corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural

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corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O CURRÍCULO ESCOLAR E AS POSSIBILIDADES
EMERGENTES: CORPOREIDADE, DIVERSIDADE,
IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL
Amanda Macedo Singulani
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
O Currículo Escolar e as Possibilidades Emergentes: corporeidade, diversidade, identidade e diferença cultural
O CURRÍCULO ESCOLAR E AS POSSIBILIDADES EMERGENTES:
CORPOREIDADE, DIVERSIDADE, IDENTIDADE E DIFERENÇA
CULTURAL
Amanda Macedo Singulani1
RESUMO: O presente ensaio tem como finalidade trazer à tona o debate sobre as
implicações do currículo para as diferentes formas culturais que convivem no ambiente
escolar e os sujeitos envolvidos no processo sócio-histórico. Discute-se o lugar
reservado ao corpo nos currículos escolares indiciando um silenciamento e submissão
corporal fruto da dicotomia corpo/mente pertencentes dos sistemas de pensamento
moderno, que tratam a diferença sob o ponto de vista da desigualdade de poder. Embora
o ambiente escolar seja palco de hibridizadas corporeidades e identidades culturais, a
padronização tem forte apelo institucional, moldando os currículos oficiais e ocultos. A
legitimidade e urgência do debate parecem imprescindíveis em uma época em que as
fronteiras socioculturais são fortemente abaladas em função de um processo de
globalização que alcançou todo o mundo, dirimindo diferenças. Para isso, utilizou-se
como metodologia os estudos com o cotidiano em conjunto com a revisão bibliográfica
buscando autores e obras pertinentes com a temática em voga. Acredita-se que ao
anunciar neste ensaio os ricos conhecimentos presentes no ambiente escolar contribuase conferindo visibilidade às potencialidades lá expressas, ainda que a escola não saiba
o que fazer com o que emerge no seu dia-a-dia.
PALAVRAS-CHAVE: Identidades Culturais; Corporeidade; Currículo.
Introdução
O presente ensaio tem como finalidade trazer à tona o debate sobre as
implicações do currículo para as diferentes formas culturais que convivem no ambiente
escolar e os sujeitos envolvidos no processo sócio-histórico.
Discute-se a influência da idéias da modernidade nas instituições como forte
apelo para moldar os currículos oficiais e ocultos sob a ótica da padronização
transpondo um silenciamento corporal fruto da dicotomia corpo/mente pertencentes dos
1
Mestranda em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Pesquisa Estudo Culturais em Educação e Arte –
IM/UFRRJ.
Amanda Macedo Singulani
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sistemas de pensamento moderno, que tratam a diferença sob o ponto de vista da
desigualdade de poder.
Ainda que o ambiente escolar seja palco de variadas e hibridizadas
racionalidades, corporeidades e identidades culturais, tanto o corpo quanto a cultura
popular são desconsideradas como fonte e lugar de conhecimento denunciando as
dificuldades de reconhecimento nas diferenças culturais como fontes ricas e latentes de
crescimento pessoal e coletivo.
O processo de globalização atual alastra-se por todo os cantos do globo
suprimindo as diferenças e buscando através de um discurso único cooptar e anular as
diferentes concepções próprias dos que se encontram em lugares distintos na
classificação global tanto do ponto de vista étnico, como de classe, de gênero, sexual, de
poder, etc.
Tal abalo nas fronteiras socioculturais legitima a urgência deste debate, o qual
deve ser, sob meu ponto de vista, ancorado na distinção política que fazem Bhabha
(2003), Skliar (2003) e Silva (2000), entre diversidade e diferença. O significado destas
palavras para os autores isenta-nos de sermos autômatos daqueles que buscam, no
incitamento ao debate, uma outra forma de se manter o controle da situação e de regular
as inevitáveis mudanças dentro dos limites da dominação.
Para isso, utilizou-se como metodologia os estudos com o cotidiano em conjunto
com a revisão bibliográfica buscando autores e obras pertinentes com a temática em
voga.
A noção de corpo, sujeito e identidade na modernidade e na pós-modernidade
O cenário medieval conformou uma visão de mundo e de realidade em que o par
“conhecimento e fé” teve forte entrelaçamento, sendo quase impossível desvincular um
conceito do outro. Assim, a filosofia produzida pela Idade Média desenvolveu-se num
mundo ordenado e sistematizado pela religião, voltando seu objetivo para a
comprovação da existência de um único Deus criador como verdade inalienável do
homem.
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Dois filósofos foram de grande importância nessa época, mas a concepção de
corpo que encontramos próxima da que existe atualmente se deve a Platão, que focou
uma concepção residida numa visão dualista de homem, dividido em corpo e alma.
Com
o
Renascimento,
há
a
ruptura
com
a
cosmologia
medieval,
redimensionando o universo e a existência do homem, conferindo à noção de sujeito na
sociedade moderna importância crucial para solidificação das novas concepções
estruturais conferidas à modernidade.
A Revolução Científica do século XVII pode ser considerada uma das maiores
revoluções de todos os tempos da humanidade. Suas transformações atingiram e
reformularam o intelecto humano, fornecendo-lhes uma infinidade de conceitos novos e
reelaborando a concepção de natureza e ciência. Concomitantemente a esse inventário
de modificações, inicia-se um processo que levou a humanidade, anos mais tarde, a se
comunicar e se reconhecer universalmente através da linguagem matemática.
René Descartes consagrou a metodologia que influenciou por mais de três
séculos a organização e o desenvolvimento da ciência no ocidente. Descartes buscou na
hegemonia da razão pura as condições para o encontro do conhecimento verdadeiro,
isento de erros, edificado em argumentos firmes e seguros, capazes de atingir com
objetividade a certeza de seus preceitos, tão almejada pela ciência.
Assim, Descartes consolidou a sua grande máxima, que permaneceu por séculos
influenciando a forma como os homens significaram a sua existência: “penso, logo
existo”. É pelas vias da razão humana que se encontra a verdade, a certeza da existência,
de origem e de substância distinta e superior à do corpo. Essa razão sistematizava a
essência do conhecimento e do ser, indicando o cerne moderno do aprofundamento da
dicotomia corpo/mente.
Contraditoriamente a essa idéia de fragmentação propalada na modernidade é a
idéia de “indivíduo soberano” instaurada nos períodos do Humanismo Renascentista e
do Iluminismo do século XVIII, representando uma ruptura importante com o passado.
No entanto, o sentido de fragmentação na filosofia cartesiana sugere analisar as partes
com a finalidade de entrar em contato com a essência do fenômeno mais pura e
verdadeira compondo uma concepção essencialista e fixadora de identidade. Durante a
história moderna, a noção de sujeito individual reuniu significados de indivisibilidade,
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singularidade, conferindo consistência às reflexões e refinamentos para a filosofia
ocidental daquela época. Para HALL (2006, p.10-11):
(...) o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa
humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das
capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num
núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com
ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contínuo ou idêntico à ele - ao longo da existência do indivíduo. O centro
essencial do eu era a identidade de uma pessoa.
Essa concepção de sujeito centra a identidade no “eu” do indivíduo, como se
este já nascesse com suas capacidades e personalidades definidas, havendo uma
essência do ser humano. Mas as modificações sobre como compreender o humano
continuaram a acontecer, abrindo espaço para a ruptura com essa visão meramente
essencialista. A esse núcleo central, suturam-se os mundos culturais que exercem
influência contínua e dialógica reformulando e elaborando uma concepção “interativa”
da identidade e do “eu”. É através da imersão do sujeito nesses mundos culturais que as
identidades culturais são formadas. Essa concepção, apesar de ainda sustentar uma visão
fixadora de identidade, desloca o centro para uma mediação entre o exterior e o interior
admitindo a influência do mundo público no mundo pessoal, uma concepção
sociológica de sujeito - porém, insuficiente para compreender o humano, pois o mesmo
torna-se dependente de seu meio para construção de sua identidade.
As interpretações dos sujeitos que “representam” suas épocas tornam-se fator
central para que possamos entender a movimentação fluida e cambiante entre as
concepções, sejam modernas ou pós-modernas. A modernidade representa sociedades
de mudança constante, rápida e contínua em relação às sociedades tradicionais, o que
pode ser notado por escritos famosos como “tudo que é sólido se desmancha no ar” de
Marx ou através de explicações metafísicas como de Descartes ao se perguntar onde
fica a alma do ser humano. Mas, o que se aprofunda na chamada modernidade tardia são
as desconstruções sobre narrativas legitimadoras do sujeito e de sociedade. HARVEY
(1989, p.19) ao citar Terry Eagleto (1987) destaca que:
Talvez haja consenso ao dizer que o artefato pós-moderno típico é travesso,
auto-ironizador e até esquizóide; e que ele reage a austera autonomia do auto
modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do comércio e da
mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e
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sua falta de profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas,
por vezes através de uma brutal estética da sordidez e do choque.
O sujeito torna-se cada vez mais fragmentado, sendo composto não de uma
única identidade unificável e estável. A identidade torna-se uma “celebração móvel”:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 2006). Não
há a coerência que acomoda a identidade plenamente unificada, mas deslocamentos
contínuos de sistemas de significações e representação cultural que destroem qualquer
forma de rótulo identitário, confrontados por uma multiplicidade de identidades
possíveis identificadas ou não, ainda que temporariamente.
Esse descentramento de identidade e de sujeito tem forte influência dos estudos
de Foucault que produziu uma espécie de “genealogia do sujeito moderno”. O autor nos
mostrou como as práticas e os saberes vêm funcionando, nos últimos quatro séculos,
para fabricar a Modernidade e o sujeito moderno. Foucault se identifica com o
pensamento pós-moderno de que se enfraqueceram sobremaneira as tentativas de
totalização, colocando em xeque a idéia iluminista, unificadora e totalitária de razão.
Concorda-se com Alfredo Veiga Neto (2003, p. 131) quando explica que:
Em vez de aceitar que o sujeito é algo sempre dado, como uma entidade que
preexiste no mundo social, o filósofo dedicou-se ao longo de sua obra a
averiguar não apenas como se constituiu essa noção de sujeito, como
também, de que maneira nós mesmos nos constituímos como sujeitos
modernos, isto é, de que maneira cada um de nós se torna essa entidade a que
chamamos de sujeito moderno.
Essa concepção de sujeito que Foucault define como não estando desde sempre
aí comunga com o pensamento de HALL (2006, p.17) que sustenta que as sociedades da
modernidade tardia são atravessadas pelas diferentes divisões e antagonismos sociais
que produzem uma variedade de diferentes “posições do sujeito”, isto é, identidades.
Em consonância com essa concepção polivalente de compreensão do sujeito, o
estudo das corporeidades - entendidas como a quebra da dicotomia corpo/mente e como
materialidade corpórea imbricada por histórias que são plurais e singulares inscritas por
experiências e vivências individuais e coletivas com as quais nos constituímos sujeitos
no mundo - corroboram com os debates mais atuais que buscam elucidar outras
possibilidades de conceber o humano.
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Dessa forma, e dando seguimento à discussão, discorre-se sobre as formas de
corporeidades existentes nos currículos e espaços escolares e como estas são tratadas no
campo da educação, muitas vezes enquadrada na rigidez identitária e nas oposições
binárias as quais mantêm a estrutura escolar no seu formato hodierno.
Currículo e corpo no ambiente escolar
O currículo é considerado, segundo sua tradição crítica, um artefato social e
cultural atuante na transmissão de determinações sociais, políticas e epistemológicas.
Tendo uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização da
sociedade e da educação, produz identidades individuais e sociais próprias do seu
enredamento com o poder. Seu papel dentro da escola tem se reduzido à manutenção
das injustiças e desigualdades sociais, estando desafinado com os interesses dos grupos
oprimidos. Segundo Apple (2002, p.42):
Evidentemente, nunca agimos no vácuo. A própria percepção de que a
educação está profundamente implicada na política da cultura deixa isso
claro. Afinal, à decisão de se definir o conhecimento de alguns grupos como
digno de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura
de outros grupos mal veem a luz do dia, revela algo extremamente importante
acerca de quem detém o poder na sociedade.
Desde que se tornou objeto de estudo e pesquisa, a racionalização do currículo
esteve presente, por parte de sujeitos, sobretudo ligados à administração da educação,
que o entendiam como processo de resultados educacionais, cuidadosos e rigorosamente
especificados e medidos, uma área voltada para questões relativas a procedimentos,
técnicas e métodos. Silva (1999, p. 12) contribui quando afirma que, “o modelo
institucional dessa concepção de currículo é a fábrica e sua inspiração “teórica” é a
“administração científica”, de Taylor. Idéias apresentadas no livro de Bobbitt, The
curriculum (1918).”
Portanto, nossas noções de educação, pedagogia e currículo estão solidamente
fincadas na modernidade e nas ideias modernas de razão, ciência, racionalidade e
progresso constante tendo no centro desse pensamento o tipo de sociedade que se
desenvolveu nos séculos seguintes. O currículo tem sido racionalmente concebido como
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um espaço que se ensina a pensar, em que se transmite o pensamento, em que se
aprende o raciocínio e a racionalidade.
Essa concepção moderna atribui ao corpo no ambiente escolar funções
secundárias e desprovidas de qualificação. Sua relação com o conhecimento aparece nas
teorias pedagógicas que influenciam o currículo como opostas e antagônicas. Tendo por
base a perspectiva cartesiana, a grande maioria delas, considera que o local de aquisição
do conhecimento encontra-se localizado exclusivamente na mente pensante e racional
cujo órgão central é o cérebro, sendo o corpo apenas o seu suporte e sustentáculo.
As conseqüências desse modelo de pensamento aparecem no cotidiano escolar e
nas práticas educativas de diferentes formas. Os rituais escolares obedecem a
ordenamentos indicativos de que o silenciamento corporal é fator essencial ao bom
desempenho e aquisição dos conhecimentos considerados importantes pela escola. A
racionalidade, embora materializada no cérebro, aparece ainda numa perspectiva
próxima à idéia cartesiana de uma mente abstrata e independente da corporalidade
humana.
Por outro lado, o investimento no corpo disciplinado e controlado emerge como
questão central a ser trabalhada no ambiente escolar, sem o qual compromete-se o fazer
político-pedagógico e didático. Esse investimento avançou e avança no cotidiano
escolar buscando a consolidação de um sujeito autocontrolado e disciplinado em suas
emoções, ações e movimentos.
O que se observa é a existência de um complexo e entrelaçado jogo de
visibilidade e invisibilidade corporal no ambiente escolar, em que a necessidade da
invisibilidade corporal impulsiona um trabalho com o corpo que o torna visível na
mesma medida em que o quer invisível, pois disciplinado e autocontrolado
(FOUCAULT, 2005).
Assim, o currículo como matriz auxiliadora de práticas escolares produz
identidades, rotulando conforme seus desígnios os sujeitos ordinários do cotidiano
(CERTEAU, 2003), legitima concepções cognitivistas do humano em detrimento de
outras dimensões enunciadas pela corporalidade, dicotomizando corpo e mente, cultura
erudita e cultura popular e tantos outros binarismos.
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Currículo, identidades e culturas no cotidiano escolar: o caso de Ramon
O corpo é presença física e marcante de qualquer ser vivo, e apesar de muitas
vezes desqualificado, não é possível ignorá-lo. É através dele que nossa presença no
mundo é percebida e através do qual impiedosamente a escola rotula nossas crianças por
estar respaldada em um currículo de uma cultura dominante. Para exemplificar essa
afirmação traz-se à baila o caso de Ramon, um menino de 8 anos que fez parte de um
dos estudos da pesquisadora sobre a questão da corporalidade no cotidiano escolar.
Ramon era um menino como tantos outros alunos de uma escola pública da rede
municipal de Seropédica: desacreditado e desqualificado pela escola em função de suas
dificuldades para aprender os conteúdos escolares e por apresentar um comportamento
“reprovável”. Nas aulas de Educação Física, ele encontrava espaço/tempo para
demonstrar que, além do Ramon, disperso e incapaz de aprender, existia também o
Ramon atento e com grande habilidade no desempenho corporal através da dança.
Ramon teve seu dia de “exemplo” na escola. Em uma mostra de talentos,
apresentou-se com mais dois amigos dançando uma música de hip-hop. Eles foram o
sucesso da mostra, tendo que se apresentarem várias vezes. Posteriormente, Ramon
relatou que todos o elogiaram, inclusive a direção da escola. E que o melhor foi dar
autógrafo no final da apresentação. Porém, a escola não parece ver ambivalência em seu
comportamento, reafirmando, através da utilização de rótulos, atitudes tipificadas
relacionadas à sua origem de classe subalternizada e marginal.
O caso de Ramon pode ser pensado por diversos pontos de vista, no entanto,
para a discussão que se apresenta, a condição enigmática encontra-se em dois pontos
principais: a incapacidade da escola em romper com a idéia de identidade fixa e única
do ser humano, que se expressa no rótulo impingindo Ramon de incapaz cognitivamente
e desatento; e sua esperteza e atenção na expressão corporal através da dança, capazes
de propiciar faces diferentes do mesmo sujeito e de serem reconhecidas como potenciais
e relevantes para o seu desenvolvimento em outras áreas que não exclusivamente
motoras.
Assim, incita-se a refletir sobre as diferentes formas culturais que convivem e
transitam no ambiente escolar. Apesar de o cotidiano escolar ser um palco em que se
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debatem diversas e hibridizadas identidades culturais, a padronização cultural tem forte
apelo institucional, moldando os currículos oficiais e ocultos.
A origem sociocultural de Ramon – que não é aquela validada e valorizada pela
escola – parece induzir os professores e a própria direção a ressaltar o seu
comportamento reconhecido como insuficiente, identificando-o imediatamente como
comum aos integrantes dessa parcela da sociedade, numa atitude que tangencia o
preconceito e a desqualificação de sua comunidade e cultura.
No entanto, ao mergulharmos no cotidiano escolar escorregadio e deslizante,
somos tomados por inusitadas e imprevisíveis percepções que indiciam ser a vida real
bem mais fluida e complexa do que podem narrar as teorias sociológicas que se ocupam
de aprisionar o real para descrevê-lo em sua totalidade. A vida humana, sempre
transbordante de complexidade, apresenta-se inapreensível, embora passível de
compreensões provisórias e incertas. Assim como os caleidoscópios, as diferentes e
inenarráveis ‘táticas dos sujeitos ordinários cotidianos’ (CERTEAU, 2003) vão nos
oferecendo inúmeros e diferentes entrelaçamentos que, muitas vezes, ficam à sombra,
invisibilizados pela excessiva iluminação da homogeneidade e unicidade do que se
considera ser a realidade.
É nesse sentido que são trazidos ao debate autores ancorados em outras
concepções sobre a realidade para questionar os princípios e pressupostos do
pensamento social e político estabelecidos e desenvolvidos a partir do Iluminismo. O
pós-modernismo, compreendido como um movimento iniciado em algum ponto do
século XX, não representa uma teoria coerente e unificada, mas um conjunto variado de
perspectivas intelectuais, estéticas, políticas e epistemológicas. Ao coadunar com essas
perspectivas, rompe-se com as ideias iluminista cujas influências para com o currículo
são apontados por Silva (2000, p. 111):
Seu objetivo consiste em transmitir o conhecimento científico, em formar um
ser humano supostamente racional e autônomo e em moldar o cidadão e a
cidadã da moderna democracia representativa. É através desse sujeito
racional, autônomo e democrático que se pode chegar ao ideal moderno de
uma sociedade racional, progressista e democrática.
Todo cenário da contemporaneidade de dúvida, da incerteza e da indeterminação
política, social, cultural e epistemológica fazem com que a ciência e a tecnologia não
encontrem em si próprias as justificativas que antes as sustentavam. A descentralização
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da pós-modernidade indica uma incompatibilidade com o currículo linear, estático e
sequencial da modernidade, colocando em xeque a teorização crítica da educação e do
currículo que, em linhas gerais, segue os princípios das grandes narrativas da
Modernidade que buscam homogeneizar, igualar e purificar os sujeitos da/na escola.
Considerações Finais
Múltiplas Possibilidades nas Múltiplas Identidades e Corporeidades
Na contemporaneidade as disputas de poder são alavancadas pela enorme rede
de informações que se efetivaram com os avanços tecnológicos e juntamente com a
facilidade de locomoção de pessoas por toda parte do mundo. Na verdade, essas
disputas de relações de poder e de dominação no campo cultural são constatadas em
todas as fases da humanidade tornando-se pertinente relacioná-las ao debate sobre
cultura e identidade uma vez que tais disputas foram responsáveis pelas formas de
divisões entre dominados e dominantes.
A instituição escolar é igualmente atravessada por disputas internas entre as
diferentes culturas que ali convivem, sendo notório o fortalecimento e apoio a uma
dominação eurocêntrica.
O que se observa no seu interior é o empreendimento de esforços no sentido de imporse uma determinada forma cultural e subalternização das demais culturas, desde a
formação dos professores até os conteúdos didáticos, passando pela disseminação de
comportamentos linguisticos, morais, éticos, estéticos e religiosos. O que não pode ser
legitimado como cultura padrão é tratada como atrasado ou meramente como inferior e
exótico.
No entanto, recorrendo à noção de hibridismo desenvolvida por Bhabha (2003),
podemos reconhecer que, embora as tentativas de imposições culturais estejam
presentes em vários espaços, não é possível falar em culturas puras, que não sejam
híbridas e plurais. No próprio contato com aquelas que se deseja suplantar, as culturas
predominantes, bem como as subalternizadas, sofrem processos de reconstrução,
hibridizam-se e se refazem apesar da prevalência em termos de valorização e
reconhecimento das que possuem raízes eurocêntricas (CUPOLLILO, 2007).
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O campo da educação sofre reordenamentos das intensas e rápidas
transformações ocorridas a partir do processo de globalização cultural, mas apesar das
disputas e dominações neste campo serem sempre duras e violentas, os jogos de
imposição de poder não só atacam como são também atacados em formas de
resistências culturais, que não são suficientes para que tais contra-ataques não passem
simplesmente de pequenas aberturas oficializadas de acesso, de pseudovalorização e
respeito à diversidade cultural. Ou, como bem alerta Skliar (2003), uma aceitação dos
diferentes com vistas à normalizá-los, mantendo-se, discretamente, a mesma rejeição ao
diferente numa outra roupagem.
Na atualidade, busca-se aprofundar as repercussões dos encontros e
desencontros culturais no ambiente escolar coincidindo nos currículos oficiais – tendo
como exemplar os Parâmetros Curriculares Nacionais – onde nota-se atenção e o
respeito pelo chamado multiculturalismo como uma saída para os graves problemas
educacionais em vários espaços e publicações da área, o que reafirma a legitimidade e a
urgência do debate.
Neste sentido, os termos “diferença” e “diversidade” ainda que possam ser
usados, tanto pelos dicionários quanto no cotidiano, como sinônimos de falta de
“semelhança” e “dissimilitude” para o termo “diferença”, e de “discordância” e
“desacordo” para o termo “diversidade”, precisam ser estudados com maior
profundidade e cuidado para não serem alvos da superficialidade que reafirma ou
ameniza a desigualdade no lugar de solapá-las. Sentidos estes, que conferem aos termos
perspectivas epistemológicas e políticas bastante distintas.
As propostas político-pedagógicas centralizam nas ações curriculares uma noção
de diferença que não corresponde a noção de diversidade. Para propostas que tratam da
diversidade, a noção de multiculturalismo difunde uma ideia de tolerância e
benevolência com aquilo que parece diferente do “normal” (SILVA, 2000),
denunciando uma cultura padronizada como superior, eurocêntrica a qual deve
prevalecer e ser legitimada no ambiente escolar. Ou seja, formadora de uma identidade
social padrão em detrimento de culturas que devem ser toleradas como comportamentos
destoantes.
Cupolillo (2007) alerta que:
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Embora o multiculturalismo seja uma terminologia propalada
atualmente nos documentos oficiais relacionados à educação, o sentido dado,
na maioria dos casos, está politicamente centralizada na noção de
diversidade, no sentido de tolerância, de compreensão e acolhimento. Essas
são atitudes político-pedagógicas que não tem estimulado e nem promovido
as necessárias problematizações urgentes no mundo escolar; apenas tem
sugerido ações pretensamente ingênuas de cristalização de identidades
padronizadas e tolerância aos diferentes mundos dos “outros” sujeitos sociais.
As diferenças culturais que convivem no cotidiano escolar carecem de
atitudes políticas de inclusão e problematização, com as devidas teorizações
que permitem mais do que simples a compreensão da situação, mas a
consideração de que a diferença, por ser marca registrada do humano, sofre
constantes e permanentes disputas (p.137).
No caso de Ramon, a diferença é vista como fator agravante da sua incapacidade
em aprender e não como forma diversa de expressão dos comportamentos do humano,
devendo ser normalizada. No entanto, as duas posições do sujeito vivenciadas por
Ramon em espaçostempos diferentes sugerem uma ambivalência de identidade tornando
qualquer concepção fixa de sujeito redutora e insuficiente para os estudos vinculados à
educação, principalmente quando nos remetemos ao currículo escolar. Entretanto, a
política-social educacional não enxerga Ramon como ambivalente e enigmático. Os
currículos oficiais e ocultos com seus conteúdos elencados como fundamentais se
preocupam com a transmissão e veiculação da cultura dominante, dificultando a
visibilidade de outros comportamentos que expressam a ambivalência inerente do
humano.
Diante de tudo que foi apresentado, acrescento a necessidade de se estar atento à
tantos casos que corriqueiramente configuram o cotidiano, como este. Enxergar as
múltiplas identidades que coadunam com a concepção de um corpossujeito no mundo
poderá potencializar o ambiente escolar, constituindo-se em espaçotempo de reflexão e
desenvolvimento de outras características latentes de valores individuais e coletivos
mais sólidos e éticos. Esta maneira de olharsentir a realidade, parece uma necessária e
vivaz tarefa para professores e participantes da escola que tomam para si a
responsabilidade da educação de novas gerações. Ademais, para finalizar este ensaio
surge como fato instigador perguntas que devem ser feitas aos mesmos participantes da
escola citados acima: que outras possibilidades e potências podem emergir de tantos
legítimos outros (SKLIAR, 2003) se retirarmos seus rótulos? Quais ganhos teríamos na
construção de diálogos que pudessem ser mediados entre o currículo e a práxis escolar
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enxergando a enorme riqueza da diferença, no lugar de aprofundar binarismos como
corpo/mente e cultura erudita/cultura popular?
Acredito que ao conferir visibilidade ao caso de Ramon neste trabalho como um
dos ricos e importantes conhecimentos presentes no ambiente escolar e exemplo de
tantos outros apresentados por meninas e meninos frequentadores das escolas públicas
brasileiras, possa alimentar o movimento de descoberta da imensa fertilidade das
potencialidades vividas por estes filhos da injusta e desigualdade social em que
vivemos, que embora desacreditados para o conhecimento, se expressam na escola
mesmo que esta não saiba o que fazer com o que emerge.
Referências
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VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Amanda Macedo Singulani
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
ZERO EM COMPORTAMENTO: O INSPETOR
HUGUET – CINEMA E A VIRTUALIZAÇÃO DOS
CURRÍCULOS PRATICADOS
Aristóteles Berino
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Perfis da Cultura Escolar
PERFIS DA CULTURA ESCOLAR
Aristóteles Berino1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo, com a virtualização dos currículos
praticados, vista no filme francês Zero em Comportamento (1933), de Jean Vigo,
discutir através do personagem do inspetor Huguet a criação, no cotidiano escolar, de
ações pedagógicas que conflitam com o instituído das normas e regras constitutivas da
regulação da vida nas escolas, projetando horizontes educativos de fortalecimento da
autonomia juvenil e dos educandos. Filme realizado na tradição do cinema anarquista
francês (1895-1935), narra, com elementos retirados da experiência onírica e do
movimento surrealista, imaginativa e poeticamente, um plano rebelde de tomada da
escola pelos estudantes. O inspetor Huguet, revertendo seu papel de vigia dos jovens,
torna-se um educador fantasioso e encorajador das subversões e do levante que deve
derrubar a autoridade escolar. Como meio de expressão, ética e esteticamente, o cinema
é aqui uma oportunidade de pensamento a respeito da finalística de uma educação
libertária e de tradução do currículo para as pretensões pedagógicas de fazer fulgurar a
vida como uma experiência expansiva, sedutora e bela. Analiticamente, o trabalho se
situa no campo metodológico da Pedagogia da Imagem e na teoria crítica dos estudos
sobre o cotidiano escolar.
PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia da Imagem – Cinema – Currículos praticados.
A escola perde mais tempo controlando o “capeta” que
vê em cada educando, sobretudo nos educandos dos
setores populares, do que soltando o que há em cada
um de humanos. E as normas perdem tempo
controlando os corpos, os tempos, os sentimentos, a
imaginação e os sonhos dos mestres.
Miguel Arroyo (2007: 148)
Imaginem o que o cinema pode colocar nas
consciências e quantas transformações elas podem
levar às mentalidades (...). Basta que o utilizemos a
serviço do progresso, da justiça e da beleza.
Miguel Almereyda (1914 apud Marinone 2009: 138)
1
Professor Adjunto do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da
Universidade Federal Rural do Rio de do Programa (IM/UFRRJ/Nova Iguaçu) e do Programa de PósGraduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc – UFRRJ).
Membro do GRPESQ Estudos Culturais em Educação e Arte (IM/UFRRJ – IA/UERJ). Também membro
do GRPESQ Currículos, redes educativas e imagens (UERJ).
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Voltar-se para um cinema social seria dizer
simplesmente alguma coisa e despertar outros ecos e
não somente os arrotos dessas senhoras e desses
senhores, que vão ao cinema para digerir.
Jean Vigo (1985 apud Marinone 2009: 137)
À contrapelo, currículos praticados
Mesmo atento às opressões vividas – Pedagogia do oprimido é o título do seu
livro mais conhecido – Paulo Freire deixou uma imagem confiante das nossas
possibilidades reativas e capacidades criadoras. Quando afirmou “que somos seres
condicionados mas não determinados” (Freire, 1999: 21), considerou as fugas, os
escapes ou os desvios que realizamos diante dos enredos da história que circunscrevem
a existência, sem, no entanto, poder finalizar nossas ações. As agências de controle
exercidas para fixar a vida social e assegurar uma previsão do comportamento nunca se
realizam completamente. As pessoas reagem e elaboram outros modos de fazer a
própria existência.
“O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”, vai dizer
Michel de Certeau (1994: 38) para afirmar que a passividade e a docilidade não são as
regras de vida dos dominados, e indicar também que o lugar do aparentemente banal e
comum é, fundamentalmente, espaço próprio para significações e realizações
impróprias, porque inesperadas e não outorgadas institucionalmente. Então, antes de
tudo, o cotidiano é a oportunidade da desobrigação, da reparação e da criação, diante
das metas impostas e dos horizontes prescritos. E assim será no cotidiano escolar. Nas
escolas, a direção das ações educativas é uma pedagogia errática, que encontra
caminhos múltiplos e efeitos surpreendentes.
Se não se pode sumariamente eliminar o regime curricular, o currículo será
praticado. O que significa dizer que a programação da vida nas escolas é uma norma,
mas apenas até certo ponto. A norma será de alguma forma transgredida. “Embora
sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, essas táticas
desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este”, diz Certeau
(ibidem: 92). O código ritual do currículo será quebrado e no seu lugar serão cultivadas
ações pertinentes às possibilidades, necessidades e compreensão dos receptores, aqueles
que serão propriamente os seus praticantes, desenvolvedores, nunca seus fiéis
replicantes.
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Pedagogia da imagem e cinema
A pedagogia da imagem pode nos proporcionar uma analítica das visualidades
dos praticantes no cotidiano escolar. Observando que as “táticas desviacionistas” não
colaboram com o teatro dos costumes, modelos e regulamentos que a forma curricular
enseja para a vida nas escolas, suas marcas são assinaladas pela diferença, inadequação
e resistência. Com isso são produzidos impressões classificatórias, desenhos sumários e
selos identificáveis. A diligência de uma pedagogia da imagem pode ser a busca de
outra correspondência com a exibição dos deslocamentos que provocam os praticantes
do currículo escolar. Os extravios são desfalques comunicativos e exibições conectivas
ansiosas de encontros e trocas que fortalecem. Mas o que enxergamos é apenas o que
nos dão as práticas educadas do olhar. Então, é preciso cultivar amplamente o olhar: o
cinema é uma possibilidade dessa amplificação.
“A presença pedagógica da imagem educando os sentidos é histórica. Todavia, a
escola permanece entre o fascínio, o receio e a paralisia” (Barros, 1998: 206). À
contrapelo do torpor que envolve o contato com as diferentes realizações imagéticas dos
praticantes do currículo no cotidiano escolar, existe a possibilidade de incorporar, fruir e
dialogar. “Tudo que no cinema faz pensar” (Bentes: 13), proporciona, através das suas
capacidades de pedagogização do olhar, um modo peculiar de ver. Para a política do
conhecimento do cotidiano, o cinema possui artes próprias de comoção. É com esta
perspectiva de pesquisa do cinema para pensar os currículos praticados que pretendo
discutir neste trabalho o filme Zero em comportamento, de Jean Vigo. E, especialmente
através do personagem do inspetor Huguet, discutir a virtualização das imagens
transgressoras para a concepção de formas educativas emancipatórias.
Uma ressalva inicial deve ser feita: “como deve o educador posicionar-se diante
das novas práticas do olhar (...), sem incorrer no viés da crítica que apenas resvala na
substituição da oralidade do professor pela verbovisualidade técnica, mediada pela
televisão ou multimídia?” (ibidem: 203). A pedagogia da imagem, tal como é aqui
concebida, é antes uma ação comunicativa e dialógica. Ela não prescreve usos nem
induz à assimilação “moderna” de novas mídias (neste caso, o DVD). Não pretende ser
uma atualização pedagógica. Corre em outra via. É uma pedagogia do relacionamento,
que busca conexões para integrar a extensa rede de visualidades que, entrelaçadas,
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
exibem a cotidianidade dos currículos como pontos de encontro, aproximativa do que é
criativo e vivificador na expressão dos praticantes, nas escolas.
Jovens diabos no colégio2
“Fim das férias” e “o retorno às aulas” são as duas primeiras frases do filme
Zéro de conduite (1933), de Jean Vigo. O que acontecerá depois mostra que, mesmo há
décadas atrás, o cotidiano escolar nunca foi pacífico, nem para os alunos, nem para os
mestres. A tentativa de organização do espaço e do tempo escolar sempre foi uma rocha
perfurável. Todos os cuidados para estabelecer o controle das crianças e dos jovens é
uma racionalidade vencida: aqui e ali há a demonstração da irrealização do poder. Ou
seja, a incapacidade do poder ser tudo que quer, de ser absoluto. O poder é um mar
aberto para piratas.
O primeiro “desconforto” que nos causa Zero em comportamento é pensar que a
vida nas escolas não mudou muito. Também a representação das escolas no cinema é
um “lugar de memória” dos seus praticantes no cotidiano.3 Passados ¾ de século, o
filme nos deixa a imagem tocante de que existe um mal-estar constante, que nos faz
indagar sobre a futuridade da própria escola. A escola precisa ser vencida? O que deve
acontecer pro dia nascer feliz?4 O que corre nas escolas, particularmente naquelas
frequentadas pelos indivíduos mais fragilizados pelas ações/políticas de poder
dominante (econômico, social, cultural), é que garotos e garotas interditam os currículos
apresentados, com planos de rebeldia, sabotagens, desordens – mas nunca com apatia5.
2
Este é o subtítulo que Jean Vigo deu à Zéro de Conduite. De domínio público, o filme pode ser assistido
no site http://leelibros.com/biblioteca/?q=node/3718, com legendas em inglês. No Brasil, faz parte do
DVD Jean Vigo Integral, lançado pela Versátil Home Vídeo e COSACNAIFY.
3
“A representação da História na obra de um grupo significativo de cineastas nos permite considerar que
este segmento do cinema brasileiro se instituiu, no dizer de outro historiador, Pierre Nora, como ‘lugar de
memória’ onde diretores, roteiristas, atores e produtores, bem como o próprio público que prestigiou os
filmes, se esforçaram em retomar e monumentalizar certos acontecimentos ou problemáticas da História
do Brasil”. Cf. Soares; Ferreira (2006: 12)
4
Pro dia nascer feliz é título de um documentário brasileiro, de 2007, dirigido por João Jardim, que
também trata da vida nas escolas.
5
Significativo, entre as representações da escola no cinema, com ênfase na composição diferenciada e
culturalmente hierarquizada da população, característica das dinâmicas do imperialismo e da atual
globalização, importante lembrar a recente produção francesa Entre les murs (Entre os muros da escola,
no Brasil).
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Mas o cinema tem feito mais do que mostrar rebeliões nas escolas. Ele também
produz narrativas pedagógicas visando ao acolhimento de práticas modificantes,
alternativas. A pedagogia da imagem do cinema pode ser inquietante também através
das suas fabulações – a procura de praticantes que queiram caminhar com as
virtualidades que produz. Tornar as imagens parte do pensamento pedagógico e da
estética das ações educativas. E aí ver realizar as expectativas de Almereyda (militante
anarquita, pai de Vigo) a respeito do serviço do cinema: progresso, justiça e beleza. Este
outro eco para as imagens, como também desejava o próprio Vigo.
Garotos
Caussat – Colin – Bruel – Tabard
É o morto. Vamos sair daqui. 6
Hei, garoto feijão!
Tinha um morto com a gente.
Olhe o Sr. Pète-Sec... Mais um ano chato pela frente. – Você acha?
Um garoto imita sons de animais.
Ele pode ir, senhor? Ele está com dor de barriga.
Pode ir, não ligue para esse idiota.
De novo.
Meus amigos, aqui está. Nossa conspiração está pronta. Todos os domingos
ficamos de retenção, precisamos fugir. Aqui estão sótão e a munição.
No grande dia, a gente iça a bandeira.
Um menino abre a porta da cabine onde um colega estava sentado no vaso, que
reage sem jeito, com as calças no joelho.
Alguém pegou o meu chocolate.
Ele está xeretando de novo? Me dêem seus potes de cola.
6
Em itálico serão reproduzidos diálogos ou episódios do filme
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Mamãe, feijão de novo!
Feijão!
Feijão!
Abaixo a mãe feijão!
A gente deteste feijão!
Fazem uma guerra de comida.
Tabard tem um esconderijo. – Ele tem? Onde?
Bem, se você não sabe, fique quieto!
Me largue!
Bem, eu lhe digo: merda!
Sr. Professor, eu digo: merda!
A guerra está declarada! Abaixo os professores! Vamos fazer a revolução!
Liberdade ou morte! Nossa bandeira precisa ser hasteada!
Fiquem firmes amanhã!
Vamos bombardear com livros velhos, latas de lixo e botas fedidas!
A munição está no sótão!
Vamos bombardear os velhos bonecos do dia da celebração!
Vamos lá! Adiante!
Professor
Então, meu garoto, não está anotando esta manhã? Assim está melhor. Meu
garoto eu estava só dizendo...
Cozinheira
Sim, senhor Supervisor Geral, feijão de novo. Sempre feijão. Não posso dar
feijão todos os dias para essas crianças.
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Inspetor Pète-Séc
Comporte-se Caussat! As férias acabaram!
Dupont, ao pé da minha cama!
Quem está aí? E o Dupont? Eu não chamei vocês. Agora fiquem aqui até as
onze.
De pé! De pé! Vamos, vamos! Vocês estão surdos? Vamos, de pé!
Vocês querem um zero em comportamento? Atenção.
Aos seus lugares. Não! Não! Caussat e Colin, tragam-me os seus livros de
Álgebra! Não, não precisa. Zero de comportamento, com retenção no domingo.
Caussat e Colin, para a sala do diretor! Querem ficar de retenção?
Diretor
Inspetor geral, por favor, venha até a minha sala.
O dia da celebração está perto. É a nossa pequena festividade, não é? Não
quero confusão nada de bagunça. A propósito, atenção com Bruel, Caussat e Colin.
Quanto a Huguet, o que me conta é muito preocupante. Enfim, inspetor geral, você me
diz que Tabard e Bruel não estão se comportando direito. Compreende a imensidão da
nossa responsabilidade moral?
Olha só, juntos ainda. Essa amizade se tornou excessiva. O inspetor geral tem
razão. Eles precisam ser vigiados.
Entre. Sente-se. Meu pequeno, sou quase como o seu pai. Na sua idade, há
certas coisas, não é mesmo? Bruel é mais velho que você. Sua natureza, sua
sensibilidade, não é mesmo? Neuropatas, psicopatas... 7
7
Gomes (1984: 122) apresenta uma versão mais compreensível deste diálogo, que na legenda da edição
brasileira do filme de Vigo parece incompleta: “Bruel é mais velho que você. Sua natureza, sua
sensibilidade... Já a dele, não?... é de psicopata, de neurupata... Como posso explicar?”
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Tabart! Meu garoto, o conselho disciplinar consentiu sob a forte pressão do seu
generoso professor de grande magnanimidade, Sr. Viot... consentiu por consideração
por sua família e por você e por ocasião de nosso dia de celebração amanhã lhe
perdoar. Especialmente por você ter decidido se desculpar em público. Desculpas que
só têm valor se repetidas diante de seus colegas. Nós estamos esperando. Bem, nos
diga, o que você quer nos dizer. Diga o que você quer dizer então.
Inspetor geral Bec-de-Gaz
Ao lado do inspetor Pète-Séc e do diretor, o inspetor geral Bec-de-Gaz é um
personagem proeminente na vigilância escolar. No entanto, não há diálogos para
salientar seu autoritarismo. Bec-de-Gaz não aparece falando. O que está à vista não é o
que diz, mas a protuberância dos seus atos. É através deles que a face mais insidiosa do
controle (da tentativa de controle) é estudada por Vigo. Uma exceção, possivelmente8,
acontece em uma cena no dormitório. Pète-Séc levanta-se e logo procurar acordar os
rapazes, que resistem. A porta se abre e aparece a figura do inspetor geral. Enquanto
atravessa o dormitório os rapazes vão ficando de pé na cama, demonstrando/simulando
reverência. Quando Bec-de-Gaz fecha a porta, na outra extremidade do dormitório,
deixando o local, logo os garotos vão retornando para a posição de dormir. Bec-de-Gaz
retorna inesperadamente e diz: “Bruel, Cassaut, Colin. Zero em comportamento e
retenção no domingo”. Neste momento, o gesto traiçoeiro de Bec-de-Gaz será
emblemático para toda a sua conduta no cotidiano da escola (será que o detalhe do
menino que esconde o estilingue, na capa da Revista Época, é na verdade uma projeção
das práticas súbitas e inesperadas de vigilância?).
O inspetor geral será visto, em todo o filme, em atitudes de onipotência (cuja
presença deve inibir qualquer tentativa de burla dos escolares) ou de observação
dissimulada. Em pé no pátio, sua existência sugere a capacidade de inibir qualquer ação
comprometedora da ordem. Bec-de-Gaz está também sempre olhando através dos
vidros, abusando da transparência para ver o que está acontecendo na sala de aula. As
duas posturas são complementares. Sua aparição deverá ser suficientemente
8
Em uma e outra passagem do filme há imprecisão para identificar o autor do diálogo, é preciso
considerar.
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
intimidadora ao mesmo tempo em que procura saber o que estão fazendo quando está
ausente. Jogo claro-escuro que mira, principalmente, a produção de interstícios,
oportunos para a virtual desobediência e a ação pedagógica da punição. Mais até do que
obter o controle, a satisfação da aplicação da pena. Um gozo excessivo que, para ser
realizado, transforma-o em devasso e perverso. Em uma cena aproveita a ausência dos
alunos na sala de aula para investigar, revirar e até apanhar coisas entre os pertences dos
alunos. Embora não apareça mais falando, na sala do diretor priva de uma comunicação
privilegiada, recompensadora: “o inspetor geral tem razão”. Bec-de-Gaz é um manual
da perfídia que pode ser praticada pela autoridade escolar.
Bedel Huguet
O inspetor Huguet é um personagem mágico9. Sua aparição no filme, logo no
princípio, deixa ver como se comportará diante das armações juvenis: não irá
interromper, apesar da vigilância que deveria exercer. Desligamento do seu trabalho que
será substituído pela participação ativa na insurgência dos garotos. Huguet possui uma
atmosfera aérea, lunática ou excêntrica, que longe de representar uma postura alheia
(estranho) no cotidiano da escola, sugere a imagem de um homem sonhador de outras
práticas educativas e que não se furtará à aliança com os garotos diante das suas
agitações. Em um vagão do trem que traz Cassaut e Bruel das férias e conduz para o
retorno às aulas, Huguet dorme descuidado. Os dois se revezam em mostrar as
brincadeiras aprendidas nas férias e até um charuto resolvem fumar, infestando a cabine
de fumaça. Olham para Huguet e um deles diz: “É o morto”. Diante de tudo que já
haviam feito, sem esboçar qualquer reação, o homem que os acompanhava só poderia
estar “morto”. Exanimação que permitirá interromper a monitoração dos alunos para
ingressar na própria rede de aspirações juvenis de liberação – apresentada de forma
onírica ou fabulosa por Vigo.
A cena seguinte, com a participação do inspetor Huguet, se dá no pátio, quando
Cassaut, Colin e Bruel organizam um complô. Ele atravessa o pátio, passando próximo
dos garotos e observa. Quando se depara com a presença do inspetor geral, retorna para
o local onde os três estavam reunidos e fica diante deles, escondendo o plano da revolta
(desenhado em uma grande folha). Excitando o conhecimento da sua extraordinária
9
Gomes (idem: 103) chamará de “personagem feérica” o inspetor Huguet.
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
personalidade, depois que os garotos abandonam o local para se reunirem novamente
em uma sala de aula, Huguet prossegue seu trabalho de conferência realizado como
inspetor: dois meninos fumam nas cabines que servem de banheiro. Para ao lado e
permanece como se nada de anormal estivesse acontecendo. Uma bola então corre até
as suas mãos. Apanha e corre com ela, arrastando os meninos na brincadeira. Bec-deGaz se aproxima e Huguet devolve a bola fingindo normalidade. Caminha. Em uma das
mãos tem uma bengala e com a outra levanta o chapéu para cumprimentar o inspetor
geral. Já fora do seu alcance, mas mirando Bec-de-Gaz, novamente levanta o chapéu
comicamente e prossegue a sua caminhada, imitando o andar característico de Carlitos,
agora já observado com curiosidade pelos meninos. Filmado de costas, é uma
transmutação que acontece. O chapéu da reverência educada à autoridade do inspetor
geral e a bengala que possui, com o jeito de andar, levam-nos imaginativamente ao
universo terno de Charles Chaplin – bem longe da severidade prescrita para aquela
escola10.
Assim como ocorre com o inspetor geral, Huguet também não tem diálogos
significativos na história. Circunstância que acentua a comparação entre os dois
personagens e as duas concepções de escola que se estabelecem no filme. Existe a
escola do rigor (e terror) cotidiano e da celebrização para personalidades honoríficas
externas. Existe também a escola da vivência mais comunicativa e dialógica, suposta
pelo comportamento de Huguet. Uma escola mais centrada nos investimentos e
autenticidades juvenis, sem concessões para exploração destas existências. Em uma
oportunidade, quando Huguet se dirige aos meninos através de palavras, quando se
ocupa de tomar conta do estudo na sala de aula, diz: “Aos seus lugares! Vamos!” Logo
os estudantes iniciam suas ações condenáveis. Em uma delas um garoto resolve
caminhar “plantando bananeira”. Huguet ajuda. Diz: “Devagar”. E resolve mostrar
como é: “Vejam isso”. Enquanto o diretor faz discursos moralizantes, Pète-Séc emite
comandos, e Bec-de-Gaz espiona, todos com a previsão da punição, Huguet conversa e
se mistura com eles. Desviante, é outra escola que imagina e pratica.
10
“O ensino, segundo Vigo, deve ser o lugar da formação da personalidade livre. É por isso que surge o
inspetor Huguet que consola o espírito vingativo dos garotos. Com ações diferentes das dos outros
adultos, ele distrai e diverte os meninos, imitando Carlitos – representante do cinema caro a Vigo – e
injetando doses de liberdade. Podemos considerá-lo como gerador da subversão que cuida das almas
sensíveis dos garotos maltratados”. Cf. Marinone (2009: 140).
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Uma das sequências mais poéticas do filme é o passeio de Huguet com os
garotos. Alegres, caminham e cantam. Em uma esquina, Huguet desvia (novamente) do
sentido percorrido pelos garotos e segue para outro lugar. Bec-de-Gaz surpreende o
inspetor saindo de um café, sem a presença dos garotos, que deveria acompanhar e
cuidar. Prosseguindo sua caminhada, um close da câmera se detém no seu rosto e
mostra um olhar que é devaneio e um sorriso contente do instante vivido. Sonho e
contemplação desmaterializando da vida o artificialismo dos momentos honoríficos,
uniformes e lineares. Reagindo à prostração ensinada nas escolas, com seus caminhos e
descaminhos, cruzamentos e pessoas inesperadas, a rua é uma via sedutora para outras
pedagogias do olhar. Não é preciso expiar indecentemente, como faz Bec-de-Gaz. Uma
encantadora mulher aparece. Huguet é gentil e amável para demonstrar seu prazer. Os
rapazes já estão novamente com ele e aprendem agora sobre o cultivo da beleza. Sem
comandos, Huguet é também um mestre para ensinar a arte da paquera cortês. E como
inspetor é, na verdade, um professor insuperável. Mesmo quando confunde a batina de
um padre com o vestido da mulher que persegue e, atrapalhado, vê escapar, sem poder
reter, parte dos seus sonhos expostos...
1,2,3, conseguimos, vamos, vamos!
O brado que serve de subtítulo para o final deste artigo é o último diálogo que
aparece no filme. De cima do telhado da escola, Caussat, Colin, Bruel e Tabard
promovem a revolta organizada, estragando o dedicado dia de festividade e celebração.
Uma bandeira negra, com a imagem rebelde de uma caveira serve de emblema para a
tomada da escola. No pátio, outros garotos regozijam-se com o acontecimento e
recebem a bandeira da vitória enquanto jogam no chão a tricolor bandeira nacional.
Protegidas, as autoridades presentes apenas observam. A câmera fecha com os rapazes
de costas, caminhando para o plano mais elevado do telhado e vibrando com as mãos
para cima. Na França, Zero em comportamento foi logo proibido. Em todo o filme são
inúmeras as cenas de desobediência e rebeldia, culminando com a conquista da escola,
diante da autoridade da direção e da autoridade externa, moral e cívica, do padre e do
delegado. Então, se examinarmos o filme em perspectiva, insubordinações rarefeitas
acumula-se até que o dia da revolta acontece com a vitória final – a escola foi capturada,
sem que as autoridades pudessem impedir. Mas, neste caso, o próprio final parece
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Perfis da Cultura Escolar
inverossímil. Não parece factível manter a escola sob controle dos alunos. Uma analítica
das imagens de Zero em comportamento pode sugerir outra concepção para a própria
revolta.
Uma das leituras possíveis para o acontecimento final do filme não é a admissão
de que a escola finalmente foi derrubada e as autoridades derrotadas. As cenas da
batalha têm outra dureza para dizer. Educar é impossível. A impotência da escola não é
a contenção dos alunos, mas conseguir realizar integralmente o que propaga como
dever: normalização, civilização, correção. A insolência estará sempre presente, com o
domínio ou não da escola pelos estudantes. Esta é a praga disseminada em todo o filme.
Escolher quatro garotos para executar uma vigilância ostensiva e punir sistematicamente
(como fazem as autoridades da direção escolar no filme) ou colocar a questão sobre o
que fazer com crianças e jovens que não respeitam ninguém é uma tentativa de
circunscrever a inconveniência escolar e anular potências indisciplinadas, coisa
improvável de acontecer. A vida mesmo é extravagante – ela é um passeio
desobediente, como as andanças de Huguet pelas ruas. A vida é um absurdo, portanto,
está fora de controle. Vigo extrapola os limites da realidade (o que supostamente
realmente existe) em uma cena no dormitório, na noite que antecede a revolta. Os
garotos fazem uma guerra com os travesseiros, que explodem. Penas que voam e criam
um ar sublime, atingido também pela filmagem, em câmera lenta, e pela música
composta para o episódio. A bagunça/loucura é geral. Uma procissão-carnaval se inicia.
É possível ver o pênis de um rapaz, sentado em uma cadeira que é erguida. Pète-Séc é
amarrado na cama, que também é erguida, enquanto permanece dormindo.
Não há monitoração escolar que se realize competentemente. E não é porque um
dia a escola será feita refém dos estudantes. A inversão acontece a todo instante. O
cotidiano escolar é pedagógico. É ali que tudo é visto/pressentido razoavelmente. A
vista do cotidiano permite analisar a própria ambiguidade do poder, que escorrega como
se pudesse, como coisa, passar de mão em mão, manuseado por todo mundo,
autoridades ou não, inspetores ou alunos. Admitir que educar, afinal, é impossível não é
um niilismo. É um sopro (impulso prodigioso) desconfiado, mas fascinante para
considerar uma educação possível. Ela começa atenciosa, às vezes de onde menos se
espera. Diz a cozinheira, com algum atrevimento: “Sim, senhor Supervisor Geral, feijão
de novo. Sempre feijão. Não posso dar feijão todos os dias para essas crianças”. Ou o
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6532
Perfis da Cultura Escolar
inspetor Huguet, amável: “Devagar”. A educação possível pode iniciar assim: movente,
sem fixar a própria autoridade/identidade de quem ensina. E também comovente, que
enternece e suaviza. Sem garantias, incerta, apenas encarnada.
Referências bibliográficas
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auto-imagens. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 135 - 149.
BARROS, Armando Martins, Educando o olhar: notas sobre o tratamento das imagens
como fundamento na formação do pedagogo. SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico.
São Paulo: Hucitec, 1998. p. 199-206.
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Janeiro: Ed. UFRJ, 2007. p. 7-9.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 12ª. ed. Petrópolis:
Vozes, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 12ª
ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GOMES, Paulo Emilio Salles. Jean Vigo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
MARINONE, Isabelle. Cinema e anarquia: uma história “obscura” do cinema na
França (1895-1935). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge. Introdução. In: SOARES, Mariza de
Carvalho; FERREIRA, Jorge (orgs.). A História vai ao cinema: vinte filmes brasileiros
comentados por historiadores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 11-15.
Idelsuíte de Sousa Lima
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA “ENSINO
MÉDIO INNOVADOR” NUM CENTRO DE
REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
(OUTEIRO – BELÉM – PA)
Breno Rodrigo de Oliveira Alencar
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental
(Outeiro – Belém – PA)
A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA “ENSINO MÉDIO INOVADOR”
NUM CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
(OUTEIRO, BELÉM-PA)
Breno Rodrigo de Oliveira Alencar
Fundação Escola Bosque/Belém-PA
[email protected]
RESUMO: O presente estudo, no âmbito de uma proposta de implementação do
Programa “Ensino Médio Inovador” em nível municipal, pretende ser uma exposição
das discussões acerca do currículo integrado em escolas públicas. Em que pese sua
formulação nos termos de um ensino que busca relacionar o propedêutico ao técnico, o
mesmo visa analisar a correção de possíveis desvios existentes no cenário curricular de
instituições como o Centro de Referência em Educação Ambiental “Escola Bosque”
Eidorfe Moreira, localizado na Ilha de Caratateua, distrito do Outeiro (Belém-PA), cujo
objetivo é formar educandos no ensino regular, ao mesmo tempo em que os prepara
para o exercício da atividade de Técnico em Meio Ambiente. Desse modo, os estudo
traça um perfil do programa e os mecanismos de sua implementação segundo as
especificidades da instituição, numa intenção clara e objetiva de tornar públicas as suas
diretrizes curriculares.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino médio; Centro de referência; Educação ambiental.
Introdução
O Ensino Médio ao longo de sua breve história tem se constituído na educação
brasileira, como o nível de maior complexidade na estruturação de políticas públicas de
enfrentamento aos desafios estabelecidos pela sociedade moderna, em decorrência de
sua própria natureza enquanto etapa intermediária entre o Ensino Fundamental e a
Educação Superior e a particularidade de atender a adolescentes, jovens e adultos em
suas diferentes expectativas frente à escolarização, levando-se em consideração que
estes conceitos são estabelecidos por uma construção social e como estes sujeitos se
vêem neste processo, que está intimamente ligado com a representação social que lhes é
atribuída. Conforme Hilário Dick,
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A Implementação do Programa “Ensino Médio Inovador” num Centro de Referência em Educação Ambiental
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O pressuposto fundamental da discussão é que a idade é um fenômeno social, e
não apenas biológico. O que existe em cada período histórico é um conjunto
multifacetado de jovens, condicionados e interagindo com meio social em que
vivem. (DICK, 2003, p. 26)
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9394-96), ao
situar o Ensino Médio como etapa final da Educação Básica, define-a como a conclusão
de um período de escolarização de caráter geral. Trata-se de reconhecê-lo como parte de
uma etapa da escolarização que tem por finalidade o desenvolvimento do indivíduo,
assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania,
fornecendo-lhe os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores (art. 22).
É oportuno salientar também que LDB indica para o Ensino Médio as funções
de:
1. Possibilitar o prosseguimento de estudos, mediante “consolidação e
aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental”;
2. “Preparação Básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamentos posteriores”;
3. “Aprimoramento do Educando como pessoa humana, incluindo a formação
ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”;
4. “A compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando teoria e prática no ensino de cada disciplina”.
Portanto, as disposições legais sobre o ensino médio deixam clara a
importância da educação geral como meio de preparar para o trabalho e formar pessoas
capacitadas à sua inserção social cidadã, de se perceberem como sujeitos de intervenção
de seu próprio processo histórico, atentos às transformações da sociedade,
compreendendo os fenômenos sociais e científicos que permeiam o seu cotidiano,
possibilitando, ainda, a continuação de seus estudos.
Paralelamente à expansão do atendimento, as políticas públicas educacionais se
concentraram também em aspectos relacionados à permanência do aluno na escola e à
qualidade dos serviços oferecidos. Questões como as condições de funcionamento das
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escolas, a formação e a capacitação dos professores, a qualidade do material didático, a
leitura no trabalho escolar, a participação dos pais na escola e a qualidade da merenda
escolar foram priorizadas para compensar os efeitos da maior incorporação de alunos
provenientes de famílias de menor escolaridade.
No caso do Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque
“Eidorfe Moreira”, o Ensino Médio integrado com a Educação Técnica prevê a
indissociabilidade entre ensino e pesquisa, estabelecendo assim o desenvolvimento de
uma política pedagógica voltada para intensa labuta escolar. Algo expressamente
peculiar tendo em vista a natureza dessa integração em termos de educação pública a
nível municipal.
A identidade do ensino médio aí se define, portanto, pela superação do
dualismo entre propedêutico e profissionalizante. Contudo, importa, ainda, que se
configure um modelo que ganhe identidade unitária para que esta etapa da educação
básica na Escola Bosque “Eidorfe Moreira” assuma formas diversa e contextualizada,
tendo em vista a realidade do ensino público brasileiro e as especificidades da Ilha de
Caratateua, onde a mesma encontra-se situada. Nela se prioriza uma escola que não se
limite ao interesse imediato, pragmático e utilitário.
Entender a necessidade de uma formação com base unitária implica em
perceber as diversidades do mundo moderno, no sentido de se promover à capacidade
de pensar, refletir, compreender e agir sobre as determinações da vida social e produtiva
– que articule trabalho, ciência e cultura na perspectiva da emancipação humana, de
forma igualitária a todos os cidadãos.
Por esta concepção, o ensino médio carece de se estruturar em consonância
com o avanço do conhecimento científico e tecnológico, fazendo da cultura um
componente da formação geral, articulada com o trabalho produtivo. Isso pressupõe a
vinculação dos conceitos científicos com a prática relacionada à contextualização dos
fenômenos físicos, químicos e biológicos, bem como a superação das dicotomias entre
humanismo e tecnologia e entre a formação teórica geral e técnica-instrumental.
Em resposta a esses desafios que permanecem, algumas políticas, diretrizes e
ações atuais do governo federal delineiam um cenário de possibilidades que apontam
para uma efetiva política pública nacional, para a educação básica, comprometida com
as múltiplas necessidades sociais e culturais da população brasileira. Nesse sentido, o
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presente trabalho apresentar uma perspectiva de implementação de tais políticas
públicas, buscando situar a Escola Bosque “Eidorfe Moreira” num cenário de avanços
na educação nacional.
Nesse sentido, a fim de colaborar na consolidação das políticas de
fortalecimento do ensino médio, o presente estudo analisa os mecanismos de
implantação destas políticas, manifestando, assim, a tendência desta instituição em
garantir a melhoria do ensino público na cidade de Belém. Há de se advertir que este
trabalho propõe-se estar em consonância com as ações do governo federal, e nestes
termos reconhece as limitação orçamentárias e técnico-propedêuticas do município, uma
vez que ações renovadoras, como tais, sempre implicam em mudanças estruturais, por
vezes radicais e imprevisíveis. Esta é a razão de este estudo vir à tona, e, por essa razão,
chamar atenção a um amplo debate.
Trata-se, portanto, de discutir o pioneirismo no processo de implementação das
políticas públicas por meio de um programa específico e particular, respeitando as
especificidades pedagógico-estruturais da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”, de maneira
a viabilizar inovações para o currículo do ensino médio, de forma articulada aos
programas e ações já em desenvolvimento no âmbito federal e estadual, com linhas de
ação que envolve aspectos que permeiam o contexto escolar: fortalecimento da gestão
do sistema integrado de ensino e profissionalização, fortalecimento da gestão escolar,
melhoria das condições de trabalho docente e formação inicial e continuada, apoio às
práticas docentes, desenvolvimento do protagonismo juvenil e apoio ao aluno jovem e
adulto trabalhador, elaboração de pesquisas e, com isso, o mais importante, qual seja a
maximização do rendimento escolar. O Programa Ensino Médio Inovador da Escola
Bosque “Eidorfe Moreira” discute a melhoria da qualidade do ensino médio e técnico
profissionalizante, promovendo, ainda, os seguintes impactos e transformações: maior
exposição à discussão oferecida pelos conteúdos; consolidação da identidade desta etapa
educacional, considerando a diversidade de sujeitos; oferta de aprendizagem
significativa para os estudantes, procurando levar em consideração o reconhecimento e
a priorização das mesmas na sua interlocução com as realidades sociais de cada um; e
redução da repetência e desistência escolar em razão do elevado número de disciplinas a
serem estudadas.
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Pressupostos para um Currículo Inovador no Ensino Médio
O Programa Ensino Médio Inovador da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”,
quando de sua discussão, buscou estabelecer mudanças significativas, revertendo os
dados negativos (a saber, desistência e reprovação) relativos a esta etapa da educação
básica, de maneira que seja possível incorporar componentes que garantam maior
sustentabilidade aos objetivos da instituição. Para este fim, resta salientar, o Ministério
da Educação vem promovendo ações de incentivo, como apoio técnico e financeiro,
além de consultoria técnica1.
Essa nova organização curricular pressupõe uma perspectiva de articulação
interdisciplinar, voltada para o desenvolvimento de conhecimentos - saberes,
competências, valores e práticas. Considera ainda que o avanço da qualidade na
educação brasileira depende fundamentalmente do compromisso político e da
competência técnica dos professores, do respeito às diversidades dos estudantes e a
garantia de sua autonomia. Dessa forma, o presente trabalho discute inovações nas
práticas educacionais da Escola Bosque “Eidorfe Moreira”.
Entendo que o desenvolvimento de novas experiências curriculares estimula
práticas educacionais significativas e permite que a escola estabeleça outras estratégias
na formação do cidadão emancipado e, portanto, intelectualmente autônomo,
participativo, solidário, crítico e em condições de exigir espaço digno na sociedade e no
mundo do trabalho.
O programa, em sua implementação, entre outros aspectos, demonstra seu
interesse em enfrentar a tensão dialética entre pensamento científico e pensamento
técnico; entre trabalho intelectual e trabalho manual na busca de outras relações entre
teoria e prática, visando instaurar outros modos de organização e delimitação dos
conhecimentos. Dessa forma, propõe-se estimular novas formas de organização das
disciplinas articuladas com atividades integradoras, a partir das inter-relações existentes
1
Esta proposta foi apresentada verbalmente pela Professora Maria do Pilar, Secretária de Educação
Básica do MEC, na reunião ordinária da Câmara de Educação Básica do CNE do mês de fevereiro do
corrente, ocasião na qual entregou versão preliminar da proposta. Foi, de imediato, debatida pelos
Conselheiros da Câmara com os Técnicos da Secretaria de Educação Básica do MEC, da Diretoria de
Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica – Coordenação Geral do Ensino Médio.
Para maiores esclarecimentos consultar o site:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me004803.pdf
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entre os eixos constituintes do ensino médio, ou seja, o trabalho, a ciência, a tecnologia
e a cultura.
Neste sentido é preciso conceber o trabalho, na concepção de produção de bens
e serviços, como um dos princípios educativos no ensino médio, posto ser por meio
deste que se pode compreender o processo histórico de produção científica e
tecnológica, bem como o desenvolvimento e a apropriação social desses conhecimentos
para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das
potencialidades e dos sentidos humanos.
O trabalho é um princípio educativo no currículo do ensino médio também
porque o processo social de produção coloca exigências específicas para a educação,
visando à participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente
produtivo. Porém, deve-se ter claro que essa perspectiva de formação que possibilita o
exercício produtivo não é o mesmo que fazer uma formação estritamente
profissionalizante. Ao contrário, essa participação, que deve ser ativa, consciente e
crítica, exige, antes, a compreensão dos fundamentos da vida produtiva em geral.
Somente atendido esse pressuposto é que o trabalho diretamente produtivo pode se
constituir no contexto de uma formação específica para o exercício de profissões.
Portanto, o trabalho, do ponto de vista do capital, na dimensão ontológica
(mediação primeira da relação entre homem e natureza que viabiliza a produção da
existência humana) e histórica (formas específicas com as quais manifesta essa
mediação, condicionadas pelas relações sociais de produção), torna-se princípio quando
organiza a base unitária do ensino médio, por ser condição para superar um ensino
enciclopédico que não permite aos estudantes estabelecer relações concretas entre a
ciência que aprende e a realidade em que vive.
A essa concepção de trabalho associa-se a concepção de ciência e tecnologia
como: conhecimentos produzidos, sistematizados e legitimados socialmente ao longo da
história, como resultado de um processo empreendido pela humanidade na busca da
compreensão e transformação dos fenômenos naturais e sociais. Nesse sentido, a ciência
conforma conceitos e métodos cuja objetividade permite a transmissão para diferentes
gerações, ao mesmo tempo em que podem ser questionados e superados historicamente,
no movimento permanente de construção de novos conhecimentos.
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Por sua vez, a cultura, que também deve ser inserida nesse contexto, deve ser
entendida como as diferentes formas de criação da sociedade, seus valores, suas normas
de conduta, suas obras. Portanto, a cultura é tanto a produção ética quanto estética de
uma sociedade; é expressão de valores e hábitos; é comunicação e arte. Uma formação
que não dissocie a cultura da ciência e do trabalho possibilita aos estudantes
compreenderem que os conhecimentos e os valores característicos de um tempo
histórico e de um grupo social trazem a marca das razões, dos problemas, das
necessidades e das possibilidades que orientaram o desenvolvimento dos meios e das
relações de produção em um determinado sentido.
Por esta perspectiva a cultura deve ser compreendida no seu sentido mais
amplo, ou seja, como articulação entre o conjunto de representações e comportamentos
e o processo dinâmico de socialização constituindo o modo de vida de uma população
determinada. Portanto, cultura é um processo de produção de símbolos, de
representações de significados e ao mesmo tempo, prática constituinte e constituída do e
pelo tecido social.
Outro elemento relevante é a produção científica que pode se constituir num
contexto próprio de formação no ensino médio, formulando-se, entre outros objetivos,
projetos e processos pedagógicos de iniciação científica. Também a prática e a produção
cultural podem adquirir uma perspectiva própria de formação no ensino médio, de modo
que objetivos e componentes curriculares com essa finalidade sejam inseridos no
projeto de ensino médio.
Na perspectiva de conferir especificidades a estas dimensões constitutivas da
prática social que devem organizar o ensino médio de forma integrada – trabalho,
ciência e cultura – entende-se a necessidade de o ensino médio ter uma base unitária
sobre a qual podem se assentar possibilidades diversas de formações específicas: no
trabalho, como formação profissional; na ciência, como iniciação científica; na cultura,
como ampliação da formação cultural.
Dessa forma, proporcionar a compreensão do mundo do trabalho e o
aprimoramento da capacidade produtiva e investigativa dos estudantes; explicitar a
relação desses processos com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e formá-los
culturalmente, tanto no sentido ético – pela apreensão crítica dos valores da sociedade
em que vivem – quanto estético, potencializando capacidades interpretativas, criativas e
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produtivas da cultura nas suas diversas formas de expressão e manifestação, são
finalidades que devem estar presentes e organicamente integradas no ensino médio.
Do ponto de vista organizacional, não se acrescentaria mecanicamente ao
currículo componentes técnicos, ou de iniciação à ciência, ou, ainda, atividades
culturais. Obviamente, tais componentes já estão presentes no currículo do curso
Técnico em Meio Ambiente, mas seriam necessariamente desenvolvidos de forma
integrada aos diversos conhecimentos. Não se trata de uma proposta fácil; antes, é um
grande desafio a ser construído processualmente através de uma articulação entre o
corpo técnico, o corpo docente e o alunado, visando a práticas curriculares e
pedagógicas que levem à formação plena do educando e possibilitem construções
intelectuais elevadas, mediante a apropriação de conceitos necessários à intervenção
consciente na realidade.
Uma política de ensino médio nessa perspectiva visa fomentar, estimular e
gerar condições para que o processo de ensino-aprendizado na Escola Bosque “Eidorfe
Moreira” torne-se um componente prazeroso no exercício da cidadania.
Dimensões para um Currículo Inovador
Entende-se que o currículo é um dos elementos orientadores da Organização do
Trabalho Escolar, pressupondo desde o planejamento da gestão da escola até o
momento destinado a coordenação dos docentes. O currículo apresenta uma proposta
educativa que deve ter as condições adequadas à sua concretização.
Ainda, a organização curricular deve considerar as diretrizes curriculares
nacionais e dos respectivos sistemas de ensino e apoiar-se na participação coletiva dos
sujeitos envolvidos, bem como nas teorias educacionais.
Ninguém mais do que nós mesmos, enquanto comunidade escolar, conhecemos
melhor a nossa realidade e, portanto, estamos habilitados para apresentar indicativos e
tomar decisões a respeito do currículo que vai, efetivamente, ser praticado. Neste
sentido, cabe a instituição a responsabilidade de criar as condições materiais e aporte
conceitual que permitam as mudanças necessárias no âmbito do currículo vigente
atualmente, de modo que possa evitar a excessiva evasão e reprovação observada.
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Na proposta do Projeto Ensino Médio Inovador da Escola Bosque “Eidorfe
Moreira”, o percurso formativo será organizado seguindo a legislação em vigor, as
diretrizes curriculares vigentes e as orientações metodológicas estabelecidas por este
projeto. Sendo, portanto, possível redistribuição das disciplinas por eixos temáticos.
A intencionalidade de uma nova organização curricular, baseada em eixos
temáticos, é erigir uma escola ativa e criadora construída a partir de princípios educativo
que unifique, na pedagogia, ethos, logos e tecnos, tanto no plano metodológico quanto
no epistemológico. Entendendo que o nosso projeto político-pedagógico materializa-se
através de um processo de formação humana coletiva, no entrelaçamento entre trabalho,
ciência e cultura, e que se pressupõe os seguintes objetivos:
 Contemplar atividades integradoras de iniciação científica e artísticocultural;
 Incorporar, como princípio educativo, a metodologia da problematização
como instrumento de incentivo a pesquisa, a curiosidade pelo inusitado e o
desenvolvimento do espírito inventivo, nas práticas didáticas;
 Promover a aprendizagem criativa como processo de sistematização dos
conhecimentos elaborados, como caminho pedagógico de superação a mera
memorização;
 Promover a valorização da leitura em todos os campos do saber,
desenvolvendo a capacidade de letramento dos alunos;
 Fomentar o comportamento ético, como ponto de partida para o
reconhecimento dos deveres e direitos da cidadania; praticando um humanismo
contemporâneo, pelo reconhecimento, respeito e acolhimento da identidade do
outro e pela incorporação da solidariedade;
 Articular teoria e prática, vinculando o trabalho intelectual com atividades
práticas e experimentais, uma vez que estarão associadas ao ensino regular as
atividades do Curso Técnico em Meio Ambiente;
 Estimular a capacidade de aprender do aluno, desenvolvendo o
autodidatismo e autonomia dos estudantes;
 Organizar
os
tempos
e
os
espaços
com
ações
efetivas
de
interdisciplinaridade e contextualização dos conhecimentos;
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 Garantir o acompanhamento da vida escolar dos estudantes, desde o
diagnóstico preliminar, acompanhamento do desempenho e integração com a
família;
 Intensificar o reforço da aprendizagem, como meio para elevação das bases
para que o aluno tenha sucesso em seus estudos.
 Avaliação da aprendizagem como processo formativo e permanente de
reconhecimento de saberes, competências, habilidades e atitudes.
Proposições Curriculares
Na organização curricular da Escola Bosque “Eidorfe Moreira” são
consideradas as diretrizes curriculares nacionais, as diretrizes complementares e
orientações do respectivo sistema de ensino, ou seja, a formação integrada, e de modo
que se apóiem na participação coletiva dos sujeitos envolvidos, bem como nas teorias
educacionais.
Neste sentido o presente trabalho estabelece um referencial de proposições
curriculares e condições básicas que orientam sua implementação, através dos seguintes
objetivos: a) tornar a leitura elemento basilar de todas as disciplinas; b) estimular as
atividades teóricas-práticas apoiadas em discussões intra ou extra-sala, mediante
articulação com os professores do Curso Técnico em Meio Ambiente; c) fomentar as
atividades interdisciplinares de forma que promovam a ampliação do universo cultural
do aluno; d) garantir a divisão da grade curricular por eixos temáticos, isto é, Códigos e
Linguagens e suas tecnologias; Ciências da natureza, Matemática e suas tecnologias; e
Ciências humanas e suas tecnologias2.
Concepção de Currículo
2
Curiosamente, sem que na proposta do MEC conste explicitamente o tratamento curricular por áreas de
conhecimento, como, aliás, prescrevem as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(Resolução CNE/CEB nº 03/98, e Parecer CNE/CEB nº 15/98), ganhou destaque na imprensa que essa
articulação interdisciplinar consistirá no fim da “divisão por disciplinas”, distribuindo as “atuais 12
matérias” (sic) em grupos mais amplos. Lembra-se, a propósito, que as provas do ENEM e do ENCCEJA
são organizadas por áreas de conhecimento.
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O último item do tópico anterior pretende chamar atenção para um conceito
ampliado do currículo, de modo que abranja todos os elementos relativos ao que se deve
fazer para atingir os objetivos da escola. Do ponto de vista organizacional, o presente
estudo não pretende acrescentar mecanicamente o currículo os componentes listados,
mas desenvolvê-lo de forma integrada aos diversos conhecimentos já existentes, por
exemplo, no Curso Técnico de Meio Ambiente. Nesse sentido estou considerado que o
pioneirismo dessa ação chama atenção para o caráter modernizador que a Escola
Bosque “Eidorfe Moreira” pretende implementar, visto ser ela, no cenário Amazônico e
Ambiental, a principal referência em termos de uma ensino inovador.
Minha preocupação com o currículo advém das observações que tenho
efetuado em sala de aula, quanto ao rendimento de meus alunos nas duas disciplinas que
leciono na instituição: Sociologia e Iniciação à Pesquisa Científica. Extraí, portanto, a
concepção de que a fadiga e o excesso de trabalhos e provas a serem realizadas,
interferem profundamente no rendimento dos alunos, além do que no próprio resultado
das avaliações até então efetuadas.
Minhas práticas avaliativas têm demonstrado que a heterogeneidade das notas
está relacionada à disparidade no processo de absorção dos conteúdos. Isso tem se
notabilizado pela excessiva quantidade de notas baixas, ou abaixo da média.
Comparativamente, pode-se notar que os alunos do Ciclo 4 do Ensino Fundamental,
individualmente, apresentam uma média avaliativa muito próxima a média do conjunto,
ou seja, da turma (exemplo das turmas Tamuatá [C42304] e Arraia [C42303 ], ambas do
turno da tarde), enquanto a nota dos alunos de todos os “Primeiro Ano” do Ensino
Médio varia consideravelmente em relação a média de cada turma (Pescada-Manhã
[A11101], Pescada-Tarde [A11303] e Dourada-Tarde [A11302]).
Segundo relatos obtidos dos próprios alunos, em que se pese a observação de
suas intencionalidades, verifica-se uma expressiva rejeição pelo sistema atual, no
sentido de uma intensa reclamação acerca do excessivo número de disciplinas, que varia
em cerca de 16 a 18 disciplinas. Suas considerações chamam a atenção para o fato de
que o excesso de disciplinas implica uma deformidade no processo de avaliação, em
vista da pouca disponibilidade de tempo para a execução das tarefas exigidas pelos
docentes, o que traz conseqüentes frustrações em relação aos resultados avaliativos
obtidos.
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Uma divisão curricular por eixos temáticos, tornaria pedagogicamente viável a
implementação de uma nova forma de acolher seus interesses. A idéia é que os eixos
Códigos e Linguagens e suas tecnologias, Ciências da natureza, Matemática e suas
tecnologias e Ciências humanas e suas tecnologias, sejam realizadas por módulos,
observadas, claro, a diferença entre a carga horária de cada disciplina e a sua relação
com o horário dos professores. Desse modo um professor expunha sua disciplina
durante o período correspondente a sua carga horária anual. Acompanharia, em
melhores condições, pois, o processo de avaliação do aluno, além de poder contar com
uma melhor coerência na organização de seu conteúdo.
É bem provável que a intensa presença do professor em sala de aula durante
um prolongado período de tempo possa incorrer em inconvenientes, como por exemplo,
a sobrecarga de conteúdo. Por essa razão é que o sistema por eixos temáticos possibilita
que num dia de aula, ou numa semana, por exemplo, mais de um docente, habilitado
para aquele eixo, possa fazer-se presente em sala.
Além dessas vantagens, é possível considerar que a política curricular de
divisão das disciplinas por eixos temáticos estimula a pesquisa e a leitura, de modo que
no período em que os docentes não se encontrarem em sala de aula, poderão
implementar seus projetos individuais ou coletivos voltados para a Instituição.
Conclusão: um plano de implementação
Por plano de implementação estou considerando a maneira pela qual o presente
projeto, associado com as possíveis modificações que venham a surgir em seu
desenvolvimento, deve proceder em seus objetivos, cujo principal é a reestruturação
curricular.
Num primeiro momento o programa discute, através de reuniões, entre o corpo
técnico e docente, suas condições e recursos disponíveis a sua implementação. Em
seguida o mesmo é exposto à comunidade escolar, por meio de debates, fóruns,
colóquios ou palestras, de modo a suprir possíveis carências em sua formulação.
Em seguida é importante que sejam avaliadas as competências de cada
profissional, em suas respectivas áreas e de acordo com seus eixos temáticos. Também
deve ser levado em consideração as estruturas que formam a ossatura do ensino regular
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e técnico, de modo que possa haver diálogo na integração de possíveis propostas
diferenciadas. Noutro momento é decidido sua forma de implementação, de modo que
sejam abrangidos os três níveis do ensino médio.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
nº. 9394, de 20/12/1996.
BRASIL. Congresso Nacional. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio, Câmara de Educação Básica, nº 3, de 26/06/1998
ALENCAR, Breno. Projeto Ensino Médio Inovador na Escola Bosque “Eidorfe
Moreira”. ESCOLA BOSQUE "PROF. EIDORFE MOREIRA":
Belém, 2009.
DICK, Hilário. Gritos Silenciados, mas evidentes: Jovens construindo juventude
na História. São Paulo: Edições Loyola, 2003
CORDÃO, Francisco Aparecido. Parecer sobre proposta de experiência
curricular inovadora do Ensino Médio. Ministério da Educação/
Conselho Nacional De Educação: Brasília, 2009.
Breno Rodrigo de Oliveira Alencar
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
A PRODUÇÃO DOS SABERES CULTURAIS NO
ÂMBITO DO CURRÍCULO ESCOLAR:
POSSIBILIDADE DE UMA FORMAÇÃO
CULTURAL CRÍTICA E EMANCIPATÓRIA?
Carlos Antônio Barbosa Firmino
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
A PRODUÇÃO DOS SABERES CULTURAIS NO ÂMBITO DO CURRÍCULO
ESCOLAR: POSSIBILIDADE DE UMA FORMAÇÃO CULTURAL CRÍTICA E
EMANCIPATÓRIA?
Carlos Antônio Barbosa Firmino
RESUMO: O artigo faz uma análise do currículo e da organização escolar que dele
emana para responder se é possível que os mesmos favoreçam uma formação cultural
crítica e emancipatória. Nesse sentido, discutimos como os currículos influenciam a
organização e a transmissão do conhecimento na escola e quais as contribuições desse
conhecimento para a sua transformação a fim de que ela favoreça uma formação
cultural desalienante da onipresença do mercado e de suas combinações deformativas.
Concluímos que essa formação será efetivada se a educação for realizada em todas as
suas dimensões político-social-econômica, subsumida por um currículo crítico e/ou
progressista que dê conta de desnudar os arranjos sociais pela superação de todos os
tipos de violência, preconceitos, subordinações, exclusões e exploração humana. Um
currículo que surja do encontro de educadores e estudantes, que lhes resgate o dom da
solidariedade e lhes devolva uma racionalidade verdadeiramente desinteressada e
humana.
PALAVRAS-CHAVE: currículo; formação cultural; formação crítica e emancipatória.
1. INTRODUÇÃO
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém,
desviamo-nos dele. A cobiça envenenou a alma dos homens,
levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar a
passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da
produção veloz, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A
máquina, que produz em grande escala, tem provocado a escassez.
Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência,
empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos pouco.
Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de
inteligência, precisamos de afeição e doçura! Sem essas virtudes, a
vida será de violência e tudo estará perdido.
(Charles Chaplin, em discurso proferido no final do filme “O
grande ditador”)
Essa pesquisa de natureza teórica, impulsionada pelas preocupações com a
formação humana, conforme ressalta Chaplin na citação acima, investiga como os
saberes culturais são produzidos pelo currículo escolar. Nesse sentido, pretendemos
Carlos Antônio Barbosa Firmino
6553
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
responder aos seguintes questionamentos: Pode o currículo, com a organização escolar
que dele emana, ser objeto de uma formação cultural crítica e emancipatória? De que
forma e que ações pedagógicas são necessárias para resgatar nos indivíduos uma
racionalidade mais desinteressada e humana?
Para começarmos a análise e discussão das nossas indagações, partimos de um
relato feito pelo professor Ferdinand Röhr1 em ocasião de sua participação numa banca
de defesa de tese na UFPE. Dizia ele: __ um menino de dez anos, baleado no estômago
e agonizando, dá entrada num hospital público e é atendido por um aluno residente do
curso de medicina da universidade pública. A criança assustada sobre uma maca, se
reporta ao médico: __ doutor, eu estou com medo! O senhor pode segurar a minha mão?
