos professores (prática/práxis) são também alguns dos muitos fatores que colaboram para o descaso com a educação no Brasil. 2. A escola e sua Função Social A escola há muito tempo vem sofrendo transformações idealizadas para que cada vez mais tivesse qualidade, fosse um espaço verdadeiramente democrático e compreendido como uma base do grupo social. Nesse sentido a escola foi concebida por ter função social. Assim, para tentar compreender a função social da escola e iniciar nossas reflexões, recorremos ao que Barbara Freitag escreve no prefácio a 3ª edição de sua obra, “Escola, Estado e Sociedade”, na qual a autora entende a escola enquanto uma: Instituição estratégica que, dentro da sociedade civil, desempenha de forma mais direta a função de reproduzir a força de trabalho e as relações de produção, mobilizando, para isso, a ideologia da educação como forma de ascensão social e de democratização de oportunidades. (FREITAG, 1986, p. 8) Contudo, nos dias de hoje essa idéia de função social da escola se perdeu e a escola virou alvo da grande mídia, da violência e do descaso inclusive por parte daqueles que a constituem – cito estudantes, professores, técnicos e gestores. Ao longo de sua história, a escola tinha a função de educar, reforçando os valores morais que eram transmitidos no âmbito familiar, bem como socializando conhecimentos sistematizados para que o indivíduo pudesse ter acesso ao mercado de trabalho e se tornasse um “homem de bem”. O aniquilamento da família, grupo social que Rousseau (2001) considera a mais antiga de todas as sociedades e o único grupo natural, que ao longo do tempo foi aniquilado pela barbárie promovida pelo capital, colaborou muito para o que a escola se tornou ao Josevandro Chagas Soares 6699 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola longo dos anos, um espaço com possibilidades fecundas, sem fecundidade, um espaço onde a produção de saberes não tem mais tanta importância, pois ela está centrada nas políticas dos conteúdos e no culto às disciplinas escolares. Nesse sentido “há uma grande dificuldade dos profissionais da educação em conceber o currículo diante das necessidades e redefinir quais conhecimentos deverão ser estudados ou trabalhados na escola para atender às necessidades de seus educandos” (TEXEIRA e BEZERRA, 2007, p.56). Refletir sobre a educação a partir das palavras de Brandão (2007), que afirma não existir uma forma, um modelo ou um único espaço onde ela acontece, nos incita a compreender que a educação não é só função da escola. Temos hoje uma escola, fruto de uma metamorfose social, que se tornou um espaço sem vida, sem harmonia, sem brilho, sem imaginação e em alguns momentos “sem” contradição, ou seja, uma estrutura silenciante e homogeneizante. A educação e a cultura do ator social têm (ou teve) início na família. No espaço familiar, a educação recebe o nome de “criação” ou educação doméstica, aquela que os pais passam para seus filhos a qual se constituía um referencial para as futuras gerações da família e, muitas vezes, eram reforçadas pela escola. Nos dias atuais, buscamos refletir sobre a instituição família e a instituição escola, e podemos nos perguntar o que aconteceu com estas instituições? Onde está a família idealizada por Rousseau pensada enquanto sociedade natural? Em que medida podemos lançar mão dela sem graves prejuízos ao nosso infant? Onde está a escola pensada por Paulo Freire e Anísio Teixeira e outros intelectuais do campo educacional? Que escola é essa que temos para nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos? Qual o significado da escola para os pais e para os estudantes hoje? Como está a educação doméstica? Que bases morais e éticas ela oferece para que a escola reforce? As respostas a essas perguntas não são nada fáceis, pois é preciso analisar a história de nosso país. A economia capitalista nos últimos anos vem se segurando para não entrar em colapso, e a submissão a organismos internacionais como o Banco Mundial, FMI e Josevandro Chagas Soares 6700 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola UNESCO vem promovendo políticas ideológicas de negação da emancipação e da autonomia dos sujeitos. Contudo, em benefício dos privilégios de políticos, tem-se sacrificado o direito de muitos. O corte de verbas destinadas para educação, saúde e segurança são fatores que vêm contribuindo maciçamente para o atual cenário de barbárie em que se encontra a sociedade, e assim criam mecanismos para atender o desejo das agências internacionais. A escola é a instituição social criada para a socialização de saberes e desenvolvimento da cultura. Podemos entender que a instituição escolar é uma ponte de acesso entre o indivíduo e a cultura. Contudo, resta-nos saber de qual cultura estamos falando? Da cultura considerada dominante, erudita, que exclui os que não se enquadram em seus moldes e termina por marginalizar e alienar ou, uma cultura plural que contemple o entendimento de que a sociedade é dinâmica e que as vozes silenciadas historicamente ganharam fôlego e estão se mostrando, tomando de assalto as estruturas sociais. Nesse sentido Roberto Sidnei Macedo entende que a atual situação precisa ser pensada, pois afirma que: Por essa problemática e por esses argumentos, nos aproximamos da pertinência e da relevância de uma educação como prática identitária enquanto possibilidade educacional, curricular e de formação configurados numa espécie de ágora polínia, ou seja, como um cenário democrático de debates e mobilização de competências coletivas entre diferentes, polinizadas por suas múltiplas referências e pela vontade de instituir possibilidades para o bem comum social pelas vias da educação, constituída numa intercrítica de demandas e interesses socioculturais. (MACEDO, 2007, p. 28) Inspirando-nos na reflexão de Macedo, podemos perceber que não só a família, mas a instituição escolar tem a função de socialização de saberes, todavia estas instituições precisam ser compreendidas como espaços democráticos, contraditórios, complexos e plurais e que os seus sujeitos se constroem nas suas relações em redes. 3. Desafios da construção de identidades no contexto escolar Na atualidade, a grande mídia exibe em seus telejornais matérias sobre a ineficiência da escola, as reportagens trazem a escola como ela está: feia, fria, sombria e o pior, vazia. Ainda há quem procure ou aponte quem são os culpados por isso. O Estado? A Josevandro Chagas Soares 6701 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola sociedade? Professores? Quem? Assim, para ilustrar nossas reflexões recorremos ao inserto retirado do livro “A vida na escola e a escola da vida” que diz: Todo mundo vive se queixando da escola. Pais, professores e alunos reclamam que ela não está funcionando como devia e que as coisas não podem continuar desse jeito. [...] daí que a discussão sobre a escola parece mais um coro em que cada um acusa o outro, cada um tem parte de razão, mas ninguém consegue se entender nem chegar à raiz do problema (CECCON; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1980, p.11). Para Tomaz Tadeu da Silva (1995. p. 184), “a escola não está histórica e socialmente montada para organizar as experiências de conhecimento de crianças e jovens com o objetivo de produzir uma determinada identidade individual e social”. Nesse sentido, na atual configuração social a escola nunca serviu tanto ao Estado como seu aparelho ideológico como hoje, e nunca se reproduziu tanto a cultura dominante como hoje, ao não só inculcar idéias, mas desfacelar identidades e socializar nos indivíduos a sensação de sua própria descartabilidade e subvalorização. Nesse contexto a escola segue a lógica da padronização de comportamentos, conhecimentos e habilidades, promovendo assim a hogomogeneização cultural. A educação por ser um fenômeno estritamente humano, tem no aprender sistematicamente com o outro um importante mecanismo de socialização e preservação de cultura. A qual segundo Juan Delval (2001) é o que nos difere dos demais animais. A cultura e a educação são dois termos interdependentes, pois “a educação só é possível por meio da existência da cultura, e a cultura se conserva por meio da educação” (DELVAL, 2001, p.15). Podemos compreender que a escola tem o dever de promover condições para que seus atores educativos tenham consciência de si e do lugar que ocupam nos seus espaços e grupos sociais, bem como de seu papel na sociedade. Para que isso ocorra é preciso pensar a noção de alteridade no contexto escolar, pois só do si para o outro se cria possibilidade de construção de identidades. Antonio Flavio Moreira (2008) sinaliza sobre a necessidade de refletir acerca da temática identidade na atual configuração de nossa sociedade. Assim, inspiramo-nos nas Josevandro Chagas Soares 6702 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola reflexões de Moreira que destaca três pontos relevantes deste debate: a teoria social, a educação e a política. Na teoria social “a discussão teórica da identidade justifica-se, então, por iluminar a interação entre a experiência subjetiva do mundo e os cenários históricos e culturais em que a identidade é formada” (MOREIRA; CÂMARA apud GILROY, 2008, p.38-39). No campo da educação defende que “qualquer teoria pedagógica precisa examinar de que modo espera alterar a identidade do/a estudante” (MOREIRA; CÂMARA, 2008, p. 39). E o campo da política a “ênfase na identidade deriva do reconhecimento de que certos grupos sociais têm, há muito, sido alvo de inaceitáveis discriminações” (MOREIRA; CÂMARA, 2008, p.39). Partindo dessas inspirações, entendemos a relevância de se compreender não só a formação dos sujeitos aprendentes e educadores, mas sim propor outro olhar na relação entre estes sujeitos. A construção das identidades e a cultura dos sujeitos educativos devem ser compreendidas enquanto elemento curricular como diz Macedo, “o currículo que se institui sabe e quer saber sempre da vida dos seus sujeitos-alunos, constrói-se preponderantemente a partir deles e movimenta-se com eles” (MACEDO, 2007, p. 131). Nas inspirações de Macedo vemos que o currículo deve ter em sua política a preocupação com a temática identidade, pois alguns professores acreditam que discutir esta temática é um mero modismo, precisamos sensibilizar estes colegas no sentido de fortalecer um movimento que tem um sentido político, que há muito tempo muitas vozes ficaram silenciadas e esquecidas e que, graças aos movimentos sociais, a academia resolveu acatar estas reivindicações, ainda que com certo preconceito e como foi citado vista por muitos enquanto uma espécie de modismo. A discussão sobre a identidade é fundamental para a superação de práticas autoritárias, com foco no puro repasse de informações que não são significadas pelos estudantes e, portanto, pouco potencial têm para a reelaboração de seus saberes, na percepção de seus valores e vivência de uma vida expressiva. Recebem-se informações sem se saber para que. Podemos pensar na produção de identidade social a partir do contexto escolar. Partimos do que chamaremos nesse momento de tríade ou triangulação, de grande Josevandro Chagas Soares 6703 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola importância para compreender nosso objeto de debate. De um lado temos a cultura do aluno, de outro a cultura da escola e entre ambos a cultura escolar. Compreendemos por cultura do aluno, seus saberes adquiridos e construídos relacionalmente no âmbito familiar, suas experiências, suas vivências e sua história. A cultura da escola envolve as ações e comportamentos dos gestores e técnicos, bem como a prática e a práxis pedagógica de cada professor ou/e professora. Por cultura escolar entendo o currículo instituído, os atos de currículo, as diretrizes as políticas públicas no campo educacional acrescido de tudo que faz a escola ser uma escola. Se compreendermos que é na cultura escolar que estão os elementos de mediação destes embates que vêm ocorrendo nas escolas e, muitas vezes, de forma violenta, acharemos um caminho no meio da escuridão, ainda que tosco. É no campo do currículo e dos atos de currículo que podemos encontrar possibilidades de alternativas para se pensar uma saída inicial para esse caos em que se encontra a educação na escola pública brasileira. Para finalizar, trago devaneios e reflexões de um romântico e idealista que sonha e acredita que é possível construir uma nação verdadeiramente democrática, que deixe de ser massa e se torne povo, que conheça seus direitos e que lute pela sua preservação e ampliação a exemplo de uma escola pública gratuita e de qualidade. Sabemos que a escola tem uma função social, hoje precisamos re-pensar esse modelo que não satisfaz mais às necessidades da sociedade. Torna-se necessário uma escola que compreenda e assuma politicamente que seus estudantes não são “idiotas culturais” aprendendo a respeitar as crenças e os credos de seus atores educativos, como também o reconhecimento de um processo identitário que todos nós em nosso devir passamos, pois como dizia Freire somos seres em constante processo de formação. Josevandro Chagas Soares 6704 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola 4. Atos de currículo e cultura escolar O termo Atos de currículo é um conceito que vem sendo desenvolvido por Roberto Sidnei Macedo em alguns dos seus textos no âmbito da formação no Grupo de pesquisa FORMACCE, entendido enquanto um dispositivo formativo. Macedo entende que o currículo não deve ter só um caráter formativo e normativo, mas sim ter um caráter libertário e identitário. Segundo Macedo, a denominação atos de currículo Parte da premissa de que o currículo, por mais que possa adquirir uma certa autonomia em relação aos seus pensadores, construtores e /ou executores (o currículo instituído, visto enquanto uma estrutura que constrange e altera pelos processos formativos), se consubstancia enquanto processo instituinte incessante pelas ações concretas dos atores educativos, ou seja o currículo é uma construção/produção sociopedagógica, cultural e política, feita e refeita pelos seus atores/autores dentro de ‘dada’ historicidade, coletivamente configurada, em que sempre se vivencia certas hegemonias de cosmovisões, visões de homem, de educação, de ensino e de aprendizagem” (MACEDO, 2000, p. 95-96). Nas palavras fecundas de Macedo, podemos compreender os atos de currículo em grande medida enquanto um dispositivo que proporciona refletir os temas que nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, aparecem apenas como temas transversais: Sexualidade, Cultura e Educação Ambiental. É sobre a questão cultural que temos a intenção de refletir, fazendo algumas perguntas: qual é a cultura que é valorizada na escola? O currículo contempla a cultura local? Por que em nossas escolas temos que sempre pensar a cultura global e alijarmos a cultura local? Um exemplo está na linguagem dos jovens, no uso de adereços que até certo tempo eram imorais, tais como a tatuagem e o piercing. A instituição escola não consegue abrir uma linha de diálogo com os estudantes e estes, por sua vez, reagem a essa falta de dialogo com certa violência, usando como mecanismo o vandalismo que vem degradando a escola. Teixeira e Bezerra (2007, p. 56) afirmam que o currículo escolar contempla apenas conteúdos que objetivam resultados imediatos e que “determinados saberes deveriam ser contextualizados de forma que os alunos entendessem melhor a importância e a sua relação com a vida cotidiana, esclarecendo dúvidas para as quais nunca encontram respostas porque elas não fazem parte do currículo” Josevandro Chagas Soares 6705 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola Nesse sentido Macedo (2007, p. 26 - 27), nos traz a seguinte reflexão: No momento em que no Brasil se constrói uma sensibilidade pública, até mesmo oficial, no que concerne á emergência da diversidade cultural como principio de organização da educação nacional, bem como se discute mecanismos de inclusão e de institucionalização de cotas na educação como forma de fazer face a uma história de alijamentos e de silenciamentos de vozes advindas de segmentos socioculturais não hegemônicos, - cito, como exemplo, a segregação e a perversidade com que a cultura afrodescendente e índiodescendente e outras formas de pertencimento ainda são pleiteadas nos curricula – , faz necessário aprofundar reflexões de uma forma mais complexa para se apreender a dinâmica e o alcance dessas iniciativas. Macedo propõe refletirmos do ponto de vista da escola, do currículo e da formação a necessidade de se pensar uma escola multicultural e/ou intercultural. 5. Considerações finais A relação escola, cultura escolar, currículo e construção de identidades vem possibilitando questionamentos e articulações no campo educacional. Podemos notar que a escola atual na aparência mostra-se tão ultrapassada quanto na sua essência. O esfacelamento da estrutura familiar tradicional e o pessimismo social para com a instituição escolar reflete bem o que é nossa sociedade. É chegado o momento que as políticas curriculares e as práticas/práxis pedagógicas precisam refletir que a escola não é mais o local de reprodução de conhecimento sistematizado com um fim prático – o vestibular. Mas pensar uma escola plural e singular, um espaço no qual não se fique só nos discursos panfletários de políticos sobre inclusão, mas que inclua de fato com responsabilidade. Os estudos culturais, o multiculturalismo, a interculturalidade no campo da educação tem muito a contribuir para uma formação dos atores sociais. Para que isso ocorra é necessário pensar uma escola que vá alem do si em si mesmo e avance para o si mesmo no outro e o outro em si mesmo. Podemos pensar numa formação ao longo da vida na qual as histórias dos sujeitos do processo educativo não se percam em meio às institucionalizações do conhecimento, mas que faça parte do processo. Pois cada história traz consigo um pouco de cada um de nós. Josevandro Chagas Soares 6706 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola Pensar um currículo que contemple esta necessidade é pensar um currículo identitário e formativo (MACEDO, 2007). Como nos diz Silva (1995), “a questão do multiculturalismo e da afirmação da identidade cultural dos diversos grupos sociais também apresenta uma oportunidade para repensar velhos dilemas sobre a relação cultura e educação” (SILVA, 1995, p. 196). Para Moreira e Câmara, a identidade tem um foco político importante, pois é “a ênfase na identidade deriva do reconhecimento de que certos grupos sociais têm, há muito, sido alvo de inaceitáveis discriminações. Entre eles, incluem-se os negros, as mulheres e os homossexuais” (MOREIRA e CÂMARA, 2009, p. 39). Inspirado em Silva compreendemos que o currículo é o locus onde as lutas pelo poder se intensificam em busca de significados e significantes sobre o social e o político. Assim , Reinaldo Matias Fleuri (2003, p. 56), entende que a identidade “é formada e transformada continuamente em relação ás formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Todavia “a cultura escolar produziu uma seleção de conteúdos escolares que priorizam os aspectos cognitivos e marginalizam os culturais, tornando inflexível a composição do currículo” (TEIXEIRA e BEZERRA, 2007, p.59). Por fim, é preciso mudar a mentalidade daqueles que fazem a escola, temos que criar uma escola para além da estrutura física, de inanimada para uma estrutura animada com vida e construção de saberes na produção de conhecimento. Que não valorize apenas a prática pedagógica, mas sim a práxis pedagógica, a dialogicidade e a intercrítica. Tendo nos atos de currículo, idealizados por Macedo, um importante dispositivo para essa mudança. 6. Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleção Primeiros Passos). CECCON, Claudius. A Vida na Escola e a Escola da vida 39.ed. Petrópolis: Vozes, 1980. Josevandro Chagas Soares 6707 Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola DELVAL, Juan. Aprender na vida e aprender na escola. Trad. Jussara Rodrigues. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e sociedade. 6.ed. São Paulo: Moraes, 1980. (Coleção educação universitária). FLEURI, Reinaldo Matias. Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo, diversidade e eqüidade: luzes para uma educação intercrítica. Salvador, EDUFBA, 2007. ___________. Currículo: campo, conceito e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2007. MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças culturais e praticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. SILVA, Tomaz Tadeu da. Os novos mapas culturais e o lugar de currículo numa paisagem pós moderna. In: Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1995. TEIXEIRA, Célia Regina; BEZERRA, Roseane Dal Belo. Escola currículo e cultura(s): a construção do processo educativo na perspectiva da multiculturalidade. Dialogias, São Paulo, v.6,2007. Josevandro Chagas Soares 6708 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” OS VÍNCULOS ENTRE OS OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO, OS CURRÍCULOS E AS PRÁTICAS, PENSADOS A PARTIR DO CASO DOS PRÉ-VESTIBULARES Kléber Clementino da Silva JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares OS VÍNCULOS ENTRE OS OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO, OS CURRÍCULOS E AS PRÁTICAS, PENSADOS A PARTIR DO CASO DOS PRÉVESTIBULARES Kléber Clementino da Silva RESUMO: Na redação deste artigo, procurou-se argumentar que os currículos e as práticas, em um processo de aprendizagem, encontram-se em inescapável articulação com os objetivos perseguidos pela educação. Em outras palavras, a atividade pedagógica veicula, consciente ou inconscientemente, aquilo que se espera da educação, os preceitos que alicerçam a concepção educacional dos envolvidos – os quais não coincidem obrigatoriamente com os preceitos inscritos nas leis ou defendidos nos compêndios e nos discursos. Operam, aqui, os objetivos reais, sejam eles nobres ou mesquinhos. Estes argumentos e conclusões decorrem da análise e interpretação de dados obtidos em pesquisa de campo realizada em Recife, no segundo semestre de 2008, em estabelecimentos privados de ensino pré-vestibular. Especificamente, apresentam-se algumas das características da docência nestes espaços, e discute-se quão profunda tem sido a interferência do Vestibular sobre os objetivos, e por conseguinte sobre os currículos e as práticas pedagógicas da escolarização regular. Por fim, tecem-se ligeiras reflexões sobre as reais motivações da população no que toca a Escola, e sua possível dissonância quanto às aspirações do discurso pedagógico. PALAVRAS-CHAVE: objetivos da educação, currículo, Vestibular. I A primeira esposa de Napoleão Bonaparte, o leitor porventura recordará, chamava-se Joséphine, Joséphine de Beauharnais – ou Josefina, se me é dado aportuguesar a grafia. Descendia da nobreza e, como convinha às moças bem nascidas, Josefina recebeu sólida instrução, mas não essa que compreendemos hoje em dia. Foi educada no Convento das Senhoras da Providência, em Fort-Royal (...). O currículo consistia então em catecismo, boas maneiras, literatura, desenho, bordado, dança e música; as freiras acreditavam que estas disciplinas levariam uma mulher muito mais longe do que o latim, o grego, a história e a filosofia; e Josefina provou que estavam certas. Tornou-se, como foi dito de Mme. de Pompadour, “um petisco para um rei”. (DURANT, 1993, p. 92). Kléber Clementino da Silva 6712 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares Este resto de frase não entra aqui sem malícia. O autor, ao mesmo tempo em que concorda que as lições de bordado e boas maneiras ministradas pelas freiras “levariam uma mulher muito mais longe” do que palestras lingüísticas, históricas e filosóficas, dá logo em seguida a qualidade e a exata medida desta lonjura – nada além de fazer das mulheres um berloque, um enfeite sofisticado para os salões, “um petisco para um rei”. E Josefina, se é possível dizê-lo sem ser descortês para com sua memória, não serviu de “petisco” apenas para Bonaparte; primeiro que ele, casou-se com o visconde de Beauharnais, de quem herdou o nome e com quem teve dois filhos, mas o infeliz terminou guilhotinado em 1794, durante o regime do Terror jacobino, deixando a viscondessa livre para contrair novas núpcias e adornar outros soirées. Inclusive detratores há que a acusam de haver escapado de morte semelhante pela concessão de favores impróprios a militares de alta patente, porém as provas não são de modo nenhum definitivas, talvez se deva atribuir tudo à picardia da época. Aprender sobre estes desdobramentos, sobre a educação de l’impératrice me deixou meditativo. Naturalmente, não é verdade que tenhamos atingido já o patamar da completa igualdade entre os sexos, muitas carreiras e posições permanecem ainda, aberta ou veladamente, dificultadas às mulheres. Suponho, contudo, que mesmo a mais fervorosa correligionária do feminismo concordará que desde muito está superada a “boa educação para moças”, cujo programa pouco diferia da formação em bordados em que se graduou Josefina, e cuja reintrodução, agora, soaria escandalosa e mereceria o repúdio geral. O que cumpre notar é o quanto aquele currículo do convento martinicano harmonizava-se aos propósitos da época e do lugar, ao papel reservado a Josefina na sociedade francesa e, em última instância, às expectativas endereçadas à atividade educativa. Partamos daqui. Basta este singelo exemplo para provocar-nos um largo sorriso diante de afirmações como as da professora Guiomar Namo de Melo (1990), para quem é possível, sim, destacar do conteúdo da cultura um determinado conjunto de saberes mais elevados, de legitimidade indiscutível; e para quem, além de serem isentos os conteúdos, a seleção deles pode se realizar de maneira apolítica, inquestionavelmente objetiva, a salvo do contágio ideológico e das paixões dos agentes sociais. Exumando a Kléber Clementino da Silva 6713 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares polarização entre a poiésis – o domínio da técnica e da necessidade, do que prescinde do discernimento – e a práxis – o domínio da ética, da política, da escolha e da decisão – Melo propõe, em primeiro lugar, classificar a Educação como poiésis, e em segundo lugar abandonar a hierarquia aristotélica, coroando-a como superior à práxis. Em suas próprias palavras, que ela avalia como “óbvias” (Idem, pp. 19-20): “cabe à escola ensinar. A principal função social e política da educação escolar é, neste sentido, a transmissão do conhecimento sistemático e universal”. Ora, o que é “universal” está, por definição, a salvo das disputas, não resulta de conflitos nem é fruto de um julgamento revogável. “Ensinar”, assim, não seria uma tarefa problemática ou controversa, não implicaria escolhas nem posicionamentos, assim como não seria problemático o conhecimento a ser transmitido aos alunos. É poiésis. Daí a urgência, continua ela, de “desideologizar a educação” e “dar acesso ao conhecimento sistemático e universal”, ensinar a ler, a escrever, as “noções de grandezas e números”, e tudo o mais que se distancie das interferências partidárias, que comporte validade geral e se revele igualmente benéfico a todos os seguimentos. “Escola não é partido” – eis seu slogan; logo, o político não participa do curricular. Negá-lo é pretender “doutrinar” os estudantes, é promover o que não importa nem melhora, é “mistificar e romantizar o saber popular”, que é meramente regional e assim deve permanecer. Não será esta cultura ilegítima e sem potencial para o progresso econômico que haverá de compor o currículo escolar. Há conhecimentos, possivelmente concluiria, que por sua relevância histórica e científica devem figurar nos programas educacionais de todas as nações modernas, cuja ausência é simultaneamente danosa para os indivíduos que aprendem e para as sociedades que os educam. A reunião deles corresponde ao “currículo universal”, a sistematização dos únicos conhecimentos verdadeiramente educativos, daquilo que a humanidade elaborou de excelente e positivo no decurso da história, para além do que é duvidoso, sectário e opinativo. Desconfio que poucas das disciplinas em que a jovem Josefina foi titulada, e que lhe permitiram tão admirável trajetória na sociedade francesa ali pelos fins do século XVIII encontrariam espaço na lista desses “conhecimentos universais”. Provavelmente nenhuma delas, pois, insistiria Melo, apenas importâncias de mais alta esfera merecem constituí-la, a Física, a Matemática, a Gramática e outras. Que currículo de validade geral abrigaria estudos de Hagiologia, de “danças para bailes”, de “boas maneiras à Kléber Clementino da Silva 6714 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares mesa”? Nenhum. A bem da verdade, não somente Melo, pouquíssimos dentre nós aceitariam custear as mensalidades dispendiosas de uma educação em tais matérias. Mas a diferença entre Melo e o resto de nós é uma: nossa recusa não vem, como a dela, de concluirmos que estas aprendizagens estão excluídas do conhecimento universal – seja lá o que isso for; vem, sim, porque elas não atendem aos nossos objetivos, aos interesses e lutas em que estamos mergulhados no presente. Porque, leitor, um currículo é isto: a manifestação, vertida nos termos de um programa, das expectativas depositadas pelas pessoas sobre o processo educativo. Desejamos descobrir o que se quer com a educação oferecida à mocidade? Examinemos seus currículos, a resposta reside neles1. Retomando o exemplo, Josefina formou-se exatamente naquelas disciplinas que correspondiam às aspirações das damas bem nascidas do Ancien Régime, assim como da sociedade ao redor delas, disciplinas que hoje, no máximo, fariam de uma moça numa dondoca ignorante. A adequação de um currículo se mede pelo grau em que ele se harmoniza ao sentido dado à educação: se este objetivo é formar pessoas críticas, dotadas de discernimento e sensibilidade acerca dos problemas sociais, um currículo pautado por estas mesmas diretrizes, que vise a infundi-las e prestigiá-las, é o instrumento ideal; se, ao contrário, for capacitar para o mercado de trabalho, para a aprovação no Vestibular ou para o recreio da aristocracia, o mesmo currículo resulta de pouca serventia. Inaceitável postular a existência de um currículo de validade absoluta, o melhor para todas as ocasiões, épocas e lugares. Como escreveu o historiador inglês Edward Carr (2006, p. 161), “nada é mais radicalmente falso do que colocar algum padrão supostamente abstrato do desejável e condenar o passado à luz dele”. Daí, enfim, ser tão inadequada a hipótese de um saber universal, ótimo para todo mundo – exceto no caso ainda mais hipotético de uma sociedade em que a totalidade dos seus segmentos perseguisse propósitos idênticos. É claro que algo assim não existe, Julien Brenda (2007, pp. 46-47) foi um dos que nos desenganaram desta mentira: “é inegável que a democracia, precisamente por outorgar a liberdade individual, implica um elemento de desordem”. Montesquieu foi outro: “quando em um Estado não percebemos o ruído de nenhum conflito, podemos ter certeza de que a liberdade não existe ali” (MONTESQUIEU apud BRENDA, 2007, p. 47). Liberdade é divergência. Um “currículo universal” é uma fraude. 1 Mas não somente neles: também nas práticas docentes, nas concepções e mecanismos avaliativos, nos modelos de gestão, em tudo aquilo que na educação admite interferência humana. Kléber Clementino da Silva 6715 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares II Tecidas estas reflexões preliminares, cumpre agora enveredar por quesitos mais específicos, como o do vínculo entre os objetivos, o currículo e a prática docente nos cursos pré-vestibulares, e sua reverberação no Ensino Médio. Se, como foi dito, um currículo dá corpo à coleção dos objetivos em que investimos a educação, posicionamentos que almejem negar o caráter político da seleção curricular, julgando-a desinteressada e isenta, ou ignoram os conflitos de que ela é fruto, ou conhecem-nos e manobram para ocultá-los. Numa sociedade como a nossa e numa escola como a que nós temos, costuma predominar a segunda alternativa: não admitir as articulações entre o peso conferido a cada ramo do saber e as pressões sociais incidindo sobre o sistema escolar, adotando antes o discurso de que o currículo ideal é “racional”, “lógico” ou “universal”, proporciona excelente estratégia para preservar as disposições atuais, de fazer com que a educação escolar prossiga beneficiando os mesmos segmentos, sem deixar espaço para contestações. A análise de Michael Apple em “Ideologia e Currículo” (APPLE, 1982) demonstra em detalhe o funcionamento deste mecanismo. Em suas palavras, “a estrutura da tendência de áreas do conhecimento constitui um exemplo interessante de muitas dessas questões sobre poder e cultura” (Idem, p. 60); o currículo não só não é de maneira nenhuma universal, como ainda por cima tende a veicular em seus capítulos as mesmas ambições e valores daqueles que o estipulam. Por sob sua superfície aparentemente calma e consensual há uma tempestade conflituosa, e sua configuração equivale sempre a um equilíbrio dinâmico das reivindicações sociais. É predominantemente conservador, ou reformista, ou radical ou de outra inclinação, em consonância com a média das forças políticas em atuação no momento de sua redação2. E esta natureza fervilhante e aguerrida não se manifesta apenas na disposição dos temas (enfatizando, digamos, conteúdos harmonizados ao discurso hegemônico, e vetando ou secundarizando matérias desconfortáveis), mas também na própria abordagem com que se interpretam e ensinam os conhecimentos. 2 Uma análise instrutiva da confrontação dessas forças na determinação das diretrizes educacionais se encontra em BRZEZINSKI (2000), que estuda as disputas em torno da redação e da homologação da LDB vigente. Kléber Clementino da Silva 6716 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares Há abordagens e abordagens. Um curso de Matemática dedicado, por exemplo, ao tema das funções pode sem dúvida propiciar aos seus estudantes um genuíno aprendizado matemático, desde que lhes ensine o que são funções, o que significam, que espécies de problemas reais os matemáticos desejavam solucionar ao desenvolvê-las – além de, é claro, como calculá-las. Um curso, no entanto, que negligencie todas estas importâncias a fim de preocupar-se apenas com a última – quero dizer, um curso de funções matemáticas que indica apenas como calculá-las sem verdadeiramente entendêlas (ou, estendendo o raciocínio às demais disciplinas, a listar eventos históricos, características geográficas, reações químicas, regras gramaticais e assim por diante), sem ir além disso, não dissemina o conhecimento matemático (ou histórico, ou geográfico, ou químico), não ensina a pensar matematicamente, e portanto contribui muito pouco para a formação das pessoas. Trata-se de abordagem limitada, mutiladora da inteligência e das potencialidades, incapaz de formar protagonistas sociais. Ora, talvez me interrogue o amigo leitor, mas o que produz esta diferença do primeiro curso, que ensina a pensar matematicamente, para o segundo, que só mostra como efetuar cálculos sem entendê-los? A resposta: a diferença reside nos objetivos perseguidos por uma e por outra educação. Mas que objetivos, afinal? Quem é capaz hoje de declarar seguramente quais são os propósitos que norteiam a educação brasileira? Se a educação de um povo buscasse metas tão simples quanto, digamos, as do sistema de tráfego, caberia arriscar alguma resposta descomplicada. Peço licença aos especialistas para adentrar terreno em que sou ignorante, mas a comparação talvez possua utilidade. Deixando de lado outras prováveis dificuldades (como a poluição, a sinalização ou a criminalidade) e sem dúvida incorrendo em pecaminosa simplificação, os dois principais objetivos do sistema de tráfego parecem ser permitir que a ida e vinda de veículos flua com o mínimo de congestionamentos, e que tanto pedestres quanto condutores não se acidentem. Sintético, dois alvos claramente determináveis, atuando em combinação. E, no entanto, o leitor estará familiarizado com as manchetes cotidianas dos muitos quilômetros de engarrafamentos e, o que é mais lastimável, das tantas fatalidades acontecidas nas rodovias. Conhecem-se bem os objetivos e problemas, mas as soluções são custosas, envolvem os hábitos e os recursos de populações inteiras, e na concorrência de todos esses fatores se tornam complexas e emaranhadas. Que inteligência temerária acredita Kléber Clementino da Silva 6717 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares saber exatamente o que fazer? Encarecer a compra de veículos? Dificultar a obtenção das licenças de motorista? Implantar rodízios de automóveis? Abrir novas e mais largas avenidas? Destinar maiores verbas para o transporte coletivo? Mas não é verdade que cada uma dessas iniciativas acarreta danos colaterais, e por conseguinte esbarra em fortes oposições? Ora, se para o sistema de tráfego, cujos objetivos se identificam com esta relativa facilidade, as soluções revelam-se em tal medida controversas, o que diremos do campo educacional, onde os antagonismos assediam não apenas as soluções dos problemas, senão, já muito antes, a própria definição dos propósitos, atravessando por sobre cada uma das etapas do processo? Uma questão educacional – como a da finalidade do Ensino Médio – se vê alvo de tantos e tão distintos interesses que suas incidências rapidamente saturam a experiência, negam terreno à isenção e à neutralidade, e basta que ressurjam na pauta dos debates para convulsionar os espíritos e inflamar a atmosfera. Um campo particularmente minado da trajetória escolar é o momento da transição do Ensino Médio para o Ensino Superior, mediado como é pelo processo seletivo do Vestibular. Que currículo convém ao Ensino Médio? Seria aquele que abordasse conteúdos orientados à profissionalização dos estudantes, para que depois do terceiro ano, se assim desejassem, se encontrassem capacitados a tomar parte na cadeia produtiva? Ou, ao contrário, outro que lhes proporcionasse educação de maior profundidade e abrangência, com acento nos valores culturais e humanos, no conhecimento investigado pelas gerações predecessoras, estimulando neles a inteligência e o discernimento, cultivando-os como homens e mulheres efetivamente emancipados? A resposta inscrita na legislação vigente é: “as duas coisas”3. Não se trata de ambigüidade casual, mas sim de descaracterização de longa data em nossa história educacional, desembocando num Ensino Médio sem identidade, oscilante, cuja existência se apóia, ou no mundo do trabalho, ou na expectativa universitária: o fluxo dele para o Ensino Superior, como um pêndulo, ora se inclina para a direita, ora para a esquerda (CUNHA, 1982), e cada deslocamento corresponde a concepções distintas, objetivos distintos, currículos distintos. Nas décadas recentes, havendo fracassado a 3 Ver a análise de PEREIRA & TEIXEIRA (2003). Kléber Clementino da Silva 6718 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares política do “secundário profissionalizante”, e sem embargo do que diz a lei, prevaleceu a noção de que o Ensino Médio é a ante-sala do Vestibular, de que este exame é seu objetivo4. “O que não cai no Vestibular”, denunciava Cláudio de Moura e Castro há quase 30 anos, “não se ensina na Escola. Os currículos adotados no secundário dependem muito mais do Vestibular do que dos programas oficiais ou das preferências de escolas e professores” (1982, P. 20). Subordinar desta maneira os preceitos do Ensino Médio ao Vestibular equivale a, no mínimo, rebaixar as esperanças confiadas à educação ao status de vacuidade; lê-se na lei e fala-se em emancipação, discernimento, profissionalização, “aprimoramento como pessoa humana”, “compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos” (BRASIL, 1996 apud BRZEZINSKI, 2000, p. 254), porém estes são estatutos falsos, que não mobilizam ninguém – pois os reais objetivos se sujeitam à aprovação no Vestibular, à obtenção do diploma e à escalada pelas recompensas que supostamente se reservam a quem obtém o terceiro grau. E – para o bem ou para o mal – são exatamente estes “reais objetivos”, e não os da retórica, da lei ou consciência que se enraízam nos currículos e nas práticas docentes, o que explica por que se multiplicaram os cursinhos pré-vestibulares, com sua pedagogia “do que aprova”, e por que tantos colégios acompanham suas idéias e seu modus operandi. Coisa muitíssimo diversa, portanto, é debruçar-se sobre estudos com a finalidade de cultivar-se em cultura ou ciências ou profissionalizar-se, ou estudar para passar no Vestibular. Atrevo-me a declarar que, para além de serem diversos, são propósitos irreconciliáveis. É claro que um hipotético exame poderia incumbir-se de avaliar o grau de aprendizagem dos alunos, não incorrendo por isto em erro ou paradoxo. Entretanto – eis o âmago do problema – o Vestibular não é um instrumento pedagógico cujo papel seja selecionar, mas sim um mecanismo cuja função é legitimar uma seleção que o precede. Os que ocuparão as vagas mais cobiçadas e prestigiosas não são selecionados pelo Vestibular, mas pelos abismos quase intransponíveis da nossa estrutura social, resultado do berço onde nasceram, dos valores e da instrução que receberam, da tranqüilidade econômica de que desfrutaram ao longo da vida. Exceções são heróicas. Decorre daí que, de mero questionário, o Vestibular se tenha convertido na meta do Ensino Médio: o que jaz adiante não é uma prova, senão uma muralha maciça, 4 Resta saber o efeito que terão as recentes medidas anunciadas pelo governo, que prenunciam o “fim do Vestibular” e sua substituição pelo modelo do ENEM. Kléber Clementino da Silva 6719 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares gigantesca, e não há ultrapassá-la senão para aqueles que se apresentam carregando nas mãos os sofisticados equipamentos do alpinismo. Os demais, por muito ardentemente que queiram e por mais que corram e saltem... É compreensível que um processo educativo absorto nestas finalidades elabore um currículo igualmente orientado para a legitimação das seleções de origem social, e não para a promoção equânime da cultura, da cidadania ou do que quer que seja. Assim procedem o Vestibular, os cursos pré-vestibulares e os colégios que se inspiram neles: seu currículo, seu ensino e a prova para que preparam constituem um coeficiente preservador de exclusão social, de pretexto meritocrático, a garantia pedagógica de que os membros de determinadas classes, pondo em movimento as vantagens materiais a que têm acesso, gozem de predominância na ocupação das posições profissional e economicamente vantajosas5. E como isto é conseguido? Orientando o currículo para o enciclopedismo, promovendo por meio dele a competição aberta entre candidatos desiguais. De vez que, como sustento, o objetivo do Vestibular, ao contrário do que se divulga, é trabalhar para que determinados grupos ingressem na Universidade, enquanto outros permaneçam fora dela, a tarefa seguinte é elaborar um currículo que veladamente tenda a beneficiar uns e não outros, e isto sem provocar escândalo ou incitar reações sociais. Ora, decretar que quem é pobre ou cursou apenas a escola pública ficará proibido de matricular-se em Medicina, Direito ou Publicidade é medida inquietante, que revoltaria nossas consciências cristianizadas e provocaria agitações nas ruas. Por outro lado, atingir aproximadamente o mesmo efeito obrigando os vestibulandos a responderem dezenas de quesitos em poucas horas, versando sobre todo o conteúdo da Educação Básica, celebrando a memorização em prejuízo do autonomia, a velocidade em prejuízo da clareza e a resposta em prejuízo do entendimento é fórmula muito mais sutil e inteligente, e que não perturba a paz pública. Somente os que puderem custear estudos preparatórios com especialistas – um investimento que, pelo menos em Recife, costuma ultrapassar a cifra dos 10 mil reais anuais, às vezes por dois, três anos seguidos ou mais (SILVA, 2009) – contarão reais chances de aprovação. E, repito, em meio a 5 Apresso-me a esclarecer que esta crítica se destina à estrutura social situada ao redor do Vestibular, e não necessariamente às pessoas que trabalham sob sua influência. Há iniciativas nos cursos prévestibulares que reservam vagas para alunos oriundos de famílias carentes, a baixo ou a nenhum custo, pretendendo oferecer-lhes maiores chances de aprovação. Exemplo que sem dúvida não deixa de ser louvável, e aliás de imenso benefício para as pessoas selecionadas, mas de pouca eficácia na resolução do problema educacional e social em pauta. Kléber Clementino da Silva 6720 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares todo este esforço e concentração, renuncia-se a tudo o mais que a educação é capaz de criar, em nome desta competição e desta legitimação. III Aquilo que redigi mais acima, que os objetivos da educação diferem dos do sistema de tráfego por se constituírem muito mais complexos e atravessados por controvérsias, aplica-se às sucessivas instâncias da escolarização, mas não aos prévestibulares. Os pré-vestibulares não têm dois objetivos: seu propósito é aprovar. Resolve-se neles o antigo conflito acerca do sentido da educação, partilhado por todos os povos que admitiram a Pedagogia como problema da política e do pensamento, pelos gregos, pelos renascentistas e por nós, na Modernidade: silencia imediatamente o embate em torno da humanização, da adaptação social e da aceitação dos valores, da capacitação para o trabalho, da promoção do senso crítico ou da emancipação intelectual; a função da aprendizagem não é nada disso; é aprovar. Ora, de vez que o objetivo da educação é agora aprovar, toda a operação pedagógica reorganiza-se em conformidade com a nova meta, as concepções, as práticas, o currículo e o mais passam a veicular e a enaltecer o que faz passar. As salas de aula dos pré-vestibulares oferecem ótima oportunidade de presenciá-lo. Para tanto, realizei, entre agosto e outubro de 2008, uma pesquisa de campo em três estabelecimentos privados de ensino pré-vestibular, havendo observado aulas e entrevistado sete docentes, além de alunos e coordenadores6. Obtive informações e extraí conclusões esclarecedoras. O substrato educacional com que ali se trabalha aparenta, na superfície, despir-se de todo conteúdo político e afastar-se das querelas sociais, tornando-se neutro e “exclusivamente pedagógico” – como sonhava Melo; em última análise, entretanto, empreende, mediante essa negligência, reiterar os principais elementos do conservadorismo. Dá de ombros às reivindicações do mundo para recolher-se num sistema ideal de aprendizagem-aprovação, em face ao qual a sociedade 6 Como parte da pesquisa de mestrado que desenvolvi no interior do Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Educação da UFPE, sob orientação do professor José Batista Neto. Kléber Clementino da Silva 6721 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares e seus conflitos pouco importam. Na