V alores H um anos - Agrupamento de Escolas do Castelo da Maia
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V alores H um anos - Agrupamento de Escolas do Castelo da Maia
Valores Humanos 95 Obediência (i) Fortaleza.................................................................................................................. 109 Helen Keller e Anne Sullivan ..........................................................................113 Compaixão.............................................................................................................. 101 Um gato debaixo do pinheiro de Natal...........................................................105 Obediência..................................................................................................................95 O castigo que nunca chegou..............................................................................99 Tolerância ..................................................................................................................87 A estrela de Erika ...............................................................................................91 Justiça.........................................................................................................................69 A Sombra ........................................................................................................... 73 Coerência....................................................................................................................59 A fita vermelha.................................................................................................. 63 Rectidão ......................................................................................................................51 O caminho para a verdade ................................................................................55 Responsabilidade ........................................................................................................45 Apenas um rapaz...............................................................................................49 Paciência ....................................................................................................................35 Quase me bateu ................................................................................................. 39 Diligência...................................................................................................................25 Chico ..................................................................................................................29 Honestidade................................................................................................................17 Ana e a galinha pedrês .......................................................................................21 Simplicidade.................................................................................................................9 Um presente de arromba .................................................................................... 13 Generosidade ................................................................................................................1 A casa que o amor construiu ...............................................................................5 Índice perspectivas. ignorância. O que é igual a um futuro sem falta de aproveitamento e consequente dos professores costuma ter como resultado a atitude de desobediência face às orientações muitos, isso levou à doença e à morte. A lamentar que não se lembrem de que, para com o perigo e com a transgressão. De muito forte nos adolescentes, que se divertem A vontade de se evidenciar foi sempre Obediência (ii) * Alguns dos textos da presente antologia são adaptações da versão original. Determinação ..........................................................................................................175 A árvore que falava .........................................................................................179 Perseverança ............................................................................................................167 A pedra no caminho..........................................................................................171 Discrição..................................................................................................................157 O homem que ficou sem sono...........................................................................161 Solidariedade ...........................................................................................................149 Uma prenda diferente.......................................................................................153 Prudência.................................................................................................................139 Marco brinca ao Bug’s Bunny ....................................................................... 