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Alabastro: ISSN 2318-3179
São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014
CONSELHO EDITORIAL
Aldo Fornazieri (FESPSP)
Ana Cristina Passarella Brêtas (UNIFESP)
Carlos Alberto Furtado de Melo (INSPER)
Clarice Cohn (UFSCar)
Cláudio Gonçalves Couto (FGV)
Eliana Asche Cintra Ferreira (FESPSP)
Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP)
Flávio Wolf de Aguiar (USP)
Irene Maria Ferreira Barbosa (FESPSP)
Ivan Russeff (FESPSP)
Marcia Regina Tosta Dias (UNIFESP)
Miguel Wady Chaia (PUC-SP)
Roseli Aparecida Martins Coelho (FESPSP)
Rosemary Segurado (FESPSP/PUC-SP)
Vera Lucia Michalany Chaia (PUC-SP)
Wagner Tadeu Iglecias (USP)
CORPO EDITORIAL
Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
([email protected])
Rafael Balseiro Zin: Mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
PUC/SP ([email protected])
EDITORES ASSISTENTES
Alessandra Felix de Almeida: Mestranda em Ciências Sociais, PUC/SP ([email protected])
Caterina de Castro Rino: Graduada em Sociologia e Política, FESPSP ([email protected])
Evandro Finardi Sabóia: Graduando em Sociologia e Política, FESPSP ([email protected])
Lívia de Souza Lima: Graduanda em Sociologia e Política, FESPSP ([email protected])
Ricardo Vianna: Graduado em Sociologia e Política, FESPSP ([email protected])
Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Política, FESPSP ([email protected])
Thiago Henrique Desenzi: Mestrando em Ciências Humanas e Sociais, UFABC ([email protected])
DIAGRAMAÇÃO
Alessandra Felix de Almeida ([email protected])
A Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo tem por
escopo a publicação científica de artigos acadêmicos. Os artigos são de responsabilidade dos respectivos
autores, não refletindo necessariamente a opinião da Comissão Editorial acerca do conteúdo dos mesmos.
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0 .
ISSN 2318-3179
São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014
Sumário
Nota dos Editores
Nota dos editores
4-5
Rafael de Paula Aguiar Araújo
Rafael Balseiro Zin
Artigos
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo
Experimental
Elaine Alves Barbosa
7 - 23
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
25 - 36
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva
lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
37 - 43
Ensaio
O Estado de exceção: um labirinto entre a ficção e a realidade
Ricardo de Azevedo Cruz Vianna
45 - 48
Relatório da Comissão da Verdade da FESPSP
Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
49 - 55
Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura
política, mobilizações sociais e novas formas de participação política.
Entrevista com Aldo Fornazieri
Rafael Balseiro Zin
Thiago Henrique Desenzi
Lívia de Souza Lima
57 - 69
Nota dos Editores
É com satisfação que oferecemos a vocês, leitores, a mais nova
edição da ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia
e Política de São Paulo. Dando continuidade ao projeto editorial da Revista,
neste número, estão publicadas, a partir de quatro eixos específicos,
reflexões e problematizações baseadas na pluralidade temática e no
incentivo à participação de jovens pesquisadores, que fazem deste
periódico um espaço de comunicação de ideias e de contextos típicos ao
universo das ciências sociais no Brasil.
Abrindo a seção de artigos, Elaine Alves Barbosa apresenta o
trabalho Anarquistas no Brasil, em que desenvolve uma análise sobre o
socialismo experimental, criado por Giovanni Rossi, e que foi implantado
no sul do país, no final do século XIX, através da comunidade Colônia
Cecília. Na sequência, no artigo intitulado Continuidades e rupturas nas
constituições brasileiras, Thiago Henrique Sampaio analisa em que medidas a
Constituição de 1937 foi uma ruptura e/ou continuidade da Constituição
de 1934, visto que ambas foram elaboradas sobre o regime de um mesmo
governante, Getúlio Vargas. Ednilson Esmério Toledo da Silva, por sua
vez, no artigo Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva
lukacsiana, analisa o clássico O cortiço, de Aluísio de Azevedo, tendo como
base o estudo do conceito do Naturalismo, segundo a teoria do pensador
húngaro György Lukács.
Na seção Ensaio, Ricardo de Azevedo Cruz Vianna traz uma
breve reflexão acerca do conceito de Estado de exceção permanente e
os impactos que esta técnica de governo tem sobre os indivíduos na
contemporaneidade. O texto intitulado O Estado de exceção: um labirinto
entre a ficção e a realidade, se inicia por meio da leitura do livro O Processo,
de Franz Kafka, e toma como base teórica os escritos de Giorgio
Agambem, Michel Foucault, bem como alguns textos sobre a construção
da personagem de ficção, teoria do romance e história da literatura alemã.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 4-5.
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A partir desta edição, também, o leitor contará com a mais
nova seção Relatórios da Comissão da Verdade da FESPSP. Trata-se de
uma iniciativa que tem por intuito divulgar os resultados preliminares
que os membros da Comissão da Verdade e Memória da FESPSP têm
alcançado ao longo de seus esforços pela construção do “Nunca mais!”.
Inaugurando esse eixo, portanto, Dyego Pegorario de Oliveira traz a
público o relatório intitulado Crise institucional na FESPSP entre 1983 e
1985. CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política.
Para fechar esta edição, publicamos a entrevista de Rafael Balseiro
Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima, realizada com
Diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo (FESPSP) Aldo Fornazieri, e que leva o título Manifestações populares
no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas
formas de participação política.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Os editores
São Paulo,
maio de 2014
Artigos
Anarquistas no Brasil: a colônia
Cecília de Giovanni Rossi e o
Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
Graduada em História pela Universidade
Bandeirantes de São Paulo; especialista em
História, Sociedade e Cultura – PUC-SP.
E-mail: [email protected]
Resumo
O presente artigo desenvolve a análise sobre o socialismo experimental, criado por
Giovanni Rossi, e implantado no Brasil no final do século XIX, através da comunidade
experimental Colônia Cecília. O breve episódio histórico da Colônia Cecília, criada
na cidade de Palmeira – Paraná em 1890, é o marco inicial da representação do
Anarquismo no Brasil e na América Latina e o primeiro experimento socialista, fato
fortemente ligado à imigração de classes proletárias italianas. A Colônia Cecília não
dispunha de uma organização social, regulamentos ou chefes, levava um cotidiano de
vida comunitária e rude, onde o trabalho era difícil e a comida escassa, o que ocasionava
desentendimentos entre os colonos, acentuando os resquícios de egoísmo da família
tradicional burguesa, que era considerada o maior inimigo da nova vida social em
liberdade anárquica.
Palavras -Chave
Colônia Cecília; Socialismo experimental; Giovanni Rossi; Anarquismo no Brasil.
Abstract
The present paper develops an analysis about the experimental Socialism, created by
Giovanni Rossi, and deployed in Brazil in the late 19th century, by the experimental
community Colônia Cecília. The brief historical episode of the Colônia Cecília, introduced
in the city of Palmeira – Paraná in 1890, is the starting point of the representation of
Anarchism in Brazil and Latin America and the first socialist experiment, which is
strongly linked to the immigration of Italian proletarian classes. Colônia Cecília lacked
a social organization, regulations or leaders, with a rude and communitarian routine,
where the work was hard and food scarce, which caused disagreements between
colonists, accentuating the remains of selfishness of the traditional bourgeois family,
which was considered the greatest enemy of the new social life in anarchic freedom.
Key-words
Colônia Cecília; experimental Socialism; Giovanni Rossi; Anarchism in Brazil.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
1 INTRODUÇÃO
O italiano de Pisa, Giovanni Rossi (18561943), membro de uma família tradicional burguesa,
engenheiro agrônomo e médico veterinário, foi
contemporâneo às mudanças ideológicas e sociais
ocorridas na Europa no final do século XIX,
ocasionadas pelo avanço perverso do capitalismo
decorrente da Revolução Industrial.
Em contato com a confrontação teórica e
política, do Socialismo de Karl Marx ao Anarquismo
de Mikhail Bakunin, proporcionada internamente
na Associação Internacional dos Trabalhadores,
Rossi conceitua a teoria que seria a base para o que
denominou de “socialismo experimental”.
Baseado nos fundamentos do socialismo
experimental, um romance utópico é escrito, tendo
como personagem principal Cecília. O idealista
descreve um lugar imaginário, Poggio al Mare, uma
comunidade socialista organizada anarquicamente
que faria a miséria e o atraso do campesinato italiano
desaparecer.
O socialismo experimental, é implantando
inicialmente em uma fazenda de Cremona, sobre
a criação de uma colônia agrícola, Cittadella,
baseada em princípios libertários atemoriza os
colonos que carregam consigo o individualismo
e o conservadorismo, fato que a faz se tornar
simplesmente uma sociedade coletivista.
A decepção com Cittadella, faz Giovanni
Rossi conceber a ideia de partir para uma das duas
colônias coletivistas fundadas na América do Norte, e
após sugestão de alguns companheiros, decide fundar
uma nova colônia para a experimentação socialista na
América do Sul.
O Brasil enfrentava a transição do governo
monárquico de D. Pedro II para a República dos
militares, além do fim do escravismo para a mão
de obra livre e barata. Esse cenário histórico e
social recebe Giovanni Rossi e os pioneiros para
a implantação da Colônia Cecília (1890-1894), na
cidade de Palmeira – Paraná.
O objetivo deste artigo é descrever o
socialismo experimental de Giovanni Rossi e
a implantação da primeira representação do
Anarquismo no Brasil através da criação da Colônia
Cecília.
2 A ITÁLIA QUE ENVIOU OS
ANARQUISTAS
A história da Colônia Cecília fundada em
1890, por Giovanni Rossi na cidade de Palmeira –
Paraná, é a primeira representação do Anarquismo1
italiano no Brasil e na América Latina e o primeiro
experimentalismo social. Esse fato está fortemente
ligado à imigração de classes proletárias da Itália,
vindas com a promessa de melhores condições de
vida em uma nação recém liberta do escravismo e
posteriormente de uma monarquia.
Giovanni Rossi refletia as preocupações
sociais da Itália e da Europa do final do século
XIX, procurava por métodos anárquicos combater
as explorações capitalistas ao trabalhador braçal,
melhorando as condições de trabalho e disciplinando
de baixo para cima as atividades desenvolvidas
valorizando o indivíduo e sua produção.
A Itália passava pelo processo de unificação
de seu território, que implicava na expulsão do
Império dos Habsburgos, ao qual a maior parte do
norte da Itália pertencia. Essa luta pela unificação foi
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
tardia, com guerras que duraram entre 1859 a 1870,
agregava grupos de trabalhadores urbanos e rurais
além da burguesia nacional a favor da anexação de
cidades, como Veneza e Roma, e a criação de uma
identidade cultural entre o povo italiano.
Os problemas econômicos afetavam
diretamente as classes desprivilegiadas da região sul,
que era agrícola e pobre, muitos migraram para o
norte da Itália, que era modernizada, em busca de
trabalho nas indústrias, ocasionando o esvaziamento
do campo e períodos de escassez, além do aumento
do desemprego nas cidades industriais.
Essas transformações econômicas e políticas,
ocasionadas pelo avanço desenfreado do capitalismo
pelo governo liberal, permitiram, segundo Bogo
(2010, p. 11) “[...] mudanças ideológicas que afetaram
a cultura e os valores éticos e morais também das
classes exploradas”.
Nesse
contexto
de
desigualdades
sociais movimentos ideológicos, de esquerda
como Anarquismo e Socialismo2, promoviam
fundamentação teórica para o debate das mudanças
na sociedade do século XIX. Essas novas doutrinas
sociais e políticas não eram expostas somente no
campo teórico mas sim praticados em congressos,
principalmente
aqueles
conhecidos
como
3
“Internacionais” .
Giovanni Rossi, contemporâneo à esses
fatos, dedica toda sua vida política e grande parte da
produção de seus artigos em prol de um projeto de
vida comunitária. Em 1873, aos 17 anos e ainda como
estudante de veterinária, ingressa em Pisa, na Associação
Internacional dos Trabalhadores onde apresenta uma
detalhada proposta para a fundação de uma Colônia
Socialista na Polinésia, a qual foi arquivada.
Muitos desses artigos e projetos foram
publicados na imprensa italiana, anarquista e
socialista, outros apresentados em associações,
federações e partidos políticos. Essas publicações
e apresentações tinham por objetivo a propaganda
de seu projeto de comunidade, contudo não atrai
simpatizantes nos meios políticos e nem o apoio de
anarquistas e socialistas:
A atividade de Rossi é completamente
marginal no contexto político italiano da época.
De fato, por mais que ele seja exposto, como
todos os membros da Internacional no último
quarto do século XIX, às repressões que
assolavam então a Itália, Giovanni Rossi fica à
margem do grande debate político que divide
socialistas e anarquistas e propõe uma terceira
via, científica esta, para resolver o problema
social, a do “socialismo experimental”. A
posição de Rossi não atrai simpatizantes nos
meios políticos italianos. Nem socialistas, nem
anarquistas o apóiam verdadeiramente, tanto
durante os anos que ele passou na Itália, como
durante a experiência da Cecília. [...] (FELICI,
1998, p. 10)
3 O SOCIALISMO EXPERIMENTAL
Em 1878, sobre o codinome de Cardias,
Giovanni Rossi escreve seu romance utópico, Un
Comune Socialista, no qual procura expor argumentos
para persuasão de uma experiência de vida socialista,
conceituando as bases teóricas de seu socialismo
experimental. Para ele as condições necessárias para
uma nova sociedade são resumidas em: “anarchia
nelle relazioni sociali; amore nella famiglia; proprietá
colletiva dei capitali; distribuzione gratuita dei
prodotti nell’ assettamento economico; negazzione di
Dio in religione”4.
Giovanni Rossi na apresentação do seu
socialismo experimental, discorre sobre cada
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
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conceito, que constituem os pilares de sua doutrina,
em suas teses junto às utopias e experiências de uma
nova vida social durante toda sua trajetória e tendo
sempre como meta diminuir os males e aumentar
os bens sociais, através do reencontro dos meios
públicos e adequados.
A Anarquia é para Rossi (1878, p. 6) “ [...] a
verdadeira liberdade, a liberdade plena, completa,
[...]” do indivíduo, que acabaria com qualquer tipo
de autoridade através da manifestação da vontade
individual de cada um na coletividade. Essa verdadeira
liberdade colocaria um fim ao poder burguês e
implantaria a destruição do Estado, desta forma a
individualidade humana estaria definitivamente livre e
anarquicamente associada.
A instituição familiar tradicional, segundo
Rossi (1878, p. 8) “é o grande viveiro de egoísmo,
onde o instinto de propriedade individual renascia
por amor paterno”. O vínculo matrimonial através de
interesses, compromissos e libidinagem são “casos de
pura prostituição”.
O amor para Rossi (1878, p. 10) deve ser “o
único vínculo que una a mulher ao homem e que,
cessado este, a união seja considerada como uma
torpeza moral”. O amor livre entre dois ou mais
homens com uma mulher, o casamento poliândrico,
é defendido como fonte de honestidade e dignidade,
sendo natural do ser humano “querer bem, ao mesmo
tempo, a várias” pessoas. O adultério é para ele a
“forma de amor livre menos digna”, hipocritamente
tido como comum na sociedade familiar burguesa.
A propriedade privada e o direito à herança
são instrumentos de usurpação, a propriedade
coletiva é a única capaz de oferecer a justiça social.
O patrimônio social foi criado por gerações passadas
e não deve ser dividido, pois é entendido como o
direito da humanidade, e como ente coletivo.
A religião é classificada por Rossi (1878, p.
12) como “falsa e oportunista, [...] e que a ciência
positiva combate a ideia de deus”, estabelecendo
dessa forma as raízes anárquicas. Essa negação
atingiria a “inovação social, econômica e política”
no seio da coletividade que teria toda “liberdade do
pensamento” antes de tudo.
Giovanni Rossi, desta maneira expõe
minuciosamente o seu “socialismo experimental”,
acredita que o seu dever é o de “conclamar a
humanidade inteira” e derrubar o obstáculo, que são
os burgueses “presunçosos, irascíveis e intolerantes”,
para tomar o mais rapidamente possível a “iniciativa
da Revolução Social, que da face da terra fará
desaparecer tanta desventura, conduzindo-vos à paz,
ao bem estar, à igualdade e à liberdade”. (ROSSI,
1878, p. 13)
4 POGGIO AL MARE
Após a introdução para o seu socialismo
experimental, em Un Comune Socialista, Rossi se dedica
a descrever um lugar imaginário localizado no litoral
do Mar Tirreno, onde Cardias teria chegado em
Poggio al Mare, que é narrado como uma comunidade
socialista e organizada anarquicamente recém saída
dos princípios burgueses e transformada sob a
vigência de uma vida socialista libertária, no qual a
liberdade individual era preservada, o lucro abolido e
o modo de vida confortável, alegre, saudável e digno,
ambiente que faria a miséria e o atraso do campesinato
italiano do final do século XIX desaparecer.
Essa organização anárquica foi montada
com base na constituição de Associações de Artes
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
e Ofícios (guilda), cabendo aos trabalhadores
escolherem livremente a atividade mais adequada
ao seu ofício e associação profissional que desejam
integrar. Cada associação reúne seus membros e
proporciona discussões sobre assuntos concernentes
à suas atividades, que são avaliadas em assembleia
geral.
O trabalho em Poggio al Mare, é igual para
todos e cada associação distribui sob custódia a
infra-estrutura necessária para a execução de suas
atividades, como terrenos, animais e instrumentos
para lavradores, oficinas e lojas para tecelões.
Todos os trabalhadores podem exercer outras
atividades que pertencem as diferentes associações,
como L´Associazione degli sterratori (Associação de
escavadores) e l´Associazione dei mattonai (Associação
de moleiros).
Não há moeda corrente circulando na
comunidade de Poggio al Mare, sua produção interna
é consumida e apenas o excedente vendido para
o exterior, a receita adquirida custearia despesas
que a comunidade necessitasse, como produtos,
ferramentas, matérias primas, serviços contratados,
entre outros.
O desenvolvimento utópico de Rossi cria um
novo mundo onde os indivíduos, após absorverem
os princípios anarco-comunistas5, tornam a si
virtuosos de bondade deixando a criminalização e a
marginalização social desaparecer. O sonho igualitário
moral e social sobrepõem-se aos desejos de riquezas,
causador das desigualdades, todos devem ter à sua
disposição meios para desenvolver gosto pelas artes
e literatura, além do conforto material usufruído pela
classe burguesa.
Un Comune Socialista é encerrado através de um
sonho que Cardias relata para a personagem principal,
Cecília, sobre uma Itália socialista organizada em toda
sua extensão territorial:
Aquela noite sonhei a Itália organizada sob o
Socialismo. Nas suas oito mil comunas, nas
suas centenas de cidades. No dia seguinte
contei o sonho a Cecília.
- Escreva-o me disse.
- Para que? Respondi-lhe.
“Escrever, minha querida,
É um ócio cansativo” (V. Goethe, Gòetz di
Berlichingen).
- Tenho a convicção de vê-lo realizado.
(ROSSI, 1878, p. 83)
5 CITTADELLA
Giuseppe Mori, então membro do
Parlamento Nacional da Itália e esquerdista crítico
com as questões sociais dos italianos proletários,
estudava a possibilidade de transformar sua fazenda,
localizada em Stagno Lombardio – Cremona, em uma
cooperativa de camponeses com a criação de uma
colônia agrícola. O encontro com Giovanni Rossi
acontece em meados de 1886, onde ambos iniciam
discussões para a instalação de uma colônia anacosocialista.
Rossi acreditava que as cooperativas de
trabalhadores eram instituições de passagens e a
criação de uma colônia agrícola cooperativista atuaria
como uma etapa preparatória para uma colônia
anaco-socialista:
[...] as cooperativas de trabalhadores eram por
ele aceitas como instituições de passagem,
distantes das
clássicas organizações
burguesas capitalistas e mais próximas das
concepções socialistas. Entendia Rossi que
os trabalhadores, em regime de cooperação,
seriam mais facilmente doutrinados para a
aceitação dos princípios anarco-socialistas.
[...] ( MELLO NETO, 1998, p. 79)
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
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Em 11 de novembro de 1887, é instalada
a assembleia geral para discussão e aprovação
do Estatuto Orgânico da Associação Agrícola
Cooperativa de Cittadella, esse estatuto, de princípios
libertários, assusta os colonos, que, apesar de todos
os esforços de convencimento das vantagens de
uma vida ácrata, resistem gerando modificações que
a tornaram simplesmente uma sociedade coletivista
que não serviria, mais tarde com sua extinção dois
anos depois, como exemplo de vida socialista.
Decepcionado, de certa forma com Cittadella,
Rossi em 1888, empenha-se em constituir na Província
de Parma a Unione Lavoratrice per la colonizzozione
sociale in Italia, com o propósito de colonizar terras
e organizar socialmente a propriedade, o trabalho
e o convívio dentro de uma colônia experimental
que substituiria o regime assalariado. Em um
pequeno povoado de Torricella trabalhadores rurais
explorados, incluindo mulheres e crianças, aderem aos
princípios socialistas e formam uma associação, esses
trabalhadores expulsos pelos antigos exploradores,
uniram-se em um pequeno núcleo habitacional que
além de moradia, servia como sede social e abrigo
para armazenamento de alimentos.
Em acordo com Mori, Rossi volta a Cittadella
com os trabalhadores rurais de Torricella, tendo a
intenção de criar um núcleo socialista e atrair maior
número de cooperados para adaptarem-se à vida
solidária com a extinção da propriedade privada,
socializando o trabalho e a convivência. Rossi e
Mori tentaram mais uma vez eliminar todo o resíduo
individualista e conservador que prevaleceu na
associação cooperativista, encontrando novamente
forte resistência dos membros. Pressionado Rossi
se afasta de Cittadella e Mori propõe a dissolução da
associação, fato que não há indícios da data precisa
de seu fim. Rossi considerou esse fato como um dos
piores momentos na tentativa de implantação do seu
socialismo experimental:
A tentativa do núcleo socialista não foi
bem recebida pelos demais membros
da cooperativa. É o próprio Rossi quem
relata: “O pior foi que os bons habitantes
de Cittadella, que em geral moravam ali há
muitos anos, suspeitavam que se quisesse,
gradualmente, eliminar a todos, substituindoos depois por elementos socialistas. Como
me consideravam o incitador de Mori e
como quando não se pode golpear o cavalo
se golpeia a sela, dirigiram contra mim uma
luta unida e injusta que eu, em minha vida,
jamais favorecido pela sorte, nunca passei
por período tão penoso”. (MELLO NETO,
1998, p. 88)
6 O EMBARQUE PARA O NOVO
MUNDO
Após a decepção com Cittadella, Giovanni
Rossi cogita ir para uma das duas colônias coletivistas
fundadas recentemente na América do Norte,
Kaweah na Califórnia e Sinaloa no México. Achille
Dondelli e outros companheiros sugerem a fundação
de uma nova colônia na América do Sul, em um
primeiro ensaio o Uruguai seria o destino para a nova
experimentação socialista:
Quando ele considera a possibilidade de
partir para o Novo Mundo, não é no Brasil
que Giovanni Rossi pensa em se transferir
em um primeiro momento: em dezembro
de 1889, ele anuncia em L’Eco del Popolo,
de Cremona, que pretende partir para o
Uruguai. Alessandro Cerchiai afirma que
“ele foi impedido pela eterna revolução entre
‘Blancos y Colorados’’’. (FELICI, 1998, p.12)
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
Um grupo de pioneiros é criado e apenas
alguns interessados partem na frente para escolha
do melhor lugar adaptável para o seguimento do
sonho utópico de Poggio al Mare e implantação de
uma vida socialista livre de autoritarismos e injustiças
sociais, diferente de Cittadella, ao qual Rossi (1891, p.