O médico imediatamente responde: __ para quê! Não é com essa mão que você
segurava uma arma?
Esse fato, envolto de imensa frieza, demonstra a situação de desumanização em
que se encontra a nossa sociedade atual2, uma sociedade do simulacro, do efêmero, do
tudo superficial e descartável - incluindo as relações humanas - portanto, substituível.
Nela, os indivíduos se comportam de forma totalmente descomprometida com os
problemas dos outros; não há amizades; é como se a vida girasse apenas em torno dos
seus próprios interesses. Tal comportamento, na visão de Adorno & Horkheimer (1985)
se deve ao fato de
o burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se
divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a
comunidade mal-humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente
sozinho, rompido consigo mesmo e com todos, já é virtualmente o nazista que ao
mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes
cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como contato
social de pessoas que não se tocam intimamente (ADORNO & HORKHEIMER, 1985:
145-146).
Essa necessidade de substituição constante das coisas, esse consumo
desenfreado, é que tem comandado, infelizmente, as ações humanas e tornado o mundo
fragmentado e sem sentido. “As imagens que estimulam o consumo acompanham o
1
Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Pernambuco.
2
A desumanização implantada pelo processo capitalista de produção negou aos trabalhadores todos os
pressupostos para a formação e, acima de tudo, o ócio’ (ADORNO, 1996: 393).
Carlos Antônio Barbosa Firmino
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
indivíduo do nascimento à morte. As palavras de ordem nessa sociedade não são mais
as guardadas nos livros santos, tampouco as de escritores seculares, mas sim as marcas
comerciais de produtos prontos para o consumo” (PALANGANA, 1997: 178-179).
Segundo a autora, esta racionalidade traduz-se nos próprios locais de comércio,
atualmente concentrados pela unicidade dos shoping centers que
congregam,
simultaneamente, todos os tipos de produtos para todos os tipos de gostos.
Dessa forma, sobre a ótica da sensibilidade humana de onde brota a ética e a
sensatez, será sempre desaprovador e ontologicamente incompreensível, que um médico
que estuda para salvar vidas, não tenha um mínimo de sensibilidade para entender que
aquela criança já nasceu condenada à morte, não pelas enfermidades naturais, mas pela
crueldade da ordem social vigente. Do médico, a criança queria apenas atenção, carinho,
solidariedade que a sociedade não lhe deu durante sua breve vida e que, o residente,
incoerentemente, que estava se formando com recursos públicos para salvar vidas,
também lhe negava no seio de morte.
Este paradoxo é o reflexo de uma formação cultural equivocada que se encontra
em colapso por toda a parte e continua se agravando ao longo dos tempos, que perpassa
todas as classes sociais, não se esgota na estrutura educacional, seja de natureza
ideológica ou organizacional e que vem sendo conduzida pela educação formal em
todas as suas instâncias e níveis de organização. No entendimento de Adorno (1996), tal
processo se traduz em uma semiformação socializada, uma forma dominante da
consciência atual, sedimentando-se numa espécie de espírito objetivo negativo, em que
tudo fica aprisionado nas malhas da socialização, renunciando à autodeterminação e
prendendo-se a elementos culturais aprovados, que orientam à barbárie3. O resultado
desta pseudo-formação, que vem sendo construída historicamente pela burguesia, é pior
do que a não-cultura, anteriormente por ela combatida e uma de suas promessas
libertadoras4, pois a semiformação cultural atrofia a consciência e a liberdade, unindo as
noções ideológicas dos indivíduos de forma homogênea.
3
É o antônimo de civilização. Etimologicamente, segundo consta no Dicionário Prático Ilustrado (1956:
152) significa falta de civilização; selvageria; crueldade. “Barbárie significava o preconceito delirante, a
repressão, o genocídio, a tortura, a continuidade do potencial autoritário, das condições que geraram
aquela situação de terror” (OLIVEIRA, 1992: 93).
4
“Teoricamente, a sociedade burguesa adulta compor-se-ia de indivíduos livres e auto-suficientes. O
sonho não se materializou, e o discurso burguês prossegue não admitindo que a emancipação humana só é
possível numa outra organização social, diferente da que o abriga” (PALANGANA, 1997: 201).
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
Com o progresso, há uma elevação geral no nível de vida e, por conseguinte,
uma maior demanda por formação. O acesso aos bens culturais acaba por atingir na
mesma proporção todas as classes sociais. O que antes era reservado ao ricaço e ao novo
rico, se popularizou. É essa nova realidade que passa a determinar a formação
semicultural. Nesse sentido, “o entendido e experimentado medianamente – semientendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da formação, e sim
seu inimigo mortal” (Ibdem: 402).
Em que pese a uma boa formação ter como condições intrínsecas a autonomia e
a liberdade, remete sempre a “estruturas pré-colocadas a cada indivíduo em sentido
heteronômico e em relação às quais deve submeter-se para formar-se. Daí que, no
momento mesmo em que ocorre a formação, ela já deixa de existir. Em sua origem já
está, teologicamente, seu decair” (Ibdem: 397), quer dizer, por vir definida a priori, ela
perdeu seu caráter espiritual, filosófico e metafísico que foi substituído por uma
formação controlável regida por meio de normas e qualificações. Pior, é altamente
seletiva porque atende a critérios avaliativos meritocráticos subjugados a um contexto
de privilégios.
Essa é uma educação que caminha na contra-mão de uma verdadeira “educação”
no sentido kantiano 5, que “deve ser adaptada ao Homem e não aos interesses
particulares ou transitórios da economia, da política, nacional ou internacional, das
ideologias arraigadas em preconceitos, nacionalidades ou culturas” (LIMA, 1998: 13).
Esse equívoco da natureza e condução da educação é muito bem sintetizado por
Policarpo Jr. (2006):
Quando a educação se subsome completamente aos ditames de uma sociedade ou
cultura, aquela dimensão educativa praticamente se extingue, o que necessariamente
implica a falsificação da prática e do próprio conceito de educar. Uma vez que esse
acontecimento não é raro na educação, a teorização sobre o educar muitas vezes termina
por consagrar essa subordinação da educação aos ditames sociais e culturais
(POLICARPO Jr., 2006: 5).
Entretanto, apesar deste clima cético com que Adorno (1996) trata da questão da
formação cultural, ao mesmo tempo ele aponta alternativas para ela quando assinala o
fato de que a asserção da universalidade da semicultura é indiferenciada e exagerada,
pois seria possível a inúmeros trabalhadores, pequenos empregados e outros grupos não
5
Unicamente pela educação o homem pode chegar a ser homem (KANT, 1983: 31).
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e emancipatória?
caírem na sua tentação, motivados por resquícios de uma consciência de classe. Martin
Jay (1988), confirma a assertiva quando afirma que “muito embora Adorno enfatizasse
o atual poder ‘do sempre igual’ (...) o fazia na esperança de acabar com o seu domínio
no futuro” (JAY, 1988: 99).
Portanto, com base neste entendimento de formação cultural elaborado pelos
teóricos da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno e Horkheimer, o nosso trabalho
pretende discutir como os currículos influenciam a organização e a transmissão do saber
cultural escolar e quais as contribuições do conhecimento produzido para a
transformação da escola a fim de que ela favoreça uma formação cultural desalienante
da onipresença do mercado e dos arranjos deformativos advindos dele e possa se
preparar para realizar as promessas liberais6, que nunca foram cumpridas, “de uma
humanidade sem status e sem exploração” (ADORNO, 1996: 392). Uma formação para
a autonomia do indivíduo e não apenas para a sua cidadania no sentido formal, que
conforme assinala Lenhardt (1996), propicie uma educação que não seja semiformação,
mas formação.
2.
FORMAÇÃO
CULTURAL:
PRESSUPOSTOS
NA
ORGANIZAÇÃO
CURRICULAR
A formação cultural costuma ser presa fácil do modelo hegemônico, porque, em
geral, este determina, através das estratégias estabelecidas nas políticas públicas e na
sua concretização no interior da escola, o que pode ou o que não pode ser considerado
válido.
Um exemplo típico desse controle está presente no currículo escolar porque ele
serve, na maioria das vezes, para legitimar o aprisionamento das idéias e das
experiências dos indivíduos, ao invés de cumprir, como advoga Matos (1996), o papel
de fomentador de uma educação para a sua emancipação. Nas palavras da autora,
“compreender seu eclipse é interrogar a permanência da barbárie no interior da
6
Segundo Lenhardt (1996), Adorno ao teorizar sobre a semiformação, mostra o fracasso da educação
liberal. Esta não seria uma educação para a emancipação, para a autonomia, não por alguma falha por
parte dos indivíduos em incorporarem a cultura, mas por uma razão objetiva – porque a própria estrutura
da cultura o impede. Isto é, o predomínio do princípio de troca do capitalismo impede a autonomia dos
indivíduos e, por isso, a educação para a autonomia fracassa e necessariamente resulta em semiformação.
Carlos Antônio Barbosa Firmino
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
civilização, e questionar as relações entre autonomia e repressão para que Auschwitz7
não se repita” (MATOS, 1996: 22) Segundo ela, na concepção adorniana, há barbárie
sempre que qualquer grupo se auto-intitule representante legítimo da organização social
e, para alcançar o seu intento, se utilize da violência física, dos genocídios, racismo,
tortura, fundamentos religiosos e guerra. O resultado deste processo é confirmado por
uma ação docente que é pouco consciente, em que o professor celebra rituais
pedagógicos sem uma reflexão profunda sobre o seu conceito, reproduzindo práticas
tradicionais ou deixando-se levar por mudanças periféricas. O ambiente social e cultural
em que vive o professor interfere fortemente no ensino, que é uma prática social. Esta
prática se concretiza pela interação entre professor e alunos tendo reflexos sobre a
cultura e os contextos sociais a que pertencem.
Dessarte, para que possamos entender a formação cultural precisamos desnudar
uma das principais estruturas sociais onde ela é gerada – a escola. Como falamos de
formação, por zelo de concepção, nos obriga primordialmente verificar a prática
pedagógica que vigora na maioria das nossas escolas mesmo porque, conforme ressalta
Silva (1999), ainda que tenhamos avançado na produção de conhecimentos teóricos, a
prática pedagógica, na maioria das nossas escolas, ainda não sofreu modificações mais
substantivas. É essencial compreendermos o contexto histórico-social em que essa
prática é produzida e, especialmente, como condiciona seus principais atores.
Nesse sentido, estudar a natureza do conhecimento escolar como formação
cultural é procurar entender os conteúdos escolares e o currículo que os orienta sob o
ponto de vista ideológico, ou seja, compreender a quem eles servem para definirmos,
conforme assinala Silva (1999), qual o nosso lado no jogo. Isto porque, a estrutura dos
conteúdos e da organização escolar manifesta uma posição teórica de conceber o
conhecimento e revelar de que forma a civilização o produz e o consome, mesmo
quando sabemos que “nem todo conhecimento humano é necessário para a perpetuação
da cultura humana, ou mesmo passível de ser ensinado” (LOPES, 1999: 84). Nós
professores, não temos tido a oportunidade de refletir sobre as nossas próprias
concepções de cultura e como as veiculamos
no
processo
de
ensino que
7
Auschwitz é o nome do campo de concentração onde, na Segunda Guerra Mundial, milhões de judeus
foram executados pelo nazismo de Hitler – “emblema do mundo administrado – não é um acidente de
percurso político, mas o resultado do vitorioso desenvolvimento da ratio, cuja matriz é a ciência moderna,
desde Bacon, vinculada ao desenvolvimento industrial agressivo, sob auspícios expressamente materiais”
(MATOS, 1996: 22).
Carlos Antônio Barbosa Firmino
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
desenvolvemos. Muito menos temos analisado estas concepções como definidoras de
formas
de organização
curricular
e
da
maneira
como
selecionamos e
desenvolvemos os conteúdos escolares. Se a intervenção pedagógica do professor é
influenciada pelo modo como pensa e age nas diversas facetas de sua vida, é
fundamental analisar alguns conceitos envolvendo a formação cultural e a prática
escolar que os determina.
O primeiro conceito diz respeito aos conhecimentos produzidos pela
humanidade e a forma que estes conhecimentos devem ser repassados. Numa primeira
interpretação, cabe ao professor repassá-los com segurança e certeza. Nada deve ser
questionado, e o aluno deve ser alguém que reproduz, fielmente, aquilo que a escola
ensina. Ora, esta é uma compreensão equivocada, porque o conhecimento, ao contrário,
é dinâmico e sempre relativo. Compõe um processo histórico e sempre inacabado. O
que vale hoje pode não valer amanhã, porque novas descobertas e análises já superaram
as anteriores. Dessa forma,
a não-superação da autoridade educacional, mas só sua negação; a ênfase em conteúdos
exatos e lógicos sem maior atenção para a imaginação; a transmissão de informações
que devem ser substituídas rapidamente pelas mais atuais dificultam qualquer
possibilidade de formação de um indivíduo que, ao poder perceber as contradições da
realidade, possa resistir à adaptação heterônoma. (CROCHIK, 1996:98).
Na escola, dificilmente esta percepção é passada aos alunos. Em geral, os
conteúdos são dados como definitivos e sinônimos de verdades inquestionáveis. Não há
a preocupação de fazer o aluno entender em que contexto eles foram produzidos e,
muito menos, de tomá-los como relativos. Daí, segundo Adorno (1996), dá-se a
consciência progressivamente dissociada, que faz com que o conteúdo dos bens
culturais seja entendido em seu sentido isolado, dissociado das coisas humanas e, se
esquecendo disso, a formação absolutiza-se e converte-se em semiformação. Os
próprios professores não produzem os conhecimentos que são chamados a produzir, e,
muitas vezes, o domínio estrutural de sua matéria de ensino deixa muito a desejar.
Reforçam esta concepção as relações de poder que estão presentes na organização
escolar, em especial a avaliação. Embora o poder do castigo físico tenha sido
legalmente abolido das escolas, a “violência persiste como realidade, pois os
professores exercem ações autoritárias que se estendem desde o castigo físico mesmo
Carlos Antônio Barbosa Firmino
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e emancipatória?
até formas mais sutis e ‘modernas’, como o uso da avaliação para oprimir o alunado”
(OLIVEIRA, 1994: 130).
Um segundo conceito reivindica um conhecimento neutro, livre de implicações
sociais e políticas. Esta perspectiva foi absurdamente instalada na comunidade escolar
na tentativa de servir àqueles que estavam interessados em que o processo educativo
não fosse emancipatório, capaz de instrumentalizar os homens para pensar e tomar
decisões. Ora, é óbvio que os resultados de uma formação que tenha este sentido não se
sedimentam porquanto o homem é um ser axiológico por excelência: nada do que ele
faz está liberto de valores. De acordo com Prestes (1994), o próprio papel da escola está
subjugado à razão subjetiva. Quando definimos produzir um conhecimento que
responda a um tipo de problema já estamos evidenciando que há um tipo de interesse
que move a ação investigatória.
Um terceiro conceito se prende à idéia da separação entre teoria e prática e, na
mesma direção do anterior, também tem servido de escopo para manter o saber cultural
e o conhecimento escolar deslocado do fazer dos homens. Para muitos de nossos alunos
e até alguns professores, a construção do conhecimento sistematizado não consegue
revelar a relação entre teoria e prática posto que para eles, na maioria das vezes, a teoria
tem que vir primeiro do que a prática. Ora, para quem realmente tem compromisso com
uma boa formação, é absolutamente claro que a teoria e a prática são duas faces
inseparáveis do mesmo ato de conhecer. Corroborando com este entendimento, Pucci
(1994), se referenciando em Adorno, ressalta que “se a prática fosse o critério da teoria,
ela não poderia alcançar o que pretende; se a prática se orientasse apenas pelas diretrizes
da teoria, se endureceria doutrinariamente e falsificava a teoria” (PUCCI, 1994: 44). É
“na intersecção da teoria com as várias práticas educacionais existentes, historicamente
localizadas, que se podem plantar as bases do desenvolvimento dos vários currículos
críticos e progressistas ou das várias pedagogias críticas” (SILVA, 1992: 36).
Um quarto conceito prediz que o ato de conhecer requer, especificamente, um
esforço individual. Ser individual é ser unidade vital de particularidade e genericidade
tendo em conta que a proporção entre estes valores “variam de indivíduo para indivíduo,
em função das relações sociais, das quais é parte integrante e atuante” (LOPES, 1999:
140). Toda nossa organização escolar está centrada no individual, propondo, inclusive,
aparatos que procuram dificultar a comunicação entre os aprendizes. Isso acontece
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
porque o entendimento que se dá hoje à individualidade é o recorrente da determinação
capitalista, ou seja, de total adaptação. “A defesa do indivíduo serve à sua libertação se
levada a efeito dentro da história da sociedade que o escravizou em nome da
emancipação” (PALANGANA, 1997: 203). Segundo Adorno (1996), na atualidade,
quanto mais o indivíduo acha que é, menos ele é, e o pior, mais é coisificado pela
ausência de identidade. A estrutura política-econômica imutável desumaniza porquanto
obriga as pessoas a viverem uma individualidade fictícia. “O cativeiro do espírito é real.
E, o que é pior, o cativeiro é apreendido como liberdade, de modo que o indivíduo não
tem consciência da sua escravização” (PALANGANA, 1997: 206).
É nessa percepção que se organizam os espaços de sala de aula, as tarefas de
ensino e os procedimentos de aprendizagem. O conceito de disciplina é tomado na
perspectiva do bom comportamento, que, em geral, é sinônimo de imobilismo, ordem,
passividade. A obediência, neste paradigma, é o valor maior. A competência, sinônimo
de competição, é bastante estimulada, inclusive com prêmios e castigos. Qualquer
movimento dos alunos no espaço escolar, fora dos muros da sala de aula, é visto com
cautela pela estrutura organizacional da escola. O ideal é que eles fiquem quietos e sós
com sua capacidade de pensar8 em segundo plano.
O último conceito se refere às ações desmotivadoras que envolvem os processos
de aprendizagem. Quando se libertam as idéias literárias ou satíricas sobre a escola, é
que se percebe o quanto a experiência escolar é vista como algo cansativo e enfadonho
quer dizer, fica sempre o entendimento de que “dentro das paredes da escola
desenvolve-se uma vida que não é, de fato, a vida e que, portanto, todos os que lá se
encontram em múltiplas atividades e reflexões estão fora da vida” (OLIVEIRA, 1994:
133). As nossas lembranças da escola, fora as relações pessoais e as experiências
particulares, são na maioria das vezes negativas. Para que esse processo seja revertido,
segundo Snyders (1988), é necessário desorganizar, a partir de novos conteúdos, o
abismo entre o que a escola é e o que poderia ser. Trata-se de conceber a apropriação
cultural como algo gratificante, se provida de um sentido. Se os alunos forem
8
“Devido às mudanças que vêm sendo feitas na base técnica e organizacional do processo produtivo, a
intervenção na subjetividade, na consciência, na conduta, no disciplinamento do indivíduo, é considerada
estrategicamente fundamental. Donde se percebe que, a capacidade para pensar, antes referida, se
estabelece regulada de perto pelas necessidades do capital” (PALANGANA, 1997: 182).
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e emancipatória?
partícipes da construção do conhecimento, e se este conhecimento tiver algum
significado para eles, certamente viverão, ao aprender, uma experiência prazerosa.
Como podemos perceber, estas são algumas posturas sobre a formação cultural
na escola que, historicamente, foram passadas aos docentes, por meio da sua trajetória
escolar e acadêmica, e precisam ser examinadas com maior profundidade. Se os
professores estão insatisfeitos com a prática escolar que têm, se desejam fazer que o ato
pedagógico seja mais adequado a uma concepção crítica de educação, que responda aos
desafios da modernidade, sem dúvida, é necessário que revejam suas crenças sobre
cultura e, nela, a percepção que está contida de mundo e de sociedade.
Nesse sentido, ao falarmos em educação, temos como anteriormente
referenciado, a perspectiva de uma formação cultural ética, crítica e emancipatória,
capaz de preparar o homem para intervir historicamente na sociedade em que vive.
Assim, o ponto de partida para a análise da seleção de conteúdos escolares é o
compromisso com a mudança que nos leve à construção de um saber escolar mais
estimulador da inteligência e da independência do pensamento. Essa construção não é
aleatória, solta, mas dependente da forma como o currículo é assumido no espaço da
organização escolar.
3. O CURRÍCULO: LIÇÕES E DÚVIDAS PARA UMA FORMAÇÃO
CULTURAL
É fácil perceber que as mesmas concepções equivocadas de formação cultural se
repetem e se multiplicam na organização curricular. Esta organização é fruto de uma
política curricular que, segundo Dias & Abreu (2006), é definida em três contextos: o
contexto da influência, no qual as definições e os discursos políticos são iniciados e/ou
construídos; o contexto da produção, no qual textos com as definições políticas
selecionadas anteriormente são produzidos; e o contexto da prática, no qual as
definições curriculares são recriadas e reinterpretadas. Ela é a expressão da transmissão
cultural na escola, entendida, aqui, como aquilo que se ensina, a maneira como se
portam os alunos e o que realmente a escola assume como aceitável. Dessa forma,
estamos tomando o conceito de currículo no seu sentido amplo, isto é, na sua intenção,
elaboração, implementação e todas as experiências escolares vividas pelos alunos. Isso
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
significa analisar as suas intenções, não apenas as de caráter explícitos, mas, também, as
embutidas nas ações da comunidade social e denominadas de currículo “oculto”.
O currículo oculto, conforme assinala Oliveira (1994), é composto pelo conjunto
dos valores culturais que, por não serem explicitados nem tornados conscientes,
suplantam os oficialmente codificados. São ocultos para quem os recebe, mas explícitos
para quem os elabora. Por não constarem dos documentos oficiais, surgem a partir da
história de vida e das experiências cotidianas dos aprendizes, tais como os preconceitos
de classe, de sexo e de raça e, freqüentemente, são veiculados pelos próprios
professores, pelos livros didáticos9 e pelos meios de comunicação de massa,
principalmente o rádio e a televisão. Pior, esses conteúdos são determinados e regidos
pela chamada Indústria Cultural10. É ela que orienta a postura ideológica que está
presente na relação pedagógica e, que é a responsável, por passar formas de pensamento
e de ação. “Não é mais novidade alguma o conhecimento de que a cultura, sob o
capitalismo, se tornou indústria. Há muito tempo que ela deixou de ser o acervo de
obras singulares e processos capazes de cultivar o espírito, restando apenas vestígios de
realizações singulares não massificadas” (POLICARPO Jr., 2000: 143).
Na Indústria Cultural, os indivíduos estão privados da atividade intelectual, da
crítica e da opção e atrofiados de sua espontaneidade e imaginação. Resta-lhes o
“desideratum da acomodação, da adaptação aos esquemas de dominação progressiva, da
domesticação animal, da integração na sociedade planificada pelo capital” (PUCCI,
1994: 28). É a democracia liberal que ostenta “a liberdade de escolher o que é sempre a
mesma coisa” (ADORNO & HORKHEIMER, 1986: 156).
Assim, as formas dominantes dos currículos escolares refletem as idéias
predominantes na sociedade. Talvez por isso, “não concebemos, ainda, nenhuma
9
“O livro didático não é apenas um reprodutor das políticas curriculares, na medida em que o campo
editorial se apropria das concepções das propostas oficiais e da prática e as reinterpreta de acordo com as
suas próprias concepções e finalidades. Novos significados e interpretações formam-se, influenciando não
só o contexto escolar como também os contextos que lhe deram origem” (DIAS et ABREU, 2006: 301).
10
A Indústria Cultural transfere a magia do conhecimento para o mero fazer, formaliza a razão intelectual
como meio de produção maquinal que acaba institucionalizando a injustiça, disseminando o ódio e a
destruição dos ideais humanos em favor do caráter da necessidade e objetividade. Conforme ressalta
Horkheimer (1971), ela é uma manifestação viva da razão instrumental e seus produtos certamente vão
ser consumidos indistintamente. Ela confere a tudo um ar de semelhança organizando a sociedade para o
pensar e o agir totalizante. “Esta totalização inversora, esta necessidade do capitalismo em submeter toda
experiência do diferente ao sempre igual, ao idêntico, seria, na designação de Adorno, a ‘sociedade
integral’, a chamada ‘sociedade global’, uma socialização que inverte e oculta sua essência social efetiva
(MAAR, 1996: 65).
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e emancipatória?
maneira de fazer o currículo oculto funcionar em favor de objetivos mais democráticos
e igualitários” (SILVA, 1992: 29). Nesse sentido, a função da escola não é só de
instruir, mas, sobretudo, educar.
Cabe aqui ressaltar que apesar de ser a escola instrumento inequívoco de
reprodução social, também é espaço de resistência. Numa visão dialética da
compreensão da “realidade como essencialmente contraditória e em permanente
transformação” (KONDER, 1981: 8), é ao mesmo tempo reprodutora do pensamento
social dominante como capaz de produzir a mudança. Corroborando com o tema,
Oliveira (1994) nos diz que “como todas as instituições criadas pelo homem, a escola é
ambígua, mas é ambígua porque, acima de tudo, é uma realidade dialética. Tem
plasticidade. Pode ser transformada. Pode transformar também” (OLIVEIRA, 1994:
137).
Sobre a resistência, é tratada por teorias que procuram explicar como
determinados segmentos da sociedade, em momentos específicos, produzem
comportamentos alternativos que procuram romper com a ordem vigente. Esta é uma
característica humana que é o motor da história, sendo responsável pelas grandes
transformações e revoluções. Corrobora com a assertiva Crochik (1996), quando admite
que “o indivíduo, ao mesmo tempo em que deve se reconhecer na cultura, deve também
negá-la. Negá-la quando não contempla suas razões e seus motivos, quando pela sua
irracionalidade fomenta a irracionalidade individual” (CROCHIK, 1996: 91).
Portanto, para contrapor a ordem dominante precisamos admitir que a
reprodução e resistência, compõem o currículo oculto e precisam ser tomadas na escola
como valores pedagógicos.
Quanto aos aspectos formais do currículo, as chamadas grades curriculares ou,
atualmente, matrizes curriculares, são objetos permanentes de avaliação que, quando
desgastadas, necessitam ser reformadas. Entretanto, Adorno (1996), já advertia que é
impossível às reformas pedagógicas, mesmo que consideradas indispensáveis,
isoladamente, contribuir de forma efetiva para a superação da crise, podendo, inclusive,
em alguns casos, até reforçá-la, uma vez que elas poderiam abrandar “as necessárias
exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente
despreocupação diante do poder que a realidade extra-pedagógica exerce sobre eles”
(ADORNO, 1996: 388).
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A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
Por certo, podemos reconhecer que os problemas vivenciados com os currículos
são mais profundos do que uma simples alteração da matriz curricular. Um deles é sua
concepção positivista. De acordo com essa concepção, o conhecimento se origina a
partir de um real dado em que a razão deve se apoiar. O real é um todo único, composto
de fatos, fenômenos que se apresentam como (...) única razão capaz de dar conta da
multiplicidade desconexa” (LOPES, 1999: 38). Parte do geral para o específico, do
abstrato para o concreto, do teórico para o prático, do básico para o profissionalizante.
Segundo Oliveira (1994), “as contaminações positivistas já enterraram muito sonho,
muita luta e muito heroísmo humano nas malhas de seus enganos” (OLIVEIRA, 1994:
138).
O pressuposto deste modelo é o de que primeiro o aluno tem de aprender os
conteúdos gerais, para depois tentar aplicar ou reconhecer a aplicação destes conteúdos
na realidade. Isso não se efetiva porquanto nos estudos iniciais o aluno não encontra
significado para a aprendizagem, porque não consegue relacionar os conteúdos com sua
aplicação. Eles estão fracionados, descontextualizados, não geram problemas. Sem
questionamentos não se estimula o pensamento criativo e estaciona-se no ensino
reprodutivo, com ênfase na repetição e na memória, uma memória que segundo
Palangana (1997) é alienante porque a atividade gasta na sua construção está centrada
na adaptação ao existente. Em resumo, a lógica positivista revela “a classificação, a
fragmentação do saber, a desvinculação com uma verdade universal e o atrelamento ao
chamado ‘interesse pessoal (no caso o interesse de grupos sociais) presentes nos
processos educacionais” (PRESTES, 1994: 97).
Quanto ao professor, ele é o centro do processo de ensino; detém toda a
informação e conhecimento e, para a sua transmissão, utiliza métodos que praticam a
certeza e a resposta única em detrimento da dúvida. Segundo Lopes (1999), os
professores trabalham com regras e valores já previamente estabelecidos pelos
acadêmicos especialistas e pesquisadores da área e que determinam a seleção de
conteúdos da matéria a ser ensinada. “Os estudantes são iniciados numa tradição
competitiva, que gera violência, que não observa “o entendimento do significado da
própria competição” (CROCHIK, 1994: 99) e, suas atitudes, aproximam-se da
passividade e da resignação – um prelúdio ao desencantamento” (LOPES, 1999: 169).
Carlos Antônio Barbosa Firmino
6565
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
Outro problema freqüente é a quantidade de carga-horária que compõem as
matrizes curriculares e, pior, com o aval da maioria dos professores, como se esse fator
fosse garantia de qualidade. É coerente, também, com o paradigma de ensino
reprodutivo, com centralidade no tempo do professor, que carrega muitas informações a
transmitir a alunos dispostos a ouvirem, exercitarem e reproduzirem aquilo que
ouviram. Essa prática se perpetua numa rotina que concentra um grande número de
aulas não sobrando tempo para o aluno utilizar uma boa biblioteca, pesquisar ou
exercitar sua capacidade intelectual e criativa.
Não podemos, ainda, deixar de considerar a questão da interdisciplinaridade.
Como os conhecimentos são organizados de forma estanque, hierarquizados, em
disciplinas, a preocupação é sempre verificar o que deve e o que não deve ser ensinado
em cada matéria escolar, entre o que faz parte do campo científico de uma área do
conhecimento e o de outra. Essa fragmentação faz com que os professores
supervalorizem o seu campo de conhecimento, iluminando-o como objeto de estudo, em
detrimento dos demais. Dias e Abreu (2006), corroboram com o enunciado observando
que na elaboração dos materiais didáticos os professores levam em consideração apenas
os interesses e concepções incorporadas pelo seu grupo disciplinar, desprezando outros
discursos curriculares.
Uma última questão importante a considerar é o próprio enquadramento a que
está sujeito o conhecimento escolar, ou seja, tudo que não se enquadra na matriz
curricular oficial não tem significado, é desprezível. Esta perspectiva desconecta o saber
científico, com seus conhecimentos anteriores, do saber cotidiano; o aluno é visto como
tabula rasa, como alguém que é ignorante, com baixo status e poucos direitos. “E
amalgamados aos conhecimentos, estão os preconceitos, as imagens familiares, a
certeza das primeiras idéias” (LOPES, 1999: 128). De acordo com a força dos
enquadramentos, o conhecimento é considerado num contexto em que o professor tem o
controle ou vigilância máxima, não sendo visto como um direito a ser alcançado, mas
qualquer coisa de sagrado, que tem de ser ganho ou merecido.
Carlos Antônio Barbosa Firmino
6566
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas continuidades e rupturas do currículo apresentadas, percebemos
que para alcançarmos uma formação cultural que se funde na emancipação e autonomia
dos alunos, é preciso rediscuti-los em toda sua dimensão, seja pelo fator consensual da
tradição que carrega, pelo controle das regulamentações estatais, pela natureza de suas
determinações e pelo plano das disciplinas e suas respectivas cargas-horárias. Esta
discussão tem que ser feita a partir das bases, com a participação dos interessados
diretos, a própria comunidade escolar para que possam reunir forças contra todos os
tipos de controle e determinação.
É preponderante a compreensão de que a escola e o currículo não são motores da
história, a origem de todos os problemas do capitalismo. O que é fundamental para a
mudança da ordem social vigente, não é que as escolas sejam espaços dotados de plena
democracia, mesmo porque isto pouco afetaria a estrutura dominante, mas que, a sua
função de reprodutora do processo de acumulação e legitimação do modo de produção
capitalista seja desviado para o que ela é centralmente responsável, a formação de
homens descomprometidos com a exploração e o controle da natureza e dos seus
semelhantes. Se o projeto de humanização não está presente na educação, então não é
educação. Nesse sentido, para que ela seja exercida em sua plenitude, é necessário que
primeiro entendamos o que é “ser humano”, o que ele foi, está sendo e deverá ser, pois
“decifrar o mistério que nos torna humanos é o primeiro passo para impedir que um dia
possamos ser desumanizados” (LENT, 2006: 13). Se, estamos indo nessa direção, isso
já é humano.
As chamadas Pedagogias Progressistas11 foram tentativas de uma formação com
essa concepção. Entretanto, elas ainda não se efetivaram nos sistemas de ensino. Isso se
explica pelo predomínio da razão formalizada em todas as esferas da sociedade que
impedem a evolução de projetos emancipatórios. “Freqüentemente essas experiências
são obstaculizadas por interesses reacionários e falta de investigação sistemática”
(PRESTES, 1994: 99). O certo é que, se essas pedagogias progressistas conseguem
11
“As pedagogias progressistas referem-se àquelas propostas que pretendem vincular o processo
educativo à promoção da consciência crítica, através de um processo de libertação pessoal das condições
de opressão, de forma que, sobretudo as classes subalternas brasileiras e latino-americanas, possam
assumir seu papel de sujeito da história. Paulo Freire é a maior expressão desse pensamento no Brasil”
(PRESTES, 1994: 99).
Carlos Antônio Barbosa Firmino
6567
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
produzir alguma mudança na escola, refletem na comunidade um sentimento teleológico
de possibilidade de transformação da sociedade.
Ainda que saibamos que os currículos escolares “não são um empreendimento
neutro, puro e inocente e, igualmente, não são meros cúmplices servis dos poderes”
(LOPES, 1999: 117), ainda que certos educadores o sejam, no cotidiano escolar nos
tornamos inertes quanto ao modo de agir contra ele porque nossas atitudes de mudança
continuam dominadas pela burocratização, centralização, regulamentações, conceitos
reificados e tradições eternamente estabelecidas. Precisamos de uma educação que seja
em todas as suas dimensões política-social-econômica, subsumida por um currículo
crítico e/ou progressista que possibilite a preservação de nossas escolhas, que dê conta
de desnudar os arranjos sociais existentes, disseminadores de atitudes machistas,
racistas e de exploração humana. Adorno (1996) nos alerta que a falta de reflexões
sobre esse tipo de educação alimenta um narcisimo coletivo de que não há nada a fazer.
Um verdadeiro conformismo se instala. É como se tudo fosse de responsabilidade de um
ser mais elevado e amplo, que tudo determina e todos devem a ele obedecer
naturalmente, sem resistir, porquanto não há nada a fazer. Esse conformismo coletivo
produz nos indivíduos a sensação de estarem a par de tudo, de serem bem informados,
levando-os a uma acomodação frente a sua situação cultural, não se contrapondo a ela e,
ainda, apoiando as suas determinações.
Este currículo não virá por decreto, goela abaixo, deve surgir do encontro de
educadores, estudantes e de pessoas envolvidas em lutas específicas e comprometidas
com uma revolução cultural de utopias indefinidas pela libertação do homem e do
processo educativo conservador.
É imprescindível que seja rompido o isolamento entre as esferas teórica e
acadêmica para que o conhecimento produzido sobre educação e currículo não se feche,
em torno de si mesmo, num movimento de auto-satisfação. Este rompimento se
traduziria numa integração de ambas propiciando um grau acentuado de cooperação
entre professores e pesquisadores de todos os níveis de ensino, organizações não
governamentais e organizações populares como sindicatos e associação de moradores.
É preciso pensar novas alternativas para dar resposta a estas questões
educacionais intermitentes que historicamente, nunca tiveram solução. É “no encontro
Carlos Antônio Barbosa Firmino
6568
A Produção dos Saberes Culturais no Âmbito do Currículo Escolar: possibilidade de uma formação cultural crítica
e emancipatória?
da teoria com a História que residem nossas esperanças de uma educação e de uma
sociedade mais democrática” (SILVA, 1992: 39).
Para finalizar, sem que façamos uma reflexão profunda sobre este estado
coisificado pelo espírito de feitiço da mercadoria, que inculca nas pessoas a necessidade
ilimitada do consumo desnecessário, da efemeridade dos objetos e do pensamento
universal e homogêneo, continuaremos investindo indefinidamente, em reformas que
nunca alcançarão a qualidade de ensino tão propalada e, por conseguinte, uma formação
cultural ética, emancipatória; que seja digna de preservação; que resgate nos indivíduos
o dom da solidariedade e lhes devolva uma racionalidade verdadeiramente
desinteressada e humana.
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Carlos Antônio Barbosa Firmino
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e emancipatória?
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Carlos Antônio Barbosa Firmino
6571
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CONHECIMENTO ESCOLAR E PRODUÇÃO DA
DIFERENÇA: O “OUTRO” QUE SE FIXA NO
CURRÍCULO DE GEOGRAFIA
Carmen Teresa Gabriel
Ana Angelita Rocha
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
CONHECIMENTO ESCOLAR E PRODUÇÃO DA DIFERENÇA: O “OUTRO”
QUE SE FIXA NO CURRÍCULO DE GEOGRAFIA
Carmen Teresa Gabriel
Ana Angelita Rocha
RESUMO: A Geografia, na Escola, tem operado com mecanismos de fixação de
algumas versões sobre os processos de [des]colonização/uso do espaço. É precisamente
esta questão que pretendemos explorar, a partir das análises de alguns exercícios
propostos nos livros didáticos e das orientações de respostas apresentadas nos manuais
do professor de coleções avaliadas e classificadas pela edição de 2008 do Programa
Nacional do Livro Didático. Apoiadas na contribuição da teorização social do discurso
(LACLAU & MOUFFE, 1995) trabalhamos com a hipótese de que os conhecimentos
escolares são produzidos em meio a um sistema de diferença que pode ser apreendido
em dois planos estreitamente relacionados, mas que nem sempre operam da mesma
forma. No primeiro plano, o que está em jogo é a sua condição de conhecimento
“verdadeiro”, o segundo envolve, mais diretamente, a produção de narrativas
identitárias que este tipo de conhecimento contribui para fixar em sua condição de
vetores de múltiplos fluxos culturais. Neste artigo, compreendemos que tais práticas
espaciais , validadas como conhecimento escolar, são enunciados de práticas sociais de
fixação da alteridade que mobilizam diferentes recursos retóricos na luta hegemônica
travada neste campo da discursividade.
PALAVRAS-CHAVE: currículo, diferença, conhecimento escolar, espaço geográfico.
(...) a questão do outro está mal colocada na tradição ocidental, o outro é
sempre o outro do mesmo, o outro do próprio sujeito e não um outro
sujeito a ele irredutível e de dignidade equivalente. Isto significa que ainda
não existiu realmente o outro para o sujeito filosófico, e mais geralmente o
sujeito cultural e político, nesta tradição. (IRIGARAY, 2002)
Falar da produção do “outro”, da diferença, não é novidade no campo do
currículo. Diria mesmo que não apenas a discussão está posta como o significado do
“outro” tem sido objeto de disputa entre os representantes deste campo. Afinal , quem é
esse “outro” dos currículos escolares? Esse texto se insere nesse debate e, sem pretender
responder a essa pergunta, aceita a provocação que ela encerra. É assim, mais um texto
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6575
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
que pretende entender os mecanismos discursivos da produção da diferença nos
currículos e que para tal investe na potencialidade analítica de pensar o campo da
discursividade como terreno das lutas hegemônicas. Um texto que, apoiado na
concepção de discurso de Ernesto Laclau e Chatal Mouffe ( 2004) não nega a existência
do objeto fora do discurso, mas afirma que nada tem sentido a não ser no interior de um
discurso. (JARDIM PINTO,1999)
Um texto pois, que não fala de “culturas diferentes” para argumentar a favor de
identidades coletivas plurais do ponto de vista de raízes, de fundamentos, de origens
Um texto que não aposta em sentidos pré-definidos, em identidades puras, ou memórias
comuns “ancestrais”, a não ser como estratégia de luta onde se lança mão de
“essencialismos estratégicos” para usar uma expressão de Gayatri Spivak, ou se
inventam tradições como já argumentavam os historiadores Hobsbawn e Tanger nos
idos dos anos 80.
Um texto que embora aposte na diferença, na heterogeneidade, na proliferação
de sentidos, na provisoriedade, na instabilidade, no movimento, em fluxos culturais que
se hibridizam em permanência nas leituras de mundo em disputa, se distancia das
análises celebratórias de afirmação das diferenças.Um texto que desse modo aposta em
uma nova ordem política do cultural para pensar politicamente o campo do currículo
(MACEDO, 1996). Mais um, que busca alternativas teóricas para pensar e combater
reprodução das relações assimétricas de poder que ocorrem no plano da distribuição e
classificação dos conhecimentos científicos.
Mas um texto que ainda quer falar de escola, de cultura escolar, de
conhecimento a ser ensinado e aprendido. Um texto que quer continuar investindo no
sentido de “escola pública” como espaço de possibilidade de subversão e para tal se
propõe a explorar os mecanismos discursivos que dificultam essa possibilidade. Não
pelo prazer da denuncia, mas pelo entendimento que uma melhor compreensão da
lógica da dominação pode contribuir para a reinvenção da emancipação social. Um
texto que ainda acredita na crítica radical como importante instrumento de luta.
Conhecimento escolar, fluxos culturais, diferença,
Como as demais escritas, esta traz a marca da autoria, do lugar de onde se
enuncia. Marca comum, a autoria é, no entanto, o que também lhe diferencia dos outros,
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
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Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
pois só pode ser singular. Singularidade essa, expressa na forma de entrar no debate,
“carregando” sentidos disponíveis e projetando outros nos espaços discursivos onde a
temática da produção da diferença é pensada.
Entendendo currículo como “um espaço-tempo de fronteira entre saberes”
(Macedo, 2006:105), continuamos apostando na politização do campo por meio do
enfrentamento teórico em relação à questão do conhecimento. Interessa-nos neste texto
perceber como a lógica política que produz o outro, seja como “fonte de todo o mal”,
“como sujeitos plenos de uma marca cultural, ou ainda como “alguém a
tolerar”(DUSCHATZY e SKLIAR, 2001)) se faz presente ou se “deixa ver” também
por de dentro dos conhecimentos legitimados como verdadeiros e válidos a serem
ensinados e transmitidos às gerações futuras. Como “textos particulares”(HOWARTH,
2005), produzidos pois, em condições históricas específicas, os saberes escolares
reatualizam mecanismos por meio dos quais, o significado é produzido, fixado,
contestado e subvertido. (HOWARTH, 2005, p. 342) 1. Afinal, como afirma Veiga-Neto
(2000) os saberes escolares não estão soltos no mundo, e sim “mais ou menos ligados
por outros enunciados, numa série discursiva que institui um regime de verdade fora do
qual nada tem sentido.
A idéia aqui é a de analisarmos os processos de fixação de significado de alguns
conhecimentos geográficos que ocorrem em meio a um sistema de diferenças
lingüísticas. Isso significa explorarmos, no campo da epistemologia social escolar, a
seguinte afirmação: “algo é o que é somente por meio de suas relações diferenciais com
algo diferente” (LACLAU, 2005, p. 92). Saberes esses que, nessa perspectiva passam a
ser vistos como significantes cujos significados são provisoriamente fixados sempre de
forma incompleta, em movimento instável e ambivalente. Saberes–palavras, palavras
com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que
percebemos ou o que sentimos [ e que] são mais do que simplesmente
palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo
controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo
silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga
1
Embora não seja o foco desta nossa análise, importa salientar que essa afirmação não se pauta, todavia,
no entendimento de “verdade” e de “conhecimento” como equivalentes ou redutíveis a “poder”. Howarth
(2005) quando afirma que o conhecimento resultado de pesquisa está “sujeito aos limites habituais da
evidência confiável, objetividade e consistência interna, consoante com os regimes de verdade
prevalente” (Howarth, 2005, p.328), nos oferece elementos para pensar igualmente a dimensão objetiva
do conhecimento escolar que pela complexidade da tarefa não pode ser feita nos limites desse trabalho.
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6577
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (
LARROSA, 2002,p.21)
Saberes pois, atravessados por “fluxos culturais” (APAPDURAI, 2001
BHABHA, 2003) híbridos e em processo de fixação provisório e hibridização
permanente. Saberes que reatualizam e subvertem leituras de mundo onde o jogo de
interpretação na luta hegemônica acontece, com o intuito de dominar o campo da
discursividade.
Neste trabalho apostamos que as contribuições da teorização social do discurso
na perspectiva privilegiada na nossa análise, permitem potencializar a carga analítica da
noção de “colonialidade do saber” (QUIJANO, 1999) elaborada no âmbito dos Estudos
pós-coloniais
latino-americano.
Esta
noção
ao
denunciar
a
“violência
epistêmica”(SPIVAK, apud, CASTRO-GOMEZ, 2005) que está na emergência das
ciências sociais e é elemento constituinte do próprio projeto de modernidade, nos indica
pistas de fluxos culturais que qualificam as disputas que ocorrem em textos curriculares
nos quais são produzidos e recontextualizados os saberes escolares disciplinares, no
caso desse texto, os do campo da Geografia. Com efeito, na perspectiva dos estudos
pós-coloniais latino-americanos, a análise do projeto da modernidade deve incluir, como
elemento chave, para a sua compreensão o colonialismo europeu do além-mar,
responsável, nesse quadro teórico, pela dominação não apenas de bens materiais mas
também de bens simbólicos. E é nesse movimento que as ciências sociais emergem
para justificar e fundamentar a invenção do “outro” não-colonizador como “o outro” da
razão”, (re)configurando o espaço epistemológico onde são travadas as lutas pela
legitimidade e veracidade em torno do conhecimento produzido sobre o mundo.
A análise que nos propomos trabalha com a hipótese de que os conhecimentos
escolares são produzidos em meio a um sistema de diferença que pode ser apreendido
em dois planos estreitamente relacionados, mas que nem sempre operam da mesma
forma. No primeiro o que está em jogo é a sua condição de conhecimento “verdadeiro”,
condição essa cujo significado se fixa nos limites dos regimes de verdade prevalentes
nos domínios discursivos disciplinares aos quais estão relacionados. Isso significa dizer
que, esse “algo-saber–verdadeiro e legítimo”, considerado como conhecimento válido a
ser ensinado nas escolas, é fixado como tal em relação a “algo-saber não-verdadeiro e
não-legítimo”. É neste primeiro plano que a noção de “colonialidade do saber” permite
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6578
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
perceber como o significado de verdade, em particular no âmbito das ciências sociais,
está investido de marcas eurocêntricas. O segundo plano do sistema de diferenças no
qual são fixados os sentidos de “conhecimento escolar”, envolve, mais diretamente, a
produção de narrativas identitárias que este tipo de conhecimento contribui para fixar
em sua condição de vetores de múltiplos fluxos culturais. Neste trabalho enfatizamos
este segundo plano, procurando desenvolver nossa argumentação a partir da análise
textual2 de alguns saberes geográficos que circulam nos exercícios de livros didáticos
dessa disciplina..
Narrativas espaciais que qualificam o outro: alguns flagrantes nos exercícios de
Geografia
Vale salientar que a geografia, como bem alerta James Anderson (1978),
cumpriu um papel mais de divulgadora do que de geradora de algumas das
teorias conservadoras que se hegemonizaram a partir do século passado. Na
verdade, pouca coisa é própria dessa disciplina ou da tradição acumulada sob
esse antigo rótulo (Claval, 1974). (MORAES, 1991, P.166)
A citação acima nos dá algumas pistas sobre o que fazemos quando ensinamos
Geografia. Na condição de disciplina e de objeto de ensino, o discurso geográfico
muitas vezes contribui para hegemonizar narrativas sobre pertencimentos no espaço.
Cumprindo o papel de difusão 3, de “teorias conservadoras”, a Geografia, na Escola, tem
operado com mecanismos de fixação de algumas versões sobre as apropriações do
espaço. É precisamente esta questão que pretendemos explorar, a partir das análises de
alguns exercícios propostos nos livros didáticos e das orientações de respostas
apresentadas nos manuais do professor de coleções avaliadas e classificadas pela edição
de 2008 do Programa Nacional do Livro Didático. 4 Buscar pois, no terreno das
2
Na concepção de análise do discurso aqui privilegiada, a análise textual constitui um componente
interno de uma empresa maior, inviável nos limites de um texto desta natureza.
3
Embora nessa formulação o termo “difusão” permita pensar a relação entre conhecimento geográfico
acadêmico e conhecimento escolar em termos de subalternidade do segundo em relação ao primeiro, não
é essa a concepção aqui defendida. Defendemos, apoiadas nas contribuições da epistemologia social
escolar que os discursos geográficos – na condição de objeto de ensino - incorporam recontextualizações
das teorias conservadores, da mesma forma que as difundem por mecanismos especificamente escolares,
como os livros didáticos.
4
Na última edição do PNLD Geografia/2008, voltada para as séries finais do ensino fundamental,
podemos identificar (itens c04 e c05) perguntas formuladas intencionalmente com o objetivo de avaliar e
classificar os exercícios e as demais atividades propostas para os alunos, como, por exemplo:.
Possibilitam a articulação dos conteúdos adequadamente para se atingir os objetivos propostos nas
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6579
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
aprendizagens as marcas das disputas em torno do controle social do que deve ser
considerado legítimo a ser ensinado (GABRIEL, 2009) em um quadro de significância
onde o livro didático pode ser entendido como
(...) um texto curricular que reinterpreta sentidos e significados de
múltiplos contextos e que constitui uma produção cultural a se efetivar
nas diferentes leituras realizadas no espaço escolar. Tais textos
recontextualizam (Bernstein, 1996, 1998) orientações oficiais, mas
também discursos das escolas, da academia, do contexto internacional
e de produções pedagógicas que penetram no mercado editorial. Nessa
recontextualização esses discursos são hibridizados, visando
finalidades distintas. (LOPES, 2007, p. 214)
Textos curriculares, os exercícios legitimam a seleção de conhecimentos
considerados válidos sobre o que se define como Geografia escolar. Textos híbridos os
exercícios dos livros didáticos fazem circular, discursos pedagógicos e geográficos,
configuradores de sentidos de saberes a serem ensinados e aprendidos buscando fixar
(não por acaso os chamamos de exercícios de fixação!) entre outras, as narrativas
espaciais. É desenvolvendo estas atividades que o aluno se insere no jogo de
interpretações das experiências espaciais, sejam aquelas autorizadas pelos textos
pedagógicos (a fala do professor, do livro didático, do exercício), sejam ainda outras
não arbitradas pelo que conhecemos como ciência geográfica. Neste jogo de fixação de
regimes de verdade, as suas experiências são confrontadas com outros sentidos de
espaço, também tutelados pelos textos pedagógicos.
Essa compreensão dos exercícios e das respostas sugeridas pelo Manual do
Professor como textos curriculares híbridos é fortalecida nos enunciados do Guia de
analise do PNLD de 2008 relativos à avaliação das atividades propostas para o aluno
mencionadas anteriormente. Aliás, este é um dos critérios5 utilizados para classificar a
coleção didática. Neste artigo, consideramos esse critério para nos auxiliar no recorte
dos exercícios a serem aqui analisados. No Guia de análise das coleções didáticas,
unidades temáticas?(c04) ou.ainda em c05: Propiciam a problematização dos conteúdos estimulando a
capacidade de produzir textos e o desenvolvimento de habilidades diversificadas?”
(GUIA/PNLD/2008/p.105)
5
Na última edição do PNLD de Geografia voltada para as séries finais do ensino fundamental, realizada
no biênio2007/2008, foram adotados os seguintes critérios para fundamentar a avaliação: organização dos
conteúdos, desenvolvimento das atividades, manual do professor e projeto gráfico. (Guia de
análise/PNLD, 2008). Nesta edição, o Programa empregou o seguinte campo semântico para discriminar
a qualidade da coleção classificada didática: inovador, adequado e regular
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
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Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
focalizamos as avaliações de qualificação dos exercícios e dos manuais do professor,
para fundamentar a escolha das coleções didáticas aqui abordadas. Neste artigo,
selecionamos volumes do sétimo ano avaliadas no PNLD nos critérios de classificação
“desenvolvimento das atividades” e “Manual do Professor como “inovador” e/ou
“adequado”. Após uma leitura preliminar dos resultados da avaliação, chegamos a três
coleções: “Série Link do espaço”, “Geografia: construção do espaço geográfico” e
“Trilhas da Geografia”. 6
Nessas coleções, a escolha dos exercícios aqui explorados ocorreu em função da
opção de centrar nossa reflexão, nesse artigo, em torno da temática das narrativas
espaciais como mencionado anteriormente. Entendemos que o “espaço geográfico”,
além de ser um conceito muito caro para ciência geográfica, tem a sua importância
também reconhecida nos textos curriculares dessa área, de modo que diferentes
temáticas sujeitas à “gramática” didática são desenvolvidas a partir da análise, da
comparação das práticas espaciais e, logo, da qualificação de diferentes formas de
produzir e de se apropriar do espaço.
Isto posto escolhemos um grande tema – ‘a composição populacional brasileira’ –
como recorte para seleção dos exercícios. A própria idéia de população mereceria
maiores esclarecimentos, mas considerando os limites deste artigo, tomamos de
empréstimo as palavras de Moraes (1991) para discorrer, ainda que brevemente, sobre
as implicações políticas desta idéia.
Cabe recordar com Michel Foucault que o exercício do poder nos Estados
territoriais implicou uma espacialização da política, onde emerge o conceito
de população - objeto primeiro da dominação estatal - qualificado como os
habitantes de uma dada porção de espaço (Foucault, 1979). Pode-se dizer
que os geógrafos “pedagogizam” a ótica da identidade pela localização
espacial, vulgarizando a perspectiva utilizada pela reflexão intra-estatal.
(Idem, grifo nosso)
A concepção de população como unidade de pertencimento, que fixa os sujeitos
a uma porção do espaço, tem sido muito valiosa para o discurso geográfico
6
Segundo a última avaliação do PNLD, os manuais do professor tanto da Coleção Trilha da Geografia
quanto da Série Link do Espaço obtiveram a qualidade de “inovador”. Já o da Coleção Geografia:
construção do conhecimento geográfico” foi classificado como “adequado”. Das coleções abordadas
neste artigo, somente a Coleção Série Link do Espaço teve o grau máximo de “inovador” para o critério
do desenvolvimento das atividades (exercícios). Enquanto, para o mesmo critério, as demais coleções
aqui citadas foram avaliadas como “adequadas”.
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6581
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
hegemonizante, como nos mostra Moraes (id.). Na mesma citação, o autor anuncia a
eficiência do conceito de população para oferecer interpretações sobre a identidade, a
partir da perspectiva espacial. Isso significa dizer que sentidos identitários, neste caso,
de pertencimentos no espaço, são enunciados e organizados por narrativas espaciais. E a
Geografia como disciplina escolar tem sido prodigiosa nesta tarefa.
Entendemos que na temática em foco estão em disputa narrativas que justificam
a apropriação do espaço, que tutelam formas de usar o espaço. Ao explorarmos os
exercícios, portanto, operamos com uma das possíveis concepções do espaço geográfico
já explorada por Santos (1997, 2005).
Ao nosso ver , a questão a colocar é a da própria natureza do espaço formado,
de um lado, pelo resultado material acumulado das ações humanas através do
tempo e, de outro lado, animado pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um
dinamismo e funcionalidade. (SANTOS, 1997, p. 85)
Desse modo, entendemos igualmente que na superfície textual dos exercícios e das
respostas dadas no texto “Manual do Professor”, emergem processos de identificação e
de diferenciação que se materializam nos discursos produzidos sobre índio, migrante,
caboclo, europeu. Essas expressões aparecem em nossa análise não como significantes
aos quais correspondem sentidos unívocos, mas como materializações discursivas
provisórias e contingentes de diferentes fluxos de sentidos hibridizados que, nos textos
curriculares em questão, conformam-se em enunciados configuradores de grades de
inteligibilidade que disputam leituras hegemônicas de mundo
Os estudos enunciativos, a despeito de suas filiações teóricas, têm sublinhado a
potencialidade analítica sobre “o emprego das palavras” como marcadores da
distribuição do poder. Como aponta Fairclough (2001):
(...) e o sucesso em obter aceitação para significados particulares de palavras, e
para uma estruturação particular do seu significado potencial, é sem dúvida
interpretável como uma forma de adquirir hegemonia. (Op.cit.p.235-6, grifo
nosso)
Ou ainda como nos faz pensar Larossa (2002), ao afirmar :
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,creio que fazemos
coisas com as palavras e, também,que as palavras fazem coisas conosco.
As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com
pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6582
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não
é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido
ensinado algumas vezes, mas é sobretudo, dar sentido ao que somos e ao
que nos acontece.(Larossa, 2002, p.21)
Essas abordagens nos parecem interessantes para operar metodologicamente
com os processos de validar interpretações sobre a apropriação do espaço, aqui
chamadas provisoriamente de narrativas espaciais Assim, as práticas discursivas que
significam os deslocamentos espaciais, por exemplo, podem ser percebidas como atos
de produção e de distribuição de discursos geográficos. O aspecto reiterativo dos
vocábulos europeu, índio, migrante nesses textos (exercícios e respostas do MP) pode
ser entendido como um movimento híbrido que reatualiza discursos sobre fenômenos do
espacial, como
a [des]colonização,
aqui compreendida como narrativas da
territorialização.
Dentre as ações humanas que dinamizam o espaço destacamos a significação das
ações no espaço, que interferem na distribuição de poder pelo e no espaço (MASSEY,
2008). Para ilustrar esse jogo de interpretações sobre e pelo espaço, compreendido no
âmbito de uma ação pedagógica, escolhemos três exercícios, localizados em diferentes
unidades de conteúdo dos livros didáticos selecionados. Em comum, os exercícios
operam com os termos acima destacados - “europeu”, “índio”, “migrante” – que, como
defendemos, qualificam posições políticas destas práticas espaciais.
Percebidos como enunciados de práticas sociais de mobilidade e de acesso ao
espaço, esses exercícios põem em jogo a interpretação de tais práticas, como, por
exemplo, dos deslocamentos espaciais evidenciando as lutas hegemônicas que se travam
nesse campo da discursividade. Desse modo, a busca do “singular”, como estratégica da
produção da diferença própria do processo de Globalização, que se manifesta segundo
Milton Santos (2005) em meio a dialética entre a razão global e a razão local se faz
presente nestes textos curriculares analisados.
No exercício (anexado no final deste artigo), estão destacadas, em primeiro plano,
imagens cuja composição anuncia a “diversidade” étnica, reforçando um discurso
associado a uma concepção de população brasileira, fortemente veiculada no
pensamento social no século XX.7
7
Para um maior aprofundamento sobre essa questão ver Póvoa , 2006.
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6583
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
As imagens, convertidas em textos pedagógicos, autorizam sentidos de
pertencimento no espaço. Nas narrativas espaciais, validadas pelo exercício, houve
seleção de práticas espaciais associadas aos processos de identificação e diferenciação.
A composição do exercício aqui citado, como narrativa espacial, sustenta a localização e
a apropriação do espaço de forma a simultaneamente anunciar a “diversidade” e reforçar
pertencimentos identitários que operam com reducionismos das experiências espaciais
vividas pelos grupos sociais eleitos pela proposta do exercício.
Com efeito, a intencionalidade de fixação de uma marca identitária por meio da
localização espacial se faz presente por meio da utilização de determinados recursos
retóricos na elaboração do exercício. Nesse artigo, destacamos o uso da generalização
por meio da qual são mobilizados sentidos relativos a pertencimentos identitários de
cunho homogeneizante e essencialista. Desse modo, o mesmo movimento que - ao
congelar nos significantes “negros africanos”, “cultura dos imigrantes alemães”, “índia
da tribo Tucano” ou “descendentes de japoneses” alguns fluxos culturais - faz operar a
“lógica de equivalência”, apagando as heterogeneidades, posiciona esses mesmos
significantes, por meio da “lógica da diferença” (“não–negro”; não-índio”; “não
imigrante”), nas relações assimétricas de poder - ao definirem essas “singularidades”em
meio as lutas pelos processos de significação de “espaço” e de sua apropriação.
Aliás, essas duas lógicas se manifestam igualmente na própria significação de
“espaço”. Podemos observar no exercício aqui analisado, que o sentido de espaço tende
a ser fixado pela reatualização do discurso da “singularidade” a partir da qualidade do
exótico. Esta reflexão pode ser ilustrada pelo fato de a única imagem que autoriza a
definição de espaço por meio da sua relação com as práticas sociais de produção é a da
“índia” produzindo seu alimento. As demais imagens fixam sentidos de espaço por meio
do apelo aos “costumes”; “tradições” “modos de vida” que permitem visualizar
“espacialmente as contribuições dos vários povos na constituição de nossa nação”.
O lúdico da capoeira, homogeneizando as sociabilidades do negro e da África conforme o enunciado da legenda - é retratado por iluminação que enaltece o
movimento em detrimento das feições dos sujeitos. As faces dos sujeitos, por sua vez,
são iluminadas no protagonismo de mulheres sem movimento, transvestidas da fantasia
“imigrante”, insinuando o sucesso do deslocamento espacial. Outro discurso exitoso de
pertencimento no espaço. A composição das imagens do espacial convertida em texto
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6584
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
pedagógico é finalizada com uma imagem da forma do espaço, também produto da
fantasia “imigrante”, enunciada pela arquitetura “oriental”.
A oferta limitada de pertencimentos espaciais/identidades serve assim, como
subsídio para o aluno significar a diversidade de relações étnico-espaciais. O intento
afirmado no exercício é reiterado nas orientações propostas pelo Manual para o
professor. Nelas, o Manual define as ações do aluno para qualificar “a diversidade”
sócioespacial, fazendo-o entrar no processo de significação das experiências espaciais

“Reconheça que a realidade social é diversificada (múltipla,
contraditória e descontínua)

Reconheça a si mesmo e os outros como agentes de construção e
transformação do espaço em suas várias escalas (local, regional,
nacional e mundial)” (Manual do Professor, do
7º. Ano
da
coleção Série Link do espaço, p. 24)
Este tipo de ação pedagógica ilustra o caráter do político presente na seleção de
narrativas espaciais e, logo, presente na seleção de conteúdos a ensinar. A questão da
seleção, por sua vez, é determinante para discutirmos o processo de validar o
conhecimento escolar. Podemos explorar esta questão no exemplor abaixo.
“Os indígenas e os europeus tinham modos muito diferentes
de se relacionar com a natureza. Explique a diferença entre estes
pontos de vistas.
Resposta no Manual do Professor
“Os indígenas enxergavam-se como parte da natureza, e esta
era vista como fonte de vida. Os colonizadores viam a natureza
apenas como fonte de lucro imediato – incluídos os indígenas,
de quem exploravam a mão-de-obra inicialmente na forma de
escambo e depois, como trabalhadores escravos. (A construção
do espaço geográfico brasileiro, sétimo ano, p28)
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6585
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
Novamente, a nominalização de grupos sociais fixa sentidos de prática espacial
e vice-versa. O espacial configura e é configurado pelas marcas identitárias. O
enunciado do exercício investe na fixação dicotômica de formas de apropriação do
espaço: ‘o indígena e o europeu’. Esta escolha de narrativas espaciais homogeneíza
pertencimentos no espaço/identidades, fortalecendo a compreensão essencialista de
unidade ‘singular’ indígena/europeu. Do mesmo modo, portanto, que homogeneíza
interpretações sobre a relação sociedade/natureza, recuperando, por exemplo, o discurso
oitocentista do índio romântico. Enunciados ligados à associação da conquista e do uso
do espaço também estão presentes no próximo exemplo, que assim como os anteriores
propõe a fixação da identidade pelo viés da localização espacial.
Até a década de 1960, a população da Amazônia era
predominantemente formada por caboclos e indígenas
(isolados ou aculturados). Houve uma tentativa de ocupação
da região a partir da década de 1970. Com base nessa leitura,
escreva um pequeno texto guiando-se pelas perguntas a
seguir:
1. Qual é a origem dos novos moradores da região?
2. Por que eles migraram para lá?
3. Que problemas enfrentaram?
Respostas no Manual do Professor:
1. “Nas últimas décadas se deslocaram famílias do Brasil inteiro para a
Amazônia, mas o maior contingente saiu das regiões do Nordeste e Sul.
2. Embora o garimpo e o extrativismo tenham atraído muitos migrantes, a
maioria foi para a região em busca de terras para cultivar.
3. Logo, descobriram que o solo era predominantemente pobre e que a infraestrutura de transportes, energia educação, saúde etc) era precária.” (Manual
do Professor, sétimo ano, Trilhas da Geografia, p.12)
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6586
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
Neste último exercício selecionado, o enunciado da atividade reatualiza os
discursos do “isolamento” e “aculturamento” para qualificar os grupos que viviam nos
espaços, que nomeamos como região norte, antes da expansão das fronteiras agrícolas
dos anos 60. Nestes termos, é flagrante o silêncio acerca da complexidade das
organizações societárias ali presentes, favorecendo, logo, as narrativas espaciais mais
hegemônicas empreendidas pela idéias de progresso e de atraso presentes
principalmente no vocábulo do “isolado” para caracterizar experiências espaciais.
Mais uma vez temos como foco o emprego do vocabulário que nos dá pistas
sobre os mecanismos essencialistas acionados para fixar nominalizações das marcas
identitárias no espaço.
Mas afinal... Que “outro” é esse nos currículos de geografia?
Nesta breve análise procuramos evidenciar por meio de alguns exemplos extraídos
de livros didáticos de Geografia alguns mecanismos discursivos das lutas hegemônicas
que se travam em torno da fixação de sentidos de “espaço” e de “identidades”. Apoiadas
nas reflexões desenvolvidas no âmbito da teorização social do discurso, procuramos
apresentar algumas reflexões, ainda que provisórias, a respeito da fixação da alteridade
nos currículos escolares em ações pedagógicas corriqueiras nas aulas de Geografia na
educação básica. Com efeito, os nomes dados aos grupos sociais “presos” a uma porção
do espaço tem sido uma tarefa da ciência geográfica (Moraes, 1991) assim como da
Geografia escolar.
Embora preliminares, nossas reflexões apontam no sentido de confirmar o
pressuposto com o qual estamos trabalhando que consiste em reconhecer que a fixação
do “outro” nesses textos curriculares, sejam eles “inovadores” ou “adequados”
continuam reforçando a tradição ocidental de que nos fala Irygaray (2002) pela qual o
“outro” é “sempre o outro do mesmo”, “o outro do próprio sujeito”, neste caso o “nãobranco- civilizado-urbanizado”. Um “outro” que não potencializa a escola como espaço
da “irrupção da diferença” e não apenas como espaço de “aceitação do diferente”. Nessa
perspectiva o retorno às singularidades (Haesbaert, 1999), que ocorre em meio as
disputas por poder de significação das narrativas espaciais fixando determinados fluxos
culturais em detrimento de outros seria menos um aprendizado da “manifestação da
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6587
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
diversidade territorial” do que uma estratégia de posicionamento político no jogo das
interpretações disponíveis nos contextos escolares.
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Anexo
Exercício da coleção Série Link do espaço, sétimo ano.
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6590
Conhecimento Escolar e Produção da Diferença: o “outro” que se fixa no currículo de geografia
Carmen Teresa Gabriel & Ana Angelita Rocha
6591
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CURRÍCULO PROPOSTO E CURRÍCULO NA
AÇÃO: COMO DIÁLOGO OU SUBORDINAÇÃO
DA CULTURA?
Cecília de Fátima Boaventura de Macêdo
Raimundo S. Leal
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
CURRÍCULO PROPOSTO E CURRÍCULO NA AÇÃO: COMO DIÁLOGO OU
SUBORDINAÇÃO DA CULTURA?
Cecília de Fátima Boaventura de Macêdo1
Raimundo S. Leal2
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o currículo enquanto
documento estabelecido pelos órgãos educacionais e a influência da cultura,
considerando a maneira que este (currículo) oportuniza a sua (cultura) ressignificação a
apreensão de elementos e características culturais locais onde está inserida a Escola
enquanto espaço social receptiva a diversidade. Buscando perceber como se dá essa
relação currículo e cultura e considerando esta última como prática social dos seres
humanos, foi utilizada a abordagem qualitativa como método investigativo, tendo como
espaço de análise uma escola pública de primeiro grau sediada em uma cidade de porte
médio. A análise dos dados permitiu chegar à conclusão de que a liberdade dada às
escolas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação para trabalhar na parte diversificada
conteúdos locais, faz com que esta desconsidere no seu currículo a cultura local e dê
prioridade a outras disciplinas tidas como de maior relevância para os alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Cultura; Escola.
Introdução
A aprendizagem escolar está diretamente vinculada ao currículo, organizado de
maneira a orientar as atividades educativas. O currículo representa a síntese dos
conhecimentos e valores que caracterizam um processo social expresso no trabalho
pedagógico, como um percurso a ser seguido. (GOODSON, 1996).
Diversos autores, principalmente os ligados à teoria crítica do currículo
(KEMIS, 1996; SCHWAB, 1983; STENHOUSE, 1991), discutem as influências e inter1
Mestranda em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social (CEPPEV – CAIRU). Professora
de Língua Portuguesa da rede pública estadual; e-mail: [email protected].
2
Doutor em Administração pela Escola de Administração da UFBA; professor titular do curso de
Mestrado Profissional em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social (CEPPEV – CAIRU);
professor da Escola de Administração da UFBA; e-mail: [email protected]
Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea
6595
Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
relações do currículo com o poder político e econômico e seus componentes
ideológicos, permitindo analisar sua seletividade, seu significado e práticas.
Nesta mesma linha a seleção cultural sofre determinações políticas, econômicas
e culturais, configurando-se em resultado de lutas, conflitos e negociações. A sua
concepção envolve os fundamentos filosóficos, sociais e políticos da educação até à sua
concretização na sala de aula. O currículo em ação na escola traz consigo a marca
específica que os professores lhes dão, como concretização de propostas e concepções
educacionais que fazem parte de suas formações.
No presente artigo questionamos se o currículo que orienta as práticas da escola
tem contribuído para que seus atores manifestem as diversas culturas que fazem parte
do seu contexto, pois neste podemos vislumbrar a compreensão das relações entre a
cultura e os significados transpostos nesse espaço.
Percebemos esta ocorrência no espaço escolar investigado e perguntamos: qual
a relevância da cultura no aporte curricular que orienta a escola?
A partir de uma abordagem qualitativa, com uma pesquisa no ambiente em que
essas manifestações acontecem, aplicamos um questionário aos professores com o
intuito de discutir aqui e analisar em suas respostas como se dá esse trajeto de suas
concepções até a prática na sala de aula.
O artigo está estruturado em quatro partes. Na primeira parte abordamos as
concepções de currículo e como alguns teóricos o concebem; em seguida enfocamos a
cultura e a escola, demonstrando as suas relações e tensões; mais adiante evidenciamos
o currículo e cultura, ressaltando a postura do professor diante desse panorama; por
fim apresentamos o recorte metodológico utilizado na pesquisa e a descrição dos dados
coletados com suas referidas análises e conclusão.
Concepções de Currículo
Segundo Sacristán (1973) currículo é um conjunto de responsabilidades da
escola para promover uma série de experiências que a escola utiliza com a finalidade de
alcançar determinados objetivos, enquanto que Silva (2005) tem o entendimento que o
currículo expressa um percurso, trajetória, caminho, lugar, espaço e território.
Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea
6596
Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
Para Coll (1997) diz que o currículo é um elo entre a declaração de princípios
gerais e sua tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática pedagógica,
entre o planejamento e a ação.
Já Pedra (1997, p.73) expressa de modo peculiar, articulando elementos
presentes nos autores acima apontados, conceituando currículo como:
toda representação tem seu objeto e, ainda, não se pode responder cabalmente
a que termo currículo efetivamente se refere. Não é possível “objeto”
currículo que é o representado, ele apenas dá título a uma determinada
proposta educacional, que, por sua vez, deriva de um conjunto de
representações sobre o ser humano, como ser educacional.
Ora, o currículo é uma representação da cultura no dia-a-dia da escola, nas ações
que surgem da prática educativa, trazendo o conhecimento escolar de
maneira a
propiciá-los, através da mediação didática do professor num componente que possa
ampliar e transformar os sujeitos capazes de mudarem seus contextos, através da
ampliação de seu universo cultural.
Diante de diversas posições referentes a currículo, abordaremos o seu
significado, os seus reflexos, num sistema de educação pública, como uma proposta que
está incorporada de uma perspectiva da complexidade e das transformações aceleradas
que vivemos, com o intuito de contextualizar e situar as manifestações culturais de seus
atores, e de que maneira está refletida no fazer pedagógico dos professores.
Não intencionamos chegar a um consenso sobre tal conceito, pois que,
conceituar ou definir, já o faz estabelecido, negando sua própria perspectiva dinâmica e
diversificada em que o mesmo está imbuído.
O currículo escolar supõe a concretização dos fins sociais e culturais, de
socialização, que se atribui à educação escolarizada. (SACRISTÁN, 1973) Com isso,
este vem a ser a representação da cultura no cotidiano da escola, abrigando as
concepções de vida social e as relações estabelecidas entre a educação - consecução
cultural de bens a serviço de uma comunidade – e os atores que dela fazem parte.
Conforme Forquin (1993, p.28)
Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea
6597
Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
... a transmissão cultural da educação é essencialmente um patrimônio de
conhecimentos e competências, de instituição de valores e de símbolos,
constituído ao longo de gerações e característico de uma comunidade humana
particular, definida de modo mais ou menos amplo e mais ou menos exclusivo.
A escola traz consigo uma carga de significação muito forte quanto à
transmissão cultural para o ser humano, porque é esta instituição que ao longo do tempo
tem legitimizado como válido para a sociedade o conteúdo do processo pedagógico,
mesmo que observemos que a cultura escolar seja pouco permeável ao contexto em que
ela está inserida, podemos perceber que isto ainda perdura.
Moreira e Candau (2008, p. 32) sugerem “que se procure, no currículo,
reescrever o conhecimento escolar usual, tendo-se em mente as diferentes raízes étnicas
e os diferentes pontos de vista envolvidos em sua produção”.
Não podemos deixar de destacar que a palavra currículo também tem sido
utilizada para indicar atitudes e valores nas relações sociais - é o currículo oculto - que
são transmitidos subliminarmente no cotidiano da escola e concorrem para fortalecer, ou
contribuir para a opressão em relação ao gênero, sexo, raça ou classe social.
A Cultura e a Escola
Quando o aluno chega à escola, ele não chega “vazio”, ele traz consigo uma
carga de conhecimentos e representações, construídas com os elementos oferecidos pelo
meio social no qual ele vive. No entanto, no processo de construção do conhecimento
escolar, - o currículo demonstra-se como uma opção política e historicamente
configurada - esse conhecimento que deverá ser somado a outros, mostra-se neutro, com
uma visão monocultural dos diversos grupos que fazem parte da sociedade, inclusive os
excluídos do processo social, pois conforme Santos (2005, p.27) a exclusão “é um
mecanismo que retira as pessoas do eixo social central, assim, podemos entender a
exclusão como sendo a ausência dos componentes essenciais à cidadania”.
Quando na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB nº 9394/96,
esta, que funciona como orientação legal para a construção das diretrizes curriculares
nacionais, confere a liberdade de organização aos sistemas de ensino no currículo,
quanto à parte diversificada, devendo às escolas darem ênfase às suas características
regionais e culturais. As escolas desconsideram o seu público, sabendo que o mesmo é
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
composto de uma diversidade de culturas e desmerece destes seus conhecimentos
culturais.
Segundo Arroyo (2006, p.56) a divisão do núcleo comum com a parte
diversificada presente na lei 5692/71 trouxe uma visão reducionista e fragmentada do
conhecimento escolar e o currículo, onde as características locais e regionais, a cultura,
as artes e a sexualidade não são integrantes do eixo central.
Desta forma a Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB ao dar liberdade às
escolas para explorarem a parte diversificada, faz com as mesmas explorem os aspectos
e conteúdos que lhes são mais apropriados ou convenientes.
Vivemos no contexto da diversidade cultural. São as características regionais e
locais, que formam os atores desse espaço escolar e lhe dão identidade. Quando a escola
é indiferente a isso na sua composição curricular, está agindo como se a diversidade
cultural não dialogasse com os seus atores, suas vivências e suas práticas, desviando-se
assim do eixo central da parte diversificada do currículo. Mais do que uma
multiplicidade ou pluralidade de culturas, cabe a escola assumir no seu currículo que
essas variedades são marcadas por singularidades que são construídas nos processos
históricos porque passam os seres humanos.
Desta forma, o currículo deve ter uma nova organização frente à diversidade de
saberes e culturas que estão representados nesse espaço escolar pelos atores sociais que
o compõem, como grupo que não deve deixar suas formas de vida e cultura serem
desvalorizadas e proscritas. Neste caso percebemos que estes não encontram no mesmo
um lugar definido, e que tem na escola pública um lócus privilegiado de atuação, como
sistema democrático e inclusivo, aberto às diversas culturas.
Currículo e Cultura
Por que a questão do currículo está relacionada com a cultura? Porque o
currículo também é a identidade da escola, e como tal este impõe sua cultura, sua
concepção social, suas práticas e significados – na qual foi concebido – subordinando a
cultura dos atores no espaço escolar.
São nas práticas de sala de aula, nas interações e mediações didáticas entre
professor e aluno, entre aluno e aluno, nas trocas de conhecimento e aprendizagens, que
irão contribuir para a formação e cristalização de determinados significados que são
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
construídos por variados grupos sociais, e também onde os mesmos serão formados,
rejeitados ou compartilhados pelos sujeitos que fazem parte desse espaço. Por isso, o
currículo contribui na construção de identidades, quando os atores do processo
educacional vêm seus conhecimentos e suas culturas ali representadas. Desta forma, o
professor, como intelectual transformador, conforme Giroux (1998, p.33), deve
neutralizar as influências que concorrem para demonstrar certas discriminações ou
preconceitos diante das situações e atitudes que surgem na classe, orientando seus
alunos para um posicionamento de respeito.
Esse estudo tem o objetivo de desvelar quais fatores interferem desde o currículo
prescrito até o currículo realizado, onde queremos compreender nesse percurso, como o
professor “molda” ou representa esse currículo na sua prática e suas relações com a
cultura.
Ao discutir as relações possíveis do professor frente ao desenvolvimento de um
currículo estabelecido, pode-se localizar uma interação linear que irá considerá-lo desde
o papel passivo de mero executor até o de um profissional que ousa, subverte e tem uma
posição crítica frente às diversas situações educativas.
Conforme Moreira e Silva (1994, p57)
O currículo é um território em que se travam ferozes competições em torno
dos significados. O currículo não é um veículo que transporta algo a ser
transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que, ativamente, em meio a
tensões, se produz e se reproduz a cultura.
Embora o currículo tenha em seu teor a cultura hegemônica, devemos
reconhecer que a questão cultural, hoje faz parte de nossa vida social, pois é inegável a
pluralidade cultural no mundo em que vivemos, e a escola deverá agora, mais do que
nunca fomentar em seu cotidiano discussões sobre o currículo, suas práticas
pedagógicas e o conhecimento escolar com o intuito de preparar-se para socializar aos
estudantes como maneira de favorecer aos mesmos outros saberes.
Este estudo entremeia-se pela abordagem sociológica, onde perpassam os
processos sociais da educação, em que a escola, por ser em sua natureza uma instituição
política, encorajam e promovem visões particulares de cultura. As práticas pedagógicas
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
que a escola adota, estão, de certa forma ligadas à estrutura social à qual esta instituição
pertence, como os seus valores, as idéias e o legado cultural que cada geração produziu.
Esta abordagem reveste-se também de um caráter antropológico como seres
pertencentes à linhagem hominídeo conforme Maturana (1997), na nossa maneira de
viver como seres sociais na linguagem, e também em consonância com Geertz (1989) o
comportamento humano é visto como uma ação simbólica, sendo que, através da
linguagem poderemos compreender as ações práticas na vida cotidiana, nas interações
entre os atores sociais.
Para Giroux (1998, p. 46-47)
Considero a cultura como uma forma de produção, cujos processos estão
intimamente ligados à estruturação de diferentes formações sociais. [...] A
cultura não é simplesmente um depósito de conhecimentos, formas, práticas
sociais e valores que são acumulados, armazenados e transmitidos aos
estudantes. [...] a cultura deve ser compreendida como uma forma de produção,
por meio da qual os seres humanos tentam mediar a vida diária pelo uso da
linguagem e de outros recursos materiais.
Cremos que pensar a educação a serviço de uma sociedade democrática é
assumir a pluralidade cultural que vivemos, dando o direito aos educadores e educandos
de se apropriarem de suas práticas e valores culturais, como processo central na
apreensão do conhecimento
Para Geertz (1989) o homem não pode ser definido por suas habilidades inatas,
como o fazia o iluminismo, nem por seu comportamento real, como o fez grande parte
da ciência social, o que nos tornamos tem um viés pela cultura como um dos elementos
na determinação do tornar-se e do devir, assim também como de que forma os
mecanismos simbólicos desta cultura modelaram-nos como uma espécie única, como
um “ser humano é ser uma espécie particular de homem”.
O que temos é que o homem se transforma, se modifica, independente de lugar,
costumes ou tempo, e ele foi “tornando-se”, pela capacidade de transmissão de suas
crenças, valores, práticas, conhecimentos e costumes através da linguagem, é então a
partir daí que temos os avanços desses hominídeos em homo sapiens pela acumulação
cultural, como tecido orientador da sua evolução.
Para Geertz (1989, p. 5)
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
... o símbolo representa uma intermediação no contato do homem com o
mundo, sendo que a cultura torna-se um conjunto de símbolos elaborados pelo
homem na construção de sua existência, como as práticas, as teorias, as
instituições, os valores materiais e espirituais, etc.
A cultura vem demonstrar-se dessa forma uma identidade entre os grupos que
compartilham seu universo de significados como visão de mundo, maneiras de interagir,
modos de legitimar e negar seus conceitos.
Recorte Metodológico
Na fase inicial de pesquisa fizemos uma pesquisa documental no Projeto Político
Pedagógico da escola de onde buscamos perceber se neste, como instrumento que dá
identidade à escola, se há o posicionamento quanto às questões culturais que a escola
deve enfocar.
Temos lá como missão da escola:
... a de formar cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e
compreender os novos processos da sociedade moderna, dando-lhes um
ensino de qualidade, relacionando com seu cotidiano, priorizando uma ação
democrática e de respeito mútuo através de atividades associadas às
dimensões: sociais, artísticas e culturais da clientela. (BAHIA, 2005, p. 16)
Ainda neste mesmo documento temos como um dos objetivos conceituais
“relacionar os conteúdos estudados aos diversos contextos, principalmente aos do
cotidiano do aluno”. (BAHIA, 2005, p. 18)
Os conteúdos curriculares das disciplinas são elencados pelos professores no
início do ano letivo na Jornada Pedagógica da escola, e posteriormente entregue ao
articulador da área de conhecimento. Neste momento percebemos que em maioria os
professores “copiam” dos livros didáticos seus conteúdos da série correspondente, sem a
devida preocupação de analisá-los criticamente.
Na matriz curricular da escola da 5ª à 8ª série do ensino fundamental e do 1º ao
3º ano do ensino médio, onde tem as áreas de conhecimento a serem trabalhadas vem a
seguinte observação: “O currículo deve ser composto de uma Base Nacional e da Parte
Diversificadas, ambas integrando e articulando os Aspectos da Vida Cidadã, que é
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
descrita da seguinte forma: Saúde, Sexualidade, Vida familiar e Social, Meio Ambiente,
Trabalho, Ciências e Tecnologia, Cultura e Linguagens”.