Língua Portuguesa, na Física e nas demais disciplinas vemos o esforço educativo comumente renunciar ao extenuante, lento e duvidoso encargo da formação das pessoas, concentrar-se já não na compreensão, mas na memorização, já não na autonomia do pensamento, mas na reprodução heterônoma de modelos, fórmulas e interpretações sem concretude nem realidade. As obras literárias convertem-se em tópicos com “aspectos importantes”; os saberes biológicos, em extravagantes nomenclaturas que urge reter; a Matemática, a Física e a Química se apartam da perspectiva de um labor humano, histórico, repleto de erros e revezes, para se aproximarem daquilo que Neil Postman (2002, p. 135) apelida de “uma folha com fórmulas de pesos e medidas”. Como se a educação habitasse um país de conto de fadas, cujos elementos existiriam por si sós, em fantástica independência, cabendo aos alunos, uma vez apreendendo-os, acertar os quesitos e passar. Este travo pedagogicamente limitado do Vestibular é reconhecido por alguns dos professores de cursinhos: “o concurso público do Vestibular é muito limitante”, anuncia um deles, de Biologia, “na hora em que eu boto um monte de informações decorebas numa prova, sem dúvida nenhuma a ênfase no ensino vai ser voltada pro decoreba”. Condenam o exame, do qual se dizem meras vítimas. Um, de História, emprega linguagem mais incisiva: A prova de História é uma b... com raríssimas exceções. Eu, de certa forma, tento preparar meus alunos para o Vestibular e como intelectuais; a prova vem meramente técnica, sem a menor preocupação com o aluno e hipervalorizando aspectos da História do Brasil que não têm a menor importância. Entrevista com professor de História de Pré-vestibular E seguiam criticando-lhe o enciclopedismo e a intransigência das bancas de correção, porém, na maioria dos casos, preferindo absolvê-lo como um “mal necessário”. “Não [é justo], de jeito nenhum”, afirmou um professor de Física, “mas infelizmente a gente precisa ter um processo seletivo”. Sua injustiça é secundária diante desta necessidade, que prevalece. Eis uma constatação alicerçal: é necessário, é imperioso assegurar que uns freqüentem a Universidade pública, mediante algum mecanismo seletivo inconteste, para lamentação e malogro dos demais, dos “que não Kléber Clementino da Silva 6722 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares conseguem”. O próprio propósito de educar a juventude se subordina a esta consideração. Não será tão árduo exercício demonstrar por que caminhos isto se dá. Um professor de Biologia presta-nos valioso auxílio, tão logo se propõe a elucidar os fundamentos de sua prática. Perguntava-lhe eu se no dia-a-dia se mantinha familiarizado com as produções da literatura pedagógica, se descobria serventia nelas, e ele respondeu que, quando iniciante, até que se ocupara com leituras, “no começo eu li muita coisa, eu li muito Paulo Freire”. A experiência frustrou-o: “não me ajudava muito”. Aliás, manifestou opinião até mais arrasadora e categórica: “não me ajudava muito no ponto onde eu tô. (...) Numa aula de Anatomia, Paulo Freire não ajuda em nada, eu não consegui encontrar”. A afirmação talvez escandalize alguns freireanos mais suscetíveis; para mim não podia ser mais pertinente. Nada ajudam, serão eternamente inúteis simplesmente porque os livros de Paulo Freire batalham por objetivos educacionais opostos àqueles abrigados nos Pré-vestibulares. A educação a que Freire almeja, eles jamais a poderão querer, porque querê-lo equivalia a negar-se e a eliminar-se. Como a educação que preconiza Freire, todo o seu arcabouço teórico que conhecemos, sua ênfase na humanização da educação, na indissociação entre o aprender e o ensinar, na emancipação e na afetividade poderiam harmonizar-se ao propósito de ensinar para aprovar? Inutilidade perfeitamente compreensível, então, e creio até que bem quista pelos freireanos. Igualmente inúteis, embora não mencionados explicitamente, seriam autores como Libâneo (1994) e Zabala (1999), para os quais a seleção dos conteúdos educativos (que não são unos, mas diversos – factuais, conceituais, atitudinais, adotando a repartição de Zabala) é uma responsabilidade docente, uma atribuição do saber pedagógico. Defendem estes pesquisadores que incumbe ao professorado dispor os elementos de seu ensino, selecionando do estrato da cultura aquilo que convém, o que melhor serve às expectativas estabelecidas para a aprendizagem. No entanto, é claro que tal recomendação se revela excêntrica nos pré-vestibulares, onde os conteúdos curriculares precisam obedecer com exatidão e fidelidade aos editais de ingresso nas Universidades. O que se deve estudar é definido exteriormente, é-se obrigado a aprender, como condição e obstáculo no caminho da aprovação. A dimensão factual do currículo é aqui, por definição, de procedência heterônoma, sonegando assim aos professores seu papel Kléber Clementino da Silva 6723 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares de intelectuais a quem cabe presidir o processo de ensino. Predominam os sentimentos de adequação e obediência, de aceitação, mesmo em face do que se admite injusto e equívoco. E, sendo a seleção exterior e impositiva, tem-se imposto o enciclopedismo, acarretando em que o Ensino Médio regular, de três anos, se torna intervalo insuficiente para a apreensão de tão volumoso conteúdo. Eu observo o menino que vai fazer Vestibular pra Medicina. Ele tem que tirar 8 em tudo – aliás, acima de 8, porque 8 não dá. 8,2. E, entre 8,2 e 8,0, tem 200 meninos. Faz uma diferença enorme ser 8,2. Esse menino é um menino estudioso, ninguém pretende fazer Medicina se não for um menino no mínimo mediano. É um menino estudioso, desses que faz as tarefas, passa por média, disciplinado; não é um menino que gosta de farra, não. Esse menino passa 5 anos pra tirar 8 em tudo. Entrevista com professora de Literatura Luso-brasileira “Passa 5 anos pra tirar 8 em tudo”: três no Ensino Médio e mais três no cursinho pré-vestibular (um dos anos é de concomitância): quantos orçamentos familiares podem suportar esta liberalidade, diante de mensalidades que sem raridade se aproximam dos mil reais? Assim se evidencia como uma simples seleção curricular, debaixo da aparência de isenção e neutralidade, pode em verdade desvendar-se conveniente e interessada. Poderemos ainda nos admirar com a permanência atávica da injustiça e da desigualdade, com o fato de que as mesmas famílias e clãs, desde as origens da nacionalidade, ocuparem os cargos mais elevados da República e da estratificação social? Claro que não. Assim como não admira que Freire, Libâneo, Zabala, e por extensão Neil, Giroux, Rubem Alves, Adorno, Saviani, Meirieu e tantos que pensam a educação entrelaçada à luta pela liberdade e pelo protagonismo histórico soem, aqui, extravagantes, ultrapassados e mesmo inúteis. Mas a seleção não é o único aspecto do currículo, sua interpretação e veiculação merecem também apreciação. A heteronomia da seleção se estende naturalmente ao trato dos conteúdos, sob a urgência da funcionalidade, “do que cai”. O desejo de aprender não se origina em mim, nas solicitações da minha vida ou do meu meio, nem mesmo na primeira instância dos meus interesses, mas naquilo que à distância me prescrevem – a quase integral transposição do conceito de alienação do campo da produção material para o domínio pedagógico, em que o mecanismo social se converte Kléber Clementino da Silva 6724 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares no arbítrio de um alienus, de um Outro sabido ou incógnito (CHAUÍ, 2003). “A maior motivação deles”, diz o professor de Matemática, “é porque cai. (...) Se aquilo não fosse perguntado, ele não estudaria. Infelizmente o Vestibular é muito ‘o que é que cai’, o resultado”. Derivam deste pragmatismo alguns distintivos já bem conhecidos dos cursinhos: didáticas arraigadamente descritivas, esforço mnemônico, cuidado com a velocidade e a precisão. As aulas basicamente informam e descrevem: estruturas anatômicas e mecanismos fisiológicos, normas gramaticais, características literárias, causas e conseqüências históricas, fórmulas físicas, etc. E o informado e o descrito, sempre, participando daquele “saber universal” de Guiomar Namo de Melo, em cuja elaboração não se sabe quem tomou parte, mas que apenas existem e, por algum motivo que não está em discussão, devem ser aprendidos. Daí, também, a atenção não se estender ao entendimento do que se estuda, mas limitar-se à possibilidade de sua manipulação: A tônica não está em ensinar os alunos a pensar matematicamente, mas a solucionar problemas matemáticos. É diferente, bem diferente. Ele [o professor] está o tempo todo ensinando maneiras de resolver questões, mas nunca formas de observar os fenômenos por meio da linguagem matemática. Anotação do Jornal de Campo durante aula de Matemática Presenciei aulas de Matemática e de Física nas quais o “dar a teoria” – enunciar os conceitos e princípios de cada tema – consumia cerca de dez minutos, de um total de três horas de aula, o restante das quais dedicado a “fazer exercícios”, abrangendo com eles todas as modalidades imagináveis de perguntas, de modo a que, no momento da prova, por recordação, o método de responder pudesse ser recuperado rapidamente7. Chegar às respostas com rapidez: eliminar ou reduzir ao mínimo a necessidade de mobilizar diferentes conhecimentos matemáticos, para descobrir qual deles é adequado. Meditar sobre um problema neste universo, investigar uma solução ou, pior ainda, querer criá-la, equivale a jogar fora um tempo precioso; melhor se faz ao “driblar” as 7 Não será ocioso recordar a sutil reflexão de Pozo, Asensio e Carretero (1989), de que a substituição das práticas mnemônicas ipse litteris dos jesuítas, na educação moderna, não implicou o real abandono daquelas concepções antigas, senão que sua conservação sob novas roupagens. Isto permite classificar a resolução exaustiva de questões – e algumas apostilas trazem títulos explícitos como “1000 questões de Física” – como a continuidade direta daqueles preceitos educacionais seculares. Kléber Clementino da Silva 6725 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares questões, lançar-lhes um olhar instantâneo e, de pronto, sem ponderação nem demora, evocar alguma outra semelhante e já solucionada, para o fim de transpor o raciocínio de lá para cá, descobrir a resposta, marcar a, b, c, d ou e – e prosseguir ao quesito seguinte. Esta é a lógica e o desafio matemático do Vestibular – e, em igual medida, da Física, da Biologia, da Língua Portuguesa, segundo suas especificidades. Em Física, toda a enunciação de um conceito como o de densidade costumava caber num laconismo de amplitude idêntica à sua fórmula (D = M/V): “massa sobre volume”, pois as horas restantes mal bastavam para abarcar as centenas de questões imagináveis nas quais se solicitava calcular esta propriedade8. No estudo da Língua Portuguesa, substituía-se a exatidão aritmética pela admissão apenas do que está certo, do que obedece sem desvio ao dispositivo gramatical. O mais era espúrio e inaceitável. E, como dantes, premia-se a capacidade de acertar, não de se compreender o porquê dos normativos, ou a conveniência ou eventual inconveniência de respeitá-los. A língua afigura-se um aparelho ditatorial, a cujo serviço alcança-se o sucesso e a chance de ser médico ou engenheiro. Regras de crase, de colocação pronominal, de regências verbais e nominais se sucedem, cabendo aos alunos identificar quais sentenças as respeitam e quais as violam. O erro não é assumido como fenômeno lingüístico, como alternativa idiomática nascida da efervescência cultural9, mas sim como depravação, como o que é feio e absurdo, e que nunca, em hipótese nenhuma, se deve cometer. [A função do professor de cursinho] é adestrar mesmo. Tem curso que se orgulha de o aluno servir como propaganda: “o aluno aqui fará pelo menos mil questões de Vestibular no ano”. Bom, pode ser muito, mas pode ser mero adestramento. Entrevista com professor de História 8 E sempre assombram os exemplos extremosos dos truques mnemônicos para retenção de informações, como a conhecida “equação do sorvete”, com que os alunos apelidam a fórmula da posição de um corpo em função do tempo e da velocidade, por conta das consoantes que representam as incógnitas (S = S0 + V.T). 9 Tampouco o acerto, aliás, que como o erro quase sempre não passa da opção lingüística que vingou e se tornou modelo, como ensina Marcos Bagno em seu conhecido livro (1999). Kléber Clementino da Silva 6726 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares IV Meditando no sentido do Vestibular, na interferência poderosa que exerce sobre os meandros e reentrâncias da escolarização regular, Rubem Alves mal pode conter sua fúria e seu desapontamento, e, a despeito de sua costumeira delicadeza, assaca pesadas críticas às escolas, aos pais e aos alunos: Os exames Vestibulares são uma das maiores, possivelmente a maior praga que infesta a educação brasileira. (...) Seu efeito maior, entretanto, tem sido o seu poder de moldar e determinar os padrões de educação nas escolas de ensino médio e até mesmo de ensino fundamental. Cúmplices nesse processo são os pais. Ansiosos por ver seus filhos nas universidades, por imaginarem que um diploma vai lhes garantir a segurança econômica, exercem pressões sobre as escolas no sentido de que elas se transformem em instituições dedicadas a “preparar para os Vestibulares”. Boa escola é aquela que segue os modelos dos cursinhos. Aquelas que não se ajustam estão condenadas à marginalização: instituições inúteis, não preparam para os Vestibulares (ALVES, 2000, pp. 9-16). Não se toleram discordantes nem refratários, o Vestibular – e, mais do que ele mesmo, a concepção educacional em que se funda – captura a todos com seus tentáculos, de maneira que, ou o aceitamos, ou terminamos retirados das disputas sociais. Este transbordamento, esta subversão de uma prova que se converte em objetivo último, para onde se dirige o trabalho pedagógico de parte significativa das escolas, vem a demonstrar-nos que perigos ameaçam a educação, quando descuidamos dela e de seus propósitos. Observar, como nos estudos pré-vestibulares, o currículo eliminar-se em autonomia e relevância, o ensino se transformar em preocupação mnemônica, em obediência cega e inamovível a normativos, numa erudição que permanecem na superfície do pensamento, é excelente oportunidade para compreender o quanto o trabalho pela humanização é incessante, e o quanto é frágil. A subordinação da educação aos desígnios do Vestibular empobrece seus fundamentos, empobrece seus currículos, empobrece suas práticas e abastarda suas conseqüências, mas, mesmo em face de tão ululante degradação, conseguiu ainda assim converter-se na orientação predominante no Ensino Médio, naquilo a que aspiram os pais e reivindicam os estudantes. Kléber Clementino da Silva 6727 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares Isto nos atira na cara uma interrogação grave e fatal: o que as pessoas esperam da Escola? Acaso esperam o mesmo do que preconiza a literatura pedagógica como ideal? Carla Patrícia Lins (2000), pesquisando em Recife, fez-se este questionamento e concluiu que, entre as classes populares, estuda-se não pelo que defendem Giroux, Freire ou Saviani, mas pelo anseio de ascensão social, “porque acreditam que, escolarizados, eles serão bem sucedidos, pois a escola é quem dá condições necessárias para que possam progredir socialmente” (p. 13); busca-se o estudo com o objetivo precípuo de capacitar-se nas aptidões convenientes ao mercado de trabalho – sejam elas quais forem. Maria Alice Nogueira (2004), investigando jovens membros da elite mineira, reconheceu ali os mesmos desejos, a mesma subordinação do conhecimento à contabilidade econômica – no caso, já não pelo projeto de ascender, mas de conservar as posições que ocupam com seus pais. Será este, então, o mundo melhor e a vida melhor que todos procuramos construir com a colaboração da Escola? Explica-se assim a enorme legitimidade do Vestibular, que mesmo agora, quando em vias de desaparecer, deixa por legado a convicção de que “é necessário selecionar”, pois não há vagas para todos? E como as haveria, se o último objetivo não é a aprovação, não é o diploma, e sim o prestígio social e a ascensão econômica, obrigatoriamente restritos numa sociedade repartida em classes? Não haverá vagas nem Universidades que bastem, enquanto se entender a Escola, e por extensão o conhecimento, como credenciais (COLLINS, 1989), mero aparato de conservação e legitimação da desigualdade. Até lá, leitor, sem embargo das transformações arriscadas pelos governos, o currículo desta etapa da escolarização continuará a reunir noções pouco filiadas à realização das potencialidades humanas, pouco propensas a extrair o que há de melhor e mais nobre em nós, em troca de finalidades na aparência maravilhosas, mas que em verdade nos conservam na impotência e na imobilidade. Kléber Clementino da Silva 6728 Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares Referências bibliográficas ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar: o fim dos vestibulares. Campinas: Papirus, 2000. APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982. BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999. BRENDA, Julien. A traição dos intelectuais. São Paulo: Peixoto Neto, 2007. BRZEZINSKI, Iria (org.). LDB interpretada: diversos olhares se entrecruzam. São Paulo: Cortez, 2000. CARR, Edward Hallet. O que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. CASTRO, Cláudio de Moura. Sua excelência, o Vestibular. Brasília: Revista “Em Aberto”, ano 1, nº. 3, fev. 1982. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 2003. COLLINS, Randal. La sociedad credencialista. Trad. esp. Madri: Ediciones Akal, 1989. CUNHA, Luiz Antônio. 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Kléber Clementino da Silva 6730 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” CURRÍCULO, CULTURA ESCOLAR E DISCIPLINAMENTO Laura Cristina Vieira Pizzi JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento CURRÍCULO, CULTURA ESCOLAR E DISCIPLINAMENTO Laura Cristina Vieira Pizzi RESUMO: Este texto aborda os debates sobre as estratégias de disciplinamento dos indivíduos na escola, e como essa instituição se constituiu na conjuntura social moderna, num instrumento modelador de comportamentos, idéias e valores. Seu objetivo é evidenciar como o processo de condicionamento e legitimação de padrões sociais tem sido fator relevante na construção da cultura escolar. Idéias acerca das estratégias de controle construídas pela escola serão trazidas para a discussão sobre o tema em questão. O texto será organizado em dois momentos: primeiro um delineamento da construção da escola moderna como instrumento disciplinador socialmente utilizado para direcionar o imaginário social e cultural de grupos inteiros. Segundo, uma exposição dos pontos estratégicos utilizados pela escola e algumas das táticas utilizadas nela para disciplinar as práticas, os discursos e os sujeitos, fazendo de sua cultura interna um lugar no qual se produz linguagens, símbolos e comportamentos sociais próprios do ambiente escolar na atualidade, mas que se estendem e se vinculam às formas sociais que estão além dos muros dessa instituição. PALAVRAS-CHAVE: currículo, cultura escolar, poder disciplinar. Cultura e Cultura escolar Cultura é um conceito demasiadamente amplo e de difícil definição. Segundo Williams (1992), seu significado pode envolver desde modos de vida, estados de espírito até o entendimento do que seja uma obra de arte. Para evitar tamanha dispersão, o autor propõe o conceito de cultura como um sistema de significações realizado (p. 206). Um sistema de significações pode ser intercambiável, compartilhado e praticado. Esses significados estão presentes em particular em instituições culturais, que organizam, direta ou indiretamente, a cultura. Entendemos que a isntituição escolar é uma destas instituições que fazem parte desse sistema social cultural. Laura Cristina Vieira Pizzi 6734 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento A educação escolar, particularmente, tem sido foco de estudo com especial atenção para a sua função social e cultural. Na perspectiva dos Estudos Culturais, a escola tem sido apontada como local de conflito entre culturas, como um ambiente plural, ambíguo, que dá conta de comportar e ao mesmo tempo rechaçar a diversidade humana. Tem legitimidade social para ser a instituição responsável, formalmente, pela formação dos indivíduos, ao mesmo tempo em que vem consolidando, apesar de ser interpenetrada pela variedade de interpretações de mundo, a sua própria cultura. Nesse sentido, a instituição escolar vem constituindo, com o passar dos séculos, suas próprias formas e normas de funcionamento, sua linguagem, gestos, hierarquia de poder, entre sujeitos e conhecimentos, estratégias de uso dos poderes individualizados e coletivos. É um espaço micro de reflexo da cultura, porém com seus atores fixos e espaços similares. Por isso, pode-se afirmar que a escola, mesmo sem a intenção de generalizá-la nem especifica-la totalmente, é um local que não apenas participa da formação cultural da sociedade como um todo, mas que ela própria possui uma cultura especifica. Pérez-Gómez, num esforço por interpretar esse ambiente conflituoso e múltiplo que é a escola, conceitua as várias culturas que considera constituir a cultura escolar. CULTURA CRÍTICA – alta cultura ou cultura intelectual, o conjunto de significados e produções que, nos diferentes âmbitos do saber e do fazer, os grupos humanos foram acumulando ao longo da história; CULTURA SOCIAL – conjunto de significados e comportamentos hegemônicos no contexto social, composto por valores, normas, idéias, instituições e comportamentos que dominam os intercâmbios humanos em sociedades formalmente democráticas, regidas pelas leis do livre mercado e percorridas e estruturadas pela onipresença dos poderosos meios de comunicação de massa; CULTURA INSTITUCIONAL: as tradições, os costumes, as rotinas, os rituais e as inércias que a escola estimula e se esforça em conservar e reproduzir condicionam claramente o tipo de vida que nela se desenvolve e reforçam vigência de valores; CULTURA EXPERIENCIAL: configuração de significados e comportamentos que os alunos e alunas elaboram de forma particular, induzido por seu contexto, em sua vida prévia e paralela à escola, mediante os intercâmbios “espontâneos” com os meios familiar e social que rodeiam a sua existência; Laura Cristina Vieira Pizzi 6735 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento CULTURA ACADÊMICA: desde o currículo como transmissão de conteúdos disciplinares selecionados externamente à escola, desgarrados das disciplinas científicas e culturais, organizados em pacotes didáticos e oferecidos explicitamente de maneira prioritária e quase exclusiva pelos livros-didáticos, ao currículo como construção ad hoc e elaboração compartilhada no trabalho escolar por docentes e estudantes. (PÉREZ GOMÉZ apud SILVA, 2006, p.213). Para o autor, essas culturas se entrecruzam no bojo das práticas cotidianas da escola. Nessa perspectiva, entendemos que muitas dessas dimensões culturais da escola tendem a se confundir e a se realizarem através do próprio currículo, entendido como artefato, como conhecimentos e como relações sociais escolares que dão vida e formam identidades dos sujeitos. Todas essas dimensões apontadas se mesclam com o poder disciplinar da escola. Escola, currículo e disciplina. Historicamente a escola vem sendo uma instituição utilizada para influenciar os comportamentos sociais das classes, dos gêneros, das faixas-etárias e dos grupos étnicos de acordo com as necessidades sociais de cada contexto. O processo de escolarização vem contribuindo para naturalizar determinadas identidades forjadas no corpo social, que fazem parte de um espaço simbólico nos indivíduos e levam à imposição de determinados padrões de valores, comportamento, de beleza e formas de lidar com as sexualidades consideradas padrões nas sociedades. Varela e Alvarez-Uria (1992) apontam o século XVI como um marco importante na constituição do modelo moderno de escola. Nesse período se reuniram uma série de dispositivos que permitiram instrumentalizar o modelo educacional escolar. Para os autores, os dispositivos mais significativos foram: a definição de um estatuto de infância; a emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças; o aparecimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias específicas; a destruição de outros modos de educação e a institucionalização propriamente dita da escola (p. 69). Parte-se do processo de transformação cultural e social que tomou a Europa no século XVI, que viu “a realização de um espaço escolar a parte, com um edifício, um Laura Cristina Vieira Pizzi 6736 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento mobiliário e um material específicos” (JULIA, 2001, p.13), com novas características e funções nessa instituição. Demandando novas formas de ensinar, classificar e organizar o tempo e os espaços. A organização do ensino e do currículo modernos já não mais aconteceria de forma espontânea e aberta, como um conglomerado aleatório de crianças e jovens, tal qual na idade média, em uma classe – que podia ser toda a escola (HAMILTON, 1992a) – com alunos em níveis de aprendizagem diferenciados e diversificada faixa-etária convivendo sob a supervisão de um ou dois professores. Os séculos XVII e XVIII chegaram trazendo alterações nas formas de organizar o conhecimento a ser estudado, com os manuais de ensino; na seleção do professorado, com os concursos; e na própria estrutura física da escola e hierarquização dos membros desta instituição. No século XIX o vínculo das instituições educativas com o mundo fabril começa a estreitar-se significativamente, especialmente sob a ótica da gestão de seus recursos técnicos, humanos e materiais. Como afirma Hamilton (1992), A característica central tanto da escola quanto das fábricas é que elas dizem respeito tanto ao gerenciamento de pessoas quanto à concepção de uma ‘maquinaria’ técnica. Portanto, as filosofias sociais que inspiram suas práticas gerenciais respectivas são tão importantes quanto os desenvolvimentos tecnológicos que governam sua escolha de recursos materiais.” (Hamilton, 1992, 07) A graduação da escola e de seus currículos em níveis, tempos e espaços, fundamentaram-se em questões pedagógicas para facilitar a homogeneização do processo de escolarização, pretendendo um ensino simultâneo. Basearam-se, também, em uma nova forma de supervisão dos indivíduos, onde os alunos são observados pelo professor que está sob o olhar do diretor geral. Participou de um ajustamento histórico a uma nova mecânica do poder (FOUCAULT, 2008), que insidiosamente se colocava em várias instituições sociais visando a maior produtividade dos corpos. O surgimento das classes, mostrada ainda por Hamilton (1992) é um exemplo interessante desse período de reorganização e modernização das escolas, uma vez que permitiu sua sub-divisão interna, permitindo o reagrupamento dos alunos e um ensino cada vez mais individualizado, sequenciado e ordenado. Essa ordem e sequencia se tornariam sinônimo também de currículo, que rapidamente passou a ser associado ao termo disciplina, por influência calvinista (p. 10). Essa associação sobrevive até os dias Laura Cristina Vieira Pizzi 6737 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento de hoje. Todas mudanças efetuadas no sentido de transformar as escolas em instituições modernas, se mostraram como técnicas de controle social bastante efetivas, com o objetivo de ajustá-las à nova ordem do capitalismo indsutrial nascente, tanto para formar novos trabalhadores, quanto para formar os novos gerentes do sistema. A ampliação da escolarização no século XIX como direito, a criação de sistemas educacionais e a intensificação dos estudos sobre educação escolar, ramificaram e desdobraram a produção desse poder disciplinar, que é um poder capilar, constitui e materializa-se nos discursos, rituais e práticas, crenças e regras que produzem a cultura da escola, sendo também produzido por esse habitus escolar. (FOUCAULT, 1986). Foucault (2008) evidencia ainda como os diversos mecanismos utilizados nas escolas (avaliação, disposição dos indivíduos no espaço físico da escola e da sala de aula, as regras de comportamento que se deve ter nesse espaço etc.) levam ao disciplinamento das mentes e dos corpos dos sujeitos sociais. A escola, de acordo com Foucault (1986), disciplina a utilização do tempo e o conhecimento que a penetra, utilizando o exame como forma de punição e garantia de que o processo de disciplinamento dará o resultado esperado. Através desses três eixos (tempo, conhecimento e exame), colocados como pontos estratégicos na estruturação tática de normalização do indivíduo, a escola engendra os espaços de disciplinamento dos valores, criação e utilização de símbolos, e condicionamento do conhecimento escolar, com a vigilância, a distribuição dos espaços, a classificação das punições e finalmente a internalização das regras. Com a utilização do tempo a escola legitima formas de marcar quanto tempo se tem para aprender determinado conceito ou “assunto”, ou desenvolver certa habilidade ou competência. Não conseguindo o/a estudante adaptar-se ao tempo da escola torna-se “atrasado” ou a/o professora/o incompetente. A sistematização do tempo relaciona-se com a classificação do conhecimento escolar, uma vez que o torna seriado, graduado, selecionado, ou seja, sujeito ao tempo escolar. Dentro do tempo da escola o que se aprende? Essa questão nos incita a analisar o por que do aumento do número de disciplinas escolares e como a escola tem sido responsável por lidar com a formação do aluno desde a linguagem escrita, à sexualidade e religiosidade. Esse fato além de intensificar o trabalho do/a professor/a, também Laura Cristina Vieira Pizzi 6738 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento amplia os campos de atuação na vida do educando, sendo possível escolarizar cada vez mais o conhecimento. Entretanto o ciclo panóptico1 da escola não se completa sem a resposta para a questão: como medir e classificar esse disciplinamento? Chega-se, finalmente, ao campo dos exames: provas, trabalhos, relatórios, livros de ocorrência, etc. (RATTO, 2004). Com a difusão do discurso impregnado nos documentos oficiais para a educação, a proposta de avaliação contínua e diagnóstica, que produz um saber individualizante sobre o aluno, a escola classifica e enquadra os indivíduos – estudantes, professores, gestores e pais de alunos. Segundo Deacon e Parker (1994), “o exame, sustentado pela observação hierárquica e pelo julgamento normalizador, sujeita aqueles que são percebidos como objetos e objetifica aqueles que são sujeitados” (p.104). A escola é, também, espaço de normalização e homogeneização do comportamento dos sujeitos no campo social, pois é lugar onde a coordenação e hierarquização de movimento treina o corpo produtivo para não perder tempo, com atividades que não gerem lucro. Onde a vigilância da realização das atividades está constantemente presente, utilizando o conceito de disciplina dos corpos e das mentes, espalhadas nesse espaço. A disciplina encontra-se inclusive nas minúcias do corpo (escrita, maneira de andar, de sentar-se, etc.) que atravessam os sujeitos. Entendendo o conceito de cultura nos parâmetros simbólicos, guiarão as análises realizadas neste trabalho, a concepção de autores pós modernos, pós-colonialistas além da contribuição de trabalhos baseados nos Estudos Culturais, uma vez que ampliam as possibilidades teóricas e valorizam os aspectos subjetivos das relações sociais, tornando a análise das práticas escolares, curriculares e culturais, mais complexa e completa. Currículo, disciplinamento e cultura escolar hoje. Se é fato mais ou menos consensual que a escola moderna teve historicamente um papel disciplinador e normalizador na sociedade industrial moderna, como ficaria 1 Para Foucault, o sistema panóptico social constitui-se numa estrutura arquitetônica ou social na qual o indivíduo se encontra vigiado constantemente, a ponto de internalizar o comportamento desejado pelo ambiente vigiado, passando ele mesmo a disciplinar-se e auto controlar-se, através da vigilância normalizadora. Laura Cristina Vieira Pizzi 6739 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento essa função hoje, considerando o estágio atual do capitalismo pós-industrial, num mundo em que as fronteiras nacionais, regionais e culturais estão cada vez mais tensionadas? Segundo Gore (1998), suas pesquisas têm mostrado que a instituição escolar continua produzindo seus próprios regimes de pedagogia, que seriam formados por um conjunto de relações de saber e poder, discursos e práticas, que limitam a implementação de propostas pedagógicas mais radicais. Nesse sentido, a autora aponta algumas técnicas de poder e disciplinamento que ainda podem ser observadas até hoje nas escolas. Por sua relevância, vamos apresentar todas elencadas pela autora. a) Vigilância: a vigilância é necessária para aprimorar a eficiência das tecnologias de poder e tornar a pedagogia mais produtiva. Nas escolas, professores monitoram os alunos e os alunos monitoram-se mutuamente praticamente o tempo todo em todas atividades pedagógicas propostas, inclusive nos momentos de intervalo; b) Normalização: é outra técnica presente nas escolas. Para a autora, a normazlização aparece em todas as justificativas que os professores apresentam ao escolherem determinadas atividades didáticas ou teorias pedagógicas para serem desenvolvidas com seus alunos. Essas justificativas têm a intenção de mostrar as melhores alternativas de aprendizagem e de bem-estar voltadas para os alunos. A normalização quase sempre acontece por comparações e diferenciações que estabelecem um padrão do que seja normal dentro da instituição. Geralmente estão carregadas de juízo de valor, sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim; c) Exclusão: para Gore (1998), a exclusão representa o lado negativo da normalização, uma vez que é definido como uma patologia. Nesse sentido, a exclusão define claramente as fronteiras da normalidade e anormalidade dos valores e comportamentos dentro do ambiente escolar; d) Classificação: classificar é uma das mais tradicionais técnicas de controle e significa diferenciar grupos e indivíduos uns dos outros. Cada diferenciação busca demarcar o desempenho, particularmente o cognitivo, mas não apenas este, e fixar determinados papéis sociais dentro da instituição. Para a autora, Laura Cristina Vieira Pizzi 6740 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento examinar mais de perto as práticas de classificação escolares pode auxiliar a intervir nas práticas reprodutoras da escola; e) Distribuição: a distribuição dos corpos no espaço escolar tem a função de separar, isolar, reagrupar com a intenção de promover uma diferenciação entre os melhores e os piores desempenhos, prevenir a distração e a indisciplina. f) Individualização: muitas das atividades pedagógicas e rotinas desenvolvidas nas escolas buscam dar um caráter individualizado de si mesmo ou de outros; g) Totalização: a totalização é uma prática tão comum quanto a individualização. Esta técnica aparece em estruturas lingüísticas através da palavra nós. Professores e alunos se totalizam ao se incluirem em várias coletividades genéricas; h) Regulação: a autora define a regulação como o controle exercido através de regras, sujeitas a restrições que incluem sanções, prêmios e punições (p. 234). Enquanto as demais técnicas têm efeitos mais reguladores, esta se increve especificamente através da quebra ou cumprimento exemplar de regras e códigos escolares, exigindo medidas de premiação ou castigo. Apesar de a listagem ser minunciosa e extensa, a autora admite que nem todas essas técnicas se aplicam ou estão simultaneamente na variedade de instituições escolares existentes, assim como podem se apresentar com diferentes características. Destaca, no entanto, que as mais frequentes têm sido a individualização e a totalização. No nosso ponto de vista, há ainda uma tecnologia de poder que ficou fora da listagem, mas mereceria um destaque pela sua importância. Estamos nos referindo à hierarquia. Entendemos que um dos efeitos principais das técnicas de poder disciplinar é o de estabelecer hierarquias entre os indivíos dentro da escola. A hierarquia tem o poder de provocar desigualdades e rivalidades, em geral de forma negativa dentro da escola. Associada à exclusão, pode se tornar uma técnica bastante perversa nas práticas educativas disciplinadoras. São diversas as estratégias que vêm sendo utilizadas pela escola para disciplinar os alunos, o tempo, os professores e a comunidade, para conservar determinados Laura Cristina Vieira Pizzi 6741 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento comportamentos sociais que favoreçam a legitimação de hegemonia cultural de alguns grupos sociais. Estas estratégias muitas vezes estão carregadas de intenções estritamente pedagógicas, mas nem sempre. Um dos aspectos mais explorado desse disciplinamento, nos estudos sobre o tema, tem sido a utilização das formas de seleção, organização e métodos de ensino do conhecimento escolar, ou seja, o currículo. Para tanto, a escola se estrutura para formar cidadãos sabedores de seus direitos e cumpridores de seus deveres. Educação para a cidadania, a moral, a disciplina e para o trabalho. Nosso sistema educacional tem se utilizado de diversas estratégias de controle, como a avaliação sobre os livros didáticos – principal material para estudo e sempre de acordo com os PCN e com as DCN (1998) – a formação continuada de professores, financiada pelo governo, como parte da carga horária desse profissional; a inculcação de uma imagem social na qual é preciso ser dócil e aplicado para se destacar profissionalmente, em geral tende a ser introduzido sistematicamente na escola. É importante deixar em evidência que essa forma histórica de organização da escola moderna, fortemente disciplinadora e normalizadora, acaba constituindo também uma cultura docente predominantemente disciplinadora e normalizadora. Essa cultura docente tem um eixo comum que sempre se move no sentido de formar um ambiente pedagógico eficiente na escola. Segundo Farias (2003) a cultura docente forma um campo simbólico coletivo e compartilhado que expressa “um conjunto de crenças e princípios éticos norteadores da ação pedagógica do professor, exercendo forte influência na maneira como as interações comunicativas e realcionais são construídas na sala de aula, na escola” (p. 6). A cultura docente está intrínsecamente associada à organização e aos propósitos escolares da modernidade, que ainda resistem em suas mais diversas variações até hoje. Nesse sentido, o/a docente não age de forma neutra. Atua dentro de um contexto com o qual deve lidar, questionar, aderir, se inserir, rejeitar, negociar, mas que, para o bem ou para o mal, possui poder significativo para colocar em ação o currículo escolar e seus princípios e intenções sociais. O/A docente é, portanto, um agente estratégico nesse papel disciplinador e normalizador da escola, tanto no sentido da sua reprodução quanto no de reistência a esse poder. Laura Cristina Vieira Pizzi 6742 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento Considerações Finais Através da perspectiva e demonstração do papel que a escola tem desempenhado é que se pode compreender que sua função maior tem sido disciplinadora: para o trabalho, para a moral, para o comportamento social de maneira quase que integral e totalitária. Tem sido a forma dominante de funcionamento da escola e que marca a cultura escolar, que se organiza no conjunto que envolve controle e resistência, e é resultado do entrelaçamento de muitos outros campos sociais além do escolar, constituindo nos indivíduos os “jogos de identidade”. (HALL, 2006). Captar esses campos de entrelaçamento e suas possíveis influências no que vem a se constituir a cultura escolar exige uma visão mais próxima das atividades do cotidiano da escola. A educação escolar tem atingido tantas áreas na formação dos indivíduos quantas possam compreender a vida social de alguém. Tem buscado se ajustar às formas sociais, por meio dos métodos de ensino, de maneira que quase todos os aspectos da sociabilidade do sujeito, possam tornar-se também conhecimento escolar: religião, comunicação, sexualidade, comportamento social, a arte etc. Diante disso, a escola, e os professores em particular, poderiam atuar de maneira que se padronizem menos os conhecimentos e as relções sociais escolares, que se respeite o que se produz no processo de aprendizagem e o que o aluno traz de suas outras instâncias de convivência, para que se liberte o ambiente escolar de um conhecimento e de normas ditadas, para o qual o professor leva o aluno ano após ano, legitimando sempre as mesmas verdades, que não mobilizam para a abertura da estrutura escolar às questões atuais, nem às necessidades dos indivíduos contemporâneos. As alternativas de sobrevivência e bem estar em nossa sociedade, longe da educação escolar, são bastante escassas para muitos de nossos/as alunos/as. Podemos então catalisar formas menos cruéis e padronizadas de educação escolar, levando em consideração a diversidade humana, não dentro dos discursos humanista disseminados pelos documentos institucionais, forçosamente, dentro das escolas, mas através de um discurso que dê mais voz, de fato, às necessidades de uma maioria discriminada, por Laura Cristina Vieira Pizzi 6743 Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento não se encaixar nos padrões legitimados por essa instituição, que prima por padronizar identidades. Além disso, acostuma-se tanto a partir do mesmo ponto-problema, para fazer o mesmo caminho, até a mesma solução, que muitas vezes encara-se a igualdade de oportunidades como se fosse dar a todos os mesmos conteúdos, os mesmos espaços, iguais formas de estudo e ensino e as mesmas saídas. Não se compreende que a igualdade pode estar no fato de cada indivíduo ter condição de fazer suas escolhas sem a limitação do padrão imposto socialmente. São modelos do que é preciso consumir, fazer, estudar, e ser para alcançar a felicidade (DE CERTEAU, 1995). Padrões que a escola alimenta através de suas formas de disciplinamento da identidade dos sujeitos. Sujeitos que de tão condicionados, exigem da instituição e de si mesmos esse mesmo condicionamento, como se fosse a única forma de enfrentar o fracasso escolar. É importante, como fechamento provisório dessa discussão, lembrar que para Foucault o poder não é algo negativo, é antes produtivo. Por mais democráticas que possam ser as práticas pedagógicas da instituição escolar, dificilmente será possível escapar das técnicas e dos jogos de poder. Fundamental é perceber que sujeitos ele produz, quem são os seus agentes e se tal poder produz subjetividades e saberes para o bem dos que mais necessitam da escola, a pública em particular. Referências BRASIL, Conselho Nacional de Educação, Câmara da Educação Básica. Resolução CNE/CEB n°2 de 7 de abril de1998. 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Laura Cristina Vieira Pizzi 6745 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” O LUGAR DO ENSINO DE PORTUGUÊS NA CULTURA DA ESCOLA BEIRA-RIO: ENTRE A GRAMÁTICA NORMATIVA E O LETRAMENTO Marlene Carvalho Mariana de Paula Leite JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento O LUGAR DO ENSINO DE PORTUGUÊS NA CULTURA DA ESCOLA BEIRA-RIO:ENTRE A GRAMÁTICA NORMATIVA E O LETRAMENTO Marlene Carvalho Mariana de Paula Leite RESUMO: Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo geral é compreender como questões de identidade e diferença são tratadas no currículo de uma escola de ensino fundamental, cujo alunado é formado por crianças e jovens pobres, negros ou pardos, moradores em áreas favelizadas. Neste artigo, enfoca-se especialmente o lugar que ocupa o ensino da língua materna na cultura escolar e discute-se a centralidade da linguagem na formação da identidade. Concluiu-se que a direção e o corpo docente priorizam a inculcação de normas, valores e atitudes, deixando em segundo plano a aprendizagem dos conteúdos curriculares indispensáveis para o prosseguimento dos estudos, ou para o ingresso no mercado de trabalho, o que representa o risco de mais uma forma de exclusão. Assim, constata-se que os objetivos educacionais declarados pelos professores - incutir nas crianças valores e condutas próprios para melhorar sua condição social, prepará-las para ocuparem um lugar no mercado de trabalho, e aumentar sua auto-estima – não estão sendo alcançados; ao contrário, estão sendo contrariados por práticas pedagógicas que terminam por diferenciar, “confinar” e desqualificar os alunos para a participação na sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Cultura escolar. Formação de identidade. Ensino de português. Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo geral é compreender como questões de identidade e diferença são tratadas nas normas, nas práticas e nos saberes ensinados em uma escola de ensino fundamental. Procura-se também verificar se os objetivos pedagógicos declarados pelos professores incutir nas crianças valores e condutas próprios para melhorar sua condição social, prepará-las para alcançarem um lugar no mercado de trabalho, e aumentar sua autoestima - estão sendo alcançados ou, ao contrário, estão sendo contrariados por práticas pedagógicas que podem diferenciar, “confinar” ou desqualificar os alunos para a participação na sociedade. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6749 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Divergindo da posição essencialista segundo a qual as identidades são algo permanente e inerente aos indivíduos, Moreira e Cunha( 2006, p.6 )afirmam que é por meio das interações com o outro que elas são construídas. A escola tem papel importante nesse processo de formação identitária, na medida em que ali as crianças são avaliadas, modeladas, comparadas entre si, classificadas em “bons” e “maus” alunos, “normais” ou “especiais”, “carentes” ou não. Segundo Thomas Popkewitz (citado por Moreira e Cunha, ibid) certas escolas destinadas a estudantes de grupos minoritários, que se pretendem transformadoras, podem paradoxalmente favorecer a criação de um espaço discursivo em que a criança negra e pobre jamais consegue ser uma criança “padrão”, “normal”, “média”. Moreira e Cunha( ibid, p.6) argumentam que: (...).certas práticas, supostamente libertadoras, não têm efeitos garantidos, podendo criar espaços de confinamento1 em que alunos de grupos sociais oprimidos acabem por ter suas posições marginais na sociedade confirmadas e preservadas. . Questões de currículo, identidade e diferença estão sendo estudadas numa escola, situada em Petrópolis, RJ, com cerca de 480 alunos, distribuídos da creche ao nono ano do ensino fundamental. Conveniada com a Prefeitura, a escola recebe desta os professores e a merenda, enquanto uma organização assistencial, que se propõe a educar meninos e meninas pobres para o mundo do trabalho, assume outras despesas, principalmente as relativas à manutenção da creche em tempo integral. Muitas alunos da escola Beira-Rio não moram nas redondezas, vêm de bairros distantes, principalmente devido ao interesse das mães trabalhadoras pela escola de tempo integral, para crianças de seis meses aos seis anos. Algumas dessas crianças saem da escola ao terminarem a educação infantil, mas outras ali permanecem até o fim do ensino fundamental. Os alunos são, na maioria, negros ou pardos, pertencentes a famílias de trabalhadores não-qualificados, moradores de bairros favelizados. Pelo fato de muitos alunos estudarem nessa escola desde a primeira infância até aos 14 anos, ou mais, a instituição oferece um espaço propício para a realização de pesquisas sobre formação identitária e efeitos da escolarização sobre crianças de famílias de baixa renda. Limpa e organizada, a escola conta conta com um corpo docente estável. O clima escolar é tranquilo, liderado pela diretora que ali trabalha há 25 anos. Professores, 1 Grifo nosso. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6750 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento funcionários e alunos respeitam a diretora e quando ocorre algum problema de indisciplina, os professores ameaçam chamá-la; em geral isso é o bastante para que os alunos se aquietem. Misto de escola pública e instituição de assistência social, a escola prima pela inculcação de normas, valores, hábitos e comportamentos que possivelmente desempenham importante papel para definir as identidades dos jovens. O conjunto de regras, imposto por direção, funcionários e professores, parece ser bem assimilado pelas crianças, que geralmente seguem à risca os “mandamentos”. A organização e o silêncio predominam na escola, no recreio, nas filas para entrada e saída das salas de aulas. Os alunos cumprimentam os inspetores e demais funcionários e tratam-nos respeitosamente. Aquele que infringe as normas é levado à sala da orientadora, que conversa com o aluno e assume o papel de mediadora de conflitos. Na cultura escolar, são valorizados o respeito aos mais velhos, as boas maneiras, a disciplina, a ordem e a obediência, considerados importantes para o futuro dos jovens que precisarão disputar empregos, provavelmente modestos, no mercado de trabalho local. Quanto à educação religiosa, mesmo não sendo mencionada diretamente, aparece como referência moral ou guia de conduta, por meio de frases nos cartazes dos corredores, e em músicas de padres cantores católicos, ouvidas na escola. Reuniões de pais para cada turma, das quais os alunos também participam, são realizadas no auditório da escola, no início dos bimestres. A presença dos pais e responsáveis é expressiva, criando-se, assim, uma possibilidade de interação e diálogo entre a escola e a família. Neste artigo, enfoca-se especialmente o lugar que ocupa o ensino da língua materna na cultura escolar e discute-se a centralidade da linguagem na formação da identidade. Como acontece na maior parte das escolas públicas, as diferenças, sempre apontadas pelos professores, entre a norma culta do português as variações dialetais próprias das camadas de baixa renda, usadas pelos alunos, criam tensões e conflitos, dos quais resulta que os aluno se percebem como falantes inadequados da própria língua. Conforme Moreira e Cunha (2006, p.3) escreveram: Dependendo, assim, do ensino que se desenvolve na sala de aula, ela [a sala de aula] pode corresponder a um espaço mais ou menos transformador de sentidos e de sujeitos, um espaço em que certas identidades se formam nas interações com os outros, um espaço em que professores e alunos se constituem de Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6751 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento determinados modos pela linguagem. Entre os espaços constitucionais em que atuamos, a escola tem sido concebida como um dos mais importantes na construção de quem somos. É na escola, em geral, que a criança se expõe, pela primeira vez, às diferenças que nos formam e que representam as primeiras ameaças ao mundo familiar. Assim, considerando a origem social dos alunos e a importância do domínio da escrita e da leitura na constituição dos sujeitos e na produção do seu lugar social, pergunta-se: de que maneira a escola lida com a fala dos alunos, usuários de variantes do português que não correspondem à norma culta? O ensino de português permite aos alunos se familiarizarem com os usos sociais da leitura e da escrita? Que conteúdos são considerados importantes pelos professores? Que oportunidades de acesso à leitura são oferecidas? De que maneira os alunos trabalham a leitura e a produção de textos? Os professores estão prontos para lidar com a variação linguística de seus alunos? Os professores ensinam a utilizar as normas da língua culta na escrita, e em situações de comunicação oral em que isso seja necessário, ou desejável? Na primeira parte deste trabalho, são apresentados pontos de vista de linguistas sobre o ensino de português. Discute-se como e o que deveria ser ensinado para crianças e jovens das classes populares, que precisam fortalecer a própria identidade, ao mesmo tempo que devem superar sua condição de exclusão, prosseguir os estudos e disputar empregos no mercado de trabalho. Na segunda, são analisadas situações observadas no uso da língua oral pelos alunos, e no ensino sistemático de português em turmas do sexto e sétimo anos da escola Beira-Rio. São descritas práticas de ensino de gramática, de leitura e produção de texto que não parecem contribuir para que os alunos ampliem seus recursos de expressão oral e escrita. A conclusão destaca o empenho socializador da direção e do corpo docente, que se manifesta por meio da inculcação de normas de conduta, valores e conhecimentos que se destinam a elevar a auto-estima dos alunos e a prepará-los para a vida profissional. No entanto, o próprio fato de pertencerem a uma escola cujo alunado é majoritariamente formado por crianças e jovens negros e pobres, constitui, do ponto de vista social, uma desvantagem, que em nada contribui para a melhoria da auto-estima e dos níveis de aspiração. Outra importante desvantagem é que o tempo e o esforço empenhados na socialização deixam em segundo plano a formação acadêmica, isto é, a Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6752 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento escola não busca (ou pelo menos não alcança) a melhoria dos padrões de desempenho escolar nas áreas básicas de português, matemática e estudos sociais. Quanto ao o lugar ocupado pelo ensino de português na cultura da Escola Beira-Rio, constatou-se que a escola não proporciona condições para os alunos ampliarem suas habilidades de escrita e leitura, de grande importância na sociedade grafocêntrica. Professores de português: entre a gramática normativa e o letramento Acreditamos que a escola Beira-Rio vive um momento de transição no ensino de português. Por um lado, há uma forte tradição de ensino da gramática normativa, com resultados discutíveis sobre a aprendizagem da língua culta; por outro, no ensino da leitura e escrita, novas tendências estão sendo implantadas. A coordenação pedagógica tem enfatizado a importância de práticas de letramento, vários gêneros textuais estão presentes nas salas de aula, e existem projetos de formação continuada de professores na área do ensino da leitura e da escrita. Ainda assim, persistem as perplexidades dos professores diante da língua falada por seus alunos, e de suas dificuldades para escrever e para interpretar textos. Aliás, há um paradoxo: os professores dizem que não se pode ensinar gramática de forma descontextualizada, mas insistem em tratar o texto como um pretexto para destacar substantivos, adjetivos etc. Em que sentido o ensino de português tem importância especial na formação identitária dos sujeitos? No livro “Nós cheguemu na escola: e agora?”, a sociolinguista Stella Maris Bortoni-Ricardo (2005, p.72) lembra que as desigualdades de desenvolvimento entre as regiões brasileiras e a injusta distribuição de renda e de oportunidades educacionais têm impedido o acesso de amplos contingentes da população à língua urbana culta. Isso explica a heterogeneidade do português brasileiro: imaginando-se um continuum dos falares do português, numa extremidade estão os falares das comunidades isoladas, do ponto de vista geográfico ou social e, no outro extremo, a variante-padrão usada pelas elites urbanas. De fato, a variedade linguística usada por cada cidadão relaciona-se com sua posição social, como disse Bortoni-Ricardo: (ibid., p.73). A posição de cada grupo social - e até de cada pessoa nesse continuum – é determinada por vários fatores, tais como zona de residência, acesso à Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6753 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento escolarização, qualidade do ensino recebido, características da rede de relações informais, exposição aos meios de comunicação etc. e há naturalmente, uma relação estreita entre a capacidade de o indivíduo movimentar-se ao longo desse espectro e suas possibilidades de mobilidade social ascendente Esses argumentos justificam nosso interesse de estudar o ensino de português na escola Beira-Rio como um dos aspectos importantes da influência da escola sobre a formação da identidade dos alunos. Quando se fala sobre dificuldades no ensino de português, a ideia do senso comum mais repetida talvez seja “os professores são mal preparados”. A propósito, a linguista Rosa Virginia Mattos e Silva (2004, p.79), autora do livro “O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas”, discute porque o avanço do conhecimento no campo da linguística, como disciplina científica, não se reflete no ensino da língua. Ao contrário daqueles que afirmam que os professores são mal preparados, a autora reconhece que eles estão a par dos princípios teóricos de sociolinguística, psicolinguística e das teorias do discurso, que hoje são abordados nos cursos de formação de professores de português. O problema é que quase nunca aplicam tais princípios teóricos. As razões para isso são várias: falta de materiais pedagógicos, de condições adequadas de trabalho, e também de segurança ou poder para introduzir inovações à margem dos programas oficiais. Concordando com Mattos e Silva sobre a falta de condições objetivas para melhorar o ensino de português, acrescentamos que no Brasil a formação inicial dos professores é deficiente, e a falta de tempo, aliada aos baixos salários do magistério, dificultam-lhes o acesso a livros, a filmes, peças teatrais e a outros bens culturais. Nas escolas públicas, o número de alunos por turma é excessivo e a jornada escolar, muito curta. Faltam bibliotecas populares e as salas de leitura das escolas, quando existem, estão fechadas ou funcionam precariamente, sem que haja um professor responsável pela guarda e uso do material, ou pior: servem como lugar de “castigo” para os alunos indisciplinados ou que não cumpriram a tarefa solicitada em sala de aula. Nesse cenário, uma questão se coloca: como renovar o ensino de português, especialmente no caso das crianças provenientes de famílias pouco letradas? Mattos e Silva pergunta: que gramática ensinar, quando e onde ? (ibid., p.79). Por um lado, a autora considera que é preciso um certo grau de amadurecimento intelectual para estudar gramática (sendo assim, não deveria ser ensinada nos primeiros anos escolares). Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6754 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Por outro, admite que “alguma gramática deverá ser ensinada a partir do momento em que se considerar necessário regular a fala e a escrita do aluno aos padrões de uso que a instituição escolar define como o ideal para aqueles que a ela estão submetidos” (ibid., p.81). Objetivamente, é de se esperar que nos últimos anos do ensino fundamental já exista ensino sistemático de gramática, e isso realmente acontece na Escola Beira-Rio. O problema é: que gramática interessa ensinar? Mattos e Silva (ibid.,p.85) afirma que “o ensino da gramática segundo os moldes tradicionais se tornou inócuo para atingir o objetivo de dar aos estudantes instrumentos que lhes possibilitem explicitar as estruturas e as relações fundamentais que conformam a gramática das línguas”. Que conteúdos de gramática a autora considera relevante? Não seria a gramática normativa, destinada a ensinar o “bom uso” da língua, tendo como esteio a escrita dos autores consagrados pelo cânone literário. O sentido maior do ensino da gramática seria levar o aluno a entender o que são as línguas, quais são as regras que as estruturam e permitem seu funcionamento. No entanto, o que a pedagogia e a escola fizeram foi reduzir a gramática a um conjunto de preceitos sobre o certo e o errado. Com isso, a escola se vê diante do impasse de tentar ensinar a norma padrão do português, descrita pelos gramáticos, a crianças e jovens que não usam as normas cultas dos grupos mais letrados e sim, as normas vernaculares que regem a língua do povo. Um problema desafia a escola: como ajustar os usos diversificados dos falantes às normas consideradas corretas? A linguista Miriam Lemle (1978, p.53) recomenda que se respeite a língua do aluno, mas, ao mesmo tempo, que a norma culta do português seja ensinada e praticada na escola como se fosse uma segunda língua, que pode enriquecer a capacidade de expressão, facilitar a inserção social, diminuindo o efeito de estigmatização daqueles a quem se critica por que “falam errado”. A autora sugere que em lugar de usar os conceitos de certo / errado, a escola use os de adequado / inadequado, em função da situação de fala, dos interlocutores, dos efeitos que o falante deseja alcançar. Nas palavras da autora: A sua missão [dos professores] não é a de fazer com que os educandos abandonem o uso da sua gramática “errada” para a substituírem pela gramática “certa”, e sim de auxiliá-los a adquirirem, como se fora uma segunda língua, competência no uso das formas linguísticas da norma socialmente prestigiada, à guisa de um acréscimo aos usos linguísticos regionais e coloquiais que já dominam. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6755 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Com o mesmo tipo de preocupação que Bortoni-Ricardo e Lemle manifestaram, Mattos e Silva propõe alguns princípios para o ensino da língua materna nos primeiros anos escolares (ibid, p.82). Em primeiro lugar, sugere partir daquilo que o indivíduo já sabe, pois mesmo as crianças que nunca estudaram gramática são capazes de reconhecer frases que não fazem sentido, estruturas agramaticais e incompatibilidades semânticas. Ficar no patamar do conhecimento já adquirido, no entanto, não basta; é preciso alargar a capacidade de expressão das crianças, praticando a fala e a escrita em diversos contextos de comunicação, e deixando claro que o que se diz e como se diz são definidos em função do lugar de quem fala e do seu interlocutor, entre outros fatores. Na etapa inicial da escolaridade, é útil comparar os usos lingüísticos efetivos dos estudantes, suas maneiras de falar, com os padrões de uso que a escola busca transmitir. Para isso, é preciso criar um processo de “observação organizada” das diversas possibilidades de usos linguísticos. Sendo assim, cabe ao professor mostrar as situações em que o aluno utilizará a norma culta da língua, aprendida na escola, e aquelas outras, em que as normas vernáculas, aprendidas na família, serão perfeitamente adequadas para os propósitos dos falantes. Na opinião de Mattos e Silva, o ensino tradicional de gramática atravessa sérias dificuldades e a autora aponta três caminhos para o impasse: melhorar a formação dos professores das séries iniciais, que deveriam ter conhecimento de linguística; preparar material didático adequado e contar com a contribuição dos linguistas que, além de prosseguir em seus estudos teóricos, deveriam pensar na questão pedagógica do ensino da língua. Na seção seguinte, passamos a analisar dados gerados em situações informais de comunicação e nas aulas de português da professora Patrícia2, do sexto e sétimo anos. O português falado na escola No terreno da comunicação verbal, observamos que na altura do sexto e sétimo anos os alunos dirigem-se à professora de modo respeitoso, tratando-a por senhora e usando 2 Nome fictício da professora observada nesta pesquisa. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6756 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento expressões de cortesia, como bom dia, faz favor, dá licença, obrigado etc. As boas maneiras no trato com os adultos são reforçadas dentro e fora das salas de aula, e raramente um aluno ultrapassa as fronteiras do que é considerado respeitoso. Quando isso acontece, a professora reage imediatamente. O registro coloquial usado nas trocas verbais com os professores mostra que as formas de falar com os adultos que detêm autoridade são assimiladas pela maioria dos alunos, como uma das facetas da disciplina escolar, que se manifesta de várias outras maneiras, como nos rituais de entrada e saída, na proibição de correr e falar alto nos corredores e no pátio etc. Já o registro coloquial usado entre alunos é bastante diverso, marcado por expressões próprias da cultura daquele grupo de jovens. A manifestação de agressividade em relação aos pares parece ser um elemento da identidade dos adolescentes do gênero masculino, que se confrontam no pátio, e mesmo nas salas de aula, à revelia dos professores. Diferentemente dos meninos, as meninas muitas vezes abraçam-se e permanecem abraçadas durante longo tempo e trocam carinhos, embora não deixem de revidar ofensas quando são provocadas. Já os meninos, quando se aproximam fisicamente, é para trocar tapas. Os garotos, mais frequentemente que as meninas, usam formas agressivas de falar, lançando impropérios e xingamentos - como macaco, macaco prego, moleque, moleque abusado, cachaça, cavalo, palhaço, e outros - sem que aparentemente isso seja levado a sério. Eventualmente alguém se queixa à professora, mas muita coisa é deixada de lado, como se fosse “natural”. Embora quase todos os alunos sejam negros ou pardos, empregam expressões racistas entre si, como se aquele que chama o outro de “macaco” não se reconhecesse como negro também. Aliás, a professora ignorava esse linguajar ofensivo e não se observou nenhum momento em que fosse discutida a questão do preconceito racial nas aulas de português.3 É curioso que, em contraste com esse quadro de trocas verbais agressivas, mais de uma vez observamos situações em que um menino ou menina disse algo grosseiro, na sala de aula, por exemplo - Para de palhaçada, seu cavalo! - para alguém que fazia brincadeiras bobas, e foi advertido por um colega: Não fala assim, pô”. 3 O assunto era abordado, frequentemente e com propriedade, nas aulas de geografia, que eram acompanhadas por outra pesquisadora. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6757 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Pressupomos que os alunos, como acontece com os falantes de uma dada língua, internalizaram regras a respeito do que é possível dizer, como e a quem. Distinguem o que é apropriado dentro e fora do espaço da sala de aula, e como falar com os professores e com os colegas. Sobre a língua falada na escola, cabe ainda destacar que quando os alunos empregam expressões que contrariam a norma culta, suas falas são objeto de correção, mas não de reflexão. Por exemplo, a professora perguntou ao aluno se trouxe o caderno de produção de texto, ele respondeu: “Não ‘trusse’ hoje, não” e foi imediatamente corrigido pela professora: “Não TROUXE!”. Houve correção, mas não houve nenhum comentário sobre a diferença entre a norma culta e a norma vernácula. A propósito, Bortoni-Ricardo (2005, p.197) afirma que “os alunos devem sentir-se livres para falar em sala de aula, independentemente do código usado - a variedade-padrão ou nãopadrão”. Acrescenta, no entanto, que na perspectiva de ampliar as capacidades linguísticas dos alunos, cabe ao professor justapor a variante-padrão e não-padrão, fazendo comentários sobre ambas. Essa conduta é diferente da simples correção. A gramática na escola Em relação à língua escrita, cabe destacar o destaque dado à ortografia na escola Beira-Rio. A correção das redações concentra-se especialmente nos erros ortográficos. A forma de ensinar ortografia, por meio de ditados, no entanto, é pouco produtiva, focalizando palavras de uso pouco frequente, mas que apresentam as chamadas “dificuldades ortográficas”: uso de ch ou x, prefixos ab e ob, uso de g ou j, de s, ç ou ss, palavras com h inicial, etc. Não observamos explicações sobre regras ortográficas, nem sobre o significado das palavras usadas nos ditados. Palavras soltas eram ditadas sem ao menos serem contextualizadas posteriormente em frases. Assim, durante o exercício, algumas perguntas eram feitas à professora, por vezes demonstrando que os alunos, por si mesmos, estabeleciam relações de significado entre palavras correlatas, perguntando por exemplo: “Obturar vem de obturação?”, “Nupcial tem a ver com noite de núpcias. Durante a observação de dois meses de aula, o ensino de gramática no sexto e sétimo anos girou em torno do reconhecimento e classificação de advérbios (de tempo, de lugar etc.) e de adjetivos (graus comparativo e superlativo dos adjetivos). Nas Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6758 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento avaliações, observou-se ênfase dada à nomenclatura, e às definições, e não ao conhecimento aplicado. Por exemplo, uma questão da prova perguntava: “O que são advérbios?” “Quais as classificações que o advérbio pode ter?” O ensino das regras sintáticas é baseado nos exercícios do livro didático, o que não atende às necessidades dos alunos de melhorar as habilidades de interpretação e construção de textos, pois o manual enfatiza conceitos e normas.Há também a questão de como trabalhar com o livro didático. Em geral, os alunos deviam copiar, no caderno, o enunciado do livro, e escrever a resposta, o que levava a uma perda de tempo. Quase sempre os alunos mostravam-se muito dependentes das explicações verbais da professora, indagando repetidamente o que deveriam fazer, pois não compreendiam os enunciados dos exercícios. O livro didático apareceu como a fonte mais autorizada para correção dos exercícios. As respostas dos alunos eram ditas de forma coloquial, de acordo com as formas linguísticas que usam cotidianamente. A professora lia, então, a resposta “mais certa” (que consta no livro do professor) e o aluno não reconhecia que havia respondido a mesma coisa dita pela professora, e apagava sua resposta como se estivesse errada. Em resumo, o tratamento dado à gramática, nas aulas observadas, corresponde ao ensino tradicional do português, que descreve e classifica partes do sistema linguístico, mas não oferece instrumentos para reflexão sobre diferenças linguísticas, ou sobre o uso da norma culta para o falante de variantes populares da língua, como é o caso dos alunos da escola Beira-Rio. Como disse Stella Maris Bortoni-Ricardo (2005, p.15): No caso brasileiro, o ensino da língua culta à grande parcela da população que tem como língua materna - do lar e da vizinhança - variedades populares da língua tem pelo menos duas consequências desastrosas; não são respeitados os antecedentes culturais e linguísticos do educando, o que contribui para desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma eficiente a língua – padrão. A produção escrita A familiarização dos alunos com diferentes gêneros textuais tem sido recomendada pelos especialistas em ensino da língua materna – Adilson Citelli (1999), Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6759 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Helena Nagamine Brandão (1997, 2000) e outros, como uma das maneiras de enriquecer e renovar o ensino de português. Que gêneros textuais circulavam nas salas de aula observadas? Consultando os cadernos de produção de texto de alunos do 7º ano, constatou-se que de fato existia certa variedade de gêneros textuais, com predominância de narrativas ou depoimentos pessoais, por exemplo, redações sobre “Como passou o fim de semana?”, ou “Escreva sobre você”. Outros gêneros propostos pela Professora Patrícia foram: uma carta para um colega (as cartas foram trocadas entre alunos de duas turmas), um relato da reunião de pais e um texto de opinião. Cabe dizer que em nenhum momento a professora explicitou as características desses textos, de modo que os alunos trabalharam apelando apenas para seus conhecimentos anteriores, obtidos na escola ou na vida social, sobre o que distingue uma carta de uma narrativa, ou de um texto de opinião, por exemplo. Resumos e resenhas, gêneros textuais que exigem habilidades específicas de escrita e são menos conhecidos, embora muito importantes para fins de estudo, não estiveram presentes nas aulas de redação. A seguir, um trecho do diário de campo sobre uma aula de redação no sexto ano. O título foi escrito no quadro: “Um mundo ideal” e a professora conversou com a turma sobre como seria esse mundo. “Hoje em dia vemos tanta violência na televisão, o que nós podemos fazer para melhorar isso?” Uma menina falou da notícia de um estupro que viu no jornal, outra contou a história de um cobrador de ônibus que foi assaltado e levou um tiro. De início, algumas perguntas dos alunos: “Mínimo de quantas linhas?”, “Pode mudar o título ou tem que ser esse aí que a senhora botou no quadro?”. A professora lembrou que as redações são compostas de três partes: introdução, desenvolvimento e conclusão. Mais perguntas: “Professora, o que é para escrever no desenvolvimento?”, “Conclusão é concluir?”. Após dez minutos, os alunos fizeram uma fila ao lado da mesa da professora para mostrar-lhe o que já haviam redigido e ela estimulou alguns a desenvolverem mais suas redações. Disse que escolheria cinco redações para serem lidas em voz alta para turma. Quando faltavam quinze minutos para acabar a aula, Patrícia leu em voz alta a redação de Katia, que preferiu não ler à frente da turma. A menina escreveu que para termos um mundo melhor precisamos acabar com as drogas e bebidas alcoólicas. Já Viviane quis ler sua redação, que falava sobre a importância do meio ambiente. Outros textos dos alunos diziam que: “Pessoas culpadas ficam ricas, essas pessoas deveriam ser presas pra sentirem a realidade. Todos têm o mesmo direito, pobres e ricos”. “O mundo precisa de uma reforma para melhorar tudo e deixar nos ‘trinques’”. “Às vezes ligamos a TV e só vemos coisas ruins. A vida não é só matar, temos que conversar, se fosse só para matar ninguém estaria vivo”. Uma aluna perguntou: “Em vez de fumar maconha, por que não vai para a Igreja?” Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6760 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento O tema O mundo ideal pressupõe a idéia de escrever um texto de opinião. Na proposta da professora, vislumbramos uma oportunidade de levar os alunos a argumentarem, a defenderem pontos de vista, ainda que de maneira incipiente. Seria também uma excelente oportunidade para discutir valores e condutas valorizados pela escola. No entanto, em nenhum momento a professora explicou procedimentos para a escrita desse tipo de texto, como recursos e expressões típicos de argumentação. Na prática, observamos que as redações, produzidas em tempo mínimo, expressavam alguns comentários pertinentes, como a preocupação com o meio ambiente, com a injustiça que faz os pobres serem presos, mas os ricos, não; com a violência que se vê na televisão. No entanto, não foi encaminhada a discussão sobre esses e outros problemas sociais graves que os jovens enfrentam no dia a dia e que limitam suas possibilidades de um futuro melhor. Serão os jovens conscientes das causas e consequências desses problemas? A escola os tem ajudado a entender o mundo em que vivemos? A compreender seu lugar na sociedade brasileira, sua identidade de jovens negros e pobres? A escola tem preparado os alunos para a reivindicação de seus direitos? Nas redações, as opiniões são apresentadas com ligeireza, tais como o seriam numa conversa entre amigos. A situação de produção textual deixou escapar a oportunidade de cobrar dos alunos reflexão, comparação entre opiniões e argumentos, exemplificação de fatos, relatos de experiências e referências ao conhecimento do mundo que todos têm. No que se refere à forma, os textos são muito curtos, às vezes com frases desconexas. Ao lerem seus textos em voz alta, muitos alunos sequer entendiam o que haviam escrito. Embora a expressão escrita seja pobre, não houve sugestões da professora para melhorar os textos, em relação à coesão e coerência, organização dos parágrafos, escolhas lexicais etc.. A aula de redação, quando existe, é limitada ao tempo de duas horas e não prevê atividades de reescrita. A correção focaliza, em geral, apenas os erros de ortografia e sintaxe. Quanto às provas escritas, a professora entregou as avaliações feitas na semana anterior, que valia quatro pontos divididos entre gramática e produção de texto, cujo tema era: “Escreva sobre você”. Patrícia comentou sobre alunos que usaram letra Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6761 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento maiúscula no meio de palavra e alertou: “Se vocês continuarem com essa mania... só vão piorar!”. Aliás, não é exatamente a forma que por vezes provoca dúvidas nos alunos. Por exemplo, na sala da turma 701 havia um cartaz com o nome dos alunos-destaque da turma, os nove que tiraram melhores notas naquele mês. O quadro faz lembrar cartazes que aparecem em alguns supermercados e lojas de “fast food” com nomes e retratos dos “funcionários do mês”. Numa aula de produção de texto, que pedia o relato da reunião de pais, um menino perguntou: “Professora, posso mentir na redação e dizer que eu fui aluno-destaque?” De fato, pode-se colocar a pergunta do menino em outras palavras: o que é legítimo escrever? O que é permitido escrever? Qual o grau de liberdade de quem escreve? Estes são aspectos da posição do autor que caberia debater com as crianças. Leitura na sala de aula A leitura em voz alta é praticada com grande frequência na Escola Beira-Rio, como parte de um projeto iniciado pela Secretaria de Educação de Petrópolis, visando à formação de leitores. O repertório de textos escolhidos pela professora Patrícia incluía crônicas, histórias em quadrinhos, letras de música e textos jornalísticos. Além da leitura em voz alta pela professora e por alunos por ela designados, os alunos faziam leitura silenciosa de livros didáticos e exercícios. Para a leitura oral no sétimo ano, a professora levou uma crônica, escrita em tom irônico, que tratava das dificuldades dos jovens em matéria de leitura e escrita. A professora, ao terminar a leitura, perguntou: “Não acharam graça? Após um breve silêncio, um aluno disse: “Não entendi nada porque estava fazendo dever!”, indício de seu desinteresse pelo texto em questão. Outros comentários dos alunos, no entanto, tinham a ver com o sentido da crônica, que tratava das “regressões” (erros graves) nas redações escolares e o motivo pelo qual isso ocorre (a falta de leitura). Eis alguns exemplos: “A professora pede pra gente ler, a gente é que não lê.” “Essa geração é vagabunda mesmo, por isso fica de recuperação!”, “Eu pego o jornal e não dá pra entender muita coisa!” Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6762 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento Outras atividades de leitura observadas foram a interpretação de uma tira de quadrinhos, de uma letra de música religiosa, de um texto humorístico. Por vezes a professora fazia a leitura em voz alta, por vezes designava alguém para fazê-lo, o que nem sempre era bem aceito pelo aluno escolhido. Ainda assim, mesmo que com má vontade, a ordem da professora era obedecida. Quando os alunos pareciam não compreender o texto em pauta, a professora tomava a palavra para explicá-lo. Muitas crianças manifestavam claramente suas dificuldades, ou desinteresse, como se vê nos trechos abaixo do diário de campo: A professora lê em voz alta um texto de uma crônica de um jornal popular. A turma permanece em silêncio. A professora lê duas vezes, e na segunda, ela própria interpreta cada frase. No final, pergunta: “Deu pra entender? Vocês estão dormindo!” Um aluno responde: “Deixa eu acordar primeiro!”. A professora avisa: “Então no final da aula vou reler!” A professora Patrícia aguardou o silêncio na turma 601 para ler a crônica [sobre dificuldades de leitura e escrita]. Leu a primeira vez, e após a leitura perguntou quem havia entendido o texto. Apenas um aluno levantou a mão e comentou: “Se a gente não ler, vamos continuar escrevendo errado, professora!”. Outro aluno disse: “Não entendi nada, lê de novo, professora!”. A professora leu pela segunda vez e em seguida explicou o porquê do título. Na segunda leitura, alguns alunos se dispersaram e Patrícia teve que interromper uma conversa entre três meninas preocupadas com um trabalho de Ciências: A professora comenta que “duas semanas atrás foi tão bom, os alunos foram para a biblioteca, escolheram livros, chegaram à sala e pediram tempo para ler”. Comportaram-se tão bem, que ela não estava entendendo a agitação de hoje. Pode-se indagar: será que a mudança de comportamento da turma tinha a ver com a escolha do texto? Por que não sugerir, então, que os próprios alunos tragam textos de seu interesse para discussão em sala de aula?4 Conclusão Nesta pesquisa, procurou-se compreender o lugar do ensino de português na cultura da escola Beira-Rio. Partimos do pressuposto que a cultura escolar, como disse Moreira (2006), envolve as normas e as práticas que estabelecem os valores, os 4 A leitura que os alunos fazem por conta própria gira em torno de revistas para adolescentes, que tratam de sexo, novelas, horóscopo, e livros com sobre amor. Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6763 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento conhecimentos e os comportamentos a serem aprendidos na escola. Moreira salienta que sua perspectiva harmoniza-se com a de Julia (citado por Moreirae Cunha, ibid, p.7), para quem a cultura escolar corresponde a (...) um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Na cultura da escola Beira-Rio, busca-se alcançar principalmente finalidades de socialização. A instituição investe de forma contínua e intensa na elevação da autoestima dos alunos, na inculcação de atitudes de obediência e de respeito aos mais velhos e às figuras de autoridade, e na prática de boas maneiras. A direção e o corpo docente presumem que essas aprendizagens sociais não são alcançadas no ambiente doméstico dos alunos, devido às condições de pobreza. Esses profissionais têm a preocupação de salvar os alunos dos riscos da deliquência, da ociosidade, que ameaçam os jovens desempregados das áreas favelizadas da cidade. A socialização escolar visa, entre outras coisas, a preparar os jovens para serem bons candidatos a empregos modestos no mercado de trabalho local. Nesse sentido, a escola é bem sucedida naquilo a que se propõe, ou seja, na sua missão civilizatória. Assim, ao serem indagados sobre o que aprenderam na escola, os alunos não mencionam conteúdos escolares, não falam de aulas de matemática, geografia, português etc., nem falam de livros, mas afirmam que ali aprenderam a respeitar os mais velhos, “a tratar todo mundo com educação”, a cumprimentar, a se comportarem corretamente. Em geral, as crianças e jovens afirmam gostar da escola, a qual consideram “sua segunda casa”, e isso é um ponto a favor da instituição, onde reina o rigor, mas as exigências são claramente explicitadas. No entanto, devido ao fato de receber um alunado formado majoritariamente de crianças e jovens pobres, negros e pardos, a escola carrega o peso de ser “diferente”, isto é, não goza do mesmo prestígio de outras consideradas “escolas boas”, cujo alunado não é tão homogêneo em matéria de cor da pele e de condições de pobreza. Assim surge um paradoxo; a escola se empenha em melhorar os processos socializadores dos alunos e elevar sua auto-estima, mas ao mesmo tempo o fato de frequentarem essa escola já é um fator de discriminação. De certo modo, não obstante suas intenções de superação das desvantagens sociais dos pobres, a escola Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6764 O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento termina por se constituir em “espaço de confinamento”, no qual estão reunidos meninos e meninas que não têm acesso a melhores oportunidades educacionais Quanto ao ensino de português, a pesquisa revelou que professora proriza a aprendizagem da nomenclatura gramatical, o ensino da ortografia (po meio de ditados), e a leitura em voz alta, e só esporadicamente propõe a produção de textos. Continuam faltando nas aulas de Português uma reflexão em torno das características específicas da oralidade e da escrita, assim como a aprendizagem das regras de elaboração dos diferentes gêneros textuais. A formação do leitor está concentrada nos momentos em que a professora faz leitura em voz alta, e a biblioteca não funciona como espaço privilegiado para o contato com a língua escrita. A escola não ensina a escrever, de modo que os alunos limitam-se a transcrever por escrito aquilo que sabem expressar oralmente. Nos lares das crianças da escola Beira Rio, a familiaridade com os usos sociais da leitura e escrita é escassa, de modo que as oportunidades de contato com esses usos são aquelas poucas que a escola oferece. De fato, em lugar de contribuírem para que os alunos superem as limitações geradas por suas condições socioeconômicas, as práticas do ensino de português reforçam, reiteram e ampliam as desvantagens culturais e sociais dos alunos. Referências bibliográficas BORTONI-RICARDO, S.M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. BRANDÃO, H.N.(coord.). Gêneros do discurso na escola. 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Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite 6766 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” CULTURAS ESCOLARES E CURRÍCULOS PRATICADOS EM INVISÍVEIS COTIDIANOS: NUANCES DE UMA PESQUISA COM REDAÇÕES ESCOLARES Maximiano Romano Juliana Bello Lopes JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares CULTURAS ESCOLARES E CURRÍCULOS PRATICADOS EM INVISÍVEIS COTIDIANOS: NUANCES DE UMA PESQUISA COM REDAÇÕES ESCOLARES Maximiano Romano1 Juliana Bello Lopes2 RESUMO: O currículo escolar é uma importante dimensão do cotidiano das escolas e escrever sobre os currículos praticados significa escrever sobre currículos (re)criados a partir dos cotidianos, nos cotidianos e com os cotidianos, o que nos levou a pesquisar uma experiência curricular em uma Escola Estadual do Rio de Janeiro e analisar as redações que os educandos produziram sobre o tema “Desigualdade social, violência e escola”. A análise das redações revelou algumas representações presentes na cultura escolar, principalmente, sobre o papel da escola e sobre as justificativas atribuídas à desigualdade social, aspecto fortemente marcado pelo raciocínio neoliberal. A pesquisa contribuiu também com a reflexão sobre o quanto as propostas curriculares são influenciadas pelos fazeres dos sujeitos, o que demonstra que o currículo não pode ser compreendido nem como transposição do que é oficialmente estabelecido e nem apenas como o resultado da ação dos seus praticantes. Enfim, embora as práticas curriculares possam contribuir com mecanismos de invisibilização de conhecimentos e de regulação dos atos de educandos e educadores, é possível buscar brechas que permitam o ensaio de táticas de emancipação, de luta pela reinvenção da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Currículos praticados – Cotidiano escolar – Táticas. No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos e de opções [...] (GIARD, 1996, p.234). Cotidianos visíveis, cotidianos invisíveis, currículos oficiais, currículos ocultos, práticas e sujeitos (in)visibilizados... O que vemos ou deixamos de ver? Somos capazes 1 Autor. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). 2 Co-autora. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e bolsista da Capes. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6770 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares de enxergar as limitações dos paradigmas que possuímos? Enxergamos as restrições presentes no próprio ato de ver? Von Foerster (1996), ao estudar as disfunções de segunda ordem da visão, mostra-nos que “não vemos que não vemos”, ou seja, não percebemos que há “pontos cegos” em nossa visão, imagens não vistas por se formarem nas zonas oculares sem receptores, mas que acreditamos ver por consequência do controle do cérebro sobre a captação da retina. Desse modo, sendo o cérebro o responsável pelo que vemos, somente somos capazes de ver aquilo em que acreditamos: precisamos crer para poder ver! Considerando as invisibilidades presentes na cultura escolar e nos cotidianos forjados nas escolas, o que objetivamos, então, é tornar mais visíveis algumas das formas como as propostas curriculares são materializadas cotidianamente, como são recebidas, transformadas e (re)significadas pelos sujeitos que as praticam, procurando compreender como tais propostas influenciam na cultura escolar e como são também influenciadas, objetivo esse que nos levou a pesquisar aspectos de uma experiência curricular em uma turma3 de 9º ano de uma Escola Estadual4 do Rio de Janeiro situada na região central do Município de Niterói. Compreendendo que a cultura escolar é composta também por conjuntos de normatizações sobre conteúdos de ensino, metodologias, materiais pedagógicos, formas específicas de apropriação de espaços da instituição, entre outros, procuramos desenvolver um olhar capaz de perceber o que é, nessa cultura, “invisível” ou invisibilizado. Assim, como nosso interesse envolve o currículo praticado em sua dimensão do cotidiano, dialogaremos ao longo do texto com alguns educandos do cotidiano observado, destacando trechos das redações5 que produziram a partir do tema “Desigualdade social, violência e escola”. Entendendo que as normas da cultura escolar e as formas de regulação podem ser contextualizadas, redefinidas a partir das condições concretas de cada escola, da 3 Um dos autores da presente pesquisa, Maximiano Romano, atua como docente na turma pesquisada. 4 Preservamos o nome da escola e os nomes dos educandos por entendermos que o processo de pesquisa deve ser dialogado em todas as suas etapas com os sujeitos pesquisados. Como a presente versão escrita ainda não foi apresentada aos sujeitos, optamos por apresentar nomes fictícios, mantidos nos textos autorizados para a utilização. 5 Os trechos das redações serão apresentados seguidos com a indicação de um nome fictício e a sigla DSVE em referência ao tema proposto (desigualdade social, violência e escola). Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6771 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares relação entre suas estratégias de organização e os sujeitos que dela participam, procuramos compreender como os sujeitos encontram possibilidades para se fazerem produtores da escola. E, como os sujeitos também são singulares, pensam e criam a escola de acordo com suas trajetórias de vida e com os processos educativos – formais ou não – já vividos, criando lógicas próprias para explicarem os cotidianos e as culturas escolares6: E na escola ainda bem que eles conversam com a gente e ensinão a não ter desigualdade social. Mais tem escola que não tem isso e nem ensinão pro aluno o certo ai a criança ou adolescente crescem e vivem pisando nos outros. (Mário, DSVE) Com contextos próprios, sujeitos singulares, apropriações diversas, podemos afirmar, com Certeau (1995), que a cultura deve ser pensada no plural, uma vez que a singularidade de cada prática cotidiana influencia o funcionamento interno da escola e cria, conseguintemente, diferentes possibilidades diante das normas que definem os conhecimentos que devem ser ensinados, os comportamentos que devem ser reproduzidos, as hierarquias que devem ser obedecidas. As políticas oficiais de ensino, as macropolíticas, que exercem um importante papel na configuração das culturas escolares, são aqui entendidas como políticas que devem ser pensadas em contato com a dimensão das práticas de nossas escolas, com a dimensão do invisível cotidiano, por tanto tempo desconsiderado por estudos que tinham como vertente apenas as determinações legais, as “decisões de gabinete”. Procurando, então, desenvolver o diálogo entre uma proposta curricular oficial e a forma como os praticantes da cultura escolar dela se apropriam, propomos a análise de textos de sujeitos praticantes dessa cultura para tentar compreender de que forma os currículos podem (re)estabelecer as relações vividas e como são (re)elaborados a partir da prática. 6 Optamos por não apontar ou demarcar as incorreções gramaticais presentes nos textos dos educandos, uma vez que entendemos que o mais relevante para a presente pesquisa são as formas como os assuntos propostos são abordados e problematizados. Escolhemos também manter os textos exatamente como foram escritos, compreendendo que correções e reescritas devem fazer parte do processo pedagógico vivido com os educandos. Observar tais textos nos levaram a refletir sobre os saberes deslegitimados de quem não domina a norma culta da língua portuguesa, reflexão que desejamos aprofundar em outro momento. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6772 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares PRATICANDO CURRÍCULOS, INVENTANDO COTIDIANOS O currículo escolar é uma importante dimensão do cotidiano das escolas e escrever sobre os currículos praticados nessas instituições significa escrever sobre currículos que são (re)criados a partir dos cotidianos, nos cotidianos e com os cotidianos. Como não podemos assumir um cotidiano genérico, uma vez que as possibilidades de interações e relações são diversas, as formas como os currículos são praticados também só podem ser pensadas no plural: são caminhos inúmeros, diferentes apropriações, formas singulares de usos das propostas curriculares ditas oficiais, pois cada um dos contextos possui as marcas, as características que resultam das performances dos autores desses cotidianos. Tais autores marcam também os currículos porque pensam, criticam, aprovam, discordam, concordam e agem de tantas diferentes formas a partir das experiências que vivem cotidianamente, como nos indicam os trechos seguintes: Eu acho a escola muito chato afinal de contas quem foi que inventou a escola é só aula chata e ainda por cima temos que levantar sedo fala serio a única coisa boa que aqui tem e os jogos que colocaram [...] (Roberto, DSVE) A escola poderia fazer algo para acabar com a desigualdade social e a violência, por exemplo, fazer cartais, protestar, conversar com a familia, com os amigos, fazer palestras ou montar uma peça de teatro sobre esse assunto, para as pessoas ficarem cientes e para melhorar o nosso mundo. (Sara, DSVE) Assim, do desdém à visão idealizada, que atribui um poder quase mítico à escola, os sujeitos pensam as culturas escolares em um enredamento entre suas expectativas, as propostas, as políticas e ações, praticando os currículos que vão se constituindo ao mesmo tempo em que constituem os cotidianos escolares e suas culturas. Embora aparentemente repetidas, as práticas trazem, segundo Zaccur (2003) “Iterâncias” e interações que transformam os sentidos da repetição: os fazeres são sempre os mesmos e sempre outros, com novas possibilidades, pois não são simplesmente repetidos, são reiterados, renovados. Palavras, ações, discursos e práticas são (re)significadas e as relações de poder que se estabelecem fazem emergir diferentes conflitos, fomentam embates e silenciamentos, mudanças e reproduções, resistências e desistências. Assim, as formas Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6773 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares de opressão, os mecanismos de subversão e rebeldia, as linguagens, as culturas, os anseios, as expectativas e sentimentos apresentam singularidades que se refletem nos currículos vividos nos diferentes cotidianos. É preciso ressaltar que toda a comunidade escolar pratica o currículo, pois o mesmo não se resume a uma proposta escrita para aula, ou a um cronograma anual determinado para as disciplinas: está presente – e sendo (re)elaborado – nas interações entre os diferentes sujeitos que fazem a escola e em diversos espaços dessa instituição. Os currículos, nessa perspectiva, se inscrevem nos sujeitos e os sujeitos, com seus corpos e discursos, inscrevem novas possibilidades nas propostas curriculares. Oliveira (2008) destaca que nos currículos praticados não há só a dimensão da regulação das práticas ou apenas a possibilidade de emancipação, os currículos são recriados cotidianamente e podem favorecer tanto a manutenção quanto a transformação. Ainda segundo a autora: [...] buscando superar a dicotomia hierarquizante fundamentada na redução do real à modelos e práticas e de comportamentos monolíticos, entendemos ser necessário, e possível, [...] considerar que não há nem propostas nem práticas que possam ser, de modo inequívoco, identificadas somente com a regulação ou com a emancipação social. (OLIVEIRA, 2005, p.104) Compreendendo, então, que os currículos praticados podem regular e podem emancipar, superando a lógica dicotômica do “isto ou aquilo” e apontando para a complexidade das situações diárias, é preciso considerar que os sujeitos também não recebem passivamente as determinações, as propostas, as normatizações. Os sujeitos lutam, disputam, propõem, mobilizam, conquistam, submetem e são submetidos, arriscam, modificam e praticam tantas outras ações envolvendo seus corpos e discursos que se fazem presentes nos currículos dos invisíveis cotidianos de ações singulares, de incontáveis “artes do fazer”. As artes de fazer, segundo Certeau (1994), são formas de ação, criações de sujeitos que, embora sejam entendidos frequentemente como pertencentes a um lugar de passividade, produzem especificidades, buscam caminhos. Nisso há arte. Mas, quando diante dos caminhos buscados emergem condicionamentos ou obstáculos, “situaçõeslimites” na concepção de Freire (1975), os sujeitos utilizam-se de sua capacidade criadora, ou produtora, na construção de táticas. De acordo com Certeau (idem) a tática Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6774 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares é a arte do mais fraco, do sujeito comum ou, bem ao gosto do autor, do sujeito ordinário, sendo: [...] um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância [...]. (1994, p. 46). São as táticas, de tal modo, que muitas vezes garantem a afirmação e a reafirmação do sujeito quando o entorno procura destacar a sua não-produção. Segundo Certeau (idem), a tática é determinada pela ausência de poder, mas podemos completar que é a ausência de um determinado poder, daquele compreendido como hegemônico, uma vez que, assumindo que toda relação é de poder (FOUCAULT, 2008), os sujeitos comuns, ordinários, a multidão anônima, também tem seus poderes. As táticas, nessa perspectiva, são exemplos desses poderes produzidos pelos mais fracos para subverter as estratégias dos mais fortes, sendo determinadas no e do lugar do anônimo, do invisível, do ordinário. São, portanto, poderes ordinários, mas ainda assim formas de poder. Dessa maneira, mesmo desconhecidas, inúmeras táticas são empregadas por sujeitos que, em cotidianos dados a iterações e perpassados por ideologias, ciências, epistemologias, desejos, interesses e curiosidades, reinventam currículos, metodologias e práticas. Procurando reinventar o cotidiano de sua escola, Tatiana escreveu: Na escola precisa de quadras, professores porque isso complementa no estudo, um ensino mais avançado, acho que com mais alegria porque ai a aula não ia ficar tão chata naquela rotina sem graça, talvez até não teria tantos alunos matando aula (Tatiana, DSVE). Tanto com Butler (2003) quanto com Louro (2004), somos seduzidos a perceber como as performances dos sujeitos marcam seus corpos, seus cotidianos, suas práticas e suas culturas. Os sujeitos, com suas incontáveis performances, inscrevem elementos da cultura que vivenciam ou experimentam em seus corpos e discursos, as performances, sendo inscritas nas culturas, inscrevem a cultura nos sujeitos (nos corpos e nos discursos) e também inscrevem os sujeitos na cultura. Buscamos, portanto, dar visibilidade às performances (BUTLLER, 2003; LOURO, 2004), ou às artes de fazer (CERTEAU, idem) dos praticantes através de algumas nuances do cotidiano escolar pesquisado, procuramos fazer com que as escritas dos educandos ecoassem na pesquisa, demonstrando que os mesmos, com todos os Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6775 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares demais sujeitos que também compõem a escola, não apenas reinventam o currículo a cada dia, como ensaiam performances de táticas para reinventarem suas próprias vidas dentro e fora das instituições escolares. A EXPERIÊNCIA Com Larrosa (2002) compreendemos que nem tudo que acontece pode ser considerado uma experiência: a experiência é o que nos acontece, o que nos toca, o que nos mobiliza. Podemos viver muitas situações sem, de fato, viver experiências. Da mesma forma, um cotidiano escolar pode ser rico em acontecimentos, porém ser pobre em experiências. Segundo o autor (idem, p.24), o sujeito da experiência é “algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”. Diante disso, almejando representar também territórios de passagens para outros sujeitos e suas “usanças” de práticas cotidianas, iniciamos nossa narração da experiência, e aqui ressaltamos a palavra escrita e a experiência de escrever, por termos sido por elas, tocados e modificados, para que o “invisível cotidiano” assuma suas formas e torne mais visíveis os seus sujeitos. Apresentamos aqui nuances do cotidiano e da pesquisa sobre as práticas curriculares em uma Escola da rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro, situada em Niterói. Dos fios desse cotidiano, selecionamos apenas alguns, aqui representados nos produtos das experiências escritas realizadas por alunos do 9º ano desta escola. Os textos, como referido anteriormente, deveriam ter como tema “Desigualdade social, violência e escola”, proposta curricular para uma das aulas da disciplina chamada Projeto, que é destinada aos educandos do segundo segmento do ensino fundamental, com exceção das turmas de Educação de Jovens e Adultos. Tal disciplina é ministrada em dois tempos semanais, tendo cada tempo a duração padrão de cinqüenta minutos, e são ministradas por professores de diferentes disciplinas. Estas atividades são determinadas por cada escola. Na escola pesquisada estes tempos foram e ainda são aproveitados de diferentes formas, dentre elas as aulas Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6776 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares de Cidadania que deram origem às redações estudadas aqui, educação sexual, meio ambiente e reforço escolar, geralmente em matemática ou português, disciplinas correntemente mais valorizadas na cultura escolar. Entre “reforço” para as disciplinas tradicionais ou “atividades de formação social”, os cursos intitulados Projeto pela Secretaria Estadual de Educação são, na escola, inventados e reinventados por meio de artes de fazer dos sujeitos, por seus anseios e por suas linguagens, elementos que vão delineando o currículo proposto, transformando-o em currículo local. Podemos dizer que a linguagem, reiterada no cotidiano escolar, tecida por discursos que reverberam “verdades” a todo instante, criam uma teia microfísica de conhecimento e poder, como alerta Foucault (2008), posto que o discurso revela a vontade de verdade existente para cada sujeito, uma vez que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (idem, 2008, p.10). Assim, também nos “ditos” e nos “não-ditos”, aparentes detalhes das práticas curriculares, as hierarquias, os sistemas de dominação, a colonialidade do poder, salientada por Grosfoguel (2008), acontecem também nas minúcias das práticas e se entrecruzam como fios num tear. Dos muitos fios do tear escolar, podemos puxar o da deslegitimação de determinados saberes por meio da colonialidade, procurando entender como são vistas pelos educandos algumas das relações de poder por eles vividas ou observadas. Nossas percepções empíricas e estudos anteriores nos levam a (re)conhecer que certas práticas docentes podem vir a deslegitimar os conhecimentos dos educandos, inúmeras vezes marcados com o estigma do não saber, por meio da apresentação de conteúdos descontextualizados e de métodos inadequados que acabam por reforçar a exclusão. Já em outras práticas docentes, percebemos que há a utilização consciente do poder como ferramenta básica de dominação segundo a lógica da colonialidade. A dominação colonial representou uma iniciativa política macroestrutural e microestrutural de dominação lingüística, epistemológica, moral, cultural. Da macro à micro política, a colonialidade se desdobra na cultura em relações de poder que tendem a dominação em todas as esferas da vida pública e cotidiana. A colonialidade transcende Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6777 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares a dominação colonial e configura-se como um elemento da cultura, gerando relações em que alguns sujeitos detêm o poder de decisão sobre a ordem pública, as normas para os cotidianos e as práticas curriculares, tendo lugar estratégico na luta discursiva por hegemonia, imposição e controle dos modos de fazer ciência, modos de ver, de pensar e ser no mundo. As hierarquias são inúmeras, de gênero, orientação sexual, trabalho, propriedades, títulos, linguagens, classe social..., o que se reflete no texto de Júlia: A desigualdade social é uma coisa muito grave, porque tem gente que gosta de ser um melhor do que os outros. Exemplos: os policiais eles tratam os pobres pior do que os ricos [...] rico pode até ser preso mas não é tão esculaxado como os pobres [...] na escola também existe isso quem tem mas direito e quem tem dinheiro estuda melhor em escola particular, mas esses metidos a serem ricos são piores que os pobres, fumas, traficam, as vezes tem tudo mas robam também, mas na escola não tem muito isso. (Júlia, DSVE) Analisando a escrita de Júlia e as demais redações dos sujeitos pesquisados no cotidiano escolar em questão, optamos por destacar brevemente a escrita e a experiência de escrever como instrumentos de poder que assume relevo na cultura escolar. Tal destaque para o ensino da escrita não é algo recente, posto que ainda nas primeiras experiências educativas oficiais vividas em nosso território, os jesuítas tinham a missão de educar os indígenas segundo um projeto de catequese e de civilização dos povos ditos selvagens, substituindo as línguas e linguagens dos povos que aqui viviam por outras instituídas no modelo de racionalidade europeu. A língua portuguesa, oral e escrita, foi sendo imposta como meio de dominar, de melhor controlar. Nesse processo de imposição das concepções educativas jesuíticas sobre as concepções educativas – consideradas inexistentes – de grupos indígenas, Ferreira Jr. e Bittar (2004) apontam a criação de “casas de bê-á-bá”, onde as crianças indígenas passariam a conhecer os preceitos da religião católica e ainda aprenderiam a ler e a escrever para participarem de uma cultura grafocêntrica até então desconhecida. De tal modo, catequese, civilização e ensino das letras eram projetos relacionados e que visavam à inscrição da racionalidade do Império português em terras coloniais e a consequente manutenção do poder. Sobre a intrínseca relação entre as práticas de escrita e escola, Vidal afirma: Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6778 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares [...] os objetos e produtos do escrever ocupam um lugar significativo no conjunto das práticas escolares e administrativas da escola. Os vestígios dessa economia escriturária, proliferam, no âmbito escolar, sob a forma de resultados das relações pedagógicas (o exercício e o diário de classe, por exemplo); de resíduos das ações gestoras (os históricos escolares e os processos, dentre outros); de efeitos de construção de saberes sobre o aluno, o professor e o pedagógico (fichas antropométricas, relatórios e exames), ou, ainda, de derivações de uma prática escritural escolar (o jornalzinho de alunos e os boletins de professores) (VIDAL, 2009, p.31). Assim, nossa cultura – e especialmente a nossa cultura escolar – prioriza, como aponta Certeau (1994), a economia escriturística, que atribui um papel importante àqueles que produzem o texto e o lugar da mera recepção aos demais. No caso das redações analisadas, embora os educandos escrevam, tal escrita geralmente não tem visibilidade, já que não corresponde à norma culta de nossa língua e, correntemente, em nossas culturas escolares, espera-se que os educandos escrevam segundo o modelo padrão. Embora acreditemos que o ensino da norma padrão da língua portuguesa deve ser entendido, sobretudo, como um direito – já que pode possibilitar novas formas dos sujeitos se colocarem no mundo, expressando o que pensam e utilizando o domínio da língua como mais uma arma para reivindicar condições mais dignas de vida e de organização da sociedade – nos fazemos críticos à negação dos demais conhecimentos. Diante da negação dos saberes que não são elaborados ou que não são legitimados por nossas instituições escolares, podemos indagar: “o que podem nos ensinar os sujeitos que não dominam a língua escrita entendida como oficial? Vivendo a língua em sua dimensão usual, cotidiana, esses sujeitos que elaboram conhecimentos sobre ela, sem a dominar na forma padrão, não são capazes de discutir problemas sociais que os atingem? Assumindo, então, que tais sujeitos são capazes de criarem e recriarem táticas por meio, inclusive, da língua escrita que não dominam plenamente, nos debruçaremos novamente sobre os seus textos, procurando relacioná-los com a atual lógica que configura a construção dos currículos de nossas escolas. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6779 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares CURRÍCULOS, COTIDIANOS E CULTURAS ESCOLARES NAS REDAÇÕES7 Como referido, as redações foram produzidas a partir do debate travado na aula Projeto e tinham como tema “Desigualdade social, violência e escola”. Analisá-las nos levou a observar algumas representações presentes na cultura escolar, principalmente, sobre qual seria o papel da escola, as suas possibilidades e o que deveria promover. Desigualdade social e violência, em muitas das redações, são apontadas como consequências da escolarização não realizada e em uma concepção claramente em consonância ao discurso neoliberal, que procura responsabilizar e culpar os sujeitos das classes populares pela desigualdade que os vitimiza. Nessa lógica, a desigualdade não é fruto de diferentes oportunidades e de uma ordem social injusta, mas resultante da incapacidade dos próprios sujeitos marginalizados. De acordo com tal ideia, quem não estuda, não estuda por falta de vontade ou por falta de mérito e por isso não obtém sucesso, torna-se marginalizado. A escolarização, então, é entendida como caminho certo para a conquista de um bom emprego e consequente ascensão social, como destacamos em alguns trechos das redações dos educandos: [...] a escola é fundamental, pois sem ela o ser humano não tem uma base para conseguir um bom emprego e sem um bom emprego ele não consegue fazer parte das classes médias ou altas, as pessoas que não se encaixam nas classes altas recorrem a bandidagem [...]. (Luisa, DSVE) [...] se a pessoa tem um bom gral de escolaridade pois em relação a isso para ter um bom trabalho (bom salário), uma boa moradia, roupas boas e tirando a conclusão de que a pessoa se esforça para que no futuro ela possa desfrutar de seu esforço no começo. (Carlos, DSVE) A escola poderia fazer algo para acabar com a desigualdade social e a violência, por exemplo, fazer cartais, protestar, conversar com a familia, com os amigos, fazer palestras ou montar uma peça de teatro sobre esse assunto, para as pessoas ficarem cientes e para melhorar o nosso mundo. (Sara, DSVE) 7 Certos trechos de algumas redações, dada a importância que assumiram no processo de pesquisa, se repetem ao longo de nosso texto, uma vez que o nosso intuito é fazer com que as vozes dos educandos possam ecoar em nossa escrita. Separamos esse último tópico apenas como recurso metodológico para nos determos um pouco mais nas formas como as redações refletem currículos, cotidianos e culturas escolares. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6780 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares [...] os problemas gerados, na sociedade do mundo inteiro são, causados principalmente pela desigualdade social, e por existência de educações diferentes por classes diferentes, por cotidianos diferentes e oportunidades totalmente diferentes8. [...] Existem muitas oportunidade hoje, mas, se ninguém preocura mudar o que adianta? [...] É uma questão de querer [...] (Tânia, DSVE). Nos trechos transcritos, é possível perceber que a escola é compreendida como o meio privilegiado para a promoção da mudança de ordem social e econômica, assumindo um poder de transformação idealizado, muitas vezes presente em nossas culturas escolares. Nos textos de Luisa e Carlos, a escolaridade é relacionada de forma contundente à conquista de um bom emprego, embora a realidade nos mostre que ter ou não um bom emprego não depende apenas do esforço pessoal, mas principalmente das condições concretas da nossa forma de organização. Com o desemprego estrutural, a promessa de empregabilidade após a conclusão das etapas de escolarização figura apenas como discurso utilizado para convencer a sociedade de que, como repete Tânia, existem muitas oportunidades... é uma questão de querer, da mesma forma que recorrer à dita “bandidagem” é uma consequência natural, segundo Luisa, da não-ascensão social. Embora se reconheça, novamente como explicita Tânia, a existência de “educações diferentes por classes diferentes, por cotidianos diferentes e oportunidades totalmente diferentes”, o significado de tais diferenças não é problematizado. O problema não é a diferença, mas a desigualdade. No texto da educanda, há a crença de que, sendo as oportunidades diferentes, basta escolher a “oportunidade certa” e a escolha uma mera questão de vontade. O empenho pessoal é entendido como o diferencial entre os sujeitos, como a “chave” da mudança, mas como acontece em uma dimensão individual não se reflete sobre a necessidade da transformação em prol do coletivo e no coletivo. O raciocínio neoliberal, inculcado em muitos sujeitos, parece refletir-se em alguns dos textos dos educandos pesquisados, que acreditam que aqueles que alcançam o “sucesso” souberam aproveitar as oportunidades existentes e aqueles que “fracassam” são os responsáveis por sua própria exclusão. Diante disso, podemos perceber como a 8 Destaque nosso. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6781 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares lógica do neoliberalismo tem se feito presente nos nossos currículos escolares e como seus discursos são reproduzidos e interpretados na cultura escolar. Silva nos indica algumas reflexões sobre isso: [...] o presente assalto neoliberal ao social, em geral, e à educação em particular, se apóia numa série de importantes estratégias retóricas: (1) deslocamento das causas – o eixo de análise do social é deslocado do questionamento das relações de poder e de desigualdade para o gerenciamento eficaz e eficiente dos recursos; (2) culpabilização das vítimas – a miséria e a pobreza resultam de escolhas e decisões inadequadas por parte dos miseráveis e dos pobres [...] (SILVA, 1996, p.118) Podemos reconhecer essas estratégias retóricas incorporadas em algumas das redações, como demonstramos, mas, por outro lado, os sujeitos não são meros receptores desses discursos e, por isso, mesmo quando estes se tornam hegemônicos e passam a ser incorporados em diferentes instâncias de nossas instituições, há espaço para a reinterpretação, para a crítica, como podemos perceber nos trechos seguintes: A desigualdade social hoje no Brasil é muito grande, e praticamente um preconceito ao pobre, por que hoje se o pobre for preso, o pobre não tem direito a nada, apesar que o direito ele tem mais esse direito não é respeitado [...] (Daniela, DSVE) Eu acho que a desigualdade social é terrível por que só por causa de uma pessoa estar mal vestida ou pela pessoa não saber ler ou escrever pelo fato de ela ser pobre as pessoas que tem uma boa situação financeira ficam se achando melhor que a outra, o que eu acho um absurdo porque as pessoas são todas iguais. (Tatiana, DSVE) A desigualdade social é uma coisa muito grave, porque tem gente que gosta de ser um melhor do que os outros. Exemplos: os policiais eles tratam os pobres pior do que os ricos [...] rico pode até ser preso mas não é tão esculaxado como os pobres [...] na escola também existe isso quem tem mas direito e quem tem dinheiro estuda melhor em escola particular, mas esses metidos a serem ricos são piores que os pobres, fumas, traficam, as vezes tem tudo mas robam também, mas na escola não tem muito isso. (Júlia, DSVE) Por meio de tais relatos é possível perceber que, embora o “assalto neoliberal” procure naturalizar as desigualdades sociais, os sujeitos também elaboram críticas ao modelo e reconhecem os preconceitos por ele gerados, os abismos sociais, a desigualdade de oportunidades e as injustiças promovidas por órgãos que deveriam defender a justiça, no caso citado pelos educandos, a força policial, recorrentemente apontada como instância de violência e de preconceito contra as classes populares, já Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6782 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares não mais entendidas como culpadas por serem discriminadas e marginalizadas. Em tais trechos, podemos perceber que há a reflexão sobre os mecanismos que procuram transformar o direito de todos em privilégio de poucos, ordem injusta que os educandos passam a denunciar e criticar, utilizando “artes de dizer” aquilo que tantas vezes é tornado indizível, o que é silenciado. Dizendo o que muitas vezes é silenciado, Júlia denuncia em seu texto a reprodução da desigualdade social nos meios escolares, afirmando que “o direito é de quem tem dinheiro”, aprendizagem que tantas vezes se dá com precocidade na vida de sujeitos das classes populares, aos quais se nega a segurança, as condições básicas de saúde e moradia e, como a educanda ressalta, a escolarização “não-mercadológica”. Júlia já é capaz de compreender que no contexto atual “quem tem dinheiro estuda melhor em escola particular”, pois a educação é transformada em mercadoria e as escolas devem passar a funcionar seguindo as leis do capital. Estudar em escola particular, nesse sentido, é “estudar melhor” porque a rede privada funciona com mais recursos e pode oferecer melhores serviços, lógica observada e criticada por essa educanda que insiste na condição de produtora de outro tipo de existência e de outras formas de relações sociais. Embora a proposta das redações apontasse para a problematização da relação entre desigualdade social, violência e escola em uma perspectiva global, em muitos textos encontramos também a escola sendo pensada em seus fazeres ordinários, em suas formas e normas cotidianas. Ao abordarem os “fazeres ordinários” do cotidiano, os educandos criticaram o funcionamento da instituição escolar e questionaram elementos de sua cultura, como nos seguintes trechos: Eu acho a escola muito chato afinal de contas quem foi que inventou a escola é só aula chata e ainda por cima temos que levantar sedo fala serio a única coisa boa que aqui tem e os jogos que colocaram [...] (Roberto, DSVE) Na escola precisa de quadras, professores porque isso complementa no estudo, um ensino mais avançado, acho que com mais alegria porque ai a aula não ia ficar tão chata naquela rotina sem graça, talvez até não teria tantos alunos matando aula (Tatiana, DSVE) Com o texto de Roberto, podemos perceber que a escola é por ele interpretada como um conjunto de aulas (e de aulas desinteressantes na visão do educando), o que demonstra que dos diversos aspectos da cultura escolar, o horário reservado às Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6783 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares disciplinas assume relevo no que se refere aos tempos e espaços produzidos e organizados segundo a cultura da escola. Hegemonicamente, a sala de aula é compreendida como espaço e tempo privilegiado de transmissão9 do saber e, por conseguinte, é durante o desenvolvimento das disciplinas que os corpos precisam ser mais controlados, com exceção da disciplina de educação física, tantas vezes a preferida dos alunos, que frequentemente a entendem como possibilidade de experimentar outras relações com os espaços da escola e com seus pares. Já na escrita de Tatiana, vemos que tanto as quadras quanto os professores são compreendidos como complementos do estudo, talvez por ela reconhecer em sua escola a ausência de espaços físicos disponíveis externos à sala de aula – e aqui vemos a hierarquização de espaços na cultura escolar – e por perceber também as recorrentes faltas docentes em seu cotidiano. O “avanço no ensino” contrapõe-se, na visão da educanda, às práticas que, segundo ela, criam uma rotina escolar desestimulante, possivelmente a rotina de transmissão de saberes que criticamos anteriormente. Embora muitas possibilidades possam ser discutidas a partir dos textos apresentados, desfiamos aqui apenas algumas questões de uma complexa malha da cultura escolar e de como os currículos são praticados, entendendo o cotidiano como uma possibilidade para entender e interpretar a escola por outros ângulos, com outras lentes, observando o que geralmente não ocupa a centralidade de nossas cenas e ouvindo as vozes que muitas vezes são silenciadas. Observamos que os textos podem nos revelar que o currículo é praticado nos enredamentos da realidade vivida, de uma cultura incorporada e permeada por questões sociais, econômicas e ideológicas que não são apenas recebidas, mas também problematizadas, questionadas, quiçá, transformadas. 9 Mantemos o termo transmissão por entendermos que apesar de todas as críticas às relações educativas que se assemelham à “educação bancária” referida por Paulo Freire (1975), muitas práticas permanecem pautadas na transmissão e não na consideração dos saberes dos educandos por meio de relações mais dialógicas. Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6784 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares CONSIDERAÇÕES FINAIS Pesquisar o currículo praticado em uma determinada cultura escolar representa um desafio e, ao mesmo tempo, apresenta inúmeras possibilidades, uma vez que tal estudo pode contribuir com a reflexão sobre o quanto as propostas curriculares são influenciadas pelos fazeres dos sujeitos, que não a recebem passivamente e nem incorporam dela todos os elementos. Por outro lado, também leva-nos a compreender que os sujeitos não agem somente de acordo com suas vontades, até porque suas vontades também são forjadas, formadas e conformadas no interior de uma cultura. Assim, o currículo que se pratica não pode ser compreendido nem como a transposição do que é oficialmente estabelecido como currículo e tampouco pode ser entendido como expressão máxima da ação dos seus praticantes. O currículo praticado envolve complexidade e para compreender um pouco tal complexidade, uma das possibilidades é o estudo da cultura escolar pelos fios do cotidiano. Observando alguns fios do emaranhado do cotidiano que vão formando a cultura escolar e sendo por ela formados, podemos destacar a importância da dimensão da linguagem nos contextos escolares e na busca por hegemonia dentro desses espaços. Ressaltamos, por isso, que a exposição dos trechos das redações produzidas pelos estudantes sobre as leituras que fazem do tema “Desigualdade social, violência e escola”, resulta de uma prática que busca legitimar o lugar da produção que os educandos ocupam, mas que tantas vezes parece negado ou invisibilizado. Por meio da atividade, os sujeitos que tantas vezes são considerados como incapazes de debater, de pensar de forma reflexiva, são convidados a exporem seus conhecimentos. Quando vistos como meros depósitos, estes conhecimentos podem não vir à tona, mas não tornam-se inexistentes, pois, como nos lembra Chico Buarque: “mesmo calada a boca resta o peito”. Enfim, as nuances da pesquisa que aqui foram apresentadas não pretendem ser conclusivas, posto que são apenas nuances, mas visam fomentar a reflexão sobre as formas como os currículos são praticados no cotidiano segundo os pressupostos da cultura escolar e também segundo as táticas inventadas pelos sujeitos. Tais relações nos ajudam a compreender que, embora as práticas curriculares possam contribuir com mecanismos de invisibilização de conhecimentos e de regulação dos atos de educandos Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes 6785 Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações escolares e educadores, é sempre possível buscar brechas que permitam o ensaio de táticas de emancipação, pois como vimos nos trechos de alguns educandos, ainda é possível o inconformismo, a denúncia, o desejo de mudança e de melhoria da escola, basta lutarmos pela reinvenção da sociedade e da vida a partir de nossos invisíveis cotidianos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. __________. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. 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Para esta tarefa escolhemos alguns autores que contribuem com fundamentações teóricas para a construção dos argumentos e diálogos que nos possibilitam apresentar nossa compreensão relativa a essa temática. Salientamos que nossas pretensões de validez usam como arcabouço teórico os autores: Habermas (1998 e 2002) e Bakhtin (2000, 2002 e 2003) – em relação à linguagem; Certeau (1994) e Canclini (2008) – em relação à história e a cultura; Gabriel (2003 e 2009) e Monteiro (2006, 2007a, 2007b e 2009) – em relação ao currículo e ao ensino de história. As concepções teóricas destes autores nos ajudam a traçar o percurso e a nos colocar em movimento nos caminhos que trilhamos. Nessa perspectiva nosso texto é circunstanciado pelas nossas reflexões sobre enunciados destes campos de conhecimento no que se refere à constituição e caracterização da história ensinada. PALAVRAS-CHAVE: Currículo, linguagem, cultura, história ensinada. 1. Introdução Este artigo tem o objetivo de apresentar o que compreendemos como história ensinada em um espaço constituído por múltiplas forças que constrangem e tangenciam a ação do professor e assim delimitam uma faceta de seu trabalho. Para refletir a questão trazemos os subsídios de nossa pesquisa de doutorado – Ensino de História e Cultura Letrada: os eventos de letramento na história ensinada – que se caracteriza como um estudo de caso, do tipo etnográfico. A realização da pesquisa ocorreu em duas salas de aula de história do 6º ano de escolaridade do Ensino Fundamental, uma escola municipal localizada no município de Queimados e em uma escola estadual localizada 1 Professora da UFRuralRJ, Doutoranda UFRJ, orientadora Prfª Drª Ana Maria Monteiro, Membro do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC). [email protected] Patrícia Bastos de Azevedo 6791 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem no município de Nova Iguaçu. Ambos os municípios pertencentes à Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa ocorreu no período de março a julho de 2009. 1. O sentido do ensinado Buscamos refletir sobre o papel do ensinado, e sua relação com as contingências, os tangenciamentos e os constrangimentos que são exercidos no ato da história ensinada. Concebemos o professor de história como o protagonista da história ensinada. Desta forma pensamos o aluno como protagonista da história aprendida. Não pretendemos reduzir o processo ensino/aprendizagem, visto que o compreendemos como uma ação circular que forma e é formada nos diversos níveis e espaço de educação. Estamos em nossa afirmação recortando e delimitando nosso centro de interesse e salientado o nosso foco de olhar. Não negamos que outros sujeitos são agentes do ensinado, ou melhor, tangenciam o percurso de execução desta ação. Podemos perceber a influência e interferência explicita ou não de outros sujeitos para além da relação professor/aluno.Um exemplo de influência são os autores dos livros didáticos que exercem uma força sobre o ensinado, mesmo não estando presente no ato efetivo. Monteiro (2009) nos ajuda a compreender esta relação de influência exercida pelos autores e editoras via livro didático: Assim, os autores ao produzir livros didáticos, interpretam as orientações oficiais, ou seja, as reelaboram segundo suas idéias pedagógicas e, ao mesmo tempo, incorporam expectativas dos professores, buscando atraí-los para o seu consumo. Discursos oficiais e não oficiais são hibridizados, entre eles: orientações sedimentadas sobre conteúdos indispensáveis, bem como formas de organização curricular, muitas vezes reproduzidas de modo naturalizado pelos professores (p. 176). Podemos perceber que a autora traz para o debate outros atores que influenciam a ação do ensinado potencial que habita o livro didático. As concepções de ensino, os discursos oficiais e a organização curricular são outros espaços de influência que emergem no espaço micro da sala da aula, fazendo do ensinado uma dinâmica mais densa e multifacetada. Patrícia Bastos de Azevedo 6792 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem Retornemos a questão de influência exercida pelo livro didático. A adesão ou não do professor a história contida neste instrumento pedagógico sofre diretamente a influência da intenção que permeia o fazer deste professor no ensinado. Em nossa pesquisa de campo o professor 22 afirma em sua entrevista3: “Livro é indispensável... leitura é indispensável... porque não adianta o professor ficar na sala de aula escrevendo no quadro, cuspindo conceito... se o aluno não chega em casa e firmar estes conceitos... e firmar esta construção toda feita em sala de aula com a leitura do livro didático...” “Um suporte indispensável, por mais que eu não utilize todo de fato... não pro 6º ano, o 6º ano o precisa... o 6º ano precisa de material, precisa de livro... justamente para visualizar o que o professor ta falando, dai voltando o que eu já falei... um livro colorido, com textos complementares...” A fala do professor está permeada de indícios4 da forma como ele usa o livro e a sua compreensão sobre o mesmo. 2 afirma que o livro é um suporte importante para o aluno, como um meio de fixação, consolidação do ensinado pelo professor. Vamos ler novamente o trecho da entrevista em que podemos observar os indícios que nos fazem refletir sobre a questão: “se o aluno não chega em casa e firmar estes conceitos... e firmar esta construção toda feita em sala de aula com a leitura do livro didático...”. Na perspectiva deste professor o livro é um suporte indispensável, mas está à serviço de sua ação, não como um agente independente, mas presente na dinâmica do ensino. No trecho que leremos a seguir este indício torna-se mais claro e nos ajuda a corroborar a afirmação que estamos apresentando: “justamente para visualizar o que o professor ta falando... dai voltando o que eu já falei... um livro colorido, com textos complementares...”. A fala do professor nos aponta que o livro tem seu lugar e valor no ensinado, porém de fato o protagonismo deste processo está nas mãos do professor. O livro é um suporte que serve à intencionalidade que permeia o momento da história 2 Usamos 1 e 2 para designar os professores participantes de nossa pesquisa. 3 Entrevista realizada em 17.06.2009. 4 Os índicos são as pistas que como caçadores buscamos para construir uma narrativa significativa, olhando nas entre linhas “as pistas mudas” que compõem “uma série coerente de eventos” (GINZBURG, 1989, p. 152). Patrícia Bastos de Azevedo 6793 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem ensinada. Reafirmamos que compreendemos esta ação como limitada e constrangida pela macro e micro estrutura que tangenciam a escola e o ensinado, mas frisamos nossa premissa que a história ensinada tem no professor seu agente primeiro e principal. Tardif (2007) reflete sobre a racionalidade que fundamenta o saber do professor, destacando que não é qualquer processo de racionalidade que pode ser vinculado a este saber, esta racionalidade está baseada na função primeira e fundante da profissão docente – o ensinar, isto é, o objetivo do fazer que mobiliza os saberes do professor em primeiro lugar é levar seu aluno a compreender e aprender determinado conteúdo ou conceito. O professor 2 ao apontar o livro como suporte pedagógico ele o indica como um elemento a serviço do ensino. A fala do professor e a pretensão que ela traz é o cerne da questão, o livro para este professor é mobilizado na construção de sua aula com a finalidade de ajudar o aluno a visualizar a explicação proferida na sala de aula. Na mesma entrevista, anteriormente, ele aponta uma questão que corrobora o que afirmamos – que o ensinado se materializa mediante a constrangimentos próprios do espaço escolar. “Eu dou aula para uma turma que não tem livro... que é o 8º ano aqui... que o processo de avaliação deles eu procuro fazer mediante aquilo que eu falo e escrevo... eu sei que em relação ao outro 8º ano que tem livro a coisa é completamente diferente... isso cria um desequilíbrio gigante, assim ... eu tenho certeza que uma turma tem condições... que uma turma tem condições intelectuais melhor que a outra...” O professor afirma que as condições de trabalho entre suas duas turmas de 8º ano são diferenciadas, visto que uma possui livro e outra não. Essas condições distintas modificam segundo o professor seu trabalho na história ensinada. Gostaríamos de destacar que este professor atua em uma escola pública da rede estadual do Rio de Janeiro, localizada no município de Nova Iguaçu. A remessa de livros compradas pelo Plano Nacional do Livro Didático chegou em 2008. Os livros são comprados a cada três anos. Nossa pesquisa de campo se realizou no segundo ano após a compra, este fato tem impacto direto na distribuição e acessibilidade dos alunos ao livro. Durante o passar dos três anos os livros vão gradativamente desaparecendo da escola. O desaparecimento ocorre por diferentes fatores que não aprofundaremos neste texto, porém este fato – o Patrícia Bastos de Azevedo 6794 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem desaparecimento dos livros – tem efeito direto sobre as condições do desenvolvimento do ensinado, segundo o professor, pois ocasiona a falta de livros para alguns alunos. Em uma sociedade estratificada e desigual, o acesso a determinados bens de consumo, neste caso o livro, pode influenciar as condições do aprendido. Segundo 2 este fato é crucial na dinâmica do ensinado e logo no efeito do aprendido – isso cria um desequilíbrio gigante, assim... eu tenho certeza que uma turma tem condições... que uma turma tem condições intelectuais melhor que a outra... – a fala do professor aponta uma questão, a nosso ver, central no debate sobre o ensinado, as questões estruturais em que os processos de ensino/aprendizagem estão inseridos. O “ensinado” está permeado pelo mundo da vida e pelas relações de poder que o compõem. Pensar história ensinada distante das dinâmicas sociais micro e macro que permeiam o espaço de ensino é produz um apagamento das forças de influência que agem sobre o ensino. Ignorar o “situado”(APLLE, 2006) é não compreender que o ensinado está diretamente ligado ao espaço-tempo em que se materializa. Nossa compreensão de história ensinada vai para além do espaço micro do fazer, é compreendida como um “espaço-tempo híbrido” em que o ensinado é burilado e se constitui em práticas multifacetadas e interdependentes. Macedo (2006) afirmar “Entendo ser mais promissor, do ponto de vista teórico, buscar pensar o currículo como espaço-tempo de fronteira, permeado por relações interculturais e por um poder oblíquo e contingente” (p. 106). Como afirmamos anteriormente compreendemos o ensinado como materialização de um pano de fundo sócio-econômico-cultural maior e dinâmico, uma tessitura muitas vezes fugidia e esgarçada, em que o professor saca de diferentes referenciais constituindo uma ação complexa. É nessa multiplexidade que o ensinado ganha corpo. 1.1. O ensinado e sua relação com o micro e o macro Partindo da premissa que a história ensinada se constitui em um espaço-tempo dialogamos com Ball (2006) e sua relação com o contexto macro de influência que se operacionaliza e constitui uma face do micro. Nos apropriamos desta reflexão para pensarmos a produção da história ensinada, na qual todos os sujeitos da ação são Patrícia Bastos de Azevedo 6795 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem responsabilizados e avaliados cabendo a eles uma construção de uma possível solução para os problemas que se apresentam no fazer. As responsabilidades de gestão são delegadas e as iniciativas e a resolução de problemas são super-valorizadas. Por outro lado, são colocadas em práticas novas formas de vigilância e auto-monitoramento, como por exemplo, sistemas de avaliação, determinação de objetivos e comparação de resultados (p. 109). O autor aponta que, diante de um problema para uma resolução os sujeitos do problema devem partir de um suposto “todos” e equacionar e promover assim uma saída supostamente coletiva que promoverá a elevação da qualidade. A construção de uma solução deve corrigir as distorções presentes no problema que diminui a qualidade do produto. A correção eficaz será percebida em formas uniformizadas de avaliação que servem de vigilância do fazer e instrumento para a reconfiguração das estratégias quando estas se mostrarem ineficientes. Dialogando com Ball (2006) aproximamos suas reflexões das nossas relativas ao ensinado, destacamos o episódio que denominamos de “Como fazer uma prova de múltipla escolha”. O fragmento que trazemos neste artigo tem o objetivo de exemplificar nossas reflexões e apresentarmos uma materialização destas contingências macro na história ensinada. Uma das escolas que investigamos realiza um sistema de avaliação bimestral concentrada, isto é, todos os alunos do 6º ao 9º ano fazem juntos as provas de um bloco específico de disciplinas em um único dia. Os alunos são organizados em fileiras alternadas em que o aluno ao lado é de um ano de escolaridade diferente. Os professores se dividem para aplicar a prova. Isto significa que o professor que se encontra na sala pode ou não ser responsável pelo ensino da disciplina avaliada. As provas são obrigatoriamente de múltipla escolha, e iguais para todas as turmas de acordo com a disciplina e o ano de escolaridade. A correção é realizada pelo professor da turma. Este ritual é denominado pela escola como “simulado” ele corresponde a 50% do conceito do aluno no bimestre. Este ritual tem o objetivo de formar o aluno para as avaliações nas quais eles são submetidos ao longo de sua formação. As avaliações em questão são aplicadas pelo Estado – seja na esfera estadual ou federal. Estas avaliações sistematizadas e aplicadas Patrícia Bastos de Azevedo 6796 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem pelo Estado também classificam a escola e é um dos instrumentos que definem as verbas destinadas e os abonos salariais dos professores. “Vou entregar a prova agora e queria dar um aviso a vocês... um aviso não um recado... que não é bom... uma percepção minha que eu não fiquei feliz***5 tanto é que *** para mim um pensei que vocês fossem se sair melhor na prova ... se dariam muito bem na prova... vocês estavam acompanhando desde o início... fizeram exercício, leram o livro, viram o vídeo... em fim fizeram várias atividades *** Fizeram aquele teste em dupla que se deram relativamente bem... Mas na hora da prova vocês se confundiram... Eu fiquei meio assustado porque foi uma prova que vocês não escreveram nada... foi toda de múltipla escolha... Ai eu quero ver com vocês... eu vou entregar as provas... e a gente vai refazer esta prova ... Porque talvez vocês tenham tido problema na hora das alternativas, talvez vocês não tenham entendido bem as alternativas...” Diante do resultado da turma, que não foi o desejado pelo professor, ele dedica suas duas aulas, de 50 minutos cada, daquela semana a ensinar os alunos a fazerem uma prova de múltipla escolha. Ele acredita que o problema da turma estava no formato da avaliação, já que nas avaliações anteriores eles se saíram melhor. O fragmento que destacamos nos ajuda a compreender como estas estratégias de gestão educacional macro influenciam o desenvolvimento do ensinado e interpenetram a construção de sentidos na história ensinada. Como nos aponta Apple (2006) entender o “situado” é fundamental para compreendermos os conhecimentos que são ensinados. O professor nesta aula ensina mais que história, ele ajuda os alunos a operacionalizarem estratégias para resolverem um problema real e imediato – como fazer uma prova de múltipla escolha. A organização desta escola é profundamente atingida por uma demanda externa de mensuração e ranqueamento a que as escolas públicas brasileiras estão submetidas. Esta realidade sócio-econômica produz práticas que visam dar sustentação e alternativas de enfrentamento ao desafio embutido neste processo. Produzindo assim diversos conhecimentos manifestos e ocultos que tangenciam o ensinado e o aprendido. Ainda em relação ao “simulado” e a sua estruturação, as provas são organizadas em conjunto com os professores das diversas disciplinas. A disciplina história é ensinada no 5 *** Marcação de ruído que impedem a transcrição do áudio. Patrícia Bastos de Azevedo 6797 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem 6º ano por dois professores e eles alternam a elaboração deste instrumento. Na aula anterior ao simulado do 2º bimestre o professor 2 destaca um conteúdo para os alunos relativos “servidão coletiva6” e ele afirma: “O PROFESSOR X TRABALHA MUITO ESTA QUESTÃO E VAI CAIR NO 7 SIMULADO...” Podemos perceber neste fragmento que o ensinado está inserido em um contexto maior e esse contexto tangencia o fazer do professor e suas intenções e suas ações na prática cotidiana. Esta aula, a qual pertence o fragmento, tem o objetivo central de “fixar” uma série de conceitos e conteúdos visando à avaliação que ocorrerá na semana seguinte. Ao chamar a atenção dos alunos para a questão da “servidão coletiva” o professor está ponderando sobre a prova e seu conhecimento acerca de outros atores escolares que interferem diretamente em sua ação de ensino, dialogando com os conhecimentos manifestos e ocultos presentes na história ensinada por ele. Criando estratégias de superação de uma realidade seletiva, avaliativa e meritocrática existente, que impacta tanto ele quanto aos alunos. Em relação ao conteúdo ensinado pelos professores observamos uma coincidência aparente – ambos trabalharam no primeiro bimestre – introdução ao estudo da história, pré-história e civilizações antigas. Observamos que este fato estava relacionado ao livro de apoio que os professores usavam. A turma do professor 2 recebeu o livro no início do período letivo e nas aulas o professor usava o livro como apoio para suas explicações e na feitura dos exercícios executados pelos alunos. A turma do professor 1 recebeu os livro no dia 12 de maio, mesmo assim ele usava anteriormente um livro – “História” de José Roberto Martins – como suporte para os textos que escrevia no quadro no início de cada aula. O livro para ambos os professores possui não só a função de apoio didático, mas também exerce um papel que direciona o conteúdo a ensinar e a disposição dos conteúdos. A falta do livro didático nos primeiros meses de aula produz um roteiro pedagógico8 – professor 1 – marcado pela escrita no quadro. Suas aulas iniciam com a 6 Aula do dia 16/06/2009. 