86) a definia como “uma prova imperfeita que não
correspondeu às minhas esperanças”.
Amigos
e
simpatizantes
ajudam
financeiramente o novo projeto, facilitando a viagem
e auxiliando a instalação da nova colônia socialista,
que até aquele momento seria no Uruguai:
Pois bem, em começo de 1890, ficou
estabelecido que uns poucos pioneiros iriam
para a América do Sul com a finalidade de
escolher o lugar adequado para fundar a
colônia socialista; os outros companheiros
nos alcançariam conforme as notícias que
enviássemos. Não havia, e nem queríamos
que houvesse, um programa organizacional
preestabelecido. Procuraríamos, por via
experimental, uma forma de convivência
social que respondesse da melhor maneira
possível às nossas aspirações de liberdade e
de justiça. [...] (ROSSI, 2000, p. 22)
No dia 20 de de fevereiro de 1890, iniciam
a travessia intercontinental com destino ao Brasil,
Giovanni Rossi e os pioneiros: Cattina e Achille
Dondelli, Evangelista Benedetti, Lorenzo Arrighini
e Giacomo Zanetti, partindo do porto de Gênova
no Città di Roma, um navio mercante adaptado para
transporte de passageiros, chegando após dezoito
dias de viagem à baía do Rio de Janeiro.
Rossi e os pioneiros são abrigados no
alojamento dos imigrantes, a Hospedaria da Ilha
das Flores, e após uma semana partem em direção a
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, mas devido ao mal
estar de alguns membros decidem finalizar o percurso
no porto de Paranaguá, Paraná, iniciando a busca de
terras para a fundação da colônia de experimentação
socialista:
Nós deveríamos ir a Porto Alegre, mas
dois dos nossos companheiros sofriam de
tal maneira do mal de mar que decidimos
poupar-lhes os outros cinco ou seis dias de
navegação e descer aqui, para fundar a nossa
colônia socialista em alguma parte do Paraná,
que sabíamos com clima ameno e saudável.
(ROSSI, 2000, p. 29)
Na Inspetoria de Terras e Colonização, os
pioneiros conhecem as terras disponíveis do estado
para colonização, Giovanni Rossi e Evangelista
Benedetti se encaminham para reconhecimento do
terreno no distrito de São Mateus, e após dois dias
de viagem decidem ocupar a “jovem cidadezinha de
Palmeira”6, localizada a 100 Km de Curitiba.
A cidade de Palmeira foi escolhida mais pelas
circunstâncias do que pela vontade dos pioneiros, as
condições naturais favoráveis do terreno e o preço
baixo do hectare de terra, entre 10 e 20 libras italianas,
foram aspectos determinantes para a instalação do
grupo.
7 O BRASIL QUE RECEBEU OS
ANARQUISTAS
O Brasil na segunda metade do século XIX,
governado pelo Imperador D. Pedro II7 (1840-1889),
o mais longo da história brasileira, enfrentava os
desafios estabelecidos pelo capitalismo industrial e
financeiro para estabelecer sua soberania política e
econômica.
A economia impulsionada pela exportação do
café, que era desenvolvida principalmente na região
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais),
alimentava a ganância dos grandes proprietários
rurais, que passaram a utilizar em grande escala a mão
de obra escrava. Nesse período uma nova classe social
surge no Brasil, os barões de café do Vale do Paraíba e
d’Oeste paulista, que sustentavam o governo imperial
e possuíam grande influência política.
A elite do café, e toda influência política que
exercia no Imperador, resistia em cessar o tráfico
negreiro, que somente em 4 de setembro de 1850,
após coação da Inglaterra e sobre ameaças de uma
guerra de extermínio, oficializou a Lei Eusébio de
Queirós que eliminou o tráfico de escravos no Brasil.
Após vinte anos da extinção do tráfico de escravos, a
Lei Áurea foi promulgada e a escravidão extinta.
O fim do tráfico negreiro, fez com que a
elite buscasse uma solução para suprir a mão de obra
escrava, encontrando na imigração de colonos vindos
da Europa uma alternativa. Em princípio, foi adotada
a “colônia de parceria”, onde o fazendeiro “repartia”
o dinheiro da venda do café com os colonos, porém
essa experiência não foi bem sucedida, pois a dívida
adquirida pelos colonos, com o preço da passagem,
paga pelo fazendeiro, além de despesas com
alimentação, acrescida de juros, nunca poderia ser
paga. Na verdade, a “parceria” se resumia no antigo
escravismo por dívida, o que gerou revolta entre os
colonos enganados.
A elite também procurou dificultar o acesso
à terra para indivíduos com poucos recursos e dessa
forma forçar a servidão e exploração da mão de
obra dos desprivilegiados. A imigração europeia só
se tornou uma solução definitiva quando o governo
da província de São Paulo assumiu os encargos e
desonerou os fazendeiros.
Em 1888, a imigração já era maciça com
a vinda de aproximadamente 93 mil colonos. O
regime de trabalho era o colonato, onde cada família
recebia um pagamento fixo no trato do cafezal, um
pagamento variável, conforme a colheita e a produção
direta de alimentos:
O colonato veio substituir a experiência
fracassada da parceria. Os colonos, ou seja,
a família de trabalhadores imigrantes, se
responsabilizavam pelo trato do cafezal e
pela colheita, recebendo basicamente dois
pagamentos em dinheiro: um anual, pelo
trato de tantos mil pés de café, e outro por
ocasião da colheita. Este último pagamento
variava de acordo com o resultado da
tarefa, em termos de quantidade colhida.
O fazendeiro fornecia moradia e cedia
pequenas parcelas de terra onde os colonos
podiam produzir gêneros alimentícios. [...]
(FAUSTO, 2001, p. 159)
Os desentendimentos diplomáticos com a
Inglaterra, Questão Christie (1861), e conflitos militares
com os vizinhos sul-americanos, Guerra contra Oribe e
Rosas (1851), Guerra contra Aguirre (1864) e a Guerra
do Paraguai (1865-1870), abalam os fundamentos
do Império, a escravidão, e levam a monarquia ao
declínio, que perde o apoio dos escravocratas e da
elite latifundiária.
As críticas contra a escravidão introduziram os
ideais republicanos, que se propagaram rapidamente,
intensificando a conspiração comandada pelo
marechal Deodoro da Fonseca, e no dia 15 de
novembro de 1889, proclama a República. Sem o
apoio das elites latifundiárias, a família real é exilada
para a Europa e no Brasil se institui o Governo
Provisório (1889-1894), composto por membros
do Exército, das oligarquias e das classes médias,
e tinha como principais metas: a consolidação da
República federativa, aprovação de uma Constituição8
e reformas administrativas.
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8 A COMUNIDADE ANARQUISTA
EXPERIMENTAL
Aos primeiros dias de abril de 1890, a Colônia
Cecília inicia sua história e seu experimentalismo
socialista em terras onde o clima era ameno e os
campos contornados por matas. Em uma casinha
de madeira abandonada os pioneiros a fazem de
moradia coletiva, montando camas de capim seco e
madeiras, improvisam um fogão à lenha e com tiros
de espingarda arranjavam algo para comer, desta
forma ela nasce:
A Colônia Cecília nascia pobre, sem
assistência, sem discursos, sem aplausos;
seu idealizador, muito provavelmente, fez
desfilar em pensamento todas as etapas
vividas, desde Poggio al Mare, criada com
todo o vigor de sua adolescência idealística,
passando pelas lutas enfrentadas dentro
das próprias associações partidárias a que
pertencia, pelas incompreensões e injustiças
partidas de autoridades públicas, pela
lembrança do intenso trabalho jornalístico
e doutrinário exercido durante anos e
sempre voltado para o mesmo objetivo, pela
experiência de Cittadella e de seu núcleo
socialista, considerada como incompleta,
pela arregimentação em Torricella de Sissa,
que não passou de um projeto, enfim, por
toda uma existência dedicada a um único
ideal: provar na prática a exequibilidade de
suas teorias. [...] O monólogo ruminado
intimamente na solidão da noite deveria
conter lembranças da organização proposta
em Poggio al Mare, comparando-a com
a disposição definida às vésperas do
embarque: “Não tínhamos, nem queríamos
ter, programa estabelecido de organização.
Procuraríamos,
experimentalmente,
uma forma de convivência social que
correspondesse da melhor maneira possível
às nossas aspirações de liberdade e de
justiça”. (MELLO NETO, 1998, p. 137-138)
Nos primeiros seis meses da Colônia Cecília,
uma nova casa foi construída, além de uns poucos
móveis para o provimento e uma cozinha coletiva,
formaram uma pequena horta com vinhas, feijão
e batatas. O trabalho desenvolvido nesse período é
bastante significativo, pois a maioria dos pioneiros
não possuíam experiências nessas atividades e alguns
não se adaptavam à trabalhos pesados e outros
poucos não tinham a mínima vontade de trabalhar.
A colônia não dispunha de uma organização social,
regulamentos ou chefes e as decisões eram tomadas
de comum acordo.
Na edição de 1891, de Un Comune Socialista,
Giovanni Rossi consagra a viagem dos pioneiros,
se referindo com entusiasmo aos problemas
administrativos e aspectos negativos do cotidiano
da Colônia Cecília. A vida levada na comunidade é
rude, o trabalho é difícil, a comida escassa, porém
a vida comunitária, apesar de alguns “incidentes
desagradáveis” desenvolve-se de maneira satisfatória
“sem regulamentos e nem chefes”. A edição desse
texto serve para sua campanha de propaganda e
recrutamento:
A publicação desse texto é um elemento da
campanha de propaganda à qual se dedica
Rossi no fim de 1890, quando ele volta para
a Itália. Ele desembarca em Gênova, [...] com
a intenção de recrutar colonos novamente,
uma vez que as cinquenta famílias que
haviam prometido alcançar os pioneiros em
julho de 1890 não mantiveram a palavra.
Pleno de detalhes concretos sobre o local que
acolhe sua colônia experimental, da qual ele
compartilhou a vida de abril a setembro ou
outubro de 1890, Giovanni Rossi põe todo
o seu esforço para obter apoio e recrutar
novos colonos nas cidades que ele atravessa.
[...] (FELICI, 1998, p. 17)
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Os novos colonos recrutados por Rossi,
chegam ao Brasil no início de 1891, totalizando 35
famílias e alguns solteiros vindos das cidades de Pisa,
Cecina, Livorno, La Spezia, Turim, Brescia, Gênova,
Florença, Poggibonsi, La Spezia e Milão. Francesco e
Argia Gattai, os avós paternos da escritora brasileira
Zélia Gattai, estavam à bordo do navio que embarcou
no dia 10 de março de 1891.
No livro Anarquistas, Graças a Deus, Zélia
Gattai (1916-2008), nos relata de forma detalhada,
sutil e comovente a viagem de seus avós com cinco
filhos rumo à Colônia Cecília. Os capítulos dedicados
ao testemunho oral de seus antecedentes, nos narra
o entusiamo pela mudança de vida dos colonos à
caminho de uma terra desconhecida, a difícil e longa
viagem no porão do navio, a tragédia que assolou sua
família, com a morte da filha caçula Hiena Gattai, e a
chegada na colônia:
9
[...] No porão do “Città di Roma”, junto
às caldeiras, viram-se amontoados os
pioneiros que, em breve, estariam integrando
uma comunidade de princípios puros: a
“Colônia Cecília”. Iam cheios de esperanças,
suportariam corajosamente as condições
infames da viagem. [...] Com o correr dos
dias a situação dos Gattai foi se agravando:
grudada aos peitos da mãe, ora num, ora
noutro, Hiena só os largava para reclamar,
chorando desesperadamente. Onde estariam
aquelas tetas fartas, transbordantes? Elas iam
diminuindo, murchando, cada vez menos a
quantidade de leite para saciar sua fome. [...]
Um médico do grupo chegou-se, aproximouse e sem examinar a criança diagnosticou:
fome.
[...] Num carroção de quatro rodas, com suas
trouxas de roupa e alguns pertences, passou
a família Gattai por Santa Bárbara: marido,
mulher e quatro filhos. [...] Ao alto de uma
colina, por entre os pinheirais, divisava-se,
hasteada ao alto de uma palmeira, enorme
bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da
“Colônia Cecília”, saudando a chegada dos
novos pioneiros.
Ao divisar a bandeira da “Colônia”, nono
Gattai olhou mais alto e exclamou: “Lá
estão eles!” Ali estava o acampamento: um
grande barracão erguido junto a um córrego,
pequenas barracas em construção, homens
movimentando-se para cima e para baixo,
um pedaço de terra já limpa para o cultivo
ao lado de um pequeno bosque. Nona
Argía voltou a cabeça em direção ao dedo
estirado do marido. Seus olhos distantes não
divisaram nada. Sua alegria, sua esperança,
seu entusiasmo ainda permanecia lá longe,
enterrados ao lado do corpinho da filha. [...]
(GATTAI, 1985, p.154-157)
A população da Colônia Cecília atinge em
1891, entre 150 a 200 colonos, fato tido para Rossi
como desastroso, pois a maioria eram operários
da indústria que não possuíam habilidades para o
trabalho rude como eram habituados os pioneiros.
Nesse período a colônia enfrenta seu pior momento:
a miséria se instala e torna a vida comunitária
insuportável. Desentendimentos entres os colonos
se acentuam e os resquícios de egoísmo burguês de
algumas famílias são explícitos, onde parentes eram
favorecidos quanto às refeições enquanto outros
jejuavam:
De janeiro a junho de 1891, a Cecília
recebeu uma população acima de sua
capacidade. A ausência de Rossi foi sentida.
Enquanto propagava suas ideias na Itália e
arregimentava novos adeptos, muitos dos que
aqui chegavam, rapidamente se desiludiam
e contribuíram para o desfalecimento
da experiência. Os desentendimentos se
multiplicavam. A sua população, que já
ultrapassava o número de 200 pessoas,
reagia ao desconforto dos alojamentos
e à carência de viveres. Sem o ideólogo,
sem o doutrinador, eram esquecidos ou
simplesmente afastados os princípios
libertários. Alguns grupos tentaram impor-
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
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se e decretavam ordens; outros recusavam-se
a exercer tarefas simples e rotineiras, porém
essenciais. (MELLO NETO, 1998, p. 153154)
A Colônia Cecília encerra sua primeira
fase com desentendimentos internos, sete famílias
abandonam a experimentação, com o propósito de
reconstruírem uma nova colônia com elementos
melhores, dentre elas duas que se estabeleceram com
os pioneiros, e que ao se retirarem levaram consigo
o pouco que ainda restava das economias, além de
animais que foram repartidos entre eles.
A primeira crise da colônia não aconteceu
por causa da miséria, mas sim dos sucessivos erros
cometidos pelos colonos, aos quais todos se diziam
anarquistas, porém, segundo Rossi (2000, p. 68)
“naquele período a anarquia era mal compreendida
e foi intelectualmente prostituída”. Em carta enviada
aos seus familiares em outubro de 1891, Rossi relata:
[...] Não é verdade que a crise tenha
acontecido por causa da miséria, porque,
uma vez pagas todas as dívidas, as contas
ficaram equilibradas, sem falar dos animais
de criação (do valor de mil liras mais ou
menos), dos quais se é abusivamente, mas
legalmente, apropriado o grupo das primeiras
famílias que chegaram no local. É verdade
que a família Dondelli se havia imposto e
fazia a lei, mas as pessoas de Cecina, assim
como as outras, ao invés de eliminá-la, a
idolatravam. É verdade que alguns comeram
até a barriga estourar e fizeram provisões de
alimentos por dois ou três dias.[...] É verdade
que, nos últimos dias, a fome tinha se feito
sentir novamente, mas não porque os meios
faltavam, e sim porque o indispensável
Dondelli não tomava providências a tempo
de fazer as compras, porque as chuvas
haviam estragado o moinho e porque as
mulheres se recusavam a limpar os utensílios
de cozinha e os homens se recusavam a levar
a água para a polenta. É bem a prova que a
culpa foi dos colonos e não da Colônia. [...]
(FELICI, 1998, p. 21 apud ROSSI, 1891)
O renascimento da Cecília, logo após a
crise, se deu graças ao idealismo e coragem dos
jovens: Cini Egisto (Egizio), Giuseppe Zerla, Jean
Géléas, Giuseppe Maderna, Antonio Massa, Luigi
Silano e Jean Saint-Pierre, que com entusiasmo
reorganizaram a colônia experimental. Restaurando
a Anarquia, corrigiram os erros vividos, derrubaram
o parlamentarismo e a ditadura, o grupo se
torna “absolutamente inorganizado”, sem regras,
pactos, cargos sociais, horários ou regulamento,
as qualificações de diretor, dono ou feitor, “que na
sociedade burguesa são cobiçadas, eram apelidos
injuriosos que todos buscavam não merecer”.
(ROSSI, 2000, p. 68). Logo juntaram-se aos jovens
quatro famílias da dissolvida colônia e Giovanni Rossi
que retorna da Itália em julho do mesmo ano.
A Colônia Cecília, no decorrer dos próximos
quatro meses após sua restauração, conta com uma
população estimada entre 20 ou 30 colonos e somente
Giovanni Rossi resta do primeiro grupo de pioneiros
de 1890. O repovoamento da colônia se inicia em
novembro de 1891, com a chegada de dois grupos de
camponeses vindos da província de Parma:
Em novembro de 1891, chegaram, em
dois grupos sucessivos, várias famílias de
camponeses. O primeiro grupo, instigado
por ex- colonos, um pouco assustado
com a vivacidade dos anarquistas e,
fundamentalmente, atraído pela esperança
da propriedade individual, permaneceu
poucos dias na colônia, transferindo-se em
seguida para outra região, onde cada família
se assentava por conta própria. O segundo
grupo, que chegou uns dias depois, ficou
e deu um grande impulso aos trabalhos
agrícolas. (ROSSI, 2000, p. 70)
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Com o fim do ano a Colônia Cecília alcança
seu segundo ano de criação enfrentando dificuldades,
muitas das quais sufocaram os princípios do
socialismo experimental que a fizera nascer. A luta dos
colonos pela sobrevivência, em muitos momentos,
sobrepuseram o ideal de Anarquia, o que resultou na
continuidade da família monogâmica tradicional, que
preservara comportamentos burgueses contrapondo
o ideal de “amor livre” defendido por Rossi.
As condições materiais da Cecília não
melhoram no inicio do ano, apesar de todos os
esforços dos camponeses, e nos primeiros dias de
1892, uma turma numerosa trabalha na estrada
de ferro do Paraná para suprir as necessidades do
cotidiano da colônia. Até o próprio Rossi começa
a exercer o ofício de veterinário e magistério
remunerados na cidade de Castro. Essa nova crise
instaurada resulta no abandono de novas famílias,
estima-se que entre abril e maio não havia mais que
40 pessoas na colônia, nesse momento é retomado
os esforços de propaganda para a vinda de novos
colonos com a publicação de uma série de novos
artigos nos jornais: Critica Sociale, Verona del Popolo e
La Révolte.
Um episódio de roubo envolvendo colonos
que partiram da Cecília em 1891, compromete a
boa reputação que a colônia tinha, diminuindo desta
forma a simpatia e o respeito que tinham com as
autoridades brasileiras, após esse fato os colonos da
Cecília são tratados como subversivos e provocadores
de motim, sendo acusados de “serem os incitadores
de uma sublevação de colonos poloneses e italianos
da região de Palmeira, que não receberam o dinheiro
que lhe era devido há meses”. (FELICI, 1998, p. 26)
9 UM AMOR ANARQUISTA
No final do ano de 1892, a Colônia Cecília
recebe novas famílias de colonos, totalizando 64
pessoas, nesse novo grupo estavam o casal Elèda
(Adele) e Annibale. Giovanni Rossi havia conhecido
Elèda no ano anterior em uma conferência pública
em Curitiba, na qual expusera idéias sobre o “amor
livre”. Entrevistando-a posteriormente, Elèda se
demonstrou interessada em participar da implantação
do amor livre no experimento de Rossi:
[...]Em novembro de 1892, uma jovem
mulher, que Rossi havia encontrado em uma
conferência que ele realizou em Curitiba,
Adele/Elèda, chega na Cecília com seu
companheiro Annibale.
Entre Rossi e esta jovem mulher, sempre
evocada em termos muito elogiosos,
nasce logo uma grande simpatia recíproca.
Annibale, que é consultado, deixa Elèda se
juntar à Cardias na sua casinha. Não é sem
choros, nem sofrimentos que se estabelece
essa “família poliândrica”. [...] (FELICI,
1998, p. 29)
Rossi, novamente sobre o codinome de
Cardias em 1893, publica: Cecilia, comunità anarchica
sperimentale, com uma segunda parte, Un Episodio
d’Amore nella Colonia Cecilia, dedicado à experiência de
“amor livre”, onde são estudados os comportamentos
das três pessoas envolvidas na fixação da família
poliândrica: Annibale, Elèda e o próprio Rossi.
A notícia sobre o episódio de “amor livre”,
nas palavras de Rossi (2000, p. 97) foi “recebida com
um sentimento de grata surpresa, turvado apenas pelo
receio de que Annibale, apesar de sua inteligência e de
sua bondade, viesse a sofrer”, a Colônia Cecília aceita
no seu cotidiano a prática do “amor livre”:
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
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[...] Poucos dias depois, os demais
companheiros ficaram sabendo de nossa
iniciativa de amor livre. Quanta delicadeza,
quanta lealdade e quanta renúncia eram
necessários para vencer um dos mais
respeitados e ferozes preconceitos sociais.
Na Colônia Cecília, desde o seu inicio,
havia sido feita a divulgação da propaganda
do amor livre, entendido não como união
ilegal ou casamento divorciável sem padre
e sem juiz, mas como a normalidade das
afeições múltiplas e contemporâneas,
como verdadeira, inquestionável e factível
possibilidade de liberdade de amor, tanto
para o homem quanto para a mulher.