Quanto à parte diversificada do ensino fundamental na escola temos as seguintes
disciplinas: Educação Artística, Educação Religiosa, Língua Estrangeira – Inglês,
Educação Física, Introdução à Informática, Computação Gráfica e Geometria. Mudouse Introdução à Informática e Computação Gráfica por aulas de Redação, por questões
financeiras – falta de verba para manutenção dos computadores do laboratório de
informática; assim como também pela necessidade das aulas Redação levar a um
aprimoramento da escrita dos alunos.
No ensino médio temos a Base Nacional Comum: Língua Portuguesa e
Literatura Brasileira e Artes; Matemática, Física, Química e Biologia; História,
Geografia, Filosofia e Sociologia. A parte diversificada compreende Língua Inglesa e
Redação.
O caráter metodológico desse estudo constrói-se na confluência de várias
contribuições, com o intuito de aproveitar as suas características que podem identificar
através das falas e dos textos dos professores, a externalização de uma cultura que a
escola demanda e como uma variável que demonstra a sua organização.
A pesquisa é de cunho predominantemente qualitativa conforme Godoy (1995)
pela mesma ter o ambiente natural como fonte direta de dados, e por permitir perceber o
significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do investigador.
No contato com os professores utilizamos a observação participante - neste caso
pelo observador pertencer ao grupo investigado (LAKATOS (2009) Nosso instrumento
de pesquisa foi o questionário semi-estruturado, e entrevistas informais não transcritas
na pré-análise.
Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos pelo critério de acessibilidade. A
amostra não probabilística envolveu 61% dos professores da escola (matutino,
vespertino e noturno), dois coordenadores; os professores compreendendo as diversas
áreas de conhecimento como: Matemática, Biologia, Geografia, História, Inglês,
Português, Pedagogia e Educação Física.
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
Apresentação e Análise dos Dados
Utilizamos a análise de conteúdo na elaboração de indicadores que
fundamentam a interpretação final, conforme Bardin (2006), com uma leitura flutuante,
categorização para análise temática, que posteriormente são transformados em gráficos,
permitindo uma descrição das características pertinentes ao conteúdo.
Nosso aporte teórico de análise das respostas foi a Teoria das Representações
Sociais que, segundo Moscovici ( 2007, p.216) as representações sociais são sempre
inscritas dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”, “sempre
dependentes, de sistemas de crenças ancorada em valores tradições e imagens do mundo
e da existência”.
A escola possui 74 professores e, pelo método de amostragem por acessibilidade
ou conveniência, que, segundo Gil (1999, pg. 109) é destituída de rigor estatístico, onde
o pesquisador seleciona os elementos a que tem acesso, admitindo que estes possam, de
alguma forma, representar o universo, então foram distribuídos questionários a 45 deles.
Quando indagados sobre os documentos oficiais que regem as propostas
curriculares da escola são usados como base para a proposta pedagógica da escola, 60%
respondeu que sim e um percentual significativo 36% respondeu que não tem
conhecimento e 4% respondeu que não.
Questão nº 2 perguntados de onde resulta a cultura que a escola promove aos
alunos obteve-se um grande percentual 58% dos respondentes disseram que resulta de
grupos que compõem a própria realidade, 38% de variados grupos e 4% da classe
dominante.
Questão nº 3 perguntados se há uma consistência e/ou permanência das políticas
educacionais implementadas pelo MEC/ SEC – BA na escola que trabalha, os resultados
foram os seguintes: 82% responderam que crê que sim, 11% dizem que acha que sim, e
7% diz que desconhece.
Questão nº 4 como os professores encaram as manifestações culturais de seus
alunos, 60% diz que respeitam, 38% diz que é pertinente ao convívio e 2% não percebe
as manifestações culturais dos alunos.
Questão nº 5 quanto aos valores da escola se todos percebem e primam por isso,
obteve-se as seguintes respostas: 78% nem todos percebem 18% disse que sim e 7% diz
que não percebe. Com isso, constatamos que os valores culturais que a escola tem como
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
prioritários não são respeitados pelos professores. Daí instiga-nos saber se em relação
aos valores dos alunos, será que os professores realmente respeitam. Em outro momento
voltaremos a analisar essa questão.
Resgatando o Projeto Político Pedagógico da escola onde na sua missão diz
“formar cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e compreender os
novos processos da sociedade moderna, dando-lhes um ensino de qualidade,
relacionando com seu cotidiano”, donde não conseguimos perceber nas respostas dadas
pelos professores e na proposta curricular, como é que isso acontece. Também
retomando o Projeto Político Pedagógico que tem como um dos objetivos conceituais
“relacionar os conteúdos estudados aos diversos contextos, principalmente aos do
cotidiano do aluno”. Analisando às respostas dadas pelos professores na questão de
onde resulta a cultura que a escola promove aos alunos em que 58% dos professores
disseram ser “resultante dos grupos que compõem a própria realidade”, podemos
perceber que a maioria dos professores não faz uma mediação da cultura erudita e a
cultura do aluno, donde podemos concluir que a escola na pessoa do professor deve
estar aberto às diferentes manifestações da cultura, não minimizando os conteúdos
culturais por supor que os sujeitos desse espaço não precisam entender como o
conhecimento socialmente valorizado tem sido representado nos espaços sociais,
demonstrando um caminhar na contramão no processo de transposição didática,
desconsiderando a construção histórica dos saberes.
Nas questões discursivas quando perguntados sobre quais conteúdos culturais
fazem parte da vida do professor neste âmbito os respondentes têm conteúdos culturais
que estão ligados muito mais às culturas dito eruditas, sendo a “música”, não
importando qual seu estilo eleita como o primeiro conteúdo cultural que mais elencado.
Já “festejos populares” aparece como o segundo que mais ocorre, como marca típica de
nossa região nordestina em que os festejos populares tem uma importância enorme no
referencial cultural de seus habitantes. “Leitura e teatro” aparecem em último plano por
corresponder a uma resposta do cânone cultural, tido como mais “adequada”, pelo
professor em si ser identificado na sociedade enquanto ser de cultura.
Quando perguntados o que você professor entende por cultura o deslocamento
deste conceito tomou inúmeras abordagens pelas várias áreas de conhecimento, que
depois agrupamos por temas semelhantes.
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
Para Moscovici (2007) esse tema cultura está complexamente interligado com
certa memória coletiva, que também são combinações, iguais às representações que eles
sustentam. As imagens que desse tema derivam são categorizados socialmente.
As formações imaginárias dos sujeitos pesquisados aparecem entrelaçadas como
crenças ou pré-concepções ao termo cultura e temos como a resposta mais recorrente:
“manifestação cultural de um povo, costumes e hábitos”, logo depois “conjunto de
tradições e valores passados de uma geração para outra”, em seguida “ o “saber e o
fazer popular”, nesta resposta permeia a questão social, em outra resposta “modo
particular de cada sociedade”, ressaltando as características próprias de cada cultura,“
identidade de um grupo tecida no cotidiano”, demonstra as formações imaginárias dos
sujeitos que a vida cotidiana sustenta e se constituem nas relações sociais e que são
historicamente mantidos.
Retomamos a resposta da questão nº 2 em que 58% dos professores disseram que
a cultura que a escola promove aos alunos resulta de grupos que compõem a própria
realidade, refletindo-se nas respostas de como os professores compreendem o que é
cultura e dos conteúdos culturais que fazem parte de sua vida, essa tríade vem
demonstrar na visão do discurso (respostas) dos professores, enquanto construção
social, como os professores constroem a realidade social e a si mesmos através dessas
representações.
Quando perguntados quais os valores e significados culturais que o grupo de
professores da escola compartilha em maioria aparece “Semana da Consciência
Negra”,a seguir “Semana do Meio Ambiente”, e por último “Gincana da Matemática”.
Lembramos que não aparece em nenhuma das respostas outros aspectos sobre cultura
como fazendo parte do variado e conflituoso cenário cultural em que estamos imersos, e
se apresenta diariamente nas salas de aula.
Quando perguntados quais as concepções de cultura orientam a escolha da prática
educativa, temos como mais recorrente a resposta: “considero os conhecimentos dos
alunos”, em seguida vem “desconheço”, logo depois “diversificada, cada professor
adota a sua”, e por último “cultura da classe dominante”.
A resposta mais recorrente neste quesito é coerente com as respostas da questão
nº 4, em que 60% dos professores dizem respeitar as manifestações culturais de seus
alunos. No entanto, a resposta que aparece logo em seguida “desconheço” demonstra
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
que esse percentual de professores não demonstra compromisso com a questão cultural
que deve ser enfocada em sala de aula. Diante da resposta “diversificada, cada professor
adota a sua” apresenta-se difuso, sem clareza, e nos lembra Bakhtin que diz “o que
somos é construído por meio de nossas práticas discursivas”, denotando práticas
individualizadas.
Quando perguntados quais concepções de currículo fazem parte da prática
educativa, foi com o intuito de investigar de que forma este tem uma projeção direta na
prática pedagógica como mecanismo que intervém na qualidade da aprendizagem
também, e sabemos que o professor “molda” o currículo na sua prática.
A resposta que aparece em primeiro plano como mais recorrente da questão é
“dar conteúdo/ tradicional”e “determinado pela Secretaria de Educação –SEC”, este
último sem muita certeza, porém, confirmando que na escola pública trabalha-se ainda
pautado no aspecto conteudista, tradicional, sem considerar as transformações por que
passaram e passam a sociedade, a educação, e como reflete-se no desenvolvimento da
aprendizagem dos alunos.
Em seguida temos como segunda resposta “não sabe” demonstrando que uma
parte dos professores estão alheios às concepções que a escola possui, ou a escola, nas
pessoas dos coordenadores e articuladores não conseguiram demonstrar isso aos seus
professores. Por último, poucos professores disseram ser “interdisciplinar” e citaram
alguns aspectos dessa interdisciplinaridade que ocorrem, “no desenvolvimento de
projetos e atividades que envolvem várias disciplinas”.
Os coordenadores pedagógicos responderam: “apesar de certa autonomia ainda
abraçamos um currículo voltado para a reprodução da sociedade, da classe dominante” e
outra “currículo construído como conhecimentos construídos através dos tempos,
trabalhados relacionados com a realidade”.
Dessa forma percebemos que há uma contradição entre a resposta dos
coordenadores e as respostas da maioria dos professores, pois que, um currículo
tradicional, determinado pela Secretaria de Educação, como também alguns professores
“não sabem” qual é a concepção curricular que orienta sua prática, demonstra que não
há uma orientação curricular cumprida pela maioria, devendo-se considerar também,
embora que nas suas respostas 60% dos professores digam que os documentos oficiais
são usados como base para a proposta pedagógica da mesma.
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
Resgatando o Projeto Político Pedagógico da escola onde na sua missão diz “formar
cidadãos conscientes e capazes de transformar sua realidade e compreender os novos
processos da sociedade moderna, dando-lhes um ensino de qualidade, relacionando com
seu cotidiano”, donde não conseguimos perceber nas respostas dadas pelos professores
nas questões citadas acima, como pode-se ter uma educação de qualidade sem que todos
tenham conhecimento do direcionamento curricular que deve dar à sua prática
pedagógica.
Dessa forma os professores fornecem as “pistas” que indicam como um enunciado
particular torna-se contextualizado nos seus discursos, desvelando a realidade social – a
escola – e a si mesmos. Concordamos com Moreira e Candau (2008, p38) quando
ressaltam que “é o professor esse artífice na construção dos currículos que se
materializam nas salas de aula”, pois é ele quem depara-se com a pluralidade cultural na
sala, e esta normalmente gera conflitos, resta-lhe agir com sabedoria e respeitar as
diversas visões de mundo como manifestação e representação da realidade.
Considerações Finais
Concordamos com Arroyo (2006, p. 56) quando ele diz que a divisão do currículo
em núcleo comum e diversificada trouxe a visão fragmentada e não engloba nas escolas
as características regionais e locais, constatamos isso na grade curricular que faz parte
da escola quanto a parte diversificada do ensino fundamental e médio, não contempla
nenhuma disciplina específica que venha dar conta das características de nossa região
ou de nossa cidade, assim como a questão da cultura fica subjacente à questão
curricular, mesmo que os professores demonstrem não ter certeza se o currículo que faz
parte da escola é determinado pelos órgãos superiores.
Vimos confirmar mais uma vez que o conhecimento que a escola aborda é
distante da realidade que o aluno vive, e a realidade do aluno, ou o “conhecimento do
aluno” tão abordado nas respostas dos professores, não demonstra ser significativo neste
espaço escolar, embora seja colocado pelos professores.
No currículo, assim como na cultura se manifestam os conflitos pela manutenção e
superação de seus significados, porém nessa construção em que alteridade e contexto
são cruciais, estes são situados neste trabalho de forma a compreender institucional e
historicamente.
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Currículo Proposto e Currículo na Ação: como diálogo ou subordinação da cultura?
A cultura nesta pesquisa apresenta-se subordinada ao currículo como se dele esta
não fizesse parte integrante, porém colocamos à escola e aos professores um propósito
de repensar e promover discussões em torno do caráter multicultural que há em nossa
sociedade, que traz conflitos no espaço escolar e tão pertinente de ser discutido. Dessa
forma propiciará aos professores uma nova forma de ação pedagógica, e
consequentemente, será um novo aprendizado.
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UNIMARCO. Jan./Jun. 2005. p. 14-37.
Cecília de Fátima Boaventura de Macedo & Raimundo S. Lea
6610
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREITE A UMA
TEORIA DO CURRÍCULO
Damião Bezerra Oliveira
Salomão Mufarrej Hage
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE A UMA TEORIA DO CURRÍCULO
Damião Bezerra Oliveira1
Salomão Mufarrej Hage2
RESUMO: O problema da investigação constitui-se de duas interrogações interligadas:
em que consiste as contribuições de freire para uma teoria do currículo? Quais são os
conceitos ou categorias fundamentais do pensamento freireano para referenciar esta
teoria? Objetiva-se explicitar e caracterizar essa contribuição, destacando os conceitos
fundamentais que a configura em suas inter-relações. Elegemos como fio condutor no
desenvolvimento da nossa problemática, a Pedagogia do oprimido, por considerarmos
que nesta obra estão os conceitos mais importantes do pensamento político-educacional
de Paulo Freire, reafirmados e ressignificados em obras como Pedagogia da esperança
e Pedagogia da autonomia (Freire, 2005, 1992, 1996). O estudo desenvolveu-se a partir
de fontes bibliográficas sobre as quais foram aplicados os procedimentos da leitura
aprofundada das unidades de sentido previamente selecionadas, a análise do conteúdo
textual – explicação, comentário e dissertação -, o que deu corpo a uma reflexão crítica
(Folscheid; Wunenberg, 1999; Cossuta, 2001). Pôde-se destacar após a apresentação da
problemática, como se articulam as categorias de sujeito, liberdade, cultura e práxis,
entre outras, e de que modo esse conjunto se constitui em relevante contribuição para
uma teoria na qual o currículo não se restringe à escola, mas se constitui do conjunto de
experiências existenciais de homens e mulheres, devendo-se observar a continuidade
dessas experiências nas relações que se estabelecem entre a cultura escolar e aquela que
constitui os sujeitos mais amplamente.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Paulo Freire. Cultura. Sujeito. Liberdade.
Considerações iniciais
Transformou-se em verdadeiro truísmo considerar o pensamento freireano uma
das maiores contribuições para a pedagogia da segunda metade do século XX e que
mantém ainda a vitalidade neste início de século XXI. Talvez o que não seja tão comum
é se falar da importância das contribuições de Freire para a teoria do currículo.
1
Aluno do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal do
Pará (UFPA).
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal do Pará
(UFPA).
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
O problema da investigação constitui-se, pois, de duas interrogações
interligadas: em que consiste as contribuições de freire para a teoria do currículo? Quais
são os conceitos ou categorias fundamentais do pensamento freireano para referenciar
esta teoria? O nosso objetivo é explicitar e caracterizar essa contribuição, destacando os
conceitos fundamentais que a configura em suas inter-relações.
Como todas as teorias educacionais, a de Freire também pressupõe uma
concepção de homem, de conhecimento e dos objetivos da ação educativa. Para o autor,
o alcance do currículo e dos elementos que o constitui não se restringe à escola; uma das
mais emblemáticas intuições de Freire foi compreender o currículo em múltiplas
situações educacionais, numa clara valorização das experiências cotidianas vividas
pelos sujeitos da educação.
Numa primeira aproximação, pode-se dizer, portanto, que o currículo para Freire
constituir-se-ia do conjunto de experiências existenciais de homens e mulheres,
devendo-se observar a continuidade dessas experiências nas relações que se estabelecem
entre a cultura escolar e aquela que constitui os sujeitos mais amplamente. Como o
currículo escolar se constrói a partir de uma seleção mais ou menos arbitrária de
experiências e significados, o autor elege aqueles significados existenciais reconhecidos
como relevantes pelos próprios sujeitos da ação educativa como devendo ser os fios
condutores das atividades curriculares. Sem excluir a relevância da chamada cultura
escolar formal, entende que esta precisa ser situada e ressignificada pelos sujeitos nas
ações educativas concretas.
Freire parte da referência à vocação ontológica do humano, sem, contudo,
pressupor uma essência humana, uma natureza fixa e substantiva no homem. Mesmo
recusando o relativismo, o autor reconhece a relatividade da condição humana,
entendida como situada, de modo que se pode dizer que Freire possui um profundo
respeito pelas singularidades existenciais dos sujeitos, o que favorece o ideal de
pluralidade cultural que atualmente circula nas teorias educacionais.
Em suas contribuições para a teoria do currículo, Freire revela-se herdeiro dos
sonhos iluministas de um homem emancipado, autônomo e crítico, aproximando-se,
portanto, do ideal moderno de educação; no entanto, sob vários aspectos, supera e
ressignifica essa posição de vínculo com a modernidade.
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Elegemos como fio condutor teórico no desenvolvimento da nossa problemática,
a Pedagogia do oprimido, por considerarmos que nesta obra estão as principais teses e
os conceitos mais importantes do pensamento político-educacional de Paulo Freire,
reafirmados e ressignificados em obras como Pedagogia da esperança e Pedagogia da
autonomia (Freire, 2005, 1992, 1996).
Neste sentido, este trabalho não está tomado da preocupação de flagrar os
conceitos do autor no momento da sua emergência histórica, mas de entendê-los na
teoria do pensador quando já estão bem configuradas as suas próprias teses, quando seus
argumentos estão consolidados e os compromissos políticos estão claramente
assumidos.
O estudo desenvolveu-se a partir de fontes bibliográficas sobre as quais foram
aplicados os procedimentos da leitura aprofundada das unidades de sentido previamente
selecionadas, a análise do conteúdo textual – explicação, comentário e dissertação –, o
que deu corpo a uma reflexão crítica (Folscheid; Wunenberg, 1999; Cossuta, 2001).
Apresentando a problemática
Na compreensão das contribuições de Freire para a teoria do currículo faz-se
necessário interrogar sobre o lugar da cultura como ponto de partida da sua práxis
político-pedagógica. A possibilidade de realização da liberdade é inseparável da
assunção de si como sujeito. Como a liberdade e a condição de sujeito são atributos
inalienáveis dos seres humanos, a educação e o currículo apresentam-se como
importantes
mediações
no
estabelecimento
de
uma
relação
de
continuidade/descontinuidade dialética entre as experiências culturais cotidianas e a
cultura escolar, nas relações dos seres humanos com a natureza e entre eles.
Diferentemente da tradição marxista que reconhece a centralidade da infraestrutura na compreensão do que seja o social e no como proceder na ação
revolucionária, Freire apostará na centralidade da cultura, naquilo que a teoria social
marxista denomina de superestrutura (Bedeschi, 2006). Não se trata, contudo, de
afirmar que Freire desconhecesse ou desconsiderasse a relação dialética entre as duas
instâncias estruturantes da sociedade, mas de reconhecer que ele ressignifica a relação
entre a infra e a superestrutura, o que não deixa de ter conseqüências na forma de
conceder sentido à ação político-revolucionária.
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Assim, a luta pela libertação e a criação de um ser humano novo, passariam
necessariamente pela conscientização que, na sua radicalidade, só se concretiza
mediante a revolução cultural, justa reação à colonização cultural que se coloca na base
da opressão. Evidente que esta revolução não se realizaria como ação apenas sobre as
consciências em uma espécie de guerra simbólica. Não parece possível a
conscientização do opressor e a sua libertação por meio somente do diálogo. Em
qualquer que seja o caso, o essencial é pensar em uma ação revolucionária que tenha
consciência de si, que se saiba meio inevitável de transformação social que não deve se
estender indefinidamente, mas precisa ter um termo, pois deve ser apenas um meio
doloroso que precisa se auto-abolir, ao abolir o que a gerou. Daí porque a violência
revolucionária só se justifica caso não sirva para que haja uma mudança de posição: os
oprimidos virem opressores dos que oprimem (Freire, 2005). O que deve ser abolido
não é uma forma ou outra de cultura, mas todas as expressões culturais de opressão.
Por isso se pôde constatar que, na Pedagogia do oprimido, a cultura e a sua
expressão pelos próprios sujeitos da educação mostram-se como uma ancoração
antropológica fundamental no processo de conscientização e de desalienação que devem
ser concomitantes às práticas sócio-culturais de libertação.
Portanto, mesmo que fale de uma “vocação ontológica” do homem a ser mais –
apesar dos exemplos históricos que o rebaixa na sua dignidade intrínseca –, Freire
(2005) insiste na compreensão situada das formas variadas de ser-no-mundo. Em razão
disso recusa-se em aceitar qualquer postura etnocêntrica, impositiva ou invasora das
identidades em nome de práticas dialógicas, participativas e libertadoras que passam
pelo auto-reconhecimento ontológico de que ser sujeito é, também, assumir-se pelo
pertencimento sócio-cultural e histórico a determinado ethos, que não deve ser, por sua
vez, aceito passivamente, mas compreendido, criticado e se necessário, transformado.
Freire sabe dos potenciais do logos, da necessidade de o ser humano pensar por
conta própria e isso já seria uma primeira manifestação de um sujeito emancipado, não
tutorado. Contudo, o ser sujeito e a liberdade, indispensáveis ao ser mais, não se
esgotam e nem terminam no espaço privado da consciência de si individual, em algo
como o eu penso cartesiano ainda presente em uma fenomenologia transcendental e
idealista da qual Freire se afasta. Mais próximo de uma fenomenologia existencial e
hermenêutica, o autor repete com insistência que entende o homem como ser-com-o-
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
outro-no-mundo: o mundo social e público é o espaço da liberdade, de modo que a
consciência solipsista e individualista perde o lugar de fundamento da ação ou do
conhecimento humano.
O logos, a palavra, a voz, são atributos humanos que, quando autênticos,
contrapõem-se ao silêncio ou à reprodução, como eco, de um discurso “hospedado”,
assumido, alienadamente, como próprio. Deve-se recusar igualmente o monólogo, o
discurso gerado por uma subjetividade isolada e que pretende impor-se como tal. O
diálogo passa a ser o único meio apropriado para o encontro dos sujeitos que se
reconhecem nesta condição.
Os pressupostos filosóficos que permeiam as contribuições de Freire para a
teoria do currículo são da maior atualidade em um tempo em que se procura repensar o
sentido da revolução, do socialismo, da democracia, das políticas educacionais e
curriculares levando-se em conta as diversas experiências culturais dos sujeitos e os
mecanismos de participação na construção da vida política e sócio-econômica. Freire
não foi de nenhum modo insensível à diversidade e à pluralidade destas experiências
educativo-culturais não escolares dos variados grupos humanos, por isso critica com
sincera veemência os paradigmas monológicos das práticas escolares existentes,
destacadamente nos processos de ensino-aprendizagem de alfabetização de jovens e
adultos.
Pode-se constatar em Freire contribuições das filosofias existencialistas de Karl
Jaspers e Mounier, particularmente no que concerne aos conceitos de sujeito e
liberdade. Paiva (2000) defende com suficiente fundamentação histórica este vínculo.
No entanto, já se pode verificar em Pedagogia do oprimido a influência da teoria crítica,
como se evidencia nas citações explícitas de Erich Fromm. Não se pode negar,
igualmente, a presença da filosofia hegeliana nos argumentos de Freire e mesmo a
citação de Hegel, mas é do mesmo modo claro o esforço por ir além do idealismo, como
se verifica na insistência com que o autor enfatiza que a libertação exige engajamento
concreto, ação e reflexão e não apenas conscientização definida como resultado de uma
ação educativa cognitiva.
Não se poderia deixar de destacar que o conceito de práxis na teoria freireana
não se confunde com uma simples prática teórica ou com mera atividade sensível,
definindo-se, efetivamente, no sentido marxista de unidade dialética entre ação e
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
reflexão, teoria e prática (Marx, K.; Engels, F., 1986). Toda argumentação de Freire em
Pedagogia do oprimido, assim como em sua última obra publicada em vida, Pedagogia
da autonomia, é permeada pela categoria “práxis”: a palavra, o logos, só ganha força
quando não se separa o discurso do fazer, a sintaxe da semântica, a liberdade dos seus
condicionamentos sócio-históricos, evitando, concomitantemente as visões voluntaristas
e o reducionismo mecanicista na compreensão da ação humana.
Contribuições de Freire para a teoria do currículo
A obra de Freire permeia-se, do início ao fim, pelo conceito de liberdade. Esta é
uma das categorias fundamentais do autor para referenciar a teoria do currículo. Não
menos importante é o conceito de sujeito que só pode ser entendido quando remetido ao
de liberdade e vice-versa. Por fim, mas igualmente relevante, é a compreensão freireana
de cultura, que aqui será pensada de modo orgânico com os dois conceitos anteriores,
com a mediação do de diálogo e o de práxis.
Por fidelidade ao pensamento do autor, deve-se destacar que as palavras e os
conceitos só ganham sentido quando são compreendidos no interior da totalidade das
vivências de sujeitos determinados. O engajamento em prol de vivências livres dos
sujeitos da cultura como expressão de uma autêntica existência fez parte da luta teórica
e prática de Freira. Este era um dos meios de construção de uma democracia radical,
buscada por Freire, tanto no seu país quando em diversos outros solos por onde passou
este andarilho esperançoso e visionário atuante. Identificou-se com a luta de uma
diversidade de oprimidos, como: operários urbanos, trabalhadores rurais, mulheres,
desempregados e até com os párias indianos (Zitkoski, 2006).
É certo que foi muitas vezes criticado por ter preferido falar de relação opressoroprimido e não ter adotado a terminologia marxista de luta de classes já suficientemente
consagrada nos anos 1960 como instrumento heurístico e teórico-prático nos
engajamento dos grupos político-revolucionários. Contudo, o seu pensamento converge
com o marxista no que concerne aos fins da ação revolucionária: uma sociedade justa e
igualitária em que os seres humanos até então negados tivessem a sua humanidade
reconhecida teórico e praticamente pela superação dialética das contradições entre
opressores e oprimidos, sem que neste movimento a subjetividade fosse subsumida
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
numa totalidade social, mas antes se mantivesse relativamente livre em uma forma de
sociabilidade que a favorecesse.
Por não abrir mão de um núcleo de liberdade subjetiva que não se depravasse em
subjetivismo ou em individualismo, Freire apostou na necessidade de conscientização
como ocorrência simultânea à ação transformadora. Parecia inadmissível que a
consciência do projeto, dos fins, só aparecesse após a consumação da ação. Contraria a
idéia de que ser sujeito implica na capacidade de projetar-se, de antecipar o sentido da
ação no pensamento e em modificá-la em função dos resultados daquelas,
dialeticamente.
Freire deu ênfase a conscientização como um importante passo na efetuação de
uma educação libertadora da alienação a que estão submetidos os oprimidos ao ponto de
temerem a própria liberdade. Mas como compreender esta categoria, uma das mais
relevantes do pensamento de Freire e particularmente para a teoria curricular? Estaria a
liberdade nele limitada às determinações do liberalismo, que Paiva (2000) reconhece ter
sido herdado, por Freire, dos isebianos e que ainda poderia ser flagrado na gênese do
pensamento freireano, especialmente no período que vai do final da década de 1950 a
meados dos anos 1960? Ou Freire compreende a liberdade como algo que transcende a
simples idéia de uma possibilidade de mobilidade individual na sociedade?
William Westermann citado por Arendt (1999), na obra Between Slavery and
freedom, define o que Aristóteles entendia como pressupostos da liberdade: “[...] status,
inviolabilidade pessoal, liberdade de atividade econômica e direito de ir e vir” (p. 21,
nota de rodapé). Observa-se que a liberdade é compreendida, antes de qualquer coisa,
por atributos públicos, relacionados à vida política. A escravidão, por sua vez, se
configura pela ausência de todos ou de alguns desses atributos.
Em outro contexto, mas fazendo referência, recorrentemente, aos exemplos
históricos de que se quer herdeiro, sabe-se que o capitalismo liberal sempre se
apresentou como defensor da liberdade3 de fé, de expressão, de pensamento, do direito
de ir e vir. Indissociáveis do atomismo social, tais direitos são entendidos como
propriedades individuais básicas que seriam inerentes a todos os seres humanos às quais
3
Os títulos de duas importantes obras inspiradoras do ressurgimento do liberalismo já indicam a
centralidade do conceito de liberdade: Capitalismo e liberdade, de Milton Friedman e Caminhos da
servidão, de F. A. Hayek, que contém idéias que antes foram publicadas em um artigo denominado
“Liberdade e sistema econômico” (HAYEK, 1990).
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
se junta a conservação da propriedade privada de bens materiais. O Estado e o governo
só podem justificar a sua existência e legitimar o poder que exercem na medida em que
trabalham em prol de tal liberdade. Sustentamos que esta compreensão de liberdade
liberal não se identifica ou se assemelha à de Paulo Freire.
Muito embora seja inegável a influência do existencialismo de Jaspers e mesmo
da Fenomenologia do espírito de Hegel, como lembra Paiva (2000), sustentamos que a
visão de liberdade de Freire avança a posição clássica, liberal ou idealista, buscando
inspiração no marxismo. Por isso, em Pedagogia do oprimido, Freire (2005)
desqualifica não o ideal liberal de liberdade, mas a impossibilidade de sua efetividade
sob as condições do capitalismo. Tal ideal é ideológico e por isso não resiste ao teste da
práxis: uma análise da “lógica” do real funcionamento do capitalismo mostra em toda
parte a desumanização da maioria dos homens, a sua submissão às necessidades da vida
a condições alienantes de trabalho. O Estado liberal, ao invés de garantir a liberdade, a
igualdade e a solidariedade efetivas, passa a ser o instrumento de opressão e injustiça
legal.
Pode-se deduzir do pensamento de Freire (2005, 1996), o seu reconhecimento
de que o liberalismo e o neoliberalismo não têm sido radicais na discussão da alienação
do homem e da sua desumanização diante das relações de produção capitalistas
concretas, assim como não questionam o axioma que é a sua condição de possibilidade:
a prioridade do lucro econômico, da propriedade privada e da apropriação do excedente
por uma minoria.
Sob o capitalismo, como falar, pois, de autêntica liberdade como valor éticopolítico, se as relações entre os homens e mulheres se baseiam na igualdade formal sem
força para abolir a desigualdade real? O que significa fazer da liberdade o valor
fundante, se a igualdade e bem-estar são negados na prática à maioria dos seres
humanos?
Pode-se dizer com Adorno (2006) na sua crítica ao ideal liberal de liberdade, que
[...] o apelo à liberdade do indivíduo isolado tem algo de vazio, a liberdade
não é um ideal, que se ergue de um modo imutável e incomunicável sobre a
cabeça das pessoas – não é por acaso que esta imagem lembra a espada de
Dâmocles –, mas a sua possibilidade varia conforme o momento histórico (p.
72).
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Também o pensamento freireano não entende a liberdade como livre-arbítrio ou
qualidade interna e substancial da vontade individual, mas como construção humana,
sócio-historicamente condicionada. Faz-se necessário que homens e mulheres, na
condição autêntica de sujeitos, engajem-se na conquista e constituição concreta da
liberdade. Por ser tomado de profundo respeito pelo outro, Freire (2005) não admite a
consciência prévia do objetivo da ação – uma das condições da liberdade – seja atributo
somente de uma vanguarda, que só seria compreendido pelas bases após a consecução
do projeto.
Uma Pedagogia do oprimido deve ser entendida, portanto, como uma proposta
curricular político-revolucionária que concede um lugar essencial aos processos
educativos dialógicos com alcance que transcende ao âmbito da escolarização instituída,
embora não deixe de considerá-la em tudo o que propõe.
Passa-se, agora, à reflexão da noção de cultura, sem deixar de remeter esta
categoria às de sujeito e liberdade, como se vem procedendo até o momento, ao se fazer
mútuas remissões com o fim de explicitar as relações entre estas categorias.
Na elucidação do que seja a cultura, o pensamento freireano confronta e
compara homem e animal. A humanização se realiza enquanto processo de tomada de
consciência da condição de sujeito que, com a sua atividade de trabalho transforma o
mundo e a si mesmo como componente dessa totalidade mundana. É pela consciência
de si que se procede à superação da animalidade, na medida em que esta é entendida
como embrutecimento frente ao mundo e inconsciência dos objetivos da ação. Muito
freqüentemente o autor explicita o comportamento de autodesvalia por um reconhecerse e identificar-se dos seres humanos com a sua condição animal.
Embora se fale universalmente da cultura como marca do humano, não se
desconhece a diversidade do existir e a sua pluralidade que se expressa em muitas
manifestações culturais e estas são entendidas como formas de vida, modos de homens e
mulheres se fazerem, constituírem as suas subjetividades. Assim, a idéia de vocação
ontológica do ser mais, de acordo com uma ética universal (Freire, 1996), admite,
concomitantemente, a legitimidade das maneiras ricas e variadas de singularização dos
sujeitos no interior de uma totalidade dialética.
Não se pode pensar, no entanto, que as culturas, por si mesmas e na sua
totalidade, representem uma positividade, pois o movimento de civilização e de inserção
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
cultural e educativa pode voltar-se e historicamente tem se voltado contra o ser mais dos
seres humanos. O ser consciente e o conhecer como atos meramente cognitivos não
libertam e nem humanizam, uma vez que há sempre a possibilidade de alienação, de o
produto subordinar e oprimir o produtor “reificado”. Ficam-se diante da “naturalização”
do cultural, do medo à liberdade, da existência inautêntica, fenômenos em que o sujeito
toma a história, a realidade econômica e sócio-cultural por destino e fatalidade frente
aos quais só restaria entregar-se ao porvir como processo inexorável (Freire, 2005,
1992).
Considerando essa complexidade, pode-se dizer que a compreensão freireana de
cultura emerge da análise da relação entre homem e natureza, da qual derivará formas
diversas de existência. A cultura, por si só, possibilita tanto a humanização quanto a
desumanização, dependendo do grau de liberdade e auto-reconhecimento dos sujeitos
como das formas de suas relações.
Desse modo, a constituição do mundo humano resulta das relações entre os
sujeitos e desses com a natureza. Há uma ligação do cuidado com a natureza e o culto
ao divino ou às forças que se sobrepõem ao ser humano. Este tipo de consciência
relaciona-se de perto a um tipo de reificação que consiste em minimizar as
possibilidades de ação transformadora da realidade, por se pensar as relações históricas
como submetidas a forças que transcenderiam a capacidade humana de interferência, de
modo que a “fatalidade” e o “destino” assumem um lugar fundamental na forma de estar
no mundo com os outros (Freire, 1982, 2005).
Não se pode esquecer que uma forma de cultura, a letrada, tem sido negada,
historicamente, à parte da população brasileira pobre, especialmente no território do
campo. Daí porque se tem considerado um sério problema a resolver para o
estabelecimento de formas mais democráticas de relação social.
Freire realizou uma leitura fortemente política desse fenômeno: soube como
ninguém conceder-lhe uma importância antropológica e político-cultural ao superar uma
visão ingênua e técnica da alfabetização (Freire, 1982, 2005). Sem negar que se devam
dominar as competências procedimentais de leitura e de escrita, ele procurou
redimensionar o seu sentido.
Ao definir o ensino-aprendizagem – significativo e humanizante – próprio aos
sujeitos em contraposição à forma animalesca de aprender no adestramento, Freire
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
observa que “[...] estudar, no fundo, é uma atitude frente ao mundo. Esta é a razão pela
qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto” (1982, p. 11).
Mesmo sem dominar as técnicas de leitura de escrita, é possível realizar uma
importante leitura do mundo como campo existencial que contém além dos signos
gráficos da língua natural e da matemática, uma enorme variedade de outros signos e
sentidos passíveis de compreensão e expressão.
A supervalorização da cultura letrada provocava uma dificuldade essencial na
aproximação desta com outras experiências existenciais de indivíduos ou grupos em que
aquela não se fazia presente, porque se partia da pressuposição de uma falta, da carência
e da alteridade negativa do não alfabetizado, como se ele devesse ser visto pela ausência
de um componente civilizacional que estaria na origem do seu embrutecimento e
desumanização.
Para entender o real sentido da desumanização, fez-se necessário a redefinição
do lugar do ler e do escrever e mesmo da escolarização de maneira ampla que não se
restringe a ser somente uma nova forma de entender a ação metodológico-pedagógica
dos educadores, mas implica também e de maneira mais profunda uma redefinição de
caráter ontológico-antropológico da educação (Freire, 2005). A noção de leitura
proposta por Freire é uma das chaves na compreensão dos homens no processo de
educação, sendo mais, portanto, que a sustentação metodológica da alfabetização de
adultos. O pressuposto curricular para o acesso ao campo de sentido não são as técnicas
de leitura e escrita e os campos de inscrição e de interpretação que elas possibilitam,
mas é antes a capacidade de pensar, de expressar esse pensamento e fazer da palavra
experiência de liberdade.
Inegavelmente o modo de Freire pensar as fontes da educação difere da crença
tradicional e esse respeito. O meio essencial da ação educativa já não é mais,
preferencial e restritamente, os símbolos inscritos em livros e em outros campos
semelhantes de fixação do sentido, mas passa a ser o mundo em que o homem se faz
com os outros: é a experiência que nele se tem que deve mediar o processo dialógico
entre as pessoas e deste resulta a formação.
O diálogo, contudo, não é uma simples conversa em que se trocam e reproduzem
as idéias, reafirmam-se convicções arraigadas e apreendidas de modo espontâneo. Não
se identifica, do mesmo modo, à tradição curricular do disputatio, do debate de idéias
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
envolvendo uma diversidade de interlocutores em uma espécie de jogo que se contenta
em permanecer no campo do rigor dos raciocínios, da tese e antítese, da comparação dos
argumentos cujo julgamento é pautado pela consistência interna das assertivas.
Freire visa algo mais que um ensinar a raciocinar, a se apropriar de conceitos e
teorias e comentá-los com esmero retórico ou lógico-gramatical. As questões que
interessam não são as formalmente levantadas pelos livros, pensadores e teóricos
autorizados, mas aquelas que emergem da existência, das experiências vivenciadas e
que tocam os sujeitos de modo profundo.
As questões relativas ao conhecimento e à verdade devem ser inerentes a
concretude da existência, daí porque não podem ser decididas de modo sintático, por
critérios de consistência lógico-discursivos, mas tão-somente na práxis, pela qual a
palavra é remetida à ação e vice-versa. A sintaxe e a semântica só ganham sentido em
referência às situações existenciais das quais emergem o discurso, pela sua força de
mobilização e engajamento, enfim, por representar o feito e se dispor a fazer o que se
antecipa como representação do futuro.
Os questionamentos, geradores dos diálogos, nascem de um processo de exame
de crenças, de confronto amoroso de opiniões com relação às experiências
compartilhadas do mundo: trata-se de uma experiência de “ad-miração” na qual está
implicado o ser do ente humano na sua totalidade, o que concede importância à reflexão
e à elaboração lingüística.
O diálogo e a dialética em Freire, não são, portanto, fenômenos eminentemente
lógico-lingüísticos, mas implicam um movimento que vai do pensamento à ação e viceversa. Mais que dialética conceitual, dinâmica de idéias, exige-se a materialidade do
discurso, a consideração de um contexto, de uma situação espaço-temporal em que
sujeitos localizados sócio-histórico e culturalmente existem de determinadas maneiras.
Sendo assim, todo ato de ensino-aprendizagem e de aprendizagem-ensino, deve
levar em consideração os sujeitos como dotados da capacidade de pensar e atuar, de
refletir sobre uma situação em que vive no mundo, não somente com o fim de constatar
que o mundo é assim, mas que por ser como é, necessita de mudar em um sentido
determinado, coletivamente.
Embora os condicionamentos históricos e sócio-culturais possam limitar as
possibilidades de os homens exercerem a condição de sujeitos do seu discurso e da sua
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
ação, todos estão potencialmente habilitados a expressar a sua existência. Faz-se
necessário substituir a compreensão da consciência como res cogita pela de
consciência-atividade. Neste caso, mais importante do que acumular representações na
memória e apreendê-las de maneira erudita como um tesouro cultural a guardar para
exibir, seria a compreensão das possibilidades de criar cultura e formas mais perfeitas
de existência no mundo.
A cultura como tesouro acumulado cuja referência principal seria a
temporalidade passada, deve ceder lugar à construção coletiva de um mundo projetado
como inédito viável (Freire, 2005) cuja concretização não se dará mecanicamente por
uma dinâmica espontânea, mas pelo engajamento e pelas ações que apostem em um
ainda-não, em um dever-ser antecipado intersubjetivamente e avaliado como poder-ser.
O pressuposto antropológico-epistemológico dessa esperança-engajada é o de que há
incompletude e inacabamento do homem que conhece, projeta e se constitui
historicamente. O ente humano só pode ser compreendido por meio de uma ontologia da
finitude, da incompletude, o que se reflete na sua forma de conhecer. Tal modo de
posicionar o homem cria o espaço de exercício da liberdade, não como um lugar interno
onde se situa o livre-arbítrio para decidir o que escolher entre as opções dadas, já
existentes, mas como modos inéditos de ser-com-os-outros-no-mundo.
A carência de plenitude, tanto do saber quanto do ser, não é uma condição
provisória e passageira, mas um constitutivo da condição humana. Daí porque se
justifica a necessidade da comunicação, do encontro com o outro. Tais ações em direção
ao outro e ao inédito viável são motivadas pela consciência da magnitude do não saber e
da imperfeição da existência em meio a pequenez do que se conhece e se é
provisoriamente. O diálogo faz todo sentido para sábios-ignorantes que estão sendo no
mundo.
Experiência cultural dos sujeitos
Paulo Freire valorizou uma práxis educativa que se alimenta das experiências e
necessidades dos sujeitos, fonte dos reais problemas em face dos quais eles são
desafiados ao pensamento e à ação. A dissociação de experiência e pensamento gera a
alienação, o distanciamento do homem de si mesmo, da sua vocação ontológica a ser
mais.
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Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Valoriza-se, portanto, a cultura como condicionante do existir, mais
especialmente como processo de construção de homens e mulheres. Longe de valorizar
uma postura de imersão apassivadora dos sujeitos na natureza, considera-se
indispensável a consciência de ser agente em face dos objetos, o que implica a
responsabilidade ética e política pelas conseqüências das ações para o mundo humano
ou natural.
Assim, a cultura seria um traço histórico comum central à compreensão do ser
humano. Em qualquer que seja o momento ou o local, se é possível falar de um ser
humano, o é em razão de ele poder apresentar-se culturalmente constituído e em
processo de constituição. Por isso, as idéias freireanas antes apresentadas não se referem
a uma condição ontológica específica, mas querem dizer respeito à condição humana
em geral, que só ganha sentidos autênticos nas situações diversas vividas pelos sujeitos.
Isso não significa, portanto, que se esteja operando a partir de ontologia da natureza ou
essência fixa, universal e necessária do ser humano. A opressão e a liberdade, por
exemplo, só adquirem sentido nas situações concretas que singularizam as experiências
humanas como são vivenciadas.
Tendo isso em vista, pode-se dizer que a humanização não começa com a
educação escolar e nem com a cultura formal que marca historicamente a escolarização.
O homem oprimido pode desconhecer diversas experiências valorizadas pela chamada
cultura científico-tecnológica e filosófica, assim como os ditos intelectuais ignoram uma
infinidade de experiências culturais não escolares. Ambos sabem e ignoram, sem que o
não-saber de cada um represente um estar fora do mundo cultural. Sensível a violência
simbólica de todas as formas e graus de etnocentrismo, Freire sustentou com vigor a
tese de que não se deve pensar o homem separado da sua cultura. As culturas são
diferentes, mas a falta da cultura escolar, por exemplo, não deve ser interpretada, pura e
simplesmente, como uma situação de incultura.
A teoria freireana trabalha com a idéia de que a educação desloca-se nas fissuras
existentes entre saber e ignorância: ninguém se coloca em um dos dois extremos. Os
saberes e as experiências culturais são diferentes, variadas e diversas. Por isso, nem
incultura e ignorância, por um lado nem saber e cultura, pelo outro. Trata-se de
reconhecer a necessidade de trocas culturais, de complementação dos saberes, numa
relação que visa à horizontalidade e evita a hierarquização.
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6627
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Diante disso, a cultura pode se apresentar enquanto um componente de
realização dos sujeitos em que eles devem assumir e reconhecer o pertencimento e
expressá-lo existencialmente, inclusive nas suas contradições. Ou, por outro lado, a
cultura pode representar “violência”, “invasão” em que os sujeitos são assujeitados, por
assumirem ideologicamente e contra os seus próprios interesses, formas de
representação, de existência impostas e, por isso, formadoras de consciências
inautênticas.
Considerações finais
Sujeito e liberdade são noções correlatas, inseparáveis, e podem ganhar
efetividade nas práticas de auto-constituição do humano por meio da cultura, entendida
como livre e consciente expressão da existência nas diversas circunstâncias. A cultura,
quando autêntica, representa o que o homem faz de si com a sua liberdade enquanto ser
histórico e social. Esta maneira de definir a liberdade e a cultura não representa,
contudo, a descrição do que tem sido as práticas culturais dos sujeitos, pois sempre é
possível, em algum grau, a alienação, visto que a liberdade jamais se completa, em
função de haver condicionamentos e determinações, situações-limites inexoráveis e
outras históricas. As últimas são superáveis pela liberdade engajada.
Pensar a liberdade como plenitude, seria entender mal a vida humana na sua
materialidade, desconhecer a resistência do real, que o homem faz a sua história sob
determinadas circunstâncias coletivamente criadas, mas que se interpõem enquanto
realidade instituída, portanto não é eliminável por simples atos voluntariosos.
O término prático de toda alienação implicaria na identidade entre querer e
poder, materialidade e idealidade, liberdade e necessidade. Desse modo, só do ponto de
vista teórico o sujeito pode reconhecer a totalidade de suas possibilidades e
impossibilidades. Parte da liberdade consistiria na consciência dessas impossibilidades.
Freire tem consciência de que ser sujeito é assumir a liberdade, mas também
revela não desconhecer a dialética entre liberdade e necessidade, natureza e cultura. É
neste jogo que se define a sua ontologia da finitude, a idéia de inacabamento do ser
humano e de persistência da dialética e do movimento das contradições.
Para além dos limites reais da liberdade, há as reificações auto-impostas, o medo
à liberdade que inventa condicionamentos e cria situações-limites, mesmo quando se
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6628
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
trata somente de uma circunstância difícil de superar e que exige um engajamento
efetivo e a assunção dos riscos implicados em todas as ações humanas, na medida em
que toda escolha livre implica contingência.
Em nome dessa liberdade assim compreendida, Freire contrapõe-se às doutrinas
que vêem a história como determinada por leis inflexíveis que conduziriam os sujeitos,
inexoravelmente, a determinados fins. A idéia de vocação ontológica do homem a ser
mais, não se confunde nem com destino nem com uma história mecanicista e pautada
numa teleologia que fosse independente das decisões conscientes dos entes humanos.
Freire não desconhecia a importância dos antagonismos de classe e estava ciente
das contradições entre os meios e relações de produção. Contudo, prefere construir o
seu pensamento em torno da contradição entre opressores e oprimidos.
Assim, a ação cultural libertadora, sem excluir as relações de classe, mostra-a
em círculos concêntricos que envolvem diversas outras relações de opressão: entre
países pobres da periferia do capitalismo e os centros imperialistas, do confronto das
classes que atravessam fronteiras e efetua interpenetrações, de modo que se descobre
uma periferia no centro e vice-versa. Dentro desta lógica, há, também, relacionamentos
baseados na opressão no interior das regiões, dos países, das cidades, da área urbana em
relação à rural, no interior desta, permeando os grupos sociais, as famílias e nas demais
relações micros, como as existentes em instituições escolares.
O compromisso freireano com o oprimido na luta por liberdade se expressa no
amor revolucionário e engajado aos “esfarrapados” e aos “condenados da terra” a que se
refere Frantz Fanon (1979), uma das inspirações de Freire.
A busca de liberdade coloca-se como movimento contra a colonização objetiva e
subjetiva em suas diversas manifestações e modalidades, sem que esquecer as
contradições materiais da existência em que a posse, o ter é um dos meios de
humanização do ser mais.
Uma teoria do currículo em Freire só pode ser compreendida no interior dessa
complexa rede conceitual. Ampara-se em uma pedagogia do oprimido, por ser esta
indispensável em face da crença do autor na necessidade da mudança de consciência
que não ocorre mecanicamente, como um efeito imediato de mudanças na infraestrutura. Por isso Freire enfatiza, com base no freudomarxismo de Erich Fromm, a
necessidade de uma tomada de consciência dos condicionamentos introjetados
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6629
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
historicamente e solidificados como uma espécie de “inconsciente”. Estes processos
objetivos e subjetivos atendem a uma dinâmica histórica e dialética só superável numa
práxis sócio-educativa em que o currículo é essencial.
A ação educativa dos sujeitos é incompatível com uma teleologia antevista como
legalidade da história; mas esta concessão à contingência não leva a teoria freireana ao
pessimismo, pois há perspectivas abertas pela esperança. Não se trata de esperar algo
inscrito no destino ou em uma necessidade histórica, mas antes de se engajar em uma
“esperança ativa”, de apostar nas capacidades humanas de agir de modo informado e
consciente, visando a efetivação de um projeto coletivo que objetive o ser mais de
homens e mulheres.
Liberdade e ser sujeito são atributos essenciais que contribuem para referenciar
uma teoria do currículo de inspiração freireana. Contudo, essa teoria não pode ser
definida como idealista, pois só enxerga a possibilidade de se criar uma subjetividade
emancipada no caso de os seres humanos assumirem, consciente e efetivamente, a luta
comum para atingir este objetivo.
Fiel a sua ontologia da finitude e da incompletude do humano, o pensamento de
Freire não estaciona e enfrenta as suas circunstâncias. Em obra como a Pedagogia da
autonomia, o filósofo critica severamente o neoliberalismo e o seu projeto de
sociabilidade humana, não apenas pela desumanização, injustiça e pobreza que promove
– reatualizando e ampliando a opressão –, mas principalmente por tentar se constituir
em teoria da história que fecha as possibilidades de mudança, a esperança de
emancipação e da possibilidade se ser sujeito. O que há de mais cruel no neoliberalismo
é o seu fatalismo, o querer se constituir em única possibilidade de sociabilidade em uma
negação brutal da liberdade dos sujeitos para se autoconstituírem e criarem uma nova
realidade sócio-econômica e cultural que seja pautada por relações realmente humanas e
fraternas.
O neoliberalismo leva a educação e o currículo para o pragmatismo extremado
que sacrifica a ética do ser mais e os seus valores ao mercado, que passa a medir e
determinar o que vale ou não, ou que tem ou sentido. Nega-se, enfim, a possibilidade de
os sujeitos se realizarem como tal, na medida em que são desestimulados pela nova
ideologia a acessarem outros sentidos da existência e a investirem em autênticos
projetos de existência contrários à lógica estabelecida e às suas possibilidades.
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6630
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
Referências
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ARENDT, H. A Condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
BEDESCHI, Giuseppe. Marx. Lisboa: Edições 70, 1989.
COSSUTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
FANON, Frantz. Os Condenados da terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
FOLSCHEID, D.: WUNENBERG, J-J. Metodologia filosófica. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Petrópolis: Editora Paz e Terra, 2005.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8ª. Edição. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Nova Cultural, 1982.
HAYEK, F. Caminho da servidão. Porto Alegre: Editora Globo, 1987.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia alemã (Feuerbach). 5ª. Ed. São Paulo:
HUCITEC, 1986.
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6631
Contribuições de Paulo Freire a uma Teoria do Currículo
PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. São Paulo: Graal,
2000.
ZITKOSKI, Jaime José. Paulo Freire e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
Damião Bezerra Oliveira & Salomão Mufarrej Hage
6632
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O COTIDIANO ESCOLAR E A ESTÉTICA DA
EXISTÊNCIA COMO POTÊNCIA PARA A
INVENÇÃO DO CURRÍCULO
Dulcimar Pereira
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
O COTIDIANO ESCOLAR E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA COMO
POTÊNCIA PARA A INVENÇÃO DO CURRÍCULO1
Dulcimar Pereira2
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
RESUMO: O presente estudo busca apresentar as práticas de alunos e alunas
produzindo/inventando currículos, no cotidiano escolar, a partir das maneiras de saber,
fazer e brincar. Assim, buscamos compreender como os alunos e alunas das séries
iniciais de uma escola de ensino fundamental do município de Vitória, ES, tecem seus
conhecimentos entrelaçados com os outros tantos do coletivo em um movimento de
criação curricular. Utilizamos, para a produção dos dados, o “mergulho” (ALVES,
2001) no cotidiano escolar, entendendo-o como potência para a criação, produção e
invenção de possibilidades, discussões, busca de alternativas, fabricação, enfim, como
espaçotempo que potencializa a criação e invenção da vida. Como intercessores teóricos
utilizamos Alves (2001), Certeau (1994), Foucault (2006), Snyders (1993), dentre
outros. Concluímos que, com seus modos de ser, fazer, brincar... e com as linhas de fuga
em relação aos engessamentos dos horários, das regras, das filas, das aulas...alunos e
alunas vão desenhando os currículos a partir das experiências vividas, vão inventando
uma poética e estética da vida na sua relação com si e com o outro.
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano escolar. Currículo. Estética da existência.
Nos corredores da escola...
Uma das minhas estudantes contou-me que, na escola onde ela
leciona, um dos meninos de uns cinco anos foi flagrado pela diretora
em plena disparada pelos corredores. Imediatamente, a autoridade
resolveu exercitar seu poder.
_Rafael, você sabe onde você está? Está numa es-co-la!
_Professora, eu sei que estou num cor-re-dor.
Parou um minuto e completou vitorioso:
_Não é um andador. E seguiu veloz...
(LINHARES; QUELUZ;LINHARES, 2008, p.70)
1
Este trabalho é parte integrante da pesquisa “O cotidiano escolar como comunidade de afetos/afecções
em suas conversações e imagens: cultura, currículo e formação de professores”. Equipe responsável: Profª
Drª Janete Magalhães Carvalho (coordenadora), Dulcimar Pereira (doutoranda), Larissa Rodrigues
(mestranda), Sandra Kretli, (doutoranda), Sandra Machado (mestranda), Tânia Delboni (doutoranda).
Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Agência de Fomento: Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2
Doutorandas em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6638
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
Crianças! Elas sempre têm muito que falar... E como nos surpreendem! É claro
que muitas vezes não são ouvidas, mas encontram maneiras de dizer e de praticar o
espaço onde estão. Na escola, também isso acontece: elas estão durante todo o tempo
cercadas com seus deveres e responsabilidades, mas subvertem essas lógicas e
encontram outras maneiras de ser e estar nesse espaçotempo3 e “[...] continuam seu
velho ofício, reeditado em cada tempo e espaço, girando o mundo ao contrário,
estremecendo velhas maneiras de percebê-lo e intervindo despretenciosa e
repentinamente, virando tudo de ponta-cabeça (LINHARES; QUELUZ;LINHARES,
2008)”.
Dessa maneira, inventam outros currículos e vão incorporando-os às suas
vivências na escola. Segundo (CARVALHO, 2007) o currículo apresenta tanto a
dimensão do vivido como a do concebido (diretrizes, propostas, planos, etc.), no
cotidiano escolar e para além dele. Sendo o concebido e o vivido diferentes faces do
mesmo fenômeno, uma atravessa à outra, envolvendo nesse movimento tanto processos
de normalização, de sujeição, como a produção de movimentos de resistência em seus
saberes, fazeres e poderes.
O ambiente escolar, ainda que sob a égide da disciplina, com o rigor das filas,
dos horários, dos regulamentos, vive outros atravessamentos que incorporam às suas
histórias as táticas (CERTEAU, 1994) de seus praticantes. E as crianças, com as suas
brincadeiras, sejam no pátio, no momento do recreio, ou da sala de aula inventam
currículos que alteram as lógicas da escola e que também proporcionam encontros, a
partir do cuidado de si e do outro, o que Foucault (2006a) chama de uma estética da
existência.
Entendemos que há modos de fazer e de criar conhecimentos diferentes daqueles
instituídos/legitimados pela modernidade, pautados na linearidade e hierarquização de
saberes organizados em um tronco comum. A noção de rede nos ajuda a pensar em uma
outra maneira, em uma arte de tecer saberes e fazeres de conhecimentos e significados
no cotidiano escolar e em tantos outros cotidianos da prática coletiva.
É nessa direção que o presente estudo busca apresentar as práticas de alunos e
alunas produzindo/inventando currículos, no cotidiano escolar, a partir das maneiras de
3
Arte aprendida com Nilda Alves na qual a junção de duas ou mais palavras aproxima, entrelaça e amplia
os seus sentidos.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6639
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
saber, fazer e brincar. Assim, buscamos compreender como os alunos e alunas das séries
iniciais de uma escola de ensino fundamental do município de Vitória, ES, tecem seus
conhecimentos entrelaçados com os outros tantos do coletivo em um movimento de
criação curricular. Utilizamos, para a produção dos dados, o “mergulho” (ALVES,
2001) no cotidiano escolar, entendendo-o como potência para a criação, produção e
invenção de possibilidades, discussões, busca de alternativas, fabricação, enfim, como
espaçotempo que potencializa a criação e invenção da vida.
Pensar o cotidiano e erguê-lo à condição de espaço e tempo
privilegiado de produção da existência e dos conhecimentos, crenças
e valores que a ela dão sentido e direção, considerando-o de modo
complexo e composto de elementos sempre e necessariamente
articulados, implica em não poder dissociar a metodologia em si das
situações estudadas por seu intermédio. Essa talvez seja uma das
forças dessa metodologia, que não coloca como partes distintas as
diversas dimensões que envolvem a pesquisa, ou seja: a teoria e a
prática; os saberes formais e os saberes cotidianos; o modelo social e
a realidade social; os dados relevantes e os irrelevantes
cientificamente; os observadores e os observados; o conteúdo e a
forma, etc (OLIVEIRA, 2002, p. 41).
Acreditamos que a criação curricular se dá em processo, em redes de
conhecimento que são tecidas, entrelaçadas, trançadas com os conhecimentos de outros
tantos sujeitos e seus processos de subjetivação. Entendemos que o cotidiano escolar é
o espaçotempo de uma experiência coletiva em busca de
outras/novas invenções
possibilitando maneiras felizes e expansivas de conviver, de viver com si e com os
outros.
Nas suas artes de fazer (CERTEAU, 1994) os praticantes do cotidiano inventam,
criam, descobrem outras/novas maneiras de usos dos espaçotempos. Assim, mesmo que
a instituição escolar tenha a sua organização espacial, o regulamento que rege sua vida
interior, as atividades organizadas e as diversas pessoas que lá vivem têm suas funções,
lugares e rostos bem definidos, Certeau (1994) nos mostra em suas teorias das práticas
cotidianas maneiras de fazer que produzem outros modos de existir, praticar e
ressignificar o cotidiano escolar.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6640
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
Essas outras formas possíveis de fazer se engendram nesses processos produzindo
outros modos de subjetivação, diferenciados e diversos, que caminham na contra-mão
da hegemonia criando espaços de liberdade em que se inventam outros sujeitos e
maneiras de viver, produzindo uma estética da existência, a partir do cuidado de si e do
outro. Os processos de invenção praticados no cotidiano escolar potencializam saberes e
fazeres em favor da valorização da vida, da criação, da liberdade, da imaginação e da
construção de outros modos de existir que se deslocam ou desviam das ações que os
interrompam.
Assim, entendemos que o cotidiano escolar, em sua complexidade, possibilita a
invenção e a construção de outros modos de existir, de viver e de conhecer, expandindo
a vida para uma estética da existência, baseada no cuidado de si e do outro. Aí está a
potência do cotidiano escolar: intensificar, gerar e transbordar o movimento na/da vida.
A estética da existência como o cuidado de si
Foucault (2006a) parte do conceito do “cuidado de si” para investigar o modo
pelo qual um sujeito pode se constituir analisando-o a partir de práticas que tinham
grande importância na Antigüidade clássica e que têm relação com o que se chamava,
em grego, epiméleia heautoû e, em latim, cura sui.
Segundo Foucault (2006a, p. 4), “epiméleia heautoû “é o cuidado de si mesmo, o
fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc” e na antigüidade, a ética como
prática de liberdade, girou em torno desse imperativo: “cuida-te de ti mesmo”.
Entretanto, o autor admite que a sua escolha em estudar a relação sujeito e verdade a
partir da noção de epiméleia heautoû contraria os princípios básicos e gerais que
costumam orientar a historiografia da filosofia, já que para esta, a questão do
conhecimento do sujeito, do conhecimento do sujeito por ele mesmo foi apresentada
pela expressão “conhece-te a ti mesmo” (em grego, gnôthi seautón). Ele questiona o
fato da filosofia ocidental, ao refazer sua própria história, ter privilegiado o uso do
“conhecimento de si”, desconsiderando e esquecendo a noção do “cuidado de si”.
O cuidado de si, assim entendido, remete não somente ao plano de
intelecção ou do conhecimento _ embora o inclua _, não apenas ao
âmbito das teorias _ embora as justifique _, não somente à ordem da
representação _ embora a fundamente _, mas também ao plano das
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6641
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
atitudes, ao âmbito do olhar, à ordem da práticas, que constituem um
modo de existência (GROS, 2004, p. 9).
Foucault procura potencializar a filosofia como um estilo de vida e não com o
objetivo de descobrir uma verdade (tal como o propõs a racionalidade moderna). Ao
mesmo tempo desvincula a noção de ética às tradições morais: o “bem” e o “mal” não
são contraditórios, entre o um e o outro não há uma lei transcendental que diga o que
cada um deva ser. Como diz Costa (1999, p. 11), a preocupação de Foucault “[...] é
com a ética, com o que rompe as fronteiras das morais vigentes e leva o sujeito a se
transformar, estilizando sua existência na presença do outro”. Problematizar a ética, no
presente, é entendê-la como processo de subjetivação, isto é, de como nos constituímos
como sujeitos de nossas próprias ações. O convite que Foucault nos faz é para que
reflitamos constantemente nossa relação com a verdade, para então, nos questionarmos:
como devemos nos conduzir? É através desse trabalho de problematização que se
modifica nossa relação com a verdade e nossa maneira de nos conduzir.
O “cuidado de si” ou o “rapport à soi” _ relação consigo _ não nos remete a uma
prática individualista, pois, para Foucault trata-se de uma prática social. Na relação
com o si, reside as relações com o outro: “O outro ou outrem é indispensável na prática
de si [...]” (FOUCAULT, 2006a, p. 158). O cuidado de si necessita da presença, da
inserção, da intervenção do outro como relação de si para consigo e para com o outro.
Prática de si que é, ao mesmo tempo, uma prática social, sendo que a dimensão da
prática é sempre política: “A estética da existência, na medida em que ela é uma prática
ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é,
portanto, um gesto eminentemente político” (REVEL, 2005, p. 44).
A ética não consiste em uma proibição, mas numa relação consigo mais criativa
que nos leva à prática da liberdade. A liberdade, para Foucault, são as possibilidades de
ação e é o que potencializa o fazer de nossa vida uma obra de arte. Uma vida criativa e
inventiva, onde haja experimentação de novas formas de afetos, de novas formas de
relacionamento. E como se pode praticar a liberdade? Para Foucault (2006b, p. 267) “a
liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela
liberdade”. A ética é a prática da liberdade.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
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O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
Os alunos e alunas, no cotidiano escolar, são praticantes da cultura de si?
Desejam, anseiam por uma outra estética da existência na invenção de si e do outro
engendrando, inventando novos/outros currículos?
Alguns
movimentos praticados no cotidiano escolar parecem demonstrar a
busca por outros modos de praticar o cotidiano escolar, baseando-se nos espaçostempos
de encontros de si e com o outro, engendrando outras/novas relações de saber, conhecer
e viver.
As brincadeiras, seus espaços e regras próprias4...
Não é por falta de brinquedo
Que a gente vai deixar
De sorrir e cantar com alegria
Não é por falta de brinquedo
Que a gente vai deixar de brincar
Se não tem, a gente cria.
(Brincadeira Barata)5
Hora do recreio. Correrias, gritos, alegrias, brincadeiras, lanches, conversas...
Inicialmente, o que nos chamou a atenção, foi a grande quantidade de meninos sentados
em um elevado (cerca de 50 cm do chão) que fica no pátio coberto da escola. A falta de
um espaço ao ar livre na escola também chama a atenção 6. Os dois únicos espaços
disponíveis para os alunos ficarem no horário do recreio são o pátio coberto e a quadra
de esportes (onde também acontecem as aulas de Educação Física). Aproximamo-nos
dos meninos e perguntamos o que eles estavam fazendo: “Estamos jogando bafo!”,
responderam. Vimos que eles estavam, em duplas, com várias cartas na mão, sendo que
algumas eram colocadas no chão (uma em cima da outra, formando um monte), viradas
para baixo, para que outro colega, ao bater forte no chão com a mão aberta ou com a
mão levemente em "forma de concha", tentasse virá-las pelo avesso. Se o colega
4
Os dados da pesquisa foram produzidos através de observações, conversas, cheiros, toques, idas e vindas
no/do/com o cotidiano escolar e seus praticantes.
5
GUEDES, Hardy. CD Pra cantar na escola.
6
A questão do barulho da e na escola sempre foi uma problemática. As casas vizinhas são muito
próximas e as reclamações do barulho eram constantes. Também o bairro é próximo ao aeroporto o que
também causava problemas para a escola. A cobertura no pátio e na quadra é justificada por essas
situações.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
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O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
conseguisse virar as cartas, ele ficava com elas. Eles jogavam em duplas, um tentando
virar o máximo de cartas para ganhá-las. É preciso fazer muita força. Tentamos jogar,
mas as mãos doem muito, ficam bem vermelhas. As cartas são do “Pokemon” e do “X
Men”, sendo que, conforme um aluno explicou-nos, alguns elementos das cartas (ou
personagens) representam a evolução de outros. Um personagem vai se evoluindo em
vários outros, onde cada um ganha um nome e uma valoração utilizada em outro jogo.
Para esses meninos, o tempo disponível para o recreio é todo usado para o “jogo
do bafo”. Há algumas cartas novas, outras já velhas e amassadas por tantas mãos que já
a pegaram. Perguntamos se eles não se importavam em perder (alguns perdem muitas
cartas, de 15 a 20 em cada jogada) e eles nos explicaram: “Não! Porque a gente pode
ganhar em outras rodadas”. Notamos que há um movimento próprio desses alunos:
ninguém pega cartas a mais, não há brigas, discussões, ninguém se vangloria de ter
ganhado uma quantidade maior de cartas. O movimento do jogo é o que importa, é a
relação que se estabelece no espaçotempo do cotidiano escolar, que potencializa
encontros, amizades e mais brincadeiras mesmo sendo em um espaço físico exíguo. As
professoras nos disseram que até na sala de aula eles pedem para jogar: “Professora,
depois que eu terminar o dever eu posso jogar?”. Elas disseram que é “a febre do
momento”.
As meninas não participam do jogo com os meninos. É como se aquele “terreno”
(tanto o jogo quanto o espaço físico) fosse exclusivo para os meninos. Quando algumas
alunas nos viram fotografando os jogos, elas começaram a se aproximar: “Tia, deixa eu
ver.”. “Tia, tira foto da gente!”. “Tia, ficou bom?”. Sentimos uma aproximação com as
crianças das séries iniciais. Elas querem conversar, perguntam sobre nós, o que estamos
fazendo na escola, ficam “grudadas”, próximas, mexem com os nossos cabelos, tocamnos. Bem, já que elas não jogam bafo, perguntamos o que elas mais gostavam de fazer
na hora do recreio. A resposta foi: “Brincamos de pique pega”. Mas, logo a conversa se
estendeu: “Tem também: pique alto que, para a pessoa não ser pega, ela deve subir em
algum lugar mais alto que o chão; pique baixo onde a pessoa deve se abaixar para não
ser pega); pique fruta que, ao ser pega, a pessoa deve dizer o nome de uma fruta; pique
parede, onde a pessoa deve encostar a mão na parede para não ser pega;, pique
esconde, onde a pessoa se esconde para não ser pega;, pique gelo, onde a pessoa deve
ficar igual uma estátua, sem se mexer”. Perguntamos também qual o local da escola
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6644
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
que elas mais gostam de ficar: “A quadra! Porque a gente pode brincar de pular corda,
de bola, de queimada... “.
Nessas brincadeiras praticadas e inventadas no pátio ou na quadra, elas vão
promovendo encontros (também desencontros!), mas produzindo os currículos da escola
através do que aprendem, vivem e usam.
O recreio, os cheiros, as burlas...
Assim que o sinal bate às 15h30 os vão alunos saindo das salas e seguindo direto
para a fila no refeitório. Ou melhor, eles vão iniciando uma fila, já que ainda não havia
ninguém ali. Após alguns poucos minutos já há um grande número de alunos dispostos
um atrás e, algumas vezes, ao lado de outro/s. Dentre as regras do refeitório, eles já
sabem também que para repetir a merenda só depois de todos terem sido servidos uma
vez.
“Qual será a merenda de hoje?”, perguntamo-nos. Era macarrão a bolonhesa com
salada de alface. Que cheiro bom vem da cozinha!!... Mas... e que cheiro de fritura é
esse? Hoje é terça-feira, dia de feira na rua da escola! Há também um cheiro que vem de
fora e que compete com o da merenda da escola: Uma barraca que fica na direção da
entrada da escola e onde é vendido pastel com caldo de cana. Mas fritura, refrigerante,
maionese, presunto, catchup.... Com certeza não fazem parte de um cardápio orientado
por um profissional da área de Nutrição. Nessa escola, a alimentação servida para as
crianças é orientada por uma nutricionista da Secretaria de Educação e esse tipo de
alimento definitivamente não entra. Não mesmo?!
Em uma das idas e vindas na escola, vimos várias alunas comendo pastel com caldo de
cana, no horário do recreio, mas não sabíamos como elas tiveram acesso ao lado de fora
da escola, já que há dois portões para serem vencidos, além do/a agente de vigilância
que controla a entrada e a saída. Perguntamos à coordenadora como as alunas
compravam o lanche, se alguma pessoa da feira vinha vender no portão da escola, etc.
Ela nos respondeu que era proibida a venda desse lanche na escola, pois pastel é fritura
e ainda mais aqueles que contém presunto que é vetado pela nutricionista da SEME7:
“Se a equipe de nutrição vir isso, dá até processo contra nós”. Mas, ela disse: “Se
7
SEME - Secretaria Municipal de Educação.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6645
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
alguma mãe, ao trazer os filhos para a escola, compra o lanche, não podemos fazer
nada”. Dizendo isso, a coordenadora saiu e nos deixou à procura de mais respostas para
nossas indagações.
Como havia vários alunos e alunas comendo pastel com caldo de cana, ficamos
instigadas para saber como conseguiram. Para a nossa surpresa, alguns falaram: “A
professora de Artes foi lá na barraca e eu pedi para comprar para mim”. E ainda: “A
avó da minha amiga toda a terça-feira traz para ela e eu peço também para mim”. A
tática é a seguinte: os alunos levam o dinheiro para a escola e assim que aparece alguém
“disponível”, eles pedem para comprar o lanche para eles. Quanta criatividade! Assim,
os praticantes do cotidiano escolar utilizam-se de desvios, burlas, para inventar outros
modos de viver, para além dos valores, fazeres e saberes determinados e normalizados
pela escola. Além da merenda da escola (macarrão com salada) e do pastel com caldo
da feira na rua da escola, há outras guloseimas que os alunos consomem e compram na
cantina: biscoito de polvilho, picolé, misto quente. E há os que trazem de casa: barra de
cereal, biscoito doce, mini-bolinho, maçã e o “chips”. Mas também há o que é
“conquistado”: nesse dia, junto a um aluno que estava com um pacote de “chips”, três
colegas estavam seguindo-o tentando abocanhar algumas porções.
As cores, os cheiros e os sabores do recreio também são variados e são
compostos pelas táticas das crianças e das suas maneiras de viver a escola e seus
espaçostempos.
A “caverna”, os encontros, as confidências...
Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades [...]
ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum. (NUNES,
2002)
A “caverna” é um espaço debaixo da escada que dá acesso às salas de aula do
segundo andar. É muito disputado no horário do recreio, apesar de ser impossível ficar
em pé ali. Como fica embaixo da escada, o vão entre o chão e a estrutura da escada deve
ter, aproximadamente, 70 centímetros. É ali também que nos intervalos entre as
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6646
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
atividades, os alunos do tempo integral8 refugiam-se, trocam segredos, sentem-se mais à
vontade.
Quando indagados sobre o que de “bom” havia ali na “caverna”, os alunos
respondem: “É o lugar da solidão [abaixa a cabeça com vergonha], da paixão, dos
recadinhos(risos), dos lero-leros, das fofocas, das Anas-Carolinas, dos beijos, não
escreve isso não, em tia. É uma verdadeira cama, tem gente que até dorme”.
Como eles mesmos disseram, a “caverna” é um espaço praticado que as crianças vão
incorporando aos seus currículos tecidos no cotidiano escolar. É um lugar onde só eles
entram, é lugar de encontros, de confidências. É a possibilidade de ficar “fora” da
confusão, da correria dos outros alunos e “dentro” de si, habitado por tantos outros. É
um lugar onde não se é visto por todos, mas por si próprio. Na “caverna” a tessitura dos
currículos dá-se por meio do entrelaçamento das redes de conversações (CARVALHO,
2008) vividas pelos alunos, na escuta, no silêncio, no toque, na fala... na solidão sozinha
e conjunta.
Enfim, dos movimentos praticados: currículos produzidos pelas crianças
O cotidiano escolar praticado pelas crianças dessa escola e as maneiras como
vão encontrando maneiras não só de burlar, mas de buscar na relação com outros a
estética da existência, potencializa entre e para elas momentos felizes. Nesse sentido,
Snyders (2001) ressalta a importância de dar visibilidade aos fragmentos felizes
existentes na escola, contrapondo a visão de unidade de ensino desprovida de prazer, de
beleza, de alegria. Nesse sentido, afirma que
[...] gostaria de uma escola onde a criança não tivesse que saltar as
alegrias da infância, apressando-se, em fatos e pensamentos, rumo à
idade adulta, mas onde pudesse apreciar em sua especificidade os
diferentes momentos de suas idades (SNYDERS, 2001, p. 29).
Assim, com seus modos de ser, fazer, brincar... e com as linhas de fuga em
relação aos engessamentos dos horários, das regras, das filas, das aulas...alunos e alunas
vão desenhando os currículos a partir das experiências vividas, vão inventando uma
8
Programa de Educação em Tempo Integral: instituído pelo governo do município em algumas escolas a
partir do ano de 2007. Os alunos atendidos são aqueles considerados em situação de “risco social”. Nas
escolas participantes há uma média de 40 alunos por turno que além das aulas regulares, têm a jornada
diária ampliada, almoçam e realizam atividades dentro e fora da escola.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6647
O Cotidiano Escolar e a Estética da Existência como Potência para a Invenção do Currículo
poética e estética da vida na sua relação com si e com o outro. O cotidiano escolar com
os seus atravessamentos, sua complexidade e multiplicidade potencializa a ação,
invenção e criação de currículos.
O cuidado de si não significa a possibilidade de descobrirmos a nós mesmos,
mas sim a possibilidade de criarmos novos/outros processos de subjetivação. Antes de
ser um encontro, a subjetividade implica movimentos de processos inventivos. Trata-se,
assim, de produzir, criar, inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida,
novos modos de relações, novas formas de vida que potencializam nosso viver numa ou
para uma obra de arte, na vida cotidiana, na ação de relação, do estar junto, na
problematização de nossos processos de subjetivação questionando o que temos feito de
nós mesmos para, então, engendrarmos diferentes formas de ser e estar no mundo em
outros/novos processos de subjetivação que nos constitui.
Referências
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SNYDERS, George. Alunos Felizes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
Dulcimar Pereira & Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
6649
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE
LEITURA E ESCRITA NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO ESTADO DO PARÁ
Gilson Rocha de Oliveira
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESTADO DO PARÁ
Gilson Rocha de Oliveira
RESUMO: Os jogos de RPG se amalgamam harmoniosamente às práticas de leitura,
escrita e pesquisa, criando empatia de crianças e adolescentes por esses hábitos. E sendo
este estudo embasado em pesquisas bibliográficas específicas e também de campo,
relacionadas no que tange a formação de professores no Estado do Pará, está sendo
constatado o súbito interesse pela leitura, escrita e pesquisa de alunos que tiveram
contato com os jogos de RPG mesclados aos conteúdos de sala de aula, gerando
resultados satisfatórios e surpreendentes por professores que desconheciam a
possibilidade.
PALAVRAS-CHAVE: RPG. Narração. Educação.
A PESQUISA
A falta de interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa,
fundamentais em todo alicerce da construção do conhecimento de cada indivíduo, é um
fato que educadores encontram em alguns de seus alunos. Conforme Nóvoa (2008) não
existe um ato de vontade de estar na escola por parte dos alunos, mas uma obrigação
social e familiar. Entretanto, se a escola se ressente do descaso juvenil pela educação, os
jovens por sua vez consideram a escola um lugar tedioso e a educação sem significado,
uma vez que ela ainda está atrelada a um princípio educativo centrado em conteúdos
desvinculados da realidade concreta vivenciada cotidianamente pelos jovens e de suas
culturas. “Para os jovens, a escola se mostra distante dos seus interesses, reduzida a um
cotidiano enfadonho, com professores que pouco acrescentam à sua formação,
tornando-se cada vez mais uma “obrigação” necessária, tendo em vista a necessidade
dos diplomas” (DAYRELL, 2003). Dessa forma, muitas vezes a evasão escolar tem sido
precedida de uma silenciosa evasão da “presença” por inteiro do jovem na escola, ou
Gilson Rocha de Oliveira
6653
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
seja, mesmo antes de abandonarem a escola, eles já não se interessam por ela, e passam
a frequentá-la por obrigação.
Isso se torna mais grave nas práticas da leitura, escrita e pesquisa, já que
são necessárias a todas as demais disciplinas. Os educadores ainda competem com todo
o tipo de distração moderna que variam pelo poder aquisitivo, mas podem ser
encontradas em diversos níveis de intensidade: computador, acesso à internet, aparelho
de videogame, tocador de música em formato digital e telefone celular, para citar os
mais evidentes, que roubam a atenção e dedicação dos alunos de forma desigual quando
comparados à escola.
Os jogos de RPG (role playing game; jogo de interpretação) conseguem
transformar em alguns alunos a repulsa e resistência às práticas de leitura, escrita e
pesquisa em desejo e paixão, onde elas ganham importância fundamental e são levadas
para uma gradativa melhoria espontaneamente onde a produção literária e a busca por
informações em leituras tornam-se evidentemente intensas.
RPG é uma atividade oral que requer fontes diversas para fomentar as
criações dos jogadores. Como instrumentos os participantes usam livros, blocos de
anotações, lápis e, sobretudo, imaginação. Um jogador chamado ‘narrador’ tem a
função de apresentar ao grupo uma história, uma aventura contendo enigmas, situações
e conflitos que exigirão escolhas por partes dos jogadores, além do uso de dados que
acrescentam o fator sorte. Os jogadores são participantes ativos, que como atores
representam um papel e, como roteiristas, escolhem caminhos e tomam decisões nem
sempre previstas pelo narrador, contribuindo na recriação constante e ininterrupta da
aventura. (BRAGA, 2000). No RPG ninguém ganha, ninguém perde e ninguém
compete. O objetivo é participar da história proposta pelo narrador de forma
cooperativa.
O uso dos jogos de RPG como ferramenta educativa vem sendo pleiteado
por jogadores, editores, autores e educadores que já tiveram contato com esta
modalidade de jogo, onde o aluno é transformado em construtor do conhecimento e
numa figura ativa em vez de passiva, através da narrativa oral e dos registros pela
prática da escrita (PAVÃO, 2000), seja amalgamando aos conteúdos da sala de aula,
dentro ou fora dela, ou usando temáticas diversas, ampliando o contato com diversas
fontes culturais.
Gilson Rocha de Oliveira
6654
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
A inserção do RPG amalgamado ao conteúdo da sala de aula transforma
a construção de narrativas orais e escritas em algo prazeroso e profundo para crianças e
jovens.
O RPG surgiu em meados dos anos 70 nos Estados Unidos e ganhou o
mundo na década de 90, chegando ao Brasil por volta de 1991. Primeiramente inspirado
nas histórias fantásticas de J.R.R. Tolkien, autor de livros como O Hobbit e O Senhor
dos Anéis, obras transportadas para os cinemas1 que fascinam e conquistam fãs, depois
as criações se inspiraram em super heróis, na ficção científica, mitologia, filmes e em
muitas outras fontes, mas foi com os ambientes históricos que a linha entre diversão e
educação tornou-se positivamente tênue.
Fazendo parte da cultura de uma parcela de crianças, jovens e até de
adultos de várias partes do mundo e do Brasil, o RPG é um jogo prazeroso,
significativo, uma atividade lúdica que visa apenas o entretenimento e faz parte das
novas formas de manifestação da cultura contemporânea, que possibilitam outras
formas de acesso ao conhecimento e novas maneiras de compreensão do sentido da
escola, pois tem uma base formativa como mostra pesquisas já realizadas sobre RPG e
educação (BRAGA, 2000; PAVÃO, 2000; RODRIGUES, 2004). Todavia, para que o
RPG se transforme numa ferramenta que contribua para o incentivo à leitura por meio
de um processo de ensino-aprendizagem significativo na escola, os professores
precisam conhecer a culturas juvenis e valorizá-las, em especial o RPG como parte
dessa cultura em construção no século XXI.
A sociedade contemporânea tem incorporado os direitos da juventude em
políticas públicas de saúde, educação, trabalho, mas quando se trata de cultura e da
relação desta com a educação ainda são incipientes as experiências positivas de
articulação entre essas duas dimensões, sobretudo na escola. Para Pérez Gómez (1993),
a escola deve ser considerada um espaço de cruzamento de culturas: da cultura social,
acadêmica, crítica, institucional e experiencial. Porém para que haja esse cruzamento é
necessário uma formação de professores que valorize as diferentes culturas juvenis,
incluindo os jogos de RPG, que vem fomentando as práticas de leitura, escrita e
pesquisa por aqueles que conhecem o jogo.