7 Relato feito à pesquisadora após a aula – anotação no caderno de campo do dia 31/03/2009. Patrícia Bastos de Azevedo 6798 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem escrita de um texto síntese no quadro acompanhado de uma explicação relativa ao mesmo. O texto síntese é durante a explicação a base e o roteiro que o professor usa em sua aula e nos exercícios que aplica. “As diferenças no interior das sociedades9 A espécie humana vive em grupo. Os grupos humanos mais amplos recebem o nome de sociedade. O homem sempre viveu em sociedade e depende dela para viver. As diferentes sociedades Para quem estuda as sociedades, as diferenças sociais são as mais importantes. Na televisão, mostra as pessoas vivendo no luxo e no conforto. Mas os noticiários mostram pessoas vivendo na miséria, morando nas favelas sem ter comida, sem ter remédio, sem ter estudo e diversão.” Momento Tempo Discrição da aula do dia 10/04/2009 1º 11’51” Escrita do texto síntese no quadro. 2º 4’30” Aguardando a turma copiar o texto escrito no quadro. 3º 17’08” Explicação 4º 15’05” Exercício e correção. O roteiro pedagógico das aulas do professor 1 até o recebimento do livro didático difere das aulas do professor 2, tanto pelo tempo em sala de aula, visto que 1 possui 4 tempos de 50min em cada turma por semana e 2 a metade deste tempo. Porém com o recebimento dos livros didáticos o professor 1 produz um roteiro didático muito semelhante ao executado pelo professor 2. A aula torna-se mais centrada na explicação e o livro didático.tornasse nesta nova organização do roteiro seu suporte na construção de seus argumentos. O livro também tornasse a fonte dos exercícios realizados em sala e em casa pelos alunos. 8 Usamos a expressão roteiro pedagógico no sentido da organização que os professores dão a dinâmica de suas aulas. 9 Texto da aula 10/03/2009 Patrícia Bastos de Azevedo 6799 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem O livro didático apresentaria uma historiografia que já sofreu um processo didatização.(MONTEIRO, 2009). Neste processo o professor completa e aprofunda o texto na explicação oral proferida em sala adaptando a realidade que o circunda. A explicação em nosso campo de investigação se apresenta como a principal atividade do ensinado, canalizando os esforços do professor. O livro apresenta-se como referência e suporte de estudo para os alunos. O professor 1 também usa o livro e o texto como argumento de autoridade. Os textos sínteses e depois o livro são apresentados como argumentos que legitimam a explicação por ele proferida. “Olha só... olha como o texto define...ele define o seguinte... os grupos humanos mais amplos... recebem o nome... de que?... SOCIEDADE10... O seu argumento tenta persuadir o aluno a compreender e aceitar a explicação como pretensão de validez. O dialogo que ele tece com a turma vai sendo permeado pela sua aproximação com a realidade vivida e experimentada por eles e com o texto síntese. “A nossa turma é uma sociedade?... É11... é?... É... vocês não acham que nossa sala é um grupo muito pequeno para se chamar sociedade?... não seria mais correto dizer que nossa sala é parte de uma sociedade...” Este exercício de argumentação realizado pelo professor 1 está situado em um todo maior que visa levar o aluno a aprender e fixar o sentido histórico do ensinado defendido por ele. No exercício de explicar a história o professor solicita a adesão da turma para a tarefa. Quando pergunta aos alunos – “A nossa turma é uma sociedade?” – ele busca mobilizar a compreensão que os alunos obtiveram do texto apresentado e parte desta compreensão para tecer seus argumentos a cerca do conceito em questão. A pergunta fixa a atenção da turma que se direciona a promover o argumento que o professor está apresentando. A história ensinada não se faz apenas pela ação do professor. Ela se efetiva neste todo em que o labor do ensinar se executa. Dialoga e é tensionada pelo mundo da vida e 10 Resposta em coro da turma. 11 Resposta em coro da turma. Patrícia Bastos de Azevedo 6800 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem suas dinâmicas sociais, culturais e econômicas. Também se mescla com as percepções e visões sobre o mundo e sobre a história de vida e acadêmica que este professor possui. A história ensinada tem um papel social e pedagógico, e como tal produz como já afirmamos, um conhecimento que se materializa na prática, dificultando sua compreensão no ato de pesquisa, pois não se estrutura de fato uma estabilidade para análise. Visto que o ato de ensinar se materializa na emergência do espaço da sala de aula, sendo um constante ineditismo parcial12. A construção de um conhecimento que transpassa o espaço físico da escola e o espaço conceitual da História é o combustível motriz da história ensinada. Nessa perspectiva, a história ensinada está situada no espaço do entre saberes e dos fazeres dos professores (MONTEIRO, 2007). Desta forma a história ensinada é permeada pelas questões da cultura escolar. Nessa perspectiva a história ensinada está situada no mundo da vida e pelas contingências que atravessam o ensinado. A validação do saber historicamente construído tangencia o argumento constituído pelo professor, isto é, nem todo argumento poderá ser usado na construção do sentido pedagógico na história ensinada, há compromissos sociais e educacionais embutidos no ensinar, que se constituem no espaço-tempo. Em nossa perspectiva a história ensinada traz consigo elementos das diversas esferas que a constitui os argumentos estabelecidos nas negociações de sentidos defendidas pelo professor, assim como a pretensão de validez que ele enuncia em sua ação de ensino. O argumento é a linha que junta as pretensões de validez e possibilita a materialização de um todo harmônico ou não que busca dar sentido a história ensinada. Espaço-tempo Iniciamos esta seção dialogando com Elias (1998) e suas reflexos sobre o tempo. Conceito central ao pensarmos história e conseqüentemente a história ensinada. O conceito de tempo, no uso que fazemos dele, situa-se num alto nível de generalização e de síntese, que pressupõe um riquíssimo patrimônio social de saber no que concerne aos métodos de mensuração das seqüências temporais e às regularidades que elas apresentam. É claro que os homens dos estágios anteriores não podiam possuir esse saber, não porque fossem menos “inteligentes” do que nós, mas porque esse saber exige, por natureza, muito tempo para se desenvolver (p. 35). 12 Usamos “parcial” pois compreendemos que algumas ações se estabilizam no roteiro pedagógico, mas o inusitado está sempre presente na dinâmica do ensinar. Patrícia Bastos de Azevedo 6801 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem Nesta perspectiva o tempo segundo Elias é uma construção humana que se processou ao longo do próprio tempo, modificando sua percepção e materialização ao longo da história e continua no processo permanente de significação. Tomando como pressuposto, as reflexões de Elias, para pensarmos a operação de compreensão do tempo-espaço, compreendemos que estes se localizam em uma ação cognitiva tangenciada pela própria temporalidade que o faz produto e produtor de seu presente, isto é, o que definimos como “tempo” hoje está imerso na significação/síntese que forma este conceito. Logo podemos afirmar que a palavra tempo é um signo ideológico. Compreendido de diferentes formas permeado pela composição do campo discursivo que o profere. Esta compreensão/síntese apontada por Elias nos aproxima do próprio conceito de espaço e da compreensão deste signo conceitual que sem sombra de dúvida é ideológico. Para pensarmos este segundo conceito trazemos para dialogar conosco Certeau (1994) e a definição que este pensador traz sobre espaço. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que ai se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres (p. 202). Dialogando com Certeau e Elias, ousamos afirmar, que a história ensinada materializa-se em um espaço-tempo, como tal tem sua definição e compreensão tangenciada por esses dois signos ideológicos (BAKHTIN, 2002) que a constrangem e formam suas facetas materializada no espaço escolar da sala de aula. Pensar o surgimento da disciplina no contexto escolar e suas transformação ao longo do espaço-tempo nos ajuda a compreender como a história ensinada se constitui enquanto saberes e práticas do professor no ato de ensinar tangenciado pelo espaçotempo de constituição. O professor é um sujeito do seu espaço-tempo e seus enunciados são compostos por ecos que permeiam esta realidade. Retornemos a nossa afirmação – a história ensinada materializa-se no espaçotempo – desta forma sua identidade é marcada pelas relações sociais e de poder que Patrícia Bastos de Azevedo 6802 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem constituem esta realidade que a circunstancia. Por generalização naturalística podemos presumir que em sua grande maioria os professores que atuavam no século XIX construíam suas práticas pedagógicas marcadas pelas questões das identidades nacionais, assim como os professores que atuam no início do século XXI são questionados e constroem seus argumentos explicativos permeados pelas questões de seu espaço-tempo. Podemos perceber esta relação espaço-tempo nas falas dos professores, que destacamos a seguir: 1: se conscientizem que o Brasil teve 300 anos de escravidão... porisso que existe o preconceito racial. 2: como uma ferramenta pro o aluno entender o mundo... de que modo... interpretando as coisas que acontecem entorno dele... né... não só nas questões que são mais globais, mas na questão mais pessoal... eu sempre digo pra eles... que eu entendo que a história serve para mostrar que nós somos diferentes... e que... portanto nós devemos respeitar uns aos outros O professor 1 dialoga com uma questão presente na atualidade e nos debates curriculares e acadêmicos – a questão de raça, mais especificamente a negra. Observamos que o debate apontado pelo professor, de forma sintética em sua entrevista, traz consigo traços marcantes dos elementos atuais referentes às políticas curriculares e a luta de afirmação por um espaço, marcado por grandes embates e militância do movimento negro brasileiro, como também por questões subjetivas de sua própria identidade como pessoa.. O professor 1 é negro, morador da Baixada Fluminense, é inegável que sua fala e argumentos estão permeados de sua subjetividade e constituição como pessoa no mundo da vida. O professor 2 dialoga com outras questões que habitam também o espaço-tempo que constitui o mundo da vida em que está imerso. O mundo glabalizado e múltiplo que invade a vida na atualidade, as questões pertinentes à identidade e alteridade. A construção de uma aceitação do diferente está permeada de elementos sociais que desafiam o professor. Elementos estes que povoam debates dos campos da história, educação e cultura. Sua fala traz também questões da própria produção do conhecimento histórico, pois afirma “que a história sirva para a interpretação das coisas”, uma forma de ler e escrever o mundo. Hall (2005) afirma que “toda prática Patrícia Bastos de Azevedo 6803 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem social tem condições culturais ou discursivas de existência. As práticas sociais, na medida em que dependam do significado para funcionarem e produzirem efeitos, se situam ‘dentro do discurso’, são ‘discursivas’”. A afirmação proferida pelo professor na entrevista se aproxima da concepção de prática social e conhecimento apresentada por Hall (2005). O argumento apresentado por este autor se inscreve em um texto que tem como premissa à “centralidade da cultura”. A construção conceitual apresentada por Hall se constitui no âmbito dos estudos culturais. Este debate se materializa em um espaço-tempo13. É inegável a relação do ensino de história com as questões de identidade e cultura, também não podemos negar seu compromisso de origem com a modernidade e os modos de pensar a realidade inerente a este pertencimento. A fala do professor 2 se inscreve nesse debate epistemológico. Em sua entrevista o professor não aponta o referencial que usa para construir o argumento que apresenta, nossa percepção indica que sua validez está baseada em reflexões múltiplas que são oriundas de seu mundo da vida. Especulamos que provavelmente os argumentos têm sua origem principal em sua formação inicial e continuada dentro do campo da história, pois percebemos nos indícios que seu argumento é focado na história e não no ensino ou na educação – que eu entendo que a história serve para mostrar que nós somos diferentes – o enunciado frisa que seu entendimento é sobre a história, nessa perspectiva é pela história que ele está tecendo o argumento apresentado na entrevista relativo a importância da disciplina no espaço escolar. Nossa concepção de espaço-tempo também é marcada por nosso arcabouço conceitual e por nossa história de vida. Mesmo permeada pelas questões de cultura não negamos nosso pertencimento e filiação a uma concepção de racionalidade processual, que se estabelece discursivamente no mundo da vida. Logo nossa concepção de espaçotempo está permeada da pretensão de que estes signos se constituem nas relações sociais mutáveis, mas também nas concepções práticas lingüísticas. As práticas lingüísticas formam a pragmática que orienta nossa concepção de espaço-tempo. Quando falamos de história ensinada estamos delimitando um espaço-tempo, logo não é qualquer espaço – real ou virtual. Não é qualquer tempo ou todos os tempos. 13 O campo de teorização e investigação conhecido como Estudos Culturais tem sua origem na fundação, em 1964, do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra (SILVA, 2009, p. 131). Patrícia Bastos de Azevedo 6804 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem Nos inscrevemos em um espaço – brasileiro, carioca e suburbano. Em um tempo tangenciado pela primeira década do século XXI. Falamos do lugar feminino, circunstanciado por dezessete anos e meio de magistério na educação básica e três anos no nível superior. Logo nossa palavra “signo” se constitui em um espaço-tempo tangenciado pelo mundo da vida que nos forma e formamos este mundo, e também refrata tantas outras concepções e significações. Nesta perspectiva compreendemos história como uma ação que é constituída pelo sujeito intersubjetivo. O professor como sujeito protagonista do ensinado que se realiza em um espaço-tempo e é circunstanciado por ele. 2. Afinal, o que é história ensinada? Compreendemos “história ensinada” como pertencente a um campo de conhecimento nomeado como Ensino de História. Como campo o Ensino de História apresenta uma série de produções que dialogam basicamente com duas áreas de conhecimento são elas a história e a educação. Rüsen (2006) aponta que o afastamento da história das questões relativas ao seu ensino vincula-se ao século XIX e aos esforços dos historiadores de transformá-la em ciência. Durante o século XIX, quando os historiadores definiram sua disciplina, eles começaram a perder de vista um importante princípio, a saber, que a história é enraizada nas necessidades sociais para orientar a vida dentro da estrutura tempo. O entendimento histórico é guiado fundamentalmente pelos interesses humanos básicos: assim sendo é diretamente na cultura política da sociedade dos historiadores. Como os historiadores do século XIX se esforçaram para tornar a história uma ciência, este público foi esquecido ou redefinido para incluir apenas um pequeno grupo de profissionais treinados (p. 8). Podemos perceber dialogando com Rüsen que a própria história está imersa nas questões de seu espaço-tempo e tangenciada pelas relações de poder. Nessa perspectiva o ensino de história perde espaço nesta área de conhecimento e encontra abrigo, limitados e parcos, na educação. Sendo a história ensinada uma produção do seu espaço-tempo revela em sua materialização as relações de poder em que está submetida, produzindo, ao nosso ver, um gênero impuro e híbrido (CANCLINI, 2008) de significado em construção, refletindo assim seu espaço de materialidade mutável e seu tempo em constituição. Patrícia Bastos de Azevedo 6805 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem O lugar da sala de aula torna-se um espaço de fronteira com argumentações desterritorializadas. Pois não é o lugar da historiografia – estabilizada na sua materialidade escrita – e também não é o lugar – do ensino como verdade fixa que busca esclarecer o (a) + (luno) (sem luz), eleva-lo a categoria de iluminado. É o espaço da construção de sentidos permeados de signos ideológicos do espaço-tempo de significação. Compreendemos história ensinada como espaço de produção que se faz como “gênero impuro” (CANCLINE, 2008) da historia e como gênero híbrido de ensino. Espaço em que o professor – protagonista do ato – tece seus argumentos transitando por momentos de escuta e surdez, de ações democráticas e autoritárias. Com momentos revolucionários, festivos e companheiros e às vezes totalmente antagônicos sendo tradicionalista, sorumbático e isolacionista. Um fazer que este professor possui uma autonomia relativa, que está a-sujeitado aos constrangimentos próprios do ofício que o “ser professor” possui. Estes constrangimentos formam o ensinado. Não só das agruras que condicionam o ser professor e o ensinado que gostaríamos de salientar. Destacamos que ao pensarmos o ensinado como gêneros impuros o percebemos como um espaço de criação de alternativas e novas formas de ser e estar na educação e na história. O ensinado muitas vezes se faz em um espaço de poder oblíquo em que são tecidos fios que constroem alternativas para o posto. Compreendemos história ensinada como um espaço híbrido de saberes, oriundo de diferentes lugares e espaços – escolar, sistema, professor, alunos, responsáveis, livros, etc. – em que a construção do sentido histórico está em constante formação. Caminhando por diversos “lugares” e tornando-os muitas vezes “espaços”. O movimento contido no ensinado pode produzir ações oblíquos e simbólicas, difíceis de serem vistas, mas como potencialidade de existência. Esta potencialidade seja de “conscientizar” como nos fala 1 ou de “ler” como aponta 2, não sabemos afirmar com precisão. Compreendemos como potencialidades diagonais. Não somos tão esperançosos como Canclini, muito menos compreendemos a luta, na maioria das vezes, com metafórica, percebemos estes conflitos de poder como signos materializados. O que nos aproxima das reflexões propostas pelo autor do que pensamos a história ensinada, ou melhor, o ensinado como um espaço real e possível de enfrentamento oblíquo. Patrícia Bastos de Azevedo 6806 História Ensinada: cultura, currículo e linguagem Neste sentido de tangenciamentos diagonais que compreendemos a história ensinada, e porque nos aproximamos de Rüsen. Acreditamos que este fazer está a serviço da consciência histórica, ou melhor, “consciências históricas” como um fim último para o ensino de história e história ensinada como o espaço de produção e construção deste fim. Nos propomos neste texto apresentar argumentos que esclarecessem o que concebemos como história ensinada. Neste exercício nos propusemos a definir este signo. Esperamos que tenhamos conseguido apresentar o que concebemos. 3. Bibliografia APPLE. Michael W. Ideologia e Currículo. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. AZEVEDO, Patricia Bastos. Ensino de historia e memória social: A construção da história-ensinada em uma sala de aula dialógica. Dissertação de Mestrado, Niterói UFF, 2003. BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteira, v.1, nº 2. pp 99 – 116, Jul/Dez, 2001. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000. ___________. Estética da criação verbal. 4ª ed. 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Patrícia Bastos de Azevedo 6809 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” VIOLÊNCIA ESCOLAR: UM ENTRE-LUGAR NAS QUESTÕES DE GÊNERO E EXCLUSÃO – UM ESTUDO ETNOGRÁFICO Paula Almeida de Castro Sandra Maciel de Almeida JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico VIOLÊNCIA ESCOLAR: UM ENTRE-LUGAR NAS QUESTÕES DE GÊNERO E EXCLUSÃO - UM ESTUDO ETNOGRÁFICO Paula Almeida de Castro1 Sandra Maciel de Almeida2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro FAPERJ RESUMO: A violência escolar, analisada pelo viés etnográfico de pesquisa, é o objeto desse trabalho. Nos grandes centros urbanos, sugere que a violência tornou-se parte do dia-a-dia da população. Além de configurar o contexto macro-social, a violência, não raro, assume novas significações, se interioriza no ambiente escolar integrando o cotidiano vivenciado por alunos e professores. Para elucidar as ocorrências de atos de violência no ambiente escoalr, durante um ano letivo foram realizadas observações participantes, capturando, em áudio e vídeo, cenas e eventos que ilustram um cenário balizado por interações entre professores e alunos, pautadas em métodos coercitivos, justificados pela realidade violenta circundante à instituição de ensino. Nesta escola pública acompanhamos a rotina de sala de aula, bem como os encontros bimestrais dos Conselhos de Classe. As análises indutivas apontaram o entendimento sobre a violência indo além da/na escola, mas definindo o ensino-aprendizagem e, comprometendo os resultados escolares. Instituição, dita inclusiva, mas que permanece excluindo aqueles que vislumbram a Educação como possibilidade de superação das desigualdades sócioeducacionais. Partimos dos estudos sobre exclusão/ inclusão e fracasso escolar para explicar a problemática que assinala um entre-lugar da violência no cotidiano de sala de aula. Ao final, entendemos que no contexto observado a violência assume diferentes papéis em uma realidade de excluídos escolares. PALAVRAS-CHAVE: Violência, Exclusão, Gênero, Etnografia. Introdução Neste artigo, apresentamos uma análise sobre os índices de violência, caracterizados como um aspecto intrínseco entre a realidade social e o funcionamento 1 Psicóloga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 Pedagoga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6813 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico das instituições de ensino. Estima-se que, um dos fatores determinantes para a convivência com a violência é a proximidade das escolas com áreas consideradas de risco pelas entidades de segurança pública. Embora o termo violência sugira atos violentos e vandalismo, na escola ele assume diferentes papéis. Em estudos anteriores (Castro, 2006; Mattos, 2007) constatou-se que alguns alunos são apontados pelos professores e gestores da escola como responsáveis pela criação, no espaço escolar, de ‘núcleos de violência’. Tais núcleos são caracterizados pela liderança, em sala de aula, de alunos considerados ‘favoritos’ junto aos gestores3, configurando a qualificação de ‘alunos violentos’. Destaca-se ainda, especialmente nos conselhos de classe, a violência vivenciada pelos alunos nos meios familiares, servindo como pano de fundo para explicar o comportamento dos mesmos na escola. Para compreender os pressupostos da violência escolar, foi analisado o cotidiano de sala de aula, através das interações da professora com os seus alunos e, entre alunos. Ressaltou-se a implicação destas interações na rotina pedagógica, suas conseqüências no desempenho e avaliação dos alunos e alunas e o aumento das condições de desigualdade levando ao fracasso e à exclusão escolar. Para a realização do estudo, ora aqui apresentado, optamos pela abordagem etnográfica de pesquisa, utilizando os instrumentos etnográficos de observação participante, entrevistas e videoetnografia em uma escola pública do estado do Rio de Janeiro. Nesta escola, acompanhamos semanalmente uma sala de aula do primeiro segmento do primeiro ciclo, além das reuniões do Conselho de Classe durante um ano letivo. A partir dos dados coletados no trabalho de campo procedeu-se a análise indutiva do material donde emergiram as categorias temáticas4 que possibilitaram compreender as interações e dinâmicas que distinguem o espaço escolar e a violência. A importância desse estudo se justifica pela busca de entendimento da construção diária do saber ocorrida na sala de aula e voltar a esta toda vez que buscamos compreender a dinâmica que ocorre em seu interior. E ainda, pela perspectiva de ser a sala de aula um espaço interacional que interfere na vida dos sujeitos que dela participam – alunos, alunas, professores. Posto isto, buscamos nos estudos de diferentes 3 Este favoritismo relaciona-se à ligação com o tráfico de drogas na comunidade onde a escola está situada. 4 Ver Castro, 2006. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6814 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico autores (OLIVEIRA e LEITE 20075, MATTOS 20086, PATTO 20077, MARTINS 19978) os conceitos sobre inclusão/ exclusão e fracasso escolar para explicar as nuances observadas nos meios escolares que indicam relações ajustadas pela violência. Violência: entre as ruas e a escola “O que eu tô colocando aqui é que tem que ter uma ação mais coercitiva do professor” (Professora Dora) A violência nos centros urbanos apresenta-se diariamente, através dos veículos de informação, com índices alarmantes, nos quais é relatada uma série de fatos e cenas de violência que ocorrem na sociedade. Nos casos em que a escola está relacionada aos atos de violência urbana, ela está localizada nas proximidades ou mesmo dentro das localidades nas quais os estes ocorrem. São locais consideradas pelos gestores públicos como áreas de risco, seja pela ocorrência cotidiana de atos de violência ou pelas condições de miséria e pobreza da população. Desse modo, a questão da violência no cotidiano das escolas está relacionada, aos aspectos concernentes às desigualdades sociais e que se refletem na exclusão sócioeducacional dos sujeitos. No cenário escolar, a violência surge como uma reação dos alunos e alunas, na tentativa de denunciar as condições desiguais e excludentes em que se encontram. Ainda que as condições de pobreza, exclusão e a violência sejam ‘invisibilizadas’ pelo poder público e, mesmo, pela escola. 5 Oliveira e Leite conceituam o tema a partir da necessidade de a inclusão atender a todos, sem distinções, incorporando as diferenças no contexto escolar e que para tal exigiria uma transformação da escola na atualidade (p.512). 6 Mattos contextualiza o tema exclusão na Educação como uma metacategoria donde esta deriva de outras (desemprego, alunos em risco sócio-educacional, minorias, pais adolescentes, menores infratores) que foram criadas para facilitar a distinção entre os que são excluídos e os que não são. E ainda que, miséria e pobreza causam um impacto direto no desempenho na qualidade da educação de crianças, jovens e adultos (p.1). 7 Pelos estudos de Patto (2007) é possível delinear alguns aspectos do fracasso escolar como sendo responsabilidade do conjunto que envolve a educação escolar formal e não de fatores isolados como, por exemplo, culpabilizar os alunos, as famílias, os professores ou as políticas educacionais. 8 O autor em seu trabalho afirma que a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica (p.32). Ele ainda chama a atenção para o fato de que a exclusão começou a se tornar visível, pois começa a demorar muito ser incluído; o período da passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão está se transformando num modo de vida, está se tornando mais do que um período transitório (p.33). Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6815 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico “A violência é vivenciada, ao mesmo tempo, como algo inaceitável, condenável e simultaneamente, banal, percebido como inevitável e fatal o que faz com que nos acomodemos...” (Abramovay, 2005, p. 2). Segundo Dubet (2003) as desigualdades sociais existem desde sempre, mas foi somente, a partir da Modernidade9, que elas passaram a serem consideradas relevantes, como um problema que envolve todas as dimensões da vida humana e das relações sociais. Desse modo, a violência escolar torna-se uma situação social problemática e que carece de solução em curto prazo. Para efeito de exemplificação, tomemos a situação violenta da cidade do Rio de Janeiro, com notícias diárias sobre confrontos entre jovens e a polícia, aumento do número de homicídios, proliferação de favelas – estas que a cada dia ocupam mais espaços nos grandes centros urbanos. Assim, como conseqüência do descaso com que a violência é tratada pelas autoridades policiais, judiciais, educacionais, esta passa a se constituir como; “(...) expressões de um ressentimento social de jovens e adolescentes que foram, ou se sentem, excluídos da instituição escolar, mas que, por vias transversais, querem ser incluídos no espaço escolar. Evidencia-se uma correspondência entre a exclusão social e a violência escolar: a violência é determinada socialmente. Tanto mais o público jovem é desfavorecido, em termos econômicos como culturais, tanto mais ele se confronta com a vivência do desemprego, mais ele experimenta uma exclusão, não só de oportunidades econômicas, mas também de um prestígio social, o que resulta em um agravamento de sua auto-estima e de sua perspectiva de futuro. Os jovens vivem hoje a desesperança em relação às promessas contidas na proposta da escola: este é o contexto social de emergência da violência escolar” (Santos, 2001, p.114). A invisibilidade da violência pode ser comparada a um “elefante na sala de jantar” – expressão cunhada na África à época do extermínio de elefantes para o comércio do marfim. A negligência das autoridades africanas foi comparada, pela simbologia, a ‘um elefante na sala de jantar’ sem que sua presença fosse notada. Podese dizer que o mesmo ocorre quando, ao relatar fatos relacionados ao fechamento de escolas, ao grande número de alunos envolvidos com o tráfico de drogas ou que são mortos diariamente. Tais relatos acabam sendo naturalizados pelo coletivo das escolas, embora sejam expostos eventualmente nas reuniões de professores pela situação problemática envolvendo os alunos, acabam por passar despercebido no cotidiano escolar. O sujeito é situado nas marcas da exclusão e violência que são atribuídas a ele. Dubet (2003) cita ainda o reforço “sofrido” pelos indivíduos (alunos e professores) para 9 Modernidade refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. (GIDDENS, 1991). Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6816 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico construir autonomia e identidade10 numa sociedade (ou instituição) em processo de transformação e de “decomposição”. “O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman,2005, p.35) A construção da identidade dos jovens e crianças que residem em áreas consideradas violentas pela população é mediada pelos valores familiares, da escola e acima de tudo do tráfico local de drogas. Esta construção é dialética; além de determinada é também determinante, pois o jovem tem um papel ativo, quer na construção desse contexto a partir de sua interação, quer na sua apropriação. A identidade só pode ser construída a partir da interação. Interessa, portanto, a percepção da interação dos alunos na sala de aula e na escola e da violência na qual estão inseridos em seus locais de moradia e na escola. Violência aferição de gênero e fracasso escolar ““Identificar-se com...” significa dar abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar” (BAUMAN, 2005, p. 36). A palavra violência é distinguida gramaticalmente pelo substantivo feminino. Ao contrário do que a Língua Portuguesa sugere, o discurso teórico e os profissionais da educação relacionam a violência observada em sala de aula ao aluno; substantivo masculino. 10 Entendemos a identidade como um conjunto de imagens, representações, conceitos de si, e consideramos, especialmente, o caráter dialético de sua construção, a saber, da importância da alteridade nesse processo, fez-se também necessária a inclusão de procedimentos que possam fornecer dados para a compreensão da importância do outro nesse processo. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6817 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico Historicamente, coube às meninas a qualidade de boa aluna observada no espaço escolar. Aos meninos é redobrado o esforço do professor, vez que este está envolvido nas situações consideradas problemáticas tais como brigas, faltas, notas baixas, dificuldade de aprendizagem, dentre outras. No sentido de aferição de gênero e violência, Mattos (2009) explica, a partir dos estudos de Connel, que; “gênero tem haver com a forma como a sociedade humana lida com o corpo humano [...] e que os arranjos de gênero são reproduzidos socialmente, e não biologicamente, por estruturas de poder para coibir ações dos indivíduos (Mattos, 2009, p.8). Nesse estudo, nas observações dos conselhos de classe evidenciou-se a preocupação dos professores e gestores com a violência nos relatos sobre a inscrição, pelos meninos, das iniciais de facções criminosas, que dominam a região onde a escola, em questão, está situada. Efetivamente os professores não demonstram interesse pelo conteúdo do que os alunos escrevem sobre o tráfico de drogas e, sim com a utilização do material escolar de forma inadequada e da utilização de uma boa caligrafia com atividades fora do contexto escolar. No evento de fala abaixo a professora colaboradora da pesquisa relata a não dedicação às tarefas de sala de aula em detrimento do que é comumente chamado de ‘apologia às facções criminosas’. Sheila: “o cara gasta a tinta da caneta dele todo, rasga as folhas do caderno dele todo pra ficar escrevendo TCP, TCP com uma letra linda”. Yolanda: “a gente tá com um grau... ficar escrevendo TCP (e dá um soco na mesa)”. Sheila: “aí ele bota terceiro e embaixo coloca TCP (...) gastou a caneta dele toda”. (Conselho de classe). A sigla escrita pelo aluno se refere ao Terceiro Comando Puro (Isto É Mai/04), facção criminosa que domina o tráfico local de drogas, no qual reside a clientela atendida por essa escola. Durante a realização da pesquisa, foi possível observar que este tipo de manifestação era freqüente na sala de aula. A menção ao tráfico local não é coibida pela professora e/ou por outro funcionário da escola. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6818 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico Para aprofundar tal questão, argumentamos a coordenadora pedagógica se tal prática era é comum à turma, ou seja, escrever siglas, como TCP e/ou cantar músicas relacionadas à violência urbana. Para nos responder, ela cita o exemplo de um aluno, considerado violento e que representa na sala de aula a maioria dessas manifestações. Coordenadora: É como se ele (Vitor) criasse um microcosmo da comunidade na sala de aula. A explicação da coordenadora nos fez refletir sobre a problemática da criação de um microcosmo na sala de aula. Tal terminologia é orientada pela noção de campo utilizada por Bourdieu (2004) para o qual o autor explica que; “a noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias” (Bourdieu, 2004, p. 20). Ele, ainda explica que o microcosmo se liberta das imposições externas – pressões externas, créditos, ordens, instruções, contratos – e passa a ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas. Cada vez mais o campo vai se tornando autônomo, derivando daí a explicação para o “microcosmo” que supostamente é criado pelo aluno. Segundo a coordenadora, esse aluno circula pela sala de aula e pela escola de forma diferenciada dos demais. A coordenadora acredita que a presença dele na escola dá um caráter comunitário à instituição, uma vez que, ao cantar e desenhar siglas que aludem ao tráfico de drogas ele se torna um representante da comunidade local na escola e na sala de aula. Coordenadora: Eu sempre aconselho ‘oh! Cuidado, vocês não sabem com quem estão mexendo aqui dentro da escola. Se considerarmos que a gestão democrática prevê a participação da comunidade na escola, a coordenadora está utilizando o termo “microcosmo” no sentido de invisibilizar a violência e, que não representa a idéia de democratização. Neste caso, Araújo (2001) explica que tal ocorrência representa um ato caracterizado como incivilidade, onde o caos impera. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6819 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico Araújo (2001) cita Debarbieux para explicar a associação da violência à incivilidade11, destacando a desorganização da ordem, a introdução do caos, a perda de sentido e de compreensão. Para ele; “é bem possível que a incivilidade de certos jovens seja uma incivilidade reativa à expressão de um amor decepcionado com uma escola incapaz de cumprir suas promessas de inserção” (Debarbieux 1998 In Araújo, 2001, p.27). Nesta perspectiva, fica evidente o fracasso da escola em cumprir seu papel na sociedade, quando deixa de apresentar condições favoráveis para a aprendizagem dos alunos intermediada pelo desempenho do professor. O fracasso da escola estaria ainda na falha em contribuir com a formação cultural, social e acadêmica de seus alunos. Neste ponto, podemos retomar a fala da coordenadora ao afirmar a positividade existente na criação de um “microcosmo da comunidade” na sala de aula pelo aluno. Percebe-se, ao contrário disso, a ocorrência tão somente da reprodução de uma realidade excludente em sala de aula, apontando a impossibilidade da escola em desempenhar seu caráter transformador da realidade social violenta, na qual este aluno está inserido. Neste sentido ela deixa de ser o diferencial numa comunidade dominada pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas e se transforma num espaço de reprodução (Bourdieu, 1982) da realidade social excludente. Ainda assim, afirma-se, pela democratização de acesso ao ensino que estes alunos estariam ‘na escola’, ainda que isto implique na invisibilidade deles frentes aos processos educacionais que se desenrolam nos cotidianos escolares. O que explicaria pela a análise de Bourdieu e Champagne (1998) em “Os excluídos do interior” os oferecer indícios de que, possivelmente, as leituras sobre este sujeito – aluno – que o distanciavam do sistema escolar começam a diminuir quando a escola passa a ser freqüentada por aqueles “desafortunados e mais desprovidos do ponto de vista cultural e quando a escola deixa de rejeitá-los [...] os convencendo de que eram eles que não queriam a escola” (op.cit). Se por um lado, em dado momento histórico, é dito que a escola passa a receber tal ampla e diversificada clientela, por outro é também o modo como insurge, neste ambiente, sobre o aluno a responsabilidade por sua inadequação a cultura escolar e conseqüentemente ele passa a ser excluído tanto dentro da escola, uma vez que ele 11 Indelicadeza, falta de urbanidade e ausência do conjunto de formalidades que os cidadãos observam entre si quando são educados. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6820 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico permanece freqüentando a sala de aula, quanto para fora dela, evadindo o espaço escolar. Acredita-se, que deste grupo que não se adéqua à escola, os meninos somam um quantitativo maior do que o das meninas. Estas passam pela normatização da escola com menos alarde apresentando um comportamento de adequadação/docilização. Considerações finais A dinâmica de sala de aula, assim como as práticas pedagógicas, carecem de estudos que possibilitem uma visão ampla e específica sobre o impacto da violência na escolarização de alunos e alunas em risco sócio-educacional. Perceber a escola no cerne das discussões sobre a violência nos faz questionar sobre a possível perda de seu papel transformador numa sociedade marcada pelas desigualdades socioeconômicas, culturais e educacionais. Isto se agrava quando as escolas, em destaque a escola onde este estudo se desenvolveu, estão situadas em áreas próximas ou mesmo dentro de comunidades onde o crime organizado tornou-se o referencial de muitos alunos e alunas. Estes deixaram de vislumbrar na escola um espaço de superação das desigualdades que lhes são inerentes, uma vez que em seu interior se reproduzem as mesmas formas vivenciadas por eles fora da escola. Marriel (2006) aponta para “a necessidade de reconhecer a escola como lugar privilegiado de transformação para uma sociedade menos violenta, pelo seu potencial que vai além da transmissão de conhecimentos” (p. 46). O ambiente excludente de sala de aula é reforçado por professores que não vêem o seu papel como possibilidade de transformação de uma realidade social e escolar e acabam por não oferecer aos sujeitos uma alternativa para o que eles acreditam ser o destino. Ainda que, as condições educacionais se apresentem de forma diversa daquela esperada, sonhada, idealizada, nas representações construídas politicamente para uma escola de excelência. Por conseguinte, urge compreender a importância da escola aliada à concepção de educação inclusiva como possibilidade de transformação de uma realidade social e escolar onde os sujeitos possam vislumbrar a superação das dificuldades educacionais, sociais e econômicas em uma escola democrática. Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6821 Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico Referências bibliográficas ARAÚJO, C. A violência desce para a escola; suas manifestações no ambiente escolar e a construção da identidade dos jovens. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BOURDIEU, P. 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Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida 6823 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” FERNANDO AZEVEDO E A CONTRIBUIÇÃO PARA DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO NO BRASIL Paula Frassinetti Chaves de Carvalho Philipe Henrique Teixeira do Egito JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil FERNANDO AZEVEDO E A CONTRIBUIÇÃO PARA DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO NO BRASIL Paula Frassinetti Chaves de Carvalho1 Philipe Henrique Teixeira do Egito2 RESUMO: O presente estudo propõe a contribuição do pensamento do educador, sociólogo e ensaísta Fernando Azevedo e a relevância de sua atuação no campo educacional, situado em um momento político especial de nossa história: o Estado Novo. Na obra a cultura Brasileira constitui-se veículo divulgador de concepções acerca do povo e do papel do Estado, exercendo importante papel na História da Educação. Através do estudo da Cultura Brasileira, Azevedo possibilita instrumentos potencialmente reveladores da relação entre campo educacional e campo político institucional. Diante da dimensão de sua obra, considerada um retrato minucioso do Brasil é que se justificam estudos sobre o mesmo. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Azevedo; Contribuição; Cultura. Introdução O presente artigo trata do pensamento do intelectual brasileiro Fernando Azevedo, buscando refletir em seu pensamento através da cultura fruto do seu estudo metódico da estrutura e comportamento dos grupos humanos, no tempo e no espaço, que a compõem. Para Azevedo, a possibilidade de produzir uma síntese da cultura brasileira está na própria definição do próprio objeto da Sociologia: a sociedade. Na disciplina Educação Brasileira, ministrada pelo professor Dr. Jean Carlos possibilitounos estudarmos o Itinerário Intelectual Brasileiro, sendo o nosso estudo centrado em 1 Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia pela UFPB, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, Contato: [email protected] 2 Graduado em Licenciatura Plena em História pela UFPB, Mestrando em Educação do Programa de PósGraduação em Educação da UFPB, Contato: [email protected] Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6827 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil Fernando Azevedo e o seu legado na construção da Democratização do Ensino no Brasil. Fernando de Azevedo nasceu em 02 de abril de 1894, em São Gonçalo do Sapucaí (MG). Desenvolveu a primeira e vasta pesquisa sobre a situação da educação em São Paulo.Integrou o movimento reformador da educação pública, da década de 20, que ganhou o país e foi impulsionado pela Brasileira de Educação, fundada em 1924. Entre 1927 e 1930, promoveu ampla reforma educacional no Rio de Janeiro, capital da República, animada pela proposta de extensão do ensino a todas as crianças em idade escolar; articulação de todos os níveis e modalidades de ensino primário, técnico profissional e normal, adaptação da escola ao meio-urbano, rural e marítimo. Fundou a Biblioteca Pedagógica Brasileira e em 1932, redigiu e lançou, junto com outros 25 educadores e intelectuais, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Como diretor-geral, promulgou o Código de Educação do Estado de São Paulo (1934) e participou da fundação da Universidade de São Paulo. Visto como um intelectual de "centro", foi durante sua vida se transformando em um intelectual extremamente crítico quanto ao papel da escola, entendendo-a em 1954 como instrumento de manutenção do status-quo. Fernando Azevedo e a contribuição na educação como prioridade nacional. Fernando de Azevedo foi o principal introdutor das concepções do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) no Brasil. Durkheim pretendeu dar um sentido positivo à sociologia e procurou demonstrar a possibilidade de uma ciência objetiva da sociedade, semelhante às ciências naturais. Em decorrência de suas idéias a respeito do homem e da sociedade, o sociólogo francês acreditava que a educação deveria ter como objetivo integrar os indivíduos, situação em que teriam consciência das normas de conduta social. Durkheim achava que o sistema educacional moderno ainda tem necessidade da disciplina própria da vida em sociedade, mas que essa sistematização deve deixar espaço para a autonomia, a reflexão crítica e a capacidade de escolha. Fernando de Azevedo, em Princípios de sociologia, publicado em 1935, faz a primeira explanação sistematizada e crítica das idéias sociológicas para professores e estudantes no país. Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6828 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil Nesse trabalho, discute, entre outros, temas como a natureza objetiva dos fatos sociais, a constituição de uma ciência particular do social, a luta pela autonomia da sociologia como ciência e as grandes correntes do pensamento sociológico. Durkheim é o único a merecer capítulo próprio, além de citações em outros. Politicamente conturbado com a eclosão da Revolução Constitucionalista em São Paulo, o ano de 1932 é decisivo na carreira de Fernando de Azevedo. Neste ano, ele é convidado a redigir e ser o primeiro signatário do Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, dirigido à Nação e ao governo Vargas, documento que colocou a educação como o problema nacional de maior importância, acima dos planos econômicos, ou seja, a educação como prioridade nacional na reconstrução do país. Pela primeira vez, afirmava-se alto e a bom som que é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa, que são os fatores primordiais e de fundamental importância para o desenvolvimento de uma Nação, pois acreditava que a educação era o pressuposto de um elemento poderoso de mobilidade social e transformação do país e que o seu projeto, socializante e progressista para a época, “representava as legitimas e verdadeiras necessidades do povo e do país como todo” (AZEVEDO, 1996). Em relação ao Estado, o Manifesto estabelecia a função essencialmente pública da educação; a garantia de acesso à educação dos cidadãos em condições de inferioridade econômica, a laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação, a proibição de separação de sexo entre os alunos; a autonomia da função educacional, a proibição de influências religiosas, políticas e partidárias sobre o processo educacional. O Manifesto termina com o parágrafo: "Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justiça e maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência. Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6829 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil A partir do Manifesto, o grupo de educadores formado por Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, já identificados com os princípios da Educação Nova , é violentamente atacado por conservadores e católicos. O crítico Alceu de Amoroso Lima, na época representante do conservadorismo católico, denunciou "o baluarte vermelho em que vão transformando os nossos meios pedagógicos superiores" e classificou de "bolchevismo intelectual" e de "pré-soviética" a pedagogia preconizada pelos idealizadores do Movimento de Renovação Educação Nova. Quando redigiu o Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, Fernando de Azevedo, formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (hoje integrante da USP), já havia sido professor de latim e psicologia no Ginásio do Estado em Belo Horizonte e na Escola Normal de São Paulo (futura Escola Normal Caetano de Campos. Antes de ir de São Paulo para o Rio, Fernando de Azevedo engordava o salário de professor como redator e crítico literário do jornal O Estado de São Paulo, no qual colaborou durante toda a vida. Em 1926, organizou e dirigiu dois inquéritos para O Estado, um sobre arquitetura colonial, outro abordando a educação pública no Estado. Já neste inquérito, iniciou campanha por uma nova política de educação, que iria desaguar no Manifesto, e pela criação de universidades no Brasil. As reformas no ensino paulista iriam ser concretizadas em 1933, com a elaboração e implantação do Código de educação, levadas a efeito quando assumiu a Direção Geral da Instrução Pública no Estado. O convite a Fernando de Azevedo para redigir o Manifesto deveu-se à notoriedade que adquirira não só pela intensa atividade desenvolvida nos meios educacionais, mas também pelo papel relevante que vinha exercendo como um dos dirigentes da Companhia Editora Nacional, à época uma das principais casas editoriais do país. Na Nacional, como era conhecida, Fernando de Azevedo criou e dirigiu a Biblioteca Pedagógica Brasileira (BPB), selo editorial do qual faziam parte a série Iniciação científica, que publicava textos inéditos na área científica. Outra grande aventura intelectual de Fernando de Azevedo foi a participação na criação da USP, em 1934, ao lado de Júlio de Mesquita Filho, Armando Sales de Oliveira, Almeida Júnior, Vicente Rao, Rocha Lima e outros. Mais tarde, entre 1941 e 1942, ele seria diretor da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6830 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil No campo da historiografia, Fernando de Azevedo publica, em 1943, A cultura brasileira, obra na qual assume uma visão marcadamente nacionalista dos problemas do Brasil. Nesse trabalho, elogia o "espírito nacionalista" da Constituição de 1937, que institucionalizou a Estado Novo no país e deu poderes ditatoriais ao presidente Getúlio Vargas. A Revolução de 1930, chefiada por Getúlio Vargas, havia, de fato, dado impulso à reforma do ensino no Brasil, a começar pela criação do Ministério da Educação e Saúde. Mas, a despeito dos elogios feitos em seu livro, Fernando de Azevedo criticou severamente o então ministro da educação, Gustavo Capanema, por ter dado ao curso secundário um caráter elitista. Inspirado na reforma educacional realizada na Itália fascista por Benito Mussolini, Capanema deu nova direção ao curso secundário, agora voltado para a "formação de personalidades condutoras", ou seja, de elite, e organizou um currículo baseado em humanidades, repleto de línguas como latim, grego e francês. No Estado de São Paulo, Fernando de Azevedo ocupou a Secretaria da Educação e Saúde em 1947 e a Secretaria de Educação e Cultura no governo de Prestes. A Cultura Brasileira: constituição do desenho da Nação Na obra a Cultura Brasileira publicado em 1943 sob encomenda do governo de Getúlio Vargas, como introdução ao Censo de 1940. O livro projetado é de suma importância por ser a introdução do maior censo que se produzira até então, retratando minuciosamente o Brasil, possibilitando-o ser ”mais conhecido aos brasileiros e descobri-lo aos homens dos outros países”. A síntese proposta em A cultura Brasileira pretende alcançar dois objetivos: a constituição de um corpo de fenômenos que constituem a idéia de Nação e de interpretar os fenômenos para tornar o Brasil mais conhecido aos Brasileiros. Na posição de político e reformador da Educação, Azevedo significa operação permanente de escolhas dos fenômenos, dos dados e dos acontecimentos que dêem identidade e expliquem a essência da Nação baseados em estudos científicos da Sociologia, reconhecendo os fatos sociais e explicando-os, produzindo a síntese racional que é a síntese da Sociedade. “Acompanhar, sob todos os seus aspectos, a evolução do povo e a formação da comunidade e da vida nacional em mais de 400 anos de história, assinar-lhe as características tendências e impulsos que já aparecem, desde a sua origem e na sua Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6831 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil originalidade, enquanto a civilização se forma e se modela nas lutas contra as invasões e hostilidade do meio; apreender-lhe, em seus traços e por suas reações aos fenômenos naturais e aos acontecimentos humanos, a “alma” ou a mentalidade coletiva, e as transformações que sofreu; exprimir o que há de comum entre regiões extremamente diferenciadas” (Azevedo, 1958,p.14) Diante das “heranças”, ou o que há em comum entre o movimento peculiar das culturas, a síntese possível da evolução de uma dada sociedade está na determinação do que é específico ou peculiar dentro das leis gerais que estruturam a sociedade. A educação, segundo Fernando de Azevedo, permitiria o acesso ao estudo da cultura, fornecendo ao pesquisador um guia para sua sintetização e, consequentemente da civilização. Fernando de Azevedo entendia o objeto da Sociologia como o reconhecimento e a explicação dos fatos sociais, produzindo através do método, a síntese nacional que é a essência da sociedade. Declarava ainda, que era necessário situar a cultura nacional no seu quadro geográfico, social, político e histórico, acompanhando as diferentes etapas de sua evolução, nas suas orientações e tendências, de modo a definir as instituições que se encarregariam da transmissão de sua unidade, de sua unidade, de sua difusão através de gerações pelos processos e técnicas de educação e de seus progressos. (AZEVEDO, 1996). De acordo com Azevedo (1958), a cultura atinge certo grau de desenvolvimento, quando está sempre ligada às tradições nacionais e tende a tomar aspectos e formas diversas ao passar por meios diferentes. Ela será mesmo tanto mais autêntica e original quanto mais rica e substanciosa for a seiva que subir de suas raízes mergulhadas em húmus nacional, mas não poderá desabrochar, como uma verdadeira flor de civilização, se não se abrir, na plenitude de sua força, para todos os tempos e todos os povos. Para antropólogos culturais como Morgan, Tylor ou Frazer, o grande interesse concentrava-se no desenvolvimento cultural tomado em uma perspectiva comparativa almejando captar o ritmo de crescimento sociocultural do homem e, mediante as similaridades apresentadas, formular esquemas que explicassem o desenrolar da história humana. Civilização e progresso, termos privilegiados da época, eram entendidos não enquanto conceitos específicos de uma determinada sociedade, mas como modelos Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6832 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil universais. Segundo os evolucionistas sociais, em toda parte do mundo a cultura teria se desenvolvido em estados sucessivos, caracterizados por organizações econômicas e sociais específicas, porém os estágios entendidos como únicos e obrigatórios por acreditarem que toda a humanidade deveria passar por eles. A constituição do sentido de Nação como grandes influências que puderam agir sobre a produção dos fatos de cultura, sejam o meio físico e étnico (o país e a raça), o meio econômico, social e político, o meio urbano e a mentalidade particular do povo, por todos esses elementos que condicionaram a sua formação. Para os teóricos do branqueamento, o Brasil era composto por uma mistura de raças, porém em transição, que ao passar por um processo de seleção natural. Com acelerado cruzamento, levaria o país a ser branco. (SCHWARZ,2008) Azevedo enfrenta o problema, para ele central, da diversidade do meio físico brasileiro e da constituição populacional baseada na miscigenação de culturas. A questão da constituição da nacionalidade, em um país marcado pelos contrastes físicos e pela heterogeneidade cultural, vai sendo solucionada por meio do reconhecimento de uma riqueza cultural latente, depurada pelo colonizador branco e pela imigração européia. “Mas não é menos certo que a cultura apresenta graves lacunas, e, tanto pela qualidade como pelo volume, sobretudo do ponto de vista filosófico e cientifico, não se desenvolveu no mesmo ritmo da civilização, apresentando-se ora sensivelmente retardada em relação a outros países de civilização comum, ora marcada pela superficialidade e pelo diletantismo artificial, e desinteressada pela civilização em que floresceu” (Azevedo,1996.p.39). Nessa linha, o autor monta uma história econômica que vai da posse do meio geográfico pelo colonizador europeu até o desenvolvimento industrial promovido pelo Estado Novo. História que dá destaque especial para o papel das cidades entendidas como focos de progresso e de civilização na formação da cultura nacional. Segundo Maria Toledo(2000), a cultura é um dos acessos possíveis ao estudo dos fenômenos sociais, pois incide diretamente no modo pelo qual a sociedade se pensa ou representa, assim, pode-se tornar recorte temático fértil para o estudo dos fenômenos sociais do Brasil. Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6833 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil Através da cultura é possível reconhecer, na diversidade característica do país, as conexões que comporta e que formam a mentalidade do povo. Entre os fatores que mais contribuem para a produção dos fenômenos de cultura, foi o surgimento das cidades na sua função de intensificar as energias coletivas e de levar ao mais alto grau de desenvolvimento possível as capacidades latentes e dispersas na população. A concepção de cultura em Azevedo, mantém a unidade da sociedade, na medida em que é transmitida pelas gerações mais velhas às mais novas, que através da educação não somente por constituir um dos aspectos mais característicos, mas por ser o próprio veículo da cultura e da civilização, elegendo a educação como objeto específico de revelador da essência da civilização. Os problemas propostos em a Cultura Brasileira, para a produção da síntese, gestados no ambiente de agitação e efervescência intelectual, refletem a busca, no passado, das explicações e interpretações sobre o Brasil através da interpretação dos fenômenos formadores do país. Para o autor, cada povo tem o seu temperamento e o seu gênio próprio que, elaborado através de séculos, são o produto do meio físico, dos elementos raciais e do progresso de sua evolução social que se manifestam tanto na sua história e nas suas instituições, quanto na sua língua e na sua literatura, nas suas obras de arte e pensamento. Sendo a cultura a expressão intelectual de um povo, não só reflete as idéias dominantes mas a civilização cuja vida participa, mergulhando no domínio fecundo que se elabora a consciência nacional. Considerações Finais Fernando de Azevedo declarava, que a educação continha numerosas possibilidades, entre as quais se destacavam a condução do indivíduo, através do exercício da razão, pelo caminho de uma ética individual e comunitária resultando em solidariedade, bem como o desenvolvimento do espírito crítico como via real da razão buscando soluções para as questões apresentadas pelo mundo, sendo a educação um processo emancipador e de fundamental importância na redemocratização do país. Para Azevedo, a educação tinha um valor conscientizador, na medida em que oferecia um instrumento de libertação das pessoas, ensinando-as a pensar, a resolver problemas. Na sua concepção, “o processo educacional, mesmo controlado Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6834 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil ideologicamente, seria incontrolável na medida em que propiciava (...) que o não dito seja dito, o torcido distorcido, o obscuro clarificado” (Azevedo, 1971). A educação, segundo Fernando de Azevedo, permitiria o acesso ao estudo da cultura, fornecendo ao pesquisador um guia para sua sintetização e, consequentemente da civilização. Os conceitos de cultura e civilização na obra A cultura Brasileira, são indissociáveis, na medida em que são entendidos como elementos reguladores das relações dos indivíduos e grupos entre si, do Estado ou nação. Evidenciamos a contribuição do autor, no campo das ciências sociais e da pedagogia, ao produzir trabalhos que asseguravam posto relevante entre grandes educadores do país. Fernando de Azevedo, foi profundamente influenciado por Durkheim e Dewey ao refletir sobre a questão social e educacional de forma vinculada com as questões políticas. Na concepção do autor, a Educação é encarada como instrumento e a Ciência como ele unificador na construção da identidade nacional. A preocupação com a unidade nacional vista como elemento fundamental para a formação da identidade cultural do povo brasileiro. Ao traçar uma marcha para a unidade nacional, o autor sinaliza o advento da Cidade e o processo de urbanização em curso, como o momento em que se dá uma maior aproximação do povo brasileiro consigo mesmo. Neste quadro, a cidade é entendida como elemento vital para a constituição da maioridade cultural do povo brasileiro. O legado de Fernando de Azevedo foi um criador da representação do campo educacional, como um campo de saberes específicos fundado no conhecimento cientifico e integrado nas ciências humanas. Azevedo procurou ampliar as fronteiras deste campo, estabelecendo relações entre o campo teórico-científico e o campo político-institucional, este último potencial provedor da aplicação prática dos saberes produzidos pela elite intelectual em um projeto-pedagógico que acreditava ser possível trazer a modernidade à nação através da organização dos sistemas de ensino dos grandes centros urbanos do país. Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito 6835 Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil Referências AZEVEDO, Fernando de. A Educação e seus problemas. São Paulo: Edições Melhoramentos,volume VIII, 4ª edição, 1958. AZEVEDO, Fernando de. História de Minha Vida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1971. AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ e Brasília:UnB, 1996. SCHWARCZ, Lilia Moritz O espetáculo das raças. São Paulo: Editora Schwarcz, 2008 TOLEDO, Maria Rita (1995). 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Este trabalho teve como objetivo analisar os seus pareceres sobre o sistema de educação brasileira durante o período em que ele era deputado, representando a Bahia. Foi visto que Rui Barbosa visava uma total reformulação do sistema educacional brasileiro e para que este fosse aceito, ele teve o cuidado de esmiuçar todas as suas propostas, de modo que houvesse o mínimo de falhas no seu projeto. Ainda, foi analisada a sua ligação entre a maçonaria e a educação, pois ele via na maçonaria um caminho pelo qual pudesse ocasionar um avanço no ensino educacional nacional. PALAVRAS-CHAVE: Rui Barbosa, propostas curriculares, maçonaria. Quando nós nos debruçamos sobre a história da educação no Brasil, logo percebemos que um dos personagens mais marcantes do final do século XIX é Rui Barbosa, que se destacou como representante da educação no campo político. Contudo, Rui Barbosa se tornou ainda mais célebre pelo seu intelecto e pela sua especialidade em direito do que pela sua luta em favor de uma reforma educacional no Brasil. Rui Barbosa era, ainda, maçom e foi nos Templos Maçônicos que ele ideou projetos que foram postos em prática a partir de discussões com a assembléia da Loja. Diante disso, 1 Na bibliografia analisada, em alguns momentos o nome do autor estudado aparece de forma diferente em cada autor, algumas vezes como Ruy e outras como Rui. Este autor preferiu a última grafia. 2 Graduado em Licenciatura Plena em História pela UFPB, Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação de Educação da UFPB, contato: [email protected] 3 Graduada em Pedagogia pela UFPB, Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação de Educação da UFPB, contato: [email protected] Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6840 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria fazer uma ligação entre o maçom e o político em Rui Barbosa garante-nos entender, ainda mais aprofundadamente, a sua excelência. Rui Barbosa, como jurista, sempre lutou ao lado dos liberais com propostas, ditas por ele, emancipacionistas. Ele foi o representante do Brasil na Segunda Conferência de Paz de Haia, na Holanda, substituindo Joaquim Nabuco – que era, no momento, embaixador do Brasil em Washington. Foi nessa mesma conferência que Rui Barbosa foi reconhecido em escala internacional por seus conhecimentos jurídicos e sua brilhante oratória. A partir daí, ele ficou conhecido internacionalmente como “Águia de Haia”. Iniciado na Loja América em 1º de Julho de 1869, ele atuou de forma incisiva e tornou-se um grande maçom, apesar de ter passado pouco tempo na ordem. Essa loja era jurisdicionada ao Grande Oriente do Brasil da Rua dos Beneditinos, na época liderado por Joaquim Saldanha Marinho. Esse corpo maçônico havia sido criado após uma dissidência com o Grande Oriente do Brasil, que se situava na Rua do Lavradio, Nº 97, no Rio de Janeiro, cujo nome foi adotado para que houvesse essa diferenciação. Essa potência ficou independente até 1883, quando foi reincorporada pelo Grande Oriente do Brasil, e consequentemente, a Loja América também passou à sua obediência. O convite de ingresso à maçonaria havia sido feita a Rui Barbosa pelo seu então professor da Faculdade de Direito e sobrinho de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Venerável Mestre da Loja (Presidente), Antônio Carlos de Ribeiro Andrada. Este percebia em Rui, um homem muito inteligente e que poderia engrandecer muito os quadros da jovem Loja, já que ela tinha sido fundada apenas um ano antes da sua iniciação em 1868. Os quadros da referida Loja continha o nome de outro grande defensor da educação no nosso país, Joaquim Nabuco, além de pessoas de renome no governo. Com isso, é possível perceber a força e a articulação que a maçonaria possuía no século XIX, o que até certo ponto facilitava a implementação de políticas e de projetos nascidos dentro dos Templos Maçônicos. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6841 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria I. Aspectos Sociais do Século XIX Para entender o contexto em que vivia Rui Barbosa, se faz necessário entender como se davam as relações sociais do momento. Estamos analisando o período que vai do final da década de 60 até o final da década de 80 do século XIX, um período em que houve mudanças radicais na sociedade brasileira. Ele viveu e abraçou muita dessas transformações sociais. Durante boa parte do século XIX, o Brasil era uma sociedade dual constituída basicamente de senhores e de escravos. As atividades econômicas durante esse período apenas mudaram o eixo produtor e a atividade agrícola, que no início do século se concentrava no nordeste com a cana-de-açúcar e no final do século com o aumento do preço do café no mercado internacional. Essa base econômica transfere-se para o sudeste, em especial para o interior de São Paulo, centralizando não só o poder econômico, mas também o político. Esse modelo de sociedade deixava a camada média da população à sua margem, já que essas pessoas em geral eram desprovidas de terras ou as tinham em uma quantidade muito ínfima. Com o adiantar do século, esse grupo social adquiriu muita força com as mudanças que aos poucos ocorriam. Diante da situação em que se encontravam as pessoas da camada média, elas procuravam se apropriar de atividades “mais dignas”, ou seja, não faziam nenhum trabalho braçal e começavam a buscar, na instrução, uma porta para a ascensão social. Com isso, acabavam aliando-se às oligarquias rurais, visando o reconhecimento e o fortalecimento da classe média basicamente urbana. Para entendermos essa necessidade da classe média, precisamos perceber que no século XIX a instrução pública gratuita e “universal” no Brasil era limitada apenas ao ensino das primeiras letras e mesmo assim, esse acesso era restrito apenas aos cidadãos; excluíam-se assim os negros. A partir daí, cabia à família, se essa tivesse opção, procurar um meio de fazer os jovens ingressarem nos cursos preparatórios para os cursos superiores, que em geral eram administrados pelos liceus estaduais. Essa era a única forma de acesso à instrução superior, por isso facilitava as oligarquias a se manterem e a se legitimarem no poder. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6842 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria Com todas essas medidas, o acesso ao ensino superior ou se limitava às pessoas oriundas dessas famílias oligárquicas ou aos advindos dessa burguesia nacional, que no momento ainda era bem embrionário, mas que já dava sinais de que surgiria com toda força. O ensino superior se desenvolveu no Brasil no final do século XIX juntamente com os movimentos de abolição da escravidão e de proclamação da república. Rui Barbosa foi filho dessas medidas. Nascido em 1849 na Bahia, ele ingressou na Faculdade de Direito de Olinda em 1864, e concluiu seus estudos na Faculdade de Direito de São Paulo em 1870. Foi através da sua graduação como bacharel em Direito que ficou reconhecido como grande jurista, mas foi no âmbito político que se deu a sua maior contribuição para a educação brasileira. Era nos seus pareceres sobre a Reforma do Ensino Leôncio de Carvalho que surgia uma nova visão para a educação no Brasil – uma visão educacional proposta por Rui Barbosa. II. Mudanças Educacionais Propostas por Rui Barbosa Rui Barbosa tinha planos de mudança para a educação, começando pela divisão da instrução em jardins de criança, escolas primárias, cursos profissionais, escolas normais, liceus e o ensino superior. Essas suas propostas foram debatidas no campo da política e foi assim que ele conseguiu levar as discussões para o legislativo, uma vez que ele era deputado representando a província da Bahia. A fim de entender as reformas propostas pelos seus pareceres, iniciamos com os Jardins de Criança. Rui relatou, através de experiências com o modelo de Froebel, o qual se baseava no desenvolvimento natural das crianças, que a tarefa da educação era ajudar o homem a conhecer a si mesmo - em se tratando dos jardins de criança, a conhecer os brinquedos. Apesar de perceber e de explanar sobre as experiências positivas obtidas em outros países, foram ferrenhas as críticas impostas a Rui. Entretanto como vemos em Nascimento (1997, p. 8): Mesmo assim insiste na criação dos Jardins de Crianças, acreditando que os seus frutos, com o tempo, modificariam o modo de pensar daquelas pessoas. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6843 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria A criação e o funcionamento de tais estabelecimentos de ensino deveriam ser assegurados através de recursos públicos, sem excluir a iniciativa particular, desde que adequadamente orientada. Essa educação deveria ser efetuada em três anos, com as crianças entrando aos quatro anos e saindo aos sete anos de idade. No último ano do jardim de crianças, deveria ser criada a classe intermediária, que serviria de preparação para a escola de primeiras letras. Fazendo essa modificação no ensino, as crianças chegariam mais preparadas para o ensino primário. Esse novo degrau na educação, proposto por Rui Barbosa, deveria contar com professoras que tivessem uma preparação especial para lidar com essa faixa etária, e isso deveria estar inserido nos cursos das escolas normais. Essa foi uma barreira que Rui tentou quebrar com o método froebeliano - já que para o senso comum da época, a criança deveria apenas brincar, logo esse método adapta as brincadeiras como uma preparação para os primeiros ensinamentos. O método de Froebel era muito bem visto, principalmente para o modelo educacional norte-americano, uma vez que esse sistema era muito utilizado para a educação da classe operária dos países onde ela foi posta em prática e para aprimorar os trabalhos manuais tão necessários para a indústria da época. Rui foi além da visão pedagógica, ele partiu para uma visão econômica, percebendo a criação e a força de uma classe operária necessária para a ascensão da burguesia nacional, pois sem mão- de- obra não há produção. Podemos observar essas intenções em Boto (1999, p.5): Acerca disso pode-se tomar Rui Barbosa como um exemplo da ilustração liberal brasileira na rota do desenvolvimento do país. Em seus pareceres sobre a reforma do ensino primário, o autor apresenta nitidamente sua concepção sobre o terreno a ser cultivado. A prosperidade da nação deveria se aliar ao trabalho; e este, a seu corolário intrínseco: a instrução popular. Para o entendimento de Rui, o Brasil deveria se espelhar nas experiências positivas dos países desenvolvidos e, a partir daí, desenrolar o seu sistema de instrução pública rumo a um projeto de democratização pedagógica e política. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6844 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria O segundo degrau nessa “escada educacional” era a escola primária. Essa deveria ser modificada, já que esse ensino já existia no Brasil. O que ele propunha eram apenas algumas adaptações, em função dos aspectos positivos obtidos com as experiências em outros países. Era nesse ponto em que ele previa encontrar uma maior dificuldade, sendo assim ele “deveria lutar contra a mais arraigada de todas as rotinas: a rotina pedagógica. Para se assegurar de que sua proposta não seria mais uma a ser engolida pela tal rotina, descreve seus mínimos detalhes.” (NASCIMENTO, 1997). Os professores já tinham uma prática pedagógica, por isso seria mais difícil do que começar um projeto do início. Por conta dessas dificuldades existentes, ele elaborou toda a composição dessa escola primária que havia proposto. A prática pedagógica é, até hoje, um forte instrumento nas mãos dos professores, que muitas vezes deixam de lado os projetos pedagógicos e atuam de forma “independente” para impor o seu método e o seu conteúdo. Essa era uma época em que a fiscalização dessas questões não era algo primordial, já que a legislação em torno da educação era escassa, quando não inexistente e, portanto, necessitava de toda cautela na elaboração desse projeto. As escolas primárias foram então subdivididas em três graus, cada um com as suas devidas especificações de tempo, de duração e de currículo como ilustrado na tabela 1. Tabela 1. Subdivisões dos Graus de Escolaridade Propostos por Rui Barbosa Primeiro Grau (1º) Segundo Grau (2º) Terceiro Grau (3º) - Escola elementar - Escola primária média - Escola primária superior - Continuação do jardim - Teria dois anos de - Teria duração de três (previamente duração anos mencionado) - Teria dois anos de duração Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6845 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria A fim de promover um forte alicerce para as suas subdivisões dos graus de escolaridade e de diminuir a probabilidade de sua proposta ser rechaçada, Rui Barbosa teve como base metodológica os diferentes estudos que Bacon, Comenius, Pestalozzi, Froebel, Fenelon e Rabelais conduziram, independentemente, acerca dessa ideia. Havia também nesses modelos curriculares propostos, um acréscimo de assuntos comparados aos que existiam no momento. Rui percebia que o seu modelo educacional visava mais do que o ensino propriamente dito, visava a sua combinação com o esclarecimento intelectual e a instrução. A inspiração para tais modelos curriculares veio do método implantado no 2º grau – high school – nos Estados Unidos, assim como também dos modelos propostos por Herbert Spencer. Entre essas propostas, a do ensino primário superior é vista como inovadora para o modelo brasileiro. Ela havia sido pensada para aquelas pessoas que, ao concluir o ensino primário médio, não quisessem ingressar nos cursos profissionais – para se especializar em alguma profissão – ou não pretendessem ingressar nos liceus – para os cursos preparatórios para as universidades. Desse modo, o ensino primário superior tinha a função de outorgar um título, como vemos em Nascimento (1997, p. 12; apud cf. BARBOSA, 1947, IV: p. 95): Este título deveria ser introduzido no Brasil, como, aliás, já vinha sendo adotado nos países mais avançados. As vantagens conferidas por tal certificado seriam: 1º em igualdade de condições conferiria preferência para os lugares de nomeação do governo, e 2º dispensaria do exame de língua vernácula para admissão em estabelecimentos de ensino superior e em concursos para empregos administrativos. Dando continuidade às propostas de Rui, os alunos que terminassem a escola primária média poderiam escolher três caminhos. O primeiro, já discutido anteriormente, seria a de cursar o terceiro grau. O segundo, para aqueles que quisessem uma profissão, mas sem seguir para a faculdade, era fazer cursos profissionais. O terceiro seriam os liceus, destinados para aqueles que desejassem entrar na universidade. Note que nem o terceiro grau nem os cursos profissionais preparavam para ingresso na universidade, apenas o liceu tinha esse caráter preparatório. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6846 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria Para que houvesse uma legalização desses cursos, era necessário que houvesse uma fiscalização que ficaria sob responsabilidade da Escola Normal de Arte Aplicada. Essa fiscalização se daria nas escolas públicas e também nas mantidas pela iniciativa privada. Rui também pretendia implantar modificações na Escola Normal. A sua preocupação com a formação de professores se deu por influência dos pensamentos do século XIX, pois nesse período o ensino era visto com um ‘dom’. Tendo em vista uma unidade na capacitação dos professores, ele percebia a necessidade de se preparar o professor de acordo com as metodologias de ensino. Nesse mesmo momento histórico, o magistério estava bastante dividido entre os sexos, tanto que existiu a propositura de se criar uma Escola Normal para os homens e outra para as mulheres na capital do Império. Contudo, foi detectado que havia poucas unidades das escolas normais no país. Assim, Rui pretendia, subsidiado pelo Governo, aumentar a quantidade de vagas para esses cursos de formação de professores. Com essas propostas de mudança, Rui ansiava que a instrução fosse vista pelo país a partir de um aspecto mais profissional; isso porque ele entendia que a prosperidade de nossa nação só se daria através do investimento na educação. A fim de defender suas ideias, ele levou essas medidas até os políticos para que pudesse haver um debate acerca desse assunto e para convencê-los da importância da formação do povo e da sua ligação com o nosso desenvolvimento. Para concluir esse momento dos ensinos primário e secundário, trataremos agora de explanar rapidamente sobre a função e as mudanças que deveriam ocorrer nos Liceus. O Liceu funcionava como o ensino secundário preparatório para os cursos superiores e para que houvesse mudanças em todos esses colégios que existiam em todas as províncias, foi proposto que se mudasse o Colégio Pedro II - já que ele servia de modelo para todas as outras instituições similares no Brasil. Com a ocorrência dessas modificações, os cursos preparatórios que existiam anexos às Faculdades de Direito de São Paulo e Recife foram extintos. O objetivo era criar o curso secundário de Ciências e Letras em todos os Liceus, os quais seriam mantidos pelo Governo. Poderiam existir cursos do gênero nas escolas particulares, entretanto, elas não poderiam conceder o grau de bacharel em ciências e letras. Para que essas escolas se submetessem, indiretamente, ao mesmo conteúdo proposto aos colégios Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6847 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria públicos, os oriundos daquelas instituições só poderiam ingressar nos cursos superiores após passarem nos exames preparatórios, que ficavam a cargo do Governo e que seguiam o modelo do Liceu Imperial Pedro II. O país que era extremamente rural estava crescendo com as construções de fábricas e a emersão dos centros urbanos, caracterizando uma evolução. Essa transição ocasionou um aumento no número de pessoas que ingressavam nos cursos superiores, proporcionando a criação de uma nova camada de trabalhadores especializados para suprir as necessidades que estavam surgindo no país. As mudanças propostas tiveram uma menor inserção no ensino superior, já que era destinado basicamente para os filhos das classes mais abastadas segundo Nascimento (1997,P.33): Isto se deve a alguns fatores: 1º) não havia uma distribuição homogênea de cursos superiores pelo território nacional, obrigando grande parte do alunado a viver longe da família; 2º) os estudos exigiam que o aluno estivesse liberado do trabalho até a idade adulta4; 3º) os estudos, que eram tidos como gratuitos, na realidade cobravam taxas de matrícula – 25$ por matéria – e exigiam o pagamento de propinas aos professores por ocasião dos exames – 15$ por matéria. É certo que o total arrecadado por si só não seria suficiente para manter as escolas superiores, mas para os alunos não deixava de ser um desembolso além dos outros necessários ao material escolar e vestuário. Essas limitações eram impostas para impedir que as classes menos favorecidas ingressassem nesses cursos. Era apenas mais uma clara forma de manipulação exercida pelas classes dominantes. O próprio Rui percebia que nos cursos superiores se formava uma classe intelectual nacional, capaz de resolver os problemas locais e, ao mesmo tempo, manter o status quo. Portanto, é possível vermos que Rui se dedicou muito para incentivar mudanças em todos os graus de escolaridade das redes de ensino, uma vez que ele acreditava que a liberdade e a criação de uma identidade própria para o Brasil estavam na educação, cujo quais permitiriam a atribuição de um merecido respeito para nós brasileiros. 4 Grifo do autor. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6848 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria III. Rui Barbosa e a maçonaria. Como foi explanado de forma sintética no inicio do texto, Rui Barbosa ingressou na Ordem Maçônica através da Loja América no dia 1º de Julho de 1869. A Loja ainda estava no início da sua caminhada Maçônica, já que tinha sido fundada em 9 de novembro de 1868 e regularizada em 7 de julho de 1869. Para ser iniciado na Maçonaria ele teve que ter a sua idade alterada, pois no ano da sua iniciação ele tinha apenas 20 anos e as leis Maçônicas limitam a idade mínima de 21 anos. Mas era uma prática um pouco comum quando queriam que alguém específico pertencesse ao quadro da ordem. Na mesma Loja também foram iniciados homens de renome tanto na educação quanto na política. Entre eles estão: Joaquim Nabuco, Luis Gama, Américo Brasiliense e Pedro Toledo. Ele foi convidado para ingressar na maçonaria por seu professor na Faculdade de Direito de São Paulo, Antônio Carlos de Andrada. Naquele momento este era o Venerável Mestre (Presidente) da Loja América, e vendo em Rui um grande homem, resolve fazê-lo o convite. Após ingressar-se na Maçonaria e ter recebido o grau de mestre, ele se torna o Orador da Loja (o guarda das Leis) e entra em ferozes embates com o Venerável e professor sobre a abolição da escravidão e questões relacionadas à educação. É interessante notar que em todo o discurso de mudanças na educação brasileira, Rui faz lembrar, nas entrelinhas, um dos mais importantes princípios da Maçonaria, que é o de se combater a ignorância. Em acordo com esses princípios, Rui escreve um projeto de Lei Maçônico e o expõe na assembléia dos maçons da Loja para que seja debatida. Quando aprovada, ela foi levada para o Grão-Mestrado do Grande Oriente do Brasil da Rua dos Beneditinos, que na época era liderado por Joaquim Saldanha Machado. A lei dizia que: “Todas as Lojas Maçônicas ficavam obrigadas a se empenharem na propagação dos princípios da emancipação dos escravos e na educação do povo. Em seus orçamentos, 1/5 seria destinado ao alforriamento de crianças escravas Ninguém poderia receber iniciação Maçônica sem antes declarar, por escrito e perante testemunhas idôneas, que libertaria todas as crianças Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6849 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria do sexo feminino que, daí em diante, lhe pudessem provir de escrava sua Aqueles que já eram iniciados, seriam obrigados a lavrar igual compromisso, a partir da promulgação da lei maçônica.”5 Essa proposta de Lei mostrava o quão preocupado ele estava com as questões abolicionistas, seja de cunho da escravidão física ou intelectual. Ainda, a Maçonaria abraça essas duas causas; tanto a da educação, propondo essa “educação do povo”, como a da luta pela abolição da escravidão. Nessa época, a Ordem contava com homens nas posições mais influentes do país, o que facilitava, em muitos casos, a outorga das proposições enviadas, que muitas vezes surgiam nas discussões dentro dos Templos Maçônicos. Observamos que a Maçonaria ao longo de sua história em terras brasileiras vem galgando uma grande luta em torno da educação e podemos observar isso e outras ações em Oliveira (1995, 9.86), como por exemplo: 25 de junho de 1834 – O Grande Oriente do Brasil resolve custear a educação de 15 meninos e 5 meninas Se não nos limitarmos ao nosso país, teremos mais exemplos da Ordem Maçônica colaborando para a instrução das pessoas - “18 de janeiro de 1842 – a Loja União da Irlanda ocorre as despesas com a educação de 4 meninos órfãos”(OLIVEIRA, 1995, p. 87). IV. Considerações Finais Podemos concluir, portanto, que Rui Barbosa viu na prática do direito, nas inserções políticas e na maçonaria os caminhos que ele precisaria percorrer para, entre outras coisas, por em prática seus planos de mudanças para o sistema educacional brasileiro. Apesar de ter passado pouco tempo na Ordem, ele se tornou um grande maçom, que soube admirar, respeitar e praticar os princípios que são apresentados 5 Retirado do site: http://www.triumphododireito.triunfo.nom.br/tbruibarbosa.htm acessado no dia 28/07/2009. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6850 Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria durante a ritualística da iniciação. Ainda, ele lutou pela abolição e pela educação vivamente, visando livrar o nosso país das masmorras dos vícios impostos por séculos de dominação política. Pelos seus sonhos e o modo com que ele lutou para a concretização deles, Rui Barbosa mereceu e merece reconhecimento internacional. . Percebemos com esses pareceres apresentados por Rui, que propostas de políticas curriculares e educacionais não são aspectos recentes, desde o século XIX haviam pessoas que lutavam por uma legitimação das ações voltadas para a educação e que serão postas em prática apenas em meados de 1930. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOTO, Carlota. A escola primária como tema do debate político às vésperas da República. Revista Brasileira de História. V. 19, nº. 38, São Paulo, 1999. LYNCH, Christian Edward Ciril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Revista de Sociologia e Política, vol. 16, supl. 0 Curitiba, 2008. NASCIMENTO, Terezinha A. Quaiotti Ribeiro do. Pedagogia Liberal modernizadora. São Paulo, Autores Associados, 1997. OLIVEIRA, Aderaldo Pereira de. Folhas de Acácia. João Pessoa, 1995. Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho 6851 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO OCULTO: UMA QUESTÃO DE ORIENTAÇÃO Rafaela Samagaio Ferreira JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação MULTICULTURALISMO E CURRICULO OCULTO: UMA QUESTÃO DE ORIENTAÇÃO Rafaela Samagaio Ferreira RESUMO: Refletindo acerca das relações sociais, é possível reconhecer que o conceito de diversidade se faz presente em todos os espaços. Analisando especificamente a questão da heterogeneidade no âmbito cultural, podemos observar que “nossas sociedades contemporâneas são inegavelmente multiculturais” (MOREIRA, 2001). Permeando estas relações no processo de formação do indivíduo, encontra-se o ambiente educacional, que segundo Moreira, se constitui como um dos mais fortes instrumentos de transmissão ideológica e manifestação do poder, ainda que de forma implícita. O referido autor diz ainda, que o entendimento destas questões deve se basear não só nas discussões sobre o currículo formal, mas também nas manifestações que ele denomina "currículo oculto" (2001). Estas ações não explícitas recorrentes no processo educativo tornam o trabalho de orientação ainda mais complexo e dão um lugar de destaque à intervenção do orientador, que possui atualmente um caráter de mediador em todas estas relações que se dão no ambiente escolar. No sentido de sua dimensão pedagógica “o orientador pode ajudar a fazer a crítica de seu processo, desocultando o oculto e tornando mais aparente o visível” (GRINSPUN, 2006, p. 59). PALAVRAS-CHAVE: Multiculturalismo, Currículo Oculto e Orientação. INTRODUÇÃO A pluralidade cultural e étnica existente nos grupos sociais, bem como as desigualdades sócio-econômicas que permeiam as relações humanas, tornam evidente que o conceito de heterogeneidade se faz presente em todos os campos das representações sociais. Os homens são diferentes entre si, ainda quando se trata de um grupo à priori caracterizado como homogêneo. Contudo, refletindo sobre as manifestações do multiculturalismo durante o crescimento do indivíduo dentro de um contexto social, é possível reconhecer o Rafaela Samagaio Ferreira 6855 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação imprescindível envolvimento das múltiplas facetas culturais no ambiente escolar. Sendo este , um dos lugares de maior diversidade, especialmente no aspecto cultural, tendo em vista que cada educando, assim como o educador e os outros membros da comunidade escolar, trazem consigo uma bagagem de conhecimentos e hábitos culturais diferenciados, que nas relações sociais vão se transformando e recriando as manifestações culturais inerentes àquele contexto. Desta forma, torna-se clara a compreensão de que todas as transformações sociais no que tange o multiculturalismo, impactam diretamente a estrutura do cotidiano escolar, no qual o sujeito constrói suas próprias concepções acerca do mundo com o qual interage. Assim, "a educação não pode ignorar esta realidade" (CANDAU, 2002, p.09). Permeando estas relações presentes na escola, encontra-se o orientador que tem a função de conduzir o processo pedagógico das práticas docentes. Esta orientação deve se basear não somente nas discussões sobre o currículo formal, mas também nas ações que Moreira denomina "currículo oculto" (2001). Considerando que uma das principais missões da escola, na atualidade, é a formação da identidade do sujeito, as questões ideológicas incutidas nas manifestações do currículo oculto ganham uma notoriedade ainda maior, pois são elas tão responsáveis nas conceptualizações do sujeito, quanto todas as outras formas de comunicação. A partir destas considerações, o presente trabalho baseia-se nas relações entre Multiculturalismo e Currículo Oculto, refletindo também sobre a intervenção da Orientação Educacional e Pedagógica neste processo. A estrutura deste tema possui como referencial o seguinte problema: Quais as relações que permeiam as manifestações do multiculturalismo, as práticas de currículo oculto e o papel do orientador no ambiente escolar? Em continuidade ao processo de amadurecimento das idéias inicialmente formuladas acerca do problema em questão, os objetivos se constituem de fundamental importância e subdividem-se: Rafaela Samagaio Ferreira 6856 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação Objetivo Geral Refletir e oportunizar discussões acerca das relações entre multiculturalismo, currículo oculto e orientação no ambiente escolar. Objetivos específicos Pesquisar as formulações de conceitos existentes sobre as terminologias multiculturalismo e currículo oculto; Investigar, teoricamente, sobre o papel do orientador frente aos desafios da diversidade cultural no currículo oculto; Elucidar educadores sobre a fundamental importância da valorização do multiculturalismo nas interações escolares, tanto nas práticas formais e explícitas, como nas práticas não-verbais e implícitas. O MULTICULTURALISMO E AS RELAÇÕES SOCIAIS A vertente cultural abordada neste trabalho acadêmico necessita ser interpretada através das lentes antropológicas, que permitem compreendê-la como a maneira de viver, total, de uma pessoa, grupo, sociedade ou país. Em verdade, a cultura é o código, o veículo que permite a relação dos indivíduos entre si e o seu próprio grupo, com o ambiente em que vivem. Infelizmente, a cultura é vista pelo senso comum como um conceito equivalente ao volume de literatura e a títulos universitários chegando até mesmo a ser confundida com inteligência. De acordo com as contribuições de Candau (2003), a palavra cultura é utilizada como sinônimo de sofisticação, sabedoria ou educação. Estes são os significados mais comuns atribuídos ao termo cultura, porém são totalmente questionáveis. Esta errônea interpretação origina as classificações de "alto nível cultural" ou "cultura popular" incutindo a estes termos significados que consideram a ilusória existência de patamares culturais hierárquicos. Estas reflexões nos remetem a seguinte indagação: Será que é possível a existência de homens sem cultura? A esse respeito Soares diz que: Rafaela Samagaio Ferreira 6857 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação O termo cultura, no singular, torna-se quase inútil: são sociedades em que convivem vários grupos, cada um deles em diferentes condições materiais de existência e, consequentemente, com estilos próprios de vida, ou seja, cada um com características culturais próprias (1986, p. 52). Analisando esta citação relacionando-a com a realidade, torna-se possível observar que esta sociedade macro constitui-se, analogamente, como um mosaico. Possuindo uma grande quantidade e variedade de "peças" que, concomitantemente, se diferenciam e se completam. O reconhecimento desta variedade no contexto social demonstra que a questão da diversidade vem ganhando uma notoriedade ainda maior em todos os campos das relações sociais. Discute-se muito acerca das problemáticas e das vantagens que um contexto heterogêneo pode proporcionar, principalmente, no ambiente escolar. Em completude à construção do conhecimento neste momento, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Pluralidade Cultural citam que: Valorizar as diferenças étnicas e culturais não significa aderir aos valores do outro, mas, sim, respeitá-los como expressão da diversidade, respeito que é, em si, devido a todo ser humano, por sua dignidade intrínseca, sem qualquer discriminação (2002, p.19 e 20) Para uma efetiva compreensão em torno das discussões que envolvem a diversidade cultural, bem como suas especificidades, torna-se necessário pontuar de maneira mais clara e o mais completa possível a interpretação aqui considerada no que diz respeito ao multiculturalismo. Emprega-se a terminologia multiculturalismo para dar significado a presença de diferentes grupos culturais numa mesma sociedade, partindo deste olhar antropológico sobre as várias culturas é possível também reconhecer que o processo de globalização facilitou o contato entre indivíduos de grupos sociais diferentes e distantes, proporcionando maior interação. Segundo Canclini, este processo de interação cultural a fim de formar novas culturas, chama-se hibridização cultural (in Candau, 2002). E em completude a este pensamento, Bakhtin se refere ao aspecto relacional como fator fundamental na formação do sujeito e na construção de sua individualidade, ou seja, sua subjetividade cultural (2005). Rafaela Samagaio Ferreira 6858 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação Neste contexto social, o reconhecimento da pluralidade cultural vem tornando-se emergente e cada vez mais intenso, principalmente em instituições educacionais, nas quais as interações entre culturas distintas acontecem todo o tempo. A fim de confirmar estes pressupostos Moreira diz o seguinte: "Nossas sociedades contemporâneas são inegavelmente multiculturais. Nelas, as diferenças derivadas de dinâmicas sociais como classe, cultura e religião expressam-se nas distintas esferas sociais" (2001). O termo multiculturalismo, todavia, pode indicar diversas ênfases: a) atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; b) meta a ser alcançada em um determinado espaço social; c) estratégia política referente ao reconhecimento da pluralidade cultural; d) corpo teórico de conhecimentos que buscam entender a realidade cultural contemporânea; e) caráter atual das sociedades ocidentais (CANEN e MOREIRA, 2001). Diante de todas estas variações que podem ocorrer na contextualização do termo multiculturalismo o mais importante é compreender que existem diversas culturas interagindo a todo instante em qualquer espaço nas relações sociais e, principalmente, que não existe entre elas relação de superioridade. Assim o multiculturalismo é uma característica fundamental a qualquer contexto na atualidade e não reconhecer isto pode acarretar em atitudes impregnadas de preconceitos. Em muitas situações, as diferenças são compreendidas e denominadas como um problema, conforme afirma Valente em seus estudos (2000, p. 65). As diferenças sociais e culturais articuladas às desigualdades e à discriminação geraram o que se convencionou denominar "exclusão social" (PCN - Pluralidade Cultural. 2002, p. 20). Os estudos de Candau apresentam a existência de uma conceptualização muito interessante e problematizadora no que diz respeito à relação entre igualdade e diferença. Uma das principais colunas na estrutura social (e educacional) é a defesa pela igualdade. Contudo, igualdade não se opõe à diferença e sim à desigualdade e em contrapartida, as diferenças se opõem à padronização. Assim, a luta da mulher pela igualdade de direitos não significa anular as diferenças existentes entre homem e mulher, tornando possível, deste modo, que a diferença e a igualdade atuem concomitantemente. Rafaela Samagaio Ferreira 6859 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação Temos o direito de reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos tira a identidade e a autenticidade. E, temos o direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos padroniza (2003). Interpretar esta realidade implica criticidade, para que não ocorra a errônea idéia de que estas diferenças são fatores pré-determinados e inquestionáveis. As diferenças geram a riqueza presente na diversidade, principalmente nas manifestações do multiculturalismo cada vez mais presentes em nosso cotidiano. O CURRÍCULO OCULTO E SUAS IMPLICAÇÕES NA SUBJETIVIDADE DO EDUCANDO Permeando as relações no processo de formação do indivíduo o ambiente educacional, segundo Moreira, se constitui como um dos mais fortes instrumentos de transmissão ideológica e manifestação do poder, ainda que de forma implícita. Nos diz ainda, que o entendimento destas questões deve se basear não só nas discussões sobre o currículo formal, mas também nas ações que ele denomina "currículo oculto" (2001). Estas ações e atitudes educacionais que compõem o currículo oculto, implicam nas mensagens não verbais, que são impregnadas de uma conduta axiológica cultural, mantendo a ideologia presente todo o tempo e que neste contexto trata-se e uma ideologia "monocultural" (CANDAU, 2000). Considerando estas importantes funções da escola na vida do indivíduo, a questão ideológica incutida nas manifestações do currículo oculto ganha uma notoriedade ainda maior, pois são elas tão responsáveis nas conceptualizações do sujeito, quanto todas as outras formas de comunicação. O educando não internaliza somente os saberes dispostos nos conteúdos programáticos e sim assimila tudo que envolve o contexto da sala de aula, talvez até de forma mais efetiva. Cabe situar neste momento a seguinte contribuição de Bakhtin: A comunicação verbal entrelaça-se inexplicavelmente aos outros tipos de comunicação (...) e graças a esse vínculo concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos... etc). (1999, p. 124) Rafaela Samagaio Ferreira 6860 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação Com estas considerações observamos que a construção social da valorização sobre a diversidade cultural é uma tarefa que encontra-se, de maneira especial, nas mãos deste currículo oculto e não somente no currículo formal, escrito. As contribuições de Bakhtin tornam possível visualizar que o currículo oculto está diretamente relacionado com a linguagem e não com a língua (1999), ou seja, a maneira pela qual o emissor transmite a mensagem é o que norteará a interpretação da mesma. Considerando a heterogenia de culturas como um conteúdo factual, as práticas educativas necessitam valorizar o ambiente escolar como um espaço sóciocultural. É preciso repensar o processo educativo como sendo heterogêneo, considerando cada realidade cultural inserida naquele contexto, de forma a desenvolver nos educandos o respeito pela diversidade (DAYRELL, in Candau 2002). Com base nestas colocações torna-se mais fácil a elaboração de algumas reflexões acerca das relações entre diversidade cultural e as implicações do currículo oculto dentro do ambiente escolar. Para alimentar ainda mais estas reflexões, Moreira nos questiona: "que é a educação e, em particular, o currículo, senão uma forma institucionalizada de transmitir a cultura de uma sociedade?" (2001) Seria uma grande satisfação responder a este questionamento explicitando outra função à educação e ao currículo (oculto ou não), como por exemplo: a tarefa de correlacionar as culturas, fazendo-as interagir na construção de conhecimento sem o pré-julgamento de valores, além de valorizar a heterogeneidade cultural. Entretanto, esta satisfação ainda não é possível, haja visto que o currículo ainda é utilizado (de forma explícita e implícita) como uma maneira de reprodução cultural e econômica. Pode-se afirmar ainda que, o currículo - principalmente em suas manifestações não-verbais, ocultas - é uma das formas mais complexas de controle da ideologia. Segundo Apple, a educação vem historicamente mantendo concepções normativas de cultura e de valores,"a hegemonia é criada e recriada pelo corpus formal do conhecimento escolar, e também pelo ensino oculto que vem acontecendo e continua a acontecer" (2006, p. 125). A definição de currículo oculto pode ser compreendida como o todo das mensagens da natureza afetiva, atitudinal e de valores, que podem estar presentes em toda a estrutura escolar. Todo o processo de socialização do aluno está envolvido por Rafaela Samagaio Ferreira 6861 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação este currículo não-formal que abrange todas as relações de aprendizagem por ele vivenciadas. Neste sentido, sabe-se claramente que a escola é um ambiente de socialização muito importante no desenvolvimento do indivíduo, tanto no aspecto cognitivo quanto na construção da identidade do educando, envolvendo todos os aspectos de sua subjetividade. Contudo, interpretar este lugar de socialização como um dos principais instrumentos na formação deste sujeito-educando, principalmente quando se trata de alguém sem apoio ou estrutura familiar, parece não ser uma verdade claramente internalizada pela sociedade, num âmbito geral. A compreensão sobre o mundo e sobre si mesmo depende diretamente do outro, ou seja, as relações sociais estabelecidas neste período de vida escolar da criança ou do adolescente (período em que as construções subjetivas são edificadas e consolidadas) são fundamentais neste processo. Em completude a estas questões Bakhtin afirma a importância dos "outros eus" neste contexto de socialização do indivíduo, as convivências e experiências estabelecidas nestas relações deixam claro que "o sujeito é desse modo mediador entre as significações sociais possíveis" (2005, p. 24). Assim, sabendo-se que a interação com o outro é tão decisiva na construção da subjetividade do educando, torna-se possível analisar tão quanto é urgente a questão do currículo oculto inserido (camuflado) no ambiente escolar que, como visto antes, é um lugar de socialização essencial na formação do sujeito. Bakhtin nos diz ainda sobre a dualidade existente nas mensagens proferidas através da comunicação verbal. Primeiramente o caráter explícito, ou seja, a palavra dita. E em contrapartida o aspecto intencional e implícito (2005). Pensar nestas problematizações acerca do currículo oculto na construção da identidade subjetiva deste educando nos proporciona subsídios para refletir sobre a seguinte indagação: Como compreender a significação das mensagens "sem levar em conta os fatores que possibilitam estabelecer as formas de como o discurso verbal na vida se relaciona com a situação extraverbal que o engedra?" (BAKHTIN, 2005, p. 69). Sabendo-se que o autor denomina de situação extraverbal todo o contexto do discurso, que caracteriza o currículo oculto nas mensagens implícitas: palavras, Rafaela Samagaio Ferreira 6862 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação atitudes ou gestos, é possível responder a este questionamento com a grande certeza de que levar um conta estes aspectos envolvidos nas mensagens é fundamental para a compreensão de sua significação. As contribuições de Bakhtin evidenciam que o conteúdo ideológico pode influenciar de forma mais direta a consciência do indivíduo do que o próprio conteúdo formal, escrito. "A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social determinada, afetam a significação" (1999, p. 15). No contexto do grupo social em que o indivíduo está inserido, neste caso a comunidade escolar, a estrutura e a organização social são determinantes. Quanto a isso, Bakhtin diz que: Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo...(1999, p.35) Portanto, compreender a relação existente entre o currículo oculto e a formação da subjetividade do educando é ter a certeza, de que todo o conjunto de mensagens transmitidas ao outro influenciam diretamente em suas conceptualizações sobre a realidade, tanto no âmbito social quanto no âmbito cultural. E mais do que isso, faz-se emergente o despertar para a grande responsabilidade que a escola, bem como sua equipe de orientação possuem neste sentido. O PAPEL DO ORIENTADOR FRENTE AOS DESAFIOS DO MULTICULTURALISMO NO CURRÍCULO OCULTO Para que haja uma compreensão sobre o papel do orientador dentro do ambiente escolar na atualidade, é preciso que se faça uma análise sobre o crescimento deste campo de atuação em nosso país. Segundo Mirian Grinspun, as primeiras experiências em orientação no Brasil sofreram uma grande influência da orientação americana e da orientação francesa. Estas tentativas iniciais ocorreram de maneiras isoladas e, paulatinamente, foram sendo estruturadas de acordo com nossa realidade. Rafaela Samagaio Ferreira 6863 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação A primeira interpretação legal sobre orientação no Brasil se deu pela Reforma Capanema, na qual a Lei Orgânica do Ensino Industrial instituiu o serviço de orientação educacional, com a finalidade de "correção e encaminhamento dos alunosproblema e de elevação das qualidades morais". Sendo o Brasil o primeiro país no mundo a ter a orientação educacional obrigatória apresentada através de documento oficial (GRINSPUN, 2006, p.22). Tendo em vista os objetivos que a educação da época buscava, bem como a concepção que norteava o ensino, o fato de encaminhar alunos-problema e elevar as qualidades morais parecia dar conta do processo educativo em termos de orientação. Contudo, ao longo do tempo a educação tomou novos rumos. As expectativas em torno da orientação foram se transformando, tendo em vista que os desafios no ambiente educacional passaram a exigir outras competências deste serviço de orientação. Nesse sentido, Mírian Grinspun coloca o seguinte: A questão da escola como reprodutora do sistema social começou a ter uma repercussão muito grande em nossa realidade, e a Escola passou a ser questionada quanto a seus objetivos e propósitos. A exclusão social ganha espaço em termos de discussão e reflexão. (2006, p. 27) Com estas discussões é possível apontar uma indagação fundamental no campo da orientação: Qual o papel do orientador frente aos desafios atuais na educação? Pensar em orientação educacional atualmente vai além das premissas que se idealizavam no início de sua implementação. O ambiente escolar neste momento é um lugar democrático e que deve assumir todos os vieses que o constituem, aspectos políticos, sociais, culturais e, principalmente, pedagógicos. A orientação, hoje, caracteriza-se por um trabalho muito mais abrangente, no sentido de sua dimensão pedagógica. Possui caráter mediador junto aos demais educadores, atuando com todos os protagonistas da escola no resgate de uma ação mais efetiva e de uma educação de qualidade nas escolas. (GRINSPUN, 2006, p.31) Toda e qualquer atitude realizada dentro da escola deve ser consciente, para que não haja um desvirtuamento da responsabilidade educativa. Porém, ainda que seja fundamental manter a consciência, existem atos e fatos que ocorrem de maneira inconsciente e implícita, ao que denomina-se currículo oculto. Este conceito de Rafaela Samagaio Ferreira 6864 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação currículo surge nas discussões pedagógicas (quando surge) como uma situação inédita e recente, mas é preciso saber que as implicações do currículo oculto fazem parte do cotidiano escolar há muito tempo e em todos os ambientes educacionais, ainda que se queira negar. Estas ações não explícitas recorrentes no processo educativo tornam o trabalho de orientação ainda mais complexo e dão um lugar de destaque à intervenção do orientador. Exatamente por estas implicações que cabe ao orientador a tarefa de estudar, pesquisar, observar e avaliar o cotidiano da escola em que está inserido, analisando não só as ações dos alunos, mas também as ações dos profissionais de ensino e de apoio. Em relação a isso Grinspun, apresenta o seguinte: O cotidiano escolar apresenta a natureza das práticas, das ações desenvolvidas / realizadas em seu interior e, na medida em que conheço essa realidade, passo a entender melhor as decisões que a escola efetiva através de seus diferentes protagonistas. Estudar relações e fatos cotidianos vai nos levar a entender a reciprocidade / cumplicidade das diversas situações que o cotidiano abrange (2006, p. 57). CONCLUSÃO: Diante das abordagens apresentadas neste trabalho, torna-se evidente que a diversidade cultural é hoje um fator decisivo na construção do sujeito e que esta heterogenia está presente em todos os campos das representações sociais, em especial no ambiente escolar. Neste sentido, a instituição educativa necessita valorizar o multiculturalismo em suas práticas de currículo (formal ou não) ao invés de ignorá-lo, haja visto que historicamente o currículo oculto se manifesta como promoção da homogeneização, principalmente se considerarmos que suas implicações estão carregadas de um conceito ideológico (MOREIRA, 2001). As idéias de hierarquia cultural e de prevalência da cultura da classe dominante geralmente presentes no currículo oculto, podem ser tão desastrosas quanto qualquer tipo de defasagem no processo de ensino-aprendizagem, tendo em vista que: Todo ato cultural se move numa atmosfera axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em todo ato cultural assume-se uma Rafaela Samagaio Ferreira 6865 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação posição valorativa frente a outras posições valorativas" (BAKHTIN, 2005, p.38). Desse modo, se todo ato cultural assume um valor próprio daquele que o manifesta, evidente que as relações sociais estão permeadas por estas trocas e "transmissões" de valores. Sendo de extrema importância ressaltar que estes atos culturais, assim denominados por Bakhtin, surgem não só nas colocações explícitas, como é o caso do currículo formal, mas também nas manifestações de currículo oculto, pois até mesmo "uma simples palavra, enunciada num tom apropriado, carrega a avaliação que é feita pelo enunciador e que é perfeitamente entendida e compartilhada pelo silêncio do interlocutor" (BAKHTIN, 2005, p.66). Diante de todas as questões abordadas neste trabalho é possível reconhecer que no cotidiano escolar estão presentes situações que vão além das questões pedagógicas, transcendendo as relações de ensino e aprendizagem em seu âmbito formal. Conforme afirma Grinspun: O cotidiano escolar envolve não só as questões específicas do currículo escolar, do projeto político pedagógico, mas também todas as questões da relação de poder, de saber, de afeto, de emoções etc., que estão em determinado tempo / espaço fazendo parte da vida do aluno / professor (2006, p. 57). Para que o orientador possa mediar efetivamente esta demanda do cotidiano escolar a fim de promover uma possível mudança nas manifestações do currículo oculto é preciso muita discussão e reflexão quanto a essas práticas. O orientador pode incitar nos educadores e nos outros membros desta comunidade escolar uma auto-análise geradora de conflitos que desestruturem o pensamento para a transformação e, assim, “o orientador pode ajudar a fazer a crítica de seu processo, desocultando o oculto e tornando mais aparente o visível” (GRINSPUN, 2006, p. 59). REFERÊNCIAS: APPLE, Michael W.. Ideologia e Currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006. BAKHTIN, Mikhail M.. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, Rafaela Samagaio Ferreira 6866 Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação 1999. BAKHTIN, Mikhail M. in Brait Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. CANDAU, Vera Maria (org.). Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. CANDAU, Vera Maria (org.). Sociedade, Educação e Cultura(s): Questões e propostas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. CANDAU, Vera Maria. Didática e Cultura. 2003. Palestra realizada na Universidade Católica de Petrópolis em 20 de ago. 2003. CANEN, Ana; MOREIRA, Antônio F.. Reflexões sobre o multiculturalismo na escola e na formação docente. In: CANEN, A., MOREIRA, A. F. (orgs.). Ênfases e omissões no currículo. Campinas: Papirus, 2001. GRINSPUN, Mirian P. S. Zippin. A orientação educacional: conflitos de paradigmas e alternativas para a escola. São Paulo: Cortez, 2006. MOREIRA, Antônio F.. A recente produção científica sobre currículo e multiculturalismo no Brasil. Revista Brasileira de Educação, set. - dez., nº 18, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação: São Paulo, p. 65-81, 2001. MOREIRA, Antônio F. e SILVA, Tomaz T. (orgs). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 2001. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Língua Portuguesa / Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3. ed. – Brasília: A Secretaria, 2001. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Pluralidade Cultural e Orientação Sexual / Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3. ed. – Brasília: A Secretaria, 2001. SOARES, Magda. Linguagem e escola – Uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986. VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 81, n. 197, p. 64-75, jan./abr. 2000. Rafaela Samagaio Ferreira 6867 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” A SIMULTANEIDADE DE TEMPOS NAS REDES COTIDIANAS DA SALA DE AULA Regina Coeli Moura de Macedo JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula A SIMULTANEIDADE DE TEMPOS NAS REDES COTIDIANAS DA SALA DE AULA Regina Coeli Moura de Macedo RESUMO: Num processo de elaboração de perguntas, o texto procura tecer nas e com as histórias do cotidiano de algumas salas de aula de uma escola, uma compreensão possível desse cotidiano. Interrogando as histórias vividas, busca criar redes de sentidos com as maneiras de fazer dos sujeitos que os praticam e os inventam (Certeau, 1994). Redes essas que possibilitem desenvolver formas de contribuir para a produção de práticas no sentido da realização de um projeto educativo emancipatório à semelhança do que propõe Santos (1996). É parte de um processo de pesquisa e escrita de dissertação que se incluem no conjunto das reflexões que têm a prática social como produtora e produto da tessitura de conhecimentos em rede. Procura pensar o real sem buscar sua simplificação, reconhecendo a sua complexidade na simultaneidade dos tempos que compõem esse real e encarando-a como desafio como nos propõe Morin (1996). As histórias vividas pelos praticantes da escola nos contam esses vários tempos e nos interrogam buscando a compreensão dos sentidos criados pelos sujeitos que tecem essas redes cotidianas, as salas de aula, a escola, em meio à simultaneidade desses tempos. Assim, elas nos aproximam da potencialidade emancipatória que as interações espontâneas (Morin, 1996) ou as astúcias dos praticantes no cotidiano (Certeau, 1994) têm. PALAVRAS-CHAVE: redes cotidianas, tempos nas salas de aula, sujeitos praticantes, emancipação. “No ler a lição, não se buscam respostas. O que se busca é a pergunta à qual os textos respondem” (Larrosa, 2003, p.142). Este texto foi escrito como parte de um processo de elaboração de perguntas que procuraram tecer nas e com as histórias do cotidiano de uma escola aqui narradas, uma compreensão possível desse cotidiano. Interrogando as histórias vividas fui buscando mergulhar (Alves, 2001) nesses cotidianos e com eles criar redes de sentidos para as maneiras de fazer dos sujeitos que os praticam e os inventam (Certeau, 1994). Apresento este trabalho, imaginando que, como eu, os leitores também poderão fazer Regina Coeli Moura de Macedo 6871 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula interrogações a partir das histórias que conto, das práticas das professoras, dos alunos, dos pais e mães. Depois da leitura, o importante não é que nós saibamos do texto o que nós pensamos do texto, mas o que – com o texto, ou contra o texto, ou a partir do texto – nós sejamos capazes de pensar (Larrosa, 2003, p. 142). Estabelecendo uma conexão com as palavras de Larrosa, busco compreender o cotidiano fazendo perguntas e tentando com elas tecer redes de sentidos que possibilitem desenvolver formas de contribuir para a produção de práticas no sentido da realização de um projeto educativo emancipatório à semelhança do que nos propõe Santos (1996). Para ele, esse é um projeto que pode nos permitir “colocar sob suspeita a repetição do presente” essa “sensação de estarmos parados nesse tempo paradoxal da sociedade de consumo e da informação”, pois é desestabilizador, potencializa o inconformismo, recusa o aprisionamento ao modelo de estagnação. Com isso, Santos nos convida a colocar em questão a idéia de que as realidades presentes, que não nos interessam, por não serem socialmente favoráveis a todos os sujeitos, não podem ser modificadas, por isso têm de ser infinitamente repetidas. Se essas realidades foram gestadas por nós mesmos, sujeitos históricos que inventamos o mundo a cada dia, por nós também podem ser criadas no cotidiano e já estão sendo, sempre foram, novas experiências que significam novas possibilidades para o presente e também para o futuro. Ele anuncia um projeto educativo que assuma a aprendizagem de conhecimentos conflitantes, já que para este projeto educativo não há uma, mas muitas formas ou tipos de conhecimento (idem, p.17); que transforme a sala de aula em campo de possibilidades de conhecimento dentro do qual professores e alunos têm de optar, assentando as opções de professores e alunos não em idéias somente, mas em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis (id.,ib., p. 18). Na proposta que faz, de efetivação de um projeto educativo conflitual e emancipatório, Santos considera as dificuldades, porém o afirma, a partir da ideia de que existem energias, sobretudo no passado enquanto campo de possibilidades e decisões humanas para a sua realização. Regina Coeli Moura de Macedo 6872 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula Essa tarefa de investigar a realidade complexa que é o cotidiano escolar a que me propus enfrentou algumas dificuldades no seu percurso. Uma delas tem relação com o aprisionamento em que, muitas vezes, nos percebemos às grandes teorias produzidas sobre a escola ou pelos nossos próprios conceitos e crenças sobre uma escola irreal e modelar, limitando nossas possibilidades de compreendê-la. Isso nos afasta do real complexo que é tecido, cotidianamente, pelas práticas culturais reais das populações (Alves e Oliveira, 2002, p. 93), pois esse real não se submete às lógicas explicativas com que nos acostumamos a pensar e agir na escola e sobre a escola. Esse processo de pesquisa que buscou compreender as salas de aula, as práticas que as constituem, compreendendo que essas mesmas nos informam sobre os seus limites e possibilidades compromete-me com a tentativa de entender as escolas como positividade, não no bom sentido, mas simplesmente no sentido do existente (Ezpeleta e Rockwell, 1986, p.10). Aquilo que não existe ou o que não se faz nas escolas, mas que, segundo determinados modelos ideais de escola proclamados pelo pensamento hegemônico, deveria existir ou ser feito, não é o que nos interessa neste trabalho. Sem dúvida, trata-se de uma opção política essa que faço. Como nos fala Santos (2002), não há indissociabilidade entre pensamento epistemológico e político Os percursos que tenho seguido até aqui, assim como os que pretendo continuar seguindo são tecidos na, ao mesmo tempo em que tecem a rede da minha formação e transformação permanente como professora e pesquisadora. Portanto, nessa rede estão também os fios que passam pelas esferas políticas (Alves, 1998) ou, como no dizer de Santos (2002), os espaços de formação também marcados por esse mesmo caráter. Essa rede de sujeitos em que venho me constituindo faz a escolha de trazer para os primeiros planos das cenas do cotidiano escolar, os seus atores, nós, anônimos sujeitos políticos da história desse cotidiano com aquilo que somos e fazemos. Nessa perspectiva, como essa reflexão se inclui no conjunto das reflexões que têm a prática social como produtora e produto da tessitura de conhecimentos em rede, ela busca também ampliar a compreensão dos espaços e tempos de formação profissional para além do acadêmico. Essa é mais uma razão que torna difícil pesquisar e compreender o viver cotidiano! Isso porque, em geral, a nossa pretensão é encontrar ou construir aquelas explicações causais tão a gosto do pensamento moderno (Alves e Oliveira, 2002, p.93). Regina Coeli Moura de Macedo 6873 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula No desejo de entender, procuramos uma origem para aquele comportamento, sentimento, valor ou ideia presentes na realidade. Mas reconhecer essa impossibilidade, reconhecendo a noção de redes de sujeitos como a maneira como nos constituímos, pode significar um movimento importante na busca dessa compreensão. As grandes ou pequenas explicações, formuladas pelas teorias que conhecemos sobre a escola, que conseguem elaborar causas para tudo ou quase tudo o que acontece nas salas de aula com alunos, professores e outros dessa rede, chegando a conclusões generalizantes e apresentando prescrições para os seus comportamentos, não servem para a complexidade das nossas identidades dinâmicas e plurais e nem para a complexidade das realidades cotidianas que praticamos. Morin (1996) apresenta a complexidade como desafio. E coloca essa idéia do desafio como fundamental, pois diz que não podemos conceber a complexidade como resposta, como receita, mas como uma motivação para pensar” (p. 176). Pensar o real sem buscar sua simplificação vai nos colocar, necessariamente então, diante desse desafio. Se nos interessa considerar os múltiplos e variados aspectos que compõem a realidade de forma articulada, as interações entre os sujeitos produzindo conhecimentos, entre os diferentes conhecimentos e tipos diferentes de conhecimentos, assim dessa maneira, nas suas diversas dimensões, sem reduzi-los, sem nos desfazermos do que não pode ser calculadamente analisado e explicado, mas, ao contrário, tentando dar conta dessas singularidades, teremos de reconhecer também o princípio de incompletude e de incerteza que o pensamento complexo, do qual nos serviremos, comporta (id.ib., p.177). Ao mergulharmos nessas realidades, esse desafio nos faz pensar que estamos em meio a um tecido formado pelo entrelaçar de inúmeros e diversos fios, alguns deles nós mesmos; que esse tecido é uno e múltiplo ao mesmo tempo e que, ao contrário do que podemos conceber com o pensamento ocidental moderno, ele não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o teceram e ainda o valorizam. Os tempos que tem o tempo das salas de aula Passemos, então, à história. Era dia sete de outubro e a professora Luciana corrigia o trabalho de casa: contas (operações matemáticas) que ela ia olhando nos cadernos como alguns alunos haviam feito e em seguida colocando no quadro para eles Regina Coeli Moura de Macedo 6874 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula resolverem. Todos os escolhidos para ir ao quadro faziam parte do grupo do apoio1 e haviam errado, em casa, alguma conta: Luiza, Mônica, Claudia, Paulo, Francisco e Saulo. Ao terminarem de refazer a resolução ali, na sala, mostravam à professora que olhava, via se estava certo e mandava que sentassem em seus lugares. Terminada a correção, a professora escreveu no quadro com letras bem grandes: LIXO, passando para outra atividade. Começou, então, a conversar com eles sobre o trabalho que estão fazendo sobre esse assunto. Mostrou uma revista: “JB Ecológico” que é publicada mensalmente pelo Jornal do Brasil. As crianças já conheciam a revista porque a professora, frequentemente, trazia para mostrar. Nesse número, havia uma reportagem sobre uma empresa que resolvera reciclar o seu lixo do mesmo modo como eles, os alunos da terceira série, pretendiam fazer na escola. A professora disse: “Eles, assim como nós pretendemos também, fizeram uma campanha para dar início à coleta seletiva de lixo. Já estamos fazendo cartazes, vamos ver o que mais nós vamos fazer nesse sentido”. Mostrou essa e uma outra reportagem sobre os recordes do ano obtidos nessa área: o Brasil foi o melhor e também o pior em alguns aspectos, uso de madeira de replantio e desmatamento respectivamente. Disse que iria reproduzir as informações da revista para que eles soubessem quem faz o quê no mundo. Algumas dessas informações, a professora leu naquele momento e, ao ouvi-las, as crianças vibravam ou se surpreendiam. Duas alunas estavam com a mão levantada há um tempo querendo falar: Paula e Mônica. Num determinado momento, a professora pediu que a Paula falasse e ela disse que havia tido uma ideia: organizar uma gincana com brincadeiras, redação e etc sobre o lixo, cujas prendas seriam objetos feitos com outros reciclados que eles mesmos confeccionariam. Outros alunos começaram a dar outras ideias a partir dessa: concurso de produtos feitos com objetos recicláveis, por exemplo. A professora, percebendo que se tratavam de propostas cuja realização não seria possível, os interrompeu dando algumas explicações, como a de não terem condições estruturais para armazenarem lixo na escola e assim encerrou o assunto. Depois ela passou a anotar no quadro: por que é importante a coleta seletiva de lixo? E, conforme as crianças iam 1 O apoio é uma atividade oferecida pelo colégio para propiciar aos alunos que, de acordo com as normas de avaliação da escola, não apresentam bom rendimento. São aulas de português e/ou de matemática, de 1h e 30 min. de duração, que acontecem no contraturno, uma ou duas vezes por semana, conforme indicação da professora. Em algumas situações, essa atividade é realizada no próprio turno do aluno. Por dois anos consecutivos fui professora de apoio nessa escola de que falo e esses alunos citados no texto eram meus alunos. Regina Coeli Moura de Macedo 6875 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula respondendo, anotava também: a) porque diminui a poluição, b) diminui a quantidade de lixo, c) reduz a utilização de recursos da natureza. Neste momento, todos esses acontecimentos me levaram a pensar na questão dos tempos presentes nas salas de aula. O ritmo daquela aula, daquela professora, era ligeiro, ágil. Digo assim, mas não sem levar em conta a relatividade da ideia que busco expressar com o uso dessas palavras, pois os leitores poderiam perguntar: ligeiro, ágil em relação a quê? Tentando então esclarecer, chamo de ligeiro aquele ritmo que procura não deixar muitos intervalos entre as ações, que imprime um encadeamento às falas, às atividades que são realizadas por todos, que procura não “perder” tempo talvez. A professora costumava ter todas as atividades bem planejadas e, muitas vezes, o tempo de que dispunha com os alunos para a sua realização não era suficiente. Isso fazia com que ela não conseguisse cumprir com tudo que havia pensado em fazer, o que a deixava aflita e “acelerada”. Quando tivemos, por conta desta pesquisa, a nossa conversa, eu, ela e a outra professora das turmas, a Marina, disse que, ao contrário do que a colega havia afirmado sobre si mesma, ela se preocupa sim com o tempo. Não considera que tenha um ritmo rápido com o desenvolvimento do programa, tanto que as outras professoras sempre estão à sua frente, mas com o uso do tempo na sala, sim. Talvez seu comportamento se deva ao fato de se sentir “pressionada” quando comparada às outras professoras, quem sabe? Mas, em última instância, o que alega é que se sente comprometida com o cumprimento do “plano” que é a forma como chama o programa previsto para a série. Vejamos o que diz: “Para mim foi igual. As duas turmas queriam falar bastante sendo que a ‘seis’2 chegava mais às conclusões. A ‘seis’ era capaz de descobrir mais as coisas dando jogos. Na ‘seis’ sempre saía, sempre uma criança conseguia perceber; na ‘oito’ nem sempre... E também, assim, eu achei que, é, eles queriam falar muito, muito, principalmente nas questões de ciências e que nem sempre dava espaço para falar, queriam falar muito assim, sabe? Todos querem ler sua resposta, todos têm um caso pra contar... Eu já não deixava porque, ao contrário de você, eu já me preocupo com o tempo. E aí, eu também não sei... É, de repente tem que 2 Está se referindo à turma 306, uma de suas de terceira série. A outra é a 308 que ela chama de “oito”. Regina Coeli Moura de Macedo 6876 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula pensar uma coisa diferente se eu pegar uma outra terceira série, uma turma ano que vem, porque esses assuntos de ciências; eles têm muita coisa pra falar então, dependendo do exercício que você passe, tem que tirar o dia pra aquilo e esquecer o resto, e ouvir as histórias, ouvir, ouvir, mas eu não consegui. Eu sempre tinha um planejamento e ficava querendo cumprir e acho também que eles ficaram um pouco silenciados comigo. Aparentemente de forma contraditória, em outro momento da conversa, quando falávamos sobre a participação das professoras na elaboração do planejamento do trabalho a ser realizado com os alunos, ela disse: Eu também não imprimo ritmo rápido porque é aquilo que está previsto não. Tanto que, por exemplo, sistema, algarismos romanos, só eu que não dei, nem sei se tem uma outra coisa, mas se eu sentir que a turma está precisando ir mais devagar eu vou. Mesmo que eu não tenha dado, isso, isso, aquilo outro. Eu não me sinto na obrigação de, por exemplo, se já é pra começar o ano fazendo um diagnóstico eu sempre levo muito mais tempo que todo mundo, eu não consigo fazer um diagnóstico rápido, em uma semana ou duas, pra ver se aprendeu as coisas que trouxe da outra série. Nunca é rápido! E já começo o conteúdo novo também um pouco depois, é... Sempre vou mais devagar. Ciências eu me sinto assim também, bem livre; a gente pode dar muita opinião nas coisas como vão ser conduzidas, até pra o conteúdo que vai ser dado. Todo trimestre eu me sentia... eu falava: “não, isso vai dar, isso não vai dar”. É... e procurava trazer muitas questões de jornal, de televisão, pra ciências, só que na verdade são tantas informações que você tem, que você tem cada dia para trazer, que para você trabalhar bem um artigo de jornal também leva tempo. Tem muitas palavras que eles não entendem, então, às vezes, eu pegava o artigo e reduzia, ou botava só uma parte; botar um artigo inteiro, às vezes aquilo se torna um complicador porque há coisas que eles não entendem, há citações, são siglas, então, às vezes, lamentava ter pouco tempo para não estar trazendo mais coisa, usei muita coisa do JB ecológico – muito bom – usei muito a revista Protesto, mostrava as reportagens, deixava passar a revista, era uma coisa que estava assim bem... tinha sempre coisas que atendiam. Em meio às redes cotidianas da escola (Ferraço, 2004) e da sala de aula é possível perceber, através dessas histórias, sua tessitura com a presença de diferentes Regina Coeli Moura de Macedo 6877 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula tempos. Participam dessas redes os alunos e alunas, os pais, as outras professoras – a da turma ou não, as coordenadoras, o “plano”, as informações disponíveis nos meios de comunicação e ela mesma, a professora Luciana, é claro, com seus vários tempos em tensão e conflito dentro dela. É desses tempos que vou falar pensando que sua presença e sua tessitura é bastante importante para a compreensão daquilo que se passa nesse cotidiano da sala de aula. Como professora do apoio, conhecia aqueles que foram chamados ao quadro para corrigir as contas do trabalho de casa, pois eram todos meus alunos. Conhecia também um pouco da turma e do restante das crianças, pelo contato que tinha nos momentos em que ia à sala buscar os que iam para a aula comigo, pelos dias em que lá estava para a realização da pesquisa e também pelos comentários que as professoras faziam sobre eles em reuniões de planejamento ou conselhos de classe. Sabia, então, sobre aqueles tempos, da professora e dos alunos, que percebi tecerem aquela aula, sabia que ora eles se cruzavam ora não. Em muitos momentos, traçavam linhas paralelas em relação a alguns, enquanto que essas mesmas linhas em relação a outros se encontravam. E tendo esse aspecto como parte do todo complexo que são as salas de aula, buscarei compreendê-lo, narrando outras histórias, vividas com alguns desses alunos. Na primeira delas, eles contam os seus sentimentos e as suas experiências com e em alguns dos tempos da sala de aula. Tempos e sentimentos de um espaço complexo Como todas as semanas, cheguei à sala da turma 308 para buscar os alunos do grupo do apoio de língua portuguesa. Ao chegar à porta, a professora Marina, que junto com a Luciana era professora da turma, pediu-me que levasse para a aula naquele dia um outro aluno, o Jeferson, porque no último texto que fez, ele “se embolou um pouco e fez um texto muito confuso” na sua avaliação. Não havia lido o que o Jeferson escrevera, mas, dias atrás, a professora já comentara que “tem achado os alunos do grupo de apoio melhor, em especial o Francisco, mas que tinha se surpreendido com um outro aluno que não é do grupo, o Jeferson”. Esse era, então, o menino que ela queria que tivesse algumas aulas comigo para que ele tivesse oportunidade de melhorar Regina Coeli Moura de Macedo 6878 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula a escrita dos seus textos. Apesar da explicação da professora, Jeferson fez uma cara de susto e disse: “eu?” Fomos para a sala onde seria a aula. Era fácil notar o quanto o menino estava atordoado e incomodado com a sua presença entre aqueles outros alunos e comigo como professora. Percebendo esse sentimento, falei de novo com ele, perguntei o que sentia e ele, tentando explicar para si mesmo e ao mesmo tempo entender o que estava fazendo ali, dizia que ele não era, não pertencia ao grupo do apoio, só tinha ido naquele dia porque a professora mandara. Perguntei ao Jeferson por que estar ou não na “recuperação” era tão ruim para ele. Sua reposta foi que “os colegas ficam zoando”. Naquele dia mesmo, quando saiu da sala, o Fernando – um outro menino da turma ficou dizendo: “Ah! Tá em recuperação!” E ele não gosta disso. Para tranqüilizá-lo e tentar viabilizar sua participação na aula, falei que sua professora já havia dito o que tinha acontecido, me referindo ao tal do texto confuso feito por ele. Então, ele não deveria ficar tão preocupado por estar ali, trabalharíamos juntos para que superasse os problemas que vinha tendo na escrita de textos. Tentei dar continuidade à aula, mas o assunto em questão motivou os outros a contarem também as suas experiências com esses sentimentos pelo fato de pertencerem ao grupo do apoio, a maioria desde o ano passado ou mesmo desde anos anteriores. Francisco contou como era sua relação com a turma na segunda série. Havia chegado, com a família, de um outro estado do país e sido transferido para essa escola. Lá cursara a primeira série, que era bem diferente da primeira série daqui, por isso havia muitas coisas que não tinha estudado ainda. Falou que os colegas o chamavam de “burro”, diziam que ele não ia passar de ano, cochichavam quando ele errava e isso o deixava triste. Mas, mesmo surpreendendo os colegas, ele passou para a terceira série e ali estava. Perguntei ao Francisco sobre esse ano, se as coisas