(ROSSI, 2000, p. 96)
O “estudo do caso afetivo” é realizado por
Giovanni Rossi através de um questionário para uma
“análise psicológica”. Os “documentos humanos”,
Annibale e Elèda, sequencialmente, respondem
as questões, criteriosamente, que tratam das suas
percepções e sentimentos desenvolvidos através
da escolha que fizeram para estabelecer a família
poliândrica. Os resultados que Rossi descreve,
abrangem o ciúme, que em certas ocasiões é
incontrolável em Annibale, e a liberdade que Eléda,
na “multiplicidade contemporânea de afetos” lhe foi
muito natural.
Giovanni Rossi também descreve suas
percepções, na sua “própria análise psicológica”,
admitindo que ama Elèda e a quer bem, assim como
ama à Annibale porque Elèda é “profundamente
afeiçoada a ele e lhe é grata por seu amor”, e que se
alegra quando “Elèda diz a Annibale Vo u com Cardias
e lhe dá um beijo”. E na sua concepção “amar várias
pessoas ao mesmo tempo é uma necessidade da
condição humana”. (ROSSI, 2000, p. 108-110)
A experiência de “amor livre” desafiava e
insultava a moral vigente, desrespeitando a fé e os
bons costumes. A elite intelectual conservadora,
juntamente com a Igreja Católica, teorizava contra os
anarco-socialistas, alegando que as ideias de “amor
livre” não passavam de “simples saciedade sexual”.
Rossi, por mais seguro que fosse como cientista, foi
atingido pelas críticas, e a partir dessa experimentação
sempre redigia seus escritos com minuciosa análise e
com exaustivas argumentações de defesa. Un Episodio
d’Amore nella Colonia Cecilia, é também mais um
instrumento de propaganda contra o inimigo secular
que é a instituição familiar tradicional burguesa.
A história da família poliândrica concretiza
resultados no cotidiano da Colônia Cecília, havendo
um outro episódio. O “amor livre” é também,
segundo Felici (1998. p. 30) um “remédio à
abstinência sexual à qual são obrigados os que vieram
sem companheira”. Mas as moças que chegam à
colônia ainda não possuem convicções para a prática,
o que leva a muitos aborrecimentos dos colonos
solteiros. Desta forma, a experimentação socialista de
Rossi concretiza sua última etapa:
A Colônia Cecília completava, assim, mais
uma etapa – a última – para as quais a criou
a mente libertária de Rossi. Viver de forma
comunística, sem organização autoritária,
negando a propriedade individual, não
admitindo patrões, sem coerções religiosas
ou de Estado; admitindo o império da
justiça, todavia sem a sua profissionalização
pelas regras do Direito. (MELLO NETO,
1998, p. 189)
10 O ANO DE 1893 E A DISSOLUÇÃO
DA COLÔNIA CECÍLIA
A Colônia Cecília, no ano de 1893, inicia o final
da experimentação socialista que Giovanni Rossi ao
longo de sua vida tanto almejou. Fatores que levaram
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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a sua dissolução se dão por questões internas, como
as crises financeiras e a difícil adaptação dos colonos
sobre a ideologia do “socialismo experimental”, que
a colônia enfrentava desde o seu nascimento, e por
questões externas, a Revolução Federalista (18931895), entre os maragatos e os pica-paus, que atingiu
a região sul do Brasil. Desta forma, é impossível
sustentar que somente um acontecimento específico
tenha incitado o fim da colônia:
É impossível afirmar que um acontecimento
específico tenha provocado o fim da Cecília.
Esse fim é devido mais a um conjunto
de fatores convergentes: a miséria que
a colônia sofreu ao longo de toda a sua
existência, o excesso de trabalho, o ambiente
econômico desfavorável, a discórdia, as
incompatibilidades de gênios e as dificuldades
de pôr em prática os princípios comunistas
anarquistas. [...] (FELICI, 1998, p. 36)
Giovanni Rossi, deixa a Colônia Cecília
em maio do mesmo ano, tentando estabelecer-se
em Curitiba. Um número expressivo de colonos,
também deixam a colônia rumo às cidades vizinhas
que ofereciam melhores condições de vida e razoável
mercado para mão de obra, outros colonos entraram
na luta armada para combater ao lado dos federalistas
(maragatos). Giovanni Rossi, também toma partido
da luta, mas na “qualidade de capitano medico”, com
a condição de não usar nenhum uniforme e de não
exercer e nem se submeter a nenhuma autoridade.
No balanço que redige em Cecilia, comunità
anarchica sperimentale, Rossi avalia os anos de 1890 a
1893, dedicando-se a explicar o que foi o experimento
socialista na Colônia Cecília e questionando se “as
fadigas, as privações, os tormentos morais causados
pelo medo do insucesso serviram para alguma
coisa?”, indaga também se a existência da colônia
acrescentou “um dado positivo ao patrimônio
científico da sociologia, um exemplo aos argumentos
da propaganda?” (ROSSI, 2000, p. 79)
Giovanni Rossi, partindo para a resposta,
esclarece que nunca foi objetivo dos que foram os
iniciadores da Colônia Cecília produzir uma nova
sociedade, o “pueril espécime”, e que o propósito
não foi a experimentação utopista mas o estudo
experimental das atitudes humanas:
Vê-se, portanto, que o nosso propósito não
foi a experimentação utopista de um ideal,
mas o estudo experimental – e na medida
do possível rigorosamente científico – das
atitudes humanas em relação aos problemas
mencionados. (ROSSI, 2000, p. 81)
Para Rossi, a experiência não foi negativa
no plano científico e político, acreditava que
realmente o anarco-socialismo foi instaurado na
Colônia Cecília, onde “trezentas pessoas” das mais
variadas representações da população italiana,
como lavradores, operários, profissionais liberais e
funcionários, puderam experimentar novas atitudes,
comportamentos e reações.
As pessoas que viveram na Colônia Cecília,
dispunham da liberdade para viver sem qualquer tipo
de autoridade, mas devido a miséria todos foram
“obrigados a se submeter o dia inteiro à escravidão
do trabalho”, o que dificultava para a constituição do
bem estar. Para Rossi (2000, p. 85) ninguém “pode
gozar a liberdade de obter o supérfluo enquanto falta
a todos o necessário”.
A família tradicional burguesa, foi o
maior inimigo da nova vida social em liberdade
anárquica, tendo na mulher a barreira aos ideais
experimentalistas, por serem intelectualmente
atrasadas, são “conservadoras” e insensíveis aos
ideais de renovação:
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
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As mulheres, [...], na Cecília, de modo geral,
representam o egoísmo doméstico. Instaladas
na cozinha e no armazém, sempre competiram
para tirar proveito da propriedade coletiva. As
parentes entre si procuravam monopolizar
aquelas pobres coisas das quais podiam dispor.
Viam com maus olhos os recém-chegados,
que eram encarados como usurpadores dos
poucos meios de sobrevivência. E recebiam as
novas companheiras com frieza, fazendo-lhes
grosserias de todo tipo. [...] (ROSSI, 2000, p. 85)
Com a saída definitiva de Giovanni Rossi
da Colônia Cecília, ela deixa de existir para seu
idealizador e criador, a colônia sobrevive por mais
um ano, aproximadamente até abril de 1894, e
devido novamente as rivalidades, os últimos colonos
se separam e as terras são vendidas dissolvendo
definitivamente o experimento socialista:
[...] Novamente, as rivalidades tomam uma
tal amplidão que os últimos colonos são
obrigados a se separar em abril de 1894, quando
“o ativo da Cecília (é) vendido a um grupo
desses camponeses de Parma que tinham
provocado a crise”. Segundo Newton Stadler
de Sousa, foram as famílias Agottani, Mezzadri
e Artusi que permaneceram no local da Cecília.
Precisamos que as famílias Artusi e Agottani
são mesmo originárias de Parma, enquanto os
Mezzadri são de Cremona. Segundo o número
de 1932 da revista Quaderni della Libertà, são
os camaradas Colli, de La Spezia e Agottani
que exploram as terras da antiga colônia e,
enfim, segundo Helena Mueller, são os Artusi
que resgatam as terras, enquanto os Agottani
trabalham no comércio em Palmeira. [...]
(FELICI, 1998, p. 36)
11 CONCLUSÃO
Em virtude da implantação da Colônia
Cecília na cidade de Palmeira – Paraná, no transitório
momento histórico brasileiro, é assinalado o marco
inicial do primeiro experimento socialista e do
Anarquismo na América Latina. Seu idealizador
Giovanni Rossi, dedicou toda sua vida política e
grande parte da sua produção intelectual em defesa
do projeto de vida comunitária.
A Colônia Cecília foi em prática o laboratório
para o estudo das atitudes humanas em convívio
comunitário e teve como obstáculos os resquícios
individualistas, a miséria e a família tradicional
burguesa, esta combatida pelo seu idealizador através
do ideal de “amor livre”.
Podemos concluir, que para Giovanni Rossi,
seu objetivo de experimento socialista foi alcançado
e a Colônia Cecília é o exemplo mais concreto de que
se é possível instaurar uma comunidade baseada nos
princípios anárquicos combatendo toda organização
sistemática social capitalista.
Notas:
1
Anarquismo é o nome que se dá a um princípio ou teoria da
vida e do comportamento que concebe uma sociedade sem
governo, em que se obtém a harmonia, não pela submissão
à lei, nem obediência à autoridade, mas por acordos
livres estabelecidos entre os diversos grupos, territoriais
e profissionais, livremente constituídos para a produção
e consumo, e para a satisfação da infinita variedade de
necessidade e aspirações de um ser civilizado. (KROPOTKIN,
P. Anarquismo. In: TRAGTENBERG, Maurício (org.).
Kropotkin. Textos Escolhidos. 1987, p. 19)
2
Em geral, o Socialismo tem sido historicamente definido
como programa político das classes trabalhadoras que se
foram formando durante a Revolução Industrial. A base
comum das múltiplas variantes do Socialismo pode ser
identificada na transformação substancial do ordenamento
jurídico e econômico fundado na propriedade privada dos
meios de produção e troca, numa organização social na
qual: a) o direito de propriedade seja fortemente limitado;
b) os principais recursos econômicos estejam sob o
controle das classes trabalhadoras; c) a sua gestão tenha
por objetivo promover a igualdade social (e não somente
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
jurídica ou política), através da intervenção dos poderes
públicos. O termo e o conceito de Socialismo andam unidos
desde a origem com os de COMUNISMO. (BOBBIO, N.;
MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Dicionário de política.
Vol.1. 11 ed. 1998, p. 1196-1197)
3
4
5
6
7
8
As dificuldades da I Internacional foram grandes: pouca
representatividade dos grupos operários, discussões acaloradas
entre os anarquistas (Bakunin) e os comunistas (Marx).
Enquanto Marx afirmava a necessidade de um período de
“ditadura do proletariado” para se chegar ao comunismo,
os anarquistas argumentavam que todo Estado é opressor,
acreditando que se poderia passar diretamente do capitalismo
para o comunismo. [...] Em 1872, os anarquistas foram
expulsos da I Internacional, cujo conselho foi transferido para
New York, onde se decidiu pelo seu fechamento, em 1876. [...]
(FARIA, R.; MARQUES, A. & BERUTTI, F. História. Vol. 3.
1989, p. 155)
Tradução da autora: “Anarquia nas relações sociais; amor na
família; propriedade coletiva do capital; distribuição gratuita
dos produtos na crise econômica; negação de Deus na
religião”.
Anarquismo comunista, [...] vê a realização plena do EU numa
sociedade onde cada um for induzido a sacrificar uma parte
da liberdade pessoal, mais precisamente a econômica, pela
vantagem da liberdade social. Esta pode ser alcançada através
de uma organização comunitária dos meios de produção e
do trabalho e numa distribuição comum dos produtos, na
proporção das necessidades de cada um, desde que nela sejam
salvaguardados os princípios fundamentais do Anarquismo, a
saber, o exercício das mais amplas liberdades para o indivíduo
e para a sociedade. (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO.
Dicionário de política. Vol.1. 11. ed. 1998, p. 24)
Rossi, Giovaani. Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba:
Imprensa Oficial do Paraná, 2000, p. 29
Há na historiografia uma versão propagada de que D. Pedro II
havia doado as terras para que Giovanni Rossi implantasse seu
experimento socialista. Essa versão, muitas vezes afirmada, é
baseado no relato imaginário que Afonso Shmidt faz em seu
romance Colônia Cecília, romance de uma experiência anarquista, que
comporta grande número de elementos inverossimilhantes.
A primeira Constituição republicana, promulgada em
fevereiro de 1891 [...] inaugurou o sistema presidencialista de
governo. [...], o Congresso elegeu Deodoro da Fonseca para
a Presidência da República e Floriano Peixoto para a Vice-
Presidência. Deodoro entrou em choque com o Congresso ao
pretender reforçar o Poder Executivo, tendo como modelo o
extinto Poder Moderador. Fechou o Congresso, prometendo
para o futuro novas eleições e uma revisão da Constituição
visando fortalecer o Poder Executivo e reduzir a autonomia
dos Estados. O êxito dos planos de Deodoro dependia da
unidade das Forças Armadas, o que não ocorria. Ante a reação
dos florianistas, da oposição civil e de setores da Marinha,
Deodoro acabou renunciando (23-11-1891). Subia ao poder o
vice-presidente Floriano Peixoto. (FAUSTO, 2001, p. 143)
9
A autora acreditava que seus antecedentes teriam vindo
em 1890, no primeiro navio, Città di Roma, porém os
levantamentos históricos realizados nos mostram que a
partida se deu no ano de 1891.
Referências Bibliográficas:
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. & PASQUINO,
G. Dicionário de política. Vol.1. 11. ed. Brasília: Ed.
UNB, 1998.
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FARIA, R.; MARQUES, A. & BERUTTI, F. História,
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FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo:
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FELICI, Isabela. A verdadeira história da Colônia
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GATTAI, Zélia. Anarquistas graças a Deus. Rio de
Janeiro: Ed. Record, 1985.
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contexto da história ocidental. 8.ed. São Paulo: Atual
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Artigo
Anarquistas no Brasil: a colônia Cecília de Giovanni Rossi e o Socialismo Experimental
Elaine Alves Barbosa
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__________________ História das idwias e movimentos
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Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 7-23.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições
brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
Graduando do último ano do curso de História na
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis,
bolsista pela FAPESP e desenvolve pesquisas na
área de Imperialismo, Colonialismo, Discurso
Político e Colonial, Portugal, Moçambique.”
Resumo
O presente trabalho visa analisar em que medidas a Constituição de 1937 foi uma
ruptura e/ou continuidade da Constituição de 1934, visto que ambas as constituições
foram elaboradas sobre o regime do mesmo governante, no caso, Getúlio Vargas.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
Introdução
O período conhecido como Era Vargas (1930
– 1945) caracteriza-se por ser emblemático na história
brasileira. A ascensão de Getúlio Vargas ao poder,
bem como o regime político adotado (principalmente
a partir de 1937), trouxe manifestações diversas, um
exemplo disso é a Revolução Constitucionalista de
1932.
Um dos efeitos imediatos da Revolução
Constitucionalista foi a formação de uma Assembleia
Constituinte (1933) que formulou a Constituição de
1934, a segunda constituição brasileira no período
republicano e a primeira da era Vargas. A Constituição
de 1934 trouxe algumas novidades no meio político
brasileiro, tais como: ensino básico obrigatório, voto
secreto, aprovação do voto feminino e leis trabalhistas.
Esta mesma Constituição estabeleceu que o primeiro
presidente, após a sua aprovação, seria eleito de forma
indireta pelos membros da Assembleia Constituinte e
Vargas saiu vencedor.
No dia 10 de novembro de 1937, o Senado e a
Câmara dos Deputados foram cercados por soldados
que impediram a entrada de seus membros sem que
houvesse nenhuma manifestação de contestação. Os
ministros militares da época divulgaram não haver
tomado a iniciativa do movimento e alegaram apenas
apoiar a decisão tomada do chefe de Estado, no caso,
Getúlio Vargas1.
No mesmo dia, Vargas fez um
pronunciamento a Nação pelo programa “A Hora
do Brasil”, sobre as alterações efetuadas na ordem
constitucional. Em seu discurso, afirmou:
O homem de Estado, quando as
circunstâncias impõem uma decisão
excepcional, de amplas repercussões e
profundos efeitos na vida do país, acima
das deliberações ordinárias da atividade
governamental, não pode fugir do dever
tomá-la2.
Segundo Paulo Sérgio da Silva, naquele
momento, Vargas, levado pelo interesse coletivo,
adotou medidas de transformação institucional
com vistas a fornecer ao governo meios adequados
de enfrentamento dos graves problemas que
perturbavam a ordem pública. Na ocasião, Vargas
criticou a Constituição de 1934 e censurou o
Congresso qualificando-o de despreparado; apoio
ao estado de guerra solicitado pelas Forças Armadas
para enfrentar o ressurgimento de movimentos
comunistas. Para Vargas, a organização constitucional
de 1934, alicerçadas nos moldes do liberalismo e do
sistema representativo, destinava-se a uma realidade
dissolvida no conjunto de ações políticas anteriores;
portanto, para evitar a dissolução da nação, a
instauração do Estado Novo era uma necessidade
inexorável3.
As constituições da Era Vargas e o Golpe
de 1937 na Historiografia
Segundo Pesavento, a ditadura do Estado
Novo foi implantada em uma sociedade já preparada
para a decretação de um golpe, pois parecia haver
o consenso de que a melhor forma de realizar o
progresso econômico e social era por meio de
um regime autoritário. Paralelamente, tinha-se a
impressão de que a verdadeira democracia poderia
apenas se concretizar por um governo forte: só o
Estado Novo moralizaria as instituições, livrando-as
de seus antigos vícios, permitindo uma guinada para
a democracia4.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
Silvana Goulart assinala que o cerne da
implantação do Estado Novo esteve vinculado,
essencialmente, ao aumento dos conflitos políticos
e sociais, ligados à emergência de uma sociedade
industrial. Assim, era necessário reorganizar a
sociedade, visando o controle da crise econômica e
a neutralização de novas forças sociais emergentes
na política, de modo a possibilitar o processo de
expansão das forças produtivas5. Ela ainda completa
que o Estado Novo foi a desmobilização do que
restava da autonomia regional e que garantiu a
primazia dos interesses ligados a cafeicultura6.
Nelson Werneck Sodré afirma que, na ocasião
do golpe de 1937, “o bonapartismo colonialista foi
assumido de forma específica, levando a uma ditadura
pretoriana, aquele tipo de ditadura em que a fonte de
poder provém de forças militares”7.
Boris Fausto assinala que o Golpe de 1937
se deu em decorrência da crise mundial do final
da década de 1920, sendo um fato crucial para o
cenário político e econômico subsequente a ela. O
Estado Novo solapou uma série de pressupostos
do capitalismo liberal, fornecendo justificativas no
plano político para a crítica à liberdade de expressão
e à liberdade partidária, tidas como elementos que
conduziam o Brasil para o caos8.
Aspásia Camargo afirma que a visão oficial
e ideológica do novo regime é, na verdade, a de
que o golpe de 1937 foi o desdobramento natural,
inevitável, de outro acontecimento decisivo, a
Revolução de 1930. Portanto, em 1937 ocorreu o
desfecho da revolução que levou Vargas ao poder,
se em 1930 o país reclamou uma nova ordem
política ajustada às suas condições de existência,
essa necessidade foi posta novamente em 37. Em
face da extrema fragilidade do sistema institucional,
fortemente abalado pela crise econômica e por
sucessivas crises políticas, a partir de 1930, os atores
políticos individualmente considerados expressaram,
a natureza, a composição e o desenvolvimento de tais
conflitos, e nos acertos e desacertos individuais – na
disputa entre lideranças – desvelaram e conduziram
as questões cruciais em jogo naquele período. Desta
e nesta fragmentação política houve um “jogo”
deliberado cujo objetivo estratégico, de antemão
fixado, foi fortalecer o poder e racionalizar as decisões
de governo, reduzindo assim a extrema fragmentação
do sistema político, pouco eficaz e controlado pelo
poder dos Estados. A tática utilizada teria sido, por
um lado, minar o antigo sistema internamente, em
seu próprio território e com suas próprias regras,
esvaziando o poder das oligarquias e introduzindo
novos atores no cenário político e, por outro, operar
com grupos mais dinâmicos das sociedade civil, não
inseridos formalmente no espaço oficial da política9.
De acordo com Raymundo Faoro, o golpe
de 1937 assinalou a definitiva incorporação das
classes médias e do proletariado à estrutura política
brasileira como fontes de apoio ao governo e
encerrou definitivamente a política dos governadores
empregada na República Velha10.
Segundo João Paulo Rodrigues, a imprensa,
com a formação da Assembleia Constituinte de 1933,
ecoava num regionalismo vitorioso - mesmo com os
resultados da Revolução Constitucionalista de 1932
– que o Estado de São Paulo havia vencido11. Ele
completa ainda que a promulgação da Constituição de
1934, o retorno da bancada paulista ao Estado e até a
nomeação de um representante paulista para a Pasta da
Justiça do governo de Getúlio Vargas corroboraram
para fixar a Revolução Constitucionalista como um
marco na história de São Paulo12. O retorno do país
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
à legalidade constitucional representava a coroação
dos esforços paulistas realizados durante a Revolução
de 1932 e esta serviu para corrigir os descaminhos
da Revolução de 1930 e reverter o país para a ordem
democrática13.
Para Paulo Sérgio Pinheiro, a necessidade
da formação de uma Assembleia Constituinte e a
promulgação da Constituição de 1934 devia-se aos
poderes discricionários concernentes as funções
executivas e legislativas que o governo provisório
havia investido. Assim, Getúlio Vargas “mandava com
seus ministros, legislava com eles e com eles julgava
num tribunal; sem códigos, substantivos e nem
adjetivos, sem constituição, sem nada que não fosse
sua livre vontade e a de seus ministros, legisladores e
juízes ao mesmo tempo”14.
Alguns intelectuais do período, como
Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral,
deram atenção especial à implantação do Estado
Novo e defenderam com veemência o novo regime
instaurado.
O Estado Novo, segundo Oliveira Viana
era uma “democracia autoritária”, defendendo os
poderes instaurados por Getúlio Vargas. Para ele o
Brasil necessitava de um presidente forte que não
dividisse com ninguém sua autoridade, fazendo
com que a nação só a ele se subordinasse e só dele
dependesse15.
Alberto Torres sublinhava a desorganização e
decomposição social, entendidas como conseqüência
da imigração e das minorias estrangeiras, da
diferenciação social, psicológica e cultural entre os
tipos humanos presentes nas várias regiões do país,
do antiurbanismo individualista e do antisolidarismo,
derivados da formação colonial, da diversidade das
religiões; dos conflitos entre os setores da economia:
indústria, comércio e agricultura; da autonomia
dos Estados no tocante às relações comerciais,
vinculando-se diretamente ao exterior; do movimento
migratório para os centros urbanos e da dispersão
presente na política local. Alberto Torres antevia
que os únicos capazes de levar a cabo um projeto de
unificação e de construção da nacionalidade seriam
indivíduos de boa vontade e com sentido patriótico,
ou seja, a solução só podia vir de uma elite intelectual,
politicamente comprometida com a nacionalidade,
agindo por meio da imprensa, da educação, da
opinião pública e por meio do Estado16.