1
Filme O Hobbit em duas partes previsto para 2011 e 2012.
Gilson Rocha de Oliveira
6655
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
Jovens se reúnem em espaços públicos ou reservados para jogar RPG,
geralmente nos finais de semana, formando grupos fixos ou aleatórios, conhecendo
outros jogadores, interagindo e se socializando. No Estado do Pará essa é uma
experiência inédita de aplicação do RPG na educação. Uma das possibilidades
educativas, pedagógicas e didáticas é a utilização do RPG como uma metodologia
lúdica em diferentes disciplinas, conteúdos, assuntos e discussões como demonstram
Marcatto (1996) e Riyis (2004). De forma interdisciplinar, o RPG pode ser utilizado na
construção de narrativas, o que envolve as habilidades de leitura, escrita e pesquisa,
visando o aumento de interesse por essas práticas.
Os professores precisam de formação continuada que lhes permitam
refletir sobre sua atuação docente, sobre o processo ensino-aprendizagem, as culturas
juvenis, entre outros temas. Com os novos tempos de tecnologias, disseminadas por
muitas camadas sociais, a educação deve adaptar-se aos novos tempos com a
capacidade de tornar as aprendizagens mais ricas e significativas para os alunos
(MORGADO, 2004).
Os importantes desafios que hoje se colocam a nível curricular
carecem de professores com capacidades de iniciativa e de decisão,
não só em termos de gestão curricular, mas também no domínio da
concepção de projectos, do recurso a metodologias inovadoras e a
estilos de ensino que lhes permitam adaptar os processos de ensinoaprendizagem às características, interesses, motivações e ritmos de
aprendizagem dos alunos com que trabalham (MORGADO, 2004, p.
131).
Nesse sentido, pensando no aumento do interesse de jovens pela escola
por meio de um processo de ensino-aprendizagem significativo e prazeroso é que
pesquiso uma das manifestações das culturas juvenis, o RPG, na formação dos
professores como fomentador do interesse das práticas de leitura, escrita e pesquisa.
Dessa forma, podemos contribuir para que a escola valorize as culturas juvenis e para
que a educação seja valorizada pelos jovens.
A relevância social e acadêmica dessa pesquisa está na possibilidade
desta se transformar num projeto alternativo de formação de professores que promova o
interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola, não apenas
em termos de acesso à escola, mas de permanência com sucesso, motivação e interesse
Gilson Rocha de Oliveira
6656
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
pela educação que precisa ser um processo prazeroso, criativo, crítico e marcado pela
diversidade que está presente na região amazônica.
Ao pretender ressignificar a formação de professores para promover a
criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola
por meio do RPG, esta se configura numa pesquisa inédita no Estado do Pará e que tem
também uma relevância pessoal, no que tange o gosto pelo RPG e as inquietações em
relação à educação nas escolas públicas no Estado do Pará.
PROBLEMA
Analisar a formação de professores tendo em vista a criação do interesse
pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude por meio do RPG exige que
problematizemos a concepção de formação presente na literatura corrente e na escola,
ainda considerado um espaço tradicional de controle e disciplina que, às vezes, se torna
um ambiente estranho para os alunos, especialmente para os jovens. A sensação de
insatisfação de ter que frequentá-la decorre em muitos casos pela escola excluir de seus
espaços múltiplos as culturas dos jovens, o que se configura numa exclusão da própria
juventude. Como alternativa a esse problema que envolve a formação de professores, a
juventude, a criação do interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa e a escola, é
que me empenho nesta pesquisa sobre a criação do interesse pelas práticas de leitura,
escrita e pesquisa por crianças e principalmente jovens, através dos jogos de RPG.
E dadas as várias perspectivas da formação de professores, que vem
sendo amplamente discutidas há anos por diversos docentes dos mais diversos países,
que observam as mudanças do mundo, da profissão, do ambiente escolar, dos aspectos
políticos e dos próprios estudantes, é que considero a cultura juvenil dos jogos de RPG
como uma das possibilidades pedagógicas para a criação do interesse pelas práticas de
leitura, escrita e pesquisa.
Mas para que haja a possibilidade de criação do interesse pelas práticas
de leitura, escrita e pesquisa por meio do RPG, os professores precisam ressignificar sua
concepção de pedagogia.
Gilson Rocha de Oliveira
6657
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
Os professores/as devem ampliar a definição de pedagogia a fim de ir
além de uma limitada ênfase no domínio de técnicas e metodologias.
Isto capacitaria os/as estudantes a compreender a pedagogia como
uma configuração de práticas textuais, verbais e visuais que objetivam
discutir os processos através dos quais as pessoas compreendam a si
próprias e as possíveis formas pelas quais elas interagem com outras
pessoas e seu ambiente (GIROUX, 1995, p. 85-103).
Sendo assim, a pedagogia amplia seu domínio para além dos conteúdos e
metodologias formais consagrados pela escola tradicional e encontra elementos para
lidar com a competição que a escola e os educadores enfrentam com todo o tipo de
distração moderna que variam pelo poder aquisitivo, mas podem ser encontradas em
diversos níveis de intensidade: computador, internet, aparelho de videogame, tocador
portátil de música e telefone celular entre outros, que roubam a atenção e dedicação dos
alunos, dentro e fora da sala de aula, de forma desigual quando comparados à escola.
No que tange os jogos de RPG, sendo uma atividade lúdica que faz parte
da cultura de uma parcela juvenil e com ramificações de possibilidades em agregar
vários outros interesses juvenis, fica mais fácil construir a ponte entre o interesse e sua
cultura inserida na sala de aula. Como artefato cultural e ferramenta de construção da
linguagem, da leitura, da escrita e textualidade, os jogos de RPG conseguem
transformar a repulsa e resistência às práticas de leitura, pesquisa e escrita em desejo e
paixão, fazendo com que estas experiências ganhem importância fundamental e
contribuam com uma espontânea e gradativa valorização da educação, onde a produção
de narrativas e a busca por informações tornam-se evidentemente
Dessa forma, é preciso problematizar essas interfaces, o que faço a partir
das seguintes questões: como a formação de professores pode ser ressignificada de
forma que compreenda o RPG como recurso pedagógico e didático que proporcione o
interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa dos jovens na escola? Ainda
elenco as questões norteadoras seguintes: Quais as concepções de formação de
professores na literatura corrente que podem contribuir para a valorização das
culturas juvenis na escola?; Quais as configurações da juventude na atualidade e suas
culturas?; De que formas o RPG pode contribuir com a valorização das culturas
juvenis?; De que formas o RPG pode contribuir com a inclusão social da juventude na
escola, por meio da valorização das culturas juvenis?
Gilson Rocha de Oliveira
6658
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
Esses questionamentos possibilitarão a articulação entre formação de
professores, interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa, inclusão social da
juventude na escola e RPG, proposta na pesquisa, almejando atingir os objetivos abaixo
relacionados.
OBJETIVOS
Geral
 Analisar como a formação de professores pode ser ressignificada de forma que
compreenda o RPG como recurso pedagógico e didático que proporcione o
interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa dos jovens na escola;
Específicos
 Mapear as concepções de formação de professores presentes na literatura
corrente que podem contribuir para a valorização das culturas juvenis na escola;
 Compreender as configurações da juventude na atualidade e suas culturas;
 Entender as potencialidades pedagógicas e didáticas do RPG;
 Analisar as formas que o RPG pode contribuir com o interesse pelas práticas de
leitura, escrita e pesquisa da juventude na escola, por meio da valorização das
culturas juvenis.
METODOLOGIA
A produção de conhecimento na área de educação exige um enfoque de
pesquisa que favoreça a crítica, a reflexão e a análise das questões educacionais de
forma que contribua para a superação dos problemas enfrentados na realidade brasileira
e amazônica. Assim sendo, para pesquisar “OS JOGOS DE RPG E AS PRÁTICAS DE
LEITURA E ESCRITA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESTADO DO
PARÁ” faz-se necessário uma abordagem qualitativa que permita uma atitude
investigativa que dá ênfase à dinâmica histórica e social que constrói o sujeito
Gilson Rocha de Oliveira
6659
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
cognoscente, na busca da compreensão do mundo e da explicação dos fatos. Assim, as
abordagens qualitativas primam por métodos que podem captar dados que se prestam à
análise da ação social, pois “Os métodos qualitativos enfatizam as especialidades de um
fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser” (HAGUETTE, 2000, p. 63).
A
partir
do
enfoque
qualitativo,
realizo
a
investigação
dos
questionamentos levantados, por meio de uma pesquisa bibliográfica enfocando os
temas de formação de professores, o interesse pelas práticas de leitura, escrita e
pesquisa, juventude e suas culturas e RPG.
A pesquisa bibliográfica, teórica ou estudos exploratórios “[...] permitem
ao investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema”
(TRIVIÑOS, 1987, p. 109), assim como permite uma compreensão maior de uma teoria
a partir da análise, reflexão e crítica do referencial teórico que orienta a pesquisa, o que
desmistifica sua aparente simplicidade e fragilidade científica e confere credibilidade à
pesquisa (RIBEIRO, 2004).
O levantamento inicial sobre os eixos de análise dessa proposta de
pesquisa assinala a possibilidade da mesma, uma vez que esses temas tem sido
pesquisados sob diferentes perspectivas teórico-metodológicas, mas sua articulação
ainda não fora realizada, sobretudo pelo preconceito que se tem na escola e na formação
docente em relação às culturas juvenis. Sobre formação de professores, os estudos das
últimas décadas apontam em muitas direções, para as mais diversas possibilidades, com
destaques para identidade e profissionalização docente, formação inicial e formação
continuada, que são observadas em diversos trabalhos, artigos e publicações
(ROLDÃO, 2007; FREITAS, 2004; NÓVOA, 1992). Sobre juventude as pesquisas
assinalam para sua pluralidade, não sendo possível falar de uma juventude nacional ou
amazônica, mas de múltiplas juventudes nos diferentes espaços sócio-culturais
(DAYRELL, 2003). Sobre RPG e sobre RPG e educação as pesquisas tem se
concentrado no centro-sul do país, o que não impede que pensemos em sua inclusão na
realidade amazônica (BRAGA, 2000; HIGUCHI, 2000; MARCATTO, 1996; PAVÃO,
2000; RIYIS, 2004).
Articulando essas dimensões, é possível pensar numa formação de
professores que vise o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa da juventude
na escola, a partir da valorização das culturas juvenis, aqui representada pelo RPG, um
Gilson Rocha de Oliveira
6660
Os Jogos de RPG e as Práticas de Leitura e Escrita na Formação de Professores no Estado do Pará
jogo que faz parte da vida de grande parte da juventude no ambiente extra-escolar, mas
poderia adentrar os muros escolares e a sala de aula para tornar a educação escolar mais
prazerosa e significativa para a juventude. A formação de professores precisa estar em
constante movimentação e compreendendo o espaço que o rodeia, englobando o que
seus alunos vivenciam como cultura, onde também encontramos os jogos de RPG. Por
este ponto o interesse pelas práticas de leitura, escrita e pesquisa deve iniciar por quem
já está neste universo, os professores, entrando em sintonia com seu público - os alunos
- e sua gama de fontes e referências culturais que é vital para um processo de conquista,
de valorização da educação escolar pelos alunos.
Como assinalei anteriormente, na pesquisa teórica/bibliográfica a análise,
a crítica e a reflexão assumem um papel fundamental, o que exige inicialmente uma
revisão da literatura a ser utilizada no desenvolvimento da mesma, no intuito de
perceber o que já foi pesquisado sobre a temática em discussão. A bibliografia utilizada
nesta pesquisa em andamento é formada por livros (em língua portuguesa e/ou inglês),
revistas e periódicos especializados que tratam do tema em discussão e observações de
campo. Após a revisão teórica da bibliografia, realizarei a documentação bibliográfica
que permite a triagem de informações importantes nas obras escolhidas e facilita a
localização das informações para se proceder a crítica e a reflexão (SEVERINO, 2002).
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Gilson Rocha de Oliveira
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Gilson Rocha de Oliveira
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
PERFIS DA CULTURA ESCOLAR
Idelsuíte de Sousa Lima
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Perfis da Cultura Escolar
PERFIS DA CULTURA ESCOLAR
Idelsuíte de Sousa Lima
RESUMO: A cultura escolar como objeto de investigação científica evidencia
configurações da internalidade da escola no desenvolvimento do processo de
escolarização. Este trabalho apresenta um estudo sobre culturas escolares reveladas na
literatura e em uma pesquisa sobre práticas culturais incorporadas e manifestadas na
instituição escolar. O artigo está organizado em duas partes. Na primeira, apresenta
uma discussão acerca de definições da cultura escolar e da difusão de idéias de autores
mais utilizadas pelo campo. Na segunda parte, sublinha indícios que conferem às
fontes documentais o estatuto de reveladoras das culturas escolares e destaca aspectos
identificados nos registros ordinários da escola.
PALAVRAS-CHAVE: culturas escolares – fontes documentais - práticas culturais.
Introdução
Este estudo coloca em foco a apreensão da cultura escolar como objeto de investigação
para o campo do currículo. O uso recorrente do conceito de cultura escolar nas
pesquisas históricas evidencia também a sua potencialidade para análise de processos de
construção histórica do currículo escolar.
A investigação sobre cultura escolar busca compreender práticas e processos educativos
que acontecem em um espaço específico de organização e distribuição do conhecimento
e, por isso, relacionados a decisões e articulações impulsionadas pelas políticas e
práticas curriculares.
A organização e o funcionamento da escola compõem uma multiplicidade de traços
culturais, caracteres e valores que estão na base da cultura da instituição,
representados, de acordo com Viñao Frago (2000), por inúmeros elementos
Idelsuíte de Sousa Lima
6664
Perfis da Cultura Escolar
constituidores das culturas escolares, tais como, o papel desempenhado pelos
professores e alunos, os modos de comunicação, as formas de distribuição do espaço,
as práticas cotidianas, os comportamentos dos sujeitos, as concepções e modos de
organizar o ensino, bem como as definições e proposições que permeiam a escola.
O presente estudo contempla uma discussão acerca de definições da cultura escolar e
da difusão de idéias de autores mais utilizadas pelo campo, e discorre sobre o
intramuro de uma instituição escolar, no processo de produção de uma cultura
entrelaçada no desenvolvimento curricular da escola.
Situando a cultura escolar
A cultura escolar como campo de investigação tem sido apropriada pela área da
História da Educação em virtude da sua especificidade com a narrativa histórica e pelo
exercício do levantamento documental que sua pertinente elaboração exige. Nesse
sentido, o desvendamento de questões históricas acerca da constituição do
conhecimento escolar também potencializa a sua especificidade como categoria de
análise e campo de investigação nos estudos da história do currículo.
Os estudos que tomam como referência os pressupostos da cultura escolar inauguram
uma riqueza de elaboração e potencialidade para a apreensão de questões da
internalidade da escola. Tais estudos, ainda que recentes no Brasil, conferem ao
campo um aprofundamento epistemológico, além de alternativas de reelaboração de
definições (Nunes, 1992; Faria Filho, 2004) e análise da interpenetração de políticas e
práticas curriculares (Souza, 2000; 2005; Lima, 2006).
A emergência teórica sobre a cultura escolar tem impulsionado estudos de
historiadores da educação e de educadores preocupados com o cotidiano da escola
numa perspectiva histórica. Em termos de publicação de referência, o artigo do
francês Dominique Julia denominado ‘A cultura escolar como objeto histórico’,
traduzido e publicado na Revista Brasileira de História da Educação, em 2001, tem
recorrente citação na maioria dos estudos sobre cultura escolar. Tal artigo, publicado
Idelsuíte de Sousa Lima
6665
Perfis da Cultura Escolar
originalmente na Revista Paedagógica Histórica, em 1995, contrapõe-se à idéia da
reprodutividade da escola, apontando possibilidades de estudos voltados para o
interior das instituições de ensino, indicando elementos para desvendar a ‘caixa-preta’
da escola.
O texto de Julia (2001) além de indicar a possibilidade de ampliação das fontes, no
sentido de recontextualizá-las, coloca em destaque a necessidade de não exagerar o
silêncio existente nos arquivos escolares, de modo a entender o funcionamento interno
da escola, seus hábitos, comportamentos, práticas e manifestações.
Ainda que o texto do autor citado referencie parte das publicações brasileiras, a
discussão em torno da cultura escolar é antecipada por outros autores. Em artigo
publicado na Revista da USP, em 1991, denominado ‘Cultura escolar brasileira: um
programa de pesquisa’, José Mário Pires Azanha propunha a realização de uma análise
das políticas públicas no desenvolvimento das práticas escolares, colocando em relevo
a constituição histórico-social da escola na realização de sua função cultural.
Outros textos, como o de André Chervel denominado ‘história das disciplinas
escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa’, publicado em 1990 na Revista
Teoria e Educação, colocam em epígrafe a escola como produtora de cultura, no
engendramento de suas atribuições. O texto de Jean Claude Forquin, resultante de sua
tese de doutorado, em 1987, somente publicada no Brasil em 1993, sob o título Escola
e Cultura constitui-se em um texto clássico para a discussão sobre a cultura escolar.
Nesta obra e em artigo publicado na Revista Teoria e Educação em 1992, denominado
'Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais’, o autor caracteriza a
cultura escolar como seletiva e utiliza-se da metáfora da bricolagem para afirmar que
a escola não transmite uma cultura. Para Forquin (1993:15):
a escola transmite, no máximo, algo da cultura, elementos da cultura,
entre os quais não há forçosamente homogeneidade que podem porvir
de fontes diversas, ser de épocas diferentes, obedecer a princípios de
produção e lógicas de desenvolvimento heterogêneas e não recorrer aos
mesmos procedimentos de legitimação.
Idelsuíte de Sousa Lima
6666
Perfis da Cultura Escolar
Seguindo a lógica de entendimento da escola como produtora de cultura, Antonio
Viñao Frago em artigo publicado na Revista Brasileira de Educação, denominado
‘Historia de la educación e historia cultural’, em 1995, e no artigo intitulado ‘Culturas
escolares’ defende essa categoria de análise para entender práticas instauradas no
interior da escola. Para Viñao Frago (1995) os elementos constituidores da cultura
escolar perpassam desde aspectos institucionais, organizativos, curriculares até
distribuição dos espaços, discursos, comunicações, processos de formação,
desempenho.
De forma mais elaborada, Viñao Frago e Escolano, em 1998, na obra ‘Currículo,
espaço e subjetividade’, traduzida e publicada no Brasil pela editora DP&A, em 2001
destacam a não neutralidade dos espaços e tempos escolares e reforçam a idéia de que
o espaço educa. Sublinham o espaço escolar como constituidor de corporeidades dos
sujeitos escolares na materialidade da aprendizagem espacial e motora.
A partir da influência dos autores citados ou não, despontam, no Brasil, inúmeras
pesquisas centradas na análise da cultura escolar. Em 2000, o Cadernos Cedes dedicou
uma de suas edições a uma coletânea de artigos de vários pesquisadores sob o título
‘Cultura escolar: história, práticas e representações’ e em 2005 a Revista Pro-posições
edita um dossiê dedicado à questão. A temática cultura escolar também foi objeto de
discussão do II Congresso Brasileiro de História da Educação, cujos textos
compuseram a obra ‘Escola, culturas e saberes’, publicada em 2005, pela editora da
Fundação Getúlio Vargas. Em 2003, foi realizado na UNESP de Araraquara o I
Seminário sobre cultura escolar, cujos textos organizados por Rosa Fátima de Sousa e
Vera Tereza Valdemarin compuseram a obra ‘A cultura escolar em debate’, publicada
pela editora Autores Associados, em 2005. Inúmeros textos sobre cultura escolar têm
sido publicados mais recentemente, em livros e períodos de destaque, o que demonstra
a sua fertilidade, seja como categoria de análise, seja como campo de investigação.
A cultura escolar tem sido apresentada sob diversas perspectivas e várias são acepções
a respeito da sua abordagem, cujo inventário realizado por Viñao Frago (2000) acentua
as marcas de um campo de estudos em formação.
Idelsuíte de Sousa Lima
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Perfis da Cultura Escolar
Forquin (1993) ao apresentar uma distinção tênue entre cultura da escola e cultura
escolar, entende a primeira na correlação com a cultura de outros espaços, com
características de vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seus modos
próprios de gestão. Para o referido autor a cultura escolar define-se como “o conjunto de
conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, ‘normalizados’,
‘rotinizados’, sob o efeitos dos imperativos da didatização, constituem habitualmente o
objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas (FORQUIN, 1993:167).
Numa interpretação mais aprimorada o próprio Forquin (1992:35), em texto escrito
posteriormente, reconhece que é preciso ir mais longe e adverte para a necessidade de a
escola ser pensada “como produtora ou criadora de configurações cognitivas e de
habitus originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura
sui generis’.
A conceituação apresentada por Julia (2001: 10) define a cultura escolar como sendo:
o conjunto de normas de definem os conhecimentos a ensinar e as
condutas a inculcar e, um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas, as finalidades religiosas,
sociopolíticas ou simplesmente de socialização. Normas e práticas não
podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional, os
agentes que são obrigados a obedecer a essas normas e, portanto, a pôr
em obra os dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar a sua
aplicação, a saber, os professores.
Essa formulação voltada para o processo de transmissão cultural coloca o estudo da
cultura escolar como sendo um desafio no sentido de examinar processos de produção,
circulação e apropriação de conteúdos culturais. Constitui-se em um campo instável que
se altera conforme a instituição que o respalda ao conferir-lhe base e sustentação
(LIMA, 2006).
Numa visão mais ampla acerca da conceituação da cultura escolar, Viñao Frago
(2000:03) a define como sendo:
Idelsuíte de Sousa Lima
6668
Perfis da Cultura Escolar
un conjunto de teorias, ideas, principios, normas, pautas, rituales,
inercias, hábitos y prácticas – formas de hacer y pensar, mentalidades
y comportamientos – sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de
tradiciones, regularidades y reglas de juego no puestas en entredicho y
compartidas por sus actores en el seno de las instituciones educativas.
Destacam-se, desse modo, as características eminentemente escolares, colocando, em
relevo, significados, modos de ser e de exercitar práticas cotidianamente, num
movimento que comporta aspectos institucionalizados, hábitos cotidianos do fazer
escolar, práticas de funcionamento do processo de distribuição do conhecimento.
Constitui-se, em um novo olhar, em uma reconfiguração de um campo de estudo que
privilegia, para a análise, aspectos internos da escola.
As relações entre educação, cultura e poder expressam-se na cultura escolar, no
entrecruzamento de diversos campos de investigação temática, como a história da
leitura,
a
história
das disciplinas escolares,
a história do currículo, da
profissionalização docente, entre outros (SOUZA, 2000). O estudo do espaço escolar,
da arquitetura, do calendário e horários escolares, da organização didático-pedagógica,
das práticas de ritualização, das festas cívicas, das exposições escolares, entre tantas
outras, constituem elementos da cultura escolar a serem investigados sob o ponto de
vista histórico.
Fontes para estudo das culturas escolares
Tomar a cultura escolar como objeto histórico implica em enfrentar o desafio de lidar
com as fontes, dada a escassez das mesmas no interior das instituições. De acordo com
Julia (2001:15) “a história das práticas culturais é, com efeito, a mais difícil de se
reconstruir, porque ela não deixa traço, [mas] o historiador sabe fazer flechas com
qualquer madeira”. Para o referido autor é imprescindível a procura às fontes e a
necessidade de captar, no interior dos arquivos escolares, a história da sua existência.
Indubitavelmente, as fontes existentes na escola são raras e de difícil acesso. Paralelo
à intenção de guardar ‘coisas velhas’ convive o advento simultâneo de novos
documentos que, somado à limitação do espaço físico dos arquivos e da seleção do
Idelsuíte de Sousa Lima
6669
Perfis da Cultura Escolar
que deve ser arquivado resulta na limitada expressão do que fora a escola em épocas
passadas.
Ademais, a noção de registrar idéias, princípios, rituais, hábitos e práticas, passa
subliminarmente pelas ações dos educadores. Essa omissão gera um quase anonimato
das práticas, sem exaltação ao desenvolvimento do processo de escolarização e à
própria história da escola.
Com efeito, registrar seu cotidiano não tem sido uma opção da Escola. Manter sob sua
guarda outros documentos além dos oficiais constitui uma dificuldade para a
instituição. Porém, algumas escolas fogem a essa regra e permitem a existência de um
arquivo alternativo, sem uma codificação específica ou um tratamento mais adequado,
onde mantém recolhidos determinados objetos, como exemplares pontuais de uma
vivência. Assim, gravitam nos guardados de algumas escolas fotografias, cartas,
anotações, álbuns, programação de atividades que, quase por um acaso, não foram
considerados para o descarte.
Na pesquisa que realizei sobre a história do currículo, no sentido de compreender as
políticas e práticas curriculares, a organização do arquivo da escola apresentava
algumas particularidades. Em meio a outros guardados, a existência de cadernos,
planos, bloco de anotações, agenda da coordenação, fragmentos de cartazes, pautas de
reuniões e recortes do quadro de avisos.
Espalhados em vários espaços, colocados em pastas avulsas ou em gavetas diversas,
tais papéis, ainda que sem uma delimitação temporal, ali estavam, meio escamoteados
pelo tempo, sem uma clara intenção de serem arquivados. O fato de permanecerem
nos armários da escola abre prerrogativas para se interrogar os motivos pelos quais
aqueles documentos não foram descartados e sobre os princípios que permearam a
guarda daquele material.
O fazer da escola, sua forma de organização, regras e rituais considerados válidos
faziam-se representar nos traços daqueles registros escritos, contando uma história do
Idelsuíte de Sousa Lima
6670
Perfis da Cultura Escolar
viver da instituição. Através de tais fragmentos a revelação das ações tomadas para o
ensino, as formas de preparação das festividades, as normas e códigos estabelecidos,
as invenções do cotidiano, para usar uma expressão cara a Certeau (1994). De acordo
com este autor a inventividade das pessoas, as ‘artes de fazer’ constituem suas
práticas.
Tais práticas congregam jeitos de ser e viver, os indícios sobre a sistemática do
exercício profissional, a dinâmica do trabalho pedagógico, as convenções e liturgias
incorporadas, os acordos e convencimentos estabelecidos para organizar o ensino,
para apresentar-se à comunidade, para cumprir rituais. Nas palavras de Certeau (1994)
são os ‘usos e táticas de praticantes’ que criam maneiras de fazer.
No registro de reunião anotado na agenda coordenadora a discussão sobre a relocação
da sala dos professores e do ambiente de recepção dos alunos, confirma a assertiva de
Dayrell (2001:147) de que:
a arquitetura e a ocupação do espaço físico não são neutras. Desde a
forma de construção até a localização dos espaços, tudo é delimitado
formalmente, segundo princípios racionais, que expressam uma
expectativa de comportamento dos seus usuários. Nesse sentido a
arquitetura escolar interfere na forma da circulação das pessoas, na
definição das funções para cada local.
Para o referido autor o espaço arquitetônico da escola expressa determinada
concepção educativa. Concepção expressada na discussão sobre a organização dos
ambientes, na localização dos recintos propriamente ditos e na projeção das ações
sociais a serem efetivadas em tais espaços. De acordo com Viñao Frago; Escolano
(2001: 64):
“o espaço jamais é neutro: em vez disso, ele carrega em sua
configuração como território e lugar, signos, símbolos e
vestígios da condição e das relações sociais de e entre aqueles
que o habitam. O espaço comunica; mostra a quem sabe ler, o
emprego que o ser humano faz dele mesmo”.
Idelsuíte de Sousa Lima
6671
Perfis da Cultura Escolar
O espaço de convivência é entremeado pela organização político-pedagógica da
escola. As deliberações em torno da reforma curricular, as reuniões de estudo, as
ações de seleção de conteúdos para as festas escolares registradas no caderno da
coordenadora indicam a potencialidade desse material para entender as políticas e
práticas curriculares. Para Viñao Frago; Escolano (2001:27):
“os espaços educativos como lugares que abrigam a liturgia
acadêmica estão dotados de significados e transmitem uma
importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do
chamado currículo oculto, ao mesmo tempo em que impõem suas
leis como organizações disciplinares”.
Os significados das ‘artes de fazer’ refletem o projeto cultural da escola, o
desenvolvimento do currículo. De acordo com Souza (2005:77): “a investigação
histórica da cultura escolar não pode passar ao largo do currículo”, uma vez que
através deste se configuram as práticas e as políticas curriculares.
Na singeleza dos documentos a expressão de intensas e diversificadas ações do
passado da escola localizadas nos arquivos escolares. Livros de atas, diários de classe,
livros didáticos, planos anuais, instruções normativas, propostas de trabalho, programa
das disciplinas, fotografias, imagens constituem fontes para a história do currículo.
Porém, a investida por esse itinerário demanda ética, arte e percurso teóricometodológico. Para analisar os registros do passado da escola é necessário entendêlos, segundo Le Goff (1994), como monumentos, como vestígios, perpetuação do
passado e instrumentos de democratização da memória coletiva. Com efeito, os
arquivos escolares contêm rastros, indícios, fragmentos das práticas da instituição,
como características da sua cultura escolar.
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O “USO” DOS ARTEFATOS CULTURAIS COMO
MOVIMENTOS TÁTICOS E ESTRATÉGICOS, EM
ESPAÇOS LISOS E ESTRIADOS, NOS
CURRÍCULOS PRATICADOS NO COTIDIANO
ESCOLAR
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos
Currículos Praticados no Cotidiano Escolar
O “USO” DOS ARTEFATOS CULTURAIS COMO MOVIMENTOS TÁTICOS
E ESTRATÉGICOS, EM ESPAÇOS LISOS E ESTRIADOS, NOS
CURRÍCULOS PRATICADOS NO COTIDIANO ESCOLAR
Janete Magalhães Carvalho1
Sandra Kretli da Silva2
RESUMO: Este estudo tem como objetivo acompanhar os movimentos curriculares,
em suas táticas e estratégias, em espaços lisos e estriados, e também a experimentação
de alguns produtos culturais em circulação no cotidiano escolar de uma escola pública
de ensino fundamental de Vitória, ES. Busca cartografar como professores e alunos
experienciam artefatos culturais em circulação no currículo vivido no cotidiano escolar,
tomando como campo de produção dos dados as conversações e/ou a produtividade
dialógica e, nesse sentido, a problematização de um espaçotempo singularizado e tecido
com os fios da experiência individual e coletiva. Utiliza, como aportes teóricos, Certeau,
Deleuze, Guatarri, Pais, dentre outros. Aponta que a movimentação, entre espaços lisos
e estriados, se mostra incessante nas redes de relações de professoras e alunos no
cotidiano escolar, onde os produtos culturais são constantemente significados,
transformados e inventados por múltiplas redes de saberes, valores, sentimentos,
pensamentos, que são tecidos na produção do currículo praticado. Como conclusão,
levanta a hipótese da exploração que as professoras fazem de espaços planos e lisos no
cotidiano escolar, assim como da fuga aos espaços somente determinados por formas
prescritivas no uso dos artefatos culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Cultura. Cotidiano Escolar.
O “uso” de táticas e estratégias entre espaços lisos e estriados
O estudo objetivou acompanhar, em movimentos curriculares, em suas táticas e
estratégias, em espaços lisos e estriados, a experimentação de alguns produtos culturais
em circulação no cotidiano escolar de uma escola de ensino fundamental.
1
Doutora em Educação; professora do Departamento de Educação, Política e Sociedade e do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Grupo de Pesquisa
cadastrado no CNPq: Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos.
2
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo. Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq: Currículos, cotidianos, culturas e redes de
conhecimentos.
Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva
6679
O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos
Currículos Praticados no Cotidiano Escolar
Dessa forma, a pesquisa buscou cartografar, em uma escola pública de ensino
fundamental, durante o primeiro semestre letivo de 2009, como professores e alunos
experienciam artefatos culturais em circulação no currículo vivido no cotidiano escolar,
tomando como campo de produção dos dados as conversações e/ou a produtividade
dialógica e, nesse sentido, a problematização de um espaçotempo singularizado e tecido
com os fios da experiência individual e coletiva.
No cotidiano escolar, professores e alunos, como qualquer dos cidadãos de uma
comunidade, estão inseridos em uma formação sociocultural que eles engendram, mas
são, também, por ela engendrados.
Segundo Pais (2006), há duas maneiras de olharmos as culturas: a) por meio dos
processos de socialização que as prescrevem; b) pelas expressividades e/ou
performances cotidianas. No primeiro caso, relacionadas com as formas prescritivas que
as circunscrevem; no segundo, pela abertura da expressividade.
Nesse sentido, o autor aborda os conceitos desenvolvidos por Deleuze e Guattari
(1997b) de espaço liso e espaço estriado aos quais, e para a análise que propomos,
associamos as noções de tática e estratégia de Certeau (2001).
Para Deleuze e Guattari, o espaço estriado é revelador da ordem e do controle,
estando os seus trajetos confinados às características do espaço que os determinam. Em
contraposição, o espaço liso abre-se ao caos, ao nomadismo, ao devir, ao performativo,
ou seja, como um espaço de um patchwork (colcha de retalhos, de misturas) e, portanto,
de abertura para novas sensibilidades e realidades.
As formas-forças performativas abrem-se ao experimentalismo e/ou às novas
experimentações por meio de três vetores principais: o lúdico, a ênfase visual, o
excesso. Nesse sentido, o espaço liso seria um espaço nômade, sem trajetos previamente
determinados. Para Deleuze e Guattari (1997b), se o nômade pode ser chamado de
desterritorializado, é porque a reterritorialização não se faz, como no caso do migrante,
depois; nem como outra coisa, como no caso do sedentário (visto que a relação do
sedentário com a terra está mediatizada pelo aparelho de Estado, pelo regime de
propriedade). No caso do nômade, a relação com o espaçotempo é sempre
desterritorializante, já que o nômade se reterritorializa na própria desterritorialização,
em seu movimento experimental que sempre em fazimento produz uma “terra”
desterritorializada.
Janete Magalhães Carvalho & Sandra Kretli da Silva
6680
O “Uso” dos Artefatos Culturais como Movimentos Táticos e Estratégicos, em Espaços Lisos e Estriados, nos
Currículos Praticados no Cotidiano Escolar
Desse modo, ao espaço liso corresponde um espaço no qual se desenvolve a
“máquina de guerra”;3 ao espaço estriado, um espaço sedentário, instituído pelo
“aparelho de Estado” como máquina abstrata de poder hegemônico e sobrecodificante
que “[...] se exerce sobre segmentos que ele mantém ou deixa subsistir, mas possui sua
própria segmentaridade e a impõe” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 78).
O poder, entretanto, manifesta-se de modo específico, pela forma como a
sociedade se institui, ou seja, pela natureza de suas instituições e pela ação de seus
praticantes.
Importa considerar que, para Deleuze e Guattari (1997b, p. 180), os dois espaços
só existem coexistindo, ou seja, graças às misturas entre si, “[...] o espaço liso não pára
de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente
revertido, devolvido a um espaço liso”.
Esses conceitos de espaço liso e estriado guardam aproximação com os
conceitos de tática e estratégia desenvolvidos por Certeau (2001), que trabalha
explorando a problemática de usos, modos de fazer dos usuários, insistindo em sua
capacidade de desviar, contornar a racionalidade dos dispositivos estabelecidos pela
ordem estatal e comercial.
Para Certeau, as evidências são contingentes e, sendo assim, o que é evidente
não é senão o resultado de uma disposição do espaço, de uma particular (ex)posição das
coisas e de uma determinada constituição do lugar do olhar. Por isso, nosso olhar,
inclusive naquilo que é evidente, é muito menos livre do que pensamos. E isso porque
não vemos tudo o que o constrange no próprio movimento que o torna possível. Nosso
3
Para Deleuze e Guattari (1997b) uma máquina de guerra distingue-se do aparelho de Estado. “Note-se
que a guerra não está incluída nesse aparelho. Ou bem o Estado dispõe de uma violência que não passa
pela guerra: ele emprega policiais e carcereiros de preferência a guerreiros, não tem armas e delas não
necessita, age por captura mágica imediata, ‘agarra’ e ‘liga’, impedindo qualquer combate. Ou então o
Estado adquire um exército, mas que pressupõe uma integração jurídica da guerra e a organização de uma
função militar. Quanto à máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho de
Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte[...]. Seria antes como a
multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose. Desata o
liame assim como trai o pacto. Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade,
um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho.
Testemunha de uma outra justiça, às vezes de uma crueldade incompreensível, mas por vezes também de
uma piedade desconhecida [...] que ultrapassa tanto as dualidades de termos como as correspondências de
relações. Sob todos os aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de
uma outra origem que o aparelho de Estado” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, v.5, p. 12-13).
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olhar está constituído por todos esses aparatos que nos fazem ver e ver de uma
determinada maneira, ver e crer.
Entretanto, Certeau, quer nos ensinar que o nosso olhar é também mais livre do
que pensamos, porque o que o determina não é tão necessário nem tão universal quanto
acreditamos. O que determina o olhar tem uma origem, depende de certas condições
históricas, socioculturais e práticas e, portanto, como todo o contingente, está submetido
à mudança e à transformação, dando margem a que seja possível ver de outro modo. O
autor argumenta que, se é verdade que, por toda parte, se estende a rede da “vigilância”,
mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que
procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos
disciplinadores e não se conformam a eles?
De acordo com Certeau (2001, p. 201),
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída
a possibilidade para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí
impera a lei do ´próprio`: os elementos considerados se acham uns ao
lado dos outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que o
define.
E mais adiante:
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção,
quantidades de velocidade e a variável tempo [...]. Espaço é o efeito
produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam e o levam a funcionar em unidades polivalentes de
programas conflituais ou de proximidades contratuais. Em suma, o
espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida
por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres (p. 201).
Dessa forma, os espaços são ações de sujeitos históricos. Uma escola geométrica
e arquitetonicamente definida é transformada em espaço pelos professores, alunos e por
outros agentes por meio de suas práticas discursivas que transformam incessantemente
lugares em espaços ou espaços em lugares. Os espaços exibem operações que permitem
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percursos, passagens, intercâmbios, trocas, compartilhamentos e não apenas a
determinação da lei de um “lugar próprio”, pois a lei de um “lugar próprio” se expressa
pela autoria definida e, portanto, pela criação, mesmo que personalizada,
individualizada.
Por sua vez, a ideia de “táticas”, conforme a elaboração proposta por Certeau,
busca descrever a resistência contra operações que visam a controlar e organizar o
espaço social, visto que o conceito de resistência aparece como uma fissura no espaço
praticado, constituindo-se como uma subversão ao lugar controlado.
Considerando que, para Certeau (2001), o lugar é um espaço próprio e o espaço
um lugar praticado, deve-se compreendê-los como uma dinâmica que não pode ser
reduzida a uma situação de diferenciação entre espaço e lugar, pois um pressupõe o
outro.
Certeau (2001) apresenta a noção de tática não em oposição à noção de
estratégia, mas como uma série de procedimentos que, constantemente, utiliza para
subverter as referências de um lugar próprio como um espaço que é controlado por um
conjunto de operações (estratégias) fundadas sobre um desejo e sobre um conjunto
desnivelado de relações de poder.
Para ele, estratégias e táticas devem ser lidas como partes de um único processo:
a tentativa de uma sociedade se organizar e, dessa forma, a distinção entre táticas e
estratégia tem um caráter enunciativo e um caráter operacional que busca compreender
as relações de poder e, nesse caráter enunciativo, inscreve-se a não aceitação de uma
linguagem privilegiada: científica, cotidiana ou popular. Se as estratégias têm por
objetivo a organização de um espaço controlado, as táticas dirigem-se para a
possibilidade de operações e enunciações que não supõem um controle ou uma regra
universal e, evocando um movimento contínuo, porém, indeterminado, abrem fissuras
no poder estabelecido,
Tais fissuras se apresentam como resistência ao estabelecido e, como escreveu
Certeau, longe de se constituírem como uma revolta ou uma revolução, apresentam-se
como subversão comum e silenciosa, mas não deixam de ser resistência .
Assim, as táticas (espaço de reconhecimento da criatividade cotidiana) não
pretendem se constituir como uma teoria revolucionária, visto sua indeterminação e
contingência. Porém, se o ato estratégico organiza o espaço próprio (lugar), o momento
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tático tem a mesma ambição. Um como o outro, um pressupondo o outro visam à
organização espacial. O primeiro de forma determinada, e o segundo em sua
indeterminação (espaço liso) e/ou recusa de operar com regras modelares ou
modelizantes (espaço estriado).
Como o lugar é próprio, um espaço que é controlado por um conjunto de
operações, estratégias fundadas sobre um desejo e sobre um conjunto desnivelado de
relações de poder (espaço estriado), as táticas organizam um novo espaço (espaço liso),
o qual é um lugar praticado; elas implicam um movimento que foge às operações de
poder que tentam controlar o espaço social. Importa, portanto, considerar as estratégias
e as táticas em sua relação.
Como afirma Certeau (2001, p. 105), é necessária a relação entre estratégias e
táticas, pois “O estudo das táticas cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o
horizonte de onde vêm e, no outro extremo, nem o horizonte para onde deveriam ir”.
E prossegue:
[...] as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento
de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma
hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos
jogos que introduz nas fundações de um poder. Ainda que os métodos
praticados pela arte da guerra cotidiana jamais se apresentem sob
uma forma tão nítida, nem por isso é menos certo que apostas feitas
no lugar ou no tempo distinguem as maneiras de agir (p.105).
A relação entre estratégias e táticas condiciona, dessa forma, o campo dos
possíveis à ação política e pedagógica dos “praticantes ordinários” no cotidiano escolar.
Assim, a fuga de uma gestão funcionalista dos espaçostempos escolares implica uma
configuração em que os “grandes relatos” não esmaguem os “pequenos relatos”
(CERTEAU, 2003), como numa concepção de dinâmica social que busque compreender
como os “acontecimentos” se articulam na dinâmica entre espaços lisos e estriados
(lugares), visto que, como apontamos, lugares e espaços devem ser pensados juntos e, se
lugares e espaços devem ser pensados juntos, estratégias e táticas também
(CARVALHO, 2009).
Alguns trajetos e tracejos dos praticantes ordinários do currículo no uso de artefatos
culturais na escola
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O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na
intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos
inesquecíveis, coisas inexplicáveis, e pessoas incomparáveis
(FERNANDO PESSOA).
O poeta Fernando Pessoa, assim como Deleuze (2003), ensina-nos a importância
de estarmos atentos aos inúmeros acontecimentos cotidianos, a fim de potencializarmos
as forças presentes entre os movimentos: “O acontecimento não é o que acontece
(acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (p.152).
A citação da epígrafe estava colada em um dos cartazes expostos na sala dos
professores, junto com outros poemas, anúncios dos aniversariantes do mês, avisos de
pedidos de licença médica e de maternidade, propaganda política, divulgação de
resultados da gincana, listagem de nomes de pessoas responsáveis pelas barracas da
Festa Junina e muitos outros recados e avisos ocorridos nos inúmeros acontecimentos
cotidianos da pesquisa.
Utilizando, como dito, o enfoque de Certeau (2001), que entende por artefatos
culturais todos os produtos disponibilizados pelo poder proprietário, variando de
produtos tecnológicos a simples recursos materiais ordinários que são usados pelos
praticantes em seus cotidianos, percebemos, no dia a dia escolar, professores e alunos
comentando sobre o que veem nas novelas, revistas, jornais e ainda sobre o que
vivenciam em diversos espaçostempos. Esses assuntos atravessam os diferentes
processos curriculares, favorecendo calorosas reflexões sobre temas, como ciências,
sexualidade, tecnologia, drogas, história, preconceito, dentre outros.
Os artefatos culturais, além de serem vistos nos cartazes espalhados nas escolas,
também se apresentam nos cadernos, nas falas, como possibilidades de integração entre
professores e alunos. Assim, com base nas conversações dos praticantes do cotidiano,
apresentamos alguns acontecimentos em que as redes de diálogos foram atravessadas
pelos usos desses aparatos:
A) Na escolha dos livros didáticos a serem recomendados para o próximo ano,
percebemos os professores trocando suas experiências quanto aos usos desses artefatos.
Ficou bastante evidente o peso dos discursos legitimados como científicos em
contraposição à linguagem dos praticantes ordinários do currículo. À sugestão de uma
professora sobre os livros a serem selecionados para 2010, alguns comentários foram
estabelecidos, tais como: “Eu gostei muito deste, pois tem muito a ver com o trabalho
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que estamos desenvolvendo no Núcleo de Estudos e Práticas de Alfabetização do
Espírito Santo (NEPALES/UFES), com a assessora da UFES”. Assim, podemos
observar, na fala da professora, a necessidade que os espaços escolares sentem de ter
alguém ou algo que dê respaldo teórico às suas práticas e às suas convicções, ou seja, no
âmbito dos possíveis da abertura da expressividade (espaço liso), sente-se a busca do
prescrito anulando os saberes “ordinários”.
Outra evidência da importância do saber autorizado pode ser observada quando
as professoras aproveitam a chegada de um dos palestrantes da formação continuada e
solicitam sugestões na seleção do livro de Geografia, já que o professor é dessa área. O
professor, além de indicar algumas fontes, justifica a sua escolha:
Observo muito as imagens dos livros. Este aqui, por exemplo,
contempla diferentes tipos de moradias... de práticas culturais
diferentes e de povos diferentes e as autoras são professoras da USP.
Já este outro, as autoras também são professoras da USP, elas
apresentam casamentos diferentes, famílias numerosas e pequenas,
mas foram infelizes nas escolhas das imagens. A minha preocupação
é não silenciar as diferenças. Observo muito as poesias, as músicas,
as histórias em quadrinhos selecionadas nos livros.
Entretanto, nesse mesmo episódio, pode-se observar como efetivamente nos
espaçostempos praticados parecem conviver espaços lisos e estriados, táticas e
estratégias. Nesse sentido, destacamos que, como não houve tempo disponível para que
as professoras das séries iniciais escolhessem o livro coletivamente, a seleção foi feita
por série. Porém, para se discutir sobre a Festa Junina, foi possível obter horário
agendado com todos os professores e a equipe técnica, ou seja, há movimentos
característicos de espaços lisos que taticamente subvertem as prescrições normativas
escolares. Outro detalhe importante: os pedagogos não estavam participando das
reuniões para a seleção do livro. Ouvimos uma professora comentar que, após as
escolhas, os títulos selecionados seriam comunicados aos pedagogos.
Em sentido inverso, observamos que o Programa Gravidez na Adolescência foi
apresentado, em uma das reuniões semanais, em poucos minutos, pela direção. Esse
projeto foi encaminhado pela Secretaria Municipal de Educação (SEME), dizendo: “Na
semana que vem, serão colados adesivos nas portas dos banheiros, por isso preciso
contextualizar para vocês o que é que isso significa. Faz parte do programa: São frases
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como: Deixe sua primeira vez para mais tarde”. Uma professora interveio afirmando
que seria necessário fazer um trabalho com os alunos, senão eles não iriam entender
nada. A diretora respondeu que trataria do assunto na reunião com os pedagogos. Ainda
nesse encontro, uma professora comentou sobre as críticas recebidas em relação às
músicas tocadas no recreio. A diretora concordou: “Realmente, no ano passado
tínhamos uma estagiária que cuidava da seleção das músicas. Vamos ver se
conseguimos alguém para nos ajudar”. Não se cogitou da possibilidade de abertura
desse espaço de expressividade como um movimento que deveria se constituir a partir
de conversações e ações coletivas que integrassem os espaços lisos e estriados,
articulando criativamente táticas e estratégias.
B) Uma ilustração interessante de ação potencialmente de abertura da
expressividade e “uso” criativo do espaçotempo escolar refere-se à utilização do
laboratório de informática. O professor responsável pelo laboratório nos relata os “usos”
que as professoras fazem das imagens retiradas da Internet, nos seguintes termos:
Antes, a orientação é que se usasse o laboratório a partir de um
projeto feito pelo pedagogo e pelo professor, agora está mais
ampliado, basta que o professor justifique no planejamento o que está
querendo, traz a idéia para conversar comigo. Por exemplo: a
professora de Artes está trabalhando construções e vai levar os alunos
para Santa Teresa e Petrópolis. Falou da construção francesa colonial
e veio aqui para mostrar aos alunos. Usamos o data-show acessado à
Internet e projetamos as imagens para ilustrar sua fala. Entretanto,
algumas professoras só usam a Internet para aprofundar algum
assunto. Imprimem os textos e levam para a sala de aula.
Portanto, ainda se constata um “uso” potencialmente inventivo e por parte de
alguns professores.
C) Os “usos” de filmes e livros são bastante limitados pelo material disponível,
assim como pela iniciativa dos professores, já que a SEME e a escola não têm acervo
significativo de filmes e a biblioteca escolar não é sufucientemente explorada. Em um
encontro de formação continuada, a palestrante convidada indicou filmes e livros de
referência para ilustrar suas concepções. Ao recomendar o filme “Escritores da
Liberdade” para as professoras, comenta: “É um filme muito interessante,
principalmente, quando um dos personagens (que é um aluno) pergunta para a
professora: ‘O que você ensina que tem valor para a minha vida’”. Entretanto,
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argumentando falta de tempo, não continua a conversar sobre o filme, voltando-se para
outro assunto e não sendo interpelada pelos professores nem pelos membros do CTA
que assistiam à palestra. Em outro encontro de formação continuada, a palestrante
afirma: “Homens têm uma linguagem, as mulheres outras”, indicando a seguir a leitura
do livro “A língua de Eulália”, de Marcos Bagno, que apresenta um vasto contexto de
diferenças linguísticas. A palestrante cita outros livros do autor: “Preconceito
lingüístico” e “Nada na língua é por acaso”. Este último diz respeito aos aspectos
sociais interferindo na linguagem. Nenhum movimento a mais nessa direção é feito quer
pela palestrante, quer pelo CTA, quer pelos professores em conjunto ou
individualmente.
D) O jornal na sala de aula é considerado pelas professoras como um artefato
muito usado para favorecer a aprendizagem dos alunos. Exemplificam dizendo:
Usamos na Matemática, mostrando aos alunos gráficos,
porcentagens, índices, pedindo que façam comparação de
quantidades, cálculos. Na Leitura e Escrita, pedimos que os alunos
façam resumos, leitura em grupos. Fazemos, ainda, recortes de
matérias que tratam dos assuntos que, constantemente, estamos
conversando com a turma: gripe suína, sexualidade na adolescência,
violência[...]. Na outra escola que trabalho, tem um projeto que a
gente recebe vários números de jornal diariamente. Então, sempre
deixamos os jornais disponíveis na hora do recreio. Percebemos que
os alunos ampliaram o hábito de leitura e ainda chegam à sala
comentando os assuntos que acharam interessante, provocando
debates importantes na sala de aula.
Nesse sentido, uma das professoras solicitou a uma aluna que trouxesse os seus
cadernos, mostrando-nos com orgulho o seu trabalho, denotando assim um movimento
tático bastante interessante por parte do coletivo dos professores, para, integrando
espaços lisos e estriados, contribuir para a abertura da expressividade no cotidiano
escolar, olhando, entretanto, para além dele.
Observamos que a movimentação entre espaços lisos e estriados se mostrou
incessante nas redes de relações de professoras e de alunos no cotidiano escolar. Ao
mesmo tempo em que presenciamos alunos e professoras em práticas discursivas que
parecem ser reprodutoras, mecânicas, individualizantes e sem sentido, percebemos
também práticas de criação, invenção e muita interação e trabalho coletivo nos usos e
consumos dos produtos culturais que circulam na escola.
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Observamos que os produtos culturais que circulam na escola: jornais, revistas,
imagens e textos retirados da Internet, narrativas de novelas, filmes, músicas são usados
pelos professores e alunos nos processos curriculares. No entanto, percebemos falta de
espaçostempos para que os praticantes do cotidiano dialoguem sobre esses usos e
consumos e ampliem a sua utilização de forma a incrementar os espaços lisos em
movimentos taticosestratégicos.
Recorremos mais uma vez a Certeau (1995, p. 9): “Para que haja
verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas
práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”. O autor acrescenta que
“[...] a cultura não consiste em receber, mas em realizar o ato pelo qual cada um marca
aquilo que os outros lhe dão” (p. 9).
Algumas questões decorrentes poderiam ser: a relação didático-pedagógica tem
sido produtora de comunicação, de dialogicidade ou é o canal pelo qual se aplica um
saber estabelecido? Tem havido comunicação, tem-se possibilitado a criação da cultura
escolar promotora de conhecimentos significativos?
Sabemos que, cada vez mais, a cultura está nas mãos do poder. Entretanto,
aprendemos, com esse mesmo autor, que a cultura no singular é mortífera e ameaça a
criação e a invenção. Sendo assim, defendemos que seja desvelada toda a riqueza da
pluralidade das culturas presentes nos currículos praticados por professores e alunos
no/do cotidiano escolar, ou seja, que deixem emergir os diversos sistemas de referências
e significados que estão silenciados e mortificados na escola.
Acrescenta ele, ainda, que, quanto mais a economia se unifica, mais a cultura
deve diversificar-se, pois ela é uma prática significativa que não consiste em receber
pronto, mas em se fabricar tudo o que nos é oferecido para viver, pensar e sonhar. Toda
cultura requer, portanto, uma ação, um modo de apropriação, uma transformação
pessoal, lembrando que “[...] o currículo praticado envolve as relações de poder, cultura
e escolarização, representando, mesmo de forma nem sempre explícita, o jogo de
interações e/ou as relações presentes no cotidiano escolar” (CARVALHO, 2004, p.1).
Assim, faz-se cada vez mais necessário divulgar todos os projetos coletivos que
estão sendo produzidos nas escolas, explicitando os objetivos, as ações, as realizações e
os resultados. Muitas vezes, o desconhecimento dessas experiências, dessas referências,
desses diálogos partilhados faz com que os professores fiquem aquém de um “lugar
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próprio”, ou seja, se sintam ocupando, no espaço estriado, um “não lugar” (AUGE,
1994). Essa sensação mortificante da falta de criação, de desejo, acarreta acomodação,
doenças, cansaços intermináveis, fadiga e stress. Percebemos que semanalmente o
quadro de avisos se diversifica com a listagem dos professores de licença médica.
Enfim...
A questão que atravessa o estudo, portanto, vem a ser: como trabalhar os
espaçostempos escolares como espaços nômades, como espaços de inventividade e
incremento de expressividade, como característica das experiências dos professores
e dos alunos mediados por artefatos escolares que circulam no cotidiano escolar?
A extensão totalitária dos sistemas de produção (televisiva, comercial, escolar,
etc.) não deixa aos “consumidores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os
produtos. A escola não deixa aos professores e aos alunos um “lugar próprio” de criação
e/ou de autoria do produto de seu trabalho. O resultado de seu trabalho é, para a maior
parte dos professores e dos alunos, profundamente indiferente do ponto de vista do
significado atribuído por eles ao conhecimento e/ou à ação praticada.
Tem-se, porém, que considerar que esse processo é resultante de uma rede
intrincada de relações. De um lado, a análise mostra que a relação (sempre social)
determina seus termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua
uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações
relacionais. Nessas determinações relacionais, incluem-se as combinatórias de
operações entre consumidores e usuários, fundadas no status da relação reproduçãodominação e/ou no estatuto de sujeitos (individuais ou coletivos) dominados, mas não
necessariamente passivos ou dóceis. Por exemplo, assim como as imagens difundidas
pela televisão e o tempo gasto junto ao televisor só adquirem concretude se completados
pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” durante essas horas e com essas
imagens, do mesmo modo as ações dos professores, às quais os alunos estão submetidos
durante horas, diariamente, pressupõem o exame dos seus efeitos sobre os alunos como
“consumidores ou usuários”, tais como: passividade, interesse/desinteresse, violência,
evasão, aprendizagem, etc.
Temos, ainda, que considerar que a pluralidade, aparentemente, incoerente das
relações, aponta a necessidade de o trabalho pedagógico considerar a singularidade
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pessoal/grupal como uma unidade na diversidade, não reduzindo, porém, um ao outro,
pois, como foi visto, a instauração dos espaçostempos escolares se faz tomando por base
o “lugar próprio” que deve se abrir para a produção de redes relacionais.
Considerando que, para Certeau (2001), o lugar é um espaço próprio e o espaço
um lugar praticado, deve-se compreendê-los como uma dinâmica que não pode ser
reduzida a uma situação de diferenciação entre espaço e lugar, visto que um pressupõe o
outro.
No caso da escola e da prática pedagógica dominante, o uso, a presença e a
circulação de uma significação (ensinada por pregadores, vulgarizadores ou educadores)
não indicam, de modo algum, o que ela é para os seus usuários.
O professor, assim como o aluno, ao chegar à escola, não abandona os mitos, as
crenças, as ideias próprias de seu grupo social, e nem conseguiria fazê-lo, pois carrega
consigo processos de subjetivação e/ou formas de subjetividade de algum modo
instituídos a partir de um sistema sociopolítico, econômico e cultural. Portanto, pode-se
dizer que não existe escola, mas escolas, assim como uma multiplicidade de
significados/significações (CARVALHO, 2004).
Na medida em que os professores deixam de ser responsáveis pela produção dos
objetivos, conteúdos, métodos de seu trabalho, transferidos para equipes técnicas, livros
didáticos e outros, ocorre um estranhamento
entre os professores e sua
produção/trabalho, com consequências evidentes para o uso por parte dos alunos. Nesse
processo, tanto professores como alunos tendem a ser consumidores e/ou usuários de
saberes e lógicas alienígenas para eles. Isso, porém, não ocorre de modo sempre
passivo. Muitas vezes, os alunos fazem das ações rituais, representações ou leis que lhes
são impostas outra coisa que não aquela que o doutrinador julgava obter. Os alunos as
subvertem, não as rejeitando diretamente, pela sua maneira de usá-las para fins e em
função de referências estranhas ao sistema do qual não podem fugir. O mesmo se pode
dizer em relação ao professor e à tecnoburocracia escolar. Supõe-se, dessa maneira, que
os usuários
[...] façam uma bricolagem com e na economia cultural dominante,
usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus
interesses próprios e suas próprias regras [...]. Desta atividade de
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formigas é mister descobrir os procedimentos, as bases, os efeitos, as
possibilidades (CERTEAU, 2001, p. 40).
O adoecimento e o excesso, frequentemente, constituem-se como “linhas de
fuga” (DELEUZE; PARNET, 1998) de um limite visto como caminho de saída de um
sistema fechado (espaço estriado), entretanto alguns “usos” do lúdico e as
experimentações vistas e ensaiadas no modo “taticista” permitem-nos levantar a
hipótese da exploração que as professoras fazem de espaços planos e lisos no cotidiano
escolar, assim como da fuga aos espaços somente determinados por formas prescritivas
no uso dos artefatos culturais.
Referências:
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas: Papirus, 1994.
CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos.
Petrópolis: DP et alii; Brasília: CNPq, 2009.
CARVALHO, Janete Magalhães. Diferentes perspectivas da profissão docente na
atualidade. Vitória: EDUFES, 2004.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes,
2001.
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2:
morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2003.
CERTEAU, M. de. A cultura no plural. Campinas/SP: Papirus, 1995.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina de
guerra. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997b.
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Currículos Praticados no Cotidiano Escolar
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O liso e o estriado. In: ______. Mil platôs:
capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997b. v. 5, p. 179-214.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Micropolítica e segmentaridade. In: ______.
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PAIS, José Machado. Buscas de si: expressividade e identidades juvenis. In:
ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de (Org.). Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006. p. 7-21.
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CURRÍCULO E CULTURA: REFLETINDO O
LUGAR DAS IDENTIDADES NA ESCOLA
Josevandro Chagas Soares
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
CURRÍCULO E CULTURA ESCOLAR: REFLETINDO O LUGAR DAS
IDENTIDADES NA ESCOLA
Josevandro Chagas Soares
RESUMO: A temática identidade vem chamando a atenção de pesquisadores do campo
do currículo. Nossa pretensão com esse trabalho é refletir sobre o lugar da identidade na
escola, entendendo-a enquanto um espaço polissêmico constituído pelo encontro dos
diversos grupos sociais, tendo o currículo e a cultura escolar como locus de nossa
reflexão. A escola é a instituição social criada para a socialização de conhecimentos e
desenvolvimento da cultura. Contudo, nos dias de hoje essa idéia de função social da
escola se perdeu e a escola virou alvo da grande mídia, da violência e do descaso
inclusive por parte daqueles que a constituem. Podemos compreender que a escola tem
o dever de promover condições para que seus atores educativos tenham consciência de
si e do lugar que ocupam nos seus espaços e grupos sociais, bem como de seu papel na
sociedade. Partindo dessas percepções, entendemos a relevância de se compreender não
só a formação dos sujeitos aprendentes e educadores, mas sim propor outro olhar na
relação entre estes sujeitos. A construção das identidades e a cultura dos sujeitos
educativos devem ser compreendidas enquanto elemento curricular.
PALAVRAS-CHAVE: Escola - Atos de currículos - Currículo - Identidade.
1. Introdução
A questão da identidade é um tema que vem chamando a atenção dos pesquisadores do
campo do currículo. Nesse sentido pretendemos com esse trabalho refletir o lugar da
identidade na escola, entendendo-a enquanto um espaço polissêmico constituído pelo
encontro de diferentes grupos sociais, tendo o currículo e a cultura escolar como locus
de nossa reflexão.
Partiremos da premissa que a escola tem sua função social, na qual se tem o objetivo de
educar os sujeitos de uma sociedade para o exercício da cidadania. Bem como
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
possibilitar o encontro desses sujeitos com a cultura. Nesse sentido podemos
compreender que a escola tem historicamente o objetivo de socializar conhecimentos
sistematizados e homogeneizar a aprendizagem.
É preciso compreender a escola enquanto um espaço não só de produção de identidade,
mas que também é ontológico na unidade de cada um de seus sujeitos, passando pela
especificidade do currículo em relação ao tema, bem como os atos de currículo
entendido como um importante dispositivo para as nossas reflexões acerca da temática
identidade.
Sendo assim, pretendemos com este estudo pensar as aproximações entre a instituição
escolar e um currículo como propõe Macedo (2007), uma ágora polínia,
compreendendo com Apple que o currículo é uma produção mediada pelas ações
humanas na qual seus agentes e atores sociais mobilizam-se numa relação dialógica e
dialética constante. “O currículo corresponde, em síntese, a uma forma política cultural,
acentuando-se, com a expressão ‘política cultural’, a dimensão sócio-cultural do
processo de escolarização” (MOREIRA apud GIRUOX e MCLAREN, 1995, p.10).
Tomaz Tadeu da Silva (1995, p. 184), por sua vez, compreende o currículo enquanto um
conjunto de experiências de conhecimentos, ou seja, entende que “o currículo constitui
o núcleo de processo da institucionalização da Educação”. Para Silva (1995) a escola
aparece enquanto locus de produção de identidades, pois estas se constituem numa
construção social.
Nesse sentido a escola em seu processo histórico se manteve estática na sua base de
sustentabilidade. As políticas para educação propõem melhorias de fachadas a exemplo
das TVs Pen drive enquanto tecnologia educacional. Contudo como afirma Silva:
Há, entretanto, uma distância enorme entre as experiências atualmente
proporcionadas pela escola e pelo currículo e as características culturais de
um mundo social radicalmente transformado pela emergência de novos
movimentos sociais, pela afirmação de identidades culturais subjugadas,
pelas lutas contra o patriarcado, pelos conflitos entre poderes imperialistas e
resistências pós-coloniais, pelo processo de globalização e pela generalização
dos novos meios e técnicas de comunicação. No novo mapa cultural traçado
pela emergência de uma multiplicidade de atores sociais e por um ambiente
tecnicamente modificado, a educação institucionalizada e o currículo
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
continuam a refletir anacronicamente, os critérios e os parâmetros de um
mundo social que não existe (SILVA, 1995, p. 185).
A configuração atual da escola e as suas políticas curriculares, bem como as políticas
públicas para educação, não refletem as verdadeiras necessidades das escolas, que vão
além da sua estrutura física, mas sim têm muito a ver com sua estruturação interna. O
sucateamento ao longo dos anos, a distancia entre a formação (teoria) e o trabalho dos
professores (prática/práxis) são também alguns dos muitos fatores que colaboram para o
descaso com a educação no Brasil.
2. A escola e sua Função Social
A escola há muito tempo vem sofrendo transformações idealizadas para que cada vez
mais tivesse qualidade, fosse um espaço verdadeiramente democrático e compreendido
como uma base do grupo social. Nesse sentido a escola foi concebida por ter função
social. Assim, para tentar compreender a função social da escola e iniciar nossas
reflexões, recorremos ao que Barbara Freitag escreve no prefácio a 3ª edição de sua
obra, “Escola, Estado e Sociedade”, na qual a autora entende a escola enquanto uma:
Instituição estratégica que, dentro da sociedade civil, desempenha de forma
mais direta a função de reproduzir a força de trabalho e as relações de
produção, mobilizando, para isso, a ideologia da educação como forma de
ascensão social e de democratização de oportunidades. (FREITAG, 1986, p.
8)
Contudo, nos dias de hoje essa idéia de função social da escola se perdeu e a escola
virou alvo da grande mídia, da violência e do descaso inclusive por parte daqueles que a
constituem – cito estudantes, professores, técnicos e gestores. Ao longo de sua história,
a escola tinha a função de educar, reforçando os valores morais que eram transmitidos
no âmbito familiar, bem como socializando conhecimentos sistematizados para que o
indivíduo pudesse ter acesso ao mercado de trabalho e se tornasse um “homem de bem”.
O aniquilamento da família, grupo social que Rousseau (2001) considera a mais antiga
de todas as sociedades e o único grupo natural, que ao longo do tempo foi aniquilado
pela barbárie promovida pelo capital, colaborou muito para o que a escola se tornou ao
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longo dos anos, um espaço com possibilidades fecundas, sem fecundidade, um espaço
onde a produção de saberes não tem mais tanta importância, pois ela está centrada nas
políticas dos conteúdos e no culto às disciplinas escolares. Nesse sentido “há uma
grande dificuldade dos profissionais da educação em conceber o currículo diante das
necessidades e redefinir quais conhecimentos deverão ser estudados ou trabalhados na
escola para atender às necessidades de seus educandos” (TEXEIRA e BEZERRA, 2007,
p.56).
Refletir sobre a educação a partir das palavras de Brandão (2007), que afirma não existir
uma forma, um modelo ou um único espaço onde ela acontece, nos incita a
compreender que a educação não é só função da escola. Temos hoje uma escola, fruto
de uma metamorfose social, que se tornou um espaço sem vida, sem harmonia, sem
brilho, sem imaginação e em alguns momentos “sem” contradição, ou seja, uma
estrutura silenciante e homogeneizante.
A educação e a cultura do ator social têm (ou teve) início na família. No espaço
familiar, a educação recebe o nome de “criação” ou educação doméstica, aquela que os
pais passam para seus filhos a qual se constituía um referencial para as futuras gerações
da família e, muitas vezes, eram reforçadas pela escola.
Nos dias atuais, buscamos refletir sobre a instituição família e a instituição escola, e
podemos nos perguntar o que aconteceu com estas instituições? Onde está a família
idealizada por Rousseau pensada enquanto sociedade natural? Em que medida podemos
lançar mão dela sem graves prejuízos ao nosso infant? Onde está a escola pensada por
Paulo Freire e Anísio Teixeira e outros intelectuais do campo educacional? Que escola é
essa que temos para nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos? Qual o significado
da escola para os pais e para os estudantes hoje? Como está a educação doméstica? Que
bases morais e éticas ela oferece para que a escola reforce?
As respostas a essas perguntas não são nada fáceis, pois é preciso analisar a história de
nosso país. A economia capitalista nos últimos anos vem se segurando para não entrar
em colapso, e a submissão a organismos internacionais como o Banco Mundial, FMI e
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UNESCO vem promovendo políticas ideológicas de negação da emancipação e da
autonomia dos sujeitos. Contudo, em benefício dos privilégios de políticos, tem-se
sacrificado o direito de muitos. O corte de verbas destinadas para educação, saúde e
segurança são fatores que vêm contribuindo maciçamente para o atual cenário de
barbárie em que se encontra a sociedade, e assim criam mecanismos para atender o
desejo das agências internacionais.
A escola é a instituição social criada para a socialização de saberes e desenvolvimento
da cultura. Podemos entender que a instituição escolar é uma ponte de acesso entre o
indivíduo e a cultura. Contudo, resta-nos saber de qual cultura estamos falando? Da
cultura considerada dominante, erudita, que exclui os que não se enquadram em seus
moldes e termina por marginalizar e alienar ou, uma cultura plural que contemple o
entendimento de que a sociedade é dinâmica e que as vozes silenciadas historicamente
ganharam fôlego e estão se mostrando, tomando de assalto as estruturas sociais. Nesse
sentido Roberto Sidnei Macedo entende que a atual situação precisa ser pensada, pois
afirma que:
Por essa problemática e por esses argumentos, nos aproximamos da
pertinência e da relevância de uma educação como prática identitária
enquanto possibilidade educacional, curricular e de formação configurados
numa espécie de ágora polínia, ou seja, como um cenário democrático de
debates e mobilização de competências coletivas entre diferentes, polinizadas
por suas múltiplas referências e pela vontade de instituir possibilidades para o
bem comum social pelas vias da educação, constituída numa intercrítica de
demandas e interesses socioculturais. (MACEDO, 2007, p. 28)
Inspirando-nos na reflexão de Macedo, podemos perceber que não só a família, mas a
instituição escolar tem a função de socialização de saberes, todavia estas instituições
precisam ser compreendidas como espaços democráticos, contraditórios, complexos e
plurais e que os seus sujeitos se constroem nas suas relações em redes.
3. Desafios da construção de identidades no contexto escolar
Na atualidade, a grande mídia exibe em seus telejornais matérias sobre a ineficiência da
escola, as reportagens trazem a escola como ela está: feia, fria, sombria e o pior, vazia.
Ainda há quem procure ou aponte quem são os culpados por isso. O Estado? A
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sociedade? Professores? Quem? Assim, para ilustrar nossas reflexões recorremos ao
inserto retirado do livro “A vida na escola e a escola da vida” que diz:
Todo mundo vive se queixando da escola. Pais, professores e alunos
reclamam que ela não está funcionando como devia e que as coisas não
podem continuar desse jeito. [...] daí que a discussão sobre a escola parece
mais um coro em que cada um acusa o outro, cada um tem parte de razão,
mas ninguém consegue se entender nem chegar à raiz do problema
(CECCON; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1980, p.11).
Para Tomaz Tadeu da Silva (1995. p. 184), “a escola não está histórica e socialmente
montada para organizar as experiências de conhecimento de crianças e jovens com o
objetivo de produzir uma determinada identidade individual e social”. Nesse sentido, na
atual configuração social a escola nunca serviu tanto ao Estado como seu aparelho
ideológico como hoje, e nunca se reproduziu tanto a cultura dominante como hoje, ao
não só inculcar idéias, mas desfacelar identidades e socializar nos indivíduos a sensação
de sua própria descartabilidade e subvalorização. Nesse contexto a escola segue a lógica
da padronização de comportamentos, conhecimentos e habilidades, promovendo assim a
hogomogeneização cultural.
A educação por ser um fenômeno estritamente humano, tem no aprender
sistematicamente com o outro um importante mecanismo de socialização e preservação
de cultura. A qual segundo Juan Delval (2001) é o que nos difere dos demais animais. A
cultura e a educação são dois termos interdependentes, pois “a educação só é possível
por meio da existência da cultura, e a cultura se conserva por meio da educação”
(DELVAL, 2001, p.15).
Podemos compreender que a escola tem o dever de promover condições para que seus
atores educativos tenham consciência de si e do lugar que ocupam nos seus espaços e
grupos sociais, bem como de seu papel na sociedade. Para que isso ocorra é preciso
pensar a noção de alteridade no contexto escolar, pois só do si para o outro se cria
possibilidade de construção de identidades.
Antonio Flavio Moreira (2008) sinaliza sobre a necessidade de refletir acerca da
temática identidade na atual configuração de nossa sociedade. Assim, inspiramo-nos nas
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
reflexões de Moreira que destaca três pontos relevantes deste debate: a teoria social, a
educação e a política. Na teoria social “a discussão teórica da identidade justifica-se,
então, por iluminar a interação entre a experiência subjetiva do mundo e os cenários
históricos e culturais em que a identidade é formada” (MOREIRA; CÂMARA apud
GILROY, 2008, p.38-39). No campo da educação defende que “qualquer teoria
pedagógica precisa examinar de que modo espera alterar a identidade do/a estudante”
(MOREIRA; CÂMARA, 2008, p. 39). E o campo da política a “ênfase na identidade
deriva do reconhecimento de que certos grupos sociais têm, há muito, sido alvo de
inaceitáveis discriminações” (MOREIRA; CÂMARA, 2008, p.39).
Partindo dessas inspirações, entendemos a relevância de se compreender não só a
formação dos sujeitos aprendentes e educadores, mas sim propor outro olhar na relação
entre estes sujeitos. A construção das identidades e a cultura dos sujeitos educativos
devem ser compreendidas enquanto elemento curricular como diz Macedo, “o currículo
que se institui sabe e quer saber sempre da vida dos seus sujeitos-alunos, constrói-se
preponderantemente a partir deles e movimenta-se com eles” (MACEDO, 2007, p. 131).
Nas inspirações de Macedo vemos que o currículo deve ter em sua política a
preocupação com a temática identidade, pois alguns professores acreditam que discutir
esta temática é um mero modismo, precisamos sensibilizar estes colegas no sentido de
fortalecer um movimento que tem um sentido político, que há muito tempo muitas
vozes ficaram silenciadas e esquecidas e que, graças aos movimentos sociais, a
academia resolveu acatar estas reivindicações, ainda que com certo preconceito e como
foi citado vista por muitos enquanto uma espécie de modismo.
A discussão sobre a identidade é fundamental para a superação de práticas autoritárias,
com foco no puro repasse de informações que não são significadas pelos estudantes e,
portanto, pouco potencial têm para a reelaboração de seus saberes, na percepção de seus
valores e vivência de uma vida expressiva. Recebem-se informações sem se saber para
que. Podemos pensar na produção de identidade social a partir do contexto escolar.
Partimos do que chamaremos nesse momento de tríade ou triangulação, de grande
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
importância para compreender nosso objeto de debate. De um lado temos a cultura do
aluno, de outro a cultura da escola e entre ambos a cultura escolar.
Compreendemos por cultura do aluno, seus saberes adquiridos e construídos
relacionalmente no âmbito familiar, suas experiências, suas vivências e sua história. A
cultura da escola envolve as ações e comportamentos dos gestores e técnicos, bem como
a prática e a práxis pedagógica de cada professor ou/e professora. Por cultura escolar
entendo o currículo instituído, os atos de currículo, as diretrizes as políticas públicas no
campo educacional acrescido de tudo que faz a escola ser uma escola.
Se compreendermos que é na cultura escolar que estão os elementos de mediação destes
embates que vêm ocorrendo nas escolas e, muitas vezes, de forma violenta, acharemos
um caminho no meio da escuridão, ainda que tosco. É no campo do currículo e dos atos
de currículo que podemos encontrar possibilidades de alternativas para se pensar uma
saída inicial para esse caos em que se encontra a educação na escola pública brasileira.
Para finalizar, trago devaneios e reflexões de um romântico e idealista que sonha e
acredita que é possível construir uma nação verdadeiramente democrática, que deixe de
ser massa e se torne povo, que conheça seus direitos e que lute pela sua preservação e
ampliação a exemplo de uma escola pública gratuita e de qualidade. Sabemos que a
escola tem uma função social, hoje precisamos re-pensar esse modelo que não satisfaz
mais às necessidades da sociedade.
Torna-se necessário uma escola que compreenda e assuma politicamente que seus
estudantes não são “idiotas culturais” aprendendo a respeitar as crenças e os credos de
seus atores educativos, como também o reconhecimento de um processo identitário que
todos nós em nosso devir passamos, pois como dizia Freire somos seres em constante
processo de formação.
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
4. Atos de currículo e cultura escolar
O termo Atos de currículo é um conceito que vem sendo desenvolvido por Roberto
Sidnei Macedo em alguns dos seus textos no âmbito da formação no Grupo de pesquisa
FORMACCE, entendido enquanto um dispositivo formativo. Macedo entende que o
currículo não deve ter só um caráter formativo e normativo, mas sim ter um caráter
libertário e identitário. Segundo Macedo, a denominação atos de currículo
Parte da premissa de que o currículo, por mais que possa adquirir uma certa
autonomia em relação aos seus pensadores, construtores e /ou executores (o
currículo instituído, visto enquanto uma estrutura que constrange e altera
pelos processos formativos), se consubstancia enquanto processo instituinte
incessante pelas ações concretas dos atores educativos, ou seja o currículo é
uma construção/produção sociopedagógica, cultural e política, feita e refeita
pelos seus atores/autores dentro de ‘dada’ historicidade, coletivamente
configurada, em que sempre se vivencia certas hegemonias de cosmovisões,
visões de homem, de educação, de ensino e de aprendizagem” (MACEDO,
2000, p. 95-96).
Nas palavras fecundas de Macedo, podemos compreender os atos de currículo em
grande medida enquanto um dispositivo que proporciona refletir os temas que nos
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, aparecem apenas como temas transversais:
Sexualidade, Cultura e Educação Ambiental. É sobre a questão cultural que temos a
intenção de refletir, fazendo algumas perguntas: qual é a cultura que é valorizada na
escola? O currículo contempla a cultura local? Por que em nossas escolas temos que
sempre pensar a cultura global e alijarmos a cultura local?
Um exemplo está na linguagem dos jovens, no uso de adereços que até certo tempo
eram imorais, tais como a tatuagem e o piercing. A instituição escola não consegue abrir
uma linha de diálogo com os estudantes e estes, por sua vez, reagem a essa falta de
dialogo com certa violência, usando como mecanismo o vandalismo que vem
degradando a escola. Teixeira e Bezerra (2007, p. 56) afirmam que o currículo escolar
contempla apenas conteúdos que objetivam resultados imediatos e que “determinados
saberes deveriam ser contextualizados de forma que os alunos entendessem melhor a
importância e a sua relação com a vida cotidiana, esclarecendo dúvidas para as quais
nunca encontram respostas porque elas não fazem parte do currículo”
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
Nesse sentido Macedo (2007, p. 26 - 27), nos traz a seguinte reflexão:
No momento em que no Brasil se constrói uma sensibilidade pública, até
mesmo oficial, no que concerne á emergência da diversidade cultural como
principio de organização da educação nacional, bem como se discute
mecanismos de inclusão e de institucionalização de cotas na educação como
forma de fazer face a uma história de alijamentos e de silenciamentos de
vozes advindas de segmentos socioculturais não hegemônicos, - cito, como
exemplo, a segregação e a perversidade com que a cultura afrodescendente e
índiodescendente e outras formas de pertencimento ainda são pleiteadas nos
curricula – , faz necessário aprofundar reflexões de uma forma mais
complexa para se apreender a dinâmica e o alcance dessas iniciativas.
Macedo propõe refletirmos do ponto de vista da escola, do currículo e da formação a
necessidade de se pensar uma escola multicultural e/ou intercultural.
5. Considerações finais
A relação escola, cultura escolar, currículo e construção de identidades vem
possibilitando questionamentos e articulações no campo educacional. Podemos notar
que a escola atual na aparência mostra-se tão ultrapassada quanto na sua essência. O
esfacelamento da estrutura familiar tradicional e o pessimismo social para com a
instituição escolar reflete bem o que é nossa sociedade.
É chegado o momento que as políticas curriculares e as práticas/práxis pedagógicas
precisam refletir que a escola não é mais o local de reprodução de conhecimento
sistematizado com um fim prático – o vestibular. Mas pensar uma escola plural e
singular, um espaço no qual não se fique só nos discursos panfletários de políticos sobre
inclusão, mas que inclua de fato com responsabilidade.
Os estudos culturais, o multiculturalismo, a interculturalidade no campo da educação
tem muito a contribuir para uma formação dos atores sociais. Para que isso ocorra é
necessário pensar uma escola que vá alem do si em si mesmo e avance para o si mesmo
no outro e o outro em si mesmo. Podemos pensar numa formação ao longo da vida na
qual as histórias dos sujeitos do processo educativo não se percam em meio às
institucionalizações do conhecimento, mas que faça parte do processo. Pois cada
história traz consigo um pouco de cada um de nós.
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
Pensar um currículo que contemple esta necessidade é pensar um currículo identitário e
formativo (MACEDO, 2007). Como nos diz Silva (1995), “a questão do
multiculturalismo e da afirmação da identidade cultural dos diversos grupos sociais
também apresenta uma oportunidade para repensar velhos dilemas sobre a relação
cultura e educação” (SILVA, 1995, p. 196).
Para Moreira e Câmara, a identidade tem um foco político importante, pois é “a ênfase
na identidade deriva do reconhecimento de que certos grupos sociais têm, há muito, sido
alvo de inaceitáveis discriminações. Entre eles, incluem-se os negros, as mulheres e os
homossexuais” (MOREIRA e CÂMARA, 2009, p. 39). Inspirado em Silva
compreendemos que o currículo é o locus onde as lutas pelo poder se intensificam em
busca de significados e significantes sobre o social e o político.
Assim , Reinaldo Matias Fleuri (2003, p. 56), entende que a identidade “é formada e
transformada continuamente em relação ás formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Todavia “a cultura escolar
produziu uma seleção de conteúdos escolares que priorizam os aspectos cognitivos e
marginalizam os culturais, tornando inflexível a composição do currículo” (TEIXEIRA
e BEZERRA, 2007, p.59).
Por fim, é preciso mudar a mentalidade daqueles que fazem a escola, temos que criar
uma escola para além da estrutura física, de inanimada para uma estrutura animada com
vida e construção de saberes na produção de conhecimento. Que não valorize apenas a
prática pedagógica, mas sim a práxis pedagógica, a dialogicidade e a intercrítica. Tendo
nos atos de currículo, idealizados por Macedo, um importante dispositivo para essa
mudança.
6. Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2007.
(Coleção Primeiros Passos).
CECCON, Claudius. A Vida na Escola e a Escola da vida 39.ed. Petrópolis: Vozes,
1980.
Josevandro Chagas Soares
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Currículo e Cultura Escolar: refletindo o lugar das identidades na escola
DELVAL, Juan. Aprender na vida e aprender na escola. Trad. Jussara Rodrigues.
Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e sociedade. 6.ed. São Paulo: Moraes, 1980.
(Coleção educação universitária).
FLEURI, Reinaldo Matias. Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo, diversidade e eqüidade: luzes para uma
educação intercrítica. Salvador, EDUFBA, 2007.
___________. Currículo: campo, conceito e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2007.
MOREIRA, Antonio Flávio; CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças
culturais e praticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Os novos mapas culturais e o lugar de currículo numa
paisagem pós moderna. In: Territórios contestados: o currículo e os novos mapas
políticos e culturais. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
TEIXEIRA, Célia Regina; BEZERRA, Roseane Dal Belo. Escola currículo e
cultura(s): a construção do processo educativo na perspectiva da multiculturalidade.
Dialogias, São Paulo, v.6,2007.