continuavam iguais. Ele disse que não, que haviam melhorado. Mas o Felipe entrou na conversa e disse que os colegas da turma ficam falando baixinho quando o Francisco demora a responder o que a professora pergunta: “Ai! Não sabe!” Disse isso reforçando o que os outros tinham acabado de falar: “os que não são do grupo de apoio, ficam zoando, dizendo que eles não sabem, falam, ficam olhando”. Os olhos do Felipe, nesse momento, ficaram marejados. Ao perceber, pedi que falasse como se sente e ele disse: “mal”. Falou também que a professora não aceita quando eles, do grupo do apoio, acabam rápido. Se Regina Coeli Moura de Macedo 6879 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula for um outro aluno ela aceita, recebe o trabalho, teste, prova o que for, mas se for um deles, ela diz: “Ah não! Você fez isso com pressa, não aceito, vá ver o que você fez!” E sem nem olhar, devolve. “E o trabalho pode estar certo” – diz o Felipe. Francisco voltou a falar, agora sobre o colega. Disse que a turma fica impaciente com ele, reclamam que ele lê muito devagar e baixo, que ninguém entende nada. Num outro dia, os alunos estavam fazendo um teste para avaliação com a professora Luciana e ela autorizou que eles perguntassem, mas só depois que já tivessem pensado bastante. Uma menina, que é considerada uma excelente aluna, veio me perguntar algo que talvez não esperássemos que ela perguntasse, por imaginarmos que ela já saberia resolver sozinha aquele problema matemático. Sua dúvida era sobre como poderia ali, naquela situação, realizar uma multiplicação, a operação que lhe parecia dever usar, se não era possível, pela pergunta feita, obter um número maior como resposta. Mas ela estava errada, poderia sim ser um número maior a resposta, aliás, era mesmo um número maior, apesar de não parecer. Sua dúvida era a mesma que a de outros alunos, que não eram considerados tão “bons alunos” quanto ela. O Saulo foi outro que me perguntou algo sobre um problema que não trazia todos os dados necessários expressos em números, escritos com algarismos, mas com palavras. Queria saber com poderia, com os dados que tinha, fazer os cálculos necessários para resolver o problema. Dizia ser impossível! Depois da aula contei para a professora essas duas situações, tentando pensar, junto com ela, como nós, muitas vezes, tentamos orientar o pensamento do aluno para a resolução de problemas matemáticos através de modelos que apresentamos. No meu entender, era isso que estava atrapalhando os dois alunos no seu processo de busca de possíveis soluções para os problemas que tinham para resolver. Comentamos também como alguns tipos de dúvidas apresentadas por um determinado grupo de alunos não nos surpreende enquanto que por outros sim. Esses que estão enquadrados por nós no modelo de “bom aluno”: inteligente, estudioso, cumpridor dos seus deveres, participativo, que sempre têm algo a dizer para contribuir na discussão da turma, também têm as suas dúvidas, no entanto, espantamo-nos com elas como se isso não pudesse acontecer. Como disse, são vários e variados tempos acontecendo simultaneamente. Isso é o que podemos perceber nessas e em tantas outras salas de aula que vemos e vivemos. Regina Coeli Moura de Macedo 6880 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula Ferraço (2004) apresenta uma ideia semelhante a essa como resposta a uma questão bastante importante para nós que pesquisamos com o cotidiano. Ele diz que cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que acontece nas escolas ... quando pensamos com o cotidiano das escolas encontramos dificuldades em responder quando é que acontece, por exemplo, o planejamento, a avaliação, a aprendizagem, o ensino, entre outras tantas questões. De fato, se nos situamos em meio às redes cotidianas das escolas, e com os sujeitos, a resposta para essas questões é uma só: acontece tudo ao mesmo tempo e com todos! Sendo assim, no que isso implica? Se acontece tudo ao mesmo tempo e com todos, se cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que acontece nas escolas quando estamos em meio às suas redes cotidianas, podemos, com essas histórias, nessas histórias, penetrar nos espaços de vida que elas contam e tentar caminhar por alguns percursos para buscar perceber esse tempo tecido com os diferentes tempos como que tecendo um outro, próprio desses sujeitos nas relações que eles ali estabelecem. Temos a presença do tempo limite, produzido pela organização escolar, a norma, que impõe à professora e aos alunos terminarem e começarem numa determinada marca temporal preestabelecida. É uma das regras que, com nos diz Foucault (1987) define uma ordem que a escola como sistema disciplinar faz respeitar. As micro penalidades que o não cumprimento dessa ordem traz também estão presentes nos sentimentos e privações que a professora e os alunos experimentam com aquilo que não puderam realizar: o que ela não conseguiu ensinar, o que eles não conseguiram aprender, as tarefas que ambos não conseguiram cumprir naquele tempo previsto. Sentimentos de preocupação, angústia, baixa expectativa, baixa auto-estima são exemplos do que pode circular nas salas de aula por conta da presença desse tempo limite. Esse tempo se coloca nas dinâmicas da sala de aula através das professoras que buscam cumprir, como previamente definidos, os seus tempos de aula e o de suas imposições em relação à duração de um aprendizado, ao tempo destinado a um exercício etc. Mas não só, ele também se faz presente através dos próprios alunos, das coordenadoras, da diretora, dos pais e mães, em práticas que fazem uso desse mesmo tempo limite ou experiências que com ele têm relação. Regina Coeli Moura de Macedo 6881 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula Através do que disseram os alunos presentes à aula de apoio naquele dia, alguns desses sentimentos foram também expressos. Apesar de participarem muito bem dessas aulas, diziam claramente que não gostavam de estar ali porque “os colegas zoavam” e eles se sentiam mal com isso. Não gostavam quando as atitudes diferentes da professora com relação a eles lhes pareciam baixa expectativa. Apesar de reconhecer e tratar desses comportamentos da professora como de “cuidado” (Carvalho, 1999) com esse grupo de alunos, é inevitável reconhecê-lo também como gerador de insegurança e até de indignação em alguns alunos e em alguns pais. Os tempos das redes cotidianas da escola fora da sala de aula Numa fértil conversa que tive com o pai de uma das alunas dessa turma, a Luiza, que era minha aluna no grupo do apoio, também pude notar, entre outras coisas, o quanto alguns dos sentimentos de que aqui tratei como possíveis micro penalidades participam da vida de alguns sujeitos dessa rede que é a sala de aula, mesmo aqueles não presentes todos os dias. A conversa me provocou pensar na simultaneidade dos tempos, característica da vida, contraposta à linearidade das tarefas escolares, com seus limites de início/fim e outros. Como a escola também faz parte da vida e vive essa simultaneidade, muitas vezes, a linearidade e a presença do tempo limite são incompatíveis, o que traz contradições, conflitos e contraposições. Ainda foi possível refletir sobre os tempos partidos das várias aulas, das várias professoras, das várias disciplinas criando uma expectativa de partição dos sujeitos e de limitação clara e quase idêntica para todos. Apesar de ser uma expectativa e de sua plena realização não ser possível, ela acaba gerando também conflitos, contradições e contraposições, embora não em todos os sujeitos e nem da mesma maneira. Esse pai, que procurava acompanhar de perto a vida escolar de sua filha, admitia que havia um problema da Luiza com a matemática desde anos anteriores e alertava para a necessidade dos adultos que lidavam com ela terem cuidado com o que diziam e o que faziam nessa relação, pois isso poderia fazê-la desenvolver “bloqueios” que prejudicariam bastante sua vida escolar. Contou que sua esposa não gostava de matemática e conseguia influenciar as filhas nesse mesmo sentido. Pedi que falasse como ele avaliava a situação da Luiza e ele disse: Regina Coeli Moura de Macedo 6882 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula A aprendizagem dela é normal, só que falta mesmo mais empenho, entendeu?A Luiza é assim, ela gosta de brincar, ela não se interessa pelo estudo, ela só está em recuperação porque ela estuda pouco, se estudasse mais, se levasse mais a sério as tarefas, não estaria assim, entendeu? Talvez, como a minha esposa tem trauma de matemática, então, começou a falar: ‘Ah! Eu não gosto de matemática e tal’. Então já colocou na cabeça dela essa dificuldade, da mais velha. Então, eu creio que é mais assim, pode vir da minha esposa, não tem uma certa sabedoria na hora de falar, entendeu? É... e falta mais o estudo mesmo, falta mais o estudo mesmo, porque matemática se treinar não tem como dar errado, entendeu? E ela não tem dificuldade não. Como podemos perceber, ele considerava que o tipo de incentivo que dá à filha, confiando nas suas possibilidades, mostrando o que é capaz de fazer, acompanhando de perto o que está estudando, orientando para que ela estude mais, cuidando do que não vai bem e para isso se utilizando de todos os recursos de que poderia dispor, era suficiente para que ela conseguisse superar os problemas com a matemática e tivesse um percurso de sucesso na escola. Pensava que o tipo de tratamento que, algumas vezes, a mãe, em casa e a professora, na escola, davam a ela não contribuía para a segurança que precisava ter para enfrentar as questões com a disciplina. Esse pai participava ativamente dos processos pedagógicos daquela sala de aula, tinha seus saberes sobre eles e os valorizava, tanto que, na medida do possível, tornava-os conhecidos das professoras. Alguns desses saberes eram sobre os sentimentos que a filha poderia desenvolver a partir das relações que tinha com os adultos e o que eles diziam sobre ela e suas aprendizagens. São esses sentimentos de menos valia, de insegurança e de ansiedade percebidos pelo pai que busco tratar aqui como possíveis micro penalidades fruto também de possíveis imposições do tempo limite presentes na dinâmica da sala de aula. Luiza, os outros alunos do grupo do apoio e porventura outros de que não falamos aqui têm de lidar dia-a-dia com essas e com outras prescrições desse tempo. E vale lembrar, como já dito antes, que isso não se restringe aos alunos. Professoras, pais e mães, outros profissionais da escola também vivem essas prescrições. E como será para cada um? Como será que experimentam esse confronto dos tempos da vida de fora e de dentro da escola? A professora que entra numa sala de uma determinada turma, naquele tempo estipulado e “dá” a sua aula previamente planejada. Depois desse tempo, essa mesma professora que sai, entra em outra sala, com outros alunos, para “dar”, Regina Coeli Moura de Macedo 6883 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula muitas vezes, a “mesma” aula planejada. E quanto aos alunos? Como devem experimentar essas incompatibilidades entre o tempo da casa e da vida quando em oposição ao da escola com as suas regras, suas normas? Como será que vivem os limites das partições expressas nos tempos das diferentes disciplinas, na relação com as várias e também diferentes professoras naqueles tempos, nos tempos previstos para a realização das tarefas e por fim, naquele esperado para a conclusão de suas aprendizagens? Um dado importante apresentado pelo pai na conversa comigo é o momento em que ele fala da forma como a Luiza lida com sua vida escolar e suas questões com a matemática. Conta que, em casa, ela brinca regularmente de “escolinha” com as suas bonecas e ele fica escutando quando ela “ensina” o que está estudando em ciências, por exemplo, cuja professora é a mesma que matemática. Percebe que ela tem uma boa relação com a escola e com as professoras, demonstra gostar do que vive lá, comenta muitos assuntos das aulas, inclusive as de apoio que tem comigo. Afirma que a menina não é estressada, que ela se comporta de uma forma bem “light” em relação aos estudos. E como durante toda a conversa, fez comparações entre as suas duas filhas, ambas estudantes do colégio, para falar sobre esse aspecto: Mas ela entende, não nesse estresse, entendeu? É uma personalidade diferente, enquanto a outra (a irmã), ‘pô’, se estressa quando tem uma tarefa, ela se estressa ‘pra caramba’, já a Luiza não se estressa assim, então é uma coisa boa. É, tem uma parte boa, entendeu? Dizem que os filhos mais velhos são mais conservadores, já os filhos mais novos, por exemplo, o caçula, é mais light, entendeu? Tem uma parte que é boa e tem uma parte ruim, para ser gerente de pessoal é bom não se estressar muito, saber levar ali, mas talvez tenha um lado ruim também... Podemos pensar que o que faz o pai é apresentar as suas preocupações e a sua experiência tanto com a escola, como com o que a Luiza é, seu jeito de ser e de viver na escola e fora dela. O que me parece é que ela tem uma outra maneira de lidar com esse tempo sobre o qual estamos refletindo. A sua prática envolve também outros tempos Regina Coeli Moura de Macedo 6884 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula além do tempo limite que junto dela busca uma presença impositiva. Outros tempos que estão dispersos nas práticas dos sujeitos da sala de aula. Larrosa (2003) nos apresenta, em um belo texto, uma outra concepção do tempo do estudo, do estudante, que podemos encontrar também na escola apesar dele não se referir a ela, que pode não se restringir ao estudante, que pode estar enfim, presente nessa trama da sala de aula que tentamos compreender. “O estudante tem tempo. Todo o tempo. Um tempo que é sempre agora. Um tempo livre, liberado desse transcorrer crônico, feroz, linear, cumulativo e sempre urgente que escraviza e destrói com as suas rodas aos que neles vivem. O agora livre do estudante está fora do tempo: fora do passado e do porvir, fora também da presença do presente, desse presente que quer ser outra coisa que não um instante que passa e que incessantemente se dissolve em passado e se abre ao porvir...” (p.17) Esse também é um tempo quando não vivido, desejado pelos sujeitos das salas de aula, entre eles os estudantes de quem Larrosa fala. Esses vários tempos compõem uma textura para o tecido que as práticas cotidianas vão tecendo dia a dia. São fios de várias cores, de várias espessuras e de várias formações que se encontram, se cruzam, se afastam, se trançam. E já que chegou o tempo de terminar... As situações que essas histórias apresentam permitem pensar sobre as diferentes ideias, experiências, concepções e práticas do tempo de cada um e do grupo para tecer possíveis compreensões com as perguntas feitas anteriormente. As crianças puderam falar sobre isso. Disseram como se sentem envolvidas nesse ou naquele, com esse ou com aquele tempo das dinâmicas da sala de aula, nas relações que se estabelecem entre os sujeitos e com os conhecimentos. Da mesma forma o pai, ao relatar como participa da vida de sua filha na escola e o que sabe sobre essas suas relações. Nos diálogos que pude ter com as professoras, como professora de apoio e com os alunos, pude perceber as oportunidades que todos tivemos de saber um pouco mais de nós mesmos, da escola em relação aos conhecimentos escolares aprendidos e das dimensões do tempo vividas e Regina Coeli Moura de Macedo 6885 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula exigidas nesse cotidiano. Acontece tudo ao mesmo tempo com todos nas redes cotidianas da escola e da vida (Ferraço, 2004). Alguns desses sujeitos praticantes dessas salas de aula vivem esse tempo limite sofrendo micro penalidades, como alguns dos alunos e como a professora de que falei. Contudo, esses mesmos alunos e outros, ou essa mesma professora e outras vivem esse mesmo tempo de maneiras diferentes dessa. Luiza vive a vida de casa, da família, e também a da escola “ao mesmo tempo” quando leva e traz de um lugar para o outro o que faz, pensa, sente e aprende. Ela “dá” aulas para as suas bonecas, brinca e estuda simultaneamente, mas não que isso faça parte dos seus planos, simplesmente ela está vivendo a sua vida de criança em interação com as pessoas e as coisas que estão ao seu redor. Na avaliação do seu pai, ela brinca até demais! Na escola, ela e todos os outros alunos experimentam o tempo único para a realização das tarefas, as mudanças de enfoque provocadas pelo entra e sai das várias professoras e as disciplinas que ensinam. Essas experiências são vividas por todos, mas cada qual a sua maneira. O que posso pensar é que a Luiza consegue viver de maneira íntegra, ou seja, sem se partir, as incompatibilidades entre o que se passa na “vida real” e as prescrições escolares. O que não significa que essas incompatibilidades entre tempos diferentes são vividas também sem insegurança, tensão e conflito entre ela e o que é esperado pelos pais, pela professora e até por ela mesma em relação à matemática, por exemplo. Assim pode ser com os outros alunos, ou não. A essa reflexão, ajuda acrescentar, para melhor compreender o que pretendo, Morin (1996) quando trata das sociedades históricas como mistos de coação e de ordem imposta... e de interações espontâneas (p.113). Essa é uma ideia que ele desenvolve ao apresentar e defender a necessidade da prática de um pensamento complexo. No cotidiano das salas de aula, a presença de vários tempos em encontros e desencontros constituindo, inclusive, os seus sujeitos, pode nos fazer perceber esse misto. Não há somente uma concepção de tempo que durante todo o tempo e na prática de alguns sujeitos se coloca como hegemônica, estabelecendo uma só ordem naquela sala de aula. Há um misto dessa ordem que coage, com as interações espontâneas dos sujeitos que fazem parte dessa rede. Compreender a complexidade dessas dinâmicas que no cotidiano captamos com os nossos sentidos é importante porque dessa forma podemos nos aproximar da potencialidade disso que Morin chama de interações espontâneas e que nós poderíamos também chamar, como fez Certeau (1994), das astúcias dos Regina Coeli Moura de Macedo 6886 A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula praticantes no cotidiano, ou seja, as maneiras astuciosas como os sujeitos usam as regras estabelecidas nos espaços sociais, não nos permitindo, com isso, acorrentar pelas previsões e determinações da ordem imposta às escolas e à educação. Referências bibliográficas ALVES, Nilda. Trajetórias e Redes na formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 1998 ________ . Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês B.; ALVES, Nilda. A pesquisa no/do cotidiano das escolas sobre redes de saberes. 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Regina Coeli Moura de Macedo 6888 IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES “DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO” POLÍTICAS E PRÁTICAS ESCOLARES: UM OLHAR SOBRE A CULTURA ESCOLAR CARIOCA Tatiana Bezerra Fagundes JOÃO PESSOA - PB - BRASIL 10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca POLÍTICAS E PRÁTICAS ESCOLARES: UM OLHAR SOBRE A CULTURA ESCOLAR CARIOCA1 Tatiana Bezerra Fagundes Mestranda (PropEd – UERJ) RESUMO: Este trabalho objetiva problematizar os pressupostos da aprendizagem que tem sustentado as atuais políticas educacionais no Rio de Janeiro para dar conta de levar os alunos ao domínio dos conteúdos escolares. Para isso, discute-se a concepção de aprendizagem que acompanha a educação escolar brasileira, enfocando a educação carioca, a partir da década de 70 até os dias. Nesse percurso, percebe-se que se passou de uma concepção de aprendizagem que tinha suas bases no behaviorismo para aquela que se sustentava no construtivismo de Piaget e/ou no sócio-interacionismo de aliado aos estudos sobre os ritmos diferenciados de aprendizagem. Mais adiante, chegou-se a uma concepção de aprendizagem que focaliza centralmente sua natureza social revelando a necessidade de se repensar, mais uma vez, as políticas direcionadas a sustentar as práticas de ensino e aprendizagem em sala de aula. No entanto, as atuais políticas de educação que estão sendo implementadas no Rio de Janeiro parecem remontar a década de 70 trazendo para dentro das escolas os pressupostos de aprendizagem fundamentados no behaviorismo. Em consequência, a pluralidade de sujeitos aprendizes pode estar sendo negligenciada direcionando o processo de aprendizagem para um sujeito ideal que não encontra similaridade entre os alunos da rede de ensino carioca. PALAVRAS-CHAVE: Práticas Escolares – Cultura Escolar – Políticas Educacionais. Introdução A aprendizagem escolar tem sido o principal alvo das atuais políticas voltadas à educação. No entanto, esta aprendizagem tem valorizado mais os conteúdos escolares, sobretudo aqueles relacionados ao domínio do código escrito o mais precocemente possível, do que a aprendizagem que tem a perspectiva de formar o aluno enquanto 1 Este trabalho é orientado pelo Professor Doutor Luiz Antonio Gomes Senna (Programa de PósGraduação em Educação - UERJ). Tatiana Bezerra Fagundes 6892 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca pessoa, isto é, onde se considerem todos os aspectos do seu desenvolvimento – físicos, sociais, emocionais, cognitivos e intelectuais (SENNA, 1997). A expectativa de se encaminhar todos os alunos, no mesmo ritmo a um aprendizado comum dos conteúdos considerando, principalmente, aspectos relacionados à idade-série, tem levado as redes públicas de ensino do país, entre elas a do Rio de Janeiro, a caírem em armadilhas que de alguma forma sempre estiveram presentes na história da educação brasileira. Entre elas: “[...] o entendimento da igualdade como produção do uniforme e não como direito à diferença; a formação docente entendida como aperfeiçoamento, treinamento ou reciclagem; a busca tecnicista de solução para o problema do baixo rendimento do ensino público fundamental é médio” (PATTO, 2008, p.35). Nesse contexto, discutir os pressupostos da aprendizagem e seus possíveis avanços e recuos faz-se necessário para tentar-se compreender para onde caminha a educação pública carioca. Este é o objetivo do presente texto. Do behaviorismo à natureza social da aprendizagem: um olhar sobre as políticas educacionais e o seu contexto sócio-histórico Existe na educação pública do país dois grandes marcos históricos contemporâneos que foram fundamentais para se buscar constituir a chamada escola para todos2. Eles se referem, respectivamente, a obrigatoriedade do ensino para crianças com idade entre 7 e 14 anos, lançado pelo dispositivo da lei 5692⁄713 e a consolidação desta lei alcançada pela universalização do acesso ao ensino quase 30 anos após sua implantação (OLIVEIRA, 2007). Esta consolidação foi fomentada pelos estudos realizados no país que mostraram a disparidade entre o quantitativo de crianças em idade escolar e o número de matrículas apresentados pelas escolas (BRANDÃO, 1983; FERRARI, 1985; RIBEIRO e 2 No início do século XX no Brasil, a noção de “escola para todos” começou a ser empregada para salientar a necessidade de mão-de-obra qualificada para industrialização do país (MAGNANELLI, 2008), mais tarde esta mesma expressão passou a ser usada para chamar atenção à necessidade de a escola ser uma instituição onde todos os alunos pudessem se desenvolver, respeitadas as singularidades de cada um (CALDEIRA, 2009). 3 Art. 20. O ensino de 1º grau será obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo aos Municípios promover, anualmente, o levantamento da população que alcance a idade escolar e proceder à sua chamada para matrícula. Tatiana Bezerra Fagundes 6893 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca FLETCHER, 1987; RIBEIRO, 1989) e, mais adiante, por ter tornado evidente a dificuldade de a escola lidar com um sujeito social estranho ao que se compreendia como aluno (MOYSÉS, 1989; MOYSÉS; COLLARES, 1992; MATTOS, 1992, 1996; SOARES, 1994; PATTO, 1999; SENNA; 1998, 2004). A partir dessa discussão em meados dos anos de 90 a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9394/96) foi sancionada. A nova LDB, além de ratificar o ensino fundamental obrigatório, inclusive para aqueles que não tiveram acesso a ele em idade própria (Art. 4º), deu legalidade às escolas organizarem-se de diferentes maneiras para dar conta da aprendizagem do aluno (Art. 23) o que não fora previsto na lei 5692/71 na década de 704. Nos anos de 70, o panorama educacional era, de um lado, a escola aberta para todos e, ao mesmo tempo, a dificuldade de as crianças terem acesso a ela. Os que tinham acesso a escola, por sua vez, saíam dela quase na mesma proporção em que entravam, ou porque não se enquadravam, ou por não suportarem as sucessivas repetências a que eram submetidos (PATTO, 1986). Subjacente a estas práticas de repetência, exclusão e banimento (SENNA, 2008) existia um conceito de aprendizagem, e é isto que nos interessa neste trabalho, fundamentado na corrente psicológica behaviorista (comportamentalista) (SKINNER, 1967). O behaviorismo postula que forças externas ao indivíduo são os determinantes principais de seu comportamento. A partir desse comportamento é possível verificar e mensurar a aprendizagem. Dentro de tal visão, o indivíduo é sempre paciente de um processo que ocorre, à maioria das vezes, à sua revelia. É matéria de ensino apenas o que é redutível aos conhecimentos que podem ser observados. Os conteúdos de ensino são as informações, princípios científicos, leis, etc., estabelecidos e ordenados numa sequência lógica e psicológica (LUCKESI, 1994). A educação dentro dos moldes behavioristas orientava-se de modo a formular precisamente os objetivos para a aprendizagem que era aferida a partir da observação do comportamento do aluno e, sobretudo, pelos escores dos exames escolares 4 Ressalte-se que, antes da nova LDB algumas políticas de educação, tal como o bloco único, permitiram as escolas organizarem-se de modo diferenciado. No caso do bloco único, isso se deu para que o afunilamento da 1ª para a 2ª série sofresse um alargamento e permitisse ao aluno dar continuidade a carreira escolar sem sofrer retenções já nos anos iniciais de escolarização (MATTOS, 2007). Tatiana Bezerra Fagundes 6894 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca minuciosamente preparados (GAMA; OLIVEIRA, 2005). Os alunos deveriam todos, e da mesma maneira, alcançar tais objetivos. Aqueles que porventura não os alcançassem, começaram a ser considerados indivíduos que possuíam algum tipo de anomalia revelada pelo baixo rendimento nas provas e por seu comportamento inadequado ao padrão de normalidade que caracterizava o sujeito aluno (PATTO, 1999). É daí que se origina a prática de avaliar a aprendizagem privilegiando notas em provas e testes e o comportamento em sala de aula. A utilização dos pressupostos comportamentalistas na educação brasileira naquele momento coadunou-se ao regime político então vigente, a ditadura, que pretendia formar mão-de-obra para o trabalho nas indústrias que se consolidavam naquele período (PAIVA, 1999). Tanto a minoria que passava com sucesso pela escola quanto os que saíam dela sem cumprir os anos de escolarização previstos, eram absorvidos pela indústria e pelo setor de serviços em expansão. A educação escolar, liberal-tecnicista, organizava-se de forma a privilegiar a aquisição de atitudes e habilidades que fossem úteis à integração do indivíduo à máquina social. A escola, sustentada pelo modelo positivo de ciência, tendo o behaviorismo como modelo psicológico de aprendizagem e o tecnicismo como orientação pedagógica, não teve dificuldades em promover e justificar o grande número de alunos que eram expulsos de seu âmbito por uma suposta incapacidade pessoal de se adequar a ela. No entanto, a inadequação a escola não significava desagregação social, pois mesmo com poucos anos de vivência escolar os indivíduos conseguiam se inserir formalmente, por meio do trabalho, na sociedade. Atualmente, “as novas exigências do mundo do trabalho colocam cada vez mais a escola como única possibilidade de acesso ao restrito mercado de trabalho dos nossos dias, embora ela não garanta a inserção” (CODO, 1999, p.67). Nos anos de 80, com o fim da ditadura e a abertura política, a educação escolar passa a ser reclamada pela sociedade que se democratiza como um bem público, direito de todos e dever do Estado. Amplia-se consideravelmente o acesso a escola e a discussão passa a girar em torno da permanência dos alunos nesse espaço para que, de fato, se cumpra o seu direito à educação (MATTOS, 1992, 1996, 2002, 2005; SOARES, 1994; PATTO, 1999; SENNA; 1998, 2004; CARVALHO, 2001, 2003; FREITAS, Tatiana Bezerra Fagundes 6895 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca 2004; BARRETTO; SOUSA, 2004, 2005). Nesse mesmo período, os estudos de Jean Piaget e Lev S. Vygotsky são revisitados e tomam força no campo educacional brasileiro dando conformação a um novo modelo de aprendizagem que vieram a fomentar novas práticas de ensino-aprendizagem. Ao mesmo tempo em que as políticas públicas de educação se voltavam à correção do fluxo escolar e da defasagem idade-série, o construtivismo de Piaget e o sócio-interacionsismo de Vygotsky lançavam as bases para o desenvolvimento de tais políticas. A psicologia piagetiana deu suporte a uma pedagogia centrada na criança 5 e a de Vygotsky, por sua vez, a uma pedagogia sócio-histórica onde a interação da criança com o mundo e com os outros são tomados como fatores preponderantes para formação de conceitos que levam ao conhecimento. A criança, em ambas as teorias, é tomada como um sujeito ativo na construção do conhecimento. Aliado a isto surgiram os estudos sobre a diferenciação nos modos de ensino e aprendizagem, através da chamada Pedagogia Diferenciada6 (MEIRIEU, 1985, 1987) que passaram a ser levados em conta quando da organização do currículo escolar. Nesse contexto, muitas escolas em diferentes estados do país passaram a organizar suas séries em ciclos7 a fim de permitir a criança construir o conhecimento de determinados conteúdos de acordo com seu próprio ritmo (BARRETTO; SOUSA, 2004). A possibilidade de a escola organizar-se levando em conta o processo de aprendizagem encontrou na nova LDB o seu suporte legal: “A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de período de estudos, grupos não- 5 Vale ressaltar que o construtivismo de Piaget não cria um método pedagógico baseado em seus estudos sobre a natureza do conhecimento humano, diferentemente do Behaviorismo que tem na educação a base de seu desenvolvimento. 6 A Pedagogia Diferenciada propõe que o professor se abra às demandas de aprendizagem tão diversas quanto os alunos que compõem a sala de aula, superando assim o ensino tradicional que pretende ensinar a todos como se fossem um só. 7 Os ciclos “têm recebido denominações diversas, estando, em certa medida, associados a propostas de promoção automática, avanços progressivos, progressão continuada. Vêm também assumindo conotações variadas ao longo dos quase quarenta anos em que ocorreram as muitas iniciativas de introduzi-los nas redes escolares em períodos, lugares e circunstâncias diferentes. Como dizem Barretto e Mitrulis a propósito deles, cada proposta de governo sobre os ciclos ‘redefiniu o problema à sua maneira, em face da leitura das urgências da época, do ideário pedagógico dominante e do contexto educacional existente’ (2001, p. 103)” (BARRETO; SOUSA, 2004, p. 33 e 34). Tatiana Bezerra Fagundes 6896 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar” (BRASIL, Lei 9394/96, art. 23). As concepções de aprendizagem fundadas no construtivismo e no sóciointeracionismo e entradas nas escolas públicas, seja através da implementação de políticas específicas que alcançassem toda a rede de ensino ou da formação do professor que se baseou nestas teorias, foram um progresso nas práticas pedagógicas. O aluno passou a ser olhado, não como alguém a quem faltava alguma coisa, mas como um sujeito em processo de desenvolvimento e de construção de conhecimento, que não acontecia da mesma maneira que com os adultos. Sustentada pelas teorias da aprendizagem de Piaget e Vygotsky desenvolveu-se no município do Rio de Janeiro uma proposta curricular que teve como objetivo orientar as práticas pedagógicas na escola e em sala de aula, qual seja, a Multieducação8. Ela trouxe para o cenário da educação carioca a possibilidade de trabalhar com os alunos considerando suas potencialidades e ainda o contexto de mundo em que este aluno se encontra. Entretanto, embora a passagem de um modelo de aprendizagem behaviorista para um modelo construtivista e\ou sócio-interacionista tenham representado um avanço nas práticas escolares, este modelo não deu conta da aprendizagem de todos os alunos como era esperado. Entre outras coisas, a demanda por aprendizagem escolar trouxe à tona novos debates a respeito do que vem a ser na atualidade a aprendizagem e quais tipos de sujeitos estão arrolados nos estudos que se desenvolveram a este respeito (SENNA, 2008). Hoje se tem um elemento essencial na compreensão da aprendizagem; a sua natureza social. A aprendizagem tomada como fenômeno social traz consigo uma série de fatores que passam ao largo dos principais meandros de discussão sobre os processos que envolvem a aquisição de conhecimentos. Aprender envolve, sobretudo, a expectativa 8 Outras informações ver: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Multieducação – Núcleo Curricular Básico. Rio de Janeiro: SME, 1996. Tatiana Bezerra Fagundes 6897 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca social de quem está aprendendo e do que está sendo aprendido tangenciada por um conjunto de valores variáveis (grifo nosso). De acordo com GoodNow (2000) é possível esboçar quatro proposições que cada novo membro de um grupo social precisa aprender para ser julgado como membro competente, maduro ou razoável do grupo: 1. Áreas de conhecimento e habilidade têm um valor social variável (valor tanto positivo como negativo). 2. Esses valores não são equivalentes para todas as pessoas: os valores variam de acordo com a pessoa, com a posição social. 3. Estilos de aprendizagem, pensamento e solução de problemas tem valor social variável (tanto positivo como negativo). 4. Esses valores não são equivalentes para todas as pessoas: eles também variam de acordo com a pessoa ou com a posição social (GOODNOW, 2000, p. 293). Isso é tão mais verdadeiro quando se coloca em perspectiva o Brasil como país de uma diversidade cultural e pluralidade de sujeitos das mais complexas (RIBEIRO, 1996). No Brasil, tem-se um conjunto de “brasis” que faz com que o valor dado a um tipo de conteúdo a ser aprendido seja tomado como necessário e relevante de acordo com o contexto no qual se está imerso. Analogamente, pode-se dizer que no Rio de Janeiro, há um conjunto de “rios de janeiros” — embora participantes de uma mesma rede complexa — onde a relevância do que é aprendido pode ter um valor que varia com a conjuntura sócio-cultural. Se levar-se tal fato em consideração infere-se que, para cada realidade escolar há que se ter em conta certo grau de adequação entre o que a escola ensina e o que se apresenta como valor na comunidade na qual ela se insere sob pena de não haver aprendizagem e sim, quando muito, memorização de conteúdos que serão brevemente esquecidos. Tida como fenômeno social, a aprendizagem nos faz ir mais além dos pressupostos teóricos de Piaget e Vygotsky e fomenta uma prática pedagógica cuja essência está em pesquisar em cada contexto e com cada aluno as expectativas sociais que envolvem a aprendizagem de determinado conteúdo. Isto posto, cabem os seguintes questionamentos: O ensino dos conteúdos escolares deve ser generalizável para todas as escolas de uma rede de ensino? Quanto da vivência dos alunos deve ser incorporada pela escola? Será que para o aluno que tem na dinâmica da oralidade a maior expressão da sua cultura, a cultura escrita tem algum valor para si e para o seu contexto que valha Tatiana Bezerra Fagundes 6898 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca a pena ser aprendido? Sob quais circunstâncias esse aluno aprende? Essas são questões que precisam ser (re)pensadas continuamente tendo em conta a pluralidade de sujeitos sociais que permeiam o espaço escolar. De volta ao behaviorismo: o modelo avaliativo e alfabetizador no Rio de Janeiro – um recorte No município do Rio de Janeiro as atuais políticas de Educação que estão sendo implementadas parecem retomar os pressupostos de aprendizagem empregados na década de 70. A aprendizagem escolar volta a ser aferida com base em testes quantitativamente mensurados. Os alunos são conduzidos ao mesmo processo de aprendizagem onde se subentende que todos devem aprender o mesmo conteúdo, da mesma maneira e no mesmo ritmo, cumprindo assim o currículo escolar de acordo com sua idade-série. Um exemplo que pode ser revelador das bases behavioristas que tem dado sustentação à política educacional foi uma avaliação diagnóstica, acompanhada do remanejamento de alguns alunos para uma nova turma. Esta, formada para atender as necessidades de apropriação da escrita por esses alunos. A avaliação diagnóstica encomendada ao Instituto Ayrton Senna teve como objetivo identificar o analfabetismo funcional9 entre os alunos do 4º, 5º e 6º anos das escolas da rede municipal de ensino carioca. A partir desta avaliação chegou-se ao número de 28. 879 analfabetos funcionais10 entre os 211 mil alunos avaliados. A respeito desses resultados, há que se chamar atenção para o seguinte fato: 28.879 alunos analfabetos funcionais representam quase 14% do total de alunos avaliados. Isso significa que, de acordo com esta avaliação, 182.121 alunos da rede estão alfabetizados. Há que se chamar atenção, ainda, para o fato de que, entre os 28.879, verifica-se nas escolas crianças que são leitoras proficientes, mas que não foram favorecidas pelo tipo de avaliação proposta. É possível que se encontre também, entre os alunos tidos 9 É considerada analfabeta funcional a pessoa que sabe ler e escrever, mas não é capaz de interpretar o que lê e nem fazer uso da leitura e da escrita em atividades cotidianas. 10 “Dados do Provão e do Analfabetismo Funcional”, disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/sme Acessado em: 24/04/2009. Tatiana Bezerra Fagundes 6899 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca como alfabetizados, crianças que ainda não tem o domínio considerado adequado do código escrito 11. Mediante os resultados desta prova e da observação do professor em sala de aula quanto ao desempenho do aluno, sobretudo no que diz respeito ao domínio da leitura e da escrita, formaram-se turmas especiais que estão sendo conhecidas como “Se Liga”12. Para estas turmas, foram encaminhados os alunos considerados analfabetos funcionais a fim de que passem por um processo de re-alfabetização. Entre estes alunos, assim como entre os demais que obtiveram sucesso na prova, encontra-se uma diversidade ímpar em termos de domínio da lecto-escritura: alunos que sabem ler; que estão em processo avançado de consolidação da leitura e/ou da escrita; alunos que leem, mas não escrevem; aqueles que não reconhecem as sílabas, mas leem as palavras; aqueles que sabem as vogais e algumas palavras, mas não leem sílabas, etc. Todavia, os professores que assumiram o “Se Liga” foram encaminhados a um curso de capacitação contratado pela SME e dado pelos profissionais do Instituto Ayrton Senna onde está previsto um único modelo de alfabetização em que o ponto de partida parece ser o mesmo para todos os alunos13. Este modelo, segundo as diretrizes do curso, procede dos estudos de Freire e do método dom Bosco. Sobre a apropriação dos estudos de Freire e do método dom Bosco cabe algumas considerações. Para Freire (1986) a alfabetização é muito mais do que mera decodificação de letras ou sílabas. Ela é a leitura da palavra precedida da leitura de mundo. A experiência alfabetizadora freiriana está enraizada no contexto de mundo de cada sujeito, donde derivam palavras geradoras capazes de produzir sentido ao que está sendo lido. Não se trata de decodificar a palavra “Eva”, mas saber quem é Eva e o lugar que ela ocupa na realidade. O método de alfabetização dom Bosco, por sua vez, possui bases freirianas e 11 Pesquisadores que se dedicam a estudar a prática avaliativa observam os limites da avaliação do tipo prova para aferição da aprendizagem (PERRENOUD, 1999; LUCKESI, 1999; HADJI, 2001). Este tipo de avaliação pode não refletir integralmente o ganho de aprendizagem que um aluno obteve além de tentar reduzir a apenas um momento, que pode não ser o ideal para o aluno, uma aprendizagem que é processual e contínua. 12 O “Se Liga” é um projeto do Instituto Ayrton Senna que tem como objetivo alfabetizar crianças com distorção idade-série no âmbito da educação formal. O projeto “Se Liga” teve início no ano de 2001 e já atendeu a 403 municípios. Este ano a SME-RJ, em parceria com o Instituto Ayrton Senna implantou o “Se Liga” nas escolas municipais com a finalidade de alfabetizar os analfabetos funcionais da rede. Para mais informações ver: http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/br/programas 13 De acordo com as diretrizes do projeto, a alfabetização deve começar com as sílabas TA TE TI TO TU que devem ser trabalhadas durante uma semana. Tatiana Bezerra Fagundes 6900 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca tem como objetivo colaborar para que cada alfabetizando aprofunde sua consciência crítica sobre a realidade e sobre si mesmo (FARIA, 2003). Tanto a perspectiva freiriana quanto a do método dom Bosco direcionam-se à prática de alfabetização de adultos. Certamente, a essência problematizadora e política que envolve ambas as obras, primando pela conscientização dos sujeitos historicamente oprimidos na sociedade, podem, e devem ser levadas à prática do professor nas salas de aula das escolas fundamentais. Contudo, transportar os pressupostos freirianos sem um criterioso e rigoroso aprofundamento sobre o modo como as crianças se apropriam da tecnologia da escrita seria desconsiderá-las como sujeitos singulares em processo de desenvolvimento e formação. Ainda assim, não é este o problema maior quanto a apropriação da obra freiriana no projeto “Se Liga”. Na realidade, a experiência alfabetizadora de Freire está nominando equivocadamente um modelo de alfabetização que é justamente o contrário do pensamento por ele desenvolvido. O modelo de alfabetização por trás das práticas do “Se liga” é o método da silabação 14 que tem suas bases teóricas calcadas no behaviorismo e onde está pressuposto que o mecanismo de aprendizagem que o sujeito possui é a imitação através da repetição. Considerando-se a diversidade de sujeitos partícipes da turma “Se Liga” é possível crer que algumas crianças podem ser beneficiadas por este modelo, mas isso não garante que todas elas chegarão ao domínio da leitura e da escrita, pois se trata de um modelo de ensino único que não aventa a possibilidade de tipos diferentes de sujeitos aprendizes, que é o aluno que tem se apresentado em demanda na sociedade carioca (SENNA, 2007). Tanto o tipo de modelo alfabetizador, quanto o tipo de avaliação propostas não estão levando em conta a pluralidade de sujeitos que permeiam o espaço escolar. Tais práticas dão encaminhamento a um processo pedagógico que tende a homogeneizar a aprendizagem e os sujeitos que fazem parte dela. Dessa maneira, o aluno que não se encaixar no perfil de ensino-aprendizagem proposto pode se tornar alvo dos mais 14 Silabação é o método de acordo com o qual se inicia o ensino da leitura com a apresentação das famílias silábicas (MORTATTI, 2000). Tatiana Bezerra Fagundes 6901 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca variados processos de interdição que justifiquem a sua não aprendizagem escolar 15. Estão lançadas as bases para exclusão e banimento de um sujeito social que começa na escola e pode se estender por toda sua vida. Considerações Finais A aprendizagem escolar vem sendo acompanhada de pressupostos psicológicos que dão sustentação a um modelo de mente aprendiz. Esses pressupostos não são neutros e isentos do contexto sócio-histórico no qual se desenvolvem e, a partir deles, empregam-se nas escolas diferentes modelos de ensino-aprendizagem. Dos anos de 70 do século passado até o início deste século, no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, percebe-se que se atravessou de um modelo de aprendizagem calcado no behaviorismo (SKINNER, 1967) para outro sustentando nos pressupostos piagetianos (PIAGET, 1987) e vygotskyanos (VYGOTSKTY, 1993), aliado aos estudos sobre a Pedagogia Diferenciada (MEIRIEU 1985, 1987) para hoje se considerar a natureza social da aprendizagem (GOODNOW, 2000). Este último pressuposto parece ser aquele que mais se aproxima da realidade plural das escolas brasileiras e cariocas e que possibilita refletir sobre outro tipo de sujeito aprendiz que não aquele arrolado na cultura cientifica hegemônica. Por outro lado, a aprendizagem como fenômeno social parece estar se afastando das políticas e práticas educacionais da atualidade. O modelo de aprendizagem que está sendo evocado na rede municipal do Rio de Janeiro possui suas bases calcadas na corrente psicológica behaviorista e pode representar uma lacuna para que o processo de exclusão e banimento se assevere no interior das escolas cariocas e faça recair sobre o aluno a responsabilidade por sua não aprendizagem e sobre os professores a responsabilidade pela má qualidade do ensino. Nesse contexto, é urgente se (re)pensar os pressupostos da aprendizagem que tem dado sustentação as políticas e as práticas educacionais e para onde caminha a educação a partir desses pressupostos. 15 No âmbito da educação, tem-se observado a retomada das justificativas para o fracasso escolar que recaem sobre o aluno, principalmente aquelas que têm fundo psicológico, tal como os Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Tatiana Bezerra Fagundes 6902 Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca Acreditamos que, para a aprendizagem escolar se efetivar no contexto das escolas públicas, sobretudo aquela relacionada ao domínio do código escrito, é preciso uma sólida formação docente inicial e continuada que tenha a perspectiva de buscar em cada contexto e com cada aluno as expectativas sociais que envolvem sua aprendizagem (GOODNOW, 2000) considerando a pluralidade de sujeitos aprendizes na escola; buscar conhecer quem é o sujeito a que se pretende alfabetizar e educar; e, ainda, como este sujeito aprende (SENNA, 2007). Dessa maneira, pode se tornar possível uma educação para todos porque ela será, ao mesmo tempo, para cada um. Referências Bibliográficas: BARRETTO, Elba Siqueira de Sá e SOUSA, Sandra Zákia Estudos sobre ciclos e progressão escolar no Brasil: uma revisão. Educ. Pesqui., Abr 2004, vol.30, no.1, p.3150. BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; SOUSA, Sandra Zákia. 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