143 Coragem...................................................................................................................131 A pena pesada ...................................................................................................135 Delicadeza................................................................................................................121 As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas.............................................125 1 Generosidade 99 ʊ E se nós te ajudarmos na volta? ʊ sugeriu um dos amigos. ʊ Não posso ʊ disse. ʊ Tenho de arrancar estas ervas. ʊ Vem connosco ʊ instaram-no. Rufus tinha a intenção de cumprir a sua promessa. Começou a trabalhar, mas, dali a pouco, apareceram dois amigos que iam à pesca. ʊ Está bem ʊ respondeu Rufus. ʊ Vou tirar as ervas enquanto vocês vão à vila. ʊ Esperamos que arranques as ervas daninhas aos nabos. Os nabos precisam de espaço. Não podem crescer saborosos se as ervas os sufocarem. ʊ Estaremos fora por algumas horas ʊ disse a mãe. O jovem Rufus não era muito crescido, mas tinha idade suficiente para que os pais o deixassem sozinho na quinta enquanto iam à vila. Agradava-lhe que confiassem que não se meteria em sarilhos e que tomaria bem conta de si, sem nenhum adulto por perto. recordava era não tanto o dia como o que então acontecera. Rufus recordava-se de um dia quente de Verão, quando era rapaz. Fizera algo de errado e esperava ser castigado. Mas o que Um velho homem chamado Rufus Jones perguntava-se como é que os pais o tinham ajudado a conhecer Deus no seu interior, em vez de conhecer o que os outros dizem sobre Deus. A resposta não tardou. O castigo que nunca chegou 100 M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001 Janet Sabina Foi nesse dia que comecei a ouvir Deus dentro de mim. Foi nesse dia. Depois, beijou-me e deixou-me sozinho no silêncio, com Deus. ʊ Meu Deus, ajuda este rapaz a tornar-se o homem que Tu queres que ele seja. Disse tudo sobre mim a Deus, que espécie de rapaz eu era, e que espécie de homem ela esperava que eu viesse a ser. Ela depositava muita esperança em mim e tinha grandes sonhos. Por fim, disse: ʊ Mas não me castigaram nem me ralharam ʊ recorda Rufus. ʊ A minha mãe pegou-me na mão e não a largou até me levar para o quarto e me sentar numa cadeira. Ajoelhou-se aos pés da cama e começou a falar com Deus sobre mim. E lá foram os três rapazes. Divertiram-se tanto a pescar e a nadar que ficaram muito mais tempo do que Rufus previra. Quando voltaram, os pais de Rufus estavam também a chegar. Até aquela altura, Rufus não sentira que estivesse particularmente quente. Mas, agora, o suor corria-lhe pela face e as roupas colavam-se-lhe ao corpo. Quanto mais pensava nisso, mais lhe agradava a ideia de esperar até mais tarde para fazer o trabalho e ter ajuda. ʊ Logo estará mais fresco. Agora está muito calor para trabalhar. causa de sofrimentos e privações. para si é contrário à vida em sociedade e que a rodeiam. O instinto de tudo guardar torna-a insensível às necessidades daqueles presunção fecha a pessoa em si própria e virtude da generosidade. Em contrapartida, a atenção aos outros ajuda ao desabrochar da e necessitam, por isso, de ser contrariados. A Os primeiros impulsos costumam ser egoístas O gesto de dar nem sempre é espontâneo. Generosidade 101 Compaixão 5 Marie estremeceu de novo, à medida que sentia que o sonho feliz se tornava um terrível pesadelo. Vinham-lhe à cabeça recordações assustadoras. Aterrorizadas, a Mãe e a Avó tinham-na arrastado para as árvores. Aí, deitaram-se por terra. Soldados de uniforme azul passavam em colunas. Armas! Lutas! Explosões e gritos! Fogo! Quando tudo acabou, a aldeia deixara de existir. Começava sempre com um sonho agradável. Via a sua aldeia francesa muito amada. Depois via-se a sair da casa velha e aconchegante com a Mãe e a Avó e a passar pela rua estreita. Debaixo de quase todas as janelas, havia floreiras garridas cujas flores abanavam ao vento. O Sol resplandecia no campanário da igreja. Mas havia uma reverberação assustadora que vinha na direcção da aldeia: a reverberação das armas. frio húmido. Enquanto se levantava para arranjar a cama feita de trapos e de serapilheira no chão sujo, o pesadelo que lhe tinha abalado o sono pairava sobre ela como uma nuvem negra. Tinha todas as noites o mesmo pesadelo. Marie acordou sobressaltada na escuridão cerrada e sentiu o cheiro familiar da sujidade. O seu pequeno corpo estremeceu com o Esta história é verdadeira. Passou-se em França depois da Primeira Guerra Mundial, durante a qual uma aldeia inteira foi destruída pelos combates. A casa que o amor construiu Aqueles que vivem sem necessário aprender-se a sentir compaixão. saúde não apoiam os que estão doentes. É situação de grande pobreza, e aqueles que têm dificuldades esquecem que há pessoas em minimizar. dos sofrimentos dos outros ou para os As pessoas têm tendência para se alhear Compaixão 6 eram soldados. Eram trabalhadores britânicos e americanos. Pensou que eram soldados porque traziam uniformes. Mas não — Oh, Mãe! — gritou excitada depois de os observar por algum tempo. — Os soldados trazem serras e martelos, em vez de armas. Estão a construir casas. A Mãe parecia estranhamente contente. Marie atirou com os trapos e subiu os degraus periclitantes da cave. Viu de imediato que outros