Josevandro Chagas Soares
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
OS VÍNCULOS ENTRE OS OBJETIVOS DA
EDUCAÇÃO, OS CURRÍCULOS E AS PRÁTICAS,
PENSADOS A PARTIR DO CASO DOS
PRÉ-VESTIBULARES
Kléber Clementino da Silva
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
OS VÍNCULOS ENTRE OS OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO, OS CURRÍCULOS
E AS PRÁTICAS, PENSADOS A PARTIR DO CASO DOS PRÉVESTIBULARES
Kléber Clementino da Silva
RESUMO: Na redação deste artigo, procurou-se argumentar que os currículos e as
práticas, em um processo de aprendizagem, encontram-se em inescapável articulação
com os objetivos perseguidos pela educação. Em outras palavras, a atividade
pedagógica veicula, consciente ou inconscientemente, aquilo que se espera da educação,
os preceitos que alicerçam a concepção educacional dos envolvidos – os quais não
coincidem obrigatoriamente com os preceitos inscritos nas leis ou defendidos nos
compêndios e nos discursos. Operam, aqui, os objetivos reais, sejam eles nobres ou
mesquinhos. Estes argumentos e conclusões decorrem da análise e interpretação de
dados obtidos em pesquisa de campo realizada em Recife, no segundo semestre de
2008, em estabelecimentos privados de ensino pré-vestibular. Especificamente,
apresentam-se algumas das características da docência nestes espaços, e discute-se quão
profunda tem sido a interferência do Vestibular sobre os objetivos, e por conseguinte
sobre os currículos e as práticas pedagógicas da escolarização regular. Por fim, tecem-se
ligeiras reflexões sobre as reais motivações da população no que toca a Escola, e sua
possível dissonância quanto às aspirações do discurso pedagógico.
PALAVRAS-CHAVE: objetivos da educação, currículo, Vestibular.
I
A primeira esposa de Napoleão Bonaparte, o leitor porventura recordará,
chamava-se Joséphine, Joséphine de Beauharnais – ou Josefina, se me é dado
aportuguesar a grafia. Descendia da nobreza e, como convinha às moças bem nascidas,
Josefina recebeu sólida instrução, mas não essa que compreendemos hoje em dia.
Foi educada no Convento das Senhoras da Providência, em Fort-Royal (...).
O currículo consistia então em catecismo, boas maneiras, literatura, desenho,
bordado, dança e música; as freiras acreditavam que estas disciplinas
levariam uma mulher muito mais longe do que o latim, o grego, a história e a
filosofia; e Josefina provou que estavam certas. Tornou-se, como foi dito de
Mme. de Pompadour, “um petisco para um rei”. (DURANT, 1993, p. 92).
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
Este resto de frase não entra aqui sem malícia. O autor, ao mesmo tempo em que
concorda que as lições de bordado e boas maneiras ministradas pelas freiras “levariam
uma mulher muito mais longe” do que palestras lingüísticas, históricas e filosóficas, dá
logo em seguida a qualidade e a exata medida desta lonjura – nada além de fazer das
mulheres um berloque, um enfeite sofisticado para os salões, “um petisco para um rei”.
E Josefina, se é possível dizê-lo sem ser descortês para com sua memória, não serviu de
“petisco” apenas para Bonaparte; primeiro que ele, casou-se com o visconde de
Beauharnais, de quem herdou o nome e com quem teve dois filhos, mas o infeliz
terminou guilhotinado em 1794, durante o regime do Terror jacobino, deixando a
viscondessa livre para contrair novas núpcias e adornar outros soirées. Inclusive
detratores há que a acusam de haver escapado de morte semelhante pela concessão de
favores impróprios a militares de alta patente, porém as provas não são de modo
nenhum definitivas, talvez se deva atribuir tudo à picardia da época.
Aprender sobre estes desdobramentos, sobre a educação de l’impératrice me
deixou meditativo. Naturalmente, não é verdade que tenhamos atingido já o patamar da
completa igualdade entre os sexos, muitas carreiras e posições permanecem ainda,
aberta ou veladamente, dificultadas às mulheres. Suponho, contudo, que mesmo a mais
fervorosa correligionária do feminismo concordará que desde muito está superada a
“boa educação para moças”, cujo programa pouco diferia da formação em bordados em
que se graduou Josefina, e cuja reintrodução, agora, soaria escandalosa e mereceria o
repúdio geral. O que cumpre notar é o quanto aquele currículo do convento martinicano
harmonizava-se aos propósitos da época e do lugar, ao papel reservado a Josefina na
sociedade francesa e, em última instância, às expectativas endereçadas à atividade
educativa. Partamos daqui.
Basta este singelo exemplo para provocar-nos um largo sorriso diante de
afirmações como as da professora Guiomar Namo de Melo (1990), para quem é
possível, sim, destacar do conteúdo da cultura um determinado conjunto de saberes mais
elevados, de legitimidade indiscutível; e para quem, além de serem isentos os
conteúdos, a seleção deles pode se realizar de maneira apolítica, inquestionavelmente
objetiva, a salvo do contágio ideológico e das paixões dos agentes sociais. Exumando a
Kléber Clementino da Silva
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
polarização entre a poiésis – o domínio da técnica e da necessidade, do que prescinde do
discernimento – e a práxis – o domínio da ética, da política, da escolha e da decisão –
Melo propõe, em primeiro lugar, classificar a Educação como poiésis, e em segundo
lugar abandonar a hierarquia aristotélica, coroando-a como superior à práxis. Em suas
próprias palavras, que ela avalia como “óbvias” (Idem, pp. 19-20): “cabe à escola
ensinar. A principal função social e política da educação escolar é, neste sentido, a
transmissão do conhecimento sistemático e universal”. Ora, o que é “universal” está,
por definição, a salvo das disputas, não resulta de conflitos nem é fruto de um
julgamento revogável.
“Ensinar”, assim, não seria uma tarefa problemática ou
controversa, não implicaria escolhas nem posicionamentos, assim como não seria
problemático o conhecimento a ser transmitido aos alunos. É poiésis. Daí a urgência,
continua ela, de “desideologizar a educação” e “dar acesso ao conhecimento sistemático
e universal”, ensinar a ler, a escrever, as “noções de grandezas e números”, e tudo o
mais que se distancie das interferências partidárias, que comporte validade geral e se
revele igualmente benéfico a todos os seguimentos. “Escola não é partido” – eis seu
slogan; logo, o político não participa do curricular. Negá-lo é pretender “doutrinar” os
estudantes, é promover o que não importa nem melhora, é “mistificar e romantizar o
saber popular”, que é meramente regional e assim deve permanecer. Não será esta
cultura ilegítima e sem potencial para o progresso econômico que haverá de compor o
currículo escolar. Há conhecimentos, possivelmente concluiria, que por sua relevância
histórica e científica devem figurar nos programas educacionais de todas as nações
modernas, cuja ausência é simultaneamente danosa para os indivíduos que aprendem e
para as sociedades que os educam. A reunião deles corresponde ao “currículo
universal”, a sistematização dos únicos conhecimentos verdadeiramente educativos,
daquilo que a humanidade elaborou de excelente e positivo no decurso da história, para
além do que é duvidoso, sectário e opinativo.
Desconfio que poucas das disciplinas em que a jovem Josefina foi titulada, e que
lhe permitiram tão admirável trajetória na sociedade francesa ali pelos fins do século
XVIII encontrariam espaço na lista desses “conhecimentos universais”. Provavelmente
nenhuma delas, pois, insistiria Melo, apenas importâncias de mais alta esfera merecem
constituí-la, a Física, a Matemática, a Gramática e outras. Que currículo de validade
geral abrigaria estudos de Hagiologia, de “danças para bailes”, de “boas maneiras à
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
mesa”? Nenhum. A bem da verdade, não somente Melo, pouquíssimos dentre nós
aceitariam custear as mensalidades dispendiosas de uma educação em tais matérias. Mas
a diferença entre Melo e o resto de nós é uma: nossa recusa não vem, como a dela, de
concluirmos que estas aprendizagens estão excluídas do conhecimento universal – seja
lá o que isso for; vem, sim, porque elas não atendem aos nossos objetivos, aos interesses
e lutas em que estamos mergulhados no presente. Porque, leitor, um currículo é isto: a
manifestação, vertida nos termos de um programa, das expectativas depositadas pelas
pessoas sobre o processo educativo. Desejamos descobrir o que se quer com a educação
oferecida à mocidade? Examinemos seus currículos, a resposta reside neles1.
Retomando o exemplo, Josefina formou-se exatamente naquelas disciplinas que
correspondiam às aspirações das damas bem nascidas do Ancien Régime, assim como da
sociedade ao redor delas, disciplinas que hoje, no máximo, fariam de uma moça numa
dondoca ignorante. A adequação de um currículo se mede pelo grau em que ele se
harmoniza ao sentido dado à educação: se este objetivo é formar pessoas críticas,
dotadas de discernimento e sensibilidade acerca dos problemas sociais, um currículo
pautado por estas mesmas diretrizes, que vise a infundi-las e prestigiá-las, é o
instrumento ideal; se, ao contrário, for capacitar para o mercado de trabalho, para a
aprovação no Vestibular ou para o recreio da aristocracia, o mesmo currículo resulta de
pouca serventia. Inaceitável postular a existência de um currículo de validade absoluta,
o melhor para todas as ocasiões, épocas e lugares. Como escreveu o historiador inglês
Edward Carr (2006, p. 161), “nada é mais radicalmente falso do que colocar algum
padrão supostamente abstrato do desejável e condenar o passado à luz dele”. Daí,
enfim, ser tão inadequada a hipótese de um saber universal, ótimo para todo mundo –
exceto no caso ainda mais hipotético de uma sociedade em que a totalidade dos seus
segmentos perseguisse propósitos idênticos. É claro que algo assim não existe, Julien
Brenda (2007, pp. 46-47) foi um dos que nos desenganaram desta mentira: “é inegável
que a democracia, precisamente por outorgar a liberdade individual, implica um
elemento de desordem”. Montesquieu foi outro: “quando em um Estado não
percebemos o ruído de nenhum conflito, podemos ter certeza de que a liberdade não
existe ali” (MONTESQUIEU apud BRENDA, 2007, p. 47). Liberdade é divergência.
Um “currículo universal” é uma fraude.
1
Mas não somente neles: também nas práticas docentes, nas concepções e mecanismos avaliativos, nos
modelos de gestão, em tudo aquilo que na educação admite interferência humana.
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
II
Tecidas estas reflexões preliminares, cumpre agora enveredar por quesitos mais
específicos, como o do vínculo entre os objetivos, o currículo e a prática docente nos
cursos pré-vestibulares, e sua reverberação no Ensino Médio. Se, como foi dito, um
currículo dá corpo à coleção dos objetivos em que investimos a educação,
posicionamentos que almejem negar o caráter político da seleção curricular, julgando-a
desinteressada e isenta, ou ignoram os conflitos de que ela é fruto, ou conhecem-nos e
manobram para ocultá-los. Numa sociedade como a nossa e numa escola como a que
nós temos, costuma predominar a segunda alternativa: não admitir as articulações entre
o peso conferido a cada ramo do saber e as pressões sociais incidindo sobre o sistema
escolar, adotando antes o discurso de que o currículo ideal é “racional”, “lógico” ou
“universal”, proporciona excelente estratégia para preservar as disposições atuais, de
fazer com que a educação escolar prossiga beneficiando os mesmos segmentos, sem
deixar espaço para contestações. A análise de Michael Apple em “Ideologia e
Currículo” (APPLE, 1982) demonstra em detalhe o funcionamento deste mecanismo.
Em suas palavras, “a estrutura da tendência de áreas do conhecimento constitui um
exemplo interessante de muitas dessas questões sobre poder e cultura” (Idem, p. 60); o
currículo não só não é de maneira nenhuma universal, como ainda por cima tende a
veicular em seus capítulos as mesmas ambições e valores daqueles que o estipulam. Por
sob sua superfície aparentemente calma e consensual há uma tempestade conflituosa, e
sua configuração equivale sempre a um equilíbrio dinâmico das reivindicações sociais.
É predominantemente conservador, ou reformista, ou radical ou de outra inclinação, em
consonância com a média das forças políticas em atuação no momento de sua redação2.
E esta natureza fervilhante e aguerrida não se manifesta apenas na disposição dos temas
(enfatizando, digamos, conteúdos harmonizados ao discurso hegemônico, e vetando ou
secundarizando matérias desconfortáveis), mas também na própria abordagem com que
se interpretam e ensinam os conhecimentos.
2
Uma análise instrutiva da confrontação dessas forças na determinação das diretrizes educacionais se
encontra em BRZEZINSKI (2000), que estuda as disputas em torno da redação e da homologação da
LDB vigente.
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
Há abordagens e abordagens. Um curso de Matemática dedicado, por exemplo, ao
tema das funções pode sem dúvida propiciar aos seus estudantes um genuíno
aprendizado matemático, desde que lhes ensine o que são funções, o que significam, que
espécies de problemas reais os matemáticos desejavam solucionar ao desenvolvê-las –
além de, é claro, como calculá-las. Um curso, no entanto, que negligencie todas estas
importâncias a fim de preocupar-se apenas com a última – quero dizer, um curso de
funções matemáticas que indica apenas como calculá-las sem verdadeiramente entendêlas (ou, estendendo o raciocínio às demais disciplinas, a listar eventos históricos,
características geográficas, reações químicas, regras gramaticais e assim por diante),
sem ir além disso, não dissemina o conhecimento matemático (ou histórico, ou
geográfico, ou químico), não ensina a pensar matematicamente, e portanto contribui
muito pouco para a formação das pessoas. Trata-se de abordagem limitada, mutiladora
da inteligência e das potencialidades, incapaz de formar protagonistas sociais. Ora,
talvez me interrogue o amigo leitor, mas o que produz esta diferença do primeiro curso,
que ensina a pensar matematicamente, para o segundo, que só mostra como efetuar
cálculos sem entendê-los? A resposta: a diferença reside nos objetivos perseguidos por
uma e por outra educação.
Mas que objetivos, afinal? Quem é capaz hoje de declarar seguramente quais são
os propósitos que norteiam a educação brasileira? Se a educação de um povo buscasse
metas tão simples quanto, digamos, as do sistema de tráfego, caberia arriscar alguma
resposta descomplicada. Peço licença aos especialistas para adentrar terreno em que sou
ignorante, mas a comparação talvez possua utilidade. Deixando de lado outras prováveis
dificuldades (como a poluição, a sinalização ou a criminalidade) e sem dúvida
incorrendo em pecaminosa simplificação, os dois principais objetivos do sistema de
tráfego parecem ser permitir que a ida e vinda de veículos flua com o mínimo de
congestionamentos, e que tanto pedestres quanto condutores não se acidentem.
Sintético, dois alvos claramente determináveis, atuando em combinação. E, no entanto,
o leitor estará familiarizado com as manchetes cotidianas dos muitos quilômetros de
engarrafamentos e, o que é mais lastimável, das tantas fatalidades acontecidas nas
rodovias. Conhecem-se bem os objetivos e problemas, mas as soluções são custosas,
envolvem os hábitos e os recursos de populações inteiras, e na concorrência de todos
esses fatores se tornam complexas e emaranhadas. Que inteligência temerária acredita
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
saber exatamente o que fazer? Encarecer a compra de veículos? Dificultar a obtenção
das licenças de motorista? Implantar rodízios de automóveis? Abrir novas e mais largas
avenidas? Destinar maiores verbas para o transporte coletivo? Mas não é verdade que
cada uma dessas iniciativas acarreta danos colaterais, e por conseguinte esbarra em
fortes oposições?
Ora, se para o sistema de tráfego, cujos objetivos se identificam com esta relativa
facilidade, as soluções revelam-se em tal medida controversas, o que diremos do campo
educacional, onde os antagonismos assediam não apenas as soluções dos problemas,
senão, já muito antes, a própria definição dos propósitos, atravessando por sobre cada
uma das etapas do processo? Uma questão educacional – como a da finalidade do
Ensino Médio – se vê alvo de tantos e tão distintos interesses que suas incidências
rapidamente saturam a experiência, negam terreno à isenção e à neutralidade, e basta
que ressurjam na pauta dos debates para convulsionar os espíritos e inflamar a
atmosfera.
Um campo particularmente minado da trajetória escolar é o momento da transição
do Ensino Médio para o Ensino Superior, mediado como é pelo processo seletivo do
Vestibular. Que currículo convém ao Ensino Médio? Seria aquele que abordasse
conteúdos orientados à profissionalização dos estudantes, para que depois do terceiro
ano, se assim desejassem, se encontrassem capacitados a tomar parte na cadeia
produtiva? Ou, ao contrário, outro que lhes proporcionasse educação de maior
profundidade e abrangência, com acento nos valores culturais e humanos, no
conhecimento investigado pelas gerações predecessoras, estimulando neles a
inteligência e o discernimento, cultivando-os como homens e mulheres efetivamente
emancipados? A resposta inscrita na legislação vigente é: “as duas coisas”3. Não se trata
de ambigüidade casual, mas sim de descaracterização de longa data em nossa história
educacional, desembocando num Ensino Médio sem identidade, oscilante, cuja
existência se apóia, ou no mundo do trabalho, ou na expectativa universitária: o fluxo
dele para o Ensino Superior, como um pêndulo, ora se inclina para a direita, ora para a
esquerda (CUNHA, 1982), e cada deslocamento corresponde a concepções distintas,
objetivos distintos, currículos distintos. Nas décadas recentes, havendo fracassado a
3
Ver a análise de PEREIRA & TEIXEIRA (2003).
Kléber Clementino da Silva
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
política do “secundário profissionalizante”, e sem embargo do que diz a lei, prevaleceu
a noção de que o Ensino Médio é a ante-sala do Vestibular, de que este exame é seu
objetivo4. “O que não cai no Vestibular”, denunciava Cláudio de Moura e Castro há
quase 30 anos, “não se ensina na Escola. Os currículos adotados no secundário
dependem muito mais do Vestibular do que dos programas oficiais ou das preferências
de escolas e professores” (1982, P. 20). Subordinar desta maneira os preceitos do
Ensino Médio ao Vestibular equivale a, no mínimo, rebaixar as esperanças confiadas à
educação ao status de vacuidade; lê-se na lei e fala-se em emancipação, discernimento,
profissionalização, “aprimoramento como pessoa humana”, “compreensão dos
fundamentos científico-tecnológicos” (BRASIL, 1996 apud BRZEZINSKI, 2000, p.
254), porém estes são estatutos falsos, que não mobilizam ninguém – pois os reais
objetivos se sujeitam à aprovação no Vestibular, à obtenção do diploma e à escalada
pelas recompensas que supostamente se reservam a quem obtém o terceiro grau. E –
para o bem ou para o mal – são exatamente estes “reais objetivos”, e não os da retórica,
da lei ou consciência que se enraízam nos currículos e nas práticas docentes, o que
explica por que se multiplicaram os cursinhos pré-vestibulares, com sua pedagogia “do
que aprova”, e por que tantos colégios acompanham suas idéias e seu modus operandi.
Coisa muitíssimo diversa, portanto, é debruçar-se sobre estudos com a finalidade
de cultivar-se em cultura ou ciências ou profissionalizar-se, ou estudar para passar no
Vestibular. Atrevo-me a declarar que, para além de serem diversos, são propósitos
irreconciliáveis. É claro que um hipotético exame poderia incumbir-se de avaliar o grau
de aprendizagem dos alunos, não incorrendo por isto em erro ou paradoxo. Entretanto –
eis o âmago do problema – o Vestibular não é um instrumento pedagógico cujo papel
seja selecionar, mas sim um mecanismo cuja função é legitimar uma seleção que o
precede. Os que ocuparão as vagas mais cobiçadas e prestigiosas não são selecionados
pelo Vestibular, mas pelos abismos quase intransponíveis da nossa estrutura social,
resultado do berço onde nasceram, dos valores e da instrução que receberam, da
tranqüilidade econômica de que desfrutaram ao longo da vida. Exceções são heróicas.
Decorre daí que, de mero questionário, o Vestibular se tenha convertido na meta do
Ensino Médio: o que jaz adiante não é uma prova, senão uma muralha maciça,
4
Resta saber o efeito que terão as recentes medidas anunciadas pelo governo, que prenunciam o “fim do
Vestibular” e sua substituição pelo modelo do ENEM.
Kléber Clementino da Silva
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
gigantesca, e não há ultrapassá-la senão para aqueles que se apresentam carregando nas
mãos os sofisticados equipamentos do alpinismo. Os demais, por muito ardentemente
que queiram e por mais que corram e saltem...
É compreensível que um processo educativo absorto nestas finalidades elabore um
currículo igualmente orientado para a legitimação das seleções de origem social, e não
para a promoção equânime da cultura, da cidadania ou do que quer que seja. Assim
procedem o Vestibular, os cursos pré-vestibulares e os colégios que se inspiram neles:
seu currículo, seu ensino e a prova para que preparam constituem um coeficiente
preservador de exclusão social, de pretexto meritocrático, a garantia pedagógica de que
os membros de determinadas classes, pondo em movimento as vantagens materiais a
que têm acesso, gozem de predominância na ocupação das posições profissional e
economicamente vantajosas5. E como isto é conseguido? Orientando o currículo para o
enciclopedismo, promovendo por meio dele a competição aberta entre candidatos
desiguais. De vez que, como sustento, o objetivo do Vestibular, ao contrário do que se
divulga, é trabalhar para que determinados grupos ingressem na Universidade, enquanto
outros permaneçam fora dela, a tarefa seguinte é elaborar um currículo que veladamente
tenda a beneficiar uns e não outros, e isto sem provocar escândalo ou incitar reações
sociais. Ora, decretar que quem é pobre ou cursou apenas a escola pública ficará
proibido de matricular-se em Medicina, Direito ou Publicidade é medida inquietante,
que revoltaria nossas consciências cristianizadas e provocaria agitações nas ruas. Por
outro lado, atingir aproximadamente o mesmo efeito obrigando os vestibulandos a
responderem dezenas de quesitos em poucas horas, versando sobre todo o conteúdo da
Educação Básica, celebrando a memorização em prejuízo do autonomia, a velocidade
em prejuízo da clareza e a resposta em prejuízo do entendimento é fórmula muito mais
sutil e inteligente, e que não perturba a paz pública. Somente os que puderem custear
estudos preparatórios com especialistas – um investimento que, pelo menos em Recife,
costuma ultrapassar a cifra dos 10 mil reais anuais, às vezes por dois, três anos seguidos
ou mais (SILVA, 2009) – contarão reais chances de aprovação. E, repito, em meio a
5
Apresso-me a esclarecer que esta crítica se destina à estrutura social situada ao redor do Vestibular, e
não necessariamente às pessoas que trabalham sob sua influência. Há iniciativas nos cursos prévestibulares que reservam vagas para alunos oriundos de famílias carentes, a baixo ou a nenhum custo,
pretendendo oferecer-lhes maiores chances de aprovação. Exemplo que sem dúvida não deixa de ser
louvável, e aliás de imenso benefício para as pessoas selecionadas, mas de pouca eficácia na resolução do
problema educacional e social em pauta.
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
todo este esforço e concentração, renuncia-se a tudo o mais que a educação é capaz de
criar, em nome desta competição e desta legitimação.
III
Aquilo que redigi mais acima, que os objetivos da educação diferem dos do
sistema de tráfego por se constituírem muito mais complexos e atravessados por
controvérsias, aplica-se às sucessivas instâncias da escolarização, mas não aos prévestibulares. Os pré-vestibulares não têm dois objetivos: seu propósito é aprovar.
Resolve-se neles o antigo conflito acerca do sentido da educação, partilhado por todos
os povos que admitiram a Pedagogia como problema da política e do pensamento, pelos
gregos, pelos renascentistas e por nós, na Modernidade: silencia imediatamente o
embate em torno da humanização, da adaptação social e da aceitação dos valores, da
capacitação para o trabalho, da promoção do senso crítico ou da emancipação
intelectual; a função da aprendizagem não é nada disso; é aprovar.
Ora, de vez que o objetivo da educação é agora aprovar, toda a operação
pedagógica reorganiza-se em conformidade com a nova meta, as concepções, as
práticas, o currículo e o mais passam a veicular e a enaltecer o que faz passar. As salas
de aula dos pré-vestibulares oferecem ótima oportunidade de presenciá-lo. Para tanto,
realizei, entre agosto e outubro de 2008, uma pesquisa de campo em três
estabelecimentos privados de ensino pré-vestibular, havendo observado aulas e
entrevistado sete docentes, além de alunos e coordenadores6. Obtive informações e
extraí conclusões esclarecedoras. O substrato educacional com que ali se trabalha
aparenta, na superfície, despir-se de todo conteúdo político e afastar-se das querelas
sociais, tornando-se neutro e “exclusivamente pedagógico” – como sonhava Melo; em
última análise, entretanto, empreende, mediante essa negligência, reiterar os principais
elementos do conservadorismo. Dá de ombros às reivindicações do mundo para
recolher-se num sistema ideal de aprendizagem-aprovação, em face ao qual a sociedade
6
Como parte da pesquisa de mestrado que desenvolvi no interior do Programa de Pós-graduação em
Educação do Centro de Educação da UFPE, sob orientação do professor José Batista Neto.
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
e seus conflitos pouco importam. Na Língua Portuguesa, na Física e nas demais
disciplinas vemos o esforço educativo comumente renunciar ao extenuante, lento e
duvidoso encargo da formação das pessoas, concentrar-se já não na compreensão, mas
na memorização, já não na autonomia do pensamento, mas na reprodução heterônoma
de modelos, fórmulas e interpretações sem concretude nem realidade. As obras literárias
convertem-se em tópicos com “aspectos importantes”; os saberes biológicos, em
extravagantes nomenclaturas que urge reter; a Matemática, a Física e a Química se
apartam da perspectiva de um labor humano, histórico, repleto de erros e revezes, para
se aproximarem daquilo que Neil Postman (2002, p. 135) apelida de “uma folha com
fórmulas de pesos e medidas”. Como se a educação habitasse um país de conto de fadas,
cujos elementos existiriam por si sós, em fantástica independência, cabendo aos alunos,
uma vez apreendendo-os, acertar os quesitos e passar.
Este travo pedagogicamente limitado do Vestibular é reconhecido por alguns dos
professores de cursinhos: “o concurso público do Vestibular é muito limitante”, anuncia
um deles, de Biologia, “na hora em que eu boto um monte de informações decorebas
numa prova, sem dúvida nenhuma a ênfase no ensino vai ser voltada pro decoreba”.
Condenam o exame, do qual se dizem meras vítimas. Um, de História, emprega
linguagem mais incisiva:
A prova de História é uma b... com raríssimas exceções. Eu, de certa forma,
tento preparar meus alunos para o Vestibular e como intelectuais; a prova
vem meramente técnica, sem a menor preocupação com o aluno e
hipervalorizando aspectos da História do Brasil que não têm a menor
importância.
Entrevista com professor de História de Pré-vestibular
E seguiam criticando-lhe o enciclopedismo e a intransigência das bancas de
correção, porém, na maioria dos casos, preferindo absolvê-lo como um “mal
necessário”. “Não [é justo], de jeito nenhum”, afirmou um professor de Física, “mas
infelizmente a gente precisa ter um processo seletivo”. Sua injustiça é secundária diante
desta necessidade, que prevalece. Eis uma constatação alicerçal: é necessário, é
imperioso assegurar que uns freqüentem a Universidade pública, mediante algum
mecanismo seletivo inconteste, para lamentação e malogro dos demais, dos “que não
Kléber Clementino da Silva
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
conseguem”. O próprio propósito de educar a juventude se subordina a esta
consideração.
Não será tão árduo exercício demonstrar por que caminhos isto se dá. Um
professor de Biologia presta-nos valioso auxílio, tão logo se propõe a elucidar os
fundamentos de sua prática. Perguntava-lhe eu se no dia-a-dia se mantinha familiarizado
com as produções da literatura pedagógica, se descobria serventia nelas, e ele respondeu
que, quando iniciante, até que se ocupara com leituras, “no começo eu li muita coisa, eu
li muito Paulo Freire”. A experiência frustrou-o: “não me ajudava muito”. Aliás,
manifestou opinião até mais arrasadora e categórica: “não me ajudava muito no ponto
onde eu tô. (...) Numa aula de Anatomia, Paulo Freire não ajuda em nada, eu não
consegui encontrar”. A afirmação talvez escandalize alguns freireanos mais suscetíveis;
para mim não podia ser mais pertinente. Nada ajudam, serão eternamente inúteis
simplesmente porque os livros de Paulo Freire batalham por objetivos educacionais
opostos àqueles abrigados nos Pré-vestibulares. A educação a que Freire almeja, eles
jamais a poderão querer, porque querê-lo equivalia a negar-se e a eliminar-se. Como a
educação que preconiza Freire, todo o seu arcabouço teórico que conhecemos, sua
ênfase na humanização da educação, na indissociação entre o aprender e o ensinar, na
emancipação e na afetividade poderiam harmonizar-se ao propósito de ensinar para
aprovar? Inutilidade perfeitamente compreensível, então, e creio até que bem quista
pelos freireanos.
Igualmente inúteis, embora não mencionados explicitamente, seriam autores como
Libâneo (1994) e Zabala (1999), para os quais a seleção dos conteúdos educativos (que
não são unos, mas diversos – factuais, conceituais, atitudinais, adotando a repartição de
Zabala) é uma responsabilidade docente, uma atribuição do saber pedagógico.
Defendem estes pesquisadores que incumbe ao professorado dispor os elementos de seu
ensino, selecionando do estrato da cultura aquilo que convém, o que melhor serve às
expectativas estabelecidas para a aprendizagem. No entanto, é claro que tal
recomendação se revela excêntrica nos pré-vestibulares, onde os conteúdos curriculares
precisam obedecer com exatidão e fidelidade aos editais de ingresso nas Universidades.
O que se deve estudar é definido exteriormente, é-se obrigado a aprender, como
condição e obstáculo no caminho da aprovação. A dimensão factual do currículo é aqui,
por definição, de procedência heterônoma, sonegando assim aos professores seu papel
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
de intelectuais a quem cabe presidir o processo de ensino. Predominam os sentimentos
de adequação e obediência, de aceitação, mesmo em face do que se admite injusto e
equívoco. E, sendo a seleção exterior e impositiva, tem-se imposto o enciclopedismo,
acarretando em que o Ensino Médio regular, de três anos, se torna intervalo insuficiente
para a apreensão de tão volumoso conteúdo.
Eu observo o menino que vai fazer Vestibular pra Medicina. Ele tem que tirar
8 em tudo – aliás, acima de 8, porque 8 não dá. 8,2. E, entre 8,2 e 8,0, tem
200 meninos. Faz uma diferença enorme ser 8,2. Esse menino é um menino
estudioso, ninguém pretende fazer Medicina se não for um menino no
mínimo mediano. É um menino estudioso, desses que faz as tarefas, passa
por média, disciplinado; não é um menino que gosta de farra, não. Esse
menino passa 5 anos pra tirar 8 em tudo.
Entrevista com professora de Literatura Luso-brasileira
“Passa 5 anos pra tirar 8 em tudo”: três no Ensino Médio e mais três no cursinho
pré-vestibular (um dos anos é de concomitância): quantos orçamentos familiares podem
suportar esta liberalidade, diante de mensalidades que sem raridade se aproximam dos
mil reais? Assim se evidencia como uma simples seleção curricular, debaixo da
aparência de isenção e neutralidade, pode em verdade desvendar-se conveniente e
interessada. Poderemos ainda nos admirar com a permanência atávica da injustiça e da
desigualdade, com o fato de que as mesmas famílias e clãs, desde as origens da
nacionalidade, ocuparem os cargos mais elevados da República e da estratificação
social? Claro que não. Assim como não admira que Freire, Libâneo, Zabala, e por
extensão Neil, Giroux, Rubem Alves, Adorno, Saviani, Meirieu e tantos que pensam a
educação entrelaçada à luta pela liberdade e pelo protagonismo histórico soem, aqui,
extravagantes, ultrapassados e mesmo inúteis.
Mas a seleção não é o único aspecto do currículo, sua interpretação e veiculação
merecem também apreciação. A heteronomia da seleção se estende naturalmente ao
trato dos conteúdos, sob a urgência da funcionalidade, “do que cai”. O desejo de
aprender não se origina em mim, nas solicitações da minha vida ou do meu meio, nem
mesmo na primeira instância dos meus interesses, mas naquilo que à distância me
prescrevem – a quase integral transposição do conceito de alienação do campo da
produção material para o domínio pedagógico, em que o mecanismo social se converte
Kléber Clementino da Silva
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Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
no arbítrio de um alienus, de um Outro sabido ou incógnito (CHAUÍ, 2003). “A maior
motivação deles”, diz o professor de Matemática, “é porque cai. (...) Se aquilo não fosse
perguntado, ele não estudaria. Infelizmente o Vestibular é muito ‘o que é que cai’, o
resultado”.
Derivam deste pragmatismo alguns distintivos já bem conhecidos dos cursinhos:
didáticas arraigadamente descritivas, esforço mnemônico, cuidado com a velocidade e a
precisão. As aulas basicamente informam e descrevem: estruturas anatômicas e
mecanismos fisiológicos, normas gramaticais, características literárias, causas e
conseqüências históricas, fórmulas físicas, etc. E o informado e o descrito, sempre,
participando daquele “saber universal” de Guiomar Namo de Melo, em cuja elaboração
não se sabe quem tomou parte, mas que apenas existem e, por algum motivo que não
está em discussão, devem ser aprendidos. Daí, também, a atenção não se estender ao
entendimento do que se estuda, mas limitar-se à possibilidade de sua manipulação:
A tônica não está em ensinar os alunos a pensar matematicamente, mas a
solucionar problemas matemáticos. É diferente, bem diferente. Ele [o
professor] está o tempo todo ensinando maneiras de resolver questões, mas
nunca formas de observar os fenômenos por meio da linguagem matemática.
Anotação do Jornal de Campo durante aula de Matemática
Presenciei aulas de Matemática e de Física nas quais o “dar a teoria” – enunciar os
conceitos e princípios de cada tema – consumia cerca de dez minutos, de um total de
três horas de aula, o restante das quais dedicado a “fazer exercícios”, abrangendo com
eles todas as modalidades imagináveis de perguntas, de modo a que, no momento da
prova, por recordação, o método de responder pudesse ser recuperado rapidamente7.
Chegar às respostas com rapidez: eliminar ou reduzir ao mínimo a necessidade de
mobilizar diferentes conhecimentos matemáticos, para descobrir qual deles é adequado.
Meditar sobre um problema neste universo, investigar uma solução ou, pior ainda,
querer criá-la, equivale a jogar fora um tempo precioso; melhor se faz ao “driblar” as
7
Não será ocioso recordar a sutil reflexão de Pozo, Asensio e Carretero (1989), de que a substituição das
práticas mnemônicas ipse litteris dos jesuítas, na educação moderna, não implicou o real abandono
daquelas concepções antigas, senão que sua conservação sob novas roupagens. Isto permite classificar a
resolução exaustiva de questões – e algumas apostilas trazem títulos explícitos como “1000 questões de
Física” – como a continuidade direta daqueles preceitos educacionais seculares.
Kléber Clementino da Silva
6725
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
questões, lançar-lhes um olhar instantâneo e, de pronto, sem ponderação nem demora,
evocar alguma outra semelhante e já solucionada, para o fim de transpor o raciocínio de
lá para cá, descobrir a resposta, marcar a, b, c, d ou e – e prosseguir ao quesito seguinte.
Esta é a lógica e o desafio matemático do Vestibular – e, em igual medida, da Física, da
Biologia, da Língua Portuguesa, segundo suas especificidades. Em Física, toda a
enunciação de um conceito como o de densidade costumava caber num laconismo de
amplitude idêntica à sua fórmula (D = M/V): “massa sobre volume”, pois as horas
restantes mal bastavam para abarcar as centenas de questões imagináveis nas quais se
solicitava calcular esta propriedade8. No estudo da Língua Portuguesa, substituía-se a
exatidão aritmética pela admissão apenas do que está certo, do que obedece sem desvio
ao dispositivo gramatical. O mais era espúrio e inaceitável. E, como dantes, premia-se a
capacidade de acertar, não de se compreender o porquê dos normativos, ou a
conveniência ou eventual inconveniência de respeitá-los. A língua afigura-se um
aparelho ditatorial, a cujo serviço alcança-se o sucesso e a chance de ser médico ou
engenheiro. Regras de crase, de colocação pronominal, de regências verbais e nominais
se sucedem, cabendo aos alunos identificar quais sentenças as respeitam e quais as
violam. O erro não é assumido como fenômeno lingüístico, como alternativa idiomática
nascida da efervescência cultural9, mas sim como depravação, como o que é feio e
absurdo, e que nunca, em hipótese nenhuma, se deve cometer.
[A função do professor de cursinho] é adestrar mesmo. Tem curso que se
orgulha de o aluno servir como propaganda: “o aluno aqui fará pelo menos
mil questões de Vestibular no ano”. Bom, pode ser muito, mas pode ser mero
adestramento.
Entrevista com professor de História
8
E sempre assombram os exemplos extremosos dos truques mnemônicos para retenção de informações,
como a conhecida “equação do sorvete”, com que os alunos apelidam a fórmula da posição de um corpo
em função do tempo e da velocidade, por conta das consoantes que representam as incógnitas (S = S0 +
V.T).
9
Tampouco o acerto, aliás, que como o erro quase sempre não passa da opção lingüística que vingou e se
tornou modelo, como ensina Marcos Bagno em seu conhecido livro (1999).
Kléber Clementino da Silva
6726
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
IV
Meditando no sentido do Vestibular, na interferência poderosa que exerce sobre
os meandros e reentrâncias da escolarização regular, Rubem Alves mal pode conter sua
fúria e seu desapontamento, e, a despeito de sua costumeira delicadeza, assaca pesadas
críticas às escolas, aos pais e aos alunos:
Os exames Vestibulares são uma das maiores, possivelmente a maior praga
que infesta a educação brasileira. (...) Seu efeito maior, entretanto, tem sido o
seu poder de moldar e determinar os padrões de educação nas escolas de
ensino médio e até mesmo de ensino fundamental. Cúmplices nesse processo
são os pais. Ansiosos por ver seus filhos nas universidades, por imaginarem
que um diploma vai lhes garantir a segurança econômica, exercem pressões
sobre as escolas no sentido de que elas se transformem em instituições
dedicadas a “preparar para os Vestibulares”. Boa escola é aquela que segue
os modelos dos cursinhos. Aquelas que não se ajustam estão condenadas à
marginalização: instituições inúteis, não preparam para os Vestibulares
(ALVES, 2000, pp. 9-16).
Não se toleram discordantes nem refratários, o Vestibular – e, mais do que ele
mesmo, a concepção educacional em que se funda – captura a todos com seus
tentáculos, de maneira que, ou o aceitamos, ou terminamos retirados das disputas
sociais. Este transbordamento, esta subversão de uma prova que se converte em objetivo
último, para onde se dirige o trabalho pedagógico de parte significativa das escolas, vem
a demonstrar-nos que perigos ameaçam a educação, quando descuidamos dela e de seus
propósitos. Observar, como nos estudos pré-vestibulares, o currículo eliminar-se em
autonomia e relevância, o ensino se transformar em preocupação mnemônica, em
obediência cega e inamovível a normativos, numa erudição que permanecem na
superfície do pensamento, é excelente oportunidade para compreender o quanto o
trabalho pela humanização é incessante, e o quanto é frágil. A subordinação da
educação aos desígnios do Vestibular empobrece seus fundamentos, empobrece seus
currículos, empobrece suas práticas e abastarda suas conseqüências, mas, mesmo em
face de tão ululante degradação, conseguiu ainda assim converter-se na orientação
predominante no Ensino Médio, naquilo a que aspiram os pais e reivindicam os
estudantes.
Kléber Clementino da Silva
6727
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
Isto nos atira na cara uma interrogação grave e fatal: o que as pessoas esperam da
Escola? Acaso esperam o mesmo do que preconiza a literatura pedagógica como ideal?
Carla Patrícia Lins (2000), pesquisando em Recife, fez-se este questionamento e
concluiu que, entre as classes populares, estuda-se não pelo que defendem Giroux,
Freire ou Saviani, mas pelo anseio de ascensão social, “porque acreditam que,
escolarizados, eles serão bem sucedidos, pois a escola é quem dá condições necessárias
para que possam progredir socialmente” (p. 13); busca-se o estudo com o objetivo
precípuo de capacitar-se nas aptidões convenientes ao mercado de trabalho – sejam elas
quais forem. Maria Alice Nogueira (2004), investigando jovens membros da elite
mineira, reconheceu ali os mesmos desejos, a mesma subordinação do conhecimento à
contabilidade econômica – no caso, já não pelo projeto de ascender, mas de conservar as
posições que ocupam com seus pais. Será este, então, o mundo melhor e a vida melhor
que todos procuramos construir com a colaboração da Escola? Explica-se assim a
enorme legitimidade do Vestibular, que mesmo agora, quando em vias de desaparecer,
deixa por legado a convicção de que “é necessário selecionar”, pois não há vagas para
todos? E como as haveria, se o último objetivo não é a aprovação, não é o diploma, e
sim o prestígio social e a ascensão econômica, obrigatoriamente restritos numa
sociedade repartida em classes? Não haverá vagas nem Universidades que bastem,
enquanto se entender a Escola, e por extensão o conhecimento, como credenciais
(COLLINS, 1989), mero aparato de conservação e legitimação da desigualdade. Até lá,
leitor, sem embargo das transformações arriscadas pelos governos, o currículo desta
etapa da escolarização continuará a reunir noções pouco filiadas à realização das
potencialidades humanas, pouco propensas a extrair o que há de melhor e mais nobre
em nós, em troca de finalidades na aparência maravilhosas, mas que em verdade nos
conservam na impotência e na imobilidade.
Kléber Clementino da Silva
6728
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
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Kléber Clementino da Silva
6729
Os Vínculos entre os Objetivos da Educação, os Currículos e as Práticas, Pensados a partir do Caso dos PréVestibulares
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ZABALA, Antoni. A prática educativa. Porto Alegre: Artmed, 1999.
Kléber Clementino da Silva
6730
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CURRÍCULO, CULTURA ESCOLAR E
DISCIPLINAMENTO
Laura Cristina Vieira Pizzi
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
CURRÍCULO, CULTURA ESCOLAR E DISCIPLINAMENTO
Laura Cristina Vieira Pizzi
RESUMO: Este texto aborda os debates sobre as estratégias de disciplinamento dos
indivíduos na escola, e como essa instituição se constituiu na conjuntura social
moderna, num instrumento modelador de comportamentos, idéias e valores. Seu
objetivo é evidenciar como o processo de condicionamento e legitimação de padrões
sociais tem sido fator relevante na construção da cultura escolar. Idéias acerca das
estratégias de controle construídas pela escola serão trazidas para a discussão sobre o
tema em questão. O texto será organizado em dois momentos: primeiro um
delineamento da construção da escola moderna como instrumento disciplinador
socialmente utilizado para direcionar o imaginário social e cultural de grupos inteiros.
Segundo, uma exposição dos pontos estratégicos utilizados pela escola e algumas das
táticas utilizadas nela para disciplinar as práticas, os discursos e os sujeitos, fazendo de
sua cultura interna um lugar no qual se produz linguagens, símbolos e comportamentos
sociais próprios do ambiente escolar na atualidade, mas que se estendem e se vinculam
às formas sociais que estão além dos muros dessa instituição.
PALAVRAS-CHAVE: currículo, cultura escolar, poder disciplinar.
Cultura e Cultura escolar
Cultura é um conceito demasiadamente amplo e de difícil definição. Segundo
Williams (1992), seu significado pode envolver desde modos de vida, estados de
espírito até o entendimento do que seja uma obra de arte. Para evitar tamanha dispersão,
o autor propõe o conceito de cultura como um sistema de significações realizado (p.
206). Um sistema de significações pode ser intercambiável, compartilhado e praticado.
Esses significados estão presentes em particular em instituições culturais, que
organizam, direta ou indiretamente, a cultura. Entendemos que a isntituição escolar é
uma destas instituições que fazem parte desse sistema social cultural.
Laura Cristina Vieira Pizzi
6734
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
A educação escolar, particularmente, tem sido foco de estudo com especial
atenção para a sua função social e cultural. Na perspectiva dos Estudos Culturais, a
escola tem sido apontada como local de conflito entre culturas, como um ambiente
plural, ambíguo, que dá conta de comportar e ao mesmo tempo rechaçar a diversidade
humana. Tem legitimidade social para ser a instituição responsável, formalmente, pela
formação dos indivíduos, ao mesmo tempo em que vem consolidando, apesar de ser
interpenetrada pela variedade de interpretações de mundo, a sua própria cultura.
Nesse sentido, a instituição escolar vem constituindo, com o passar dos séculos,
suas próprias formas e normas de funcionamento, sua linguagem, gestos, hierarquia de
poder, entre sujeitos e conhecimentos, estratégias de uso dos poderes individualizados e
coletivos. É um espaço micro de reflexo da cultura, porém com seus atores fixos e
espaços similares.
Por isso, pode-se afirmar que a escola, mesmo sem a intenção de generalizá-la
nem especifica-la totalmente, é um local que não apenas participa da formação cultural
da sociedade como um todo, mas que ela própria possui uma cultura especifica.
Pérez-Gómez, num esforço por interpretar esse ambiente conflituoso e múltiplo
que é a escola, conceitua as várias culturas que considera constituir a cultura escolar.
CULTURA CRÍTICA – alta cultura ou cultura intelectual, o conjunto
de significados e produções que, nos diferentes âmbitos do saber e do
fazer, os grupos humanos foram acumulando ao longo da história;
CULTURA SOCIAL – conjunto de significados e comportamentos
hegemônicos no contexto social, composto por valores, normas,
idéias, instituições e comportamentos que dominam os intercâmbios
humanos em sociedades formalmente democráticas, regidas pelas leis
do livre mercado e percorridas e estruturadas pela onipresença dos
poderosos meios de comunicação de massa;
CULTURA INSTITUCIONAL: as tradições, os costumes, as rotinas,
os rituais e as inércias que a escola estimula e se esforça em conservar
e reproduzir condicionam claramente o tipo de vida que nela se
desenvolve e reforçam vigência de valores;
CULTURA EXPERIENCIAL: configuração de significados e
comportamentos que os alunos e alunas elaboram de forma particular,
induzido por seu contexto, em sua vida prévia e paralela à escola,
mediante os intercâmbios “espontâneos” com os meios familiar e
social que rodeiam a sua existência;
Laura Cristina Vieira Pizzi
6735
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
CULTURA ACADÊMICA: desde o currículo como transmissão de
conteúdos disciplinares selecionados externamente à escola,
desgarrados das disciplinas científicas e culturais, organizados em
pacotes didáticos e oferecidos explicitamente de maneira prioritária e
quase exclusiva pelos livros-didáticos, ao currículo como construção
ad hoc e elaboração compartilhada no trabalho escolar por docentes e
estudantes. (PÉREZ GOMÉZ apud SILVA, 2006, p.213).
Para o autor, essas culturas se entrecruzam no bojo das práticas cotidianas da
escola. Nessa perspectiva, entendemos que muitas dessas dimensões culturais da escola
tendem a se confundir e a se realizarem através do próprio currículo, entendido como
artefato, como conhecimentos e como relações sociais escolares que dão vida e formam
identidades dos sujeitos. Todas essas dimensões apontadas se mesclam com o poder
disciplinar da escola.
Escola, currículo e disciplina.
Historicamente a escola vem sendo uma instituição utilizada para influenciar os
comportamentos sociais das classes, dos gêneros, das faixas-etárias e dos grupos étnicos
de acordo com as necessidades sociais de cada contexto. O processo de escolarização
vem contribuindo para naturalizar determinadas identidades forjadas no corpo social,
que fazem parte de um espaço simbólico nos indivíduos e levam à imposição de
determinados padrões de valores, comportamento, de beleza e formas de lidar com as
sexualidades consideradas padrões nas sociedades.
Varela e Alvarez-Uria (1992) apontam o século XVI como um marco importante
na constituição do modelo moderno de escola. Nesse período se reuniram uma série de
dispositivos que permitiram instrumentalizar o modelo educacional escolar. Para os
autores, os dispositivos mais significativos foram: a definição de um estatuto de
infância; a emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças; o
aparecimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias
específicas; a destruição de outros modos de educação e a institucionalização
propriamente dita da escola (p. 69).
Parte-se do processo de transformação cultural e social que tomou a Europa no
século XVI, que viu “a realização de um espaço escolar a parte, com um edifício, um
Laura Cristina Vieira Pizzi
6736
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
mobiliário e um material específicos” (JULIA, 2001, p.13), com novas características e
funções nessa instituição. Demandando novas formas de ensinar, classificar e organizar
o tempo e os espaços.
A organização do ensino e do currículo modernos já não mais aconteceria de
forma espontânea e aberta, como um conglomerado aleatório de crianças e jovens, tal
qual na idade média, em uma classe – que podia ser toda a escola (HAMILTON, 1992a)
– com alunos em níveis de aprendizagem diferenciados e diversificada faixa-etária
convivendo sob a supervisão de um ou dois professores.
Os séculos XVII e XVIII chegaram trazendo alterações nas formas de organizar
o conhecimento a ser estudado, com os manuais de ensino; na seleção do professorado,
com os concursos; e na própria estrutura física da escola e hierarquização dos membros
desta instituição. No século XIX o vínculo das instituições educativas com o mundo
fabril começa a estreitar-se significativamente, especialmente sob a ótica da gestão de
seus recursos técnicos, humanos e materiais. Como afirma Hamilton (1992),
A característica central tanto da escola quanto das fábricas é que elas
dizem respeito tanto ao gerenciamento de pessoas quanto à concepção
de uma ‘maquinaria’ técnica. Portanto, as filosofias sociais que
inspiram suas práticas gerenciais respectivas são tão importantes
quanto os desenvolvimentos tecnológicos que governam sua escolha
de recursos materiais.” (Hamilton, 1992, 07)
A graduação da escola e de seus currículos em níveis, tempos e espaços,
fundamentaram-se em questões pedagógicas para facilitar a homogeneização do
processo de escolarização, pretendendo um ensino simultâneo. Basearam-se, também,
em uma nova forma de supervisão dos indivíduos, onde os alunos são observados pelo
professor que está sob o olhar do diretor geral. Participou de um ajustamento histórico a
uma nova mecânica do poder (FOUCAULT, 2008), que insidiosamente se colocava em
várias instituições sociais visando a maior produtividade dos corpos.
O surgimento das classes, mostrada ainda por Hamilton (1992) é um exemplo
interessante desse período de reorganização e modernização das escolas, uma vez que
permitiu sua sub-divisão interna, permitindo o reagrupamento dos alunos e um ensino
cada vez mais individualizado, sequenciado e ordenado. Essa ordem e sequencia se
tornariam sinônimo também de currículo, que rapidamente passou a ser associado ao
termo disciplina, por influência calvinista (p. 10). Essa associação sobrevive até os dias
Laura Cristina Vieira Pizzi
6737
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
de hoje. Todas mudanças efetuadas no sentido de transformar as escolas em instituições
modernas, se mostraram como técnicas de controle social bastante efetivas, com o
objetivo de ajustá-las à nova ordem do capitalismo indsutrial nascente, tanto para
formar novos trabalhadores, quanto para formar os novos gerentes do sistema.
A ampliação da escolarização no século XIX como direito, a criação de sistemas
educacionais e a intensificação dos estudos sobre educação escolar, ramificaram e
desdobraram a produção desse poder disciplinar, que é um poder capilar, constitui e
materializa-se nos discursos, rituais e práticas, crenças e regras que produzem a cultura
da escola, sendo também produzido por esse habitus escolar. (FOUCAULT, 1986).
Foucault (2008) evidencia ainda como os diversos mecanismos utilizados nas
escolas (avaliação, disposição dos indivíduos no espaço físico da escola e da sala de
aula, as regras de comportamento que se deve ter nesse espaço etc.) levam ao
disciplinamento das mentes e dos corpos dos sujeitos sociais.
A escola, de acordo com Foucault (1986), disciplina a utilização do tempo e o
conhecimento que a penetra, utilizando o exame como forma de punição e garantia de
que o processo de disciplinamento dará o resultado esperado.
Através desses três eixos (tempo, conhecimento e exame), colocados como
pontos estratégicos na estruturação tática de normalização do indivíduo, a escola
engendra os espaços de disciplinamento dos valores, criação e utilização de símbolos, e
condicionamento do conhecimento escolar, com a vigilância, a distribuição dos espaços,
a classificação das punições e finalmente a internalização das regras.
Com a utilização do tempo a escola legitima formas de marcar quanto tempo se
tem para aprender determinado conceito ou “assunto”, ou desenvolver certa habilidade
ou competência. Não conseguindo o/a estudante adaptar-se ao tempo da escola torna-se
“atrasado” ou a/o professora/o incompetente.
A sistematização do tempo relaciona-se com a classificação do conhecimento
escolar, uma vez que o torna seriado, graduado, selecionado, ou seja, sujeito ao tempo
escolar. Dentro do tempo da escola o que se aprende? Essa questão nos incita a analisar
o por que do aumento do número de disciplinas escolares e como a escola tem sido
responsável por lidar com a formação do aluno desde a linguagem escrita, à sexualidade
e religiosidade. Esse fato além de intensificar o trabalho do/a professor/a, também
Laura Cristina Vieira Pizzi
6738
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
amplia os campos de atuação na vida do educando, sendo possível escolarizar cada vez
mais o conhecimento.
Entretanto o ciclo panóptico1 da escola não se completa sem a resposta para a
questão: como medir e classificar esse disciplinamento? Chega-se, finalmente, ao
campo dos exames: provas, trabalhos, relatórios, livros de ocorrência, etc. (RATTO,
2004).
Com a difusão do discurso impregnado nos documentos oficiais para a
educação, a proposta de avaliação contínua e diagnóstica, que produz um saber
individualizante sobre o aluno, a escola classifica e enquadra os indivíduos – estudantes,
professores, gestores e pais de alunos. Segundo Deacon e Parker (1994), “o exame,
sustentado pela observação hierárquica e pelo julgamento normalizador, sujeita aqueles
que são percebidos como objetos e objetifica aqueles que são sujeitados” (p.104).
A escola é, também, espaço de normalização e homogeneização do
comportamento dos sujeitos no campo social, pois é lugar onde a coordenação e
hierarquização de movimento treina o corpo produtivo para não perder tempo, com
atividades que não gerem lucro. Onde a vigilância da realização das atividades está
constantemente presente, utilizando o conceito de disciplina dos corpos e das mentes,
espalhadas nesse espaço. A disciplina encontra-se inclusive nas minúcias do corpo
(escrita, maneira de andar, de sentar-se, etc.) que atravessam os sujeitos.
Entendendo o conceito de cultura nos parâmetros simbólicos, guiarão as análises
realizadas neste trabalho, a concepção de autores pós modernos, pós-colonialistas além
da contribuição de trabalhos baseados nos Estudos Culturais, uma vez que ampliam as
possibilidades teóricas e valorizam os aspectos subjetivos das relações sociais, tornando
a análise das práticas escolares, curriculares e culturais, mais complexa e completa.
Currículo, disciplinamento e cultura escolar hoje.
Se é fato mais ou menos consensual que a escola moderna teve historicamente
um papel disciplinador e normalizador na sociedade industrial moderna, como ficaria
1
Para Foucault, o sistema panóptico social constitui-se numa estrutura arquitetônica ou social na qual o
indivíduo se encontra vigiado constantemente, a ponto de internalizar o comportamento desejado pelo
ambiente vigiado, passando ele mesmo a disciplinar-se e auto controlar-se, através da vigilância
normalizadora.
Laura Cristina Vieira Pizzi
6739
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
essa função hoje, considerando o estágio atual do capitalismo pós-industrial, num
mundo em que as fronteiras nacionais, regionais e culturais estão cada vez mais
tensionadas?
Segundo Gore (1998), suas pesquisas têm mostrado que a instituição escolar
continua produzindo seus próprios regimes de pedagogia, que seriam formados por um
conjunto de relações de saber e poder, discursos e práticas, que limitam a
implementação de propostas pedagógicas mais radicais. Nesse sentido, a autora aponta
algumas técnicas de poder e disciplinamento que ainda podem ser observadas até hoje
nas escolas. Por sua relevância, vamos apresentar todas elencadas pela autora.
a) Vigilância: a vigilância é necessária para aprimorar a eficiência das
tecnologias de poder e tornar a pedagogia mais produtiva. Nas escolas,
professores monitoram os alunos e os alunos monitoram-se mutuamente
praticamente o tempo todo em todas atividades pedagógicas propostas,
inclusive nos momentos de intervalo;
b) Normalização: é outra técnica presente nas escolas. Para a autora, a
normazlização aparece em todas as justificativas que os professores
apresentam ao escolherem determinadas atividades didáticas ou teorias
pedagógicas para serem desenvolvidas com seus alunos. Essas justificativas
têm a intenção de mostrar as melhores alternativas de aprendizagem e de
bem-estar voltadas para os alunos. A normalização quase sempre acontece
por comparações e diferenciações que estabelecem um padrão do que seja
normal dentro da instituição. Geralmente estão carregadas de juízo de valor,
sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim;
c) Exclusão: para Gore (1998), a exclusão representa o lado negativo da
normalização, uma vez que é definido como uma patologia. Nesse sentido, a
exclusão define claramente as fronteiras da normalidade e anormalidade dos
valores e comportamentos dentro do ambiente escolar;
d) Classificação: classificar é uma das mais tradicionais técnicas de controle e
significa diferenciar grupos e indivíduos uns dos outros. Cada diferenciação
busca demarcar o desempenho, particularmente o cognitivo, mas não apenas
este, e fixar determinados papéis sociais dentro da instituição. Para a autora,
Laura Cristina Vieira Pizzi
6740
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
examinar mais de perto as práticas de classificação escolares pode auxiliar a
intervir nas práticas reprodutoras da escola;
e) Distribuição: a distribuição dos corpos no espaço escolar tem a função de
separar, isolar, reagrupar com a intenção de promover uma diferenciação
entre os melhores e os piores desempenhos, prevenir a distração e a
indisciplina.
f) Individualização: muitas das atividades pedagógicas e rotinas desenvolvidas
nas escolas buscam dar um caráter individualizado de si mesmo ou de
outros;
g) Totalização: a totalização
é
uma prática
tão
comum quanto
a
individualização. Esta técnica aparece em estruturas lingüísticas através da
palavra nós. Professores e alunos se totalizam ao se incluirem em várias
coletividades genéricas;
h) Regulação: a autora define a regulação como o controle exercido através de
regras, sujeitas a restrições que incluem sanções, prêmios e punições (p.
234). Enquanto as demais técnicas têm efeitos mais reguladores, esta se
increve especificamente através da quebra ou cumprimento exemplar de
regras e códigos escolares, exigindo medidas de premiação ou castigo.
Apesar de a listagem ser minunciosa e extensa, a autora admite que nem todas
essas técnicas se aplicam ou estão simultaneamente na variedade de instituições
escolares existentes, assim como podem se apresentar com diferentes características.
Destaca, no entanto, que as mais frequentes têm sido a individualização e a totalização.
No nosso ponto de vista, há ainda uma tecnologia de poder que ficou fora da
listagem, mas mereceria um destaque pela sua importância. Estamos nos referindo à
hierarquia. Entendemos que um dos efeitos principais das técnicas de poder disciplinar
é o de estabelecer hierarquias entre os indivíos dentro da escola. A hierarquia tem o
poder de provocar desigualdades e rivalidades, em geral de forma negativa dentro da
escola. Associada à exclusão, pode se tornar uma técnica bastante perversa nas práticas
educativas disciplinadoras.
São diversas as estratégias que vêm sendo utilizadas pela escola para disciplinar
os alunos, o tempo, os professores e a comunidade, para conservar determinados
Laura Cristina Vieira Pizzi
6741
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
comportamentos sociais que favoreçam a legitimação de hegemonia cultural de alguns
grupos sociais. Estas estratégias muitas vezes estão carregadas de intenções estritamente
pedagógicas, mas nem sempre.
Um dos aspectos mais explorado desse disciplinamento, nos estudos sobre o
tema, tem sido a utilização das formas de seleção, organização e métodos de ensino do
conhecimento escolar, ou seja, o currículo.
Para tanto, a escola se estrutura para formar cidadãos sabedores de seus direitos
e cumpridores de seus deveres. Educação para a cidadania, a moral, a disciplina e para o
trabalho.
Nosso sistema educacional tem se utilizado de diversas estratégias de controle,
como a avaliação sobre os livros didáticos – principal material para estudo e sempre de
acordo com os PCN e com as DCN (1998) – a formação continuada de professores,
financiada pelo governo, como parte da carga horária desse profissional; a inculcação de
uma imagem social na qual é preciso ser dócil e aplicado para se destacar
profissionalmente, em geral tende a ser introduzido sistematicamente na escola.
É importante deixar em evidência que essa forma histórica de organização da
escola moderna, fortemente disciplinadora e normalizadora, acaba constituindo também
uma cultura docente predominantemente disciplinadora e normalizadora. Essa cultura
docente tem um eixo comum que sempre se move no sentido de formar um ambiente
pedagógico eficiente na escola. Segundo Farias (2003) a cultura docente forma um
campo simbólico coletivo e compartilhado que expressa “um conjunto de crenças e
princípios éticos norteadores da ação pedagógica do professor, exercendo forte
influência na maneira como as interações comunicativas e realcionais são construídas na
sala de aula, na escola” (p. 6).
A cultura docente está intrínsecamente associada à organização e aos propósitos
escolares da modernidade, que ainda resistem em suas mais diversas variações até hoje.
Nesse sentido, o/a docente não age de forma neutra. Atua dentro de um contexto com o
qual deve lidar, questionar, aderir, se inserir, rejeitar, negociar, mas que, para o bem ou
para o mal, possui poder significativo para colocar em ação o currículo escolar e seus
princípios e intenções sociais. O/A docente é, portanto, um agente estratégico nesse
papel disciplinador e normalizador da escola, tanto no sentido da sua reprodução quanto
no de reistência a esse poder.
Laura Cristina Vieira Pizzi
6742
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
Considerações Finais
Através da perspectiva e demonstração do papel que a escola tem desempenhado
é que se pode compreender que sua função maior tem sido disciplinadora: para o
trabalho, para a moral, para o comportamento social de maneira quase que integral e
totalitária. Tem sido a forma dominante de funcionamento da escola e que marca a
cultura escolar, que se organiza no conjunto que envolve controle e resistência, e é
resultado do entrelaçamento de muitos outros campos sociais além do escolar,
constituindo nos indivíduos os “jogos de identidade”. (HALL, 2006).
Captar esses campos de entrelaçamento e suas possíveis influências no que vem
a se constituir a cultura escolar exige uma visão mais próxima das atividades do
cotidiano da escola.
A educação escolar tem atingido tantas áreas na formação dos indivíduos
quantas possam compreender a vida social de alguém. Tem buscado se ajustar às formas
sociais, por meio dos métodos de ensino, de maneira que quase todos os aspectos da
sociabilidade do sujeito, possam tornar-se também conhecimento escolar: religião,
comunicação, sexualidade, comportamento social, a arte etc.
Diante disso, a escola, e os professores em particular, poderiam atuar de maneira
que se padronizem menos os conhecimentos e as relções sociais escolares, que se
respeite o que se produz no processo de aprendizagem e o que o aluno traz de suas
outras instâncias de convivência, para que se liberte o ambiente escolar de um
conhecimento e de normas ditadas, para o qual o professor leva o aluno ano após ano,
legitimando sempre as mesmas verdades, que não mobilizam para a abertura da
estrutura escolar
às questões atuais,
nem
às necessidades dos indivíduos
contemporâneos.
As alternativas de sobrevivência e bem estar em nossa sociedade, longe da
educação escolar, são bastante escassas para muitos de nossos/as alunos/as. Podemos
então catalisar formas menos cruéis e padronizadas de educação escolar, levando em
consideração a diversidade humana, não dentro dos discursos humanista disseminados
pelos documentos institucionais, forçosamente, dentro das escolas, mas através de um
discurso que dê mais voz, de fato, às necessidades de uma maioria discriminada, por
Laura Cristina Vieira Pizzi
6743
Currículo, Cultura Escolar e Disciplinamento
não se encaixar nos padrões legitimados por essa instituição, que prima por padronizar
identidades.
Além disso, acostuma-se tanto a partir do mesmo ponto-problema, para fazer o
mesmo caminho, até a mesma solução, que muitas vezes encara-se a igualdade de
oportunidades como se fosse dar a todos os mesmos conteúdos, os mesmos espaços,
iguais formas de estudo e ensino e as mesmas saídas. Não se compreende que a
igualdade pode estar no fato de cada indivíduo ter condição de fazer suas escolhas sem a
limitação do padrão imposto socialmente. São modelos do que é preciso consumir,
fazer, estudar, e ser para alcançar a felicidade (DE CERTEAU, 1995). Padrões que a
escola alimenta através de suas formas de disciplinamento da identidade dos sujeitos.
Sujeitos que de tão condicionados, exigem da instituição e de si mesmos esse mesmo
condicionamento, como se fosse a única forma de enfrentar o fracasso escolar.
É importante, como fechamento provisório dessa discussão, lembrar que para
Foucault o poder não é algo negativo, é antes produtivo. Por mais democráticas que
possam ser as práticas pedagógicas da instituição escolar, dificilmente será possível
escapar das técnicas e dos jogos de poder. Fundamental é perceber que sujeitos ele
produz, quem são os seus agentes e se tal poder produz subjetividades e saberes para o
bem dos que mais necessitam da escola, a pública em particular.
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CNE/CEB n°2 de 7 de abril de1998. Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental,
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Laura Cristina Vieira Pizzi
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Laura Cristina Vieira Pizzi
6745
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
O LUGAR DO ENSINO DE PORTUGUÊS NA
CULTURA DA ESCOLA BEIRA-RIO: ENTRE A
GRAMÁTICA NORMATIVA E O LETRAMENTO
Marlene Carvalho
Mariana de Paula Leite
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
O LUGAR DO ENSINO DE PORTUGUÊS NA CULTURA DA ESCOLA
BEIRA-RIO:ENTRE A GRAMÁTICA NORMATIVA E O LETRAMENTO
Marlene Carvalho
Mariana de Paula Leite
RESUMO: Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla,
cujo objetivo geral é compreender como questões de identidade e diferença são tratadas
no currículo de uma escola de ensino fundamental, cujo alunado é formado por crianças
e jovens pobres, negros ou pardos, moradores em áreas favelizadas. Neste artigo,
enfoca-se especialmente o lugar que ocupa o ensino da língua materna na cultura
escolar e discute-se a centralidade da linguagem na formação da identidade. Concluiu-se
que a direção e o corpo docente priorizam a inculcação de normas, valores e atitudes,
deixando em segundo plano a aprendizagem dos conteúdos curriculares indispensáveis
para o prosseguimento dos estudos, ou para o ingresso no mercado de trabalho, o que
representa o risco de mais uma forma de exclusão. Assim, constata-se que os objetivos
educacionais declarados pelos professores - incutir nas crianças valores e condutas
próprios para melhorar sua condição social, prepará-las para ocuparem um lugar no
mercado de trabalho, e aumentar sua auto-estima – não estão sendo alcançados; ao
contrário, estão sendo contrariados por práticas pedagógicas que terminam por
diferenciar, “confinar” e desqualificar os alunos para a participação na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura escolar. Formação de identidade. Ensino de português.
Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, cujo
objetivo geral é compreender como questões de identidade e diferença são tratadas nas
normas, nas práticas e nos saberes ensinados em uma escola de ensino fundamental.
Procura-se também verificar se os objetivos pedagógicos declarados pelos professores incutir nas crianças valores e condutas próprios para melhorar sua condição social,
prepará-las para alcançarem um lugar no mercado de trabalho, e aumentar sua autoestima - estão sendo alcançados ou, ao contrário, estão sendo contrariados por práticas
pedagógicas que podem diferenciar, “confinar” ou desqualificar os alunos para a
participação na sociedade.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6749
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Divergindo da posição essencialista segundo a qual as identidades são algo
permanente e inerente aos indivíduos, Moreira e Cunha( 2006, p.6 )afirmam que é por
meio das interações com o outro que elas são construídas. A escola tem papel
importante nesse processo de formação identitária, na medida em que ali as crianças são
avaliadas, modeladas, comparadas entre si, classificadas em “bons” e “maus” alunos,
“normais” ou “especiais”, “carentes” ou não. Segundo Thomas Popkewitz (citado por
Moreira e Cunha, ibid) certas escolas destinadas a estudantes de grupos minoritários,
que se pretendem transformadoras, podem paradoxalmente favorecer a criação de um
espaço discursivo em que a criança negra e pobre jamais consegue ser uma criança
“padrão”, “normal”, “média”. Moreira e Cunha( ibid, p.6) argumentam que:
(...).certas práticas, supostamente libertadoras, não têm efeitos
garantidos, podendo criar espaços de confinamento1 em que alunos de grupos
sociais oprimidos acabem por ter suas posições marginais na sociedade
confirmadas e preservadas.
.
Questões de currículo, identidade e diferença estão sendo estudadas numa
escola, situada em Petrópolis, RJ, com cerca de 480 alunos, distribuídos da creche ao
nono ano do ensino fundamental. Conveniada com a Prefeitura, a escola recebe desta os
professores e a merenda, enquanto uma organização assistencial, que se propõe a educar
meninos e meninas pobres para o mundo do trabalho, assume outras despesas,
principalmente as relativas à manutenção da creche em tempo integral. Muitas alunos da
escola Beira-Rio não moram nas redondezas, vêm de bairros distantes, principalmente
devido ao interesse das mães trabalhadoras pela escola de tempo integral, para crianças
de seis meses aos seis anos. Algumas dessas crianças saem da escola ao terminarem a
educação infantil, mas outras ali permanecem até o fim do ensino fundamental.
Os alunos são, na maioria, negros ou pardos, pertencentes a famílias de
trabalhadores não-qualificados, moradores de bairros favelizados. Pelo fato de muitos
alunos estudarem nessa escola desde a primeira infância até aos 14 anos, ou mais, a
instituição oferece um espaço propício para a realização de pesquisas sobre formação
identitária e efeitos da escolarização sobre crianças de famílias de baixa renda.
Limpa e organizada, a escola conta conta com um corpo docente estável. O
clima escolar é tranquilo, liderado pela diretora que ali trabalha há 25 anos. Professores,
1
Grifo nosso.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6750
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
funcionários e alunos respeitam a diretora e quando ocorre algum problema de
indisciplina, os professores ameaçam chamá-la; em geral isso é o bastante para que os
alunos se aquietem.
Misto de escola pública e instituição de assistência social, a escola prima pela
inculcação de normas, valores, hábitos e comportamentos que possivelmente
desempenham importante papel para definir as identidades dos jovens. O conjunto de
regras, imposto por direção, funcionários e professores, parece ser bem assimilado pelas
crianças, que geralmente seguem à risca os “mandamentos”. A organização e o silêncio
predominam na escola, no recreio, nas filas para entrada e saída das salas de aulas. Os
alunos
cumprimentam
os
inspetores
e
demais
funcionários
e
tratam-nos
respeitosamente. Aquele que infringe as normas é levado à sala da orientadora, que
conversa com o aluno e assume o papel de mediadora de conflitos.
Na cultura escolar, são valorizados o respeito aos mais velhos, as boas maneiras,
a disciplina, a ordem e a obediência, considerados importantes para o futuro dos jovens
que precisarão disputar empregos, provavelmente modestos, no mercado de trabalho
local. Quanto à educação religiosa, mesmo não sendo mencionada diretamente, aparece
como referência moral ou guia de conduta, por meio de frases nos cartazes dos
corredores, e em músicas de padres cantores católicos, ouvidas na escola.
Reuniões de pais para cada turma, das quais os alunos também participam, são
realizadas no auditório da escola, no início dos bimestres. A presença dos pais e
responsáveis é expressiva, criando-se, assim, uma possibilidade de interação e diálogo
entre a escola e a família.
Neste artigo, enfoca-se especialmente o lugar que ocupa o ensino da língua
materna na cultura escolar e discute-se a centralidade da linguagem na formação da
identidade. Como acontece na maior parte das escolas públicas, as diferenças, sempre
apontadas pelos professores, entre a norma culta do português as variações dialetais
próprias das camadas de baixa renda, usadas pelos alunos, criam tensões e conflitos, dos
quais resulta que os aluno se percebem como falantes inadequados da própria língua.
Conforme Moreira e Cunha (2006, p.3) escreveram:
Dependendo, assim, do ensino que se desenvolve na sala de aula, ela [a sala de
aula] pode corresponder a um espaço mais ou menos transformador de sentidos
e de sujeitos, um espaço em que certas identidades se formam nas interações
com os outros, um espaço em que professores e alunos se constituem de
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6751
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
determinados modos pela linguagem. Entre os espaços constitucionais em que
atuamos, a escola tem sido concebida como um dos mais importantes na
construção de quem somos. É na escola, em geral, que a criança se expõe, pela
primeira vez, às diferenças que nos formam e que representam as primeiras
ameaças ao mundo familiar.
Assim, considerando a origem social dos alunos e a importância do domínio da
escrita e da leitura na constituição dos sujeitos e na produção do seu lugar social,
pergunta-se: de que maneira a escola lida com a fala dos alunos, usuários de variantes
do português que não correspondem à norma culta? O ensino de português permite aos
alunos se familiarizarem com os usos sociais da leitura e da escrita? Que conteúdos são
considerados importantes pelos professores? Que oportunidades de acesso à leitura são
oferecidas? De que maneira os alunos trabalham a leitura e a produção de textos? Os
professores estão prontos para lidar com a variação linguística de seus alunos? Os
professores ensinam a utilizar as normas da língua culta na escrita, e em situações de
comunicação oral em que isso seja necessário, ou desejável?
Na primeira parte deste trabalho, são apresentados pontos de vista de linguistas
sobre o ensino de português. Discute-se como e o que deveria ser ensinado para crianças
e jovens das classes populares, que precisam fortalecer a própria identidade, ao mesmo
tempo que devem superar sua condição de exclusão, prosseguir os estudos e disputar
empregos no mercado de trabalho.
Na segunda, são analisadas situações observadas no uso da língua oral pelos
alunos, e no ensino sistemático de português em turmas do sexto e sétimo anos da
escola Beira-Rio. São descritas práticas de ensino de gramática, de leitura e produção de
texto que não parecem contribuir para que os alunos ampliem seus recursos de
expressão oral e escrita.
A conclusão destaca o empenho socializador da direção e do corpo docente, que
se manifesta por meio da inculcação de normas de conduta, valores e conhecimentos
que se destinam a elevar a auto-estima dos alunos e a prepará-los para a vida
profissional. No entanto, o próprio fato de pertencerem a uma escola cujo alunado é
majoritariamente formado por crianças e jovens negros e pobres, constitui, do ponto de
vista social, uma desvantagem, que em nada contribui para a melhoria da auto-estima e
dos níveis de aspiração. Outra importante desvantagem é que o tempo e o esforço
empenhados na socialização deixam em segundo plano a formação acadêmica, isto é, a
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6752
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
escola não busca (ou pelo menos não alcança) a melhoria dos padrões de desempenho
escolar nas áreas básicas de português, matemática e estudos sociais. Quanto ao o lugar
ocupado pelo ensino de português na cultura da Escola Beira-Rio, constatou-se que a
escola não proporciona condições para os alunos ampliarem suas habilidades de escrita
e leitura, de grande importância na sociedade grafocêntrica.
Professores de português: entre a gramática normativa e o letramento
Acreditamos que a escola Beira-Rio vive um momento de transição no ensino de
português. Por um lado, há uma forte tradição de ensino da gramática normativa, com
resultados discutíveis sobre a aprendizagem da língua culta; por outro, no ensino da
leitura e escrita, novas tendências estão sendo implantadas. A coordenação pedagógica
tem enfatizado a importância de práticas de letramento, vários gêneros textuais estão
presentes nas salas de aula, e existem projetos de formação continuada de professores na
área do ensino da leitura e da escrita. Ainda assim, persistem as perplexidades dos
professores diante da língua falada por seus alunos, e de suas dificuldades para escrever
e para interpretar textos. Aliás, há um paradoxo: os professores dizem que não se pode
ensinar gramática de forma descontextualizada, mas insistem em tratar o texto como um
pretexto para destacar substantivos, adjetivos etc.
Em que sentido o ensino de português tem importância especial na formação
identitária dos sujeitos?
No livro “Nós cheguemu na escola: e agora?”, a sociolinguista Stella Maris
Bortoni-Ricardo (2005, p.72) lembra que as desigualdades de desenvolvimento entre as
regiões brasileiras e a injusta distribuição de renda e de oportunidades educacionais têm
impedido o acesso de amplos contingentes da população à língua urbana culta. Isso
explica a heterogeneidade do português brasileiro: imaginando-se um continuum dos
falares do português, numa extremidade estão os falares das comunidades isoladas, do
ponto de vista geográfico ou social e, no outro extremo, a variante-padrão usada pelas
elites urbanas.
De fato, a variedade linguística usada por cada cidadão relaciona-se com sua
posição social, como disse Bortoni-Ricardo: (ibid., p.73).
A posição de cada grupo social - e até de cada pessoa nesse continuum –
é determinada por vários fatores, tais como zona de residência, acesso à
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6753
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
escolarização, qualidade do ensino recebido, características da rede de relações
informais, exposição aos meios de comunicação etc. e há naturalmente, uma
relação estreita entre a capacidade de o indivíduo movimentar-se ao longo desse
espectro e suas possibilidades de mobilidade social ascendente
Esses argumentos justificam nosso interesse de estudar o ensino de português na
escola Beira-Rio como um dos aspectos importantes da influência da escola sobre a
formação da identidade dos alunos.
Quando se fala sobre dificuldades no ensino de português, a ideia do senso
comum mais repetida talvez seja “os professores são mal preparados”. A propósito, a
linguista Rosa Virginia Mattos e Silva (2004, p.79), autora do livro “O português são
dois: novas fronteiras, velhos problemas”, discute porque o avanço do conhecimento no
campo da linguística, como disciplina científica, não se reflete no ensino da língua. Ao
contrário daqueles que afirmam que os professores são mal preparados, a autora
reconhece que eles estão a par dos princípios teóricos de sociolinguística,
psicolinguística e das teorias do discurso, que hoje são abordados nos cursos de
formação de professores de português. O problema é que quase nunca aplicam tais
princípios teóricos. As razões para isso são várias: falta de materiais pedagógicos, de
condições adequadas de trabalho, e também de segurança ou poder para introduzir
inovações à margem dos programas oficiais.
Concordando com Mattos e Silva sobre a falta de condições objetivas para
melhorar o ensino de português, acrescentamos que no Brasil a formação inicial dos
professores é deficiente, e a falta de tempo, aliada aos baixos salários do magistério,
dificultam-lhes o acesso a livros, a filmes, peças teatrais e a outros bens culturais. Nas
escolas públicas, o número de alunos por turma é excessivo e a jornada escolar, muito
curta. Faltam bibliotecas populares e as salas de leitura das escolas, quando existem,
estão fechadas ou funcionam precariamente, sem que haja um professor responsável
pela guarda e uso do material, ou pior: servem como lugar de “castigo” para os alunos
indisciplinados ou que não cumpriram a tarefa solicitada em sala de aula.
Nesse cenário, uma questão se coloca: como renovar o ensino de português,
especialmente no caso das crianças provenientes de famílias pouco letradas? Mattos e
Silva pergunta: que gramática ensinar, quando e onde ? (ibid., p.79). Por um lado, a
autora considera que é preciso um certo grau de amadurecimento intelectual para
estudar gramática (sendo assim, não deveria ser ensinada nos primeiros anos escolares).
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6754
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Por outro, admite que “alguma gramática deverá ser ensinada a partir do momento em
que se considerar necessário regular a fala e a escrita do aluno aos padrões de uso que a
instituição escolar define como o ideal para aqueles que a ela estão submetidos” (ibid.,
p.81). Objetivamente, é de se esperar que nos últimos anos do ensino fundamental já
exista ensino sistemático de gramática, e isso realmente acontece na Escola Beira-Rio.
O problema é: que gramática interessa ensinar? Mattos e Silva (ibid.,p.85)
afirma que “o ensino da gramática segundo os moldes tradicionais se tornou inócuo para
atingir o objetivo de dar aos estudantes instrumentos que lhes possibilitem explicitar as
estruturas e as relações fundamentais que conformam a gramática das línguas”.
Que conteúdos de gramática a autora considera relevante? Não seria a gramática
normativa, destinada a ensinar o “bom uso” da língua, tendo como esteio a escrita dos
autores consagrados pelo cânone literário. O sentido maior do ensino da gramática seria
levar o aluno a entender o que são as línguas, quais são as regras que as estruturam e
permitem seu funcionamento. No entanto, o que a pedagogia e a escola fizeram foi
reduzir a gramática a um conjunto de preceitos sobre o certo e o errado. Com isso, a
escola se vê diante do impasse de tentar ensinar a norma padrão do português, descrita
pelos gramáticos, a crianças e jovens que não usam as normas cultas dos grupos mais
letrados e sim, as normas vernaculares que regem a língua do povo.
Um problema desafia a escola: como ajustar os usos diversificados dos falantes
às normas consideradas corretas?
A linguista Miriam Lemle (1978, p.53) recomenda que se respeite a língua do
aluno, mas, ao mesmo tempo, que a norma culta do português seja ensinada e praticada
na escola como se fosse uma segunda língua, que pode enriquecer a capacidade de
expressão, facilitar a inserção social, diminuindo o efeito de estigmatização daqueles a
quem se critica por que “falam errado”. A autora sugere que em lugar de usar os
conceitos de certo / errado, a escola use os de adequado / inadequado, em função da
situação de fala, dos interlocutores, dos efeitos que o falante deseja alcançar. Nas
palavras da autora:
A sua missão [dos professores] não é a de fazer com que os educandos
abandonem o uso da sua gramática “errada” para a substituírem pela gramática
“certa”, e sim de auxiliá-los a adquirirem, como se fora uma segunda língua,
competência no uso das formas linguísticas da norma socialmente prestigiada, à
guisa de um acréscimo aos usos linguísticos regionais e coloquiais que já
dominam.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6755
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Com o mesmo tipo de preocupação que Bortoni-Ricardo e Lemle manifestaram,
Mattos e Silva propõe alguns princípios para o ensino da língua materna nos primeiros
anos escolares (ibid, p.82). Em primeiro lugar, sugere partir daquilo que o indivíduo já
sabe, pois mesmo as crianças que nunca estudaram gramática são capazes de reconhecer
frases que não fazem sentido, estruturas agramaticais e incompatibilidades semânticas.
Ficar no patamar do conhecimento já adquirido, no entanto, não basta; é preciso alargar
a capacidade de expressão das crianças, praticando a fala e a escrita em diversos
contextos de comunicação, e deixando claro que o que se diz e como se diz são
definidos em função do lugar de quem fala e do seu interlocutor, entre outros fatores.
Na etapa inicial da escolaridade, é útil comparar os usos lingüísticos efetivos dos
estudantes, suas maneiras de falar, com os padrões de uso que a escola busca transmitir.
Para isso, é preciso criar um processo de “observação organizada” das diversas
possibilidades de usos linguísticos.
Sendo assim, cabe ao professor mostrar as situações em que o aluno utilizará a
norma culta da língua, aprendida na escola, e aquelas outras, em que as normas
vernáculas, aprendidas na família, serão perfeitamente adequadas para os propósitos dos
falantes.