Azevedo Amaral afirmava que a preeminência
de combater o extremismo da direita representado
pelo Integralismo, e a possibilidade de reaparecimento
do comunismo, justiçavam perfeitamente o golpe.
Para ele, em 10 de novembro protegeu-se o Brasil
dos perigos da demagogia estimulada pela campanha
presidencial e salvou-se o regime democrático por um
golpe, entendido como a única forma de salvaguardar
as “condições da realidade nacional e os imperativos
das tradições brasileiras”. O novo regime era tão
somente uma “democracia autoritária”, um modelo
perfeitamente adequado a realidade e às tradições
nacionais, no qual o autoritarismo e a democracia não
eram conceitos contraditórios, eram complementares,
pois “somente uma forma de governo autoritário
seria capaz de permitir o desenvolvimento da
democracia e das suas instituições”17.
Paralelos entre as Constituições de 1934 e
1937
Em 16 de julho de 1934 a Assembleia
Nacional Constituinte promulgou a Constituição,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
que segundo o próprio preâmbulo, foi redigida “para
organizar um regime democrático, que assegure à
Nação, a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar
social e econômico”. Foi a constituição que menos
tempo durou, oficialmente vigorou apenas por um
ano, sendo suspensa pela Lei de Segurança Nacional.
Ela foi importante por institucionalizar a reforma
da organização social brasileira, não com a exclusão
das oligarquias rurais, mas com a inclusão de novos
setores da sociedade.
Em 1933, o Governo Provisório havia criado
uma comissão de juristas, a Comissão do Itamaraty,
que recebeu este nome porque se reunia no Palácio
do Itamaraty, para a elaboração de um anteprojeto
de constituição. Este anteprojeto previa um poder
executivo forte e centralizador, porém a Constituição
de 1934 acabou sendo descentralizadora e estatizante
dando grande autonomia aos Estados federados. Por
esta nova constituição, foram extintos os senados
estaduais que jamais voltaram a existir.
A Constituição de 1934 sofreu influência da
Constituição Alemã de 1920 (República de Weimar)
que estabelecia uma república federalista com um
poder executivo forte; apoderou-se de alguns pontos
da constituição da Espanha de 1931 (na época era
uma república federalista) e até a política do New
Deal serviu de base para seus aspectos econômicos18.
diferenciação acerca do tempo de mandato dos
deputados (aumentado para 4 anos) e dos senadores
(diminuído para 8 anos).
Getúlio Vargas foi um dos principais críticos
a Constituição de 1934 desde sua elaboração. Ele
afirmava que a Carta de 1934 foi:
Uma constitucionalização apressada, fora de
tempo, apresentada como panacéia de todos
os males, traduziu-se numa organização
política feita ao sabor de influências pessoais
e partidarismo faccioso, divorciada das
realidades existentes. Repetia os erros da
Constituição de 1891 e agravava-os com
dispositivos de pura invenção jurídica, alguns
retrógrados e outros acenando a ideologias
exóticas. Os acontecimentos incumbiram-se
de atestar-lhe a precoce inadaptação!19
Os poderes da União foram ampliados
na constituição, nos capítulos referentes à ordem
econômica e social, procedeu à nacionalização de
minas, jazidas minerais, quedas d’água, bancos de
depósito e empresas de seguro20. Uma novidade foi
a introdução de um capítulo destinado a família,
inserido devido à pressão da bancada católica da
Constituinte.
A Constituição manteve a forma de governo
republicano com o sistema presidencialista e a capital
do Brasil continuou a ser o Distrito Federal, com
sede no Rio de Janeiro. Mesmo sendo invocado
em seu preâmbulo o nome “Deus” permaneceu a
inexistência de uma religião oficial para o país.
No Executivo, a Assembleia Constituinte
buscou definir mecanismos de controle eficazes
sobre o Executivo, que sempre tivera tendência
centralizadora
e
autoritária.
Foi
definido
cuidadosamente e de maneira estrita os poderes de
seu chefe, determinando que, salvo a eleição inicial,
feita pela Assembleia, o presidente da República
deveria ser escolhido pelo voto direto dos cidadãos,
para um mandato de quatro anos, sem possibilidade
de reeleição.
A divisão dos poderes permaneceu a mesma
que a constituição de 1891 estabelecia, destacouse apenas a oficialização da Justiça Eleitoral, e a
Em relação ao Legislativo, a constituição
contemplava a existência de duas câmaras: Senado e
Câmara dos Deputados. O Senado seria constituído
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
por dois representantes de cada Estado, eleitos para
um mandato de oito anos, e a eles reservou-se o papel
de “guardiões da Constituição”, cabendo-lhe agir na
“coordenação” dos poderes governamentais. Estava
entre suas atribuições autorizar e/ou suspender
o emprego de força federal nos Estados, assim
como permitir que Estados e municípios captassem
empréstimos no exterior21.
A Constituição trouxe consigno reformas
eleitorais importantes: concedeu-se o direito de voto
às mulheres, a idade mínima para o cumprimento
das obrigações eleitorais foi fixada em dezoito anos
(em vez dos anteriores 21 anos), porém manteve-se a
proibição de votos aos analfabetos que representavam
75% dos brasileiros adultos, em uma população de
41,5 milhões de habitantes. Apesar das mudanças
eleitorais, não houve grande alteração na participação
das discussões em torno da organização política que
continuaram restritas a uma minoria22.
A Constituição contemplava as reivindicações
liberais, matriz das contestações da década de 1920;
as eleições seriam livres, submetidas à supervisão
judicial e com voto secreto; com as interventorias
e os partidos manipulados pelos agentes do
governo federal, o coronelismo, embora não
houve desaparecido foi anulado, ficando restrito à
esfera dos governos estaduais. Em contrapartida,
acenava ao movimento tenentista prometendo-lhe
a nacionalização dos bancos, das minas e outros
recursos naturais. Finalmente nas esferas social,
trabalhista e eleitoral, estipulava a assistência às
necessidades dos novos atores sociais: classe média e
trabalhadores urbanos23.
Na perspectiva econômica, a Constituição
incentivou o desenvolvimento de uma Indústria
Nacional e o desenvolvimento agrícola, a partir da
fundação e criação de institutos de pesquisas.
Na Educação estabelece o Ensino Primário
gratuito e obrigatório; cresce o interesse no
desenvolvimento do Ensino Médio e Superior com
o objetivo de formar mão de obra qualificada para as
indústrias que se instalavam no país; defende o Ensino
Religioso nas escolas (mesmo com a separação entre
Igreja e Estado); estabelece grades curriculares
diferenciadas para os diferentes sexos. Segundo
Zélia Lopes da Silva, na Assembleia Constituinte,
a crítica ao atraso da sociedade brasileira aparece
formulada por diferentes setores da classe dominante,
ganhando força na convicção de que para superar tais
problemas, o país teria que ser transformado, cabendo
à Escola um papel preponderante nesse processo, por
ser o espaço capaz de criar uma mentalidade nova,
sintonizada com os valores da modernidade, sob a
égide da racionalidade e do cientificismo24.
No âmbito trabalhista foi criado o salário
mínimo; a carga horária de trabalho foi reduzida para
oito horas diárias; indenização para trabalhadores
demitidos por justa causa; assistência remunerada a
trabalhadoras grávidas; assistência média e dentária;
previa uma lei especial para regulamentar o trabalho
no campo e suas relações; reduzia o prazo de
aplicação de usucapião a um terço do tempo anterior
(30 anos); institui-se o repouso semanal remunerado;
regulamenta o trabalho das mulheres e dos menores:
proibição do trabalho para menores de 14 anos;
trabalho noturno proibido a menores de 16; em
indústrias insalubres proibido a menores de 18 anos
e a mulheres; proibição de distinção de salários
tendo como critérios sexo, cor, religião, estado civil,
nacionalidade ou idade. Zélia Lopes da Silva afirma
que, os direitos do trabalhador ganham espaço
significativo como forma de evitar as injustiças sociais
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
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Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
e a preponderância de classes privilegiadas. Para
isso, foi proposta a inserção de princípios que não
consideravam o trabalhador uma simples mercadoria
sujeita a lei da oferta e da procura, buscando o
estabelecimento da dimensão humana no tratamento
da questão25.
Já a Constituição de 1937 foi outorgada em
10 de novembro de 1937 pelo presidente Getúlio
Vargas. A partir desta constituição tem início o
período conhecido como Estado Novo, sendo esta a
quarta Constituição do Brasil e a terceira do período
republicano. Ficou conhecida como Polaca por ter
sido baseada na Constituição da Polônia e foi redigida
pelo jurista Francisco Campos, ministro da Justiça do
Estado Novo.
A Carta de 1937 possui texto curto, se inicia
com um preâmbulo e contém 187 artigos - mantinha
a mesma quantidade de artigos que a constituição
anterior, alguns dos quais, com diversos incisos.
Não apresenta subdivisões em seções ou capítulos,
os artigos estão dispostos da seguinte maneira:
organização nacional (37 artigos), do poder legislativo
(8 artigos), câmara dos deputados (4 artigos), conselho
federal (7 artigos), conselho de economia nacional
(7 artigos), leis e resoluções (3 artigos), elaboração
orçamentária (6 artigos), Presidente da República (11
artigos), responsabilidade do Presidente da República
(3 artigos), ministros de Estado (2 artigos), poder
judiciário (7 artigos), Supremo Tribunal Federal (6
artigos), justiça dos Estados, do Distrito Federal e
dos territórios (11 artigos), Justiça Militar (3 artigos),
Tribunal de Contas (1 artigo), da nacionalidade e da
cidadania (7 artigos), direitos e garantias individuais
(2 artigos), família (4 artigos), educação e da cultura (7
artigos), ordem econômica (21 artigos), funcionários
públicos (4 artigos), militares de terra e mar (1
artigo), segurança nacional (5 artigos), defesa do
Estado (8 artigos), emendas à Constituição (1 artigo)
e disposições transitórias e finais (13 artigos). Em seu
preâmbulo é expresso o seguinte:
O Presidente da República dos Estados
Unidos do Brasil.
Atendendo às legítimas aspirações do
povo brasileiro à paz política e social,
profundamente perturbada por conhecidos
fatores de desordem resultantes da crescente
agravação dos dissídios partidários, que uma
notória propaganda demagógica procura
desnaturar em luta de classe, e da extrema
ação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo
seu desenvolvimento natural, a resolver-se
em termos de violência, colocando a Nação
sob a funesta eminência da guerra civil.
Atendendo ao estado de apreensão criado no
país pela infiltração comunista, que se torna
dia a dia mais extensa e profunda, exigindo
remédios de caráter radical e permanente;
Atendendo a que, sob as instituições
anteriores, não dispunha o Estado de meios
normais de preservação e de defesa da paz,
da segurança e do bem-estar do povo;
Com o apoio das Forças Armadas e cedendo
às aspirações da opinião nacional, umas e
outras justificadamente apreensivas diante
dos perigos que ameaçavam a nossa unidade
e da rapidez com que vem processando a
decomposição de nossas instituições civis e
políticas;
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, a
respeito a sua honra e a sua independência,
e ao povo brasileiro, sob um regime de paz
política e social, as condições necessárias
à sua segurança, ao seu bem-estar e a sua
prosperidade;
Decretando a seguinte constituição, que se
cumprirá desde hoje em todo o país26.
Segundo Paulo Sérgio da Silva, de acordo com
tal preâmbulo, no tenebroso caos social e político
daquele momento no país, capaz de gerar uma guerra
social e/ou a desintegração nacional, surge a figura de
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
31
Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
um homem providencial, o presidente da República,
incorporando toda a extensão do poder constituinte.
Síntese da vontade nacional, ele outorga uma
Constituição que tutela o povo contemplando seus
presumidos interesses e vontades, com o objetivo
primordial de alcançar bem-estar, tranqüilidade social
e prosperidade nacional. Utiliza-se do discurso da
“ameaça comunista”, habilmente manipulado desde
1935, para o fechamento político, como um perigo
iminente que seria necessário eliminar em definitivo.
Caso a proposta de proteção e salvaguarda dos
interesses do povo não fosse suficiente para convencer
todos os brasileiros, o preâmbulo informa que a nova
Constituição dispunha do apoio das Forças Armadas,
ou seja, além de representar as aspirações da opinião
pública, contemplar os fins nobres de uma política
nacional salvacionista, a Constituição contava ainda
com os potentes “argumentos” do fuzil, da baioneta
e das grades das celas27.
A Constituição de 1937 investia ao presidente
da República poderes praticamente ilimitados, na
condição de chefe supremo da nação, concentrava
poderes tão extensos quanto extraordinários,
englobando a vida política e social brasileira. O
Executivo foi constitucionalmente definido como
a autoridade suprema do Estado que “coordena
as atividades dos órgãos representativos, de grau
superior, dirige a política interna e externa, promove
ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e
superintende a administração do país”28. No artigo 74,
em sua primeira alínea, cabia ao presidente sancionar,
promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos,
lei e regulamentos para sua execução. Uma vez
que pelo artigo 178 havia sido dissolvido o Senado
Federal e a Câmara dos Deputados, enquanto não
houvesse um plebiscito convocado pelo Presidente
para a formação de um novo Parlamento,
executivo o poder de expedir leis sobre
de competência legislativa da União, dessa
presidente tinha autoridade para expedir
sobre todas as competências da Federação.
cabia ao
matérias
forma o
decretos
Os direitos e garantias individuais cercearam
o agir do cidadão em nome da nação e da decantada
paz social aliada à ordem e ao progresso. Mas
assegurava formalmente aos brasileiros residentes no
país a liberdade religiosa, a segurança individual e a
propriedade. Assegurou aos indivíduos a liberdade
de culto e de formação de associação religiosa,
reservando-se a estas o direito de adquirir bens,
observadas as disposições do direito comum, desde
que atendessem às exigências da ordem pública e
dos bons costumes29, ao passo que os cemitérios
passariam a ter caráter secular e a ser administrados
pelas autoridades municipais30. Mas, como se vivia
sob a égide de um Estado de Emergência à época, as
garantias individuais estavam sujeitas às prerrogativas
do Executivo.
A Constituição trouxe alguns avanços em
termos de direitos sociais, com maior destaque para
as áreas de educação e trabalho. Na área trabalhista
firmou-se como preceitos da legislação do trabalho,
entre outros: o direito ao repouso semanal aos
domingos e, nos limites das exigências técnicas da
empresa, aos feriados civis e religiosos, de acordo
com a tradição local; licença anual remunerada,
indenização proporcional aos anos de serviço pela
cessação de relação de trabalho a que o trabalhador
não haja dado motivo; salário mínimo; jornada de
trabalho de oito horas; adicional noturno; proibição
de trabalho a menores de catorze anos; de trabalho
noturno a menores de dezesseis e, em indústrias
insalubres, a menores de dezoitos anos e a mulheres,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
32
Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
e finalmente a instituição de seguros de vida por
velhice, invalidez e para os casos de acidente de
trabalho.
Em relação ao direito sindical, a associação
profissional ou sindical era livre em sindicados
reconhecidos pelo Estado31; determinou-se a
criação da Justiça do Trabalho, a ser regulada em lei
posterior, e à qual não se aplicariam as disposições
constitucionais relativas à competência, ao
recrutamento e às prerrogativas da justiça comum,
com a finalidade de dirimir os conflitos oriundos das
relações trabalhadores e empregador. Mas proibiramse as greves, consideradas recurso anti-social, nocivos
ao trabalho e ao capital, e incompatíveis com os
superiores interesses do Estado32.
A educação integral foi elevada à categoria
de dever e de direito natural do país, sendo também
encampada como dever do Estado, o qual colaboraria
de maneira principal ou subsidiária para facilitar
sua execução ou suprir as deficiências e lacunas
da educação particular33. Se faltassem recursos
necessários a educação, a União, os Estados e
os municípios deveriam assegurar, por meio de
instituições públicas de ensino em todos os seus
graus, uma educação adequada às tendências, aptidões
e faculdades do cidadão34.
Estabeleceu-se como obrigatório e gratuito
o ensino primário, sendo instituída a caixa escolar,
contribuição dos mais favorecidos para os mais
necessitados35. O ensino de educação cívica, de
educação física e de trabalhos manuais tornaram-se
obrigatórios em todas as escolas primárias, normais
e secundárias, sendo sua implantação condição
necessária e reconhecimento de unidades escolares36.
Em relação a nacionalidade, a Constituição
reconhecia como brasileiros os nascidos no Brasil,
ainda que de pai estrangeiro, não estando este a
serviço do governo de seu país; os filhos de pai ou de
mãe brasileira, nascidos em país estrangeiro, estando
os pais a serviço do Brasil e afora esses casos, se
atingida a maioridade, optassem pela nacionalidade
brasileira, assim como aqueles que tivessem adquirido
nacionalidade brasileira, também foi estipulado casos
em que o cidadão poderia perder a nacionalidade
brasileira.
No caso de direitos políticos, foram
considerados eleitores todos os brasileiros de ambos
os sexos, desde que maiores de 18 anos e que se
alistassem segundo a forma da lei, excluindo-se os
analfabetos, os militares em serviço ativo, os mendigos
e aqueles que estivessem privados, temporária ou
definitivamente dos seus direitos políticos.
As Forças Armadas pela Constituição de
1937 assumiram a condição de instituições nacionais
permanentes, tendo uma base de disciplina hierárquica
e de fiel obediência à autoridade do presidente37.
Cabia ao presidente da República exercer a chefia
suprema das Forças Armadas, administrando-as por
intermédio dos órgãos do alto comando38, assim
como lhe foi atribuída a direção geral da guerra,
sendo as operações militares da competência e da
responsabilidade dos comandantes chefes de sua livre
escolha39.
Sobre a questão da Segurança Nacional
resolveu-se que todas as questões relativas a esse tema
seriam estudadas por um Conselho de Segurança
Nacional, a ser formado pelos ministros de Estado,
pelo chefe do Estado Maior do Exército e da Marinha
e presidido pelo presidente da República, e pelos
órgãos especiais criados para atender à emergência da
mobilização40.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
33
Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
Considerações Finais
A Constituição de 1934 foi resultado direto
da Revolução Constitucionalista de 1932, ela trouxe
enormes inovações na área trabalhista, eleitoral
e educacional. Mesmo após a promulgação da
República, a Constituição de 1891 não havia garantido
direitos a uma grande parcela da população brasileira,
isso veio a acontecer somente após a promulgação da
Carta Constituinte de 1934.
alcançados e programou tanto os agentes do regime
quanto os cidadãos.
Notas:
1
DULLES, John W. F. Getúlio Vargas: biografia política. Rio de
Janeiro: Renes, 1976, p. 183.
2
DULLES, John W. F. op. cit., p. 185.
3
SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de
novembro de 1937: um retrato com luz e sombra. São Paulo:
Editora Unesp, 2008, p. 100.
4
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Historiografia do Estado
Novo: visões regionais. SILVA, José Werneck (Org.) O feixe e
o prisma: uma revisão do Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991, v. 1, p. 132.
5
GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia,
propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco
Zero, 1990, p. 15.
6
GOULART, Silvana. Op. cit. , p. 17.
7
SODRÉ, Nelson Werneck. A História militar do Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 270.
8
FAUSTO, Boris. O Estado Novo no Contexto Internacional.
PANDOLFI, Dulce (Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de
Janeiro: FGV, 1999, p. 19.
9
CAMARGO, Aspásia. O golpe silencioso: as origens da República
corporativa. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989, p. 11-13.
Já a Constituição de 1937 foi emergente e
imersa no contexto histórico político do qual surge e
no qual deveria atuar. O Estado Novo deixou clara e
evidente as escolhas do centralismo político (na figura
do presidente da República) e do intervencionismo
estatal, assim como a opção pela primazia do interesse
nacional sobre os interesses individuais.
Ela (a Constituição de 1937) fundou um
regime centrado na figura do presidente da República,
investido de uma força decisória praticamente
ilimitada e elevado à condição de chefe supremo
da nação, concentrando poderes extensos, os quais
englobavam efetivamente todas as esferas da vida
política e social brasileira. O Executivo Federal era o
centro de vontade do novo regime através da figura
do Presidente da República. Os poderes Legislativo
e Judiciário eram figuras secundárias neste regime,
pois o centro de tomada de decisões encontrava-se na
figura do chefe da nação, no caso, Getúlio Vargas.
Nesta época a sociedade civil sofreu sem as
garantias de seus direitos de liberdade e de opinião
quanto ao regime instaurado. Ela foi responsável
por estabelecer um modelo de atuação política a ser
implantado na sociedade brasileira, tornando público
um plano de ação que determinou os fins a serem
10
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato
político brasileiro. São Paulo: Globo, 2000, v. II, p. 332.
11
RODRIGUES, João Paulo. 1932 Pela força da tradição: do
confronto bélico à batalha pela memória (1932 – 1934). São
Paulo: Annablume, 2012, p. 391.
12
RODRIGUES, João Paulo. op. cit., p. 409.
13
RODRIGUES, João Paulo. op. cit., p. 411.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
34
Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
14
29
15
30
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: Revolução
Mundial e o Brasil (1922 – 1935). São Paulo: Companhia das
Letras, 1992, p. 269 – 271.
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. São Paulo:
Companhia Editoria Nacional, 1939, p. 207.
16
BEIRED, José Luis Bendicho. Autoritarismo e nacionalismo: o
campo intelectual da nova direita no Brasil e na Argentina
(1924 – 1945). Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1996, p. 37 – 39.
17
AMARAL, Antônio José de Azevedo. O Estado autoritário e a
realidade nacional. 1938, p. 177.
Artigo 122, 4. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
Artigo 122, 5. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
31
Artigo 138. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
32
Artigo 139. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
18
33
19
34
SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de
novembro de 1937: um retrato com luz e sombra. São Paulo:
Editora Unesp, 2008, p. 60.
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1940, p. 47.
20
SILVA, Zélia Lopes da. A república dos anos 30. A sedução do
moderno: novos atores em cena: industriais e trabalhadores
na Constituinte de 1933 – 1934. Londrina: Editora da UEL,
1999, p. 83 – 85.
21
DULLES, John W. F. op. cit., p. 148; SILVA, Paulo Sérgio da.
Op. cit., p.61.
22
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Op. cit., p. 270.
23
FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 325-326.
24
SILVA, Zélia Lopes da. Op. cit, p. 126.
25
SILVA, Zélia Lopes da. Op. cit., p. 111 – 112.
26
Preâmbulo da Constituição Brasileira de 1937. In:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de janeiro de
2014.
27
28
SILVA, Paulo Sérgio da. Op. cit., p. 140.
Artigo 73. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
Artigo 125. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
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Artigo 129. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
35
Artigo 130. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
36
Artigo 131. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
37
Artigo 161 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
38
Artigo 74 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014.