homens de uniforme cinzento tinham vindo para a aldeia. — Não, minha querida. Vai lá acima ver quem chegou. — Mãe, será que os soldados voltaram? — perguntou ansiosamente. Quando Marie acordou, o Sol brilhava através das fendas nas tábuas velhas que serviam de tecto. Ao ouvir sons estranhos, sentou-se num ápice. Algo de diferente estava a passar-se naquela manhã. Perguntava-se que sons seriam aqueles. riam-se e entregavam moedas francesas aos miúdos ávidos. Mas, quando partiram, a aldeia continuou em ruínas. Enfiou-se nos trapos e voltou a cair num sono irregular. Os soldados continuavam a marchar na sua cabeça. Depois dos soldados franceses em uniformes azuis, tinham vindo os soldados alemães em uniformes verdes. Para alívio de todos, depressa se foram embora. Depois vieram os uniformes caqui dos americanos. Os americanos À medida que a guerra se afastava, Marie, a Mãe e a Avó vasculharam, em lágrimas, o cascalho em que a sua casa se transformara. A pequena família mudou-se para uma antiga cave. “Como toupeiras nos buracos do chão”, pensara Marie, com tristeza. 7 cinzento entregou a chave da porta de entrada a Marie com muita No dia em que acabaram de a construir, o chefe dos homens de Será que se iriam embora sem construir uma casa para a sua família? Enquanto esperava e observava, a cave parecia-lhe mais escura e húmida do que nunca. Quando estava quase a desistir de esperar, Marie obteve a sua resposta. A resposta era “Sim”. A casa de Marie, tal como as outras, foi construída em apenas três dias. Para ela, era a casa mais bela do mundo. Não disse “Sim”, mas também não disse “Não”. Marie montou guarda todos os dias para ver o que aconteceria. Uma por uma, foram-se construindo casas pequenas para outras pessoas. As casas eram pequenas e simples mas, para Marie, eram bonitas. Como ansiava por um chão de madeira limpo para varrer e um belo telhado de telhas vermelhas para impedir a chuva de entrar! — Bem, Menina, veremos o que se pode fazer. pergunta. Quando finalmente compreendeu, não se riu nem sorriu, mas respondeu muito seriamente: O homem pareceu surpreendido e pediu-lhe para repetir a — O senhor pode construir-me uma casa por seis cêntimos? Timidamente, estendeu a meia e mostrou-lhe os seis cêntimos. Teve uma ideia súbita. Desceu os velhos degraus a correr e pegou numa meia velha onde estavam seis cêntimos franceses que os soldados americanos lhe tinham dado. Era o único dinheiro que a sua família tinha. Enquanto voltava a subir as escadas, um misto de esperança e ansiedade fazia-a tremer a cada degrau. Correu para o chefe dos homens vestidos de cinzento. 105 Laura toma uma decisão. Amanhã, a caminho da escola, irá bater à porta do veterinário, como fez da outra vez por causa de um Laura. — Não é vadio, porque eu acolhi-o e gosto dele — retorquiu Desta vez, a mãe sempre resolvera responder. — Nem penses! Ele tem mais que fazer do que tratar os gatos vadios. — É preciso chamar o veterinário — sugere Laura. O gato sem nome nem casa tem o pêlo descaído e o salto lento; não liga aos pássaros, já não tem fome, foge do sol e abriga-se entre dois pés de urtigas. — Parece que o gato cinzento vai morrer. Então Laura repete para si, em voz baixa e grave: A mãe não ouve, ocupada também a arrancar as ervas do passeio, o que Laura, aliás, também devia estar a fazer para a ajudar. — O gato cinzento está com mau aspecto; acho que está doente… — insiste ela. — O gato cinzento está com mau aspecto — observa Laura, empoleirada no alto do pequeno muro que separa o jardim do baldio. Mas o pai está a cortar a sebe e não ouve o que ela diz. Um gato debaixo do pinheiro de Natal 106 Depois das quatro horas, ao regressar da escola, Laura encontrou — Esta tarde, Laura, não tenho muito trabalho, e por isso vou dar uma volta para esse lado. ápice: Ela gaguejou ao falar do gato e o veterinário compreendeu num — O meu pai vai aposentar-se e sou eu que vou substituí-lo — explica com gentileza, ao ver o espanto de Laura. Que surpresa! É um rapaz novo que vem atender. Durante o recreio do meio-dia, Laura escapuliu-se do pátio. Se a professora soubesse! Se a mãe a visse! Ela sabe que pode ser suspensa por três dias: “Que falta de responsabilidade!”. Ela bem sabe, mas o gato cinzento está com tão mau aspecto… “Inundado”? O rio inunda as terras; a banheira, quando demasiado cheia, inunda o quarto de banho… mas um veterinário “inundado”? Então, quem há-de aconselhar Laura? Não quer que se riam dela, não quer ser motivo de troça. — O meu marido está inundado de trabalho. Mas é a mulher que vem à porta e lhe dá uma resposta seca: No dia seguinte, não consegue encontrar o gato em lado nenhum e são já mais do que horas de ir para a escola. Laura vai então sem o gato. Bate à porta do veterinário para pedir um conselho. “Amanhã vou esconder o gato na minha pasta, está decidido.” passarinho caído do ninho e de um ouriço-cacheiro meio esmagado por uma bicicleta. É um veterinário idoso muito simpático, que não a manda dar uma volta. 