Na opinião de Mattos e Silva, o ensino tradicional de gramática atravessa sérias
dificuldades e a autora aponta três caminhos para o impasse: melhorar a formação dos
professores das séries iniciais, que deveriam ter conhecimento de linguística; preparar
material didático adequado e contar com a contribuição dos linguistas que, além de
prosseguir em seus estudos teóricos, deveriam pensar na questão pedagógica do ensino
da língua.
Na seção seguinte, passamos a analisar dados gerados em situações informais de
comunicação e nas aulas de português da professora Patrícia2, do sexto e sétimo anos.
O português falado na escola
No terreno da comunicação verbal, observamos que na altura do sexto e sétimo anos
os alunos dirigem-se à professora de modo respeitoso, tratando-a por senhora e usando
2
Nome fictício da professora observada nesta pesquisa.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6756
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
expressões de cortesia, como bom dia, faz favor, dá licença, obrigado etc. As boas
maneiras no trato com os adultos são reforçadas dentro e fora das salas de aula, e
raramente um aluno ultrapassa as fronteiras do que é considerado respeitoso. Quando
isso acontece, a professora reage imediatamente.
O registro coloquial usado nas trocas verbais com os professores mostra que as
formas de falar com os adultos que detêm autoridade são assimiladas pela maioria dos
alunos, como uma das facetas da disciplina escolar, que se manifesta de várias outras
maneiras, como nos rituais de entrada e saída, na proibição de correr e falar alto nos
corredores e no pátio etc.
Já o registro coloquial usado entre alunos é bastante diverso, marcado por
expressões próprias da cultura daquele grupo de jovens. A manifestação de
agressividade em relação aos pares parece ser um elemento da identidade dos
adolescentes do gênero masculino, que se confrontam no pátio, e mesmo nas salas de
aula, à revelia dos professores.
Diferentemente dos meninos, as meninas muitas vezes abraçam-se e permanecem
abraçadas durante longo tempo e trocam carinhos, embora não deixem de revidar
ofensas quando são provocadas. Já os meninos, quando se aproximam fisicamente, é
para trocar tapas.
Os garotos, mais frequentemente que as meninas, usam formas agressivas de falar,
lançando impropérios e xingamentos - como macaco, macaco prego, moleque, moleque
abusado, cachaça, cavalo, palhaço, e outros - sem que aparentemente isso seja levado a
sério. Eventualmente alguém se queixa à professora, mas muita coisa é deixada de lado,
como se fosse “natural”. Embora quase todos os alunos sejam negros ou pardos,
empregam expressões racistas entre si, como se aquele que chama o outro de “macaco”
não se reconhecesse como negro também. Aliás, a professora ignorava esse linguajar
ofensivo e não se observou nenhum momento em que fosse discutida a questão do
preconceito racial nas aulas de português.3
É curioso que, em contraste com esse quadro de trocas verbais agressivas, mais de
uma vez observamos situações em que um menino ou menina disse algo grosseiro, na
sala de aula, por exemplo - Para de palhaçada, seu cavalo! - para alguém que fazia
brincadeiras bobas, e foi advertido por um colega: Não fala assim, pô”.
3
O assunto era abordado, frequentemente e com propriedade, nas aulas de geografia, que eram
acompanhadas por outra pesquisadora.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Pressupomos que os alunos, como acontece com os falantes de uma dada língua,
internalizaram regras a respeito do que é possível dizer, como e a quem. Distinguem o
que é apropriado dentro e fora do espaço da sala de aula, e como falar com os
professores e com os colegas.
Sobre a língua falada na escola, cabe ainda destacar que quando os alunos
empregam expressões que contrariam a norma culta, suas falas são objeto de correção,
mas não de reflexão. Por exemplo, a professora perguntou ao aluno se trouxe o caderno
de produção de texto, ele respondeu: “Não ‘trusse’ hoje, não” e foi imediatamente
corrigido pela professora: “Não TROUXE!”. Houve correção, mas não houve nenhum
comentário sobre a diferença entre a norma culta e a norma vernácula. A propósito,
Bortoni-Ricardo (2005, p.197) afirma que “os alunos devem sentir-se livres para falar
em sala de aula, independentemente do código usado - a variedade-padrão ou nãopadrão”. Acrescenta, no entanto, que na perspectiva de ampliar as capacidades
linguísticas dos alunos, cabe ao professor justapor a variante-padrão e não-padrão,
fazendo comentários sobre ambas. Essa conduta é diferente da simples correção.
A gramática na escola
Em relação à língua escrita, cabe destacar o destaque dado à ortografia na escola
Beira-Rio. A correção das redações concentra-se especialmente nos erros ortográficos.
A forma de ensinar ortografia, por meio de ditados, no entanto, é pouco produtiva,
focalizando palavras de uso pouco frequente, mas que apresentam as chamadas
“dificuldades ortográficas”: uso de ch ou x, prefixos ab e ob, uso de g ou j, de s, ç ou ss,
palavras com h inicial, etc. Não observamos explicações sobre regras ortográficas, nem
sobre o significado das palavras usadas nos ditados. Palavras soltas eram ditadas sem
ao menos serem contextualizadas posteriormente em frases. Assim, durante o exercício,
algumas perguntas eram feitas à professora, por vezes demonstrando que os alunos, por
si mesmos, estabeleciam relações de significado entre palavras correlatas, perguntando
por exemplo: “Obturar vem de obturação?”, “Nupcial tem a ver com noite de núpcias.
Durante a observação de dois meses de aula, o ensino de gramática no sexto e
sétimo anos girou em torno do reconhecimento e classificação de advérbios (de tempo,
de lugar etc.) e de adjetivos (graus comparativo e superlativo dos adjetivos). Nas
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
avaliações, observou-se ênfase dada à nomenclatura, e às definições, e não ao
conhecimento aplicado. Por exemplo, uma questão da prova perguntava: “O que são
advérbios?” “Quais as classificações que o advérbio pode ter?”
O ensino das regras sintáticas é baseado nos exercícios do livro didático, o que
não atende às necessidades dos alunos de melhorar as habilidades de interpretação e
construção de textos, pois o manual enfatiza conceitos e normas.Há também a questão
de como trabalhar com o livro didático. Em geral, os alunos deviam copiar, no caderno,
o enunciado do livro, e escrever a resposta, o que levava a uma perda de tempo. Quase
sempre os alunos mostravam-se muito dependentes das explicações verbais da
professora, indagando repetidamente o que deveriam fazer, pois não compreendiam os
enunciados dos exercícios.
O livro didático apareceu como a fonte mais autorizada para correção dos
exercícios. As respostas dos alunos eram ditas de forma coloquial, de acordo com as
formas linguísticas que usam cotidianamente. A professora lia, então, a resposta “mais
certa” (que consta no livro do professor) e o aluno não reconhecia que havia respondido
a mesma coisa dita pela professora, e apagava sua resposta como se estivesse errada.
Em resumo, o tratamento dado à gramática, nas aulas observadas, corresponde
ao ensino tradicional do português, que descreve e classifica partes do sistema
linguístico, mas não oferece instrumentos para reflexão sobre diferenças linguísticas, ou
sobre o uso da norma culta para o falante de variantes populares da língua, como é o
caso dos alunos da escola Beira-Rio.
Como disse Stella Maris Bortoni-Ricardo (2005, p.15):
No caso brasileiro, o ensino da língua culta à grande parcela da população que
tem como língua materna - do lar e da vizinhança - variedades populares da
língua tem pelo menos duas consequências desastrosas; não são respeitados os
antecedentes culturais e linguísticos do educando, o que contribui para
desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma
eficiente a língua – padrão.
A produção escrita
A familiarização dos alunos com diferentes gêneros textuais tem sido
recomendada pelos especialistas em ensino da língua materna – Adilson Citelli (1999),
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
6759
O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Helena Nagamine Brandão (1997, 2000) e outros, como uma das maneiras de
enriquecer e renovar o ensino de português.
Que gêneros textuais circulavam nas salas de aula observadas? Consultando os
cadernos de produção de texto de alunos do 7º ano, constatou-se que de fato existia
certa variedade de gêneros textuais, com predominância de narrativas ou depoimentos
pessoais, por exemplo, redações sobre “Como passou o fim de semana?”, ou “Escreva
sobre você”.
Outros gêneros propostos pela Professora Patrícia foram: uma carta para um
colega (as cartas foram trocadas entre alunos de duas turmas), um relato da reunião de
pais e um texto de opinião. Cabe dizer que em nenhum momento a professora explicitou
as características desses textos, de modo que os alunos trabalharam apelando apenas
para seus conhecimentos anteriores, obtidos na escola ou na vida social, sobre o que
distingue uma carta de uma narrativa, ou de um texto de opinião, por exemplo.
Resumos e resenhas, gêneros textuais que exigem habilidades específicas de
escrita e são menos conhecidos, embora muito importantes para fins de estudo, não
estiveram presentes nas aulas de redação.
A seguir, um trecho do diário de campo sobre uma aula de redação no sexto ano.
O título foi escrito no quadro: “Um mundo ideal” e a professora conversou com a
turma sobre como seria esse mundo. “Hoje em dia vemos tanta violência na televisão, o que
nós podemos fazer para melhorar isso?” Uma menina falou da notícia de um estupro que viu
no jornal, outra contou a história de um cobrador de ônibus que foi assaltado e levou um tiro.
De início, algumas perguntas dos alunos: “Mínimo de quantas linhas?”, “Pode mudar
o título ou tem que ser esse aí que a senhora botou no quadro?”.
A professora lembrou que as redações são compostas de três partes: introdução,
desenvolvimento e conclusão. Mais perguntas: “Professora, o que é para escrever no
desenvolvimento?”, “Conclusão é concluir?”.
Após dez minutos, os alunos fizeram uma fila ao lado da mesa da professora para
mostrar-lhe o que já haviam redigido e ela estimulou alguns a desenvolverem mais suas
redações. Disse que escolheria cinco redações para serem lidas em voz alta para turma.
Quando faltavam quinze minutos para acabar a aula, Patrícia leu em voz alta a redação de
Katia, que preferiu não ler à frente da turma. A menina escreveu que para termos um mundo
melhor precisamos acabar com as drogas e bebidas alcoólicas.
Já Viviane quis ler sua redação, que falava sobre a importância do meio ambiente.
Outros textos dos alunos diziam que: “Pessoas culpadas ficam ricas, essas pessoas deveriam
ser presas pra sentirem a realidade. Todos têm o mesmo direito, pobres e ricos”. “O mundo
precisa de uma reforma para melhorar tudo e deixar nos ‘trinques’”. “Às vezes ligamos a TV e
só vemos coisas ruins. A vida não é só matar, temos que conversar, se fosse só para matar
ninguém estaria vivo”. Uma aluna perguntou: “Em vez de fumar maconha, por que não vai
para a Igreja?”
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
O tema O mundo ideal pressupõe a idéia de escrever um texto de opinião. Na
proposta da professora, vislumbramos uma oportunidade de levar os alunos a
argumentarem, a defenderem pontos de vista, ainda que de maneira incipiente. Seria
também uma excelente oportunidade para discutir valores e condutas valorizados pela
escola. No entanto, em nenhum momento a professora explicou procedimentos para a
escrita desse tipo de texto, como recursos e expressões típicos de argumentação.
Na prática, observamos que as redações, produzidas em tempo mínimo,
expressavam alguns comentários pertinentes, como a preocupação com o meio
ambiente, com a injustiça que faz os pobres serem presos, mas os ricos, não; com a
violência que se vê na televisão. No entanto, não foi encaminhada a discussão sobre
esses e outros problemas sociais graves que os jovens enfrentam no dia a dia e que
limitam suas possibilidades de um futuro melhor. Serão os jovens conscientes das
causas e consequências desses problemas? A escola os tem ajudado a entender o mundo
em que vivemos? A compreender seu lugar na sociedade brasileira, sua identidade de
jovens negros e pobres? A escola tem preparado os alunos para a reivindicação de seus
direitos?
Nas redações, as opiniões são apresentadas com ligeireza, tais como o seriam
numa conversa entre amigos. A situação de produção textual deixou escapar a
oportunidade de cobrar dos alunos reflexão, comparação entre opiniões e argumentos,
exemplificação de fatos, relatos de experiências e referências ao conhecimento do
mundo que todos têm.
No que se refere à forma, os textos são muito curtos, às vezes com frases
desconexas. Ao lerem seus textos em voz alta, muitos alunos sequer entendiam o que
haviam escrito. Embora a expressão escrita seja pobre, não houve sugestões da
professora para melhorar os textos, em relação à coesão e coerência, organização dos
parágrafos, escolhas lexicais etc.. A aula de redação, quando existe, é limitada ao tempo
de duas horas e não prevê atividades de reescrita. A correção focaliza, em geral, apenas
os erros de ortografia e sintaxe.
Quanto às provas escritas, a professora entregou as avaliações feitas na semana
anterior, que valia quatro pontos divididos entre gramática e produção de texto, cujo
tema era: “Escreva sobre você”. Patrícia comentou sobre alunos que usaram letra
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
maiúscula no meio de palavra e alertou: “Se vocês continuarem com essa mania... só
vão piorar!”.
Aliás, não é exatamente a forma que por vezes provoca dúvidas nos alunos. Por
exemplo, na sala da turma 701 havia um cartaz com o nome dos alunos-destaque da
turma, os nove que tiraram melhores notas naquele mês. O quadro faz lembrar cartazes
que aparecem em alguns supermercados e lojas de “fast food” com nomes e retratos dos
“funcionários do mês”. Numa aula de produção de texto, que pedia o relato da reunião
de pais, um menino perguntou: “Professora, posso mentir na redação e dizer que eu fui
aluno-destaque?” De fato, pode-se colocar a pergunta do menino em outras palavras: o
que é legítimo escrever? O que é permitido escrever? Qual o grau de liberdade de quem
escreve? Estes são aspectos da posição do autor que caberia debater com as crianças.
Leitura na sala de aula
A leitura em voz alta é praticada com grande frequência na Escola Beira-Rio,
como parte de um projeto iniciado pela Secretaria de Educação de Petrópolis, visando à
formação de leitores. O repertório de textos escolhidos pela professora Patrícia incluía
crônicas, histórias em quadrinhos, letras de música e textos jornalísticos.
Além da leitura em voz alta pela professora e por alunos por ela designados, os
alunos faziam leitura silenciosa de livros didáticos e exercícios.
Para a leitura oral no sétimo ano, a professora levou uma crônica, escrita em tom
irônico, que tratava das dificuldades dos jovens em matéria de leitura e escrita. A
professora, ao terminar a leitura, perguntou: “Não acharam graça? Após um breve
silêncio, um aluno disse: “Não entendi nada porque estava fazendo dever!”, indício de
seu desinteresse pelo texto em questão. Outros comentários dos alunos, no entanto,
tinham a ver com o sentido da crônica, que tratava das “regressões” (erros graves) nas
redações escolares e o motivo pelo qual isso ocorre (a falta de leitura). Eis alguns
exemplos:
“A professora pede pra gente ler, a gente é que não lê.”
“Essa geração é vagabunda mesmo, por isso fica de recuperação!”,
“Eu pego o jornal e não dá pra entender muita coisa!”
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
Outras atividades de leitura observadas foram a interpretação de uma tira de
quadrinhos, de uma letra de música religiosa, de um texto humorístico. Por vezes a
professora fazia a leitura em voz alta, por vezes designava alguém para fazê-lo, o que
nem sempre era bem aceito pelo aluno escolhido. Ainda assim, mesmo que com má
vontade, a ordem da professora era obedecida.
Quando os alunos pareciam não compreender o texto em pauta, a professora
tomava a palavra para explicá-lo. Muitas crianças manifestavam claramente suas
dificuldades, ou desinteresse, como se vê nos trechos abaixo do diário de campo:
A professora lê em voz alta um texto de uma crônica de um jornal
popular. A turma permanece em silêncio. A professora lê duas vezes, e na
segunda, ela própria interpreta cada frase. No final, pergunta: “Deu pra
entender? Vocês estão dormindo!” Um aluno responde: “Deixa eu acordar
primeiro!”. A professora avisa: “Então no final da aula vou reler!”
A professora Patrícia aguardou o silêncio na turma 601 para ler a
crônica [sobre dificuldades de leitura e escrita]. Leu a primeira vez, e após a
leitura perguntou quem havia entendido o texto. Apenas um aluno levantou a
mão e comentou: “Se a gente não ler, vamos continuar escrevendo errado,
professora!”. Outro aluno disse: “Não entendi nada, lê de novo, professora!”.
A professora leu pela segunda vez e em seguida explicou o porquê do título. Na
segunda leitura, alguns alunos se dispersaram e Patrícia teve que interromper
uma conversa entre três meninas preocupadas com um trabalho de Ciências: A
professora comenta que “duas semanas atrás foi tão bom, os alunos foram
para a biblioteca, escolheram livros, chegaram à sala e pediram tempo para
ler”. Comportaram-se tão bem, que ela não estava entendendo a agitação de
hoje.
Pode-se indagar: será que a mudança de comportamento da turma tinha a ver
com a escolha do texto? Por que não sugerir, então, que os próprios alunos tragam
textos de seu interesse para discussão em sala de aula?4
Conclusão
Nesta pesquisa, procurou-se compreender o lugar do ensino de português na
cultura da escola Beira-Rio. Partimos do pressuposto que a cultura escolar, como disse
Moreira (2006), envolve as normas e as práticas que estabelecem os valores, os
4
A leitura que os alunos fazem por conta própria gira em torno de revistas para adolescentes, que tratam
de sexo, novelas, horóscopo, e livros com sobre amor.
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
conhecimentos e os comportamentos a serem aprendidos na escola. Moreira salienta que
sua perspectiva harmoniza-se com a de Julia (citado por Moreirae Cunha, ibid, p.7),
para quem a cultura escolar corresponde a
(...) um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas
coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades
religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
Na cultura da escola Beira-Rio, busca-se alcançar principalmente finalidades de
socialização. A instituição investe de forma contínua e intensa na elevação da autoestima dos alunos, na inculcação de atitudes de obediência e de respeito aos mais velhos
e às figuras de autoridade, e na prática de boas maneiras. A direção e o corpo docente
presumem que essas aprendizagens sociais não são alcançadas no ambiente doméstico
dos alunos, devido às condições de pobreza. Esses profissionais têm a preocupação de
salvar os alunos dos riscos da deliquência, da ociosidade, que ameaçam os jovens
desempregados das áreas favelizadas da cidade. A socialização escolar visa, entre outras
coisas, a preparar os jovens para serem bons candidatos a empregos modestos no
mercado de trabalho local.
Nesse sentido, a escola é bem sucedida naquilo a que se propõe, ou seja, na sua
missão civilizatória. Assim, ao serem indagados sobre o que aprenderam na escola, os
alunos não mencionam conteúdos escolares, não falam de aulas de matemática,
geografia, português etc., nem falam de livros, mas afirmam que ali aprenderam a
respeitar os mais velhos, “a tratar todo mundo com educação”, a cumprimentar, a se
comportarem corretamente. Em geral, as crianças e jovens afirmam gostar da escola, a
qual consideram “sua segunda casa”, e isso é um ponto a favor da instituição, onde reina
o rigor, mas as exigências são claramente explicitadas.
No entanto, devido ao fato de receber um alunado formado majoritariamente de crianças
e jovens pobres, negros e pardos, a escola carrega o peso de ser “diferente”, isto é, não goza do
mesmo prestígio de outras consideradas “escolas boas”, cujo alunado não é tão homogêneo em
matéria de cor da pele e de condições de pobreza. Assim surge um paradoxo; a escola se
empenha em melhorar os processos socializadores dos alunos e elevar sua auto-estima, mas ao
mesmo tempo o fato de frequentarem essa escola já é um fator de discriminação. De certo
modo, não obstante suas intenções de superação das desvantagens sociais dos pobres, a escola
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
termina por se constituir em “espaço de confinamento”, no qual estão reunidos meninos e
meninas que não têm acesso a melhores oportunidades educacionais
Quanto ao ensino de português, a pesquisa revelou que professora proriza a
aprendizagem da nomenclatura gramatical, o ensino da ortografia (po meio de ditados),
e a leitura em voz alta, e só esporadicamente propõe a produção de textos. Continuam
faltando nas aulas de Português uma reflexão em torno das características específicas da
oralidade e da escrita, assim como a aprendizagem das regras de elaboração dos
diferentes gêneros textuais.
A formação do leitor está concentrada nos momentos em que a professora faz
leitura em voz alta, e a biblioteca não funciona como espaço privilegiado para o contato
com a língua escrita. A escola não ensina a escrever, de modo que os alunos limitam-se
a transcrever por escrito aquilo que sabem expressar oralmente. Nos lares das crianças
da escola Beira Rio, a familiaridade com os usos sociais da leitura e escrita é escassa, de
modo que as oportunidades de contato com esses usos são aquelas poucas que a escola
oferece. De fato, em lugar de contribuírem para que os alunos superem as limitações
geradas por suas condições socioeconômicas, as práticas do ensino de português
reforçam, reiteram e ampliam as desvantagens culturais e sociais dos alunos.
Referências bibliográficas
BORTONI-RICARDO, S.M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e
Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
BRANDÃO, H.N.(coord.). Gêneros do discurso na escola. São Paulo: Cortez, 2000.
_____________ e MICHELETTI, G. (coord.). Aprender e ensinar com textos didáticos.
São Paulo: Cortez, 1997.
CITELLI, A.(coord.). Outras linguagens na escola. São Paulo: Cortez, 1999.
LEMLE, M. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. Tempo Brasileiro,
Linguística e ensino do vernáculo.Rio de janeiro, 53-54, abr.-set, 1978.
MATTOS e SILVA, R.V. O português são dois... Novas fronteiras, velhos problemas.
São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
MOREIRA, A.F.B. e CUNHA, R. C. Identidades em construção: o processo de uma
escola de ensino fundamental do Rio de Janeiro. IN: SIMPÓSIO NACIONAL
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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O Lugar do Ensino de Português na Cultura da Escola Beira-Rio: entre a gramática normativa e o letramento
DISCURSO, IDENTIDADE E SOCIEDADE, 2, 2006, Rio de Janeiro. Anais. Rio de
Janeiro: UFRJ/PUC-Rio, 2006b, 1 CD-ROM.
Marlene Carvalho & Mariana de Paula Leite
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CULTURAS ESCOLARES E CURRÍCULOS
PRATICADOS EM INVISÍVEIS COTIDIANOS:
NUANCES DE UMA PESQUISA COM REDAÇÕES
ESCOLARES
Maximiano Romano
Juliana Bello Lopes
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
CULTURAS ESCOLARES E CURRÍCULOS PRATICADOS EM INVISÍVEIS
COTIDIANOS: NUANCES DE UMA PESQUISA COM REDAÇÕES
ESCOLARES
Maximiano Romano1
Juliana Bello Lopes2
RESUMO: O currículo escolar é uma importante dimensão do cotidiano das escolas e
escrever sobre os currículos praticados significa escrever sobre currículos (re)criados a
partir dos cotidianos, nos cotidianos e com os cotidianos, o que nos levou a pesquisar
uma experiência curricular em uma Escola Estadual do Rio de Janeiro e analisar as
redações que os educandos produziram sobre o tema “Desigualdade social, violência e
escola”. A análise das redações revelou algumas representações presentes na cultura
escolar, principalmente, sobre o papel da escola e sobre as justificativas atribuídas à
desigualdade social, aspecto fortemente marcado pelo raciocínio neoliberal. A pesquisa
contribuiu também com a reflexão sobre o quanto as propostas curriculares são
influenciadas pelos fazeres dos sujeitos, o que demonstra que o currículo não pode ser
compreendido nem como transposição do que é oficialmente estabelecido e nem apenas
como o resultado da ação dos seus praticantes. Enfim, embora as práticas curriculares
possam contribuir com mecanismos de invisibilização de conhecimentos e de regulação
dos atos de educandos e educadores, é possível buscar brechas que permitam o ensaio
de táticas de emancipação, de luta pela reinvenção da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Currículos praticados – Cotidiano escolar – Táticas.
No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das
tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa
série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento
segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência
primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e
de códigos, de ritmos e de opções [...] (GIARD, 1996, p.234).
Cotidianos visíveis, cotidianos invisíveis, currículos oficiais, currículos ocultos,
práticas e sujeitos (in)visibilizados... O que vemos ou deixamos de ver? Somos capazes
1
Autor. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
2
Co-autora. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e bolsista da Capes.
Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
de enxergar as limitações dos paradigmas que possuímos? Enxergamos as restrições
presentes no próprio ato de ver? Von Foerster (1996), ao estudar as disfunções de
segunda ordem da visão, mostra-nos que “não vemos que não vemos”, ou seja, não
percebemos que há “pontos cegos” em nossa visão, imagens não vistas por se formarem
nas zonas oculares sem receptores, mas que acreditamos ver por consequência do
controle do cérebro sobre a captação da retina. Desse modo, sendo o cérebro o
responsável pelo que vemos, somente somos capazes de ver aquilo em que acreditamos:
precisamos crer para poder ver!
Considerando as invisibilidades presentes na cultura escolar e nos cotidianos
forjados nas escolas, o que objetivamos, então, é tornar mais visíveis algumas das
formas como as propostas curriculares são materializadas cotidianamente, como são
recebidas, transformadas e (re)significadas pelos sujeitos que as praticam, procurando
compreender como tais propostas influenciam na cultura escolar e como são também
influenciadas, objetivo esse que nos levou a pesquisar aspectos de uma experiência
curricular em uma turma3 de 9º ano de uma Escola Estadual4 do Rio de Janeiro situada
na região central do Município de Niterói.
Compreendendo que a cultura escolar é composta também por conjuntos de
normatizações sobre conteúdos de ensino, metodologias, materiais pedagógicos, formas
específicas de apropriação de espaços da instituição, entre outros, procuramos
desenvolver um olhar capaz de perceber o que é, nessa cultura, “invisível” ou
invisibilizado. Assim, como nosso interesse envolve o currículo praticado em sua
dimensão do cotidiano, dialogaremos ao longo do texto com alguns educandos do
cotidiano observado, destacando trechos das redações5 que produziram a partir do tema
“Desigualdade social, violência e escola”.
Entendendo que as normas da cultura escolar e as formas de regulação podem
ser contextualizadas, redefinidas a partir das condições concretas de cada escola, da
3
Um dos autores da presente pesquisa, Maximiano Romano, atua como docente na turma pesquisada.
4
Preservamos o nome da escola e os nomes dos educandos por entendermos que o processo de pesquisa
deve ser dialogado em todas as suas etapas com os sujeitos pesquisados. Como a presente versão escrita
ainda não foi apresentada aos sujeitos, optamos por apresentar nomes fictícios, mantidos nos textos
autorizados para a utilização.
5
Os trechos das redações serão apresentados seguidos com a indicação de um nome fictício e a sigla
DSVE em referência ao tema proposto (desigualdade social, violência e escola).
Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
relação entre suas estratégias de organização e os sujeitos que dela participam,
procuramos compreender como os sujeitos encontram possibilidades para se fazerem
produtores da escola. E, como os sujeitos também são singulares, pensam e criam a
escola de acordo com suas trajetórias de vida e com os processos educativos – formais
ou não – já vividos, criando lógicas próprias para explicarem os cotidianos e as culturas
escolares6:
E na escola ainda bem que eles conversam com a gente e ensinão a não
ter desigualdade social. Mais tem escola que não tem isso e nem
ensinão pro aluno o certo ai a criança ou adolescente crescem e vivem
pisando nos outros. (Mário, DSVE)
Com contextos próprios, sujeitos singulares, apropriações diversas, podemos
afirmar, com Certeau (1995), que a cultura deve ser pensada no plural, uma vez que a
singularidade de cada prática cotidiana influencia o funcionamento interno da escola e
cria, conseguintemente, diferentes possibilidades diante das normas que definem os
conhecimentos que devem ser ensinados, os comportamentos que devem ser
reproduzidos, as hierarquias que devem ser obedecidas.
As políticas oficiais de ensino, as macropolíticas, que exercem um importante
papel na configuração das culturas escolares, são aqui entendidas como políticas que
devem ser pensadas em contato com a dimensão das práticas de nossas escolas, com a
dimensão do invisível cotidiano, por tanto tempo desconsiderado por estudos que
tinham como vertente apenas as determinações legais, as “decisões de gabinete”.
Procurando, então, desenvolver o diálogo entre uma proposta curricular oficial e a
forma como os praticantes da cultura escolar dela se apropriam, propomos a análise de
textos de sujeitos praticantes dessa cultura para tentar compreender de que forma os
currículos podem (re)estabelecer as relações vividas e como são (re)elaborados a partir
da prática.
6
Optamos por não apontar ou demarcar as incorreções gramaticais presentes nos textos dos educandos,
uma vez que entendemos que o mais relevante para a presente pesquisa são as formas como os assuntos
propostos são abordados e problematizados. Escolhemos também manter os textos exatamente como
foram escritos, compreendendo que correções e reescritas devem fazer parte do processo pedagógico
vivido com os educandos. Observar tais textos nos levaram a refletir sobre os saberes deslegitimados de
quem não domina a norma culta da língua portuguesa, reflexão que desejamos aprofundar em outro
momento.
Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
PRATICANDO CURRÍCULOS, INVENTANDO COTIDIANOS
O currículo escolar é uma importante dimensão do cotidiano das escolas e
escrever sobre os currículos praticados nessas instituições significa escrever sobre
currículos que são (re)criados a partir dos cotidianos, nos cotidianos e com os
cotidianos. Como não podemos assumir um cotidiano genérico, uma vez que as
possibilidades de interações e relações são diversas, as formas como os currículos são
praticados também só podem ser pensadas no plural: são caminhos inúmeros, diferentes
apropriações, formas singulares de usos das propostas curriculares ditas oficiais, pois
cada um dos contextos possui as marcas, as características que resultam das
performances dos autores desses cotidianos. Tais autores marcam também os currículos
porque pensam, criticam, aprovam, discordam, concordam e agem de tantas diferentes
formas a partir das experiências que vivem cotidianamente, como nos indicam os
trechos seguintes:
Eu acho a escola muito chato afinal de contas quem foi que inventou a
escola é só aula chata e ainda por cima temos que levantar sedo fala
serio a única coisa boa que aqui tem e os jogos que colocaram [...]
(Roberto, DSVE)
A escola poderia fazer algo para acabar com a desigualdade social e a
violência, por exemplo, fazer cartais, protestar, conversar com a
familia, com os amigos, fazer palestras ou montar uma peça de teatro
sobre esse assunto, para as pessoas ficarem cientes e para melhorar o
nosso mundo. (Sara, DSVE)
Assim, do desdém à visão idealizada, que atribui um poder quase mítico à
escola, os sujeitos pensam as culturas escolares em um enredamento entre suas
expectativas, as propostas, as políticas e ações, praticando os currículos que vão se
constituindo ao mesmo tempo em que constituem os cotidianos escolares e suas
culturas. Embora aparentemente repetidas, as práticas trazem, segundo Zaccur (2003)
“Iterâncias” e interações que transformam os sentidos da repetição: os fazeres são
sempre os mesmos e sempre outros, com novas possibilidades, pois não são
simplesmente repetidos, são reiterados, renovados.
Palavras, ações, discursos e práticas são (re)significadas e as relações de poder
que se estabelecem fazem emergir diferentes conflitos, fomentam embates e
silenciamentos, mudanças e reproduções, resistências e desistências. Assim, as formas
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
de opressão, os mecanismos de subversão e rebeldia, as linguagens, as culturas, os
anseios, as expectativas e sentimentos apresentam singularidades que se refletem nos
currículos vividos nos diferentes cotidianos.
É preciso ressaltar que toda a comunidade escolar pratica o currículo, pois o
mesmo não se resume a uma proposta escrita para aula, ou a um cronograma anual
determinado para as disciplinas: está presente – e sendo (re)elaborado – nas interações
entre os diferentes sujeitos que fazem a escola e em diversos espaços dessa instituição.
Os currículos, nessa perspectiva, se inscrevem nos sujeitos e os sujeitos, com seus
corpos e discursos, inscrevem novas possibilidades nas propostas curriculares. Oliveira
(2008) destaca que nos currículos praticados não há só a dimensão da regulação das
práticas ou apenas a possibilidade de emancipação, os currículos são recriados
cotidianamente e podem favorecer tanto a manutenção quanto a transformação. Ainda
segundo a autora:
[...] buscando superar a dicotomia hierarquizante fundamentada na
redução do real à modelos e práticas e de comportamentos
monolíticos, entendemos ser necessário, e possível, [...] considerar que
não há nem propostas nem práticas que possam ser, de modo
inequívoco, identificadas somente com a regulação ou com a
emancipação social. (OLIVEIRA, 2005, p.104)
Compreendendo, então, que os currículos praticados podem regular e podem
emancipar, superando a lógica dicotômica do “isto ou aquilo” e apontando para a
complexidade das situações diárias, é preciso considerar que os sujeitos também não
recebem passivamente as determinações, as propostas, as normatizações. Os sujeitos
lutam, disputam, propõem, mobilizam, conquistam, submetem e são submetidos,
arriscam, modificam e praticam tantas outras ações envolvendo seus corpos e discursos
que se fazem presentes nos currículos dos invisíveis cotidianos de ações singulares, de
incontáveis “artes do fazer”.
As artes de fazer, segundo Certeau (1994), são formas de ação, criações de
sujeitos que, embora sejam entendidos frequentemente como pertencentes a um lugar de
passividade, produzem especificidades, buscam caminhos. Nisso há arte. Mas, quando
diante dos caminhos buscados emergem condicionamentos ou obstáculos, “situaçõeslimites” na concepção de Freire (1975), os sujeitos utilizam-se de sua capacidade
criadora, ou produtora, na construção de táticas. De acordo com Certeau (idem) a tática
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
é a arte do mais fraco, do sujeito comum ou, bem ao gosto do autor, do sujeito
ordinário, sendo:
[...] um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com
uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só
tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem
apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância [...]. (1994, p. 46).
São as táticas, de tal modo, que muitas vezes garantem a afirmação e a
reafirmação do sujeito quando o entorno procura destacar a sua não-produção. Segundo
Certeau (idem), a tática é determinada pela ausência de poder, mas podemos completar
que é a ausência de um determinado poder, daquele compreendido como hegemônico,
uma vez que, assumindo que toda relação é de poder (FOUCAULT, 2008), os sujeitos
comuns, ordinários, a multidão anônima, também tem seus poderes. As táticas, nessa
perspectiva, são exemplos desses poderes produzidos pelos mais fracos para subverter
as estratégias dos mais fortes, sendo determinadas no e do lugar do anônimo, do
invisível, do ordinário. São, portanto, poderes ordinários, mas ainda assim formas de
poder. Dessa maneira, mesmo desconhecidas, inúmeras táticas são empregadas por
sujeitos que, em cotidianos dados a iterações e perpassados por ideologias, ciências,
epistemologias, desejos, interesses e curiosidades, reinventam currículos, metodologias
e práticas. Procurando reinventar o cotidiano de sua escola, Tatiana escreveu:
Na escola precisa de quadras, professores porque isso complementa
no estudo, um ensino mais avançado, acho que com mais alegria
porque ai a aula não ia ficar tão chata naquela rotina sem graça, talvez
até não teria tantos alunos matando aula (Tatiana, DSVE).
Tanto com Butler (2003) quanto com Louro (2004), somos seduzidos a perceber
como as performances dos sujeitos marcam seus corpos, seus cotidianos, suas práticas e
suas culturas. Os sujeitos, com suas incontáveis performances, inscrevem elementos da
cultura que vivenciam ou experimentam em seus corpos e discursos, as performances,
sendo inscritas nas culturas, inscrevem a cultura nos sujeitos (nos corpos e nos
discursos) e também inscrevem os sujeitos na cultura.
Buscamos, portanto, dar visibilidade às performances (BUTLLER, 2003;
LOURO, 2004), ou às artes de fazer (CERTEAU, idem) dos praticantes através de
algumas nuances do cotidiano escolar pesquisado, procuramos fazer com que as escritas
dos educandos ecoassem na pesquisa, demonstrando que os mesmos, com todos os
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
demais sujeitos que também compõem a escola, não apenas reinventam o currículo a
cada dia, como ensaiam performances de táticas para reinventarem suas próprias vidas
dentro e fora das instituições escolares.
A EXPERIÊNCIA
Com Larrosa (2002) compreendemos que nem tudo que acontece pode ser
considerado uma experiência: a experiência é o que nos acontece, o que nos toca, o que
nos mobiliza. Podemos viver muitas situações sem, de fato, viver experiências. Da
mesma forma, um cotidiano escolar pode ser rico em acontecimentos, porém ser pobre
em experiências. Segundo o autor (idem, p.24), o sujeito da experiência é “algo como
um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece
afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos”. Diante disso, almejando representar também territórios de
passagens para outros sujeitos e suas “usanças” de práticas cotidianas, iniciamos nossa
narração da experiência, e aqui ressaltamos a palavra escrita e a experiência de escrever,
por termos sido por elas, tocados e modificados, para que o “invisível cotidiano”
assuma suas formas e torne mais visíveis os seus sujeitos.
Apresentamos aqui nuances do cotidiano e da pesquisa sobre as práticas
curriculares em uma Escola da rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro, situada em
Niterói. Dos fios desse cotidiano, selecionamos apenas alguns, aqui representados nos
produtos das experiências escritas realizadas por alunos do 9º ano desta escola. Os
textos, como referido anteriormente, deveriam ter como tema “Desigualdade social,
violência e escola”, proposta curricular para uma das aulas da disciplina chamada
Projeto, que é destinada aos educandos do segundo segmento do ensino fundamental,
com exceção das turmas de Educação de Jovens e Adultos.
Tal disciplina é ministrada em dois tempos semanais, tendo cada tempo a
duração padrão de cinqüenta minutos, e são ministradas por professores de diferentes
disciplinas. Estas atividades são determinadas por cada escola. Na escola pesquisada
estes tempos foram e ainda são aproveitados de diferentes formas, dentre elas as aulas
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
de Cidadania que deram origem às redações estudadas aqui, educação sexual, meio
ambiente e reforço escolar, geralmente em matemática ou português, disciplinas
correntemente mais valorizadas na cultura escolar. Entre “reforço” para as disciplinas
tradicionais ou “atividades de formação social”, os cursos intitulados Projeto pela
Secretaria Estadual de Educação são, na escola, inventados e reinventados por meio de
artes de fazer dos sujeitos, por seus anseios e por suas linguagens, elementos que vão
delineando o currículo proposto, transformando-o em currículo local.
Podemos dizer que a linguagem, reiterada no cotidiano escolar, tecida por
discursos que reverberam “verdades” a todo instante, criam uma teia microfísica de
conhecimento e poder, como alerta Foucault (2008), posto que o discurso revela a
vontade de verdade existente para cada sujeito, uma vez que “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (idem, 2008, p.10).
Assim, também nos “ditos” e nos “não-ditos”, aparentes detalhes das práticas
curriculares, as hierarquias, os sistemas de dominação, a colonialidade do poder,
salientada por Grosfoguel (2008), acontecem também nas minúcias das práticas e se
entrecruzam como fios num tear.
Dos muitos fios do tear escolar, podemos puxar o da deslegitimação de
determinados saberes por meio da colonialidade, procurando entender como são vistas
pelos educandos algumas das relações de poder por eles vividas ou observadas. Nossas
percepções empíricas e estudos anteriores nos levam a (re)conhecer que certas práticas
docentes podem vir a deslegitimar os conhecimentos dos educandos, inúmeras vezes
marcados com o estigma do não saber, por meio da apresentação de conteúdos
descontextualizados e de métodos inadequados que acabam por reforçar a exclusão. Já
em outras práticas docentes, percebemos que há a utilização consciente do poder como
ferramenta básica de dominação segundo a lógica da colonialidade.
A dominação colonial representou uma iniciativa política macroestrutural e
microestrutural de dominação lingüística, epistemológica, moral, cultural. Da macro à
micro política, a colonialidade se desdobra na cultura em relações de poder que tendem
a dominação em todas as esferas da vida pública e cotidiana. A colonialidade transcende
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
a dominação colonial e configura-se como um elemento da cultura, gerando relações em
que alguns sujeitos detêm o poder de decisão sobre a ordem pública, as normas para os
cotidianos e as práticas curriculares, tendo lugar estratégico na luta discursiva por
hegemonia, imposição e controle dos modos de fazer ciência, modos de ver, de pensar e
ser no mundo. As hierarquias são inúmeras, de gênero, orientação sexual, trabalho,
propriedades, títulos, linguagens, classe social..., o que se reflete no texto de Júlia:
A desigualdade social é uma coisa muito grave, porque tem gente que
gosta de ser um melhor do que os outros. Exemplos: os policiais eles
tratam os pobres pior do que os ricos [...] rico pode até ser preso mas
não é tão esculaxado como os pobres [...] na escola também existe isso
quem tem mas direito e quem tem dinheiro estuda melhor em escola
particular, mas esses metidos a serem ricos são piores que os pobres,
fumas, traficam, as vezes tem tudo mas robam também, mas na escola
não tem muito isso. (Júlia, DSVE)
Analisando a escrita de Júlia e as demais redações dos sujeitos pesquisados no
cotidiano escolar em questão, optamos por destacar brevemente a escrita e a experiência
de escrever como instrumentos de poder que assume relevo na cultura escolar. Tal
destaque para o ensino da escrita não é algo recente, posto que ainda nas primeiras
experiências educativas oficiais vividas em nosso território, os jesuítas tinham a missão
de educar os indígenas segundo um projeto de catequese e de civilização dos povos
ditos selvagens, substituindo as línguas e linguagens dos povos que aqui viviam por
outras instituídas no modelo de racionalidade europeu. A língua portuguesa, oral e
escrita, foi sendo imposta como meio de dominar, de melhor controlar.
Nesse processo de imposição das concepções educativas jesuíticas sobre as
concepções educativas – consideradas inexistentes – de grupos indígenas, Ferreira Jr. e
Bittar (2004) apontam a criação de “casas de bê-á-bá”, onde as crianças indígenas
passariam a conhecer os preceitos da religião católica e ainda aprenderiam a ler e a
escrever para participarem de uma cultura grafocêntrica até então desconhecida. De tal
modo, catequese, civilização e ensino das letras eram projetos relacionados e que
visavam à inscrição da racionalidade do Império português em terras coloniais e a
consequente manutenção do poder. Sobre a intrínseca relação entre as práticas de escrita
e escola, Vidal afirma:
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
[...] os objetos e produtos do escrever ocupam um lugar significativo
no conjunto das práticas escolares e administrativas da escola. Os
vestígios dessa economia escriturária, proliferam, no âmbito escolar,
sob a forma de resultados das relações pedagógicas (o exercício e o
diário de classe, por exemplo); de resíduos das ações gestoras (os
históricos escolares e os processos, dentre outros); de efeitos de
construção de saberes sobre o aluno, o professor e o pedagógico
(fichas antropométricas, relatórios e exames), ou, ainda, de derivações
de uma prática escritural escolar (o jornalzinho de alunos e os boletins
de professores) (VIDAL, 2009, p.31).
Assim, nossa cultura – e especialmente a nossa cultura escolar – prioriza, como
aponta Certeau (1994), a economia escriturística, que atribui um papel importante
àqueles que produzem o texto e o lugar da mera recepção aos demais. No caso das
redações analisadas, embora os educandos escrevam, tal escrita geralmente não tem
visibilidade, já que não corresponde à norma culta de nossa língua e, correntemente, em
nossas culturas escolares, espera-se que os educandos escrevam segundo o modelo
padrão. Embora acreditemos que o ensino da norma padrão da língua portuguesa deve
ser entendido, sobretudo, como um direito – já que pode possibilitar novas formas dos
sujeitos se colocarem no mundo, expressando o que pensam e utilizando o domínio da
língua como mais uma arma para reivindicar condições mais dignas de vida e de
organização da sociedade – nos fazemos críticos à negação dos demais conhecimentos.
Diante da negação dos saberes que não são elaborados ou que não são
legitimados por nossas instituições escolares, podemos indagar: “o que podem nos
ensinar os sujeitos que não dominam a língua escrita entendida como oficial? Vivendo a
língua em sua dimensão usual, cotidiana, esses sujeitos que elaboram conhecimentos
sobre ela, sem a dominar na forma padrão, não são capazes de discutir problemas
sociais que os atingem? Assumindo, então, que tais sujeitos são capazes de criarem e
recriarem táticas por meio, inclusive, da língua escrita que não dominam plenamente,
nos debruçaremos novamente sobre os seus textos, procurando relacioná-los com a atual
lógica que configura a construção dos currículos de nossas escolas.
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
CURRÍCULOS, COTIDIANOS E CULTURAS ESCOLARES NAS REDAÇÕES7
Como referido, as redações foram produzidas a partir do debate travado na aula
Projeto e tinham como tema “Desigualdade social, violência e escola”. Analisá-las nos
levou a observar algumas representações presentes na cultura escolar, principalmente,
sobre qual seria o papel da escola, as suas possibilidades e o que deveria promover.
Desigualdade social e violência, em muitas das redações, são apontadas como
consequências da escolarização não realizada e em uma concepção claramente em
consonância ao discurso neoliberal, que procura responsabilizar e culpar os sujeitos das
classes populares pela desigualdade que os vitimiza. Nessa lógica, a desigualdade não é
fruto de diferentes oportunidades e de uma ordem social injusta, mas resultante da
incapacidade dos próprios sujeitos marginalizados. De acordo com tal ideia, quem não
estuda, não estuda por falta de vontade ou por falta de mérito e por isso não obtém
sucesso, torna-se marginalizado. A escolarização, então, é entendida como caminho
certo para a conquista de um bom emprego e consequente ascensão social, como
destacamos em alguns trechos das redações dos educandos:
[...] a escola é fundamental, pois sem ela o ser humano não tem uma
base para conseguir um bom emprego e sem um bom emprego ele não
consegue fazer parte das classes médias ou altas, as pessoas que não
se encaixam nas classes altas recorrem a bandidagem [...]. (Luisa,
DSVE)
[...] se a pessoa tem um bom gral de escolaridade pois em relação a
isso para ter um bom trabalho (bom salário), uma boa moradia, roupas
boas e tirando a conclusão de que a pessoa se esforça para que no
futuro ela possa desfrutar de seu esforço no começo. (Carlos, DSVE)
A escola poderia fazer algo para acabar com a desigualdade social e a
violência, por exemplo, fazer cartais, protestar, conversar com a
familia, com os amigos, fazer palestras ou montar uma peça de teatro
sobre esse assunto, para as pessoas ficarem cientes e para melhorar o
nosso mundo. (Sara, DSVE)
7
Certos trechos de algumas redações, dada a importância que assumiram no processo de pesquisa, se
repetem ao longo de nosso texto, uma vez que o nosso intuito é fazer com que as vozes dos educandos
possam ecoar em nossa escrita. Separamos esse último tópico apenas como recurso metodológico para
nos determos um pouco mais nas formas como as redações refletem currículos, cotidianos e culturas
escolares.
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
[...] os problemas gerados, na sociedade do mundo inteiro são,
causados principalmente pela desigualdade social, e por existência de
educações diferentes por classes diferentes, por cotidianos diferentes
e oportunidades totalmente diferentes8. [...] Existem muitas
oportunidade hoje, mas, se ninguém preocura mudar o que adianta?
[...] É uma questão de querer [...] (Tânia, DSVE).
Nos trechos transcritos, é possível perceber que a escola é compreendida como o
meio privilegiado para a promoção da mudança de ordem social e econômica,
assumindo um poder de transformação idealizado, muitas vezes presente em nossas
culturas escolares. Nos textos de Luisa e Carlos, a escolaridade é relacionada de forma
contundente à conquista de um bom emprego, embora a realidade nos mostre que ter ou
não um bom emprego não depende apenas do esforço pessoal, mas principalmente das
condições concretas da nossa forma de organização. Com o desemprego estrutural, a
promessa de empregabilidade após a conclusão das etapas de escolarização figura
apenas como discurso utilizado para convencer a sociedade de que, como repete Tânia,
existem muitas oportunidades... é uma questão de querer, da mesma forma que recorrer
à dita “bandidagem” é uma consequência natural, segundo Luisa, da não-ascensão
social.
Embora se reconheça, novamente como explicita Tânia, a existência de
“educações diferentes por classes diferentes, por cotidianos diferentes e oportunidades
totalmente diferentes”, o significado de tais diferenças não é problematizado. O
problema não é a diferença, mas a desigualdade. No texto da educanda, há a crença de
que, sendo as oportunidades diferentes, basta escolher a “oportunidade certa” e a
escolha uma mera questão de vontade. O empenho pessoal é entendido como o
diferencial entre os sujeitos, como a “chave” da mudança, mas como acontece em uma
dimensão individual não se reflete sobre a necessidade da transformação em prol do
coletivo e no coletivo.
O raciocínio neoliberal, inculcado em muitos sujeitos, parece refletir-se em
alguns dos textos dos educandos pesquisados, que acreditam que aqueles que alcançam
o “sucesso” souberam aproveitar as oportunidades existentes e aqueles que “fracassam”
são os responsáveis por sua própria exclusão. Diante disso, podemos perceber como a
8
Destaque nosso.
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
lógica do neoliberalismo tem se feito presente nos nossos currículos escolares e como
seus discursos são reproduzidos e interpretados na cultura escolar. Silva nos indica
algumas reflexões sobre isso:
[...] o presente assalto neoliberal ao social, em geral, e à educação em
particular, se apóia numa série de importantes estratégias retóricas: (1)
deslocamento das causas – o eixo de análise do social é deslocado do
questionamento das relações de poder e de desigualdade para o
gerenciamento eficaz e eficiente dos recursos; (2) culpabilização das
vítimas – a miséria e a pobreza resultam de escolhas e decisões
inadequadas por parte dos miseráveis e dos pobres [...] (SILVA, 1996,
p.118)
Podemos reconhecer essas estratégias retóricas incorporadas em algumas das
redações, como demonstramos, mas, por outro lado, os sujeitos não são meros
receptores desses discursos e, por isso, mesmo quando estes se tornam hegemônicos e
passam a ser incorporados em diferentes instâncias de nossas instituições, há espaço
para a reinterpretação, para a crítica, como podemos perceber nos trechos seguintes:
A desigualdade social hoje no Brasil é muito grande, e praticamente
um preconceito ao pobre, por que hoje se o pobre for preso, o pobre
não tem direito a nada, apesar que o direito ele tem mais esse direito
não é respeitado [...] (Daniela, DSVE)
Eu acho que a desigualdade social é terrível por que só por causa de
uma pessoa estar mal vestida ou pela pessoa não saber ler ou escrever
pelo fato de ela ser pobre as pessoas que tem uma boa situação
financeira ficam se achando melhor que a outra, o que eu acho um
absurdo porque as pessoas são todas iguais. (Tatiana, DSVE)
A desigualdade social é uma coisa muito grave, porque tem gente que
gosta de ser um melhor do que os outros. Exemplos: os policiais eles
tratam os pobres pior do que os ricos [...] rico pode até ser preso mas
não é tão esculaxado como os pobres [...] na escola também existe isso
quem tem mas direito e quem tem dinheiro estuda melhor em escola
particular, mas esses metidos a serem ricos são piores que os pobres,
fumas, traficam, as vezes tem tudo mas robam também, mas na escola
não tem muito isso. (Júlia, DSVE)
Por meio de tais relatos é possível perceber que, embora o “assalto neoliberal”
procure naturalizar as desigualdades sociais, os sujeitos também elaboram críticas ao
modelo e reconhecem os preconceitos por ele gerados, os abismos sociais, a
desigualdade de oportunidades e as injustiças promovidas por órgãos que deveriam
defender a justiça, no caso citado pelos educandos, a força policial, recorrentemente
apontada como instância de violência e de preconceito contra as classes populares, já
Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
não mais entendidas como culpadas por serem discriminadas e marginalizadas. Em tais
trechos, podemos perceber que há a reflexão sobre os mecanismos que procuram
transformar o direito de todos em privilégio de poucos, ordem injusta que os educandos
passam a denunciar e criticar, utilizando “artes de dizer” aquilo que tantas vezes é
tornado indizível, o que é silenciado.
Dizendo o que muitas vezes é silenciado, Júlia denuncia em seu texto a
reprodução da desigualdade social nos meios escolares, afirmando que “o direito é de
quem tem dinheiro”, aprendizagem que tantas vezes se dá com precocidade na vida de
sujeitos das classes populares, aos quais se nega a segurança, as condições básicas de
saúde e moradia e, como a educanda ressalta, a escolarização “não-mercadológica”.
Júlia já é capaz de compreender que no contexto atual “quem tem dinheiro estuda
melhor em escola particular”, pois a educação é transformada em mercadoria e as
escolas devem passar a funcionar seguindo as leis do capital. Estudar em escola
particular, nesse sentido, é “estudar melhor” porque a rede privada funciona com mais
recursos e pode oferecer melhores serviços, lógica observada e criticada por essa
educanda que insiste na condição de produtora de outro tipo de existência e de outras
formas de relações sociais.
Embora a proposta das redações apontasse para a problematização da relação
entre desigualdade social, violência e escola em uma perspectiva global, em muitos
textos encontramos também a escola sendo pensada em seus fazeres ordinários, em suas
formas e normas cotidianas. Ao abordarem os “fazeres ordinários” do cotidiano, os
educandos criticaram o funcionamento da instituição escolar e questionaram elementos
de sua cultura, como nos seguintes trechos:
Eu acho a escola muito chato afinal de contas quem foi que inventou a
escola é só aula chata e ainda por cima temos que levantar sedo fala
serio a única coisa boa que aqui tem e os jogos que colocaram [...]
(Roberto, DSVE)
Na escola precisa de quadras, professores porque isso complementa no
estudo, um ensino mais avançado, acho que com mais alegria porque
ai a aula não ia ficar tão chata naquela rotina sem graça, talvez até não
teria tantos alunos matando aula (Tatiana, DSVE)
Com o texto de Roberto, podemos perceber que a escola é por ele interpretada
como um conjunto de aulas (e de aulas desinteressantes na visão do educando), o que
demonstra que dos diversos aspectos da cultura escolar, o horário reservado às
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
disciplinas assume relevo no que se refere aos tempos e espaços produzidos e
organizados segundo a cultura da escola. Hegemonicamente, a sala de aula é
compreendida como espaço e tempo privilegiado de transmissão9 do saber e, por
conseguinte, é durante o desenvolvimento das disciplinas que os corpos precisam ser
mais controlados, com exceção da disciplina de educação física, tantas vezes a preferida
dos alunos, que frequentemente a entendem como possibilidade de experimentar outras
relações com os espaços da escola e com seus pares. Já na escrita de Tatiana, vemos que
tanto as quadras quanto os professores são compreendidos como complementos do
estudo, talvez por ela reconhecer em sua escola a ausência de espaços físicos
disponíveis externos à sala de aula – e aqui vemos a hierarquização de espaços na
cultura escolar – e por perceber também as recorrentes faltas docentes em seu cotidiano.
O “avanço no ensino” contrapõe-se, na visão da educanda, às práticas que, segundo ela,
criam uma rotina escolar desestimulante, possivelmente a rotina de transmissão de
saberes que criticamos anteriormente.
Embora muitas possibilidades possam ser discutidas a partir dos textos
apresentados, desfiamos aqui apenas algumas questões de uma complexa malha da
cultura escolar e de como os currículos são praticados, entendendo o cotidiano como
uma possibilidade para entender e interpretar a escola por outros ângulos, com outras
lentes, observando o que geralmente não ocupa a centralidade de nossas cenas e
ouvindo as vozes que muitas vezes são silenciadas. Observamos que os textos podem
nos revelar que o currículo é praticado nos enredamentos da realidade vivida, de uma
cultura incorporada e permeada por questões sociais, econômicas e ideológicas que não
são
apenas
recebidas,
mas
também
problematizadas,
questionadas,
quiçá,
transformadas.
9
Mantemos o termo transmissão por entendermos que apesar de todas as críticas às relações educativas
que se assemelham à “educação bancária” referida por Paulo Freire (1975), muitas práticas permanecem
pautadas na transmissão e não na consideração dos saberes dos educandos por meio de relações mais
dialógicas.
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar o currículo praticado em uma determinada cultura escolar representa
um desafio e, ao mesmo tempo, apresenta inúmeras possibilidades, uma vez que tal
estudo pode contribuir com a reflexão sobre o quanto as propostas curriculares são
influenciadas pelos fazeres dos sujeitos, que não a recebem passivamente e nem
incorporam dela todos os elementos. Por outro lado, também leva-nos a compreender
que os sujeitos não agem somente de acordo com suas vontades, até porque suas
vontades também são forjadas, formadas e conformadas no interior de uma cultura.
Assim, o currículo que se pratica não pode ser compreendido nem como a transposição
do que é oficialmente estabelecido como currículo e tampouco pode ser entendido como
expressão máxima da ação dos seus praticantes. O currículo praticado envolve
complexidade e para compreender um pouco tal complexidade, uma das possibilidades
é o estudo da cultura escolar pelos fios do cotidiano.
Observando alguns fios do emaranhado do cotidiano que vão formando a cultura
escolar e sendo por ela formados, podemos destacar a importância da dimensão da
linguagem nos contextos escolares e na busca por hegemonia dentro desses espaços.
Ressaltamos, por isso, que a exposição dos trechos das redações produzidas pelos
estudantes sobre as leituras que fazem do tema “Desigualdade social, violência e
escola”, resulta de uma prática que busca legitimar o lugar da produção que os
educandos ocupam, mas que tantas vezes parece negado ou invisibilizado. Por meio da
atividade, os sujeitos que tantas vezes são considerados como incapazes de debater, de
pensar de forma reflexiva, são convidados a exporem seus conhecimentos. Quando
vistos como meros depósitos, estes conhecimentos podem não vir à tona, mas não
tornam-se inexistentes, pois, como nos lembra Chico Buarque: “mesmo calada a boca
resta o peito”.
Enfim, as nuances da pesquisa que aqui foram apresentadas não pretendem ser
conclusivas, posto que são apenas nuances, mas visam fomentar a reflexão sobre as
formas como os currículos são praticados no cotidiano segundo os pressupostos da
cultura escolar e também segundo as táticas inventadas pelos sujeitos. Tais relações nos
ajudam a compreender que, embora as práticas curriculares possam contribuir com
mecanismos de invisibilização de conhecimentos e de regulação dos atos de educandos
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Culturas Escolares e Currículos Praticados em Invisíveis Cotidianos: nuances de uma pesquisa com redações
escolares
e educadores, é sempre possível buscar brechas que permitam o ensaio de táticas de
emancipação, pois como vimos nos trechos de alguns educandos, ainda é possível o
inconformismo, a denúncia, o desejo de mudança e de melhoria da escola, basta
lutarmos pela reinvenção da sociedade e da vida a partir de nossos invisíveis cotidianos.
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ZACCUR, Edwiges. Metodologias abertas a iterâncias, interações e errâncias
cotidianas. In: GARCIA, Regina Leite (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
Maximiano Romano & Juliana Bello Lopes
6787
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
HISTÓRIA ENSINADA: CULTURA, CURRÍCULO E
LINGUAGEM
Patrícia Bastos de Azevedo
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
HISTÓRIA ENSINADA: CULTURA, CURRÍCULO E LINGUAGEM
Patrícia Bastos de Azevedo1
RESUMO: Neste texto apresentamos algumas reflexões a respeito de questões que
permeiam a história ensinada. Partindo do princípio que o ensinado é tangenciado e
constrangido por diversas relações de poder e dinâmicas culturais que se estabelecem no
espaço escolar, centramos nossas análises e reflexões sobre os campos discursivos
relacionados ao currículo, linguagem e cultura. Para esta tarefa escolhemos alguns
autores que contribuem com fundamentações teóricas para a construção dos
argumentos e diálogos que nos possibilitam apresentar nossa compreensão relativa a
essa temática. Salientamos que nossas pretensões de validez usam como arcabouço
teórico os autores: Habermas (1998 e 2002) e Bakhtin (2000, 2002 e 2003) – em relação
à linguagem; Certeau (1994) e Canclini (2008) – em relação à história e a cultura;
Gabriel (2003 e 2009) e Monteiro (2006, 2007a, 2007b e 2009) – em relação ao
currículo e ao ensino de história. As concepções teóricas destes autores nos ajudam a
traçar o percurso e a nos colocar em movimento nos caminhos que trilhamos. Nessa
perspectiva nosso texto é circunstanciado pelas nossas reflexões sobre enunciados
destes campos de conhecimento no que se refere à constituição e caracterização da
história ensinada.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo, linguagem, cultura, história ensinada.
1. Introdução
Este artigo tem o objetivo de apresentar o que compreendemos como história
ensinada em um espaço constituído por múltiplas forças que constrangem e tangenciam
a ação do professor e assim delimitam uma faceta de seu trabalho. Para refletir a questão
trazemos os subsídios de nossa pesquisa de doutorado – Ensino de História e Cultura
Letrada: os eventos de letramento na história ensinada – que se caracteriza como um
estudo de caso, do tipo etnográfico. A realização da pesquisa ocorreu em duas salas de
aula de história do 6º ano de escolaridade do Ensino Fundamental, uma escola
municipal localizada no município de Queimados e em uma escola estadual localizada
1
Professora da UFRuralRJ, Doutoranda UFRJ, orientadora Prfª Drª Ana Maria Monteiro, Membro do
Núcleo de Estudos do Currículo (NEC). [email protected]
Patrícia Bastos de Azevedo
6791
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
no município de Nova Iguaçu. Ambos os municípios pertencentes à Baixada
Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa ocorreu no período de março a
julho de 2009.
1. O sentido do ensinado
Buscamos refletir sobre o papel do ensinado, e sua relação com as contingências,
os tangenciamentos e os constrangimentos que são exercidos no ato da história
ensinada.
Concebemos o professor de história como o protagonista da história ensinada.
Desta forma pensamos o aluno como protagonista da história aprendida. Não
pretendemos reduzir o processo ensino/aprendizagem, visto que o compreendemos
como uma ação circular que forma e é formada nos diversos níveis e espaço de
educação. Estamos em nossa afirmação recortando e delimitando nosso centro de
interesse e salientado o nosso foco de olhar.
Não negamos que outros sujeitos são agentes do ensinado, ou melhor,
tangenciam o percurso de execução desta ação. Podemos perceber a influência e
interferência
explicita
ou
não
de
outros
sujeitos
para
além
da
relação
professor/aluno.Um exemplo de influência são os autores dos livros didáticos que
exercem uma força sobre o ensinado, mesmo não estando presente no ato efetivo.
Monteiro (2009) nos ajuda a compreender esta relação de influência exercida pelos
autores e editoras via livro didático:
Assim, os autores ao produzir livros didáticos, interpretam as orientações
oficiais, ou seja, as reelaboram segundo suas idéias pedagógicas e, ao mesmo
tempo, incorporam expectativas dos professores, buscando atraí-los para o
seu consumo. Discursos oficiais e não oficiais são hibridizados, entre eles:
orientações sedimentadas sobre conteúdos indispensáveis, bem como formas
de organização curricular, muitas vezes reproduzidas de modo naturalizado
pelos professores (p. 176).
Podemos perceber que a autora traz para o debate outros atores que influenciam
a ação do ensinado potencial que habita o livro didático. As concepções de ensino, os
discursos oficiais e a organização curricular são outros espaços de influência que
emergem no espaço micro da sala da aula, fazendo do ensinado uma dinâmica mais
densa e multifacetada.
Patrícia Bastos de Azevedo
6792
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
Retornemos a questão de influência exercida pelo livro didático. A adesão ou
não do professor a história contida neste instrumento pedagógico sofre diretamente a
influência da intenção que permeia o fazer deste professor no ensinado. Em nossa
pesquisa de campo o professor 22 afirma em sua entrevista3:
“Livro é indispensável... leitura é indispensável... porque não
adianta o professor ficar na sala de aula escrevendo no quadro,
cuspindo conceito... se o aluno não chega em casa e firmar estes
conceitos... e firmar esta construção toda feita em sala de aula com
a leitura do livro didático...”
“Um suporte indispensável, por mais que eu não utilize todo de
fato... não pro 6º ano, o 6º ano o precisa... o 6º ano precisa de
material, precisa de livro... justamente para visualizar o que o
professor ta falando, dai voltando o que eu já falei... um livro
colorido, com textos complementares...”
A fala do professor está permeada de indícios4 da forma como ele usa o livro e a
sua compreensão sobre o mesmo. 2 afirma que o livro é um suporte importante para o
aluno, como um meio de fixação, consolidação do ensinado pelo professor.
Vamos ler novamente o trecho da entrevista em que podemos observar os
indícios que nos fazem refletir sobre a questão: “se o aluno não chega em casa e firmar
estes conceitos... e firmar esta construção toda feita em sala de aula com a leitura do
livro didático...”. Na perspectiva deste professor o livro é um suporte indispensável,
mas está à serviço de sua ação, não como um agente independente, mas presente na
dinâmica do ensino.
No trecho que leremos a seguir este indício torna-se mais claro e nos ajuda a
corroborar a afirmação que estamos apresentando: “justamente para visualizar o que o
professor ta falando... dai voltando o que eu já falei... um livro colorido, com textos
complementares...”. A fala do professor nos aponta que o livro tem seu lugar e valor no
ensinado, porém de fato o protagonismo deste processo está nas mãos do professor. O
livro é um suporte que serve à intencionalidade que permeia o momento da história
2
Usamos 1 e 2 para designar os professores participantes de nossa pesquisa.
3
Entrevista realizada em 17.06.2009.
4
Os índicos são as pistas que como caçadores buscamos para construir uma narrativa significativa,
olhando nas entre linhas “as pistas mudas” que compõem “uma série coerente de eventos”
(GINZBURG, 1989, p. 152).
Patrícia Bastos de Azevedo
6793
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
ensinada. Reafirmamos que compreendemos esta ação como limitada e constrangida
pela macro e micro estrutura que tangenciam a escola e o ensinado, mas frisamos nossa
premissa que a história ensinada tem no professor seu agente primeiro e principal.
Tardif (2007) reflete sobre a racionalidade que fundamenta o saber do professor,
destacando que não é qualquer processo de racionalidade que pode ser vinculado a este
saber, esta racionalidade está baseada na função primeira e fundante da profissão
docente – o ensinar, isto é, o objetivo do fazer que mobiliza os saberes do professor em
primeiro lugar é levar seu aluno a compreender e aprender determinado conteúdo ou
conceito.
O professor 2 ao apontar o livro como suporte pedagógico ele o indica como um
elemento a serviço do ensino. A fala do professor e a pretensão que ela traz é o cerne da
questão, o livro para este professor é mobilizado na construção de sua aula com a
finalidade de ajudar o aluno a visualizar a explicação proferida na sala de aula.
Na mesma entrevista, anteriormente, ele aponta uma questão que corrobora o que
afirmamos – que o ensinado se materializa mediante a constrangimentos próprios do
espaço escolar.
“Eu dou aula para uma turma que não tem livro... que é o 8º ano
aqui... que o processo de avaliação deles eu procuro fazer
mediante aquilo que eu falo e escrevo... eu sei que em relação ao
outro 8º ano que tem livro a coisa é completamente diferente... isso
cria um desequilíbrio gigante, assim ... eu tenho certeza que uma
turma tem condições... que uma turma tem condições intelectuais
melhor que a outra...”
O professor afirma que as condições de trabalho entre suas duas turmas de 8º
ano são diferenciadas, visto que uma possui livro e outra não. Essas condições distintas
modificam segundo o professor seu trabalho na história ensinada. Gostaríamos de
destacar que este professor atua em uma escola pública da rede estadual do Rio de
Janeiro, localizada no município de Nova Iguaçu. A remessa de livros compradas pelo
Plano Nacional do Livro Didático chegou em 2008. Os livros são comprados a cada três
anos. Nossa pesquisa de campo se realizou no segundo ano após a compra, este fato tem
impacto direto na distribuição e acessibilidade dos alunos ao livro. Durante o passar dos
três anos os livros vão gradativamente desaparecendo da escola. O desaparecimento
ocorre por diferentes fatores que não aprofundaremos neste texto, porém este fato – o
Patrícia Bastos de Azevedo
6794
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
desaparecimento dos livros – tem efeito direto sobre as condições do desenvolvimento
do ensinado, segundo o professor, pois ocasiona a falta de livros para alguns alunos.
Em uma sociedade estratificada e desigual, o acesso a determinados bens de
consumo, neste caso o livro, pode influenciar as condições do aprendido. Segundo 2
este fato é crucial na dinâmica do ensinado e logo no efeito do aprendido – isso cria um
desequilíbrio gigante, assim... eu tenho certeza que uma turma tem condições... que
uma turma tem condições intelectuais melhor que a outra... – a fala do professor aponta
uma questão, a nosso ver, central no debate sobre o ensinado, as questões estruturais em
que os processos de ensino/aprendizagem estão inseridos.
O “ensinado” está permeado pelo mundo da vida e pelas relações de poder que o
compõem. Pensar história ensinada distante das dinâmicas sociais micro e macro que
permeiam o espaço de ensino é produz um apagamento das forças de influência que
agem sobre o ensino. Ignorar o “situado”(APLLE, 2006) é não compreender que o
ensinado está diretamente ligado ao espaço-tempo em que se materializa.
Nossa compreensão de história ensinada vai para além do espaço micro do fazer,
é compreendida como um “espaço-tempo híbrido” em que o ensinado é burilado e se
constitui em práticas multifacetadas e interdependentes. Macedo (2006) afirmar
“Entendo ser mais promissor, do ponto de vista teórico, buscar pensar o currículo
como espaço-tempo de fronteira, permeado por relações interculturais e por um poder
oblíquo e contingente” (p. 106).
Como
afirmamos
anteriormente
compreendemos
o
ensinado
como
materialização de um pano de fundo sócio-econômico-cultural maior e dinâmico, uma
tessitura muitas vezes fugidia e esgarçada, em que o professor saca de diferentes
referenciais constituindo uma ação complexa. É nessa multiplexidade que o ensinado
ganha corpo.
1.1. O ensinado e sua relação com o micro e o macro
Partindo da premissa que a história ensinada se constitui em um espaço-tempo
dialogamos com Ball (2006) e sua relação com o contexto macro de influência que se
operacionaliza e constitui uma face do micro. Nos apropriamos desta reflexão para
pensarmos a produção da história ensinada, na qual todos os sujeitos da ação são
Patrícia Bastos de Azevedo
6795
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
responsabilizados e avaliados cabendo a eles uma construção de uma possível solução
para os problemas que se apresentam no fazer.
As responsabilidades de gestão são delegadas e as iniciativas e a resolução de
problemas são super-valorizadas. Por outro lado, são colocadas em práticas
novas formas de vigilância e auto-monitoramento, como por exemplo,
sistemas de avaliação, determinação de objetivos e comparação de resultados
(p. 109).
O autor aponta que, diante de um problema para uma resolução os sujeitos do
problema devem partir de um suposto “todos” e equacionar e promover assim uma saída
supostamente coletiva que promoverá a elevação da qualidade. A construção de uma
solução deve corrigir as distorções presentes no problema que diminui a qualidade do
produto. A correção eficaz será percebida em formas uniformizadas de avaliação que
servem de vigilância do fazer e instrumento para a reconfiguração das estratégias
quando estas se mostrarem ineficientes.
Dialogando com Ball (2006) aproximamos suas reflexões das nossas relativas ao
ensinado, destacamos o episódio que denominamos de “Como fazer uma prova de
múltipla escolha”. O fragmento que trazemos neste artigo tem o objetivo de
exemplificar nossas reflexões e apresentarmos uma materialização destas contingências
macro na história ensinada.
Uma das escolas que investigamos realiza um sistema de avaliação bimestral
concentrada, isto é, todos os alunos do 6º ao 9º ano fazem juntos as provas de um bloco
específico de disciplinas em um único dia. Os alunos são organizados em fileiras
alternadas em que o aluno ao lado é de um ano de escolaridade diferente. Os professores
se dividem para aplicar a prova. Isto significa que o professor que se encontra na sala
pode ou não ser responsável pelo ensino da disciplina avaliada. As provas são
obrigatoriamente de múltipla escolha, e iguais para todas as turmas de acordo com a
disciplina e o ano de escolaridade. A correção é realizada pelo professor da turma. Este
ritual é denominado pela escola como “simulado” ele corresponde a 50% do conceito
do aluno no bimestre.
Este ritual tem o objetivo de formar o aluno para as avaliações nas quais eles são
submetidos ao longo de sua formação. As avaliações em questão são aplicadas pelo
Estado – seja na esfera estadual ou federal. Estas avaliações sistematizadas e aplicadas
Patrícia Bastos de Azevedo
6796
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
pelo Estado também classificam a escola e é um dos instrumentos que definem as
verbas destinadas e os abonos salariais dos professores.
“Vou entregar a prova agora e queria dar um aviso a vocês...
um aviso não um recado... que não é bom... uma percepção
minha que eu não fiquei feliz***5 tanto é que *** para mim um
pensei que vocês fossem se sair melhor na prova ... se dariam
muito bem na prova... vocês estavam acompanhando desde o
início... fizeram exercício, leram o livro, viram o vídeo... em fim
fizeram várias atividades *** Fizeram aquele teste em dupla
que se deram relativamente bem... Mas na hora da prova vocês
se confundiram... Eu fiquei meio assustado porque foi uma
prova que vocês não escreveram nada... foi toda de múltipla
escolha... Ai eu quero ver com vocês... eu vou entregar as
provas... e a gente vai refazer esta prova ... Porque talvez vocês
tenham tido problema na hora das alternativas, talvez vocês não
tenham entendido bem as alternativas...”
Diante do resultado da turma, que não foi o desejado pelo professor, ele dedica
suas duas aulas, de 50 minutos cada, daquela semana a ensinar os alunos a fazerem uma
prova de múltipla escolha. Ele acredita que o problema da turma estava no formato da
avaliação, já que nas avaliações anteriores eles se saíram melhor.
O fragmento que destacamos nos ajuda a compreender como estas estratégias de
gestão educacional macro influenciam o desenvolvimento do ensinado e interpenetram a
construção de sentidos na história ensinada. Como nos aponta Apple (2006) entender o
“situado” é fundamental para compreendermos os conhecimentos que são ensinados.
O professor nesta aula ensina mais que história, ele ajuda os alunos a
operacionalizarem estratégias para resolverem um problema real e imediato – como
fazer uma prova de múltipla escolha.
A organização desta escola é profundamente atingida por uma demanda externa
de mensuração e ranqueamento a que as escolas públicas brasileiras estão submetidas.
Esta realidade sócio-econômica produz práticas que visam dar sustentação e alternativas
de enfrentamento ao desafio embutido neste processo. Produzindo assim diversos
conhecimentos manifestos e ocultos que tangenciam o ensinado e o aprendido.
Ainda em relação ao “simulado” e a sua estruturação, as provas são organizadas em
conjunto com os professores das diversas disciplinas. A disciplina história é ensinada no
5
*** Marcação de ruído que impedem a transcrição do áudio.
Patrícia Bastos de Azevedo
6797
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
6º ano por dois professores e eles alternam a elaboração deste instrumento. Na aula
anterior ao simulado do 2º bimestre o professor 2 destaca um conteúdo para os alunos
relativos “servidão coletiva6” e ele afirma:
“O PROFESSOR X TRABALHA MUITO ESTA QUESTÃO E VAI CAIR NO
7
SIMULADO...”
Podemos perceber neste fragmento que o ensinado está inserido em um contexto
maior e esse contexto tangencia o fazer do professor e suas intenções e suas ações na
prática cotidiana.
Esta aula, a qual pertence o fragmento, tem o objetivo central de “fixar” uma
série de conceitos e conteúdos visando à avaliação que ocorrerá na semana seguinte. Ao
chamar a atenção dos alunos para a questão da “servidão coletiva” o professor está
ponderando sobre a prova e seu conhecimento acerca de outros atores escolares que
interferem diretamente em sua ação de ensino, dialogando com os conhecimentos
manifestos e ocultos presentes na história ensinada por ele. Criando estratégias de
superação de uma realidade seletiva, avaliativa e meritocrática existente, que impacta
tanto ele quanto aos alunos.
Em relação ao conteúdo ensinado pelos professores observamos uma
coincidência aparente – ambos trabalharam no primeiro bimestre – introdução ao estudo
da história, pré-história e civilizações antigas. Observamos que este fato estava
relacionado ao livro de apoio que os professores usavam. A turma do professor 2
recebeu o livro no início do período letivo e nas aulas o professor usava o livro como
apoio para suas explicações e na feitura dos exercícios executados pelos alunos. A
turma do professor 1 recebeu os livro no dia 12 de maio, mesmo assim ele usava
anteriormente um livro – “História” de José Roberto Martins – como suporte para os
textos que escrevia no quadro no início de cada aula. O livro para ambos os professores
possui não só a função de apoio didático, mas também exerce um papel que direciona o
conteúdo a ensinar e a disposição dos conteúdos.
A falta do livro didático nos primeiros meses de aula produz um roteiro
pedagógico8 – professor 1 – marcado pela escrita no quadro. Suas aulas iniciam com a
6
Aula do dia 16/06/2009.
7
Relato feito à pesquisadora após a aula – anotação no caderno de campo do dia 31/03/2009.
Patrícia Bastos de Azevedo
6798
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
escrita de um texto síntese no quadro acompanhado de uma explicação relativa ao
mesmo. O texto síntese é durante a explicação a base e o roteiro que o professor usa em
sua aula e nos exercícios que aplica.
“As diferenças no interior das sociedades9
A espécie humana vive em grupo. Os grupos humanos mais
amplos recebem o nome de sociedade. O homem sempre viveu
em sociedade e depende dela para viver.
As diferentes sociedades
Para quem estuda as sociedades, as diferenças sociais são as
mais importantes. Na televisão, mostra as pessoas vivendo no
luxo e no conforto. Mas os noticiários mostram pessoas vivendo
na miséria, morando nas favelas sem ter comida, sem ter
remédio, sem ter estudo e diversão.”
Momento
Tempo
Discrição da aula do dia 10/04/2009
1º
11’51”
Escrita do texto síntese no quadro.
2º
4’30”
Aguardando a turma copiar o texto escrito no
quadro.
3º
17’08”
Explicação
4º
15’05”
Exercício e correção.
O roteiro pedagógico das aulas do professor 1 até o recebimento do livro
didático difere das aulas do professor 2, tanto pelo tempo em sala de aula, visto que 1
possui 4 tempos de 50min em cada turma por semana e 2 a metade deste tempo. Porém
com o recebimento dos livros didáticos o professor 1 produz um roteiro didático muito
semelhante ao executado pelo professor 2. A aula torna-se mais centrada na explicação
e o livro didático.tornasse nesta nova organização do roteiro seu suporte na construção
de seus argumentos. O livro também tornasse a fonte dos exercícios realizados em sala e
em casa pelos alunos.
8
Usamos a expressão roteiro pedagógico no sentido da organização que os professores dão a dinâmica de
suas aulas.
9
Texto da aula 10/03/2009
Patrícia Bastos de Azevedo
6799
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
O livro didático apresentaria uma historiografia que já sofreu um processo
didatização.(MONTEIRO, 2009). Neste processo o professor completa e aprofunda o
texto na explicação oral proferida em sala adaptando a realidade que o circunda. A
explicação em nosso campo de investigação se apresenta como a principal atividade do
ensinado, canalizando os esforços do professor. O livro apresenta-se como referência e
suporte de estudo para os alunos. O professor 1 também usa o livro e o texto como
argumento de autoridade.
Os textos sínteses e depois o livro são apresentados como argumentos que
legitimam a explicação por ele proferida.
“Olha só... olha como o texto define...ele define o seguinte... os
grupos humanos mais amplos... recebem o nome... de que?...
SOCIEDADE10...
O seu argumento tenta persuadir o aluno a compreender e aceitar a explicação
como pretensão de validez. O dialogo que ele tece com a turma vai sendo permeado
pela sua aproximação com a realidade vivida e experimentada por eles e com o texto
síntese.
“A nossa turma é uma sociedade?... É11... é?... É... vocês não
acham que nossa sala é um grupo muito pequeno para se
chamar sociedade?... não seria mais correto dizer que nossa
sala é parte de uma sociedade...”
Este exercício de argumentação realizado pelo professor 1 está situado em um
todo maior que visa levar o aluno a aprender e fixar o sentido histórico do ensinado
defendido por ele. No exercício de explicar a história o professor solicita a adesão da
turma para a tarefa. Quando pergunta aos alunos – “A nossa turma é uma sociedade?” –
ele busca mobilizar a compreensão que os alunos obtiveram do texto apresentado e
parte desta compreensão para tecer seus argumentos a cerca do conceito em questão. A
pergunta fixa a atenção da turma que se direciona a promover o argumento que o
professor está apresentando.
A história ensinada não se faz apenas pela ação do professor. Ela se efetiva neste
todo em que o labor do ensinar se executa. Dialoga e é tensionada pelo mundo da vida e
10
Resposta em coro da turma.
11
Resposta em coro da turma.
Patrícia Bastos de Azevedo
6800
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
suas dinâmicas sociais, culturais e econômicas. Também se mescla com as percepções e
visões sobre o mundo e sobre a história de vida e acadêmica que este professor possui.
A história ensinada tem um papel social e pedagógico, e como tal produz como
já afirmamos, um conhecimento que se materializa na prática, dificultando sua
compreensão no ato de pesquisa, pois não se estrutura de fato uma estabilidade para
análise. Visto que o ato de ensinar se materializa na emergência do espaço da sala de
aula, sendo um constante ineditismo parcial12. A construção de um conhecimento que
transpassa o espaço físico da escola e o espaço conceitual da História é o combustível
motriz da história ensinada.
Nessa perspectiva, a história ensinada está situada no espaço do entre saberes e
dos fazeres dos professores (MONTEIRO, 2007). Desta forma a história ensinada é
permeada pelas questões da cultura escolar. Nessa perspectiva a história ensinada está
situada no mundo da vida e pelas contingências que atravessam o ensinado.
A validação do saber historicamente construído tangencia o argumento
constituído pelo professor, isto é, nem todo argumento poderá ser usado na construção
do sentido pedagógico na história ensinada, há compromissos sociais e educacionais
embutidos no ensinar, que se constituem no espaço-tempo.
Em nossa perspectiva a história ensinada traz consigo elementos das diversas
esferas que a constitui os argumentos estabelecidos nas negociações de sentidos
defendidas pelo professor, assim como a pretensão de validez que ele enuncia em sua
ação de ensino. O argumento é a linha que junta as pretensões de validez e possibilita a
materialização de um todo harmônico ou não que busca dar sentido a história ensinada.
Espaço-tempo
Iniciamos esta seção dialogando com Elias (1998) e suas reflexos sobre o tempo.
Conceito central ao pensarmos história e conseqüentemente a história ensinada.
O conceito de tempo, no uso que fazemos dele, situa-se num alto nível de
generalização e de síntese, que pressupõe um riquíssimo patrimônio social de
saber no que concerne aos métodos de mensuração das seqüências temporais
e às regularidades que elas apresentam. É claro que os homens dos estágios
anteriores não podiam possuir esse saber, não porque fossem menos
“inteligentes” do que nós, mas porque esse saber exige, por natureza, muito
tempo para se desenvolver (p. 35).
12
Usamos “parcial” pois compreendemos que algumas ações se estabilizam no roteiro pedagógico, mas o
inusitado está sempre presente na dinâmica do ensinar.