39
Artigo 163. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014
40
Artigo 162. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm Acessado em 01 de
janeiro de 2014
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
35
Artigo
Continuidades e rupturas nas constituições brasileiras de 1934 e 1937
Thiago Henrique Sampaio
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VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. São
Paulo: Companhia Editoria Nacional, 1939.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 25-36.
36
Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o
Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
Graduando em Sociologia e Política, pela Escola
de Sociologia e Política de São Paulo.
Resumo
Este trabalho objetiva analisar a obra O cortiço do autor Aluísio de Azevedo, por uma
perspectiva lukacsiana, tendo como base o estudo do conceito do Naturalismo segundo
a teoria do pensador húngaro György Lukács. Para isso, esta análise foi baseada em
dois principais ensaios: “Narrar ou Descrever?” de György Lukács e “De Cortiço a
Cortiço” de Antonio Candido, relacionando os conceitos incluídos nesses ensaios com
as referências e citações da própria obra de Aluísio de Azevedo.
Palavras -Chave
O Cortiço; Aluísio de Azevedo; Naturalismo; Realismo; György Lukács.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
37
Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
Se descreveres o mundo tal como é, não haverá em tuas
palavras senão muitas mentiras e nenhuma verdade.
(Leon Tolstoi)
Obra e o Naturalismo
A obra O Cortiço de Aluísio de Azevedo,
escrita em 1890, é uma retratação histórica do Brasil
no século XIX, demonstrando a realidade econômica,
social e cultural da época e destacando as relações de
exploração do trabalho humano, situação característica
do sistema capitalista que se fortalecia no Brasil
neste período. Na época em que a obra foi escrita, o
Naturalismo se tornava o grande expoente da escrita
europeia, encabeçado principalmente pelos escritores:
Flaubert e Emile Zola. O Naturalismo é uma forma
de escrita derivada do Realismo. Nos dois casos o
autor procura retratar de maneira objetiva a realidade,
sendo que, neste, a retração passa por uma análise do
indivíduo influenciando e sendo influenciado pelo
meio, enquanto que, naquele, a retratação demonstra
uma predominância da animalidade do ser, na medida
em que o comportamento humano é fruto do meio
em que vive o homem.
Aluísio de Azevedo é descrito como um
dos principais autores naturalistas brasileiros. Suas
obras O Cortiço e O Mulato (1881) marcaram essa
tendência naturalista na forma de escrita brasileira
no final século XIX. A narrativa em terceira pessoa
representa a característica naturalista em que o autor
se posiciona, em um local externo ao ambiente
em que se passa a história, como um espectador,
descrevendo, detalhadamente e de forma objetiva,
tudo o que ocorre. O professor Antonio Candido,
em seu ensaio denominado De Cortiço a Cortiço,
faz uma análise esmiuçada da obra de Aluísio de
Azevedo e nos traz uma síntese da caracterização do
Naturalismo:
(...) para o Naturalismo a obra era
essencialmente uma transposição direta da
realidade, como se o escritor conseguisse
ficar diante dela na situação de puro
sujeito em face do objeto puro, registrando
(teoricamente sem interferência de outro
texto) as noções e impressões que iriam
constituir o seu próprio texto (CANDIDO,
2011, p.7).
Nesse ensaio, Antonio Candido demonstra a
influência da obra L’Assommoir escrita por Emile Zola
em O Cortiço.
Aluísio
de
Azevedo
se
inspirou
evidentemente em L’Assommoir, de Emile
Zola, para escrever O Cortiço (1890), e por
muitos aspectos seu livro é um texto segundo,
que tomou de empréstimo não apenas a ideia
de descrever a vida do trabalhador pobre no
quadro de um cortiço, mas um bom número
de motivos e pormenores, mais ou menos
importantes (CANDIDO, 2011, p.9)
Antonio Candido traz alguns exemplos
dessa influência, não apenas na relação descrita
da existência de um cortiço, mas, também, a
caracterização do trabalho das lavadeiras, incluindo
uma briga entre duas delas (Piedade e Rita Baiana)
e a existência de um policial morador do cortiço
(Alexandre) que representa uma espécie de caricatura
da lei e da ordem. Esses exemplos, trazidos pelo
professor, representam essa derivação da obra de
Aluísio em relação à obra de Zola. A exploração
do trabalho humano e a descrição das relações
instintivas, que beiram a animalidade, acentuadas pela
zoomorfização de algumas personagens, demonstram
a caracterização naturalista da obra brasileira.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
38
Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
Lukács e a crítica ao Naturalismo
Quanto mais os escritores aderem ao
Naturalismo, tanto mais se esforçam por
representar apenas homens medíocres,
atribuindo-lhes somente ideias, sentimentos
e palavras da realidade cotidiana, com o que
o contraste se torna cada vez mais evidente
(LUKÁCS, 2010, p.170)
O pensador marxista György Lukács foi um
dos principais críticos do Naturalismo como forma
de expressão da realidade. Para ele, o Realismo
desempenha essa função de uma forma melhor e
mais fundamental, na medida em que o Naturalismo,
por uma questão de formalismo, a fim de demonstrar
aspectos da realidade, que não necessariamente
contribuem para o esclarecimento sobre a condição
social, não expõem nenhum tipo de crítica, se
omitindo da contribuição para a transformação da
consciência do indivíduo. Sendo que, para Lukács,
contribuir para a transformação da consciência do
indivíduo é a principal função de um escritor.
Em seu ensaio Narrar ou Descrever?, Lukács
faz a relação do Realismo e do Naturalismo com o
método da escrita, sendo o Realismo caracterizado
pela forma narrativa (Narrar) e o Naturalismo pela
forma descritiva (Descrever). Existe uma relação
entre as ações de participar e observar por parte do
leitor. Para tal comparação, Lukács utiliza exemplos
de Balzac e Tolstoi, a fim de representar o modo
da narrativa realista e Flaubert e Zola para o modo
descritivo naturalista.
Em Balzac e Tolstoi tomamos conhecimento
de
acontecimentos
importantes
em
si mesmos, mas que são importantes
também para as relações inter-humanas
dos personagens que os protagonizam e
importantes para a significação social do
variado desenvolvimento assumido pela vida
humana de tais personagens. Assistimos
a certos acontecimentos nos quais os
personagens do romance assumem um papel
ativo. Tais acontecimentos são vividos por
nós.
Em Flaubert e Zola, também os personagens
são espectadores mais ou menos interessados,
dos acontecimentos – e os acontecimentos
se transformam, aos olhos dos leitores, em
um quadro, ou melhor, em uma série de
quadros. Tais quadros são observados por nós.
(LUKÁCS, 2010, p.154)
Segundo Lukács, eis aqui a grande diferença
entre o Realismo e o Naturalismo. No Realismo, o
leitor se sente um participante do romance, na medida
em que os acontecimentos são vividos por ele. No
Naturalismo, o leitor apenas observa os quadros de
acontecimentos descritos pelo autor. Lukács afirma
que tal diferenciação possui uma relação direta com
a posição assumida pelos autores frente ao contexto
social em que viviam.
O contraste entre participar e observar não é
casual, já que deriva da posição de princípio
assumida pelos escritores diante da vida,
dos grandes problemas da sociedade, e não
somente do mero emprego de um diverso
método de representar o conteúdo ou parte
dele. (LUKÁCS, 2010, p.155)
Essa situação de posicionamento dos
escritores acontece no período posterior à derrota
dos trabalhadores nas batalhas que ocorreram em
junho de 1848, que atingiram grande parte da Europa
e que são conhecidas como a Primavera dos Povos.
Após a vitória das forças reacionárias, o capitalismo
toma uma forma acabada na França, o que faz com
que os escritores tenham tal posicionamento perante
o contexto.
Flaubert e Zola iniciaram suas atividades
depois da batalha de junho de 1848,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
39
Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
numa sociedade burguesa já cristalizada
e constituída. Não mais participavam
ativamente da vida desta sociedade e nem
mesmo queriam participar. Nessa recusa
se manifesta a tragédia de uma importante
geração de artistas da época de transição,
já que a recusa é devida, sobretudo, a uma
atitude de oposição, isto é, exprime o ódio,
o horror e o desprezo que eles manifestam
diante do regime político e social do seu
tempo. Os homens que aceitaram a evolução
social desta época tornaram-se estéreis
e mentirosos apologistas do capitalismo.
(LUKÁCS, 2010, p.157)
Então, Lukács faz a relação das formas
Naturalista e Realista com os períodos em que
os autores escrevem e o posicionamento que
eles possuem perante o contexto. O Realismo
corresponde ao período inicial da constituição do
capitalismo e o Naturalismo ao período posterior, em
que o capitalismo já se encontra na forma acabada e
cristalizada.
A alternativa entre participar ou observar
corresponde, assim, a duas posições
socialmente necessárias, assumidas pelos
escritores em dois períodos sucessivos do
capitalismo. A alternativa entre narrar ou
descrever corresponde aos dois métodos
fundamentais de representação próprios
destes dois períodos. (LUKÁCS, 2010, p.157)
Lukács chama a atenção para um ponto
muito importante em relação aos autores que ele
utiliza para exemplificar a forma naturalista. Ambos,
Flaubert e Zola, não são admiradores do capitalismo,
pelo contrário, são opositores e tentam, através da
escrita, mostrar a situação degradante da sociedade
capitalista. Émile Zola, principalmente, tenta através
da descrição, mostrar a situação de aviltamento em
que se encontrava a classe operária no norte da
França, mas o problema se encontra na questão de
que os escritores são “filhos da época em que vivem”,
segundo Lukács.
Em suas opiniões subjetivas e em seus
objetivos como escritores, Flaubert e Zola
não são de modo algum defensores do
capitalismo. Mas são filhos da época em
que viveram e, por isso, a sua concepção
do mundo sofre constantemente a
influência das ideias do tempo. Isso é válido
principalmente para Zola, cuja obra foi
decisivamente marcada pelos preconceitos
banais da sociologia burguesa. Essa é a razão
pela qual a vida se desenvolve nele quase
sem saltos e articulações, podendo mesmo
ser considerada, da sua perspectiva, como
socialmente normal. Todos os atos dos
homens aparecem como produtos normais
do meio social. (LUKÁCS, 2010, p.160-161)
Quando Lukács menciona a influência da
sociologia burguesa, ele se refere ao positivismo,
à sociologia criada por Comte e Durkheim, que
possuíam essa posição de apenas observadores das
condições e situações sociais e naturalização das
contradições do sistema capitalista. O Positivismo
e o Darwinismo Social foram duas correntes
que influenciaram para o caráter cientificista do
Naturalismo. Essas correntes afirmavam que os
problemas sociais derivavam da miscigenação racial e
da desorganização das relações sociais, mas que tais
problemas iriam se extinguir com o progresso do
capitalismo e o branqueamento universal.
Por isso, utilizando da forma descritiva
de retratar a realidade, o Naturalismo acaba
naturalizando e atenuando os problemas e as
contradições do mundo capitalista, na medida em
que coloca o homem como simples resultado da
influência do meio. O homem passa a ser apenas
um figurante da história e não mais o sujeito de sua
história. O homem não tem mais a opção da escolha.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
40
Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
Ele é simples vítima do determinismo.
Para Lukács, o método descritivo é inumano,
transforma o homem em natureza morta.
Portanto, seria um erro supor que o
método descritivo reflete adequadamente
o capitalismo em toda a sua desumanidade.
Ao contrário! Tais escritores atenuam
involuntariamente a desumanidade do
capitalismo. E isto porque o triste destino
que faz com que existam homens sem uma
rica vida interior, sem uma viva humanidade
em contínuo desenvolvimento, é bem menos
revoltante do que o fato de que o capitalismo
transforme dia após dia e hora após hora, em
‘cadáveres vivos’ milhares de homens vivos,
dotados de infinitas possibilidades humanas.
(LUKÁCS, 2010, p.183-184)
Além do Naturalismo
Segundo a conceituação do Naturalismo
como a forma descritiva que, e que, portanto, não
consegue reproduzir a desumanidade do capitalismo,
a dúvida que fica é se a obra O Cortiço, de Aluísio de
Azevedo, deve ser classificada como naturalista? Para
tentar responder a essa questão, podemos recorrer
novamente ao ensaio De Cortiço a Cortiço, de Antonio
Candido. Neste ensaio, ele nos mostra que existe em
O Cortiço um avanço em relação ao Naturalismo
europeu. Segundo Candido, o romance de Aluísio foi
o primeiro a descrever minuciosamente o mecanismo
de formação da riqueza individual. E a originalidade
da obra se encontra na retratação da coexistência do
explorado e do explorador.
A originalidade do romance de Aluísio está
nesta coexistência íntima entre explorado
e o explorador, tornada logicamente
possível pela própria natureza elementar da
acumulação num país que economicamente
ainda era semicolonial. Na França o processo
econômico já tinha posto o capitalista longe
do trabalhador; mas aqui eles ainda estavam
ligados, a começar pelo regime da escravidão,
que acarretava não apenas contato, mas
exploração direta e predatória do trabalho
muscular. (CANDIDO, 2011, p.11)
Em O Cortiço, Aluísio de Azevedo faz uma
relação de aproximação e distanciamento em relação
ao Naturalismo de Zola. Podemos facilmente
identificar personagens que nos demonstram a
influência e a ruptura existente com o tal Naturalismo.
Para isso, destacaremos três personagens: o
trabalhador Jerônimo, o capitalista João Romão e a
escrava Bertoleza.
Jerônimo é a personagem que mais se
enquadra no determinismo característico no
Naturalismo. Ele é o exemplo do homem vencido pelo
meio. Português, trabalhador, homem respeitável e
sem vícios, tem a sua vida transformada no momento
em que se apaixona pela mulata Rita Baiana. Rita é a
encarnação do “meio” brasileiro. A mulata envolve os
homens com a sua dança, que, na concepção da obra,
aguça a volúpia masculina. Neste sentido, Aluísio de
Azevedo evidencia a relação entre o homem e o meio
quando narra a noite da primeira relação sexual entre
Jerônimo e Rita Baiana.
Rita preferiu no europeu o macho de
raça superior. O cavouqueiro, pelo seu
lado cedendo às imposições mesológicas,
enfarava a esposa, sua congênere, e queria
a mulata, porque a mulata era o prazer, era
a volúpia, era o fruto dourado e acre destes
sertões americanos, onde a alma de Jerônimo
aprendeu lascívias de macaco e onde seu
corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.
(AZEVEDO, 2011, p.279)
Quando Jeronimo se rende ao encanto de Rita
Baiana, ele se entrega à volúpia típica destes sertões
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
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Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
americanos, ao meio brasileiro; sendo comparado a
um animal, comportando-se como um macaco.
A personagem João Romão, por conseguinte,
é a oposição ao determinismo característico do
Naturalismo. Ele é o exemplo do homem que vence
o meio. Português ambicioso, aproveita todas as
oportunidades que lhe apresentam para conseguir
aumentar a sua renda. Na primeira oportunidade,
engana a escrava Bertoleza a fim de ficar com o
dinheiro de sua alforria. No episódio do incêndio
que destrói o cortiço, por exemplo, aproveita a
oportunidade para reformar e aumentar o local,
reajustando o aluguel dos inquilinos. Ao final, ele
é a personagem que alcança suas metas, através
da exploração do trabalho humano. E ainda muda
seu modo de vestir, comer e agir, incorporando a
ideologia burguesa.
A perspectiva naturalista ajuda a
compreender o mecanismo d’O cortiço,
porque o mecanismo do cortiço nele descrito
é regido por um determinismo estrito, que
mostra a natureza (meio) condicionando o
grupo (raça) e ambos definindo as relações
humanas na habitação coletiva. Mas esta
força determinante de fora para dentro
é contrabalançada e compensada por
uma força que atua de dento para fora: o
mecanismo de exploração do português,
que rompe as contingências e, a partir do
cortiço, domina a raça e supera o meio. O
projeto do ganhador de dinheiro aproveita
as circunstâncias, transformando-as em
vantagens, e esta tensão ambígua pode talvez
ser considerada um dos núcleos germinais da
narrativa. (CANDIDO, 2011, p.24)
Essas
duas
personagens
apresentam
a
relação dialética que encontramos na obra. Relação
essa entre o indivíduo e o meio. Na medida em
que existe uma força do meio, que influência no
comportamento humano, existe, também, uma força
do comportamento humano, que supera o meio. E,
no caso de João Romão, além de superar o meio, ele
também o modifica, alterando, assim, a influência que
o meio exerce sobre os moradores do cortiço.
Contudo, a personagem Bertoleza é a maior
representação de como a obra vai além da forma
naturalista. Se Lukács afirma que o Naturalismo
restringe-se a descrever a realidade, a história da
escrava Bertoleza é muito mais que uma simples
descrição da exploração do trabalho humano.
Bertoleza é a representação do posicionamento do
autor perante o contexto. Através da cena do suicídio
da escrava, no momento em que o seu explorador
recebia em casa uma comissão de abolicionistas que
vinha trazer-lhe o diploma de sócio benemérito,
Aluísio de Azevedo demonstra claramente seu
engajamento, sua crítica ao processo desumano de
exploração do trabalho. Processo este caraterístico e
acobertado pelo mundo capitalista.
Considerações Finais
A partir da análise feita através da
conceituação, segundo Lukács, da forma descritiva
caraterística do Naturalismo europeu, pode-se
afirmar que O cortiço é uma obra que possui muitas
influências desse Naturalismo descritivo, mas que
se aproxima mais do Realismo narrativo, na medida
em que: se o meio determina o homem, o homem
consegue também superar o meio, demonstrando
que existe, nessa obra, uma relação dialética entre o
homem e o meio.
Além disso, o autor não faz uma simples
descrição do cortiço e de suas relações visíveis.
Ele narra a história da acumulação primitiva de
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
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Artigo
Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo na perspectiva lukacsiana
Ednilson Esmério Toledo da Silva
capital do português, utilizando-se de elementos
alegóricos e manifestações simbólicas, que podem
ser tomadas como descaracterizações do formalismo
naturalista, na medida em que se distanciam da
visão cientificista do mundo. Aluísio de Azevedo
não se restringe a descrever a realidade de forma a
naturalizar as contradições do mundo capitalista.
A relação íntima, com um final trágico entre o
capitalista João Romão e a escrava Bertoleza, relação
íntima entre explorador e explorado, é um exemplo
da desnaturalização da relação de exploração do
trabalho humano característico do mundo capitalista.
Ao dar à personagem Bertoleza o final épico do
suicídio, o autor traz ao primeiro nível da narrativa,
descortinando, aos olhos do leitor, sua crítica em
relação à desumana exploração advinda do sistema
capitalista. Assim, é possível concluir que classificar
O Cortiço de Aluísio de Azevedo como uma obra
simplesmente naturalista, se torna um reducionismo
literário.
SCHWARZ, Roberto. Adequação nacional e
originalidade crítica. In: Sequencias brasileiras. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Expressão
Popular, 2011.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª Edição.
São Paulo: Publifolha, Coleção Grandes nomes
do pensamento brasileiro, 2000.
______. De cortiço a cortiço. In: AZEVEDO, Aluísio.
O cortiço. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
LUKÁCS, György, Narrar ou descrever?. In:
Marxismo e teoria da literatura. 2ª Edição, São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.
43
Ensaio
O Estado de exceção: um labirinto
entre a ficção e a realidade
Ricardo de Azevedo Cruz Vianna
Bracharel em Letras, com habilitação em língua
alemã, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (Unesp) e graduando em
Sociologia e Política, pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Resumo
Este breve ensaio faz uma reflexão acerca do conceito de Estado de exceção
permanente e os impactos que esta técnica de governo tem sobre os indivíduos na
contemporaneidade. Esta breve reflexão se inicia por meio da leitura do livro O
Processo, de Franz Kafka, lançado em 1914, e, também, tomando como base teórica
os escritos de Giorgio Agambem, Michel Foucault, bem como alguns textos sobre a
construção da personagem de ficção, teoria do romance e história da Literatura alemã.
Palavras -Chave
Estado de exceção; Técnica de governo; Suspensão de direitos; Execução; Sociedade
contemporânea.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 45-48.
45
Artigo
O Estado de exceção: um labirinto entre a ficção e a realidade
Ricardo de Azevedo Cruz Vianna
Estado de exceção: entre a ficção e a
realidade
Josef K., aproximadamente 31 anos, é
condenado e executado num processo judicial do
qual não tomou conhecimento de sua real acusação.
Depois de um ano de luta para se defender, sem
saber do que – idas e vindas a um tribunal em busca
de informações sobre seu caso, interrogatórios
inconclusos – Josef K. é condenado a morte e
executado por dois agentes numa praça da cidade
com um facada no peito. Noutra direção:
Investigações feitas pela Polícia Civil
mostram que as consultas de antecedentes
criminais de vítimas de homicídios na
Grande São Paulo neste ano aconteceram
em batalhões e até cidades diferentes do
local das mortes. (...) A descoberta, segundo
a investigação, mostra possível articulação
entre policiais envolvidos em mortes e que
a troca de consultas sobre antecedentes
de vítimas era disseminada por batalhões.
(BENITES, Afonso, 2012, p. C3).
Inicio esta breve reflexão chamando a atenção
para estes dois casos. O que repousa sobre eles? O
que os aproxima? O que os afasta? Pode-se pensar
em dois fatos perdidos no emaranhado de coisas
acontecidas no cotidiano de uma cidade violenta. Um
espetáculo que se anuncia dia-a-dia e invade as casa
na tela dos televisores, notícias que se perdem no mar
de tragédias mostradas cotidianamente.
Trata-se do assassinato de pessoas que se
tornam suspeitas, são julgadas e executadas sem
direito a defesa. Mas se defender do quê? O que se vê,
aqui, são as vísceras do Estado agindo, uma técnica
de poder exercido acima de qualquer lei. Prefigurase o Estado de exceção permanente, no qual se vive
atualmente.
O totalitarismo moderno pode ser definido,
nesse sentido, como a instauração, por meio
do estado de exceção, de uma guerra civil
legal que permite a eliminação física não
só dos adversários políticos, mas também
de categorias inteiras de cidadãos que, por
qualquer razão, pareçam não integráveis
ao sistema político. Desde então, a criação
voluntária de um estado de emergência
permanente (ainda que, eventualmente,
não declarado no sentido técnico) tornouse uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados
democráticos. (AGAMBEM, 2004, p. 13).
Interessante observar que o primeiro fato
trata da história de uma das personagens mais
importantes do universo literário de Franz Kafka. O
Processo é um dos mais importantes livros do século
XX, lançado em 1914, e apresenta os passos de Josef
K. até a morte, a partir do momento em que sua
liberdade fora suspensa por uma acusação, da qual
precisa se defender, sem saber, exatamente, do que
está sendo acusado.
Kafka nos lança, como espectadores, num
labirinto, cuja única saída é a morte, acompanhando
Josef K. e seu Processo, que se perde nos corredores
da burocracia de um Estado sem rosto, que suspende
seus direitos e o executa, sem deixar claro o porquê e
baseado em quais leis isso se dá. Uma leitura possível
dos fatos narrados em O Processo é que Josef K. é
acusado e executado simplesmente por ser o que é:
um cidadão comum, trabalhador, que, numa manhã,
é surpreendido e envolto num processo judicial,
acusado de algo que não sabe o que é.