8 E deu-lhe de volta dois cêntimos. M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001 William W. Price — Obrigado, Menina, mas quatro cêntimos são suficientes. Será que chegava? Quase nem se atrevia a olhar para o homem. Este sorriu-lhe e disse solenemente (em francês, claro): colocava na mão do chefe. Voltou rapidamente a descer os velhos degraus da cave e, quando voltou, dirigiu-se ao chefe dos homens de cinzento. Agora que estava acabada, a casa parecia grande e os seis cêntimos pareciam pouco. Mas era tudo o que ela tinha, e foi-os contando à medida que os Parou de repente, como se se recordasse de algo. Prometera-lhes os seis cêntimos pela casa, por isso, esta ainda não era propriedade sua. Marie pegou nela e abriu oficialmente a porta, enquanto a Mãe, a Avó e toda a aldeia a observavam. cerimónia, dizendo: — Menina, a sua chave. 9 Simplicidade Sérgio 107 Junto do pinheiro de Natal, está um presente que dá saltos. Contrariamente ao habitual, a mãe sugere que se abram as prendas de Natal antes da missa do galo. Laura nem quer acreditar. Há muitas coisas a mudar nesta casa, de há uns tempos para cá. Talvez desde que *** Mas ela não tinha vontade de ouvir as recordações da mãe. Foi chorar sozinha para cima do pequeno muro. Perguntou a si mesma para onde teria Sérgio levado o gato morto. Pareceu-lhe tê-lo visto, cinzento e de pêlo brilhante, escapar-se por entre as ervas altas; bem sabe que foi uma ilusão. Depois, o pintarroxo-que-tinha-medo-do-gato voltou para o terraço e Laura riu-se das suas bicadas ávidas. Saltou rapidamente do seu posto de observação para ir buscar migalhas frescas. — Tens um amigo novo. Sérgio é um nome estranho, que me faz pensar no tecido do casaco que eu usava quando tinha a tua idade e que… Laura ouviu a mãe falar com seriedade de uma determinada injecção, e concluir por fim: Até breve, Laura! Lamento! Tive de ajudar o teu gato a partir sem sofrer demasiado… Foi pena, mas era melhor para ele. Quando quiseres… um bilhete que a mãe lhe leu: 108 Colette Nys-Mazure Contes d’Espérance Paris, Desclée de Brouwer, 1998 — Parece filho do gato cinzento. Amanhã vou logo apresentá-lo ao Sérgio. No entanto, ele está aqui esta noite, o pai, bem vivo e a rir-se, quando a mãe mostra a Laura a prenda que mexe: um gatinho cinzento. o pai “esteve às portas da morte”, como diz a avozinha. Laura ficou a saber que isso significa escapar à morte. Terá ela suspeitado da gravidade do estado de saúde do pai, encontrado desmaiado no jardim enquanto ela estava na escola? Muitos acabam na marginalidade. a indisciplina, a ignorância e a grosseria. gostam de se fazer notar pelos piores motivos: atitude exibicionista de tantos jovens, que atenções. É um sinal de imaturidade a afabilidade e não procura ser o centro das discreto e simples, trata os outros com sozinhos. Quem tem verdadeiro valor é atraem a inveja dos demais e acabam Aqueles que gostam de se enaltecer Simplicidade 109 Fortaleza 13 Era, é claro, um carro. Não vou dizer qual era a marca, porque penso que já nos rodeia demasiada publicidade. Era um carro novo. Com relógio, rádio, todo artilhado. Levou uma hora a mostrar-me O presente estava lá, à minha espera, quando cheguei das aulas. Estacionado em frente de casa, mas nem dei por isso. O meu pai passou o tempo a fazer alusões indirectas, mas não percebi. Por fim, teve de me levar até lá fora e mostrar-mo. Quando me deu as chaves, a sua cara crispou-se toda, como se lhe apetecesse chorar de orgulho e de alegria. A razão por que me sentia culpado por ter apanhado o autocarro era a seguinte: tinham passado cinco dias desde os meus anos, não é verdade? No dia do aniversário, o meu pai dera-me um presente. Um presente de arromba. Inacreditável. Deve tê-lo planeado e andado a poupar, literalmente, durante anos para o comprar. Culpado por ter apanhado o autocarro. Vejam: a coisa pior quando se é jovem é a banalidade. mão gelada da morte. Sentia-me culpado por ter apanhado o autocarro. Foi cinco dias depois dos meus anos. Tinha dezassete anos e cinco dias. Era terça-feira, 25 de Novembro, um dia de chuva. Apanhei o autocarro porque chovia muito quando saí da escola. Só havia um lugar vago. Sentei-me e tentei afastar a nuca da gola, que ficara encharcada enquanto esperava na paragem do autocarro, e parecia a Um presente de arromba elas. dificuldades e não se deixar intimidar por procurar compreender o sentido dessas ou cair no desânimo. A atitude correcta é Mas é um erro responder com agressividade dificuldades surgem quando menos se espera. A vida tem reviravoltas súbitas e as Fortaleza 14 mais me livraria dele. Era meu. Pertencia-me. Era dono de um carro novo. Todo artilhado. A malta no liceu diria: “Eh, pá! Olha para Não fui capaz de lhe explicar. Nem eu percebia bem. Se o tivesse levado para o liceu e o tivesse arrumado lá no parque, nunca Fomos imediatamente dar uma volta no carro, é claro. Conduzi até ao parque, ele trouxe-o de volta, estava ansioso por pôr as mãos no volante e tudo correu bem. O problema só surgiu quando, na segunda-feira seguinte, descobriu que eu não fora de carro para o liceu. Porquê? E eu sorri. Penso. podia ter vivido um ano ou mais no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, se admitíssemos que conseguiria uma bolsa de estudo. Foi o que imediatamente me passou pela cabeça, antes mesmo de ele abrir a