Patrícia Bastos de Azevedo
6801
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
Nesta perspectiva o tempo segundo Elias é uma construção humana que se
processou ao longo do próprio tempo, modificando sua percepção e materialização ao
longo da história e continua no processo permanente de significação.
Tomando como pressuposto, as reflexões de Elias, para pensarmos a operação de
compreensão do tempo-espaço, compreendemos que estes se localizam em uma ação
cognitiva tangenciada pela própria temporalidade que o faz produto e produtor de seu
presente, isto é, o que definimos como “tempo” hoje está imerso na significação/síntese
que forma este conceito. Logo podemos afirmar que a palavra tempo é um signo
ideológico. Compreendido de diferentes formas permeado pela composição do campo
discursivo que o profere.
Esta compreensão/síntese apontada por Elias nos aproxima do próprio conceito
de espaço e da compreensão deste signo conceitual que sem sombra de dúvida é
ideológico. Para pensarmos este segundo conceito trazemos para dialogar conosco
Certeau (1994) e a definição que este pensador traz sobre espaço.
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades
de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de
certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que ai se desdobram.
Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o
circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade
polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais.
[...]
Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente
definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres (p.
202).
Dialogando com Certeau e Elias, ousamos afirmar, que a história ensinada
materializa-se em um espaço-tempo, como tal tem sua definição e compreensão
tangenciada por esses dois signos ideológicos (BAKHTIN, 2002) que a constrangem e
formam suas facetas materializada no espaço escolar da sala de aula.
Pensar o surgimento da disciplina no contexto escolar e suas transformação ao
longo do espaço-tempo nos ajuda a compreender como a história ensinada se constitui
enquanto saberes e práticas do professor no ato de ensinar tangenciado pelo espaçotempo de constituição. O professor é um sujeito do seu espaço-tempo e seus enunciados
são compostos por ecos que permeiam esta realidade.
Retornemos a nossa afirmação – a história ensinada materializa-se no espaçotempo – desta forma sua identidade é marcada pelas relações sociais e de poder que
Patrícia Bastos de Azevedo
6802
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
constituem esta realidade que a circunstancia. Por generalização naturalística podemos
presumir que em sua grande maioria os professores que atuavam no século XIX
construíam suas práticas pedagógicas marcadas pelas questões das identidades
nacionais, assim como os professores que atuam no início do século XXI são
questionados e constroem seus argumentos explicativos permeados pelas questões de
seu espaço-tempo.
Podemos perceber esta relação espaço-tempo nas falas dos professores, que
destacamos a seguir:
1: se conscientizem que o Brasil teve 300 anos de escravidão...
porisso que existe o preconceito racial.
2: como uma ferramenta pro o aluno entender o mundo... de que
modo... interpretando as coisas que acontecem entorno dele...
né... não só nas questões que são mais globais, mas na questão
mais pessoal... eu sempre digo pra eles... que eu entendo que a
história serve para mostrar que nós somos diferentes... e que...
portanto nós devemos respeitar uns aos outros
O professor 1 dialoga com uma questão presente na atualidade e nos debates
curriculares e acadêmicos – a questão de raça, mais especificamente a negra.
Observamos que o debate apontado pelo professor, de forma sintética em sua entrevista,
traz consigo traços marcantes dos elementos atuais referentes às políticas curriculares e
a luta de afirmação por um espaço, marcado por grandes embates e militância do
movimento negro brasileiro, como também por questões subjetivas de sua própria
identidade como pessoa.. O professor 1 é negro, morador da Baixada Fluminense, é
inegável que sua fala e argumentos estão permeados de sua subjetividade e constituição
como pessoa no mundo da vida.
O professor 2 dialoga com outras questões que habitam também o espaço-tempo
que constitui o mundo da vida em que está imerso. O mundo glabalizado e múltiplo que
invade a vida na atualidade, as questões pertinentes à identidade e alteridade. A
construção de uma aceitação do diferente está permeada de elementos sociais que
desafiam o professor. Elementos estes que povoam debates dos campos da história,
educação e cultura. Sua fala traz também questões da própria produção do
conhecimento histórico, pois afirma “que a história sirva para a interpretação das
coisas”, uma forma de ler e escrever o mundo. Hall (2005) afirma que “toda prática
Patrícia Bastos de Azevedo
6803
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
social tem condições culturais ou discursivas de existência. As práticas sociais, na
medida em que dependam do significado para funcionarem e produzirem efeitos, se
situam ‘dentro do discurso’, são ‘discursivas’”.
A afirmação proferida pelo professor na entrevista se aproxima da concepção de
prática social e conhecimento apresentada por Hall (2005). O argumento apresentado
por este autor se inscreve em um texto que tem como premissa à “centralidade da
cultura”. A construção conceitual apresentada por Hall se constitui no âmbito dos
estudos culturais. Este debate se materializa em um espaço-tempo13.
É inegável a relação do ensino de história com as questões de identidade e
cultura, também não podemos negar seu compromisso de origem com a modernidade e
os modos de pensar a realidade inerente a este pertencimento.
A fala do professor 2 se inscreve nesse debate epistemológico. Em sua entrevista
o professor não aponta o referencial que usa para construir o argumento que apresenta,
nossa percepção indica que sua validez está baseada em reflexões múltiplas que são
oriundas de seu mundo da vida. Especulamos que provavelmente os argumentos têm
sua origem principal em sua formação inicial e continuada dentro do campo da história,
pois percebemos nos indícios que seu argumento é focado na história e não no ensino ou
na educação – que eu entendo que a história serve para mostrar que nós somos
diferentes – o enunciado frisa que seu entendimento é sobre a história, nessa perspectiva
é pela história que ele está tecendo o argumento apresentado na entrevista relativo a
importância da disciplina no espaço escolar.
Nossa concepção de espaço-tempo também é marcada por nosso arcabouço
conceitual e por nossa história de vida. Mesmo permeada pelas questões de cultura não
negamos nosso pertencimento e filiação a uma concepção de racionalidade processual,
que se estabelece discursivamente no mundo da vida. Logo nossa concepção de espaçotempo está permeada da pretensão de que estes signos se constituem nas relações sociais
mutáveis, mas também nas concepções práticas lingüísticas. As práticas lingüísticas
formam a pragmática que orienta nossa concepção de espaço-tempo.
Quando falamos de história ensinada estamos delimitando um espaço-tempo,
logo não é qualquer espaço – real ou virtual. Não é qualquer tempo ou todos os tempos.
13
O campo de teorização e investigação conhecido como Estudos Culturais tem sua origem na fundação,
em 1964, do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra
(SILVA, 2009, p. 131).
Patrícia Bastos de Azevedo
6804
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
Nos inscrevemos em um espaço – brasileiro, carioca e suburbano. Em um tempo
tangenciado pela primeira década do século XXI. Falamos do lugar feminino,
circunstanciado por dezessete anos e meio de magistério na educação básica e três anos
no nível superior. Logo nossa palavra “signo” se constitui em um espaço-tempo
tangenciado pelo mundo da vida que nos forma e formamos este mundo, e também
refrata tantas outras concepções e significações.
Nesta perspectiva compreendemos história como uma ação que é constituída
pelo sujeito intersubjetivo. O professor como sujeito protagonista do ensinado que se
realiza em um espaço-tempo e é circunstanciado por ele.
2. Afinal, o que é história ensinada?
Compreendemos “história ensinada” como pertencente a um campo de
conhecimento nomeado como Ensino de História. Como campo o Ensino de História
apresenta uma série de produções que dialogam basicamente com duas áreas de
conhecimento são elas a história e a educação.
Rüsen (2006) aponta que o afastamento da história das questões relativas ao seu ensino
vincula-se ao século XIX e aos esforços dos historiadores de transformá-la em ciência.
Durante o século XIX, quando os historiadores definiram sua disciplina, eles
começaram a perder de vista um importante princípio, a saber, que a história
é enraizada nas necessidades sociais para orientar a vida dentro da estrutura
tempo. O entendimento histórico é guiado fundamentalmente pelos interesses
humanos básicos: assim sendo é diretamente na cultura política da sociedade
dos historiadores. Como os historiadores do século XIX se esforçaram para
tornar a história uma ciência, este público foi esquecido ou redefinido para
incluir apenas um pequeno grupo de profissionais treinados (p. 8).
Podemos perceber dialogando com Rüsen que a própria história está imersa nas
questões de seu espaço-tempo e tangenciada pelas relações de poder. Nessa perspectiva
o ensino de história perde espaço nesta área de conhecimento e encontra abrigo,
limitados e parcos, na educação.
Sendo a história ensinada uma produção do seu espaço-tempo revela em sua
materialização as relações de poder em que está submetida, produzindo, ao nosso ver,
um gênero impuro e híbrido (CANCLINI, 2008) de significado em construção,
refletindo assim seu espaço de materialidade mutável e seu tempo em constituição.
Patrícia Bastos de Azevedo
6805
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
O lugar da sala de aula torna-se um espaço de fronteira com argumentações
desterritorializadas. Pois não é o lugar da historiografia – estabilizada na sua
materialidade escrita – e também não é o lugar – do ensino como verdade fixa que busca
esclarecer o (a) + (luno) (sem luz), eleva-lo a categoria de iluminado. É o espaço da
construção de sentidos permeados de signos ideológicos do espaço-tempo de
significação.
Compreendemos história ensinada como espaço de produção que se faz como
“gênero impuro” (CANCLINE, 2008) da historia e como gênero híbrido de ensino.
Espaço em que o professor – protagonista do ato – tece seus argumentos transitando por
momentos de escuta e surdez, de ações democráticas e autoritárias. Com momentos
revolucionários, festivos e companheiros e às vezes totalmente antagônicos sendo
tradicionalista, sorumbático e isolacionista. Um fazer que este professor possui uma
autonomia relativa, que está a-sujeitado aos constrangimentos próprios do ofício que o
“ser professor” possui. Estes constrangimentos formam o ensinado.
Não só das agruras que condicionam o ser professor e o ensinado que
gostaríamos de salientar. Destacamos que ao pensarmos o ensinado como gêneros
impuros o percebemos como um espaço de criação de alternativas e novas formas de ser
e estar na educação e na história. O ensinado muitas vezes se faz em um espaço de
poder oblíquo em que são tecidos fios que constroem alternativas para o posto.
Compreendemos história ensinada como um espaço híbrido de saberes, oriundo
de diferentes lugares e espaços – escolar, sistema, professor, alunos, responsáveis,
livros, etc. – em que a construção do sentido histórico está em constante formação.
Caminhando por diversos “lugares” e tornando-os muitas vezes “espaços”. O
movimento contido no ensinado pode produzir ações oblíquos e simbólicas, difíceis de
serem vistas, mas como potencialidade de existência. Esta potencialidade seja de
“conscientizar” como nos fala 1 ou de “ler” como aponta 2, não sabemos afirmar com
precisão.
Compreendemos
como
potencialidades
diagonais.
Não
somos
tão
esperançosos como Canclini, muito menos compreendemos a luta, na maioria das vezes,
com metafórica, percebemos estes conflitos de poder como signos materializados. O
que nos aproxima das reflexões propostas pelo autor do que pensamos a história
ensinada, ou melhor, o ensinado como um espaço real e possível de enfrentamento
oblíquo.
Patrícia Bastos de Azevedo
6806
História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
Neste sentido de tangenciamentos diagonais que compreendemos a história
ensinada, e porque nos aproximamos de Rüsen. Acreditamos que este fazer está a
serviço da consciência histórica, ou melhor, “consciências históricas” como um fim
último para o ensino de história e história ensinada como o espaço de produção e
construção deste fim.
Nos propomos neste texto apresentar argumentos que esclarecessem o que
concebemos como história ensinada. Neste exercício nos propusemos a definir este
signo. Esperamos que tenhamos conseguido apresentar o que concebemos.
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História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
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História Ensinada: cultura, currículo e linguagem
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Patrícia Bastos de Azevedo
6809
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
VIOLÊNCIA ESCOLAR: UM ENTRE-LUGAR NAS
QUESTÕES DE GÊNERO E EXCLUSÃO – UM
ESTUDO ETNOGRÁFICO
Paula Almeida de Castro
Sandra Maciel de Almeida
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
VIOLÊNCIA ESCOLAR: UM ENTRE-LUGAR NAS QUESTÕES DE GÊNERO
E EXCLUSÃO - UM ESTUDO ETNOGRÁFICO
Paula Almeida de Castro1
Sandra Maciel de Almeida2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
FAPERJ
RESUMO: A violência escolar, analisada pelo viés etnográfico de pesquisa, é o objeto
desse trabalho. Nos grandes centros urbanos, sugere que a violência tornou-se parte do
dia-a-dia da população. Além de configurar o contexto macro-social, a violência, não
raro, assume novas significações, se interioriza no ambiente escolar integrando o
cotidiano vivenciado por alunos e professores. Para elucidar as ocorrências de atos de
violência no ambiente escoalr, durante um ano letivo foram realizadas observações
participantes, capturando, em áudio e vídeo, cenas e eventos que ilustram um cenário
balizado por interações entre professores e alunos, pautadas em métodos coercitivos,
justificados pela realidade violenta circundante à instituição de ensino. Nesta escola
pública acompanhamos a rotina de sala de aula, bem como os encontros bimestrais dos
Conselhos de Classe. As análises indutivas apontaram o entendimento sobre a violência
indo além da/na escola, mas definindo o ensino-aprendizagem e, comprometendo os
resultados escolares. Instituição, dita inclusiva, mas que permanece excluindo aqueles
que vislumbram a Educação como possibilidade de superação das desigualdades sócioeducacionais. Partimos dos estudos sobre exclusão/ inclusão e fracasso escolar para
explicar a problemática que assinala um entre-lugar da violência no cotidiano de sala de
aula. Ao final, entendemos que no contexto observado a violência assume diferentes
papéis em uma realidade de excluídos escolares.
PALAVRAS-CHAVE: Violência, Exclusão, Gênero, Etnografia.
Introdução
Neste artigo, apresentamos uma análise sobre os índices de violência,
caracterizados como um aspecto intrínseco entre a realidade social e o funcionamento
1
Psicóloga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
2
Pedagoga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6813
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
das instituições de ensino. Estima-se que, um dos fatores determinantes para a
convivência com a violência é a proximidade das escolas com áreas consideradas de
risco pelas entidades de segurança pública. Embora o termo violência sugira atos
violentos e vandalismo, na escola ele assume diferentes papéis.
Em estudos anteriores (Castro, 2006; Mattos, 2007) constatou-se que alguns
alunos são apontados pelos professores e gestores da escola como responsáveis pela
criação, no espaço escolar, de ‘núcleos de violência’. Tais núcleos são caracterizados
pela liderança, em sala de aula, de alunos considerados ‘favoritos’ junto aos gestores3,
configurando a qualificação de ‘alunos violentos’. Destaca-se ainda, especialmente nos
conselhos de classe, a violência vivenciada pelos alunos nos meios familiares, servindo
como pano de fundo para explicar o comportamento dos mesmos na escola.
Para compreender os pressupostos da violência escolar, foi analisado o cotidiano
de sala de aula, através das interações da professora com os seus alunos e, entre alunos.
Ressaltou-se a implicação destas interações na rotina pedagógica, suas conseqüências
no desempenho e avaliação dos alunos e alunas e o aumento das condições de
desigualdade levando ao fracasso e à exclusão escolar.
Para a realização do estudo, ora aqui apresentado, optamos pela abordagem
etnográfica de pesquisa, utilizando os instrumentos etnográficos de observação
participante, entrevistas e videoetnografia em uma escola pública do estado do Rio de
Janeiro. Nesta escola, acompanhamos semanalmente uma sala de aula do primeiro
segmento do primeiro ciclo, além das reuniões do Conselho de Classe durante um ano
letivo. A partir dos dados coletados no trabalho de campo procedeu-se a análise indutiva
do material donde emergiram as categorias temáticas4 que possibilitaram compreender
as interações e dinâmicas que distinguem o espaço escolar e a violência.
A importância desse estudo se justifica pela busca de entendimento da
construção diária do saber ocorrida na sala de aula e voltar a esta toda vez que buscamos
compreender a dinâmica que ocorre em seu interior. E ainda, pela perspectiva de ser a
sala de aula um espaço interacional que interfere na vida dos sujeitos que dela
participam – alunos, alunas, professores. Posto isto, buscamos nos estudos de diferentes
3
Este favoritismo relaciona-se à ligação com o tráfico de drogas na comunidade onde a escola está
situada.
4
Ver Castro, 2006.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6814
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
autores (OLIVEIRA e LEITE 20075, MATTOS 20086, PATTO 20077, MARTINS
19978) os conceitos sobre inclusão/ exclusão e fracasso escolar para explicar as nuances
observadas nos meios escolares que indicam relações ajustadas pela violência.
Violência: entre as ruas e a escola
“O que eu tô colocando aqui é que tem que ter uma ação mais coercitiva do
professor” (Professora Dora)
A violência nos centros urbanos apresenta-se diariamente, através dos veículos
de informação, com índices alarmantes, nos quais é relatada uma série de fatos e cenas
de violência que ocorrem na sociedade. Nos casos em que a escola está relacionada aos
atos de violência urbana, ela está localizada nas proximidades ou mesmo dentro das
localidades nas quais os estes ocorrem. São locais consideradas pelos gestores públicos
como áreas de risco, seja pela ocorrência cotidiana de atos de violência ou pelas
condições de miséria e pobreza da população.
Desse modo, a questão da violência no cotidiano das escolas está relacionada,
aos aspectos concernentes às desigualdades sociais e que se refletem na exclusão sócioeducacional dos sujeitos. No cenário escolar, a violência surge como uma reação dos
alunos e alunas, na tentativa de denunciar as condições desiguais e excludentes em que
se encontram. Ainda que as condições de pobreza, exclusão e a violência sejam
‘invisibilizadas’ pelo poder público e, mesmo, pela escola.
5
Oliveira e Leite conceituam o tema a partir da necessidade de a inclusão atender a todos, sem distinções,
incorporando as diferenças no contexto escolar e que para tal exigiria uma transformação da escola na
atualidade (p.512).
6
Mattos contextualiza o tema exclusão na Educação como uma metacategoria donde esta deriva de outras
(desemprego, alunos em risco sócio-educacional, minorias, pais adolescentes, menores infratores) que
foram criadas para facilitar a distinção entre os que são excluídos e os que não são. E ainda que, miséria e
pobreza causam um impacto direto no desempenho na qualidade da educação de crianças, jovens e
adultos (p.1).
7
Pelos estudos de Patto (2007) é possível delinear alguns aspectos do fracasso escolar como sendo
responsabilidade do conjunto que envolve a educação escolar formal e não de fatores isolados como, por
exemplo, culpabilizar os alunos, as famílias, os professores ou as políticas educacionais.
8
O autor em seu trabalho afirma que a sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de
outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica (p.32). Ele ainda chama a atenção
para o fato de que a exclusão começou a se tornar visível, pois começa a demorar muito ser incluído; o
período da passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão está se transformando num
modo de vida, está se tornando mais do que um período transitório (p.33).
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6815
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
“A violência é vivenciada, ao mesmo tempo, como algo
inaceitável, condenável e simultaneamente, banal, percebido
como inevitável e fatal o que faz com que nos acomodemos...”
(Abramovay, 2005, p. 2).
Segundo Dubet (2003) as desigualdades sociais existem desde sempre, mas foi
somente, a partir da Modernidade9, que elas passaram a serem consideradas relevantes,
como um problema que envolve todas as dimensões da vida humana e das relações
sociais. Desse modo, a violência escolar torna-se uma situação social problemática e
que carece de solução em curto prazo.
Para efeito de exemplificação, tomemos a situação violenta da cidade do Rio de
Janeiro, com notícias diárias sobre confrontos entre jovens e a polícia, aumento do
número de homicídios, proliferação de favelas – estas que a cada dia ocupam mais
espaços nos grandes centros urbanos. Assim, como conseqüência do descaso com que a
violência é tratada pelas autoridades policiais, judiciais, educacionais, esta passa a se
constituir como;
“(...) expressões de um ressentimento social de jovens e adolescentes
que foram, ou se sentem, excluídos da instituição escolar, mas que, por
vias transversais, querem ser incluídos no espaço escolar. Evidencia-se
uma correspondência entre a exclusão social e a violência escolar: a
violência é determinada socialmente. Tanto mais o público jovem é
desfavorecido, em termos econômicos como culturais, tanto mais ele se
confronta com a vivência do desemprego, mais ele experimenta uma
exclusão, não só de oportunidades econômicas, mas também de um
prestígio social, o que resulta em um agravamento de sua auto-estima e
de sua perspectiva de futuro. Os jovens vivem hoje a desesperança em
relação às promessas contidas na proposta da escola: este é o contexto
social de emergência da violência escolar” (Santos, 2001, p.114).
A invisibilidade da violência pode ser comparada a um “elefante na sala de
jantar” – expressão cunhada na África à época do extermínio de elefantes para o
comércio do marfim. A negligência das autoridades africanas foi comparada, pela
simbologia, a ‘um elefante na sala de jantar’ sem que sua presença fosse notada. Podese dizer que o mesmo ocorre quando, ao relatar fatos relacionados ao fechamento de
escolas, ao grande número de alunos envolvidos com o tráfico de drogas ou que são
mortos diariamente. Tais relatos acabam sendo naturalizados pelo coletivo das escolas,
embora sejam expostos eventualmente nas reuniões de professores pela situação
problemática envolvendo os alunos, acabam por passar despercebido no cotidiano
escolar.
O sujeito é situado nas marcas da exclusão e violência que são atribuídas a ele.
Dubet (2003) cita ainda o reforço “sofrido” pelos indivíduos (alunos e professores) para
9
Modernidade refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a
partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.
(GIDDENS, 1991).
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6816
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
construir autonomia e identidade10 numa sociedade (ou instituição) em processo de
transformação e de “decomposição”.
“O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um
sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio
de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada,
flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente,
perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição
enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de
uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em
nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante,
desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo
inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman,2005,
p.35)
A construção da identidade dos jovens e crianças que residem em áreas
consideradas violentas pela população é mediada pelos valores familiares, da escola e
acima de tudo do tráfico local de drogas. Esta construção é dialética; além de
determinada é também determinante, pois o jovem tem um papel ativo, quer na
construção desse contexto a partir de sua interação, quer na sua apropriação. A
identidade só pode ser construída a partir da interação. Interessa, portanto, a percepção
da interação dos alunos na sala de aula e na escola e da violência na qual estão inseridos
em seus locais de moradia e na escola.
Violência aferição de gênero e fracasso escolar
““Identificar-se com...” significa dar abrigo a um destino desconhecido que não
se pode influenciar, muito menos controlar” (BAUMAN, 2005, p. 36).
A palavra violência é distinguida gramaticalmente pelo substantivo feminino.
Ao contrário do que a Língua Portuguesa sugere, o discurso teórico e os profissionais da
educação relacionam a violência observada em sala de aula ao aluno; substantivo
masculino.
10
Entendemos a identidade como um conjunto de imagens, representações, conceitos de si, e
consideramos, especialmente, o caráter dialético de sua construção, a saber, da importância da alteridade
nesse processo, fez-se também necessária a inclusão de procedimentos que possam fornecer dados para a
compreensão da importância do outro nesse processo.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6817
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
Historicamente, coube às meninas a qualidade de boa aluna observada no espaço
escolar. Aos meninos é redobrado o esforço do professor, vez que este está envolvido
nas situações consideradas problemáticas tais como brigas, faltas, notas baixas,
dificuldade de aprendizagem, dentre outras.
No sentido de aferição de gênero e violência, Mattos (2009) explica, a partir dos
estudos de Connel, que;
“gênero tem haver com a forma como a sociedade humana lida com o corpo
humano [...] e que os arranjos de gênero são reproduzidos socialmente, e não
biologicamente, por estruturas de poder para coibir ações dos indivíduos
(Mattos, 2009, p.8).
Nesse estudo, nas observações dos conselhos de classe evidenciou-se a
preocupação dos professores e gestores com a violência nos relatos sobre a inscrição,
pelos meninos, das iniciais de facções criminosas, que dominam a região onde a escola,
em questão, está situada. Efetivamente os professores não demonstram interesse pelo
conteúdo do que os alunos escrevem sobre o tráfico de drogas e, sim com a utilização
do material escolar de forma inadequada e da utilização de uma boa caligrafia com
atividades fora do contexto escolar.
No evento de fala abaixo a professora colaboradora da pesquisa relata a não
dedicação às tarefas de sala de aula em detrimento do que é comumente chamado de
‘apologia às facções criminosas’.
Sheila: “o cara gasta a tinta da caneta dele todo, rasga as folhas do caderno
dele todo pra ficar escrevendo TCP, TCP com uma letra linda”.
Yolanda: “a gente tá com um grau... ficar escrevendo TCP (e dá um soco na
mesa)”.
Sheila: “aí ele bota terceiro e embaixo coloca TCP (...) gastou a caneta dele
toda”. (Conselho de classe).
A sigla escrita pelo aluno se refere ao Terceiro Comando Puro (Isto É Mai/04),
facção criminosa que domina o tráfico local de drogas, no qual reside a clientela
atendida por essa escola. Durante a realização da pesquisa, foi possível observar que
este tipo de manifestação era freqüente na sala de aula. A menção ao tráfico local não é
coibida pela professora e/ou por outro funcionário da escola.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6818
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
Para aprofundar tal questão, argumentamos a coordenadora pedagógica se tal
prática era é comum à turma, ou seja, escrever siglas, como TCP e/ou cantar músicas
relacionadas à violência urbana. Para nos responder, ela cita o exemplo de um aluno,
considerado violento e que representa na sala de aula a maioria dessas manifestações.
Coordenadora: É como se ele (Vitor) criasse um microcosmo da
comunidade na sala de aula.
A explicação da coordenadora nos fez refletir sobre a problemática da criação de
um microcosmo na sala de aula. Tal terminologia é orientada pela noção de campo
utilizada por Bourdieu (2004) para o qual o autor explica que; “a noção de campo está aí
para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis
próprias” (Bourdieu, 2004, p. 20). Ele, ainda explica que o microcosmo se liberta das
imposições externas – pressões externas, créditos, ordens, instruções, contratos – e
passa a ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas.
Cada vez mais o campo vai se tornando autônomo, derivando daí a explicação
para o “microcosmo” que supostamente é criado pelo aluno. Segundo a coordenadora,
esse aluno circula pela sala de aula e pela escola de forma diferenciada dos demais. A
coordenadora acredita que a presença dele na escola dá um caráter comunitário à
instituição, uma vez que, ao cantar e desenhar siglas que aludem ao tráfico de drogas ele
se torna um representante da comunidade local na escola e na sala de aula.
Coordenadora: Eu sempre aconselho ‘oh! Cuidado, vocês não sabem
com quem estão mexendo aqui dentro da escola.
Se considerarmos que a gestão democrática prevê a participação da comunidade
na escola, a coordenadora está utilizando o termo “microcosmo” no sentido de
invisibilizar a violência e, que não representa a idéia de democratização. Neste caso,
Araújo (2001) explica que tal ocorrência representa um ato caracterizado como
incivilidade, onde o caos impera.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6819
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
Araújo (2001) cita Debarbieux para explicar a associação da violência à
incivilidade11, destacando a desorganização da ordem, a introdução do caos, a perda de
sentido e de compreensão. Para ele; “é bem possível que a incivilidade de certos jovens
seja uma incivilidade reativa à expressão de um amor decepcionado com uma escola
incapaz de cumprir suas promessas de inserção” (Debarbieux 1998 In Araújo, 2001,
p.27). Nesta perspectiva, fica evidente o fracasso da escola em cumprir seu papel na
sociedade, quando deixa de apresentar condições favoráveis para a aprendizagem dos
alunos intermediada pelo desempenho do professor. O fracasso da escola estaria ainda
na falha em contribuir com a formação cultural, social e acadêmica de seus alunos.
Neste ponto, podemos retomar a fala da coordenadora ao afirmar a positividade
existente na criação de um “microcosmo da comunidade” na sala de aula pelo aluno.
Percebe-se, ao contrário disso, a ocorrência tão somente da reprodução de uma realidade
excludente em sala de aula, apontando a impossibilidade da escola em desempenhar seu
caráter transformador da realidade social violenta, na qual este aluno está inserido.
Neste sentido ela deixa de ser o diferencial numa comunidade dominada pelo crime
organizado e pelo tráfico de drogas e se transforma num espaço de reprodução
(Bourdieu, 1982) da realidade social excludente. Ainda assim, afirma-se, pela
democratização de acesso ao ensino que estes alunos estariam ‘na escola’, ainda que isto
implique na invisibilidade deles frentes aos processos educacionais que se desenrolam
nos cotidianos escolares.
O que explicaria pela a análise de Bourdieu e Champagne (1998) em “Os
excluídos do interior” os oferecer indícios de que, possivelmente, as leituras sobre este
sujeito – aluno – que o distanciavam do sistema escolar começam a diminuir quando a
escola passa a ser freqüentada por aqueles “desafortunados e mais desprovidos do ponto
de vista cultural e quando a escola deixa de rejeitá-los [...] os convencendo de que eram
eles que não queriam a escola” (op.cit).
Se por um lado, em dado momento histórico, é dito que a escola passa a receber
tal ampla e diversificada clientela, por outro é também o modo como insurge, neste
ambiente, sobre o aluno a responsabilidade por sua inadequação a cultura escolar e
conseqüentemente ele passa a ser excluído tanto dentro da escola, uma vez que ele
11
Indelicadeza, falta de urbanidade e ausência do conjunto de formalidades que os cidadãos observam
entre si quando são educados.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6820
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
permanece freqüentando a sala de aula, quanto para fora dela, evadindo o espaço
escolar.
Acredita-se, que deste grupo que não se adéqua à escola, os meninos somam um
quantitativo maior do que o das meninas. Estas passam pela normatização da escola
com menos alarde apresentando um comportamento de adequadação/docilização.
Considerações finais
A dinâmica de sala de aula, assim como as práticas pedagógicas, carecem de
estudos que possibilitem uma visão ampla e específica sobre o impacto da violência na
escolarização de alunos e alunas em risco sócio-educacional.
Perceber a escola no cerne das discussões sobre a violência nos faz questionar
sobre a possível perda de seu papel transformador numa sociedade marcada pelas
desigualdades socioeconômicas, culturais e educacionais. Isto se agrava quando as
escolas, em destaque a escola onde este estudo se desenvolveu, estão situadas em áreas
próximas ou mesmo dentro de comunidades onde o crime organizado tornou-se o
referencial de muitos alunos e alunas. Estes deixaram de vislumbrar na escola um
espaço de superação das desigualdades que lhes são inerentes, uma vez que em seu
interior se reproduzem as mesmas formas vivenciadas por eles fora da escola.
Marriel (2006) aponta para “a necessidade de reconhecer a escola como lugar
privilegiado de transformação para uma sociedade menos violenta, pelo seu potencial
que vai além da transmissão de conhecimentos” (p. 46).
O ambiente excludente de sala de aula é reforçado por professores que não vêem
o seu papel como possibilidade de transformação de uma realidade social e escolar e
acabam por não oferecer aos sujeitos uma alternativa para o que eles acreditam ser o
destino. Ainda que, as condições educacionais se apresentem de forma diversa daquela
esperada, sonhada, idealizada, nas representações construídas politicamente para uma
escola de excelência.
Por conseguinte, urge compreender a importância da escola aliada à concepção
de educação inclusiva como possibilidade de transformação de uma realidade social e
escolar onde os sujeitos possam vislumbrar a superação das dificuldades educacionais,
sociais e econômicas em uma escola democrática.
Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6821
Violência Escolar: um entre-lugar nas questões de gênero e exclusão – um estudo etnográfico
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Paula Almeida de Castro & Sandra Maciel de Almeida
6823
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
FERNANDO AZEVEDO E A CONTRIBUIÇÃO
PARA DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO NO
BRASIL
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
Philipe Henrique Teixeira do Egito
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
FERNANDO AZEVEDO E A CONTRIBUIÇÃO PARA DEMOCRATIZAÇÃO
DO ENSINO NO BRASIL
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho1
Philipe Henrique Teixeira do Egito2
RESUMO: O presente estudo propõe a contribuição do pensamento do educador,
sociólogo e ensaísta Fernando Azevedo e a relevância de sua atuação no campo
educacional, situado em um momento político especial de nossa história: o Estado
Novo. Na obra a cultura Brasileira constitui-se veículo divulgador de concepções acerca
do povo e do papel do Estado, exercendo importante papel na História da Educação.
Através do estudo da Cultura Brasileira, Azevedo possibilita instrumentos
potencialmente reveladores da relação entre campo educacional e campo político
institucional. Diante da dimensão de sua obra, considerada um retrato minucioso do
Brasil é que se justificam estudos sobre o mesmo.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Azevedo; Contribuição; Cultura.
Introdução
O presente artigo trata do pensamento do intelectual brasileiro Fernando
Azevedo, buscando refletir em seu pensamento através da cultura fruto do seu estudo
metódico da estrutura e comportamento dos grupos humanos, no tempo e no espaço,
que a compõem. Para Azevedo, a possibilidade de produzir uma síntese da cultura
brasileira está na própria definição do próprio objeto da Sociologia: a sociedade. Na
disciplina Educação Brasileira, ministrada pelo professor Dr. Jean Carlos possibilitounos estudarmos o Itinerário Intelectual Brasileiro, sendo o nosso estudo centrado em
1
Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia pela UFPB, Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFPB, Contato: [email protected]
2
Graduado em Licenciatura Plena em História pela UFPB, Mestrando em Educação do Programa de PósGraduação em Educação da UFPB, Contato: [email protected]
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6827
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
Fernando Azevedo e o seu legado na construção da Democratização do Ensino no
Brasil.
Fernando de Azevedo nasceu em 02 de abril de 1894, em São Gonçalo do
Sapucaí (MG). Desenvolveu a primeira e vasta pesquisa sobre a situação da educação
em São Paulo.Integrou o movimento reformador da educação pública, da década de 20,
que ganhou o país e foi impulsionado pela Brasileira de Educação, fundada em 1924.
Entre 1927 e 1930, promoveu ampla reforma educacional no Rio de Janeiro,
capital da República, animada pela proposta de extensão do ensino a todas as crianças
em idade escolar; articulação de todos os níveis e modalidades de ensino primário,
técnico profissional e normal, adaptação da escola ao meio-urbano, rural e marítimo.
Fundou a Biblioteca Pedagógica Brasileira e em 1932, redigiu e lançou, junto
com outros 25 educadores e intelectuais, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
Como diretor-geral, promulgou o Código de Educação do Estado de São Paulo (1934) e
participou da fundação da Universidade de São Paulo. Visto como um intelectual de
"centro", foi durante sua vida se transformando em um intelectual extremamente crítico
quanto ao papel da escola, entendendo-a em 1954 como instrumento de manutenção do
status-quo.
Fernando Azevedo e a contribuição na educação como prioridade nacional.
Fernando de Azevedo foi o principal introdutor das concepções do sociólogo
francês Émile Durkheim (1858-1917) no Brasil. Durkheim pretendeu dar um sentido
positivo à sociologia e procurou demonstrar a possibilidade de uma ciência objetiva da
sociedade, semelhante às ciências naturais. Em decorrência de suas idéias a respeito do
homem e da sociedade, o sociólogo francês acreditava que a educação deveria ter como
objetivo integrar os indivíduos, situação em que teriam consciência das normas de
conduta social.
Durkheim achava que o sistema educacional moderno ainda tem necessidade da
disciplina própria da vida em sociedade, mas que essa sistematização deve deixar
espaço para a autonomia, a reflexão crítica e a capacidade de escolha. Fernando de
Azevedo, em Princípios de sociologia, publicado em 1935, faz a primeira explanação
sistematizada e crítica das idéias sociológicas para professores e estudantes no país.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6828
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
Nesse trabalho, discute, entre outros, temas como a natureza objetiva dos fatos
sociais, a constituição de uma ciência particular do social, a luta pela autonomia da
sociologia como ciência e as grandes correntes do pensamento sociológico. Durkheim é
o único a merecer capítulo próprio, além de citações em outros.
Politicamente conturbado com a eclosão da Revolução Constitucionalista em
São Paulo, o ano de 1932 é decisivo na carreira de Fernando de Azevedo. Neste ano, ele
é convidado a redigir e ser o primeiro signatário do Manifesto dos pioneiros da
Educação Nova, dirigido à Nação e ao governo Vargas, documento que colocou a
educação como o problema nacional de maior importância, acima dos planos
econômicos, ou seja, a educação como prioridade nacional na reconstrução do país.
Pela primeira vez, afirmava-se alto e a bom som que é impossível desenvolver as
forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o
desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa, que são os fatores primordiais e
de fundamental importância para o desenvolvimento de uma Nação, pois acreditava que
a educação era o pressuposto de um elemento poderoso de mobilidade social e
transformação do país e que o seu projeto, socializante e progressista para a época,
“representava as legitimas e verdadeiras necessidades do povo e do país como todo”
(AZEVEDO, 1996).
Em relação ao Estado, o Manifesto estabelecia a função essencialmente pública
da educação; a garantia de acesso à educação dos cidadãos em condições de
inferioridade econômica, a laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação, a
proibição de separação de sexo entre os alunos; a autonomia da função educacional, a
proibição de influências religiosas, políticas e partidárias sobre o processo educacional.
O Manifesto termina com o parágrafo: "Mas, de todos os deveres que incumbem
ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justiça e maior soma de
sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas
gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas
suas conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto,
mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência
de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e
perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a
consciência.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6829
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
A partir do Manifesto, o grupo de educadores formado por Fernando de
Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, já identificados com os princípios da
Educação Nova , é violentamente atacado por conservadores e católicos. O crítico Alceu
de Amoroso Lima, na época representante do conservadorismo católico, denunciou "o
baluarte vermelho em que vão transformando os nossos meios pedagógicos superiores"
e classificou de "bolchevismo intelectual" e de "pré-soviética" a pedagogia preconizada
pelos idealizadores do Movimento de Renovação Educação Nova.
Quando redigiu o Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, Fernando de
Azevedo, formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (hoje
integrante da USP), já havia sido professor de latim e psicologia no Ginásio do Estado
em Belo Horizonte e na Escola Normal de São Paulo (futura Escola Normal Caetano de
Campos.
Antes de ir de São Paulo para o Rio, Fernando de Azevedo engordava o salário
de professor como redator e crítico literário do jornal O Estado de São Paulo, no qual
colaborou durante toda a vida. Em 1926, organizou e dirigiu dois inquéritos para O
Estado, um sobre arquitetura colonial, outro abordando a educação pública no Estado.
Já neste inquérito, iniciou campanha por uma nova política de educação, que iria
desaguar no Manifesto, e pela criação de universidades no Brasil.
As reformas no ensino paulista iriam ser concretizadas em 1933, com a
elaboração e implantação do Código de educação, levadas a efeito quando assumiu a
Direção Geral da Instrução Pública no Estado.
O convite a Fernando de Azevedo para redigir o Manifesto deveu-se à
notoriedade que adquirira não só pela intensa atividade desenvolvida nos meios
educacionais, mas também pelo papel relevante que vinha exercendo como um dos
dirigentes da Companhia Editora Nacional, à época uma das principais casas editoriais
do país. Na Nacional, como era conhecida, Fernando de Azevedo criou e dirigiu a
Biblioteca Pedagógica Brasileira (BPB), selo editorial do qual faziam parte a série
Iniciação científica, que publicava textos inéditos na área científica.
Outra grande aventura intelectual de Fernando de Azevedo foi a participação na
criação da USP, em 1934, ao lado de Júlio de Mesquita Filho, Armando Sales de
Oliveira, Almeida Júnior, Vicente Rao, Rocha Lima e outros. Mais tarde, entre 1941 e
1942, ele seria diretor da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6830
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
No campo da historiografia, Fernando de Azevedo publica, em 1943, A cultura
brasileira, obra na qual assume uma visão marcadamente nacionalista dos problemas do
Brasil. Nesse trabalho, elogia o "espírito nacionalista" da Constituição de 1937, que
institucionalizou a Estado Novo no país e deu poderes ditatoriais ao presidente Getúlio
Vargas.
A Revolução de 1930, chefiada por Getúlio Vargas, havia, de fato, dado impulso
à reforma do ensino no Brasil, a começar pela criação do Ministério da Educação e
Saúde. Mas, a despeito dos elogios feitos em seu livro, Fernando de Azevedo criticou
severamente o então ministro da educação, Gustavo Capanema, por ter dado ao curso
secundário um caráter elitista. Inspirado na reforma educacional realizada na Itália
fascista por Benito Mussolini, Capanema deu nova direção ao curso secundário, agora
voltado para a "formação de personalidades condutoras", ou seja, de elite, e organizou
um currículo baseado em humanidades, repleto de línguas como latim, grego e francês.
No Estado de São Paulo, Fernando de Azevedo ocupou a Secretaria da Educação
e Saúde em 1947 e a Secretaria de Educação e Cultura no governo de Prestes.
A Cultura Brasileira: constituição do desenho da Nação
Na obra a Cultura Brasileira publicado em 1943 sob encomenda do governo de
Getúlio Vargas, como introdução ao Censo de 1940. O livro projetado é de suma
importância por ser a introdução do maior censo que se produzira até então, retratando
minuciosamente o Brasil, possibilitando-o ser ”mais conhecido aos brasileiros e
descobri-lo aos homens dos outros países”.
A síntese proposta em A cultura Brasileira pretende alcançar dois objetivos: a
constituição de um corpo de fenômenos que constituem a idéia de Nação e de interpretar
os fenômenos para tornar o Brasil mais conhecido aos Brasileiros. Na posição de
político e reformador da Educação, Azevedo significa operação permanente de escolhas
dos fenômenos, dos dados e dos acontecimentos que dêem identidade e expliquem a
essência da Nação baseados em estudos científicos da Sociologia, reconhecendo os fatos
sociais e explicando-os, produzindo a síntese racional que é a síntese da Sociedade.
“Acompanhar, sob todos os seus aspectos, a evolução do povo e a formação da
comunidade e da vida nacional em mais de 400 anos de história, assinar-lhe as
características tendências e impulsos que já aparecem, desde a sua origem e na sua
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6831
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
originalidade, enquanto a civilização se forma e se modela nas lutas contra as invasões e
hostilidade do meio; apreender-lhe, em seus traços e por suas reações aos fenômenos
naturais e aos acontecimentos humanos, a “alma” ou a mentalidade coletiva, e as
transformações que sofreu; exprimir o que há de comum entre regiões extremamente
diferenciadas” (Azevedo, 1958,p.14)
Diante das “heranças”, ou o que há em comum entre o movimento peculiar das
culturas, a síntese possível da evolução de uma dada sociedade está na determinação do
que é específico ou peculiar dentro das leis gerais que estruturam a sociedade. A
educação, segundo Fernando de Azevedo, permitiria o acesso ao estudo da cultura,
fornecendo ao pesquisador um guia para sua sintetização e, consequentemente da
civilização.
Fernando de Azevedo entendia o objeto da Sociologia como o reconhecimento e
a explicação dos fatos sociais, produzindo através do método, a síntese nacional que é a
essência da sociedade. Declarava ainda, que era necessário situar a cultura nacional no
seu quadro geográfico, social, político e histórico, acompanhando as diferentes etapas
de sua evolução, nas suas orientações e tendências, de modo a definir as instituições que
se encarregariam da transmissão de sua unidade, de sua unidade, de sua difusão através
de gerações pelos processos e técnicas de educação e de seus progressos. (AZEVEDO,
1996).
De acordo com Azevedo (1958), a cultura atinge certo grau de desenvolvimento,
quando está sempre ligada às tradições nacionais e tende a tomar aspectos e formas
diversas ao passar por meios diferentes. Ela será mesmo tanto mais autêntica e original
quanto mais rica e substanciosa for a seiva que subir de suas raízes mergulhadas em
húmus nacional, mas não poderá desabrochar, como uma verdadeira flor de civilização,
se não se abrir, na plenitude de sua força, para todos os tempos e todos os povos.
Para antropólogos culturais como Morgan, Tylor ou Frazer, o grande interesse
concentrava-se no desenvolvimento cultural tomado em uma perspectiva comparativa
almejando captar o ritmo de crescimento sociocultural do homem e, mediante as
similaridades apresentadas, formular esquemas que explicassem o desenrolar da história
humana.
Civilização e progresso, termos privilegiados da época, eram entendidos não
enquanto conceitos específicos de uma determinada sociedade, mas como modelos
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6832
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
universais. Segundo os evolucionistas sociais, em toda parte do mundo a cultura teria se
desenvolvido em estados sucessivos, caracterizados por organizações econômicas e
sociais específicas, porém os estágios entendidos como únicos e obrigatórios por
acreditarem que toda a humanidade deveria passar por eles.
A constituição do sentido de Nação como grandes influências que puderam agir
sobre a produção dos fatos de cultura, sejam o meio físico e étnico (o país e a raça), o
meio econômico, social e político, o meio urbano e a mentalidade particular do povo,
por todos esses elementos que condicionaram a sua formação.
Para os teóricos do branqueamento, o Brasil era composto por uma mistura de
raças, porém em transição, que ao passar por um processo de seleção natural. Com
acelerado cruzamento, levaria o país a ser branco. (SCHWARZ,2008)
Azevedo enfrenta o problema, para ele central, da diversidade do meio físico
brasileiro e da constituição populacional baseada na miscigenação de culturas. A
questão da constituição da nacionalidade, em um país marcado pelos contrastes físicos e
pela heterogeneidade cultural, vai sendo solucionada por meio do reconhecimento de
uma riqueza cultural latente, depurada pelo colonizador branco e pela imigração
européia.
“Mas não é menos certo que a cultura apresenta graves lacunas, e,
tanto pela qualidade como pelo volume, sobretudo do ponto de vista
filosófico e cientifico, não se desenvolveu no mesmo ritmo da
civilização, apresentando-se ora sensivelmente retardada em relação a
outros países de civilização comum, ora marcada pela superficialidade
e pelo diletantismo artificial, e desinteressada pela civilização em que
floresceu” (Azevedo,1996.p.39).
Nessa linha, o autor monta uma história econômica que vai da posse do meio
geográfico pelo colonizador europeu até o desenvolvimento industrial promovido pelo
Estado Novo. História que dá destaque especial para o papel das cidades entendidas
como focos de progresso e de civilização na formação da cultura nacional.
Segundo Maria Toledo(2000), a cultura é um dos acessos possíveis ao estudo
dos fenômenos sociais, pois incide diretamente no modo pelo qual a sociedade se pensa
ou representa, assim, pode-se tornar recorte temático fértil para o estudo dos fenômenos
sociais do Brasil.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6833
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
Através da cultura é possível reconhecer, na diversidade característica do país, as
conexões que comporta e que formam a mentalidade do povo. Entre os fatores que mais
contribuem para a produção dos fenômenos de cultura, foi o surgimento das cidades na
sua função de intensificar as energias coletivas e de levar ao mais alto grau de
desenvolvimento possível as capacidades latentes e dispersas na população.
A concepção de cultura em Azevedo, mantém a unidade da sociedade, na
medida em que é transmitida pelas gerações mais velhas às mais novas, que através da
educação não somente por constituir um dos aspectos mais característicos, mas por ser o
próprio veículo da cultura e da civilização, elegendo a educação como objeto específico
de revelador da essência da civilização.
Os problemas propostos em a Cultura Brasileira, para a produção da síntese,
gestados no ambiente de agitação e efervescência intelectual, refletem a busca, no
passado, das explicações e interpretações sobre o Brasil através da interpretação dos
fenômenos formadores do país.
Para o autor, cada povo tem o seu temperamento e o seu gênio próprio que,
elaborado através de séculos, são o produto do meio físico, dos elementos raciais e do
progresso de sua evolução social que se manifestam tanto na sua história e nas suas
instituições, quanto na sua língua e na sua literatura, nas suas obras de arte e
pensamento. Sendo a cultura a expressão intelectual de um povo, não só reflete as idéias
dominantes mas a civilização cuja vida participa, mergulhando no domínio fecundo que
se elabora a consciência nacional.
Considerações Finais
Fernando de Azevedo declarava, que a educação continha numerosas
possibilidades, entre as quais se destacavam a condução do indivíduo, através do
exercício da razão, pelo caminho de uma ética individual e comunitária resultando em
solidariedade, bem como o desenvolvimento do espírito crítico como via real da razão
buscando soluções para as questões apresentadas pelo mundo, sendo a educação um
processo emancipador e de fundamental importância na redemocratização do país.
Para Azevedo, a educação tinha um valor conscientizador, na medida em que
oferecia um instrumento de libertação das pessoas, ensinando-as a pensar, a resolver
problemas. Na sua concepção, “o processo educacional, mesmo controlado
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6834
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
ideologicamente, seria incontrolável na medida em que propiciava (...) que o não dito
seja dito, o torcido distorcido, o obscuro clarificado” (Azevedo, 1971).
A educação, segundo Fernando de Azevedo, permitiria o acesso ao estudo da
cultura, fornecendo ao pesquisador um guia para sua sintetização e, consequentemente
da civilização. Os conceitos de cultura e civilização na obra A cultura Brasileira, são
indissociáveis, na medida em que são entendidos como elementos reguladores das
relações dos indivíduos e grupos entre si, do Estado ou nação.
Evidenciamos a contribuição do autor, no campo das ciências sociais e da
pedagogia, ao produzir trabalhos que asseguravam posto relevante entre grandes
educadores do país. Fernando de Azevedo, foi profundamente influenciado por
Durkheim e Dewey ao refletir sobre a questão social e educacional de forma vinculada
com as questões políticas.
Na concepção do autor, a Educação é encarada como instrumento e a Ciência
como ele unificador na construção da identidade nacional. A preocupação com a
unidade nacional vista como elemento fundamental para a formação da identidade
cultural do povo brasileiro.
Ao traçar uma marcha para a unidade nacional, o autor sinaliza o advento da
Cidade e o processo de urbanização em curso, como o momento em que se dá uma
maior aproximação do povo brasileiro consigo mesmo. Neste quadro, a cidade é
entendida como elemento vital para a constituição da maioridade cultural do povo
brasileiro.
O legado de Fernando de Azevedo foi um criador da representação do campo
educacional, como um campo de saberes específicos fundado no conhecimento
cientifico e integrado nas ciências humanas. Azevedo procurou ampliar as fronteiras
deste campo, estabelecendo relações entre o campo teórico-científico e o campo
político-institucional, este último potencial provedor da aplicação prática dos saberes
produzidos pela elite intelectual em um projeto-pedagógico que acreditava ser possível
trazer a modernidade à nação através da organização dos sistemas de ensino dos grandes
centros urbanos do país.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6835
Fernando Azevedo e a Contribuição para Democratização do Ensino no Brasil
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TOLEDO, Maria Rita (1995). Fernando de Azevedo e a Cultura Brasileira ou As
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AZEVEDO, Fernando de. A Educação e seus problemas. São Paulo: Edições
Melhoramentos,volume VIII, 4ª edição, 1958.
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho & Philipe Henrique Teixeira do Egito
6836
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
RUI BARBOSA: PROPOSTAS CURRICULARES E
MAÇONARIA
Philipe Henrique Teixeira do Egito
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
RUI1 BARBOSA: PROPOSTAS CURRICULARES E MAÇONARIA
Philipe Henrique Teixeira do Egito2
Paula Frassinetti Chaves de Carvalho3
RESUMO: Rui Barbosa foi um jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor,
orador e maçom. Este trabalho teve como objetivo analisar os seus pareceres sobre o
sistema de educação brasileira durante o período em que ele era deputado,
representando a Bahia. Foi visto que Rui Barbosa visava uma total reformulação do
sistema educacional brasileiro e para que este fosse aceito, ele teve o cuidado de
esmiuçar todas as suas propostas, de modo que houvesse o mínimo de falhas no seu
projeto. Ainda, foi analisada a sua ligação entre a maçonaria e a educação, pois ele via
na maçonaria um caminho pelo qual pudesse ocasionar um avanço no ensino
educacional nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Rui Barbosa, propostas curriculares, maçonaria.
Quando nós nos debruçamos sobre a história da educação no Brasil, logo
percebemos que um dos personagens mais marcantes do final do século XIX é Rui
Barbosa, que se destacou como representante da educação no campo político. Contudo,
Rui Barbosa se tornou ainda mais célebre pelo seu intelecto e pela sua especialidade em
direito do que pela sua luta em favor de uma reforma educacional no Brasil. Rui
Barbosa era, ainda, maçom e foi nos Templos Maçônicos que ele ideou projetos que
foram postos em prática a partir de discussões com a assembléia da Loja. Diante disso,
1
Na bibliografia analisada, em alguns momentos o nome do autor estudado aparece de forma diferente
em cada autor, algumas vezes como Ruy e outras como Rui. Este autor preferiu a última grafia.
2
Graduado em Licenciatura Plena em História pela UFPB, Mestrando em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação de Educação da UFPB, contato: [email protected]
3
Graduada em Pedagogia pela UFPB, Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação de
Educação da UFPB, contato: [email protected]
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
fazer uma ligação entre o maçom e o político em Rui Barbosa garante-nos entender,
ainda mais aprofundadamente, a sua excelência.
Rui Barbosa, como jurista, sempre lutou ao lado dos liberais com propostas,
ditas por ele, emancipacionistas. Ele foi o representante do Brasil na Segunda
Conferência de Paz de Haia, na Holanda, substituindo Joaquim Nabuco – que era, no
momento, embaixador do Brasil em Washington. Foi nessa mesma conferência que Rui
Barbosa foi reconhecido em escala internacional por seus conhecimentos jurídicos e sua
brilhante oratória. A partir daí, ele ficou conhecido internacionalmente como “Águia de
Haia”.
Iniciado na Loja América em 1º de Julho de 1869, ele atuou de forma incisiva e
tornou-se um grande maçom, apesar de ter passado pouco tempo na ordem. Essa loja
era jurisdicionada ao Grande Oriente do Brasil da Rua dos Beneditinos, na época
liderado por Joaquim Saldanha Marinho. Esse corpo maçônico havia sido criado após
uma dissidência com o Grande Oriente do Brasil, que se situava na Rua do Lavradio, Nº
97, no Rio de Janeiro, cujo nome foi adotado para que houvesse essa diferenciação.
Essa potência ficou independente até 1883, quando foi reincorporada pelo Grande
Oriente do Brasil, e consequentemente, a Loja América também passou à sua
obediência.
O convite de ingresso à maçonaria havia sido feita a Rui Barbosa pelo seu então
professor da Faculdade de Direito e sobrinho de José Bonifácio de Andrada e Silva, o
Venerável Mestre da Loja (Presidente), Antônio Carlos de Ribeiro Andrada. Este
percebia em Rui, um homem muito inteligente e que poderia engrandecer muito os
quadros da jovem Loja, já que ela tinha sido fundada apenas um ano antes da sua
iniciação em 1868.
Os quadros da referida Loja continha o nome de outro grande defensor da
educação no nosso país, Joaquim Nabuco, além de pessoas de renome no governo. Com
isso, é possível perceber a força e a articulação que a maçonaria possuía no século XIX,
o que até certo ponto facilitava a implementação de políticas e de projetos nascidos
dentro dos Templos Maçônicos.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
I. Aspectos Sociais do Século XIX
Para entender o contexto em que vivia Rui Barbosa, se faz necessário entender
como se davam as relações sociais do momento. Estamos analisando o período que vai
do final da década de 60 até o final da década de 80 do século XIX, um período em que
houve mudanças radicais na sociedade brasileira. Ele viveu e abraçou muita dessas
transformações sociais.
Durante boa parte do século XIX, o Brasil era uma sociedade dual constituída
basicamente de senhores e de escravos. As atividades econômicas durante esse período
apenas mudaram o eixo produtor e a atividade agrícola, que no início do século se
concentrava no nordeste com a cana-de-açúcar e no final do século com o aumento do
preço do café no mercado internacional. Essa base econômica transfere-se para o
sudeste, em especial para o interior de São Paulo, centralizando não só o poder
econômico, mas também o político.
Esse modelo de sociedade deixava a camada média da população à sua margem,
já que essas pessoas em geral eram desprovidas de terras ou as tinham em uma
quantidade muito ínfima. Com o adiantar do século, esse grupo social adquiriu muita
força com as mudanças que aos poucos ocorriam.
Diante da situação em que se encontravam as pessoas da camada média, elas
procuravam se apropriar de atividades “mais dignas”, ou seja, não faziam nenhum
trabalho braçal e começavam a buscar, na instrução, uma porta para a ascensão social.
Com isso, acabavam aliando-se às oligarquias rurais, visando o reconhecimento e o
fortalecimento da classe média basicamente urbana.
Para entendermos essa necessidade da classe média, precisamos perceber que no
século XIX a instrução pública gratuita e “universal” no Brasil era limitada apenas ao
ensino das primeiras letras e mesmo assim, esse acesso era restrito apenas aos cidadãos;
excluíam-se assim os negros. A partir daí, cabia à família, se essa tivesse opção,
procurar um meio de fazer os jovens ingressarem nos cursos preparatórios para os
cursos superiores, que em geral eram administrados pelos liceus estaduais. Essa era a
única forma de acesso à instrução superior, por isso facilitava as oligarquias a se
manterem e a se legitimarem no poder.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
Com todas essas medidas, o acesso ao ensino superior ou se limitava às pessoas
oriundas dessas famílias oligárquicas ou aos advindos dessa burguesia nacional, que no
momento ainda era bem embrionário, mas que já dava sinais de que surgiria com toda
força. O ensino superior se desenvolveu no Brasil no final do século XIX juntamente
com os movimentos de abolição da escravidão e de proclamação da república.
Rui Barbosa foi filho dessas medidas. Nascido em 1849 na Bahia, ele ingressou
na Faculdade de Direito de Olinda em 1864, e concluiu seus estudos na Faculdade de
Direito de São Paulo em 1870. Foi através da sua graduação como bacharel em Direito
que ficou reconhecido como grande jurista, mas foi no âmbito político que se deu a sua
maior contribuição para a educação brasileira. Era nos seus pareceres sobre a Reforma
do Ensino Leôncio de Carvalho que surgia uma nova visão para a educação no Brasil –
uma visão educacional proposta por Rui Barbosa.
II. Mudanças Educacionais Propostas por Rui Barbosa
Rui Barbosa tinha planos de mudança para a educação, começando pela divisão
da instrução em jardins de criança, escolas primárias, cursos profissionais, escolas
normais, liceus e o ensino superior. Essas suas propostas foram debatidas no campo da
política e foi assim que ele conseguiu levar as discussões para o legislativo, uma vez
que ele era deputado representando a província da Bahia.
A fim de entender as reformas propostas pelos seus pareceres, iniciamos com os
Jardins de Criança. Rui relatou, através de experiências com o modelo de Froebel, o
qual se baseava no desenvolvimento natural das crianças, que a tarefa da educação era
ajudar o homem a conhecer a si mesmo - em se tratando dos jardins de criança, a
conhecer os brinquedos.
Apesar de perceber e de explanar sobre as experiências positivas obtidas em
outros países, foram ferrenhas as críticas impostas a Rui. Entretanto como vemos em
Nascimento (1997, p. 8):
Mesmo assim insiste na criação dos Jardins de Crianças, acreditando
que os seus frutos, com o tempo, modificariam o modo de pensar
daquelas pessoas.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
A criação e o funcionamento de tais estabelecimentos de ensino
deveriam ser assegurados através de recursos públicos, sem excluir a
iniciativa particular, desde que adequadamente orientada.
Essa educação deveria ser efetuada em três anos, com as crianças entrando aos
quatro anos e saindo aos sete anos de idade. No último ano do jardim de crianças,
deveria ser criada a classe intermediária, que serviria de preparação para a escola de
primeiras letras. Fazendo essa modificação no ensino, as crianças chegariam mais
preparadas para o ensino primário.
Esse novo degrau na educação, proposto por Rui Barbosa, deveria contar com
professoras que tivessem uma preparação especial para lidar com essa faixa etária, e
isso deveria estar inserido nos cursos das escolas normais. Essa foi uma barreira que Rui
tentou quebrar com o método froebeliano - já que para o senso comum da época, a
criança deveria apenas brincar, logo esse método adapta as brincadeiras como uma
preparação para os primeiros ensinamentos.
O método de Froebel era muito bem visto, principalmente para o modelo
educacional norte-americano, uma vez que esse sistema era muito utilizado para a
educação da classe operária dos países onde ela foi posta em prática e para aprimorar os
trabalhos manuais tão necessários para a indústria da época.
Rui foi além da visão pedagógica, ele partiu para uma visão econômica,
percebendo a criação e a força de uma classe operária necessária para a ascensão da
burguesia nacional, pois sem mão- de- obra não há produção. Podemos observar essas
intenções em Boto (1999, p.5):
Acerca disso pode-se tomar Rui Barbosa como um exemplo da
ilustração liberal brasileira na rota do desenvolvimento do país. Em
seus pareceres sobre a reforma do ensino primário, o autor apresenta
nitidamente sua concepção sobre o terreno a ser cultivado. A
prosperidade da nação deveria se aliar ao trabalho; e este, a seu
corolário intrínseco: a instrução popular.
Para o entendimento de Rui, o Brasil deveria se espelhar nas experiências
positivas dos países desenvolvidos e, a partir daí, desenrolar o seu sistema de instrução
pública rumo a um projeto de democratização pedagógica e política.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
O segundo degrau nessa “escada educacional” era a escola primária. Essa
deveria ser modificada, já que esse ensino já existia no Brasil. O que ele propunha eram
apenas algumas adaptações, em função dos aspectos positivos obtidos com as
experiências em outros países.
Era nesse ponto em que ele previa encontrar uma maior dificuldade, sendo assim
ele “deveria lutar contra a mais arraigada de todas as rotinas: a rotina pedagógica. Para
se assegurar de que sua proposta não seria mais uma a ser engolida pela tal rotina,
descreve seus mínimos detalhes.” (NASCIMENTO, 1997). Os professores já tinham
uma prática pedagógica, por isso seria mais difícil do que começar um projeto do início.
Por conta dessas dificuldades existentes, ele elaborou toda a composição dessa
escola primária que havia proposto. A prática pedagógica é, até hoje, um forte
instrumento nas mãos dos professores, que muitas vezes deixam de lado os projetos
pedagógicos e atuam de forma “independente” para impor o seu método e o seu
conteúdo. Essa era uma época em que a fiscalização dessas questões não era algo
primordial, já que a legislação em torno da educação era escassa, quando não
inexistente e, portanto, necessitava de toda cautela na elaboração desse projeto.
As escolas primárias foram então subdivididas em três graus, cada um com as
suas devidas especificações de tempo, de duração e de currículo como ilustrado na
tabela 1.
Tabela 1. Subdivisões dos Graus de Escolaridade Propostos por Rui
Barbosa
Primeiro Grau (1º)
Segundo Grau (2º)
Terceiro Grau (3º)
- Escola elementar
- Escola primária média
- Escola primária superior
- Continuação do jardim
- Teria dois anos de
- Teria duração de três
(previamente
duração
anos
mencionado)
- Teria dois anos de
duração
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
A fim de promover um forte alicerce para as suas subdivisões dos graus de
escolaridade e de diminuir a probabilidade de sua proposta ser rechaçada, Rui Barbosa
teve como base metodológica os diferentes estudos que Bacon, Comenius, Pestalozzi,
Froebel, Fenelon e Rabelais conduziram, independentemente, acerca dessa ideia.
Havia também nesses modelos curriculares propostos, um acréscimo de assuntos
comparados aos que existiam no momento. Rui percebia que o seu modelo educacional
visava mais do que o ensino propriamente dito, visava a sua combinação com o
esclarecimento intelectual e a instrução.
A inspiração para tais modelos curriculares veio do método implantado no 2º
grau – high school – nos Estados Unidos, assim como também dos modelos propostos
por Herbert Spencer. Entre essas propostas, a do ensino primário superior é vista como
inovadora para o modelo brasileiro. Ela havia sido pensada para aquelas pessoas que, ao
concluir o ensino primário médio, não quisessem ingressar nos cursos profissionais –
para se especializar em alguma profissão – ou não pretendessem ingressar nos liceus –
para os cursos preparatórios para as universidades. Desse modo, o ensino primário
superior tinha a função de outorgar um título, como vemos em Nascimento (1997, p. 12;
apud cf. BARBOSA, 1947, IV: p. 95):
Este título deveria ser introduzido no Brasil, como, aliás, já vinha
sendo adotado nos países mais avançados. As vantagens conferidas
por tal certificado seriam: 1º em igualdade de condições conferiria
preferência para os lugares de nomeação do governo, e 2º dispensaria
do exame de língua vernácula para admissão em estabelecimentos de
ensino superior e em concursos para empregos administrativos.
Dando continuidade às propostas de Rui, os alunos que terminassem a escola
primária média poderiam escolher três caminhos. O primeiro, já discutido
anteriormente, seria a de cursar o terceiro grau. O segundo, para aqueles que quisessem
uma profissão, mas sem seguir para a faculdade, era fazer cursos profissionais. O
terceiro seriam os liceus, destinados para aqueles que desejassem entrar na
universidade. Note que nem o terceiro grau nem os cursos profissionais preparavam
para ingresso na universidade, apenas o liceu tinha esse caráter preparatório.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
Para que houvesse uma legalização desses cursos, era necessário que houvesse
uma fiscalização que ficaria sob responsabilidade da Escola Normal de Arte Aplicada.
Essa fiscalização se daria nas escolas públicas e também nas mantidas pela iniciativa
privada.
Rui também pretendia implantar modificações na Escola Normal. A sua
preocupação com a formação de professores se deu por influência dos pensamentos do
século XIX, pois nesse período o ensino era visto com um ‘dom’. Tendo em vista uma
unidade na capacitação dos professores, ele percebia a necessidade de se preparar o
professor de acordo com as metodologias de ensino.
Nesse mesmo momento histórico, o magistério estava bastante dividido entre os
sexos, tanto que existiu a propositura de se criar uma Escola Normal para os homens e
outra para as mulheres na capital do Império. Contudo, foi detectado que havia poucas
unidades das escolas normais no país. Assim, Rui pretendia, subsidiado pelo Governo,
aumentar a quantidade de vagas para esses cursos de formação de professores.
Com essas propostas de mudança, Rui ansiava que a instrução fosse vista pelo
país a partir de um aspecto mais profissional; isso porque ele entendia que a
prosperidade de nossa nação só se daria através do investimento na educação. A fim de
defender suas ideias, ele levou essas medidas até os políticos para que pudesse haver um
debate acerca desse assunto e para convencê-los da importância da formação do povo e
da sua ligação com o nosso desenvolvimento.
Para concluir esse momento dos ensinos primário e secundário, trataremos agora
de explanar rapidamente sobre a função e as mudanças que deveriam ocorrer nos
Liceus. O Liceu funcionava como o ensino secundário preparatório para os cursos
superiores e para que houvesse mudanças em todos esses colégios que existiam em
todas as províncias, foi proposto que se mudasse o Colégio Pedro II - já que ele servia
de modelo para todas as outras instituições similares no Brasil.
Com a ocorrência dessas modificações, os cursos preparatórios que existiam
anexos às Faculdades de Direito de São Paulo e Recife foram extintos. O objetivo era
criar o curso secundário de Ciências e Letras em todos os Liceus, os quais seriam
mantidos pelo Governo. Poderiam existir cursos do gênero nas escolas particulares,
entretanto, elas não poderiam conceder o grau de bacharel em ciências e letras. Para que
essas escolas se submetessem, indiretamente, ao mesmo conteúdo proposto aos colégios
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
públicos, os oriundos daquelas instituições só poderiam ingressar nos cursos superiores
após passarem nos exames preparatórios, que ficavam a cargo do Governo e que
seguiam o modelo do Liceu Imperial Pedro II.
O país que era extremamente rural estava crescendo com as construções de
fábricas e a emersão dos centros urbanos, caracterizando uma evolução. Essa transição
ocasionou um aumento no número de pessoas que ingressavam nos cursos superiores,
proporcionando a criação de uma nova camada de trabalhadores especializados para
suprir as necessidades que estavam surgindo no país.
As mudanças propostas tiveram uma menor inserção no ensino superior, já que
era destinado basicamente para os filhos das classes mais abastadas segundo
Nascimento (1997,P.33):
Isto se deve a alguns fatores: 1º) não havia uma distribuição
homogênea de cursos superiores pelo território nacional, obrigando
grande parte do alunado a viver longe da família; 2º) os estudos
exigiam que o aluno estivesse liberado do trabalho até a idade
adulta4; 3º) os estudos, que eram tidos como gratuitos, na realidade
cobravam taxas de matrícula – 25$ por matéria – e exigiam o
pagamento de propinas aos professores por ocasião dos exames – 15$
por matéria. É certo que o total arrecadado por si só não seria
suficiente para manter as escolas superiores, mas para os alunos não
deixava de ser um desembolso além dos outros necessários ao material
escolar e vestuário.
Essas limitações eram impostas para impedir que as classes menos favorecidas
ingressassem nesses cursos. Era apenas mais uma clara forma de manipulação exercida
pelas classes dominantes. O próprio Rui percebia que nos cursos superiores se formava
uma classe intelectual nacional, capaz de resolver os problemas locais e, ao mesmo
tempo, manter o status quo.
Portanto, é possível vermos que Rui se dedicou muito para incentivar mudanças
em todos os graus de escolaridade das redes de ensino, uma vez que ele acreditava que a
liberdade e a criação de uma identidade própria para o Brasil estavam na educação, cujo
quais permitiriam a atribuição de um merecido respeito para nós brasileiros.
4
Grifo do autor.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
III. Rui Barbosa e a maçonaria.
Como foi explanado de forma sintética no inicio do texto, Rui Barbosa
ingressou na Ordem Maçônica através da Loja América no dia 1º de Julho de 1869. A
Loja ainda estava no início da sua caminhada Maçônica, já que tinha sido fundada em 9
de novembro de 1868 e regularizada em 7 de julho de 1869.
Para ser iniciado na Maçonaria ele teve que ter a sua idade alterada, pois no ano
da sua iniciação ele tinha apenas 20 anos e as leis Maçônicas limitam a idade mínima de
21 anos. Mas era uma prática um pouco comum quando queriam que alguém específico
pertencesse ao quadro da ordem. Na mesma Loja também foram iniciados homens de
renome tanto na educação quanto na política. Entre eles estão: Joaquim Nabuco, Luis
Gama, Américo Brasiliense e Pedro Toledo.
Ele foi convidado para ingressar na maçonaria por seu professor na Faculdade
de Direito de São Paulo, Antônio Carlos de Andrada. Naquele momento este era o
Venerável Mestre (Presidente) da Loja América, e vendo em Rui um grande homem,
resolve fazê-lo o convite.
Após ingressar-se na Maçonaria e ter recebido o grau de mestre, ele se torna o
Orador da Loja (o guarda das Leis) e entra em ferozes embates com o Venerável e
professor sobre a abolição da escravidão e questões relacionadas à educação. É
interessante notar que em todo o discurso de mudanças na educação brasileira, Rui faz
lembrar, nas entrelinhas, um dos mais importantes princípios da Maçonaria, que é o de
se combater a ignorância.
Em acordo com esses princípios, Rui escreve um projeto de Lei Maçônico e o
expõe na assembléia dos maçons da Loja para que seja debatida. Quando aprovada, ela
foi levada para o Grão-Mestrado do Grande Oriente do Brasil da Rua dos Beneditinos,
que na época era liderado por Joaquim Saldanha Machado. A lei dizia que:
“Todas as Lojas Maçônicas ficavam obrigadas a se empenharem na
propagação dos princípios da emancipação dos escravos e na educação
do povo. Em seus orçamentos, 1/5 seria destinado ao alforriamento de
crianças escravas
Ninguém poderia receber iniciação Maçônica sem antes declarar, por
escrito e perante testemunhas idôneas, que libertaria todas as crianças
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
do sexo feminino que, daí em diante, lhe pudessem provir de escrava
sua
Aqueles que já eram iniciados, seriam obrigados a lavrar igual
compromisso, a partir da promulgação da lei maçônica.”5
Essa proposta de Lei mostrava o quão preocupado ele estava com as questões
abolicionistas, seja de cunho da escravidão física ou intelectual. Ainda, a Maçonaria
abraça essas duas causas; tanto a da educação, propondo essa “educação do povo”,
como a da luta pela abolição da escravidão. Nessa época, a Ordem contava com homens
nas posições mais influentes do país, o que facilitava, em muitos casos, a outorga das
proposições enviadas, que muitas vezes surgiam nas discussões dentro dos Templos
Maçônicos.
Observamos que a Maçonaria ao longo de sua história em terras brasileiras vem
galgando uma grande luta em torno da educação e podemos observar isso e outras ações
em Oliveira (1995, 9.86), como por exemplo:
25 de junho de 1834 – O Grande Oriente do Brasil resolve
custear a educação de 15 meninos e 5 meninas
Se não nos limitarmos ao nosso país, teremos mais exemplos da Ordem
Maçônica colaborando para a instrução das pessoas - “18 de janeiro de 1842 – a Loja
União da Irlanda ocorre as despesas com a educação de 4 meninos órfãos”(OLIVEIRA,
1995, p. 87).
IV. Considerações Finais
Podemos concluir, portanto, que Rui Barbosa viu na prática do direito, nas
inserções políticas e na maçonaria os caminhos que ele precisaria percorrer para, entre
outras coisas, por em prática seus planos de mudanças para o sistema educacional
brasileiro. Apesar de ter passado pouco tempo na Ordem, ele se tornou um grande
maçom, que soube admirar, respeitar e praticar os princípios que são apresentados
5
Retirado do site: http://www.triumphododireito.triunfo.nom.br/tbruibarbosa.htm acessado no dia
28/07/2009.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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Rui Barbosa: propostas curriculares e maçonaria
durante a ritualística da iniciação. Ainda, ele lutou pela abolição e pela educação
vivamente, visando livrar o nosso país das masmorras dos vícios impostos por séculos
de dominação política. Pelos seus sonhos e o modo com que ele lutou para a
concretização deles, Rui Barbosa mereceu e merece reconhecimento internacional. .
Percebemos com esses pareceres apresentados por Rui, que propostas de
políticas curriculares e educacionais não são aspectos recentes, desde o século XIX
haviam pessoas que lutavam por uma legitimação das ações voltadas para a educação e
que serão postas em prática apenas em meados de 1930.
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República. Revista Brasileira de História. V. 19, nº. 38, São Paulo, 1999.
LYNCH, Christian Edward Ciril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os
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NASCIMENTO, Terezinha A. Quaiotti Ribeiro do. Pedagogia Liberal modernizadora.
São Paulo, Autores Associados, 1997.
OLIVEIRA, Aderaldo Pereira de. Folhas de Acácia. João Pessoa, 1995.
Philipe Henrique Teixeira do Egito & Paula Frassinetti Chaves de Carvalho
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO OCULTO:
UMA QUESTÃO DE ORIENTAÇÃO
Rafaela Samagaio Ferreira
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
MULTICULTURALISMO E CURRICULO OCULTO: UMA QUESTÃO DE
ORIENTAÇÃO
Rafaela Samagaio Ferreira
RESUMO: Refletindo acerca das relações sociais, é possível reconhecer que o conceito
de diversidade se faz presente em todos os espaços. Analisando especificamente a
questão da heterogeneidade no âmbito cultural, podemos observar que “nossas
sociedades contemporâneas são inegavelmente multiculturais” (MOREIRA, 2001).
Permeando estas relações no processo de formação do indivíduo, encontra-se o
ambiente educacional, que segundo Moreira, se constitui como um dos mais fortes
instrumentos de transmissão ideológica e manifestação do poder, ainda que de forma
implícita. O referido autor diz ainda, que o entendimento destas questões deve se basear
não só nas discussões sobre o currículo formal, mas também nas manifestações que ele
denomina "currículo oculto" (2001). Estas ações não explícitas recorrentes no processo
educativo tornam o trabalho de orientação ainda mais complexo e dão um lugar de
destaque à intervenção do orientador, que possui atualmente um caráter de mediador em
todas estas relações que se dão no ambiente escolar. No sentido de sua dimensão
pedagógica “o orientador pode ajudar a fazer a crítica de seu processo, desocultando o
oculto e tornando mais aparente o visível” (GRINSPUN, 2006, p. 59).
PALAVRAS-CHAVE: Multiculturalismo, Currículo Oculto e Orientação.
INTRODUÇÃO
A pluralidade cultural e étnica existente nos grupos sociais, bem como as
desigualdades sócio-econômicas que permeiam as relações humanas, tornam evidente
que o conceito de heterogeneidade se faz presente em todos os campos das
representações sociais. Os homens são diferentes entre si, ainda quando se trata de um
grupo à priori caracterizado como homogêneo.
Contudo, refletindo sobre as manifestações do multiculturalismo durante o
crescimento do indivíduo dentro de um contexto social, é possível reconhecer o
Rafaela Samagaio Ferreira
6855
Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
imprescindível envolvimento das múltiplas facetas culturais no ambiente escolar. Sendo
este , um dos lugares de maior diversidade, especialmente no aspecto cultural, tendo em
vista que cada educando, assim como o educador e os outros membros da comunidade
escolar, trazem consigo uma bagagem de conhecimentos e hábitos culturais
diferenciados, que nas relações sociais vão se transformando e recriando as
manifestações culturais inerentes àquele contexto.
Desta forma, torna-se clara a compreensão de que todas as transformações
sociais no que tange o multiculturalismo, impactam diretamente a estrutura do cotidiano
escolar, no qual o sujeito constrói suas próprias concepções acerca do mundo com o
qual interage. Assim, "a educação não pode ignorar esta realidade" (CANDAU, 2002,
p.09).
Permeando estas relações presentes na escola, encontra-se o orientador que
tem a função de conduzir o processo pedagógico das práticas docentes. Esta orientação
deve se basear não somente nas discussões sobre o currículo formal, mas também nas
ações que Moreira denomina "currículo oculto" (2001).
Considerando que uma das principais missões da escola, na atualidade, é a
formação da identidade do sujeito, as questões ideológicas incutidas nas manifestações
do currículo oculto ganham uma notoriedade ainda maior, pois são elas tão responsáveis
nas conceptualizações do sujeito, quanto todas as outras formas de comunicação.
A partir destas considerações, o presente trabalho baseia-se nas relações
entre Multiculturalismo e Currículo Oculto, refletindo também sobre a intervenção da
Orientação Educacional e Pedagógica neste processo. A estrutura deste tema possui
como referencial o seguinte problema:
 Quais as relações que permeiam as manifestações do multiculturalismo, as
práticas de currículo oculto e o papel do orientador no ambiente escolar?
Em continuidade ao processo de amadurecimento das idéias inicialmente
formuladas acerca do problema em questão, os objetivos se constituem de fundamental
importância e subdividem-se:
Rafaela Samagaio Ferreira
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
Objetivo Geral
 Refletir e oportunizar discussões acerca das relações entre multiculturalismo,
currículo oculto e orientação no ambiente escolar.
Objetivos específicos
 Pesquisar as formulações de conceitos existentes sobre as terminologias
multiculturalismo e currículo oculto;
 Investigar, teoricamente, sobre o papel do orientador frente aos desafios da
diversidade cultural no currículo oculto;
 Elucidar educadores sobre a fundamental importância da valorização do
multiculturalismo nas interações escolares, tanto nas práticas formais e
explícitas, como nas práticas não-verbais e implícitas.
O MULTICULTURALISMO E AS RELAÇÕES SOCIAIS
A vertente cultural abordada neste trabalho acadêmico necessita ser
interpretada através das lentes antropológicas, que permitem compreendê-la como a
maneira de viver, total, de uma pessoa, grupo, sociedade ou país. Em verdade, a cultura
é o código, o veículo que permite a relação dos indivíduos entre si e o seu próprio
grupo, com o ambiente em que vivem.
Infelizmente, a cultura é vista pelo senso comum como um conceito
equivalente ao volume de literatura e a títulos universitários chegando até mesmo a ser
confundida com inteligência. De acordo com as contribuições de Candau (2003), a
palavra cultura é utilizada como sinônimo de sofisticação, sabedoria ou educação.
Estes são os significados mais comuns atribuídos ao termo cultura, porém
são totalmente questionáveis. Esta errônea interpretação origina as classificações de
"alto nível cultural" ou "cultura popular" incutindo a estes termos significados que
consideram a ilusória existência de patamares culturais hierárquicos.
Estas reflexões nos remetem a seguinte indagação: Será que é possível a
existência de homens sem cultura? A esse respeito Soares diz que:
Rafaela Samagaio Ferreira
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
O termo cultura, no singular, torna-se quase inútil: são sociedades em que
convivem vários grupos, cada um deles em diferentes condições materiais de
existência e, consequentemente, com estilos próprios de vida, ou seja, cada
um com características culturais próprias (1986, p. 52).
Analisando esta citação relacionando-a com a realidade, torna-se possível
observar que esta sociedade macro constitui-se, analogamente, como um mosaico.
Possuindo uma grande quantidade e variedade de "peças" que, concomitantemente, se
diferenciam e se completam.
O reconhecimento desta variedade no contexto social demonstra que a
questão da diversidade vem ganhando uma notoriedade ainda maior em todos os
campos das relações sociais. Discute-se muito acerca das problemáticas e das vantagens
que um contexto heterogêneo pode proporcionar, principalmente, no ambiente escolar.
Em completude à construção do conhecimento neste momento, os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Pluralidade Cultural citam que:
Valorizar as diferenças étnicas e culturais não significa aderir aos valores do
outro, mas, sim, respeitá-los como expressão da diversidade, respeito que é,
em si, devido a todo ser humano, por sua dignidade intrínseca, sem qualquer
discriminação (2002, p.19 e 20)
Para uma efetiva compreensão em torno das discussões que envolvem a
diversidade cultural, bem como suas especificidades, torna-se necessário pontuar de
maneira mais clara e o mais completa possível a interpretação aqui considerada no que
diz respeito ao multiculturalismo.
Emprega-se a terminologia multiculturalismo para dar significado a
presença de diferentes grupos culturais numa mesma sociedade, partindo deste olhar
antropológico sobre as várias culturas é possível também reconhecer que o processo de
globalização facilitou o contato entre indivíduos de grupos sociais diferentes e distantes,
proporcionando maior interação.
Segundo Canclini, este processo de interação cultural a fim de formar novas
culturas, chama-se hibridização cultural (in Candau, 2002). E em completude a este
pensamento, Bakhtin se refere ao aspecto relacional como fator fundamental na
formação do sujeito e na construção de sua individualidade, ou seja, sua subjetividade
cultural (2005).
Rafaela Samagaio Ferreira
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
Neste contexto social, o reconhecimento da pluralidade cultural vem tornando-se
emergente e cada vez mais intenso, principalmente em instituições educacionais, nas
quais as interações entre culturas distintas acontecem todo o tempo.
A fim de confirmar estes pressupostos Moreira diz o seguinte: "Nossas
sociedades contemporâneas são inegavelmente multiculturais. Nelas, as diferenças
derivadas de dinâmicas sociais como classe, cultura e religião expressam-se nas
distintas esferas sociais" (2001).
O termo multiculturalismo, todavia, pode indicar diversas ênfases: a) atitude
a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; b) meta a ser alcançada
em um determinado espaço social; c) estratégia política referente ao
reconhecimento da pluralidade cultural; d) corpo teórico de conhecimentos
que buscam entender a realidade cultural contemporânea; e) caráter atual das
sociedades ocidentais (CANEN e MOREIRA, 2001).