Aqui se apresenta um dos resultados do que
este Estado de exceção causa num indivíduo. Kafka,
já no final do século XIX e início do século XX, prevê
o que um Estado totalitário, mesmo travestido de
liberal-democrático, é capaz de realizar, não com um
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 45-48.
46
Artigo
O Estado de exceção: um labirinto entre a ficção e a realidade
Ricardo de Azevedo Cruz Vianna
indivíduo (no caso de Josef K.), mas, com toda uma
máquina burocrática e seus agentes cumpridores das
ordens: máquinas de matar em nome deste mesmo
Estado.
Faz-se aqui a ponte com o segundo caso
retirado de uma recente notícia, em um jornal
de grande circulação, num caderno denominado
Cotidiano. Pessoas que, por seus antecedentes
criminais, perdem direito a um julgamento, ou
melhor, já foram condenadas a morte, de antemão,
e executadas por agentes do Estado. Algo que se
mostra possível somente sob as asas de um Estado de
exceção permanente.
Essa técnica de governo, que emerge no
século XX, revela como se dão as relações de poder.
Poder tomado da seguinte forma:
O poder não é uma substância. Tampouco
é um mistério atributo do qual se precisaria
escavar as origens. O poder não é senão um
tipo particular de relações entre indivíduos.
E essas relações são específicas: dito de
outro modo, eles nada tem a ver com a
troca, a produção e a comunicação, mesmo
se elas lhe são associadas. O traço distintivo
do poder é que alguns homens podem
mais ou menos determinar inteiramente a
conduta de outros homens – mas nunca de
maneira exaustiva ou coercitiva. Um homem
acorrentado e espancado é submetido à
força que se exerce sobre ele. Não ao poder.
Mas se ele pode levá-lo a falar, quando seu
último recurso poderia ter sido o de segurar
sua língua, preferindo a morte, é porque
o impelimos a comportar-se de uma certa
maneira. Sua liberdade foi sujeitada ao
poder. Ele foi submetido ao governo. Se um
indivíduo pode permanecer livre, por mais
limitada que possa ser sua liberdade, o poder
pode sujeitá-lo ao governo. (FOUCAULT,
2006, p. 384).
O Estado de exceção se prefigura como
uma técnica de governo, ou, ainda, como uma
forma de exercício de poder, que traz aos indivíduos
consequências, como estas que observamos,
antevistas por Kafka em seu O Processo, ou, mais
ainda, como esta que povoa os jornais diários que
circulam pelas cidades.
Basta observar a racionalidade do Estado
nascente e ver qual foi seu primeiro projeto
de polícia, para se dar conta de que, desde
os seus primórdios, o Estado foi ao
mesmo tempo individualizante e totalitário.
(FOUCAULT, 2006, p. 385).
Kafka, numa passagem d’O Processo, atesta, de
alguma maneira, o que está acima citado em Foucault:
Quando às vezes emerge num grupo a
crença num interesse comum, ela logo ser
um equívoco. Nada que seja comum pode
se impor sobre o tribunal. Cada caso é
examinado em si mesmo, é o tribunal mais
cauteloso que existe. Portanto, não se pode
obter nada numa ação conjunta, só um
indivíduo isolado às vezes alcança alguma
coisa em segredo – e só quando o alcança é
que os outros ficam sabendo; ninguém sabe
como aconteceu. (KAFKA, 1997, p. 214).
Esse estado de coisas traz à tona o seguinte
ponto, levantado por Giorgio Agambem (2004, p. 489):
Longe de responder a uma lacuna
normativa, o estado de exceção apresentase como a abertura de uma lacuna fictícia
no ordenamento, com ao objetivo de
salvaguardar a existência da norma e sua
aplicabilidade à situação normal. A lacuna
não é interna à lei, mas diz respeito à sua
relação com a realidade, à possibilidade
mesma de sua aplicação. É como se o direito
contivesse uma fratura essencial entre o
estabelecimento da norma e sua aplicação
e que, em caso extremo, só pudesse ser
preenchida pelo estado de exceção, ou
seja, criando-se uma área onde aplicação
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 45-48.
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Artigo
O Estado de exceção: um labirinto entre a ficção e a realidade
Ricardo de Azevedo Cruz Vianna
é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal,
permanece em vigor.
É a partir da junção entre ficção e realidade,
que esta reflexão busca evidenciar que se vive
atualmente num estado de exceção contínuo, bem
como, apontar os perigos que essa técnica de
governo traz aos cidadãos e que, portanto, se faz
necessário um processo de resistência a essa forma de
governar pessoas, visto que seus resultados podem se
apresentar nefastos. Até porque,
A libertação só pode vir do ataque não
a um ou outros desses efeitos, mas às
próprias raízes da racionalidade política.
(FOUCAULT, 2006, p. 385).
CARPEAUX, Otto Maria. Literatura alemã. São
Paulo: Editora Nova Alexandria, 1994.
FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim: uma
crítica da razão política”. In: Ditos e Escritos. Vol.
IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
KAFKA. Franz. O Processo. São Paulo: Companhia
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ROSENFELD, Anatol. “Literatura e Personagem”.
In: CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
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paradigma de governo”. In: Homo Sacer II. Estado
de exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004.
BENITES, Afonso. “Mortos na Grande SP tiveram
antecedentes consultados na capital”. In: Folha
de São Paulo. Caderno Cotidiano. São Paulo,
24/11/2012, p. C3.
BETTEX, Albert. “A Literatura Moderna”. In:
BÖSCH, B. (org.). História da Literatura alemã. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1967.
CANDIDO, Antonio. “A personagem do romance”.
In: CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 45-48.
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Relatório da Comissão
da Verdade
da FESPSP
Crise institucional na FESPSP
entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da
Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
Graduando em Sociologia e Política, pela
Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo (FESPSP), e membro da Comissão da
Verdade da FESPSP.
Contato: [email protected].
Introdução
Em 18 de Agosto de 1983 tem início na
Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo (FESPSP) uma greve de professores que,
não recebendo seus salários há, aproximadamente,
três meses, terminaria por ser o estopim de uma
crise institucional que colocaria a nu as verdadeiras
intenções da diretoria geral da instituição em
promover um quebra na Escola de Sociologia e
Política e na Faculdade de Biblioteconomia. Tal
intenção não se deu exclusivamente por má gestão
dos recursos, como pode parecer a um olhar
desatento sobre as matérias que circularam nos
grandes jornais da época. Terminar com as atividades
da então cinquentenária Escola, era terminar com
formação de quadros de esquerda que se diplomavam
nas Ciências Sociais e, de quebra, reverter fundos
para organizações de combate ao comunismo e aos
ideais marxistas. Documentos encontrados pelos
estudantes que ocuparam o casarão da Rua General
Jardim, em solidariedade à greve dos professores, na
sala do secretário geral da FESPSP, expuseram um
esquema de financiamento e uma rede de relações
que havia entre o corpo diretivo com grupos de
extrema direita, no subcontinente latino-americano.
Cartas vindas dos próprios filhos de Somoza,
ditador nicaraguense, foram encontradas em meio
aos documentos da reitoria. Porém, os vínculos
com tais grupos não se davam apenas em âmbito
internacional. Pelo contrário. O principal eixo de
relacionamento se dava dire-tamente com um grupo
de extrema direita brasileiro, muito ativo no período
de 1964 a 1985: o Comando de Caça aos Comunistas
(CCC), responsável por delitos como ataques à
bomba e sequestro seguido de morte, mantinha uma
célula ativa entre os membros da direção e os corpos
discente e docente da FESPSP. A instituição era um
dos últimos redutos do destacado grupo que, não
obtendo mais espaço na Universidade Presbiteriana
Mackenzie, encontrou as condições necessárias para
sua manutenção e atuação. Na época, estudantes
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
49
Artigo
Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
que faziam parte das fileiras do CCC rondavam o
casarão com armas em punho, em clara ameaça aos
estudantes, que ocupavam o prédio. Tais fatos são o
pano de fundo de uma crise institucional e política
que se abrandaria somente no fim de 1984, após
intervenção estadual na FESPSP e demissão de 80%
do conselho da Fundação e posse de nova diretoria
acadêmica.
Levando em consideração essa breve
apresentação, este trabalho tem por objetivo
apresentar os fatos ocorridos nesta instituição entre
os anos de 1983 e 1985, fazendo com que não
caiam no simples esquecimento. Ao mesmo tempo,
o que se objetiva é alertar ao público leitor de que
estamos sempre expostos ao risco de se ter ideias
anti-democráticas e contra a atividade do livre pensar
em um ambiente de estudos e de con-vivência. O
ano de 2013 foi bastante significativo: completaramse trinta anos do início desta crise e os oitenta anos
da criação da FESPSP, consequentemente, do ensino
da sociologia no Brasil. Junta-se a isso o trabalho
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que vem
fazendo um trabalho no sentido de garantir o direito
à memória e o combate à impunidade e injustiças
cometidas nos anos de ditadura militar no Brasil.
É nosso dever debruçar-nos sobre os eventos que
tiveram efeito sobre a sociedade, com-preendendo-os
e refletindo sobre seu real significado na atualidade.
A crise financeira
A crise de dos primeiros anos de 1980 se
inicia em 18 de agosto de 1983. Nesta data foi
convocada uma assembleia que, com a presença do
sindicato da categoria, definiu o início da greve de
professores, que não recebiam seus pagamentos
há cerca de três meses, para transcorridas 72 horas
após o comunicado à direção da Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, mantenedora dos
cursos de Sociologia e Biblioteco-nomia1. Na época,
a dívida da FESPSP representava Cr$ 8.000.000, de
acordo com o então diretor da escola, senhor Ricardo
Teixeira Brancato. Segundo ele, o MEC não havia
liberado a verba, já aprovada, que seria destinada
à escola. Sua proposta, para a solução do problema
era a venda de dois imóveis, que não estavam sendo
usados pela Fundação, e que, juntos, somavam o valor
de Cr$ 160.000.000. Seria uma quantia sufi-ciente
para a quitação das dívidas trabalhistas e ainda geraria
um caixa excedente de mais de Cr$ 150.000.000. Para
Brancato, tal decisão apenas esbarrava na indecisão
do conselho superior da Fundação, que, em três
reuniões, não obteve quórum para aprova-ção da
medida2. Porém, a versão de Ricardo Brancato,
de que a verba destinada pelo MEC não estaria
sendo liberada, é contrariada em matéria escrita por
Maurício Tragtenberg, para o jornal Folha de São
Paulo, de 15 de setembro de 19833.
Na matéria, o sociólogo diz que a verba de
Cr$ 10.000.000 havia sido rejeitada pela direção
da Fundação, sob o pretexto de que seria “mero
paliativo”. Mas esta verba seria suficiente para quitar
as dívidas trabalhistas e ainda restariam Cr$ 2.000.000
para outros fins. Além disso, afirma Tragtenberg,
outras rendas vinham de entidades como o SESI,
para a execução da pesquisa sobre o padrão de vida
dos operários. Tal contratação de serviços feita ao
instituto de pesquisa da FESPSP, cujo Brancato era
diretor, rendeu uma cifra de Cr$ 27.000.000, além de
Cr$ 150.000.000, sobre outros contratos de pesquisa.
Somando-se os valores, a FESPSP teve entrada
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
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Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
de Cr$ 187.000.000 nos meses anteriores à greve
docente. Agora, outro elemento deve ser adicionado
a esta conta, segundo Tragtenberg: a reforma do
piso de todos os gabinetes dos membros da diretoria
com madeira de lei que custou Cr$ 15.000.000. Ou
seja, quantia mais que suficiente para quitar a dívida.
Mas para onde era remetida tamanha cifra? Como a
Fundação não poderia pagar a dívida trabalhista de
Cr$ 8.000.000 se tinha um rendimento que batia a
casa das centenas de milhões de cruzeiros?
A ocupação do casarão
Em 26 de agosto de 1983, em apoio à greve
dos professores, os estudantes também aderem
ao movimento grevista, e ocupam pacificamente
o casarão da Rua General Jardim, então sede da
mantenedora da FESPSP. De acordo com o jornal
Folha de São Paulo, de 28 de agosto de 19834,
doze alunos se revezam no local diuturnamente.
As demandas dos estudantes se resumem em
quatro pontos fundamentais: congelamento das
mensalidades, que tiveram aumento de 58,5% no
semestre; imediato pagamento dos professores;
demissão da diretoria; e estatização da Fundação,
ameaçada de insolvência. Este quarto ponto baseado
em movimentos feitos pela direção da FESPSP, para
eliminar os cursos de graduação e transformá-la em
centro de pesquisa e estudos políticos, ape-nas. Esta
intenção ficava patente, a partir de manobras da
diretoria em mudar o estatuto da entidade, no ano
anterior, para fundação com fins privados, cortando,
inclusive, os vínculos com a USP, facilitando a
condição de insolvência. A debandada de alunos nos
meses anteriores à crise, ocasionada pelo aumento das
mensalidades e problemas com o ensino das matérias-
chave do currículo, por professores não habilitados,
criava caldo suficiente para que a divida da FESPSP
fosse considerada insolvente. Mas, como apon-tou
Maurício Tragtenberg e documentos encontrados
pelos estudantes na reitoria ocupa-da, verbas não
faltavam. Um telex foi encontrado em um dos
arquivos, comprovando remessa de Cr $33.000.000
para a instituição, oriundos de fundos do MEC5.
Evidencia-se, dessa maneira, que havia desvio
de verbas. Mas foi na sala do então secretário geral
da FESPSP, Antônio Affonso Xavier de Serpa Pinto,
que os estudantes encontraram os documentos que
comprovavam o caminho do dinheiro. Antônio de
Serpa Pinto era membro de uma organização chamada
Federación de Entidades An-ticomunistas Latinoamericanas e
era para o financiamento de grupos de extrema direita
na América Latina que estes valores vazavam. Eram
desviados “com o propósito de lançar uma ofensiva
geral contra a ameaça marxista”, diz carta encontrada
no gabinete6.
Houve uma reunião deste grupo em
Campos do Jordão, em meados de dezembro de
1983, documentada em um recorte de jornal sem
data e descrição. A esta reunião esta-vam presentes,
além de Antônio Serpa Pinto, aproximadamente,
cinquenta pessoas de dezoito países da América
Latina, representando organizações como Movimento
Costa Rica Livre, Aliança Revolucionária Democrática e
Frente Democrática Nicaraguense. Outros políticos, como
Sebastião Curió (ex-major do exército, atuante na
guerrilha do Araguaia), Siqueira Campos e Ademar
Guizzi, foram convidados, mas não comparece-ram.
Estavam presentes, também, observadores europeus:
Ernesto La Fé (cubano radi-cado nos EUA) e outros
brasileiros como José Brota, professor, Venceslau
Costa, jorna-lista nordestino e o advogado Carlo
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
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Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
Barbieri. Nesta reunião foi fundada a Federação
Democrática da América Latina com o paraguaio Juan
Manoel Frutos, vice-presidente do Partido Colorado,
sendo eleito presidente da organização. Porém, não
era apenas Antônio de Serpa Pinto ligado a grupos de
extrema direita. Ricardo Brancato, segundo Tarso de
Castro, em matéria do jornal Folha de São Paulo, de 03
de junho de 19847, foi responsável pela rearticulação
de uma das últimas células do CCC, agora na FESPSP.
Ricardo era, até outubro de 1982, da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, reduto de articulação da
direita paulistana. No fim de 1982, em eleição para os
oito diretórios acadêmicos, em apenas um se manteve
a tradição direitista. Diante de tal golpe, Brancato e
outros mackenzistas refundaram, na FESPSP, uma
célula do CCC. Segundo o Centro Acadêmico na
época, eram cinco estudantes vinculados ao comando,
mantidos com bolsa integral: Alexandre A. Inojosa,
fundador da Assembleia Nacional dos Organismos
Patrióticos (ANOP); Hagnon Nicolaos Kypriades,
Mario Alves Monteiro Filho, Paulo Fernando Kasseb
e Verena Uebele. Além do professor Mário Fontes,
acusado por Tarso de Castro em outra matéria, de ser
um dos membros dos atentados a bomba a bancas de
jornal8, e o secretário geral Antônio Affonso Xavier
de Serpa Pinto. Aliás, segundo Ricardo Ribeiro,
membro da ocupação da reitoria, Alexandre A.
Inojosa aparecia acompanhado de Roberto Tantini,
rondando o casarão. Este segundo de arma em
punho, em claro sinal de intimidação do movimento
grevista.
Foram quase dois meses de ocupação do
casarão, terminando somente em 16 de outubro de
1983. Durante este tempo, as manifestações de apoio
aconteciam regularmente, com o auxílio de políticos
e demais membros da sociedade civil. No período, foi
bastante explorada a possibilidade de municipalização
da FESPSP. Possibilidade, esta, descartada pelo então
prefeito Mario Covas. “Entrar no ensino superior
seria complica-do”, teria afirmado o prefeito, já que
era responsabilidade do município o ensino de 1º
grau9.
O impasse se tornava cada vez mais
complicado à medida que a data de lançamento do
edital para os vestibulares de 1984 e a data limite
de emissão dos documentos para recredenciamento
da instituição junto ao MEC se aproximavam. Na
verdade, a manobra da direção da Fundação em
não aparecer para receber as chaves dos estudantes
foi pensada para oferecer o álibi de que não teria
tido acesso aos documentos para reali-zação do
recadastramento10. Tal manobra foi frustrada
por uma liminar concedida, que impusera cinco
determinações à instituição: i) afastamento provisório
de todos os dirigentes e membros do conselho
superior; ii) nomeação de interventor de confiança
do juízo das varas de família e sucessões; iii) auditoria
para apuração de irregularidades; iv) garantia de
realização de vestibulares para o ano letivo de 1984;
e v) recredenciamento junto ao MEC11. Devido
ao fato de dez dos doze membros do conselho
superior da FESPSP se demitirem coletivamente,
sob intervenção do promotor Bandeira Lins, em 2 de
dezembro de 1983, foi empossado, provisoriamente,
novo conselho12.
A nova diretoria
No legislativo estadual a possibilidade de
apoio não foi considerada inviável. Em sessões
ordinárias, o deputado Paulo Frateschi13 (PT) e
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
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Artigo
Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
a vereadora Irede Cardoso subiram à tribuna em
defesa da intervenção na instituição14. E é em 9 de
dezembro de 1983, que a Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo permite a concretização
do convênio entre o poder executivo e a FESPSP, a
fim de sanar os problemas políticos e financeiros da
instituição, através da aprovação da Lei nº 516/1983,
de autoria do deputado Paulo Frateschi15. Três dias
depois seria empossado, definitivamente, o novo
corpo diretivo da Fundação, composto por Fernando
Henrique Cardoso, Gabriel Cohn (Associação dos
Sociólogos do Estado de São Paulo), Luís Eduardo
Almeida Curti (OAB), Manoel Tosta Berlinck
(CEBRAP), Maria Vitória Benevides (CEDEC), Neli
Siqueira (Associação dos Bibliotecários), Oliveiros
da Silva Ferreira (USP), Oracy Nogueira (indicado
por Florestan Fernandes), Vicente Trevas, Waldisa
Camargo Guarnieri (Associação dos Museólogos),
além de Joaquim Pedro Vilaça e Antônio Rubbo
Muller (este segundo já era conselheiro vitalício)16.
Nomearam para diretoria acadêmica Gabriel Cohn
(Diretor) e Vicente Trevas (vice-diretor)17. Porém, em
27 de dezembro do mesmo ano, o governador André
Franco Montoro veta totalmente o projeto de Lei
nº 516/1983, argumentando que a incorporação da
FESPSP a uma das universidades estaduais acarretaria
ônus não previstos ao Erário e uma intervenção na
instituição através do executivo estadual iria contra a
autonomia universitária definida por lei18.
O primeiro problema enfrentado pela nova
diretoria foi a tentativa, por parte do Conselho
Federal de Educação (CFE), de instaurar um
inquérito para investigar as irre-gularidades
encontradas na Fundação, nos meses anteriores.
Dependendo das conclu-sões da investigação, o
fechamento da instituição se colocava como uma
possibilidade. Afinal, não se sabia sobre as relações
dos membros do CFE, órgão ligado ao executivo de
João Batista Figueiredo, com os setores da extrema
direita, que ocupavam os cargos de direção, e que
foram demitidos por intervenção estadual. Gabriel
Cohn, inclusive, em entrevista ao jornal Folha de
São Paulo, de 23 de dezembro de 1983, diz: “Um
dia des-tes estava ouvindo ‘A Voz do Brasil’ e, de
repente, no meio do noticiário do senado, surgiu um
enérgico discurso do senador Fernando Henrique
Cardoso, denunciando a crise em que se encontrava
a FESP”. O mais estranho, acrescentou, “(...) é o fato
desse discurso (feito a mais de quinze dias) ter sido
transmitido pelo programa como um acontecimento
do dia. E o caso fica mais surrealista quando se
constata que na data em que foi transmitido o
discurso o senador já era o presidente do conselho
superior da Fundação...”. Tais fatos levam a crer
que havia realmente um plano arquitetado juntamente ao governo federal, para desestabilizar a nova
diretoria e o funcionamento da FESPSP19. A diretoria
conseguiu dissuadir o intento, mas, em julho de 1984,
o CFE reiterou o pedido de abertura de inquérito na
Fundação20. O que, aparentemente, não aconteceu
novamente.
“Diretas, já!” na Sociologia
O primeiro semestre de 1984 aconteceu sem
maiores problemas, com a diretoria trabalhando para
sanar as dificuldades da instituição. Em outubro de
1984, o corpo es-tudantil entra em colisão frontal
com a diretoria, encabeçada por Gabriel Cohn, que
promete impedir a matrícula de estudantes que não
estivessem com as mensalidades em dia. Segundo o
jornal Folha de São Paulo, de 12 de outubro de 198421,
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
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Artigo
Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
os débitos provenientes do não pagamento das
mensalidades com a FESP era de Cr$ 157.500.000.
Destes, Cr$ 130.000.000 apenas na sociologia.