porta reluzente. Podia ter colocado o dinheiro numa conta-poupança. É claro que eu podia vender o carro e não perderia muito dinheiro se o fizesse rapidamente. Pensava nisso enquanto ele me punha as chaves na mão e dizia: "É todo teu, filho!" E a cara dele tremia outra vez. Quanto terá custado? Não perguntei, mas deve ter sido, pelo menos, três mil dólares. O meu pai é contabilista e nós não temos quantias destas para coisas desnecessárias. Com aquele dinheiro, eu Eu aprendera a guiar e em Outubro tirara a carta de condução. Parecia-me útil, em caso de emergência, e podia fazer alguns recados à minha mãe e sair sozinho se quisesse. Ela tinha um carro, o meu pai tinha um carro e agora eu tinha um carro. Três pessoas, três carros. A única chatice é que eu não queria um carro. todos os extras. 15 Ursula K. Le Guin Tão longe de sítio nenhum Lisboa, Ed. Fragmentos, s/d aquilo! Porreiro! Topem o Griffiths-Acelera!”. Alguns deles gozariam, mas outros admirá-lo-iam verdadeiramente, e quem sabe se também a mim, por ter a sorte de o possuir. E isso é que eu não ia aguentar. Eu não sabia quem era, mas uma coisa é certa: não queria ser um acessório de um carro. Não há amizade mais séria do que aquela que une alunos e professores. Um dos maiores exemplos deste tipo de amizade foi a relação entre Helen Keller (1880-1968) e Anne Mansfield Sullivan (1866-1936). A doença arruinou a visão e a audição de Helen quando esta não tinha ainda dois anos, cortando os seus laços com o mundo. Como a própria descreveu mais tarde, durante quase cinco anos, “cresceu selvagem e desregrada, rindo baixinho ou alto para exprimir prazer, dando pontapés, arranhando e emitindo gritos roucos para exprimir o oposto.” A chegada de Anne Sullivan à casa dos Keller no Alabama, vinda da Perkins Institution for the Blind (Instituto Perkins para Cegos), em Boston, mudou a vida de Helen. A própria professora era meio-cega devido a uma infecção ocular da qual nunca recuperara. Quando chegou a casa de Helen ia cheia de experiência, dedicação e amor. Conseguiu estabelecer contacto com a mente da aluna através do toque e, em três anos, ensinou-a a ler e a escrever em Braille. Quando tinha 16 anos, Helen já falava suficientemente bem para poder ir para a escola. Formou-se com distinção pela Universidade de Radcliffe em 1904 e devotou a sua vida aos cegos e aos cegos e surdos, como a sua professora o fizera. A amizade entre as duas mulheres durou até à morte de Anne. Helen escreveu sobre a chegada de Anne Mansfield na sua autobiografia The Story of My Life (A História da Minha Vida). Helen Keller e Anne Sullivan 113 114 Na manhã seguinte à sua chegada, a minha professora levou-me até ao quarto dela e deu-me uma boneca. Os meninos cegos da Perkins que tinha vindo revelar-me a vida e, mais do que isso, amar-me. Senti passos a aproximarem-se. Estendi a mão para o que supus ser a minha mãe. Alguém a agarrou e pegou-me ao colo. Era a pessoa Se alguma vez esteve no mar, envolvido por um denso nevoeiro, como se uma escuridão branca e palpável o cercasse, e sentiu o seu navio, tenso e ansioso, buscar o porto com o auxílio de uma sonda enquanto o seu coração batia fortemente à espera de que algo acontecesse, então sabe como eu me sentia antes da minha educação começar. Só que eu não tinha sonda para me guiar, nem forma de saber se o porto estava próximo. A minha alma clamava por luz, e a luz do amor brilhou sobre mim naquela hora. e iluminava a minha face. Sem dar por isso, pus-me a dedilhar as folhas e botões que me eram familiares e que tinham brotado para dar as boas-vindas à suave Primavera do Sul. Não sabia que maravilhas e surpresas o futuro me traria. Raiva e amargura tinham sido os meus sentimentos dominantes nas últimas semanas, e a essa luta titânica seguira-se uma profunda apatia. Na tarde desse dia memorável eu encontrava-me na varanda, imóvel e expectante. Pelos sinais da minha mãe e pela azáfama dentro de casa, deduzia vagamente que algo de inesperado estava para acontecer. Sentei-me, então, nos degraus da porta da entrada. O sol daquele fim de tarde penetrava as madressilvas que cobriam a varanda O dia mais importante de toda a minha vida foi aquele em que a minha professora, Anne Mansfield Sullivan, chegou a nossa casa. Foi a 3 de Março de 1887, três meses antes de eu completar sete anos de idade. 17 Honestidade 115 satisfação pela causa do meu desconforto ter sido posta de parte. Miss Sullivan trouxe-me o chapéu e soube que íamos sair. Este pensamento, se se pode chamar pensamento a uma sensação sem palavras, fez-me correr e saltar de prazer. Um dia, enquanto brincava com a minha boneca nova, Miss Sullivan colocou a boneca de trapos no meu colo, soletrou a palavra “b-o-n-e-c-a” e ensinou-me que a palavra se aplicava a ambas. Dias antes, tínhamos tido uma briga sobre as palavras caneca e água. Miss Sullivan tinha tentado ensinar-me que eram distintas, mas eu continuava a confundi-las. Desesperada, deixara cair o assunto, para, logo que surgiu uma oportunidade, o retomar. Impacientei-me com a insistência dela e atirei a boneca nova ao chão. Fiquei extremamente feliz quando a ouvi partir-se. Não senti pena nem remorso. Não