Diante de todas estas variações que podem ocorrer na contextualização do
termo multiculturalismo o mais importante é compreender que existem diversas culturas
interagindo a todo instante em qualquer espaço nas relações sociais e, principalmente,
que não existe entre elas relação de superioridade.
Assim o multiculturalismo é uma característica fundamental a qualquer
contexto na atualidade e não reconhecer isto pode acarretar em atitudes impregnadas de
preconceitos. Em muitas situações, as diferenças são compreendidas e denominadas
como um problema, conforme afirma Valente em seus estudos (2000, p. 65). As
diferenças sociais e culturais articuladas às desigualdades e à discriminação geraram o
que se convencionou denominar "exclusão social" (PCN - Pluralidade Cultural. 2002, p.
20).
Os estudos de Candau apresentam a existência de uma conceptualização
muito interessante e problematizadora no que diz respeito à relação entre igualdade e
diferença. Uma das principais colunas na estrutura social (e educacional) é a defesa pela
igualdade. Contudo, igualdade não se opõe à diferença e sim à desigualdade e em
contrapartida, as diferenças se opõem à padronização.
Assim, a luta da mulher pela igualdade de direitos não significa anular as
diferenças existentes entre homem e mulher, tornando possível, deste modo, que a
diferença e a igualdade atuem concomitantemente.
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
Temos o direito de reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos tira a
identidade e a autenticidade. E, temos o direito de reivindicar a diferença
sempre que a igualdade nos padroniza (2003).
Interpretar esta realidade implica criticidade, para que não ocorra a errônea
idéia de que estas diferenças são fatores pré-determinados e inquestionáveis. As
diferenças geram a riqueza presente na diversidade, principalmente nas manifestações
do multiculturalismo cada vez mais presentes em nosso cotidiano.
O CURRÍCULO OCULTO E SUAS IMPLICAÇÕES
NA SUBJETIVIDADE DO EDUCANDO
Permeando as relações no processo de formação do indivíduo o ambiente
educacional, segundo Moreira, se constitui como um dos mais fortes instrumentos de
transmissão ideológica e manifestação do poder, ainda que de forma implícita. Nos diz
ainda, que o entendimento destas questões deve se basear não só nas discussões sobre o
currículo formal, mas também nas ações que ele denomina "currículo oculto" (2001).
Estas ações e atitudes educacionais que compõem o currículo oculto,
implicam nas mensagens não verbais, que são impregnadas de uma conduta axiológica
cultural, mantendo a ideologia presente todo o tempo e que neste contexto trata-se e
uma ideologia "monocultural" (CANDAU, 2000).
Considerando estas importantes funções da escola na vida do indivíduo, a
questão ideológica incutida nas manifestações do currículo oculto ganha uma
notoriedade ainda maior, pois são elas tão responsáveis nas conceptualizações do
sujeito, quanto todas as outras formas de comunicação. O educando não internaliza
somente os saberes dispostos nos conteúdos programáticos e sim assimila tudo que
envolve o contexto da sala de aula, talvez até de forma mais efetiva. Cabe situar neste
momento a seguinte contribuição de Bakhtin:
A comunicação verbal entrelaça-se inexplicavelmente aos outros tipos de
comunicação (...) e graças a esse vínculo concreto com a situação, a
comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não
verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos... etc). (1999, p. 124)
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
Com estas considerações observamos que a construção social da valorização
sobre a diversidade cultural é uma tarefa que encontra-se, de maneira especial, nas mãos
deste currículo oculto e não somente no currículo formal, escrito. As contribuições de
Bakhtin tornam possível visualizar que o currículo oculto está diretamente relacionado
com a linguagem e não com a língua (1999), ou seja, a maneira pela qual o emissor
transmite a mensagem é o que norteará a interpretação da mesma.
Considerando a heterogenia de culturas como um conteúdo factual, as
práticas educativas necessitam valorizar o ambiente escolar como um espaço sóciocultural. É preciso repensar o processo educativo como sendo heterogêneo,
considerando cada realidade cultural inserida naquele contexto, de forma a desenvolver
nos educandos o respeito pela diversidade (DAYRELL, in Candau 2002).
Com base nestas colocações torna-se mais fácil a elaboração de algumas
reflexões acerca das relações entre diversidade cultural e as implicações do currículo
oculto dentro do ambiente escolar.
Para alimentar ainda mais estas reflexões, Moreira nos questiona: "que é a
educação e, em particular, o currículo, senão uma forma institucionalizada de transmitir
a cultura de uma sociedade?" (2001)
Seria uma grande satisfação responder a este questionamento explicitando
outra função à educação e ao currículo (oculto ou não), como por exemplo: a tarefa de
correlacionar as culturas, fazendo-as interagir na construção de conhecimento sem o
pré-julgamento de valores, além de valorizar a heterogeneidade cultural.
Entretanto, esta satisfação ainda não é possível, haja visto que o currículo
ainda é utilizado (de forma explícita e implícita) como uma maneira de reprodução
cultural e econômica. Pode-se afirmar ainda que, o currículo - principalmente em suas
manifestações não-verbais, ocultas - é uma das formas mais complexas de controle da
ideologia. Segundo Apple, a educação vem historicamente mantendo concepções
normativas de cultura e de valores,"a hegemonia é criada e recriada pelo corpus formal
do conhecimento escolar, e também pelo ensino oculto que vem acontecendo e continua
a acontecer" (2006, p. 125).
A definição de currículo oculto pode ser compreendida como o todo das
mensagens da natureza afetiva, atitudinal e de valores, que podem estar presentes em
toda a estrutura escolar. Todo o processo de socialização do aluno está envolvido por
Rafaela Samagaio Ferreira
6861
Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
este currículo não-formal que abrange todas as relações de aprendizagem por ele
vivenciadas.
Neste sentido, sabe-se claramente que a escola é um ambiente de
socialização muito importante no desenvolvimento do indivíduo, tanto no aspecto
cognitivo quanto na construção da identidade do educando, envolvendo todos os
aspectos de sua subjetividade.
Contudo, interpretar este lugar de socialização como um dos principais
instrumentos na formação deste sujeito-educando, principalmente quando se trata de
alguém sem apoio ou estrutura familiar, parece não ser uma verdade claramente
internalizada pela sociedade, num âmbito geral.
A compreensão sobre o mundo e sobre si mesmo depende diretamente do
outro, ou seja, as relações sociais estabelecidas neste período de vida escolar da criança
ou do adolescente (período em que as construções subjetivas são edificadas e
consolidadas) são fundamentais neste processo.
Em completude a estas questões Bakhtin afirma a importância dos "outros
eus" neste contexto de socialização do indivíduo, as convivências e experiências
estabelecidas nestas relações deixam claro que "o sujeito é desse modo mediador entre
as significações sociais possíveis" (2005, p. 24).
Assim, sabendo-se que a interação com o outro é tão decisiva na construção
da subjetividade do educando, torna-se possível analisar tão quanto é urgente a questão
do currículo oculto inserido (camuflado) no ambiente escolar que, como visto antes, é
um lugar de socialização essencial na formação do sujeito.
Bakhtin nos diz ainda sobre a dualidade existente nas mensagens proferidas
através da comunicação verbal. Primeiramente o caráter explícito, ou seja, a palavra
dita. E em contrapartida o aspecto intencional e implícito (2005).
Pensar nestas problematizações acerca do currículo oculto na construção da
identidade subjetiva deste educando nos proporciona subsídios para refletir sobre a
seguinte indagação: Como compreender a significação das mensagens "sem levar em
conta os fatores que possibilitam estabelecer as formas de como o discurso verbal na
vida se relaciona com a situação extraverbal que o engedra?" (BAKHTIN, 2005, p. 69).
Sabendo-se que o autor denomina de situação extraverbal todo o contexto
do discurso, que caracteriza o currículo oculto nas mensagens implícitas: palavras,
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
atitudes ou gestos, é possível responder a este questionamento com a grande certeza de
que levar um conta estes aspectos envolvidos nas mensagens é fundamental para a
compreensão de sua significação.
As contribuições de Bakhtin evidenciam que o conteúdo ideológico pode
influenciar de forma mais direta a consciência do indivíduo do que o próprio conteúdo
formal, escrito. "A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não
haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social
determinada, afetam a significação" (1999, p. 15).
No contexto do grupo social em que o indivíduo está inserido, neste caso a
comunidade escolar, a estrutura e a organização social são determinantes. Quanto a isso,
Bakhtin diz que:
Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos
se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo...(1999, p.35)
Portanto, compreender a relação existente entre o currículo oculto e a
formação da subjetividade do educando é ter a certeza, de que todo o conjunto de
mensagens transmitidas ao outro influenciam diretamente em suas conceptualizações
sobre a realidade, tanto no âmbito social quanto no âmbito cultural. E mais do que isso,
faz-se emergente o despertar para a grande responsabilidade que a escola, bem como
sua equipe de orientação possuem neste sentido.
O PAPEL DO ORIENTADOR FRENTE AOS DESAFIOS DO
MULTICULTURALISMO NO CURRÍCULO OCULTO
Para que haja uma compreensão sobre o papel do orientador dentro do
ambiente escolar na atualidade, é preciso que se faça uma análise sobre o crescimento
deste campo de atuação em nosso país.
Segundo Mirian Grinspun, as primeiras experiências em orientação no
Brasil sofreram uma grande influência da orientação americana e da orientação
francesa. Estas tentativas iniciais ocorreram de maneiras isoladas e, paulatinamente,
foram sendo estruturadas de acordo com nossa realidade.
Rafaela Samagaio Ferreira
6863
Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
A primeira interpretação legal sobre orientação no Brasil se deu pela
Reforma Capanema, na qual a Lei Orgânica do Ensino Industrial instituiu o serviço de
orientação educacional, com a finalidade de "correção e encaminhamento dos alunosproblema e de elevação das qualidades morais". Sendo o Brasil o primeiro país no
mundo a ter a orientação educacional obrigatória apresentada através de documento
oficial (GRINSPUN, 2006, p.22).
Tendo em vista os objetivos que a educação da época buscava, bem como a
concepção que norteava o ensino, o fato de encaminhar alunos-problema e elevar as
qualidades morais parecia dar conta do processo educativo em termos de orientação.
Contudo, ao longo do tempo a educação tomou novos rumos. As
expectativas em torno da orientação foram se transformando, tendo em vista que os
desafios no ambiente educacional passaram a exigir outras competências deste serviço
de orientação. Nesse sentido, Mírian Grinspun coloca o seguinte:
A questão da escola como reprodutora do sistema social começou a ter uma
repercussão muito grande em nossa realidade, e a Escola passou a ser
questionada quanto a seus objetivos e propósitos. A exclusão social ganha
espaço em termos de discussão e reflexão. (2006, p. 27)
Com estas discussões é possível apontar uma indagação fundamental no
campo da orientação: Qual o papel do orientador frente aos desafios atuais na educação?
Pensar em orientação educacional atualmente vai além das premissas que se
idealizavam no início de sua implementação. O ambiente escolar neste momento é um
lugar democrático e que deve assumir todos os vieses que o constituem, aspectos
políticos, sociais, culturais e, principalmente, pedagógicos.
A orientação, hoje, caracteriza-se por um trabalho muito mais abrangente, no
sentido de sua dimensão pedagógica. Possui caráter mediador junto aos
demais educadores, atuando com todos os protagonistas da escola no resgate
de uma ação mais efetiva e de uma educação de qualidade nas escolas.
(GRINSPUN, 2006, p.31)
Toda e qualquer atitude realizada dentro da escola deve ser consciente, para
que não haja um desvirtuamento da responsabilidade educativa. Porém, ainda que seja
fundamental manter a consciência, existem atos e fatos que ocorrem de maneira
inconsciente e implícita, ao que denomina-se currículo oculto. Este conceito de
Rafaela Samagaio Ferreira
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
currículo surge nas discussões pedagógicas (quando surge) como uma situação inédita e
recente, mas é preciso saber que as implicações do currículo oculto fazem parte do
cotidiano escolar há muito tempo e em todos os ambientes educacionais, ainda que se
queira negar.
Estas ações não explícitas recorrentes no processo educativo tornam o
trabalho de orientação ainda mais complexo e dão um lugar de destaque à intervenção
do orientador. Exatamente por estas implicações que cabe ao orientador a tarefa de
estudar, pesquisar, observar e avaliar o cotidiano da escola em que está inserido,
analisando não só as ações dos alunos, mas também as ações dos profissionais de ensino
e de apoio. Em relação a isso Grinspun, apresenta o seguinte:
O cotidiano escolar apresenta a natureza das práticas, das ações
desenvolvidas / realizadas em seu interior e, na medida em que conheço essa
realidade, passo a entender melhor as decisões que a escola efetiva através de
seus diferentes protagonistas. Estudar relações e fatos cotidianos vai nos levar
a entender a reciprocidade / cumplicidade das diversas situações que o
cotidiano abrange (2006, p. 57).
CONCLUSÃO:
Diante das abordagens apresentadas neste trabalho, torna-se evidente que a
diversidade cultural é hoje um fator decisivo na construção do sujeito e que esta
heterogenia está presente em todos os campos das representações sociais, em especial
no ambiente escolar.
Neste sentido, a instituição educativa necessita valorizar o multiculturalismo
em suas práticas de currículo (formal ou não) ao invés de ignorá-lo, haja visto que
historicamente o currículo oculto se manifesta como promoção da homogeneização,
principalmente se considerarmos que suas implicações estão carregadas de um conceito
ideológico (MOREIRA, 2001).
As idéias de hierarquia cultural e de prevalência da cultura da classe
dominante geralmente presentes no currículo oculto, podem ser tão desastrosas quanto
qualquer tipo de defasagem no processo de ensino-aprendizagem, tendo em vista que:
Todo ato cultural se move numa atmosfera axiológica intensa de interdeterminações responsivas, isto é, em todo ato cultural assume-se uma
Rafaela Samagaio Ferreira
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Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
posição valorativa frente a outras posições valorativas" (BAKHTIN, 2005,
p.38).
Desse modo, se todo ato cultural assume um valor próprio daquele que o
manifesta, evidente que as relações sociais estão permeadas por estas trocas e
"transmissões" de valores. Sendo de extrema importância ressaltar que estes atos
culturais, assim denominados por Bakhtin, surgem não só nas colocações explícitas,
como é o caso do currículo formal, mas também nas manifestações de currículo oculto,
pois até mesmo "uma simples palavra, enunciada num tom apropriado, carrega a
avaliação que é feita pelo enunciador e que é perfeitamente entendida e compartilhada
pelo silêncio do interlocutor" (BAKHTIN, 2005, p.66).
Diante de todas as questões abordadas neste trabalho é possível reconhecer
que no cotidiano escolar estão presentes situações que vão além das questões
pedagógicas, transcendendo as relações de ensino e aprendizagem em seu âmbito
formal. Conforme afirma Grinspun:
O cotidiano escolar envolve não só as questões específicas do currículo
escolar, do projeto político pedagógico, mas também todas as questões da
relação de poder, de saber, de afeto, de emoções etc., que estão em
determinado tempo / espaço fazendo parte da vida do aluno / professor (2006,
p. 57).
Para que o orientador possa mediar efetivamente esta demanda do cotidiano
escolar a fim de promover uma possível mudança nas manifestações do currículo oculto
é preciso muita discussão e reflexão quanto a essas práticas. O orientador pode incitar
nos educadores e nos outros membros desta comunidade escolar uma auto-análise
geradora de conflitos que desestruturem o pensamento para a transformação e, assim, “o
orientador pode ajudar a fazer a crítica de seu processo, desocultando o oculto e
tornando mais aparente o visível” (GRINSPUN, 2006, p. 59).
REFERÊNCIAS:
APPLE, Michael W.. Ideologia e Currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.
BAKHTIN, Mikhail M.. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
Rafaela Samagaio Ferreira
6866
Multiculturalismo e Currículo Oculto: uma questão de orientação
1999.
BAKHTIN, Mikhail M. in Brait Beth (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005.
CANDAU, Vera Maria (org.). Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro:
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CANDAU, Vera Maria. Didática e Cultura. 2003. Palestra realizada na Universidade
Católica de Petrópolis em 20 de ago. 2003.
CANEN, Ana; MOREIRA, Antônio F.. Reflexões sobre o multiculturalismo na
escola e na formação docente. In: CANEN, A., MOREIRA, A. F. (orgs.). Ênfases e
omissões no currículo. Campinas: Papirus, 2001.
GRINSPUN, Mirian P. S. Zippin. A orientação educacional: conflitos de paradigmas
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MOREIRA, Antônio F.. A recente produção científica sobre currículo e
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Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação: São Paulo, p. 65-81,
2001.
MOREIRA, Antônio F. e SILVA, Tomaz T. (orgs). Currículo, cultura e sociedade.
São Paulo: Cortez, 2001.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Língua Portuguesa / Ministério da
Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3. ed. – Brasília: A Secretaria, 2001.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Pluralidade Cultural e
Orientação Sexual / Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. 3.
ed. – Brasília: A Secretaria, 2001.
SOARES, Magda. Linguagem e escola – Uma perspectiva social. São Paulo: Ática,
1986.
VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.
Brasília, v. 81, n. 197, p. 64-75, jan./abr. 2000.
Rafaela Samagaio Ferreira
6867
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
A SIMULTANEIDADE DE TEMPOS NAS REDES
COTIDIANAS DA SALA DE AULA
Regina Coeli Moura de Macedo
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
A SIMULTANEIDADE DE TEMPOS NAS REDES COTIDIANAS DA SALA DE
AULA
Regina Coeli Moura de Macedo
RESUMO: Num processo de elaboração de perguntas, o texto procura tecer nas e com
as histórias do cotidiano de algumas salas de aula de uma escola, uma compreensão
possível desse cotidiano. Interrogando as histórias vividas, busca criar redes de sentidos
com as maneiras de fazer dos sujeitos que os praticam e os inventam (Certeau, 1994).
Redes essas que possibilitem desenvolver formas de contribuir para a produção de
práticas no sentido da realização de um projeto educativo emancipatório à semelhança
do que propõe Santos (1996). É parte de um processo de pesquisa e escrita de
dissertação que se incluem no conjunto das reflexões que têm a prática social como
produtora e produto da tessitura de conhecimentos em rede. Procura pensar o real sem
buscar sua simplificação, reconhecendo a sua complexidade na simultaneidade dos
tempos que compõem esse real e encarando-a como desafio como nos propõe Morin
(1996). As histórias vividas pelos praticantes da escola nos contam esses vários tempos
e nos interrogam buscando a compreensão dos sentidos criados pelos sujeitos que tecem
essas redes cotidianas, as salas de aula, a escola, em meio à simultaneidade desses
tempos. Assim, elas nos aproximam da potencialidade emancipatória que as interações
espontâneas (Morin, 1996) ou as astúcias dos praticantes no cotidiano (Certeau, 1994)
têm.
PALAVRAS-CHAVE: redes cotidianas, tempos nas salas de aula, sujeitos praticantes,
emancipação.
“No ler a lição, não se buscam respostas. O que se busca é a
pergunta à qual os textos respondem” (Larrosa, 2003, p.142).
Este texto foi escrito como parte de um processo de elaboração de perguntas que
procuraram tecer nas e com as histórias do cotidiano de uma escola aqui narradas, uma
compreensão possível desse cotidiano. Interrogando as histórias vividas fui buscando
mergulhar (Alves, 2001) nesses cotidianos e com eles criar redes de sentidos para as
maneiras de fazer dos sujeitos que os praticam e os inventam (Certeau, 1994).
Apresento este trabalho, imaginando que, como eu, os leitores também poderão fazer
Regina Coeli Moura de Macedo
6871
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
interrogações a partir das histórias que conto, das práticas das professoras, dos alunos,
dos pais e mães.
Depois da leitura, o importante não é que nós saibamos do texto
o que nós pensamos do texto, mas o que – com o texto, ou contra
o texto, ou a partir do texto – nós sejamos capazes de pensar
(Larrosa, 2003, p. 142).
Estabelecendo uma conexão com as palavras de Larrosa, busco compreender o
cotidiano fazendo perguntas e tentando com elas tecer redes de sentidos que
possibilitem desenvolver formas de contribuir para a produção de práticas no sentido da
realização de um projeto educativo emancipatório à semelhança do que nos propõe
Santos (1996).
Para ele, esse é um projeto que pode nos permitir “colocar sob suspeita a
repetição do presente” essa “sensação de estarmos parados nesse tempo paradoxal da
sociedade de consumo e da informação”, pois é desestabilizador, potencializa o
inconformismo, recusa o aprisionamento ao modelo de estagnação. Com isso, Santos
nos convida a colocar em questão a idéia de que as realidades presentes, que não nos
interessam, por não serem socialmente favoráveis a todos os sujeitos, não podem ser
modificadas, por isso têm de ser infinitamente repetidas. Se essas realidades foram
gestadas por nós mesmos, sujeitos históricos que inventamos o mundo a cada dia, por
nós também podem ser criadas no cotidiano e já estão sendo, sempre foram, novas
experiências que significam novas possibilidades para o presente e também para o
futuro. Ele anuncia um projeto educativo que assuma a aprendizagem de conhecimentos
conflitantes, já que para este projeto educativo não há uma, mas muitas formas ou tipos
de conhecimento (idem, p.17); que transforme a sala de aula em campo de
possibilidades de conhecimento dentro do qual professores e alunos têm de optar,
assentando as opções de professores e alunos não em idéias somente, mas em emoções,
sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis
(id.,ib., p. 18). Na proposta que faz, de efetivação de um projeto educativo conflitual e
emancipatório, Santos considera as dificuldades, porém o afirma, a partir da ideia de
que existem energias, sobretudo no passado enquanto campo de possibilidades e
decisões humanas para a sua realização.
Regina Coeli Moura de Macedo
6872
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
Essa tarefa de investigar a realidade complexa que é o cotidiano escolar a que
me propus enfrentou algumas dificuldades no seu percurso. Uma delas tem relação com
o aprisionamento em que, muitas vezes, nos percebemos às grandes teorias produzidas
sobre a escola ou pelos nossos próprios conceitos e crenças sobre uma escola irreal e
modelar, limitando nossas possibilidades de compreendê-la. Isso nos afasta do real
complexo que é tecido, cotidianamente, pelas práticas culturais reais das populações
(Alves e Oliveira, 2002, p. 93), pois esse real não se submete às lógicas explicativas
com que nos acostumamos a pensar e agir na escola e sobre a escola.
Esse processo de pesquisa que buscou compreender as salas de aula, as práticas
que as constituem, compreendendo que essas mesmas nos informam sobre os seus
limites e possibilidades compromete-me com a tentativa de entender as escolas como
positividade, não no bom sentido, mas simplesmente no sentido do existente (Ezpeleta e
Rockwell, 1986, p.10). Aquilo que não existe ou o que não se faz nas escolas, mas que,
segundo determinados modelos ideais de escola proclamados pelo pensamento
hegemônico, deveria existir ou ser feito, não é o que nos interessa neste trabalho.
Sem dúvida, trata-se de uma opção política essa que faço. Como nos fala Santos
(2002), não há indissociabilidade entre pensamento epistemológico e político Os
percursos que tenho seguido até aqui, assim como os que pretendo continuar seguindo
são tecidos na, ao mesmo tempo em que tecem a rede da minha formação e
transformação permanente como professora e pesquisadora. Portanto, nessa rede estão
também os fios que passam pelas esferas políticas (Alves, 1998) ou, como no dizer de
Santos (2002), os espaços de formação também marcados por esse mesmo caráter. Essa
rede de sujeitos em que venho me constituindo faz a escolha de trazer para os primeiros
planos das cenas do cotidiano escolar, os seus atores, nós, anônimos sujeitos políticos
da história desse cotidiano com aquilo que somos e fazemos.
Nessa perspectiva, como essa reflexão se inclui no conjunto das reflexões que
têm a prática social como produtora e produto da tessitura de conhecimentos em rede,
ela busca também ampliar a compreensão dos espaços e tempos de formação
profissional para além do acadêmico.
Essa é mais uma razão que torna difícil pesquisar e compreender o viver
cotidiano! Isso porque, em geral, a nossa pretensão é encontrar ou construir aquelas
explicações causais tão a gosto do pensamento moderno (Alves e Oliveira, 2002, p.93).
Regina Coeli Moura de Macedo
6873
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
No desejo de entender, procuramos uma origem para aquele comportamento,
sentimento, valor ou ideia presentes na realidade. Mas reconhecer essa impossibilidade,
reconhecendo a noção de redes de sujeitos como a maneira como nos constituímos,
pode significar um movimento importante na busca dessa compreensão. As grandes ou
pequenas explicações, formuladas pelas teorias que conhecemos sobre a escola, que
conseguem elaborar causas para tudo ou quase tudo o que acontece nas salas de aula
com alunos, professores e outros dessa rede, chegando a conclusões generalizantes e
apresentando prescrições para os seus comportamentos, não servem para a
complexidade das nossas identidades dinâmicas e plurais e nem para a complexidade
das realidades cotidianas que praticamos.
Morin (1996) apresenta a complexidade como desafio. E coloca essa idéia do
desafio como fundamental, pois diz que não podemos conceber a complexidade como
resposta, como receita, mas como uma motivação para pensar” (p. 176). Pensar o real
sem buscar sua simplificação vai nos colocar, necessariamente então, diante desse
desafio. Se nos interessa considerar os múltiplos e variados aspectos que compõem a
realidade de forma articulada, as interações entre os sujeitos produzindo conhecimentos,
entre os diferentes conhecimentos e tipos diferentes de conhecimentos, assim dessa
maneira, nas suas diversas dimensões, sem reduzi-los, sem nos desfazermos do que não
pode ser calculadamente analisado e explicado, mas, ao contrário, tentando dar conta
dessas singularidades, teremos de reconhecer também o princípio de incompletude e de
incerteza que o pensamento complexo, do qual nos serviremos, comporta (id.ib., p.177).
Ao mergulharmos nessas realidades, esse desafio nos faz pensar que estamos em meio a
um tecido formado pelo entrelaçar de inúmeros e diversos fios, alguns deles nós
mesmos; que esse tecido é uno e múltiplo ao mesmo tempo e que, ao contrário do que
podemos conceber com o pensamento ocidental moderno, ele não destrói a variedade e
a diversidade das complexidades que o teceram e ainda o valorizam.
Os tempos que tem o tempo das salas de aula
Passemos, então, à história. Era dia sete de outubro e a professora Luciana
corrigia o trabalho de casa: contas (operações matemáticas) que ela ia olhando nos
cadernos como alguns alunos haviam feito e em seguida colocando no quadro para eles
Regina Coeli Moura de Macedo
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
resolverem. Todos os escolhidos para ir ao quadro faziam parte do grupo do apoio1 e
haviam errado, em casa, alguma conta: Luiza, Mônica, Claudia, Paulo, Francisco e
Saulo. Ao terminarem de refazer a resolução ali, na sala, mostravam à professora que
olhava, via se estava certo e mandava que sentassem em seus lugares.
Terminada a correção, a professora escreveu no quadro com letras bem grandes:
LIXO, passando para outra atividade. Começou, então, a conversar com eles sobre o
trabalho que estão fazendo sobre esse assunto. Mostrou uma revista: “JB Ecológico”
que é publicada mensalmente pelo Jornal do Brasil. As crianças já conheciam a revista
porque a professora, frequentemente, trazia para mostrar. Nesse número, havia uma
reportagem sobre uma empresa que resolvera reciclar o seu lixo do mesmo modo como
eles, os alunos da terceira série, pretendiam fazer na escola. A professora disse: “Eles,
assim como nós pretendemos também, fizeram uma campanha para dar início à coleta
seletiva de lixo. Já estamos fazendo cartazes, vamos ver o que mais nós vamos fazer
nesse sentido”. Mostrou essa e uma outra reportagem sobre os recordes do ano obtidos
nessa área: o Brasil foi o melhor e também o pior em alguns aspectos, uso de madeira de
replantio e desmatamento respectivamente. Disse que iria reproduzir as informações da
revista para que eles soubessem quem faz o quê no mundo. Algumas dessas
informações, a professora leu naquele momento e, ao ouvi-las, as crianças vibravam ou
se surpreendiam. Duas alunas estavam com a mão levantada há um tempo querendo
falar: Paula e Mônica. Num determinado momento, a professora pediu que a Paula
falasse e ela disse que havia tido uma ideia: organizar uma gincana com brincadeiras,
redação e etc sobre o lixo, cujas prendas seriam objetos feitos com outros reciclados que
eles mesmos confeccionariam. Outros alunos começaram a dar outras ideias a partir
dessa: concurso de produtos feitos com objetos recicláveis, por exemplo. A professora,
percebendo que se tratavam de propostas cuja realização não seria possível, os
interrompeu dando algumas explicações, como a de não terem condições estruturais
para armazenarem lixo na escola e assim encerrou o assunto. Depois ela passou a anotar
no quadro: por que é importante a coleta seletiva de lixo? E, conforme as crianças iam
1
O apoio é uma atividade oferecida pelo colégio para propiciar aos alunos que, de acordo com as normas
de avaliação da escola, não apresentam bom rendimento. São aulas de português e/ou de matemática, de
1h e 30 min. de duração, que acontecem no contraturno, uma ou duas vezes por semana, conforme
indicação da professora. Em algumas situações, essa atividade é realizada no próprio turno do aluno. Por
dois anos consecutivos fui professora de apoio nessa escola de que falo e esses alunos citados no texto
eram meus alunos.
Regina Coeli Moura de Macedo
6875
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
respondendo, anotava também: a) porque diminui a poluição, b) diminui a quantidade
de lixo, c) reduz a utilização de recursos da natureza.
Neste momento, todos esses acontecimentos me levaram a pensar na questão dos
tempos presentes nas salas de aula. O ritmo daquela aula, daquela professora, era
ligeiro, ágil. Digo assim, mas não sem levar em conta a relatividade da ideia que busco
expressar com o uso dessas palavras, pois os leitores poderiam perguntar: ligeiro, ágil
em relação a quê? Tentando então esclarecer, chamo de ligeiro aquele ritmo que procura
não deixar muitos intervalos entre as ações, que imprime um encadeamento às falas, às
atividades que são realizadas por todos, que procura não “perder” tempo talvez. A
professora costumava ter todas as atividades bem planejadas e, muitas vezes, o tempo
de que dispunha com os alunos para a sua realização não era suficiente. Isso fazia com
que ela não conseguisse cumprir com tudo que havia pensado em fazer, o que a deixava
aflita e “acelerada”. Quando tivemos, por conta desta pesquisa, a nossa conversa, eu, ela
e a outra professora das turmas, a Marina, disse que, ao contrário do que a colega havia
afirmado sobre si mesma, ela se preocupa sim com o tempo. Não considera que tenha
um ritmo rápido com o desenvolvimento do programa, tanto que as outras professoras
sempre estão à sua frente, mas com o uso do tempo na sala, sim. Talvez seu
comportamento se deva ao fato de se sentir “pressionada” quando comparada às outras
professoras, quem sabe? Mas, em última instância, o que alega é que se sente
comprometida com o cumprimento do “plano” que é a forma como chama o programa
previsto para a série. Vejamos o que diz:
“Para mim foi igual. As duas turmas queriam falar bastante sendo que a
‘seis’2 chegava mais às conclusões. A ‘seis’ era capaz de descobrir mais
as coisas dando jogos. Na ‘seis’ sempre saía, sempre uma criança
conseguia perceber; na ‘oito’ nem sempre... E também, assim, eu achei
que, é, eles queriam falar muito, muito, principalmente nas questões de
ciências e que nem sempre dava espaço para falar, queriam falar muito
assim, sabe? Todos querem ler sua resposta, todos têm um caso pra
contar... Eu já não deixava porque, ao contrário de você, eu já me
preocupo com o tempo. E aí, eu também não sei... É, de repente tem que
2
Está se referindo à turma 306, uma de suas de terceira série. A outra é a 308 que ela chama de “oito”.
Regina Coeli Moura de Macedo
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
pensar uma coisa diferente se eu pegar uma outra terceira série, uma
turma ano que vem, porque esses assuntos de ciências; eles têm muita
coisa pra falar então, dependendo do exercício que você passe, tem que
tirar o dia pra aquilo e esquecer o resto, e ouvir as histórias, ouvir,
ouvir, mas eu não consegui. Eu sempre tinha um planejamento e ficava
querendo cumprir e acho também que eles ficaram um pouco silenciados
comigo.
Aparentemente de forma contraditória, em outro momento da conversa, quando
falávamos sobre a participação das professoras na elaboração do planejamento do
trabalho a ser realizado com os alunos, ela disse:
Eu também não imprimo ritmo rápido porque é aquilo que está previsto
não. Tanto que, por exemplo, sistema, algarismos romanos, só eu que
não dei, nem sei se tem uma outra coisa, mas se eu sentir que a turma
está precisando ir mais devagar eu vou. Mesmo que eu não tenha dado,
isso, isso, aquilo outro. Eu não me sinto na obrigação de, por exemplo,
se já é pra começar o ano fazendo um diagnóstico eu sempre levo muito
mais tempo que todo mundo, eu não consigo fazer um diagnóstico
rápido, em uma semana ou duas, pra ver se aprendeu as coisas que
trouxe da outra série. Nunca é rápido! E já começo o conteúdo novo
também um pouco depois, é... Sempre vou mais devagar. Ciências eu me
sinto assim também, bem livre; a gente pode dar muita opinião nas
coisas como vão ser conduzidas, até pra o conteúdo que vai ser dado.
Todo trimestre eu me sentia... eu falava: “não, isso vai dar, isso não vai
dar”. É... e procurava trazer muitas questões de jornal, de televisão, pra
ciências, só que na verdade são tantas informações que você tem, que
você tem cada dia para trazer, que para você trabalhar bem um artigo
de jornal também leva tempo. Tem muitas palavras que eles não
entendem, então, às vezes, eu pegava o artigo e reduzia, ou botava só
uma parte; botar um artigo inteiro, às vezes aquilo se torna um
complicador porque há coisas que eles não entendem, há citações, são
siglas, então, às vezes, lamentava ter pouco tempo para não estar
trazendo mais coisa, usei muita coisa do JB ecológico – muito bom –
usei muito a revista Protesto, mostrava as reportagens, deixava passar a
revista, era uma coisa que estava assim bem... tinha sempre coisas que
atendiam.
Em meio às redes cotidianas da escola (Ferraço, 2004) e da sala de aula é
possível perceber, através dessas histórias, sua tessitura com a presença de diferentes
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
tempos. Participam dessas redes os alunos e alunas, os pais, as outras professoras – a da
turma ou não, as coordenadoras, o “plano”, as informações disponíveis nos meios de
comunicação e ela mesma, a professora Luciana, é claro, com seus vários tempos em
tensão e conflito dentro dela. É desses tempos que vou falar pensando que sua presença
e sua tessitura é bastante importante para a compreensão daquilo que se passa nesse
cotidiano da sala de aula.
Como professora do apoio, conhecia aqueles que foram chamados ao quadro
para corrigir as contas do trabalho de casa, pois eram todos meus alunos. Conhecia
também um pouco da turma e do restante das crianças, pelo contato que tinha nos
momentos em que ia à sala buscar os que iam para a aula comigo, pelos dias em que lá
estava para a realização da pesquisa e também pelos comentários que as professoras
faziam sobre eles em reuniões de planejamento ou conselhos de classe. Sabia, então,
sobre aqueles tempos, da professora e dos alunos, que percebi tecerem aquela aula,
sabia que ora eles se cruzavam ora não. Em muitos momentos, traçavam linhas paralelas
em relação a alguns, enquanto que essas mesmas linhas em relação a outros se
encontravam. E tendo esse aspecto como parte do todo complexo que são as salas de
aula, buscarei compreendê-lo, narrando outras histórias, vividas com alguns desses
alunos. Na primeira delas, eles contam os seus sentimentos e as suas experiências com e
em alguns dos tempos da sala de aula.
Tempos e sentimentos de um espaço complexo
Como todas as semanas, cheguei à sala da turma 308 para buscar os alunos do
grupo do apoio de língua portuguesa. Ao chegar à porta, a professora Marina, que junto
com a Luciana era professora da turma, pediu-me que levasse para a aula naquele dia
um outro aluno, o Jeferson, porque no último texto que fez, ele “se embolou um pouco e
fez um texto muito confuso” na sua avaliação. Não havia lido o que o Jeferson
escrevera, mas, dias atrás, a professora já comentara que “tem achado os alunos do
grupo de apoio melhor, em especial o Francisco, mas que tinha se surpreendido com
um outro aluno que não é do grupo, o Jeferson”. Esse era, então, o menino que ela
queria que tivesse algumas aulas comigo para que ele tivesse oportunidade de melhorar
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
a escrita dos seus textos. Apesar da explicação da professora, Jeferson fez uma cara de
susto e disse: “eu?”
Fomos para a sala onde seria a aula. Era fácil notar o quanto o menino estava
atordoado e incomodado com a sua presença entre aqueles outros alunos e comigo como
professora. Percebendo esse sentimento, falei de novo com ele, perguntei o que sentia e
ele, tentando explicar para si mesmo e ao mesmo tempo entender o que estava fazendo
ali, dizia que ele não era, não pertencia ao grupo do apoio, só tinha ido naquele dia
porque a professora mandara. Perguntei ao Jeferson por que estar ou não na
“recuperação” era tão ruim para ele. Sua reposta foi que “os colegas ficam zoando”.
Naquele dia mesmo, quando saiu da sala, o Fernando – um outro menino da turma ficou dizendo: “Ah! Tá em recuperação!” E ele não gosta disso. Para tranqüilizá-lo e
tentar viabilizar sua participação na aula, falei que sua professora já havia dito o que
tinha acontecido, me referindo ao tal do texto confuso feito por ele. Então, ele não
deveria ficar tão preocupado por estar ali, trabalharíamos juntos para que superasse os
problemas que vinha tendo na escrita de textos.
Tentei dar continuidade à aula, mas o assunto em questão motivou os outros a
contarem também as suas experiências com esses sentimentos pelo fato de pertencerem
ao grupo do apoio, a maioria desde o ano passado ou mesmo desde anos anteriores.
Francisco contou como era sua relação com a turma na segunda série. Havia chegado,
com a família, de um outro estado do país e sido transferido para essa escola. Lá cursara
a primeira série, que era bem diferente da primeira série daqui, por isso havia muitas
coisas que não tinha estudado ainda. Falou que os colegas o chamavam de “burro”,
diziam que ele não ia passar de ano, cochichavam quando ele errava e isso o deixava
triste. Mas, mesmo surpreendendo os colegas, ele passou para a terceira série e ali
estava. Perguntei ao Francisco sobre esse ano, se as coisas continuavam iguais. Ele disse
que não, que haviam melhorado. Mas o Felipe entrou na conversa e disse que os colegas
da turma ficam falando baixinho quando o Francisco demora a responder o que a
professora pergunta: “Ai! Não sabe!” Disse isso reforçando o que os outros tinham
acabado de falar: “os que não são do grupo de apoio, ficam zoando, dizendo que eles
não sabem, falam, ficam olhando”. Os olhos do Felipe, nesse momento, ficaram
marejados. Ao perceber, pedi que falasse como se sente e ele disse: “mal”. Falou
também que a professora não aceita quando eles, do grupo do apoio, acabam rápido. Se
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
for um outro aluno ela aceita, recebe o trabalho, teste, prova o que for, mas se for um
deles, ela diz: “Ah não! Você fez isso com pressa, não aceito, vá ver o que você fez!” E
sem nem olhar, devolve. “E o trabalho pode estar certo” – diz o Felipe. Francisco
voltou a falar, agora sobre o colega. Disse que a turma fica impaciente com ele,
reclamam que ele lê muito devagar e baixo, que ninguém entende nada.
Num outro dia, os alunos estavam fazendo um teste para avaliação com a
professora Luciana e ela autorizou que eles perguntassem, mas só depois que já
tivessem pensado bastante. Uma menina, que é considerada uma excelente aluna, veio
me perguntar algo que talvez não esperássemos que ela perguntasse, por imaginarmos
que ela já saberia resolver sozinha aquele problema matemático. Sua dúvida era sobre
como poderia ali, naquela situação, realizar uma multiplicação, a operação que lhe
parecia dever usar, se não era possível, pela pergunta feita, obter um número maior
como resposta. Mas ela estava errada, poderia sim ser um número maior a resposta,
aliás, era mesmo um número maior, apesar de não parecer. Sua dúvida era a mesma que
a de outros alunos, que não eram considerados tão “bons alunos” quanto ela.
O Saulo foi outro que me perguntou algo sobre um problema que não trazia
todos os dados necessários expressos em números, escritos com algarismos, mas com
palavras. Queria saber com poderia, com os dados que tinha, fazer os cálculos
necessários para resolver o problema. Dizia ser impossível!
Depois da aula contei para a professora essas duas situações, tentando pensar,
junto com ela, como nós, muitas vezes, tentamos orientar o pensamento do aluno para a
resolução de problemas matemáticos através de modelos que apresentamos. No meu
entender, era isso que estava atrapalhando os dois alunos no seu processo de busca de
possíveis soluções para os problemas que tinham para resolver. Comentamos também
como alguns tipos de dúvidas apresentadas por um determinado grupo de alunos não
nos surpreende enquanto que por outros sim. Esses que estão enquadrados por nós no
modelo de “bom aluno”: inteligente, estudioso, cumpridor dos seus deveres,
participativo, que sempre têm algo a dizer para contribuir na discussão da turma,
também têm as suas dúvidas, no entanto, espantamo-nos com elas como se isso não
pudesse acontecer.
Como disse, são vários e variados tempos acontecendo simultaneamente. Isso é
o que podemos perceber nessas e em tantas outras salas de aula que vemos e vivemos.
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
Ferraço (2004) apresenta uma ideia semelhante a essa como resposta a uma questão
bastante importante para nós que pesquisamos com o cotidiano. Ele diz que
cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que acontece nas
escolas ... quando pensamos com o cotidiano das escolas encontramos
dificuldades em responder quando é que acontece, por exemplo, o
planejamento, a avaliação, a aprendizagem, o ensino, entre outras tantas
questões. De fato, se nos situamos em meio às redes cotidianas das
escolas, e com os sujeitos, a resposta para essas questões é uma só:
acontece tudo ao mesmo tempo e com todos!
Sendo assim, no que isso implica? Se acontece tudo ao mesmo tempo e com
todos, se cada vez tem sido mais difícil identificar com nomes o que acontece nas
escolas quando estamos em meio às suas redes cotidianas, podemos, com essas
histórias, nessas histórias, penetrar nos espaços de vida que elas contam e tentar
caminhar por alguns percursos para buscar perceber esse tempo tecido com os diferentes
tempos como que tecendo um outro, próprio desses sujeitos nas relações que eles ali
estabelecem.
Temos a presença do tempo limite, produzido pela organização escolar, a norma,
que impõe à professora e aos alunos terminarem e começarem numa determinada marca
temporal preestabelecida. É uma das regras que, com nos diz Foucault (1987) define
uma ordem que a escola como sistema disciplinar faz respeitar. As micro penalidades
que o não cumprimento dessa ordem traz também estão presentes nos sentimentos e
privações que a professora e os alunos experimentam com aquilo que não puderam
realizar: o que ela não conseguiu ensinar, o que eles não conseguiram aprender, as
tarefas que ambos não conseguiram cumprir naquele tempo previsto. Sentimentos de
preocupação, angústia, baixa expectativa, baixa auto-estima são exemplos do que pode
circular nas salas de aula por conta da presença desse tempo limite. Esse tempo se
coloca nas dinâmicas da sala de aula através das professoras que buscam cumprir, como
previamente definidos, os seus tempos de aula e o de suas imposições em relação à
duração de um aprendizado, ao tempo destinado a um exercício etc. Mas não só, ele
também se faz presente através dos próprios alunos, das coordenadoras, da diretora, dos
pais e mães, em práticas que fazem uso desse mesmo tempo limite ou experiências que
com ele têm relação.
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
Através do que disseram os alunos presentes à aula de apoio naquele dia, alguns
desses sentimentos foram também expressos. Apesar de participarem muito bem dessas
aulas, diziam claramente que não gostavam de estar ali porque “os colegas zoavam” e
eles se sentiam mal com isso. Não gostavam quando as atitudes diferentes da professora
com relação a eles lhes pareciam baixa expectativa. Apesar de reconhecer e tratar desses
comportamentos da professora como de “cuidado” (Carvalho, 1999) com esse grupo de
alunos, é inevitável reconhecê-lo também como gerador de insegurança e até de
indignação em alguns alunos e em alguns pais.
Os tempos das redes cotidianas da escola fora da sala de aula
Numa fértil conversa que tive com o pai de uma das alunas dessa turma, a Luiza,
que era minha aluna no grupo do apoio, também pude notar, entre outras coisas, o
quanto alguns dos sentimentos de que aqui tratei como possíveis micro penalidades
participam da vida de alguns sujeitos dessa rede que é a sala de aula, mesmo aqueles
não presentes todos os dias. A conversa me provocou pensar na simultaneidade dos
tempos, característica da vida, contraposta à linearidade das tarefas escolares, com seus
limites de início/fim e outros. Como a escola também faz parte da vida e vive essa
simultaneidade, muitas vezes, a linearidade e a presença do tempo limite são
incompatíveis, o que traz contradições, conflitos e contraposições. Ainda foi possível
refletir sobre os tempos partidos das várias aulas, das várias professoras, das várias
disciplinas criando uma expectativa de partição dos sujeitos e de limitação clara e quase
idêntica para todos. Apesar de ser uma expectativa e de sua plena realização não ser
possível, ela acaba gerando também conflitos, contradições e contraposições, embora
não em todos os sujeitos e nem da mesma maneira.
Esse pai, que procurava acompanhar de perto a vida escolar de sua filha, admitia
que havia um problema da Luiza com a matemática desde anos anteriores e alertava
para a necessidade dos adultos que lidavam com ela terem cuidado com o que diziam e
o que faziam nessa relação, pois isso poderia fazê-la desenvolver “bloqueios” que
prejudicariam bastante sua vida escolar. Contou que sua esposa não gostava de
matemática e conseguia influenciar as filhas nesse mesmo sentido.
Pedi que falasse como ele avaliava a situação da Luiza e ele disse:
Regina Coeli Moura de Macedo
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
A aprendizagem dela é normal, só que falta mesmo mais empenho,
entendeu?A Luiza é assim, ela gosta de brincar, ela não se interessa pelo
estudo, ela só está em recuperação porque ela estuda pouco, se estudasse mais,
se levasse mais a sério as tarefas, não estaria assim, entendeu? Talvez, como a
minha esposa tem trauma de matemática, então, começou a falar: ‘Ah! Eu não
gosto de matemática e tal’. Então já colocou na cabeça dela essa dificuldade, da
mais velha. Então, eu creio que é mais assim, pode vir da minha esposa, não tem
uma certa sabedoria na hora de falar, entendeu? É... e falta mais o estudo
mesmo, falta mais o estudo mesmo, porque matemática se treinar não tem como
dar errado, entendeu? E ela não tem dificuldade não.
Como podemos perceber, ele considerava que o tipo de incentivo que dá à filha,
confiando nas suas possibilidades, mostrando o que é capaz de fazer, acompanhando de
perto o que está estudando, orientando para que ela estude mais, cuidando do que não
vai bem e para isso se utilizando de todos os recursos de que poderia dispor, era
suficiente para que ela conseguisse superar os problemas com a matemática e tivesse
um percurso de sucesso na escola. Pensava que o tipo de tratamento que, algumas vezes,
a mãe, em casa e a professora, na escola, davam a ela não contribuía para a segurança
que precisava ter para enfrentar as questões com a disciplina. Esse pai participava
ativamente dos processos pedagógicos daquela sala de aula, tinha seus saberes sobre
eles e os valorizava, tanto que, na medida do possível, tornava-os conhecidos das
professoras. Alguns desses saberes eram sobre os sentimentos que a filha poderia
desenvolver a partir das relações que tinha com os adultos e o que eles diziam sobre ela
e suas aprendizagens. São esses sentimentos de menos valia, de insegurança e de
ansiedade percebidos pelo pai que busco tratar aqui como possíveis micro penalidades
fruto também de possíveis imposições do tempo limite presentes na dinâmica da sala de
aula.
Luiza, os outros alunos do grupo do apoio e porventura outros de que não
falamos aqui têm de lidar dia-a-dia com essas e com outras prescrições desse tempo. E
vale lembrar, como já dito antes, que isso não se restringe aos alunos. Professoras, pais
e mães, outros profissionais da escola também vivem essas prescrições. E como será
para cada um? Como será que experimentam esse confronto dos tempos da vida de fora
e de dentro da escola? A professora que entra numa sala de uma determinada turma,
naquele tempo estipulado e “dá” a sua aula previamente planejada. Depois desse tempo,
essa mesma professora que sai, entra em outra sala, com outros alunos, para “dar”,
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
muitas vezes, a “mesma” aula planejada. E quanto aos alunos? Como devem
experimentar essas incompatibilidades entre o tempo da casa e da vida quando em
oposição ao da escola com as suas regras, suas normas? Como será que vivem os limites
das partições expressas nos tempos das diferentes disciplinas, na relação com as várias e
também diferentes professoras naqueles tempos, nos tempos previstos para a realização
das tarefas e por fim, naquele esperado para a conclusão de suas aprendizagens?
Um dado importante apresentado pelo pai na conversa comigo é o momento em
que ele fala da forma como a Luiza lida com sua vida escolar e suas questões com a
matemática. Conta que, em casa, ela brinca regularmente de “escolinha” com as suas
bonecas e ele fica escutando quando ela “ensina” o que está estudando em ciências, por
exemplo, cuja professora é a mesma que matemática. Percebe que ela tem uma boa
relação com a escola e com as professoras, demonstra gostar do que vive lá, comenta
muitos assuntos das aulas, inclusive as de apoio que tem comigo. Afirma que a menina
não é estressada, que ela se comporta de uma forma bem “light” em relação aos estudos.
E como durante toda a conversa, fez comparações entre as suas duas filhas, ambas
estudantes do colégio, para falar sobre esse aspecto:
Mas ela entende, não nesse estresse, entendeu? É uma
personalidade diferente, enquanto a outra (a irmã), ‘pô’, se estressa
quando tem uma tarefa, ela se estressa ‘pra caramba’, já a Luiza não se
estressa assim, então é uma coisa boa. É, tem uma parte boa, entendeu?
Dizem que os filhos mais velhos são mais conservadores, já os filhos
mais novos, por exemplo, o caçula, é mais light, entendeu? Tem uma
parte que é boa e tem uma parte ruim, para ser gerente de pessoal é bom
não se estressar muito, saber levar ali, mas talvez tenha um lado ruim
também...
Podemos pensar que o que faz o pai é apresentar as suas preocupações e a sua
experiência tanto com a escola, como com o que a Luiza é, seu jeito de ser e de viver na
escola e fora dela. O que me parece é que ela tem uma outra maneira de lidar com esse
tempo sobre o qual estamos refletindo. A sua prática envolve também outros tempos
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
além do tempo limite que junto dela busca uma presença impositiva. Outros tempos que
estão dispersos nas práticas dos sujeitos da sala de aula.
Larrosa (2003) nos apresenta, em um belo texto, uma outra concepção do tempo
do estudo, do estudante, que podemos encontrar também na escola apesar dele não se
referir a ela, que pode não se restringir ao estudante, que pode estar enfim, presente
nessa trama da sala de aula que tentamos compreender.
“O estudante tem tempo. Todo o tempo. Um tempo que é sempre agora.
Um tempo livre, liberado desse transcorrer crônico, feroz, linear,
cumulativo e sempre urgente que escraviza e destrói com as suas rodas
aos que neles vivem. O agora livre do estudante está fora do tempo: fora
do passado e do porvir, fora também da presença do presente, desse
presente que quer ser outra coisa que não um instante que passa e que
incessantemente se dissolve em passado e se abre ao porvir...” (p.17)
Esse também é um tempo quando não vivido, desejado pelos sujeitos das salas
de aula, entre eles os estudantes de quem Larrosa fala. Esses vários tempos compõem
uma textura para o tecido que as práticas cotidianas vão tecendo dia a dia. São fios de
várias cores, de várias espessuras e de várias formações que se encontram, se cruzam, se
afastam, se trançam.
E já que chegou o tempo de terminar...
As situações que essas histórias apresentam permitem pensar sobre as diferentes
ideias, experiências, concepções e práticas do tempo de cada um e do grupo para tecer
possíveis compreensões com as perguntas feitas anteriormente. As crianças puderam
falar sobre isso. Disseram como se sentem envolvidas nesse ou naquele, com esse ou
com aquele tempo das dinâmicas da sala de aula, nas relações que se estabelecem entre
os sujeitos e com os conhecimentos. Da mesma forma o pai, ao relatar como participa
da vida de sua filha na escola e o que sabe sobre essas suas relações. Nos diálogos que
pude ter com as professoras, como professora de apoio e com os alunos, pude perceber
as oportunidades que todos tivemos de saber um pouco mais de nós mesmos, da escola
em relação aos conhecimentos escolares aprendidos e das dimensões do tempo vividas e
Regina Coeli Moura de Macedo
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A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
exigidas nesse cotidiano. Acontece tudo ao mesmo tempo com todos nas redes
cotidianas da escola e da vida (Ferraço, 2004). Alguns desses sujeitos praticantes dessas
salas de aula vivem esse tempo limite sofrendo micro penalidades, como alguns dos
alunos e como a professora de que falei. Contudo, esses mesmos alunos e outros, ou
essa mesma professora e outras vivem esse mesmo tempo de maneiras diferentes dessa.
Luiza vive a vida de casa, da família, e também a da escola “ao mesmo tempo”
quando leva e traz de um lugar para o outro o que faz, pensa, sente e aprende. Ela “dá”
aulas para as suas bonecas, brinca e estuda simultaneamente, mas não que isso faça
parte dos seus planos, simplesmente ela está vivendo a sua vida de criança em interação
com as pessoas e as coisas que estão ao seu redor. Na avaliação do seu pai, ela brinca
até demais! Na escola, ela e todos os outros alunos experimentam o tempo único para a
realização das tarefas, as mudanças de enfoque provocadas pelo entra e sai das várias
professoras e as disciplinas que ensinam. Essas experiências são vividas por todos, mas
cada qual a sua maneira. O que posso pensar é que a Luiza consegue viver de maneira
íntegra, ou seja, sem se partir, as incompatibilidades entre o que se passa na “vida real”
e as prescrições escolares. O que não significa que essas incompatibilidades entre
tempos diferentes são vividas também sem insegurança, tensão e conflito entre ela e o
que é esperado pelos pais, pela professora e até por ela mesma em relação à matemática,
por exemplo. Assim pode ser com os outros alunos, ou não.
A essa reflexão, ajuda acrescentar, para melhor compreender o que pretendo,
Morin (1996) quando trata das sociedades históricas como mistos de coação e de ordem
imposta... e de interações espontâneas (p.113). Essa é uma ideia que ele desenvolve ao
apresentar e defender a necessidade da prática de um pensamento complexo. No
cotidiano das salas de aula, a presença de vários tempos em encontros e desencontros
constituindo, inclusive, os seus sujeitos, pode nos fazer perceber esse misto. Não há
somente uma concepção de tempo que durante todo o tempo e na prática de alguns
sujeitos se coloca como hegemônica, estabelecendo uma só ordem naquela sala de aula.
Há um misto dessa ordem que coage, com as interações espontâneas dos sujeitos que
fazem parte dessa rede. Compreender a complexidade dessas dinâmicas que no
cotidiano captamos com os nossos sentidos é importante porque dessa forma podemos
nos aproximar da potencialidade disso que Morin chama de interações espontâneas e
que nós poderíamos também chamar, como fez Certeau (1994), das astúcias dos
Regina Coeli Moura de Macedo
6886
A Simultaneidade de Tempos nas Redes Cotidianas da Sala de Aula
praticantes no cotidiano, ou seja, as maneiras astuciosas como os sujeitos usam as regras
estabelecidas nos espaços sociais, não nos permitindo, com isso, acorrentar pelas
previsões e determinações da ordem imposta às escolas e à educação.
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Regina Coeli Moura de Macedo
6888
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
POLÍTICAS E PRÁTICAS ESCOLARES: UM
OLHAR SOBRE A CULTURA ESCOLAR CARIOCA
Tatiana Bezerra Fagundes
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
POLÍTICAS E PRÁTICAS ESCOLARES: UM OLHAR SOBRE A CULTURA
ESCOLAR CARIOCA1
Tatiana Bezerra Fagundes
Mestranda (PropEd – UERJ)
RESUMO: Este trabalho objetiva problematizar os pressupostos da aprendizagem que
tem sustentado as atuais políticas educacionais no Rio de Janeiro para dar conta de levar
os alunos ao domínio dos conteúdos escolares. Para isso, discute-se a concepção de
aprendizagem que acompanha a educação escolar brasileira, enfocando a educação
carioca, a partir da década de 70 até os dias. Nesse percurso, percebe-se que se passou
de uma concepção de aprendizagem que tinha suas bases no behaviorismo para aquela
que se sustentava no construtivismo de Piaget e/ou no sócio-interacionismo de aliado
aos estudos sobre os ritmos diferenciados de aprendizagem. Mais adiante, chegou-se a
uma concepção de aprendizagem que focaliza centralmente sua natureza social
revelando a necessidade de se repensar, mais uma vez, as políticas direcionadas a
sustentar as práticas de ensino e aprendizagem em sala de aula. No entanto, as atuais
políticas de educação que estão sendo implementadas no Rio de Janeiro parecem
remontar a década de 70 trazendo para dentro das escolas os pressupostos de
aprendizagem fundamentados no behaviorismo. Em consequência, a pluralidade de
sujeitos aprendizes pode estar sendo negligenciada direcionando o processo de
aprendizagem para um sujeito ideal que não encontra similaridade entre os alunos da
rede de ensino carioca.
PALAVRAS-CHAVE: Práticas Escolares – Cultura Escolar – Políticas Educacionais.
Introdução
A aprendizagem escolar tem sido o principal alvo das atuais políticas voltadas à
educação. No entanto, esta aprendizagem tem valorizado mais os conteúdos escolares,
sobretudo aqueles relacionados ao domínio do código escrito o mais precocemente
possível, do que a aprendizagem que tem a perspectiva de formar o aluno enquanto
1
Este trabalho é orientado pelo Professor Doutor Luiz Antonio Gomes Senna (Programa de PósGraduação em Educação - UERJ).
Tatiana Bezerra Fagundes
6892
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
pessoa, isto é, onde se considerem todos os aspectos do seu desenvolvimento – físicos,
sociais, emocionais, cognitivos e intelectuais (SENNA, 1997).
A expectativa de se encaminhar todos os alunos, no mesmo ritmo a um
aprendizado comum dos conteúdos considerando, principalmente, aspectos relacionados
à idade-série, tem levado as redes públicas de ensino do país, entre elas a do Rio de
Janeiro, a caírem em armadilhas que de alguma forma sempre estiveram presentes na
história da educação brasileira. Entre elas:
“[...] o entendimento da igualdade como produção do uniforme e não como direito à
diferença; a formação docente entendida como aperfeiçoamento, treinamento ou
reciclagem; a busca tecnicista de solução para o problema do baixo rendimento do
ensino público fundamental é médio” (PATTO, 2008, p.35).
Nesse contexto, discutir os pressupostos da aprendizagem e seus possíveis
avanços e recuos faz-se necessário para tentar-se compreender para onde caminha a
educação pública carioca. Este é o objetivo do presente texto.
Do behaviorismo à natureza social da aprendizagem: um olhar sobre as políticas
educacionais e o seu contexto sócio-histórico
Existe na educação pública do país dois grandes marcos históricos
contemporâneos que foram fundamentais para se buscar constituir a chamada escola
para todos2. Eles se referem, respectivamente, a obrigatoriedade do ensino para crianças
com idade entre 7 e 14 anos, lançado pelo dispositivo da lei 5692⁄713 e a consolidação
desta lei alcançada pela universalização do acesso ao ensino quase 30 anos após sua
implantação (OLIVEIRA, 2007).
Esta consolidação foi fomentada pelos estudos realizados no país que mostraram
a disparidade entre o quantitativo de crianças em idade escolar e o número de matrículas
apresentados pelas escolas (BRANDÃO, 1983; FERRARI, 1985; RIBEIRO e
2
No início do século XX no Brasil, a noção de “escola para todos” começou a ser empregada para
salientar a necessidade de mão-de-obra qualificada para industrialização do país (MAGNANELLI, 2008),
mais tarde esta mesma expressão passou a ser usada para chamar atenção à necessidade de a escola ser
uma instituição onde todos os alunos pudessem se desenvolver, respeitadas as singularidades de cada um
(CALDEIRA, 2009).
3
Art. 20. O ensino de 1º grau será obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo aos Municípios promover,
anualmente, o levantamento da população que alcance a idade escolar e proceder à sua chamada para
matrícula.
Tatiana Bezerra Fagundes
6893
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
FLETCHER, 1987; RIBEIRO, 1989) e, mais adiante, por ter tornado evidente a
dificuldade de a escola lidar com um sujeito social estranho ao que se compreendia
como aluno (MOYSÉS, 1989; MOYSÉS; COLLARES, 1992; MATTOS, 1992, 1996;
SOARES, 1994; PATTO, 1999; SENNA; 1998, 2004).
A partir dessa discussão em meados dos anos de 90 a nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9394/96) foi sancionada. A nova LDB, além
de ratificar o ensino fundamental obrigatório, inclusive para aqueles que não tiveram
acesso a ele em idade própria (Art. 4º), deu legalidade às escolas organizarem-se de
diferentes maneiras para dar conta da aprendizagem do aluno (Art. 23) o que não fora
previsto na lei 5692/71 na década de 704.
Nos anos de 70, o panorama educacional era, de um lado, a escola aberta para
todos e, ao mesmo tempo, a dificuldade de as crianças terem acesso a ela. Os que
tinham acesso a escola, por sua vez, saíam dela quase na mesma proporção em que
entravam, ou porque não se enquadravam, ou por não suportarem as sucessivas
repetências a que eram submetidos (PATTO, 1986). Subjacente a estas práticas de
repetência, exclusão e banimento (SENNA, 2008) existia um conceito de aprendizagem,
e é isto que nos interessa neste trabalho, fundamentado na corrente psicológica
behaviorista (comportamentalista) (SKINNER, 1967).
O behaviorismo postula que forças externas ao indivíduo são os determinantes
principais de seu comportamento. A partir desse comportamento é possível verificar e
mensurar a aprendizagem. Dentro de tal visão, o indivíduo é sempre paciente de um
processo que ocorre, à maioria das vezes, à sua revelia. É matéria de ensino apenas o
que é redutível aos conhecimentos que podem ser observados. Os conteúdos de ensino
são as informações, princípios científicos, leis, etc., estabelecidos e ordenados numa
sequência lógica e psicológica (LUCKESI, 1994).
A educação dentro dos moldes behavioristas orientava-se de modo a formular
precisamente os objetivos para a aprendizagem que era aferida a partir da observação do
comportamento do aluno e, sobretudo, pelos escores dos exames escolares
4
Ressalte-se que, antes da nova LDB algumas políticas de educação, tal como o bloco único, permitiram
as escolas organizarem-se de modo diferenciado. No caso do bloco único, isso se deu para que o
afunilamento da 1ª para a 2ª série sofresse um alargamento e permitisse ao aluno dar continuidade a
carreira escolar sem sofrer retenções já nos anos iniciais de escolarização (MATTOS, 2007).
Tatiana Bezerra Fagundes
6894
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
minuciosamente preparados (GAMA; OLIVEIRA, 2005). Os alunos deveriam todos, e
da mesma maneira, alcançar tais objetivos. Aqueles que porventura não os alcançassem,
começaram a ser considerados indivíduos que possuíam algum tipo de anomalia
revelada pelo baixo rendimento nas provas e por seu comportamento inadequado ao
padrão de normalidade que caracterizava o sujeito aluno (PATTO, 1999). É daí que se
origina a prática de avaliar a aprendizagem privilegiando notas em provas e testes e o
comportamento em sala de aula.
A utilização dos pressupostos comportamentalistas na educação brasileira
naquele momento coadunou-se ao regime político então vigente, a ditadura, que
pretendia formar mão-de-obra para o trabalho nas indústrias que se consolidavam
naquele período (PAIVA, 1999). Tanto a minoria que passava com sucesso pela escola
quanto os que saíam dela sem cumprir os anos de escolarização previstos, eram
absorvidos pela indústria e pelo setor de serviços em expansão. A educação escolar,
liberal-tecnicista, organizava-se de forma a privilegiar a aquisição de atitudes e
habilidades que fossem úteis à integração do indivíduo à máquina social.
A escola, sustentada pelo modelo positivo de ciência, tendo o behaviorismo
como modelo psicológico de aprendizagem e o tecnicismo como orientação pedagógica,
não teve dificuldades em promover e justificar o grande número de alunos que eram
expulsos de seu âmbito por uma suposta incapacidade pessoal de se adequar a ela. No
entanto, a inadequação a escola não significava desagregação social, pois mesmo com
poucos anos de vivência escolar os indivíduos conseguiam se inserir formalmente, por
meio do trabalho, na sociedade. Atualmente, “as novas exigências do mundo do
trabalho colocam cada vez mais a escola como única possibilidade de acesso ao restrito
mercado de trabalho dos nossos dias, embora ela não garanta a inserção” (CODO, 1999,
p.67).
Nos anos de 80, com o fim da ditadura e a abertura política, a educação escolar
passa a ser reclamada pela sociedade que se democratiza como um bem público, direito
de todos e dever do Estado. Amplia-se consideravelmente o acesso a escola e a
discussão passa a girar em torno da permanência dos alunos nesse espaço para que, de
fato, se cumpra o seu direito à educação (MATTOS, 1992, 1996, 2002, 2005; SOARES,
1994; PATTO, 1999; SENNA; 1998, 2004; CARVALHO, 2001, 2003; FREITAS,
Tatiana Bezerra Fagundes
6895
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
2004; BARRETTO; SOUSA, 2004, 2005). Nesse mesmo período, os estudos de Jean
Piaget e Lev S. Vygotsky são revisitados e tomam força no campo educacional
brasileiro dando conformação a um novo modelo de aprendizagem que vieram a
fomentar novas práticas de ensino-aprendizagem.
Ao mesmo tempo em que as políticas públicas de educação se voltavam à
correção do fluxo escolar e da defasagem idade-série, o construtivismo de Piaget e o
sócio-interacionsismo de Vygotsky lançavam as bases para o desenvolvimento de tais
políticas. A psicologia piagetiana deu suporte a uma pedagogia centrada na criança 5 e a
de Vygotsky, por sua vez, a uma pedagogia sócio-histórica onde a interação da criança
com o mundo e com os outros são tomados como fatores preponderantes para formação
de conceitos que levam ao conhecimento. A criança, em ambas as teorias, é tomada
como um sujeito ativo na construção do conhecimento. Aliado a isto surgiram os
estudos sobre a diferenciação nos modos de ensino e aprendizagem, através da chamada
Pedagogia Diferenciada6 (MEIRIEU, 1985, 1987) que passaram a ser levados em conta
quando da organização do currículo escolar. Nesse contexto, muitas escolas em
diferentes estados do país passaram a organizar suas séries em ciclos7 a fim de permitir
a criança construir o conhecimento de determinados conteúdos de acordo com seu
próprio ritmo (BARRETTO; SOUSA, 2004).
A possibilidade de a escola organizar-se levando em conta o processo de
aprendizagem encontrou na nova LDB o seu suporte legal:
“A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos
semestrais, ciclos, alternância regular de período de estudos, grupos não-
5
Vale ressaltar que o construtivismo de Piaget não cria um método pedagógico baseado em seus estudos
sobre a natureza do conhecimento humano, diferentemente do Behaviorismo que tem na educação a base
de seu desenvolvimento.
6
A Pedagogia Diferenciada propõe que o professor se abra às demandas de aprendizagem tão diversas
quanto os alunos que compõem a sala de aula, superando assim o ensino tradicional que pretende ensinar
a todos como se fossem um só.
7
Os ciclos “têm recebido denominações diversas, estando, em certa medida, associados a propostas de
promoção automática, avanços progressivos, progressão continuada. Vêm também assumindo conotações
variadas ao longo dos quase quarenta anos em que ocorreram as muitas iniciativas de introduzi-los nas
redes escolares em períodos, lugares e circunstâncias diferentes. Como dizem Barretto e Mitrulis a
propósito deles, cada proposta de governo sobre os ciclos ‘redefiniu o problema à sua maneira, em face da
leitura das urgências da época, do ideário pedagógico dominante e do contexto educacional existente’
(2001, p. 103)” (BARRETO; SOUSA, 2004, p. 33 e 34).
Tatiana Bezerra Fagundes
6896
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por
forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de
aprendizagem assim o recomendar” (BRASIL, Lei 9394/96, art. 23).
As concepções de aprendizagem fundadas no construtivismo e no sóciointeracionismo e entradas nas escolas públicas, seja através da implementação de
políticas específicas que alcançassem toda a rede de ensino ou da formação do professor
que se baseou nestas teorias, foram um progresso nas práticas pedagógicas. O aluno
passou a ser olhado, não como alguém a quem faltava alguma coisa, mas como um
sujeito em processo de desenvolvimento e de construção de conhecimento, que não
acontecia da mesma maneira que com os adultos.
Sustentada pelas teorias da aprendizagem de Piaget e Vygotsky desenvolveu-se
no município do Rio de Janeiro uma proposta curricular que teve como objetivo orientar
as práticas pedagógicas na escola e em sala de aula, qual seja, a Multieducação8. Ela
trouxe para o cenário da educação carioca a possibilidade de trabalhar com os alunos
considerando suas potencialidades e ainda o contexto de mundo em que este aluno se
encontra.
Entretanto, embora a passagem de um modelo de aprendizagem behaviorista
para um modelo construtivista e\ou sócio-interacionista tenham representado um avanço
nas práticas escolares, este modelo não deu conta da aprendizagem de todos os alunos
como era esperado.
Entre outras coisas, a demanda por aprendizagem escolar trouxe à tona novos
debates a respeito do que vem a ser na atualidade a aprendizagem e quais tipos de
sujeitos estão arrolados nos estudos que se desenvolveram a este respeito (SENNA,
2008). Hoje se tem um elemento essencial na compreensão da aprendizagem; a sua
natureza social.
A aprendizagem tomada como fenômeno social traz consigo uma série de fatores
que passam ao largo dos principais meandros de discussão sobre os processos que
envolvem a aquisição de conhecimentos. Aprender envolve, sobretudo, a expectativa
8
Outras informações ver: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Multieducação – Núcleo
Curricular Básico. Rio de Janeiro: SME, 1996.
Tatiana Bezerra Fagundes
6897
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
social de quem está aprendendo e do que está sendo aprendido tangenciada por um
conjunto de valores variáveis (grifo nosso).
De acordo com GoodNow (2000) é possível esboçar quatro proposições que
cada novo membro de um grupo social precisa aprender para ser julgado como membro
competente, maduro ou razoável do grupo:
1. Áreas de conhecimento e habilidade têm um valor social variável (valor
tanto positivo como negativo). 2. Esses valores não são equivalentes para
todas as pessoas: os valores variam de acordo com a pessoa, com a posição
social. 3. Estilos de aprendizagem, pensamento e solução de problemas tem
valor social variável (tanto positivo como negativo). 4. Esses valores não são
equivalentes para todas as pessoas: eles também variam de acordo com a
pessoa ou com a posição social (GOODNOW, 2000, p. 293).
Isso é tão mais verdadeiro quando se coloca em perspectiva o Brasil como país
de uma diversidade cultural e pluralidade de sujeitos das mais complexas (RIBEIRO,
1996).
No Brasil, tem-se um conjunto de “brasis” que faz com que o valor dado a um
tipo de conteúdo a ser aprendido seja tomado como necessário e relevante de acordo
com o contexto no qual se está imerso. Analogamente, pode-se dizer que no Rio de
Janeiro, há um conjunto de “rios de janeiros” — embora participantes de uma mesma
rede complexa — onde a relevância do que é aprendido pode ter um valor que varia
com a conjuntura sócio-cultural.
Se levar-se tal fato em consideração infere-se que, para cada realidade escolar há
que se ter em conta certo grau de adequação entre o que a escola ensina e o que se
apresenta como valor na comunidade na qual ela se insere sob pena de não haver
aprendizagem e sim, quando muito, memorização de conteúdos que serão brevemente
esquecidos.
Tida como fenômeno social, a aprendizagem nos faz ir mais além dos
pressupostos teóricos de Piaget e Vygotsky e fomenta uma prática pedagógica cuja
essência está em pesquisar em cada contexto e com cada aluno as expectativas sociais
que envolvem a aprendizagem de determinado conteúdo. Isto posto, cabem os seguintes
questionamentos: O ensino dos conteúdos escolares deve ser generalizável para todas as
escolas de uma rede de ensino? Quanto da vivência dos alunos deve ser incorporada
pela escola? Será que para o aluno que tem na dinâmica da oralidade a maior expressão
da sua cultura, a cultura escrita tem algum valor para si e para o seu contexto que valha
Tatiana Bezerra Fagundes
6898
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
a pena ser aprendido? Sob quais circunstâncias esse aluno aprende? Essas são questões
que precisam ser (re)pensadas continuamente tendo em conta a pluralidade de sujeitos
sociais que permeiam o espaço escolar.
De volta ao behaviorismo: o modelo avaliativo e alfabetizador no Rio de Janeiro –
um recorte
No município do Rio de Janeiro as atuais políticas de Educação que estão sendo
implementadas parecem retomar os pressupostos de aprendizagem empregados na
década de 70. A aprendizagem escolar volta a ser aferida com base em testes
quantitativamente mensurados. Os alunos são conduzidos ao mesmo processo de
aprendizagem onde se subentende que todos devem aprender o mesmo conteúdo, da
mesma maneira e no mesmo ritmo, cumprindo assim o currículo escolar de acordo com
sua idade-série.
Um exemplo que pode ser revelador das bases behavioristas que tem dado
sustentação à política educacional foi uma avaliação diagnóstica, acompanhada do
remanejamento de alguns alunos para uma nova turma. Esta, formada para atender as
necessidades de apropriação da escrita por esses alunos.
A avaliação diagnóstica encomendada ao Instituto Ayrton Senna teve como
objetivo identificar o analfabetismo funcional9 entre os alunos do 4º, 5º e 6º anos das
escolas da rede municipal de ensino carioca. A partir desta avaliação chegou-se ao
número de 28. 879 analfabetos funcionais10 entre os 211 mil alunos avaliados.
A respeito desses resultados, há que se chamar atenção para o seguinte fato:
28.879 alunos analfabetos funcionais representam quase 14% do total de alunos
avaliados. Isso significa que, de acordo com esta avaliação, 182.121 alunos da rede
estão alfabetizados.
Há que se chamar atenção, ainda, para o fato de que, entre os 28.879, verifica-se
nas escolas crianças que são leitoras proficientes, mas que não foram favorecidas pelo
tipo de avaliação proposta. É possível que se encontre também, entre os alunos tidos
9
É considerada analfabeta funcional a pessoa que sabe ler e escrever, mas não é capaz de interpretar o
que lê e nem fazer uso da leitura e da escrita em atividades cotidianas.
10
“Dados do Provão e do Analfabetismo Funcional”, disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/sme
Acessado em: 24/04/2009.
Tatiana Bezerra Fagundes
6899
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
como alfabetizados, crianças que ainda não tem o domínio considerado adequado do
código escrito 11.
Mediante os resultados desta prova e da observação do professor em sala de aula
quanto ao desempenho do aluno, sobretudo no que diz respeito ao domínio da leitura e
da escrita, formaram-se turmas especiais que estão sendo conhecidas como “Se Liga”12.
Para estas turmas, foram encaminhados os alunos considerados analfabetos funcionais a
fim de que passem por um processo de re-alfabetização.
Entre estes alunos, assim como entre os demais que obtiveram sucesso na prova,
encontra-se uma diversidade ímpar em termos de domínio da lecto-escritura: alunos que
sabem ler; que estão em processo avançado de consolidação da leitura e/ou da escrita;
alunos que leem, mas não escrevem; aqueles que não reconhecem as sílabas, mas leem
as palavras; aqueles que sabem as vogais e algumas palavras, mas não leem sílabas, etc.
Todavia, os professores que assumiram o “Se Liga” foram encaminhados a um curso de
capacitação contratado pela SME e dado pelos profissionais do Instituto Ayrton Senna
onde está previsto um único modelo de alfabetização em que o ponto de partida parece
ser o mesmo para todos os alunos13. Este modelo, segundo as diretrizes do curso,
procede dos estudos de Freire e do método dom Bosco. Sobre a apropriação dos estudos
de Freire e do método dom Bosco cabe algumas considerações.
Para Freire (1986) a alfabetização é muito mais do que mera decodificação de
letras ou sílabas. Ela é a leitura da palavra precedida da leitura de mundo. A experiência
alfabetizadora freiriana está enraizada no contexto de mundo de cada sujeito, donde
derivam palavras geradoras capazes de produzir sentido ao que está sendo lido. Não se
trata de decodificar a palavra “Eva”, mas saber quem é Eva e o lugar que ela ocupa na
realidade. O método de alfabetização dom Bosco, por sua vez, possui bases freirianas e
11
Pesquisadores que se dedicam a estudar a prática avaliativa observam os limites da avaliação do tipo
prova para aferição da aprendizagem (PERRENOUD, 1999; LUCKESI, 1999; HADJI, 2001). Este tipo
de avaliação pode não refletir integralmente o ganho de aprendizagem que um aluno obteve além de
tentar reduzir a apenas um momento, que pode não ser o ideal para o aluno, uma aprendizagem que é
processual e contínua.
12
O “Se Liga” é um projeto do Instituto Ayrton Senna que tem como objetivo alfabetizar crianças com
distorção idade-série no âmbito da educação formal. O projeto “Se Liga” teve início no ano de 2001 e já
atendeu a 403 municípios. Este ano a SME-RJ, em parceria com o Instituto Ayrton Senna implantou o
“Se Liga” nas escolas municipais com a finalidade de alfabetizar os analfabetos funcionais da rede. Para
mais informações ver: http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/br/programas
13
De acordo com as diretrizes do projeto, a alfabetização deve começar com as sílabas TA TE TI TO TU
que devem ser trabalhadas durante uma semana.
Tatiana Bezerra Fagundes
6900
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
tem como objetivo colaborar para que cada alfabetizando aprofunde sua consciência
crítica sobre a realidade e sobre si mesmo (FARIA, 2003). Tanto a perspectiva freiriana
quanto a do método dom Bosco direcionam-se à prática de alfabetização de adultos.
Certamente, a essência problematizadora e política que envolve ambas as obras,
primando pela conscientização dos sujeitos historicamente oprimidos na sociedade,
podem, e devem ser levadas à prática do professor nas salas de aula das escolas
fundamentais. Contudo, transportar os pressupostos freirianos sem um criterioso e
rigoroso aprofundamento sobre o modo como as crianças se apropriam da tecnologia da
escrita seria desconsiderá-las como sujeitos singulares em processo de desenvolvimento
e formação.
Ainda assim, não é este o problema maior quanto a apropriação da obra freiriana
no projeto “Se Liga”. Na realidade, a experiência alfabetizadora de Freire está
nominando equivocadamente um modelo de alfabetização que é justamente o contrário
do pensamento por ele desenvolvido.
O modelo de alfabetização por trás das práticas do “Se liga” é o método da
silabação 14 que tem suas bases teóricas calcadas no behaviorismo e onde está
pressuposto que o mecanismo de aprendizagem que o sujeito possui é a imitação através
da repetição.
Considerando-se a diversidade de sujeitos partícipes da turma “Se Liga” é
possível crer que algumas crianças podem ser beneficiadas por este modelo, mas isso
não garante que todas elas chegarão ao domínio da leitura e da escrita, pois se trata de
um modelo de ensino único que não aventa a possibilidade de tipos diferentes de
sujeitos aprendizes, que é o aluno que tem se apresentado em demanda na sociedade
carioca (SENNA, 2007).
Tanto o tipo de modelo alfabetizador, quanto o tipo de avaliação propostas não
estão levando em conta a pluralidade de sujeitos que permeiam o espaço escolar. Tais
práticas dão encaminhamento a um processo pedagógico que tende a homogeneizar a
aprendizagem e os sujeitos que fazem parte dela. Dessa maneira, o aluno que não se
encaixar no perfil de ensino-aprendizagem proposto pode se tornar alvo dos mais
14
Silabação é o método de acordo com o qual se inicia o ensino da leitura com a apresentação das
famílias silábicas (MORTATTI, 2000).
Tatiana Bezerra Fagundes
6901
Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
variados processos de interdição que justifiquem a sua não aprendizagem escolar 15.
Estão lançadas as bases para exclusão e banimento de um sujeito social que começa na
escola e pode se estender por toda sua vida.
Considerações Finais
A aprendizagem escolar vem sendo acompanhada de pressupostos psicológicos
que dão sustentação a um modelo de mente aprendiz. Esses pressupostos não são
neutros e isentos do contexto sócio-histórico no qual se desenvolvem e, a partir deles,
empregam-se nas escolas diferentes modelos de ensino-aprendizagem.
Dos anos de 70 do século passado até o início deste século, no Brasil,
especificamente no Rio de Janeiro, percebe-se que se atravessou de um modelo de
aprendizagem calcado no behaviorismo (SKINNER, 1967) para outro sustentando nos
pressupostos piagetianos (PIAGET, 1987) e vygotskyanos (VYGOTSKTY, 1993),
aliado aos estudos sobre a Pedagogia Diferenciada (MEIRIEU 1985, 1987) para hoje se
considerar a natureza social da aprendizagem (GOODNOW, 2000).
Este último pressuposto parece ser aquele que mais se aproxima da realidade
plural das escolas brasileiras e cariocas e que possibilita refletir sobre outro tipo de
sujeito aprendiz que não aquele arrolado na cultura cientifica hegemônica. Por outro
lado, a aprendizagem como fenômeno social parece estar se afastando das políticas e
práticas educacionais da atualidade.
O modelo de aprendizagem que está sendo evocado na rede municipal do Rio de
Janeiro possui suas bases calcadas na corrente psicológica behaviorista e pode
representar uma lacuna para que o processo de exclusão e banimento se assevere no
interior das escolas cariocas e faça recair sobre o aluno a responsabilidade por sua não
aprendizagem e sobre os professores a responsabilidade pela má qualidade do ensino.
Nesse contexto, é urgente se (re)pensar os pressupostos da aprendizagem que
tem dado sustentação as políticas e as práticas educacionais e para onde caminha a
educação a partir desses pressupostos.
15
No âmbito da educação, tem-se observado a retomada das justificativas para o fracasso escolar que
recaem sobre o aluno, principalmente aquelas que têm fundo psicológico, tal como os Transtornos de
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Tatiana Bezerra Fagundes
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Políticas e Práticas Escolares: um olhar sobre a cultura escolar carioca
Acreditamos que, para a aprendizagem escolar se efetivar no contexto das
escolas públicas, sobretudo aquela relacionada ao domínio do código escrito, é preciso
uma sólida formação docente inicial e continuada que tenha a perspectiva de buscar em
cada contexto e com cada aluno as expectativas sociais que envolvem sua aprendizagem
(GOODNOW, 2000) considerando a pluralidade de sujeitos aprendizes na escola;
buscar conhecer quem é o sujeito a que se pretende alfabetizar e educar; e, ainda, como
este sujeito aprende (SENNA, 2007). Dessa maneira, pode se tornar possível uma
educação para todos porque ela será, ao mesmo tempo, para cada um.
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