Porém, em documento convocatório para assembleia
estudantil, se elencam alguns elementos que não
foram explicitados pela matéria supracitada. Segundo
os estudantes, houve um aumento de Cr$ 45.000,00
para Cr$ 68.000,00 nas mensalidades e a outorga
de plenos poderes à diretoria, para a proibição de
realização de provas e, como exposto anteriormente,
o cancelamento de matrículas. Além disso, chamam
a atenção para a constituição de uma Comissão
Paritária de fato, como havia sido prometido aos
estudantes, pela direção recém-empossada nos idos de
198322. A partir de então, seguiram-se várias crises. A
determinação, pela direção da Fundação, da realização
de um concurso para a eliminação de dezesseis vagas
no corpo docente, na Escola de Sociologia e Política
e na Faculdade de Biblioteconomia, foi uma delas. O
concurso seria classificatório e aberto aos interessados
de fora da FESPSP23. Toda a crise se desenrolava
sobre o entendimento de que seria o concurso mero
pretexto para demissão em massa, direcionada a
um corpo docente que não recebia seus salários há
três meses24. A Fundação se compromete a pagar os
salários atrasados, no final do mês de fevereiro de
1985, quando os estudantes liquidariam suas dívidas
com a instituição. Em reunião com a direção, ficou
decidido que o concurso ocorreria, porém, apenas no
final do ano letivo de 1985, e não em março, como
havia sido determinado anteriormente25. O impasse
somente foi solucionado em 3 de fevereiro, com um
acordo sobre os pagamentos atrasados, a realização
do concurso e a regularização do currículo do curso
junto ao CFE26. Em abril de 1985, através de votação
direta pela comunidade acadêmica, é eleita a nova
diretoria da Escola de Sociologia e Política e da
Faculdade de Biblioteconomia27. Tal desfecho, porém,
não dá fim às crises na instituição, que continuarão
a acontecer uma após outra. Mas encerra o episódio
das crises resultantes da presença de um grupo de
extrema direita, organizado no corpo da FESPSP, nos
últimos anos de ditadura militar.
Notas:
1
Diário Popular (1983), “Greve na Sociologia e Política”, 19 de
agosto.
2
Folha de São Paulo (1983), “Falta de verbas ameaça Escola de
Sociologia”, 25 de agosto.
3
Tragtenberg, Maurício (1983). “A profunda crise da Sociologia
e Política”, Folha de São Paulo, 15 de setembro.
4
Folha de São Paulo (1983), “Ocupada reitoria da Escola de
Sociologia”, 28 de agosto.
5
Folha de São Paulo (1983), “Estudantes temem represálias”, 30
de agosto.
6
Folha de São Paulo (1983), “Alunos acusam extrema direita”, 31
de agosto.
7
Castro, Tarso de. (1984), “O CCC em Marcha”, Folha de São
Paulo, 03 de junho.
8
Castro, Tarso de. (1984), “O CCC em Marcha”, Folha de São
Paulo, 07 de junho, p.34.
9
Folha de São Paulo (1983), “Escola de Sociologia não será
municipalizada”, 27 de setembro.
10
Jornal da Tarde (1983), “Os alunos, tentando evitar o
fechamento da escola.”, 01 de novembro.
11
Jornal da Tarde (1983), “Ainda a crise na Escola de Sociologia”,
09 de novembro.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
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Artigo
Crise institucional na FESPSP entre 1983 e 1985
CCC e CFE: duas siglas pelo fim da Sociologia e Política
Dyego Pegorario de Oliveira
12
Diário Popular (1983), “Escola de Sociologia e Política volta a
funcionar segunda-feira”, 03 de de-zembro, p.07.
13
Diário Oficial do Estado de São Paulo (1983), 11 de outubro.
14
Diário Oficial do Estado de São Paulo (1983), 27 de setembro.
15
Diário Oficial do Estado de São Paulo (1983), 09 de dezembro.
16
Folha de São Paulo (1983), “Sociologia e Política empossa novo
Conselho e espera fim da crise”, 13 de dezembro, p.20.
17
Diário Popular (1983), “Toma posse novo Conselho Superior
da Escola de Sociologia e Política”, 13 de dezembro, p.07
18
Diário Oficial do Estado de São Paulo (1983), 27 de dezembro.
19
Folha de São Paulo (1983), “Sociologia e Política repele sugestão
de abertura de inquérito”, 23 de dezembro, p.22
20
O Estado de São Paulo (1984), “CFE reitera pedido de ação na
Sociologia”, 06 de julho.
21
Folha de São Paulo (1984), “Sociologia e Política decide trancar
matrícula em atraso”, 12 de outubro.
22
S.A.(1984) “Convocação para assembleia”, 20 de setembro, p.01 e
02
23
Folha de São Paulo (1985), “Professores da ESP prestarão
concurso”, 29 de janeiro.
24
Folha de São Paulo (1985), “Docentes veem concurso como
pretexto para demitir na ESP”, 30 de janeiro.
25
O Estado de São Paulo (1985), “Sociologia promete pagar
salários dos professores”, 24 de janeiro.
26
Folha de São Paulo (1985), “Acordo na ESP fixa concurso para
outubro e pagamento dos atrasados”, 03 de fevereiro.
27
Folha da Tarde (1985), “Eleita a diretoria da Sociologia e
Política”, 13 de abril.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 49-55.
55
Manifestações populares no Brasil
contemporâneo: diálogos sobre cultura
política, mobilizações sociais e novas
formas de participação política.
Entrevista com o Aldo Fornazieri
Realizada por
Rafael Balseiro Zin1
Thiago Henrique Desenzi2
Lívia de Souza Lima3
Nos meses de junho e julho de 2013, milhões de jovens brasileiros foram
às ruas para reivindicar melhores condições de vida, inicialmente, motivados pelo
aumento nas tarifas do transporte público, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Belo Horizonte, entre outras capitais. Foram as maiores mobilizações no
país, desde as manifestações pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de
Mello, em 1992, e tiveram aprovação de pelo menos 84% da população. Nos cartazes,
faixas e rostos pintados, a mensagem era bastante clara: os jovens diziam que a forma
como as decisões têm sido conduzidas no país já não mais os representa, evidenciando,
dessa maneira, a necessidade de se haver mudanças profundas no que diz respeito ao
fazer político brasileiro. Levando em consideração a necessidade de se refletir os novos
fenômenos e agentes que permearam esse cenário mais recente, convidamos o cientista
político e professor Aldo Fornazieri para nos auxiliar a discorrer essa problemática.
Nascido no município de Erechim, no estado do Rio Grande do Sul, Aldo é
considerado como um dos maiores expoentes dos estudos republicanos, à luz da teoria
política de Nicolau Maquiavel. Licenciado em Física (1979), pela Universidade Federal
de Santa Maria, mestre (2000) e doutor (2007) em Ciência Política, pela Universidade
de São Paulo, atualmente, é Diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e
Política de São Paulo (FESPSP), onde exerce, ao mesmo tempo, a função de professor.
Nesta entrevista, além dos aspectos biográficos que configuraram a trajetória intelectual
de Fornazieri, o que se busca é melhor compreender as feições da cultura política no
Brasil contemporâneo, as recentes mobilizações sociais, bem como as novas formas de
participação política.
Mestrando em Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Mestrando em Ciências Humanas e Sociais, pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
3
Graduanda em Sociologia e Política, pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
1
2
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
57
Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
Rafael Balseiro Zin: Para iniciarmos esta
conversa, gostaria que o senhor apresentasse,
brevemente, o seu percurso como professor e
pesquisador, assim como um pouco do contexto
em que viveu e como sua trajetória pessoal e
social influenciou na escolha da carreira em
ciências sociais.
Aldo Fornazieri: Penso que foi a militância
política que me levou para as ciências sociais, já que
fiz graduação em Física, na Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). No final dos anos de 1970, o
ambiente estudantil estava bastante tenso por lá...
Conquistamos a direção do Diretório Central dos
Estudantes (DCE), que vinha sendo dirigido por
agrupamentos de direita. Na ocasião, o Rio Grande do
Sul foi o único Estado onde se viabilizou o Diretório
Estadual dos Estudantes (DEE), imposto pelo
regime militar, em substituição às Uniões Estaduais
dos Estudantes (UEEs). O DEE dominava todo o
interior do Estado. A esquerda só existia em Porto
Alegre, no movimento estudantil. A conquista do
DCE da UFSM foi decisiva para alastrar a militância
de esquerda para o interior do Estado. A partir dessa
conquista, fomos tomando os Centros e Diretórios
Acadêmicos de todo o interior. Esse processo me
levou a atuar na União Estadual dos Estudantes
(UEE), que reconstruímos; primeiro como vicepresidente e depois como presidente.
Em Santa Maria éramos um grupo
organizado, semiclandestino, que mais tarde se uniu a
outros grupos, para formar o Partido Revolucionário
Comunista (PRC). Dessa organização, faziam parte o
Tarso Genro, o José Genoíno, a Marina Silva, o Chico
Mendes, os irmãos Viana do Acre, o Ozeas Duarte,
apenas para ficar nos nomes mais conhecidos. O
PRC trabalhava em várias frentes: estudantil, sindical,
política e, também, tinha algum trabalho na área rural.
Com o surgimento do Partido dos Trabalhadores
(PT), o PRC decidiu atuar dentro dessa organização, e
terminou se dissolvendo por volta de 1990. Em 1986
vim para São Paulo por conta da militância política e
passei a editar uma revista da nossa organização, que
se chamava Teoria & Politica. Creio que foi toda essa
militância que me levou a uma aproximação com as
ciências sociais. Na época do movimento Estudantil,
tínhamos uma forte formação teórica e política.
A formação teórica era um item obrigatório da
militância, com muita leitura de autores como Marx,
Lênin e os demais pensadores marxistas.
Thiago Desenzi: Antes de realizar o
mestrado e o doutorado em Ciência Política na
Universidade de São Paulo, o senhor disse que
cursou a licenciatura em Física, na Universidade
Federal de Santa Maria. Como se deu esse
processo de transição entre cursos tão distintos?
Aldo Fornazieri: Quando estudava Física
na Universidade Federal de Santa Maria cheguei a
ingressar no curso de graduação em Filosofia. Ao me
mudar para Porto Alegre, por conta das atividades
na UEE, ingressei na pós-graduação em Filosofia,
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Quer
dizer, a militância política me levou para o caminho
natural das Humanidades. Já em São Paulo decidi
fazer Mestrado e Doutorado em Ciência Política na
USP. Penso que existe muita proximidade entre Física
e Filosofia. Não chega a ser raro que estudantes de
Física terminem por migrar para a Filosofia. A Física
teórica tem bastante proximidade com a Filosofia.
Ademais, muitos físicos têm profundas preocupações
sociais, ao menos aqui no Brasil. Não sei bem qual
a razão disso. Talvez essa inspiração venha do Mário
Schenberg, de origem judaica, que foi físico, político
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
58
Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
e crítico de arte. O Schenberg é considerado o maior
físico teórico do Brasil. Seu engajamento político e
social deve ter inspirado muita gente.
Rafael Balseiro Zin: Após a graduação em
Física, já no mestrado, o senhor fez uma análise
política sobre a República e o republicanismo.
Como se deu a escolha desse objeto de estudos?
Aldo Fornazieri: Na verdade, a minha ideia
inicial era estudar o republicanismo brasileiro, a partir
da teoria republicana clássica. No entanto, houve uma
troca e o meu novo orientador me chamou a atenção
sobre o afastamento do republicanismo brasileiro em
relação ao republicanismo clássico. Fiz um enorme
estudo sobre os autores republicanos brasileiros, que,
até hoje, se encontra engavetado. Com o impasse,
terminei fazendo a dissertação sobre a transição do
republicanismo clássico para o republicanismo liberal
no processo da independência e de aprovação da
Constituição dos Estados Unidos. O fato é que fui
me aproximando da teoria republicana na medida em
que fui me afastando do marxismo.
Rafael Balseiro Zin: Mais adiante,
durante o doutorado, o senhor faz uma análise
crítica acerca das teorias políticas de Maquiavel,
problematizando a ideia de “bom governo”. Fale
um pouco sobre essa experiência.
Aldo Fornazieri: A minha adesão ao
republicanismo foi antes de ordem política do que
de ordem acadêmica. O texto do Maquiavel, Discursos
sobre a Primeira Década de Tito Lívio, foi a minha
grande inspiração. Já conhecia bem O Príncipe. O
problema é que a teoria de Maquiavel tem muitas
interpretações e muitos intérpretes. Eu sempre
vislumbrei uma intencionalidade de Maquiavel nesses
dois textos principais: a de apresentar uma teoria do
bom governo, conforme as circunstâncias da forma
de governo – república ou principado. Melhorar a
atuação dos governos com vistas a realizar o bem
comum e com vistas a reduzir as interferências da
fortuna, do imprevisto, do contingente e do acaso, e
conter os potenciais destrutivos inerentes à natureza
humana, são preocupações centrais na teoria de
Maquiavel. Por isso, decidi fazer a tese com este foco:
a teoria do bom governo em Maquiavel.
Lívia Lima: Ao longo do mestrado e do
doutorado, na Universidade de São Paulo, o
senhor foi orientado por renomados pensadores,
como Fernando Limongi e Claudio Vouga.
Como foi essa experiência e quais foram as
principais lições apreendidas dos ensinamentos
dos mestres?
Aldo Fornazieri: O meu primeiro orientador
no mestrado foi o professor Boris Fausto, justamente
quando pretendia fazer a dissertação sobre o
republicanismo brasileiro. Então veio a aposentadoria
dele e foi decidido que os orientandos dele deveriam
procurar outros orientadores. Foi nesse contexto
que ocorreu uma mudança de foco, o que resultou
num problema em termos de otimização do tempo.
Mas, por outro lado, penso que ganhei bastante em
termos de amplitude de estudos. Hoje posso dizer
que conheço razoavelmente bem o republicanismo
brasileiro. No primeiro período que ministrei aulas
no curso de Sociologia e Política da FESPSP, tratava
da temática do pensamento político brasileiro,
no quarto ano da graduação. Servi-me bastante
dos estudos dos republicanos. E foi o professor
Fernando Limongi quem me aconselhou a mudança
de foco, pois ele conhece muito bem todo o contexto
teórico e histórico implicado no republicanismo
norte-americano. Apesar da premência do tempo
decorrente da mudança do tema, o resultado da
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
dissertação foi minimamente satisfatório. O Limongi
teve também uma enorme boa vontade, coisa que
agradeço muito, pois nem sempre é fácil “pegar o
bonde andando”. Já a minha relação com o professor
Claudio Vouga foi diferente. Na época ele ministrava
aulas acerca do pensamento político clássico em
dobradinha com o saudoso Gildo Marçal Brandão. As
aulas em dupla eram muito divertidas e com debates
muito acalorados. Foi uma experiência singular ter
dois professores numa sala de aula. E a partir dessas
aulas é que nos aproximamos e conversamos sobre
a orientação. O Vouga tem um conhecimento muito
abrangente sobre os clássicos da política. Com isso, a
sua orientação foi bastante tranquila.
Rafael Balseiro Zin: O nosso tempo tem
sido marcado pela velocidade da informação
e pelo avanço da tecnologia. Mediante esse
contexto, de quais estratégias o cientista social
pode se cercar para contribuir com a construção
do pensamento crítico da sociedade?
tecnologias de informação, o cientista social tem,
hoje, uma disponibilidade de meios muito maior
em relação aos cientistas do passado recente. A
quantidade de conhecimento e de informação que ele
tem a seu dispor é enorme. Mas há que se ter cuidado
com a qualidade e com o problema do tempo. O uso
intensivo da tecnologia pode acarretar um problema
de ordem temporal, ou, para ser mais específico, pode
acarretar uma crise na capacidade de administração
do tempo. Há o risco de o tempo escorrer entre os
dedos quando somos absorvidos de forma excessiva
pela tecnologia. Corremos o risco de nos tornarmos
improdutivos.
Rafael Balseiro Zin: E como o senhor
avalia a presença do cientista social, no que diz
respeito aos desafios da contemporaneidade?
Aldo Fornazieri: As estratégias não são
unívocas. Do meu ponto de vista, a única coisa certa
é que o cientista social deve ser muito bem preparado
teoricamente. O uso das tecnologias você aprende
na vida; já o conhecimento das teorias, você aprende
na Escola. Grosso modo, entendo que existem duas
tipologias de cientista social: o que produz pesquisa
e conhecimento científico a partir da presunção da
Aldo Fornazieri: Os desafios são enormes.
Em tese, o cientista social apresenta compreensões
e soluções para os problemas sociais. O fato é que
os problemas se desenvolvem num volume muito
superior e muito mais dramático do que a capacidade
de compreendê-los e de apresentar soluções.
Há, também, o problema da fragmentação e da
superespecialização das ciências. Esta é uma dimensão
natural do desenvolvimento científico, dada a
complexificação crescente da sociedade, da produção
e do mundo do trabalho. A especialização do trabalho
científico é inevitável. Mas os problemas globais, que
neutralidade da Ciência e aquele que produz teoria e
pesquisa com um engajamento político e social. As
duas formas são válidas. Talvez, o primeiro tipo lance
mão, com maior frequência, de dados matemáticos
e quantitativos, e o segundo tipo faça um uso mais
extenso da produção analítica e teórica. Vale frisar
que as duas formas não são excludentes. O risco
está nas posturas extremas. Com o advento das
exigem soluções integradas e integradoras, soluções
universalizantes, também crescem. As ciências,
em geral, e a ciência social, em particular, têm
apresentado baixa capacidade de desenvolver visões
universalizantes. As grandes totalizações parecem
ser coisa do passado. Parece-me que seria necessário
que elas voltassem, pois o planeta e a humanidade
apresentam cada vez mais problemas comuns, que
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
60
Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
exigem soluções globais.
Thiago Desenzi: É possível que o senhor
tenha vivido as a conjuntura política brasileira
em três grandes momentos da História mais
recente do Brasil: a ditadura militar, o período
de redemocratização e o atual período de
consolidação da democracia. Como o senhor
analisa os processos de transformação social e
a participação política nestes três contextos, a
partir da experiência que teve?
Aldo Fornazieri: Enquanto militante, de
fato, peguei o final do regime militar. Participei da
reconstrução do movimento estudantil, da campanha
das diretas, da constituinte e do impeachment.
Em termos políticos, ocorreram avanços muito
importantes para a consolidação da democracia.
A Constituição de 1988, com todos os seus
problemas, é o marco fundamental desse processo.
Ocorreram, também, conquistas no plano social.
Mas diria que essas são menores e estão bem aquém
da configuração do Brasil, como um país justo e
equitativo. A inclusão social avançou principalmente
a partir do governo Lula, mas, mesmo assim, o Brasil
mantém um contingente enorme de trabalhadores
de baixa renda. As periferias têm muita pobreza
e, consequentemente, muitos problemas. Direitos
foram inscritos na Constituição e nas leis, mas são
negados na prática. Os serviços públicos são de
qualidade muito ruim e este é um dos focos da crise
atual. Parece que o governo Dilma sentou em cima
das conquistas da inclusão e da recuperação da renda.
O fato é que os governos do PT não removeram
as condições estruturais, que articulam a profunda
desigualdade na sociedade brasileira. Os mais pobres
continuam pagando mais impostos do que os mais
ricos. Na educação, temos os conhecidos problemas
de qualidade e, na saúde, temos os terríveis problemas
de acesso e também de qualidade. No plano político,
por conseguinte, passamos por uma grave crise de
representação. As instituições públicas e, inclusive, as
instituições da sociedade civil, estão deslegitimadas.
Isso propende a um crescente esgarçamento social,
com o aumento das tensões, da violência e da
proposição por saídas autoritárias. Os próprios
governos, no atual momento em que vivemos,
buscam saídas repressivas para conter os movimentos
sociais, seja pela via da ação policial, com a compra de
equipamentos antiprotestos, por exemplo, seja pela
via de leis mais duras contra manifestantes. A crise de
representação se expressa, também, pela via de uma
crise de lideranças. As nossas lideranças políticas são
fracas e incompetentes.
Thiago Desenzi: Existe uma crescente
critica voltada à atuação da academia
brasileira, no que diz respeito aos processos de
produção do conhecimento nas Universidades
mais voltadas à pesquisa, centralmente às
Universidades Federais. Apesar de algumas
experiências positivas, a crítica considera que
estes espaços não dialogam com a realidade
social, concentrando-se, com maior intensidade,
na produção de um saber restrito a discussão
junto a seus pares. Sabendo disso, qual é a sua
opinião acerca desta crítica?
Aldo Fornazieri: De fato, as universidades
parecem estar afastadas da realidade social do país.
No campo das ciências sociais e das Humanidades,
se formaram dois blocos relativamente estanques:
de um lado, temos os porta-vozes do liberalismo
conservador aferrado a soluções de mercado; de
outro, temos o adesismo acrítico aos governos do PT.
Entendo que isto é ruim para o mundo acadêmico.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
Produzem-se brigas para conquista de departamentos
e direções de curso, a partir dessa polarização.
Enquanto isto, a realidade social se movimenta e
requer compreensões e soluções urgentes, pois os
problemas se agravam. Os professores deveriam
estimular os estudantes a analisar e compreender o
processo em curso, a partir das capacidades teóricas
que adquirem. Há, nas Universidades, hoje, um
excesso de academicismo e escassez de senso de
realidade. É preciso ter consciência de que o Brasil
está longe de ter seus problemas resolvidos. Os
grupos tradicionais das Universidades dominam
os esquemas de financiamento das pesquisas.
Penso que é preciso democratizar as verbas da
pesquisa científica, abrindo mais espaços para novos
pesquisadores, pesquisadores iniciantes. Os critérios
de financiamento também deveriam ser revistos.
Thiago Desenzi: Em sua trajetória
profissional, o senhor priorizou mais a ação
política do que a atuação acadêmica, inicialmente
como militante do Partido dos Trabalhadores, e,
mais recentemente, se fazendo reverberar através
de canais de comunicação que dialogam mais
diretamente com a sociedade em geral, como
jornais e revistas de ampla circulação, ao invés
de espaços acadêmicos, como os periódicos
científicos e congressos. Gostaria de perguntar
se existe uma motivação ideológica neste
processo e quais foram as razões que o levaram a
tal escolha?
Aldo Fornazieri: Na minha história de vida,
em termos cronológicos, a atividade política foi
anterior à atividade acadêmica. E foi pela atividade
política que cheguei ao mundo acadêmico. Ademais,
sempre trabalhei muito para sobreviver e para
criar meu filho, o Federico Fornazieri. Por vários
momentos, cheguei a ter três empregos. O trabalho
em outras atividades prejudica muito a atividade de
pesquisa e elaboração acadêmica. Fui, por cerca de
vinte anos, analista de conjuntura. Isto me manteve
sempre mais próximo da atividade política. E uma
coisa é inegável: as nossas escolhas pessoais dependem
muito das nossas condições e circunstâncias de vida.
Lívia Lima: Em seus artigos e publicações
mais recentes, o senhor tem afirmado que a
política, bem como as suas instituições, vivem um
dos seus piores momentos, sem direcionamento
estratégico e tampouco moral. Em sua opinião,
essa crise pode ser caracterizada como global ou
possui focos mais específicos?
Aldo Fornazieri: No Brasil existe uma
evidente crise de lideranças. Nos últimos anos, a
política brasileira caminhou para a mediocridade.