gostava dela. No mundo hirto e escuro em que eu vivia, não havia lugar para sentimentos fortes ou para a ternura. Senti que a minha professora varria os fragmentos para um canto do fogão de sala e senti Apenas movia os dedos como um macaco de imitação. Nos dias seguintes, aprendi a soletrar muitas palavras dessa maneira: alfinete, chapéu, chávena, sentar, levantar, andar. Só após muitas semanas é que compreendi que tudo tinha um nome. Institution tinham-na mandado e Laura Bridgman tinha-a vestido. Mas só o soube mais tarde. Depois de ter brincado algum tempo com ela, Miss Sullivan soletrou a palavra na palma da minha mão: “b-o-n-e-c-a”. Fiquei logo interessada nesta brincadeira feita com os dedos e tentei imitá-la. Quando consegui reproduzir toda a sequência correctamente, enchi-me de um prazer e de um orgulho infantis. Corri escada abaixo ter com a minha mãe. Quando a encontrei, levantei a palma da mão e fiz as letras correspondentes a boneca. Não sabia que estava a soletrar uma palavra, nem sequer que as palavras existiam. 116 Aprendi muitas palavras novas naquele dia. Não me recordo de todas. Mas recordo-me de aprender mãe, pai, irmã, professora. Palavras que fariam o mundo desabrochar para mim, “como a vara de Aarão”. Seria difícil encontrar naquele dia uma criança mais feliz do que eu, quando à noite me deitei na cama e relembrei as alegrias que aquele dia me trouxera. Pela primeira vez na minha vida, ansiava pelo dia seguinte. um nome e cada nome dava lugar a um pensamento novo. Quando regressámos a casa, tudo aquilo em que eu tocava parecia vibrar de vida. Via agora tudo de uma forma nova e estranha, como se tivesse tido uma iluminação. Ao entrar em casa, lembrei-me da boneca que tinha partido. Apalpei o caminho até à lareira e apanhei os pedaços. Tentei juntá-los, mas em vão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Lembrei-me do que tinha feito e senti, pela primeira vez, arrependimento e pesar. Saí da casa das bombas ansiosa por aprender mais. Tudo tinha era aquela coisa fresca e maravilhosa que corria pela minha mão. Aquela palavra viva despertou a minha alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, libertou-a! Embora ainda houvesse barreiras a transpor, eram barreiras que o tempo podia derrubar. Fomos carreiro abaixo em direcção à casa das bombas, atraídas pela fragrância das madressilvas que a cobriam. Alguém estava a tirar água e a minha professora pôs a minha mão debaixo do jacto. Quando a água fresca jorrou sobre uma das minhas mãos, Miss Sullivan soletrou-me a palavra “água” na outra mão. Fê-lo primeiro devagar, depois rapidamente. Fiquei quieta, atenta aos movimentos dos dedos dela. Assaltou-me subitamente uma recordação vaga de algo que esquecera ņ a emoção de um pensamento que agora regressava. O mistério da linguagem revelava-se-me finalmente. Soube que “á-g-u-a” sem saída. de revolta, até se verem, por fim, num beco deixando atrás de si um rasto de sofrimento e fins. Surdos à voz da consciência, caminham vida e não olham a meios para atingir os seus obstáculo por aqueles que querem subir na A honestidade é encarada como um Honestidade 117 menos agora, o que preocupa o pai, que diz que ela tem saudades de casa e está ansioso por levá-la embora. Não concordo com ele, mas No início, os seus movimentos eram tão insistentes que se podia pensar que havia algo de estranho ou errado com ela. Reparo que come — Está tão sossegada! vermelha de lã escocesa. Aprendeu a coser esta semana e está muito feliz. Quando conseguiu fazer uma faixa da largura da sala, acariciou o próprio braço e encostou o trabalho à cara com doçura. Já me deixa beijá-la e, quando está particularmente tranquila, senta-se no meu colo por uns minutos. Mas não devolve as minhas carícias. O passo mais importante, porém, foi dado. A pequena selvagem aprendeu a sua primeira lição de obediência e acomodou-se ao jugo com facilidade. A minha tarefa, que desempenharei com gosto, consiste agora em conduzir e modelar a magnífica inteligência que desperta na sua alma infantil. As pessoas já repararam que a Helen mudou. O pai vem ver-nos de manhã, antes de ir para o escritório, e ao fim da tarde, quando regressa. Observa a alegria da filha enquanto esta enfia as contas ou desenha linhas no molde de costura e exclama: A criaturinha selvagem de há duas semanas transformou-se numa criança gentil. Está sentada à minha beira enquanto escrevo esta carta. A sua face está serena e feliz e tricota uma longa cadeia Esta manhã, o meu coração exulta de alegria. Deu-se um milagre! A luz do entendimento brilhou na cabeça da minha pequena aluna e tudo mudou! 20 de Março de 1887 As cartas seguintes foram escritas por Anne Sullivan a propósito de Helen Keller. 118 petrificada. Uma luz nova surgiu na sua face. Soletrou “água” várias vezes. Depois deitou-se no chão e perguntou como se chamava. Apontou sucessivamente para a bomba, para a latada e, virando-se de Creio que numa carta anterior te disse que a Helen tinha aprendido “caneca” e “leite” com mais dificuldade do que quaisquer outras palavras. Confundia os substantivos com o verbo “beber”. Não conhecia a palavra para “beber”, mas imitava o acto de beber quando soletrava “caneca” ou “leite”. Hoje de manhã, enquanto se lavava, quis saber a palavra para “água”. Quando quer saber o nome de alguma coisa, aponta para o objecto ou acto, e bate na minha mão. Soletrei “á-g-u-a” e nunca mais pensei no assunto até depois do pequeno-almoço. Ocorreu-me que esta nova palavra podia ajudá-la a distinguir “caneca” e “leite”. Fomos até à casa das bombas e pus a Helen a segurar na caneca enquanto eu dava à bomba para extrair água. Quando a água fria jorrou, enchendo a caneca, soletrei “á-g-u-a” na mão da Helen que estava livre. A junção tão próxima da palavra com a sensação da água fria a jorrar assustou-a. Deixou cair a caneca e ficou educação. Aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que ela quer saber. Tenho de te escrever esta manhã porque aconteceu uma coisa muito importante. A Helen deu o segundo grande passo na sua 5 de Abril de 1887 A Helen aprendeu vários substantivos esta semana. “C-a-n-e-c-a” e “l-e-i-t-e” foram os mais difíceis de todos. Quando soletra leite aponta para a caneca e quando soletra caneca faz o gesto de verter ou beber, o que mostra que confundiu as duas palavras. Ainda não se deu conta de que tudo tem um nome. penso que teremos de abandonar a nossa casinha em breve. 21 Sonhou com comida. Parecia que, nos últimos tempos, todos os seus sonhos tinham a ver com comida. Desta vez, sonhou com cenouras douradas, cozidas a vapor, com natas e manteiga. Mesmo no sonho, Ana sabia que isso era uma loucura, porque não conseguia recordar-se de alguma vez ter comido manteiga ou natas. Mas a mãe tinha-lhe falado sobre isso e, no seu sonho, quase podia provar aquela delícia. Naquele instante, Ana apercebeu-se de que não podia continuar. Tinha de parar e de descansar. Tombou a bicicleta, assegurando-se primeiro de que as beterrabas não cairiam do cesto. Depois estendeu-se na relva fresca. E também desanimada. Nem aos agricultores restava qualquer legume. À excepção de algumas beterrabas que um homem lhe tinha dado, mais ninguém lhe dera ou vendera o que quer que fosse. Levava a bicicleta, mas estava demasiado cansada para pedalar. Caminhava devagar, empurrando-a. Mas até isso fazia com que o seu coração batesse depressa. Ultimamente, sentia-se sempre cansada. Todas as semanas, Ana ia ao campo à procura de alimentos. Esta história passou-se na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. A comida era escassa. As pessoas, sobretudo as crianças, alimentavam-se mal e andavam sempre esfomeadas. Ana e a galinha pedrês 119 William Bennett (edited by) The Book of Virtues New York, Simon & Schuster, 1993 uma fada radiosa. Volteou de objecto em objecto, perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria. Ontem à noite, quando me deitei, lançou-se espontaneamente nos meus braços e beijou-me pela primeira vez. Pensei que o meu coração ia rebentar de alegria. P.S. ņ Não acabei a carta a tempo de a pôr no correio, por isso vou acrescentar umas linhas. A Helen levantou-se hoje como se fosse súbito para mim, perguntou o meu nome. Soletrei “Professora”. Quando a ama trouxe a irmãzinha de Helen até à casa das bombas, Helen soletrou “bebé” e apontou para a ama. De regresso a casa, estava muito excitada e quis saber o nome de tudo aquilo em que tocava. Em algumas horas tinha já adicionado trinta palavras novas ao seu vocabulário. Eis algumas delas: porta, aberta, fechada, dar, ir, vir e muitas mais. 22 “Não”, disse energicamente para si mesma, “o ovo é meu. A Tirou o lenço que usava na cabeça. Com cuidado, embrulhou o ovo e pô-lo delicadamente no cesto, juntamente com as beterrabas. Montou na bicicleta e começou a subir a estrada. Mas um pensamento triste tomou conta dela. Na verdade, o ovo não lhe pertencia. Pertencia ao dono da galinha pedrês. Ana começou a pedalar cada vez mais devagar. Tinha de ir depressa para casa, dar o ovo à mãe. Talvez pudessem comer uma omeleta pequenina! A galinha pedrês afastou-se e Ana ficou sozinha com o ovo. Agora que descansara, sentia-se melhor. — Oh, minha linda, linda galinha! — exclamou. — Desculpa ter sido dura contigo. Obrigada por este ovo maravilhoso! Foi então que esta viu o ovo! Pegou nele cuidadosamente. Ainda estava quente. — Cu-u-u-t… cu-u-u-t… — disse a galinha, e recuou, assustada com a voz zangada de Ana. — Porque é que estás a olhar para mim, sua tonta? — perguntou Ana. — Fazes tanto barulho que me acordaste. De repente, Ana apercebeu-se de que a galinha estava a falar. Pelo menos, estava a cacarejar e a falar da maneira que as galinhas falam. Sonhou, em seguida, com tomates, vermelhos e sumarentos. Havia um monte deles e Ana preparava-se para comer um quando tudo desapareceu. Acordou de repente e sentou-se. Na sua frente estava uma galinha pedrês. Olharam uma para a outra. 