A crise de representação que se evidenciou, com
mais intensidade, a partir de 2013, é expressão da
mediocridade e da incapacidade dos políticos de
apresentarem soluções para os problemas que a
sociedade enfrenta, principalmente os setores mais
pobres, como os trabalhadores de baixa renda e
os moradores das periferias. As grandes cidades
se transformaram em zonas de tumultos urbanos
permanentes. As pautas dos conflitos são específicas,
mas estes se generalizaram. Eu sempre ensino aos
alunos que um Estado bem constituído – “uma polis
bem formada”, como diziam os gregos – é aquele que
consegue agregar, ao mesmo tempo, bens materiais e
bens morais. O fato é que a crise de representação
vem gerando a perda de capacidade das instituições
de estabelecerem compreensões e sentidos comuns
à sociedade. A sociedade brasileira carece de direção
política e moral. Disso emerge o esgarçamento das
relações, as tensões, a exasperação do conflito e a
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
violência. A sociedade tem se transformado num
campo aberto de guerra social: morrem, de forma
violenta, cinquenta mil pessoas por ano, e ninguém
se importa muito com isto. Naturalizamos a guerra
e a tragédia. Cresce a violência nas manifestações e
crescem apelos à intervenção militar. O capitalismo
brasileiro exerce uma relação predadora, com a ajuda
dos governos, contra o poder público, contra o bem
público e contra a natureza. Os próprios governos
são agentes da degradação ambiental.
Mas esta crise não é somente brasileira.
Vivemos num tempo maléfico e iníquo. Apenas 1%
da humanidade concentra 41% da riqueza global. Isto
é inaceitável, sob qualquer ponto de vista. A riqueza
se concentrou terrivelmente e bilhões de pessoas
vivem na pobreza. O valor da igualdade se perdeu
pelos caminhos da história. O que se vê hoje é que as
democracias foram capturadas pelo capital financeiro.
E as dívidas públicas são o instrumento perverso
dessa captura. A rigor, os partidos políticos de centrodireita e de centro-esquerda se tornaram sócios e
agentes do capital financeiro e do grande capital. As
necessidades sociais crescem à medida que se espalha
a corrupção política. Os povos vão às ruas e não
conseguem arrancar concessões dos governos e dos
parlamentos. Nos regimes autocráticos, os governos
são derrubados nas ruas pelas revoltas populares e
logo se instituem novos governos não democráticos.
Diante desse quadro, que, repito, é maléfico e
iníquo, não vejo outra saída a não ser a radicalização
da luta política e social. Penso que será nas ruas
e nas praças o lugar onde se deve decidir um novo
equilíbrio de poder. Com a crise de representação,
os parlamentos perderam a capacidade de mediar
corretamente os conflitos sociais. A batalha das ruas
e das praças deve ser uma batalha por mais justiça
e igualdade e uma batalha pela democratização da
própria democracia.
Lívia Lima: O senhor acredita que exista
uma identificação dessa crise pelos diversos
segmentos da sociedade civil? Se sim, quais
seriam as conexões possíveis entre a atual crise
política brasileira e as diversas manifestações
populares recentes?
Aldo Fornazieri: Julgo que apenas alguns
setores percebem a crise. O que há é um enorme malestar geral, uma crise de perspectivas. Os governantes
não conseguem apontar um caminho para o Brasil
e isto se reflete no dia-a-dia das pessoas em termos
de perspectivas. As pessoas estão com perspectivas
reduzidas em relação ao futuro. Agora, tem setores
que percebem a crise: os novos movimentos sociais,
os movimentos de luta por moradia, os usuários
de transporte público e de saúde pública, os
trabalhadores sem-terra e os índios, os moradores
das periferias, que enfrentam uma violência
cotidiana, e setores da classe média, que propõem
saídas autoritárias. No mundo do trabalho, existem
categorias que começam a perceber o limite da renda,
atacada por um lado pela inflação e, por outro, pelo
baixo crescimento. Por enquanto as pautas de lutas
são específicas. Cada movimento faz sua luta. Mas
isto tende a se encaminhar para um movimento mais
geral. É preciso dar tempo ao tempo. Os processos
de luta começam sempre de forma mais ou menos
espontânea e evoluem para movimentos mais
organizados.
Rafael Balseiro Zin: Desde dezembro
de 2010, aproximadamente, uma onda de
manifestações e protestos vem ocorrendo no
Oriente Médio e no Norte da África, fenômeno
que ficou conhecido internacionalmente como
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
Primavera Árabe. Mais recentemente, países
como a Ucrânia e Venezuela também vêm
assistindo uma série de revoltas populares. O
senhor acredita que essas manifestações ao
redor do mundo influenciaram o atual contexto
político brasileiro?
Aldo Fornazieri: Em alguma medida sim.
As causas são diferentes. De modo geral, as lutas
a que você se referiu tiveram ou têm como foco a
bandeira do fim de regimes ditatoriais ou corruptos.
Além da natureza dos regimes, havia, ou há crises
econômicas, carência de empregos, baixos salários
e pobreza. Na medida em que hoje a informação se
dissemina com facilidade e amplitude, setores sociais
brasileiros também ficam estimulados a lutar. As
lutas tendem a se acirrar quando não há mais crença
de que as instituições possam resolver os problemas
das pessoas. Veja o caso da queima de ônibus. Esses
incêndios têm vários motivos e, em alguns casos,
há o crime organizado agindo. Mas, em vários
outros casos, são iniciativas de grupos espontâneos
revoltados em face de situações específicas. Esses
grupos avaliam que não vale mais a pena procurar
o vereador, a associação de bairro, a subprefeitura,
a polícia, o padre ou pastor. Percebem que as
instituições não funcionam. No desespero, queimam
os ônibus, bloqueiam as ruas, protestam.
Lívia Lima: O senhor vê diferenças
pontuais entre as grandes manifestações de
junho e julho no Brasil e as demonstrações mais
recentes de insatisfação popular, que eclodiram
em diversas cidades neste início de 2014? Ainda
nesse sentido, como o senhor vê os rumos das
manifestações populares no Brasil de agora em
diante, principalmente com a aproximação dos
megaeventos, como a Copa do mundo de futebol
e as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016?
Aldo Fornazieri: Em junho de 2013, o que
tivemos foi uma explosão de descontentamentos
represados. A repressão contra os protestos acirrou
os ânimos, principalmente aquela feita pela Polícia
Militar paulista, no dia 13 de junho. De lá para cá,
temos protestos contínuos. O segundo semestre de
2013 foi marcado por lutas, tumultos e confrontos
semanais, quando não diários. Eles não têm a
envergadura dos protestos de junho, porque as pautas
se especificaram. Nesse momento, os protestos são
mais localizados e em menor escala. Mas o fato é
que se multiplicaram. Ocorreram vários protestos do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)
com dez mil, quinze mil pessoas. Os confrontos
em desocupações envolveram milhares de pessoas.
Diante desse cenário, acredito que a aproximação
dos grandes eventos vai acirrar o processo de lutas.
Os governos estaduais estão comprando armas e
equipamentos antiprotestos e o governo federal está
tomado por uma fúria legiferante antimanifestações.
Serão gastos cerca de R$ 2 bilhões apenas em
segurança – um absurdo. E não se trata de garantir
a segurança da população, pois ela continuará sendo
a principal vítima da violência. Estamos falando
da segurança do Estado, segurança dos eventos,
segurança dos estrangeiros, segurança da Fifa,
segurança do capital e do patrimônio etc. Nesse
processo, portanto, o grande desafio dos movimentos
sociais é o de tornar os protestos massivos. Mas a
violência e a repressão intimidam. Então, mesmo que
os protestos sejam pequenos ou médios, penso que
são válidos.
Lívia Lima: Qual a sua avaliação diante da
resposta do Estado mediante as manifestações
de insatisfação popular de junho, tanto com
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
relação à truculência policial quanto com relação
às reações mais imediatas em forma de discurso
político?
Aldo Fornazieri: Quanto à repressão, fezse a coisa de sempre: os movimentos sociais devem
ser vistos como caso de política. E o problema aqui
não está na polícia. Está em quem comanda a polícia,
que é o poder político. Agora, a tendência é a de uma
radicalização da repressão. Em relação ao discurso
político, as promessas de mudança se perderam.
Alguma coisa foi conquistada pelos movimentos,
principalmente pelo Movimento Passe Livre (MPL):
a redução das passagens, a derrubada da PEC 374 etc.
Nas questões essenciais, ocorreram poucos avanços.
O programa Mais Médicos, por exemplo, melhorou
um pouco a situação, mas não houve uma virada
em relação às demandas da população por saúde
mais ampla e de melhor qualidade. As estruturas
hospitalares públicas continuam uma lástima. Há
falta de vagas e as filas para atendimento em várias
especialidades continuam longas. Ao mesmo tempo,
em São Paulo, houve melhora no transporte público
municipal, mas incidentes no Metrô e nos trens da
CPTM são frequentes. Mesmo no transporte de
ônibus, as melhorias precisam continuar. O fato é
que o transporte público continua ruim de modo
geral. As respostas ficaram muito aquém em relação à
magnitude dos problemas da sociedade.
Lívia Lima: Sabendo disso, o que
podemos esperar daqui para frente acerca da
relação entre o Estado e a sociedade civil no
Brasil?
Aldo Fornazieri: Vislumbro uma relação
tensa. Os governos petistas foram importantes
na viabilização de políticas de inclusão social e de
recuperação da renda. Mas, com o baixo crescimento
que vem ocorrendo sob o governo Dilma, esses
pontos programáticos mostraram seus limites. É
preciso continuar com os programas de inclusão, mas
é necessário, também, construir portas de saída. E isto
não está se vendo. Cria-se, assim, uma dependência
de milhões de pessoas ao auxilio do Estado. Isto não
é liberdade. Liberdade, no seu sentido aristotélico,
significa autonomia. Se o indivíduo depende do
Estado, então, não é livre. Ele precisa ter uma
atividade, um emprego, que lhe garanta autonomia
e capacidade de realizar escolhas. Como houve um
despertar da sociedade acerca de um Estado caro
e ineficiente e acerca da inoperância do sistema
político, as pessoas estão dispostas a ir para a rua para
protestar, reivindicar. Isso, inequivocamente, gerará
tensões entre a sociedade civil (ao menos parte dela)
e o Estado.
Lívia Lima: Levando em consideração a
necessidade de se haver uma reforma substancial
nas instituições políticas brasileiras, qual é o
papel da sociedade civil nesse processo? De que
forma a luta coletiva pode ter um papel mais
decisivo para uma possível mudança no cenário
político contemporâneo?
Aldo Fornazieri: O Congresso Nacional,
pelos interesses que agrega, pela sua composição
e pela inconsequência dos partidos políticos,
se inabilitou para fazer uma reforma política
e institucional. Mesmo na questão eleitoral, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se tornou um ente
4
A Proposta de Emenda Constitucional 37/2011, abreviada como PEC 37, foi um projeto legislativo brasileiro, que, se aprovado,
limitaria o poder de investigação criminal a polícias federais e civis, retirando-o, entre outras organizações, do Ministério Público.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
legislativo em face da paralisia do Congresso. Não há
consensos entre os partidos e nem mesmo dentro de
cada partido acerca da reforma política a ser feita. O
particularismo de interesses prevalece no Congresso.
Ali é a casa do jogo dos interesses fragmentários. Não
há uma preocupação com os rumos universalizantes
e estratégicos do país. Dessa maneira, a reforma
política e institucional avançará somente se houver
pressão das ruas. O sistema político brasileiro está
cheio de impasses, cheio de nós, que não se desatarão
sem a força protestante da sociedade. Na medida
em que as instituições perderam a capacidade de
mediar conflitos e interesses, é preciso deslocar o
centro de gravidade da política dos parlamentos
para as ruas. As lutas parciais e específicas, os vários
movimentos sociais, devem ser capazes de construir
uma plataforma política, sem abrir mão de suas lutas
particulares, evidentemente. Mas somente a união dos
movimentos sociais em torno de uma agenda política
poderá produzir avanços mais gerais no Brasil.
partidos tornando-os críticos e descrentes em relação
às agremiações partidárias. O comando oligárquico
abre pouco espaço à participação da juventude. Os
jovens se sentem incomodados com o mandonismo
dos chefes. Por outro lado, na era da informação, o
discurso manipulatório, o discurso que visa à busca
do poder em primeiro lugar, o discurso calculista,
o discurso sem conteúdo político e moral, tem
voo curto. É um discurso que sofre contestação de
imediato e vai perdendo sua legitimidade. Portanto, é
justamente a falta de legitimidade que gera essa crise
de representação.
Rafael Balseiro Zin: Como o senhor avalia
a repulsa que uma parte da população brasileira,
mais especificamente uma parcela crescente
da juventude, nutre pelos partidos e demais
instituições políticas?
Aldo Fornazieri: Como me referi
anteriormente, estamos vivendo uma crise de
representatividade. Tem muito cientista social
Aldo Fornazieri: Como observei antes,
entendo que as democracias foram capturadas pelo
capital financeiro e pelo grande capital transnacional.
A rigor, hoje existe uma nova classe dirigente
tripartite e internacionalizada: os executivos das
instituições financeiras internacionais, os executivos
das transnacionais e as altas burocracias dos Estadosnacionais. Esses setores, não raro, transitam de
criticando as perspectivas autonomistas e anarquistas
dos jovens. Eu penso que, antes de tudo, o papel da
ciência social é compreender o fenômeno, seja ele
político ou social. O comportamento dos jovens é
compreensível: os partidos são máquinas de poder
com comandos oligárquicos. De modo geral, o
discurso dos líderes partidários é manipulador.
Temos aí dois problemas que afastam os jovens dos
um lugar para outro. São eles que dão as cartas das
políticas econômicas. E, se a política econômica não
dançar conforme a música dos interesses desses
setores, ocorrem problemas nas bolsas de valores,
fugas de capitais, recuos nos investimentos, etc. Os
governos precisam se comportar conforme o modelo
hegemônico. Os setores do capital hegemônico
impõem os padrões da economia, que, também,
Thiago Desenzi: Em outubro de 2011,
o filósofo e teórico crítico esloveno Slavoj
Žižek, em seu discurso aos manifestantes do
movimento Occupy Wall Street, afirmou que se
a democracia não acontece de fato, é porque ela
se constitui como a principal ilusão sustentadora
do sistema político e ideológico vigente. Como o
senhor avalia essa questão?
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
são os padrões de seus lucros. De modo geral, os
governos democráticos, inclusive os governos de
esquerda, obedecem a esses padrões. Os governos que
não se enquadram precisam se preparar para crises
econômicas e de credibilidade. É esse processo de
padronização hegemônica que tornou as democracias
endividadas e capturadas pelo grande capital. É
preciso que os movimentos políticos e sociais, que
não fazem parte desse bolo hegemônico, construam
uma agenda internacional de lutas. É uma pena que
o Fórum Social Mundial (FSM) tenha se mostrado
incompetente na construção de uma agenda antihegemônica.
Rafael Balseiro Zin: Nas manifestações
de junho, e também nos protestos mais recentes,
um segmento bastante reduzido de populares se
aproveitou do momento para colocar em prática
a tática conhecida como black bloc, que consiste
em atacar símbolos do poder e do capitalismo.
Como o senhor avalia o uso desse tipo de
estratégia em manifestações populares?
Aldo Fornazieri: Aqui, mais uma vez, entra
o dilema: compreendemos ou julgamos? A primeira
atitude generalizada foi a de julgar. Penso que o
melhor caminho é compreender. Os praticantes da
tática black bloc têm suas justificativas. Os movimentos
sociais que vão para as ruas não podem fazer uma
guerra entre si. Cada um deve respeitar os outros e
as iniciativas dos outros. Entendo que o movimento
social, que tem a iniciativa de convocação, tem
primazia de ditar a tática da manifestação. Então,
os adeptos do black bloc não devem ditar a tática de
uma manifestação convocada pelo movimento de
moradia, por exemplo, assim como o MPL não deve
ditar a tática de uma manifestação convocada pelos
black bloc. O que deve haver é diálogo e respeito
entre os vários grupos. Claro que isto é um processo
que precisa ser construído. Mas se todos querem
mudanças, a primeira mudança que deve ocorrer é a
abertura para o diálogo e o respeito entre os diversos
grupos e movimentos sociais.
Rafael Balseiro Zin: Após as primeiras
manifestações ocorridas um junho, a reação
inicial da grande mídia, bem como das
autoridades públicas, foi de condenação pura
e simples dos protestos, que, segundo eles,
deveriam ser reprimidos com maior rigor ainda.
No entanto, à medida que o fenômeno se alastrou,
autoridades e mídia alteraram a avaliação
inicial. O que vemos, hoje, é um discurso vazio,
que defende a liberdade de manifestação, ao
mesmo tempo em que manipula a informação,
proferindo, a todo instante, palavras de ordem
e de críticas ao que se convencionou chamar
de “vandalismo”. Como o senhor avalia o papel
da grande mídia, bem como das autoridades
públicas, no que diz respeito à cobertura das
manifestações populares?
Aldo Fornazieri: Algumas condutas
chegam a ser ridículas, a exemplo daquelas de
alguns partidos políticos, que tentam capitalizar
as manifestações. As manifestações foram uma
contundente crítica aos partidos e aos políticos.
Alguns cientistas sociais, equivocadamente, viram
nessa crítica um antipoliticismo, um antipartidarismo
e supostas expressões de neofascismo. Entendo que
a crítica é merecida. A imagem que os partidos e os
políticos têm hoje foi construída por eles mesmos,
pela sua ineficiência e pelo discurso oportunista e
manipulador que eles vêm tendo ao longo dos anos.
Se eles não mudarem, cairão num descrédito ainda
maior e desacreditarão ainda mais as instituições
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
públicas e sociais que representam. As manifestações
são políticas e precisam ser mais politizadas. O
espontaneismo que elas expressam é natural. Na
medida em que não existem partidos políticos ou
movimentos sociais, que exerçam uma liderança e
uma capacidade de condução dos protestos, é natural
que o caráter espontâneo prevaleça. Mas as próprias
lutas construirão as suas direções. Se as manifestações
continuarem, os novos movimentos perceberão a
necessidade de mais organização e mais articulação.
Agora, a grande mídia, tal como os políticos,
tem um discurso manipulador e de conveniência
em relação aos protestos. Se as manifestações são
relativamente pequenas, trata-se de “vândalos”,
mesmo que a violência seja iniciada pela polícia. Se as
manifestações são grandes e têm visível repercussão
social, políticos e mídia tentam surfar na tese do
“direito e legitimidade das manifestações”. Esta
conduta é passível de forte crítica por parte de
analistas, cientistas sociais e movimentos. Penso que
a carga crítica deveria crescer mais do que a que vem
sendo feita. E é preciso se considerar, também, que há
setores de mídia, evidentemente, que se preocupam
com a correção e a isenção da cobertura. Não dá para
colocar toda a mídia num mesmo saco.
Thiago Desenzi: Com relação às novas
tecnologias da informação e da comunicação,
as chamadas TICs, o senhor acredita que
elas tenham sido cruciais, no que se refere à
organização das mobilizações sociais?
Aldo Fornazieri: Nesse terreno se produzem
muitas confusões. Alguns sociólogos chegam a
afirmar que as redes sociais são os novos sujeitos.
Nada mais equivocado. É preciso distinguir, aqui,
os sujeitos e as motivações reais dos protestos em
relação aos meios de articulação e mobilização. A
internet e as redes sociais se situam na esfera dos
meios. Trata-se de meios muito eficazes e que estão
ao dispor da militância de forma tão acessível como
nenhum outro meio esteve no passado. Esta condição
barateou e democratizou o custo da convocação.
No passado recente, somente quem tinha aparatos
e estruturas, a exemplo de sindicatos, partidos e
movimentos estruturados, podia convocar. Agora,
grupos menores podem convocar. Mas, para que a
convocação se traduza em mobilização, devem existir
motivações reais e causas mobilizadoras efetivas. Se
não existirem essas motivações reais, a internet e as
redes sociais não terão força de produzir um protesto
nas ruas. As redes sociais podem também induzir a
erros. Veja, por exemplo, as últimas manifestações
contra a Copa: quinze mil a vinte mil pessoas
confirmavam a participação e, no entanto, duas a
três mil efetivamente participaram dos protestos. Ser
militante na internet é fácil. Difícil é ir para as ruas,
participar de movimentos, ser um transformador
social efetivo.
Rafael Balseiro Zin: Os novos movimentos
de protesto não estão somente ligados ao
mesmo tipo de carência do passado, mas
existem muitos outros fatores como identidade,
autonomia e emancipação, que os unem, dando
mais força a suas lutas. Pode até ser que esses
jovens indignados não saibam ainda para onde
vão e nem qual será a forma de organização e
articulação, mas sabem, sim, o que não querem:
um sistema político-partidário enrijecido e
antidemocrático, a banalização e a insuficiência
prática dos dispositivos de representação, a
corrupção interna nas e das instituições políticorepresentativas, entre outras repulsas. Para
finalizar, professor, levando em consideração
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Entrevista
Manifestações populares no Brasil contemporâneo: diálogos sobre cultura política, mobilizações sociais e novas formas de
participação política.
Rafael Balseiro Zin, Thiago Henrique Desenzi e Lívia de Souza Lima
a atual conjuntura política brasileira, qual é o
recado que o senhor tem para dar a juventude
indignada?
Aldo Fornazieri: Eu diria que esses jovens
buscam também reconhecimento numa sociedade
que gera indiferença e exclusão. Os jovens da
periferia enfrentam cidades hostis a um modo de
vida digno. Enfrentam exclusão de espaços, de
cultura, de lazer, de esportes, de participação política
e social e de fruição da vida. São massacrados pela
correria da casa para o trabalho, do trabalho para a
escola e da escola para casa. Têm horas e horas de
vida sequestradas no trânsito. E têm baixa renda
para satisfazer suas necessidades. Percebem todas as
mazelas da política atual e não se reconhecem nas
instituições e nos políticos que por aí estão. Tendo em
vista a análise pregressa que fiz, o que se pode dizer,
honestamente, para esses jovens, é que eles devem
conquistar seus direitos e melhores níveis de bemestar nas ruas, lutando. O sistema político e o grande
capital precisam ser constrangidos e contidos pela
força das ruas. Os parlamentos estão corrompidos
em seu caráter, pois servem aos senhores do capital
e aos senhores do poder Executivo, e não ao único
senhor que deveriam seguir: o povo representado.
Hoje o divórcio entre representante e representado
é quase que absoluto. Muitos deputados chegam
e fazem um tipo de discurso para as suas bases,
prometendo empenho e combatividade, e agem de
forma completamente diferente no Congresso, no
jogo político junto aos financiadores de campanhas.
Diante dessa captura da democracia pelo grande
capital, não há outra saída: é preciso ir para as ruas
para conquistar direitos e estabelecer um novo jogo
de equilíbrio de poder, no qual o povo, a sociedade,
tenha algum poder de determinação dos rumos da
política em geral e nos rumos da política econômica.
O jogo está terrivelmente desequilibrado. É preciso
produzir um novo equilíbrio, com uma reforma
radical das instituições.
Professor Aldo, foi um prazer ouvi-lo.
Agradecemos, em nome da equipe editorial e dos
leitores da Revista Alabastro, pela rica entrevista.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 57-69.
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Alabastro: ISSN 2318-3179 São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014

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