23 — Foste tão amorosa — disse. — Gostaria de te dar algo para Ana preparava-se para ir embora. A jovem mulher parecia perturbada. — Oh, muito obrigada. Aquela galinha anda sempre a vaguear e a deixar os ovos nos sítios mais improváveis. É a única que nos resta, e precisamos dos ovos dela para o nosso menino. É que ele está muito doente. — Então, isto também lhe pertence — disse numa voz quase inaudível. Lenta e cuidadosamente, a menina tirou o ovo do lenço e entregou-o à mulher. — Sim, temos — respondeu a mulher. — Tem… tem… uma… uma galinha pedrês? Com muita relutância e o sonho da pequena omeleta a desvanecer-se rapidamente, Ana indagou: — Sim? — perguntou a jovem mulher que veio à porta. Mas parecia que a bicicleta ia cada vez mais devagar. E, quando chegou perto da casa branca, as pernas já não conseguiam pedalar. Muito lentamente, desceu da bicicleta e dirigiu-se à casa. Havia uma casinha branca perto da estrada. “Não conseguem ver nada”, disse para consigo. “Tenho o ovo todo coberto.” Começou a pedalar mais depressa. galinha pô-lo mesmo ao meu lado enquanto eu dormia.” Continuou a subir a estrada. “De qualquer forma, não sei de quem é a galinha. E mesmo que soubesse, ninguém ia adivinhar que eu tenho o ovo.” 121 Delicadeza 24 M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001 Ruth Hunt Gefvert — Não, Ana. — disse a mãe. — Estou aqui a pensar na filha maravilhosa que tenho. Quando se anda sempre com tanta fome, só um verdadeiro adulto poderia ter tomado uma decisão tão difícil. — Então não ficou zangada comigo, mãe? Não lhe parece que sou nova demais para ir ao campo tentar arranjar legumes? Mas a mãe apenas acariciou o cabelo de Ana e olhou-a durante muito tempo, sorrindo. Quando chegou a casa, Ana contou à mãe o que se tinha passado. Teve medo de que a mãe lhe ralhasse por chegar tarde e por só trazer algumas beterrabas. Quem sabe se até se zangaria por não ter ficado com o ovo… E montou outra vez na bicicleta. Queria ir para longe daquela casa, da galinha pedrês e do ovo maravilhoso. — Não faz mal — disse Ana. pores no cesto. Mas não temos quase nada. Eu… eu não tenho nada para te dar. 25 Diligência as principais vítimas. grave confusão, das quais os mais jovens são conceito de liberdade, tem criado situações de tem vindo a instalar-se, a par de um falso tempo atrás. A mentalidade permissiva que delicadeza, que ainda prevaleciam há algum linguagem tomaram o lugar da correcção e da A falta de compostura e as liberdades de Delicadeza em vez de ajudar a crescer. sociedade materialista, que ilude e explora, aprender tornam-se presas fáceis de uma para a miséria. Aqueles que nada querem emocionalmente. A ignorância é caminho sobre a realidade e crescer intelectual e que é poder-se estudar, descobrir coisas novas assim se venha a dar mais valor ao privilégio mundo que não podem ir à escola. Talvez muitas crianças e adolescentes de todo o É bom pensar-se de vez em quando nas Diligência 125 No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma greve de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra A princípio, comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do que palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam bons negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham clientes uma ou duas vezes por ano, por alturas de grandes zangas. Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de-rosa e lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz favor… Os vendedores de palavras cinzentas vendiam sobretudo Cabeça de alho chocho, Não me chateies, Cala o bico… Seria obra do Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê, preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas. palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas, como Obrigado, Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim. Palavras tão doces que são como mel no coração. Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta. O que são As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas 126 E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno gracejo, à mais insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico, Vai ver se chove, És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por adiante! Como receavam ficar sem provisões, como costuma acontecer em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer conservas de palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias, empilharam-nas nos armários da cozinha, nos guarda-fatos, debaixo das camas. Fechado por morte do proprietário, Liquidação total, Quinze palavras cor-de-rosa pelo preço de uma. Mas, mesmo a preços módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas de palavras cinzentas, essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem conhecido, as palavras feias são contagiosas. Se no recreio te lembrares de lançar uma, receberás dez em troca! Abriram-se mesmo lojas especializadas em palavras feias, risos grosseiros, insultos horríveis. E os vendedores cinzentos trabalhavam dia e noite para descobrirem jóias raras, as palavras mais horríveis e mais maldosas! As lojas cor-de-rosa fechavam umas atrás das outras. Passa-se, Os vendedores de palavras cor-de-rosa, desolados, já não sabiam onde as armazenar. — Para o diabo com as palavras doces — diziam os homens. — São caras e não trazem nenhum benefício. freguesia, Está bem arranjado, homem, Obrigado pelos seus serviços mas está despedido. Havia guerras entre famílias, divórcios, casais que já não se entendiam. Invejas entre irmãos, zangas… Comprava-se vários Já não gosto de ti, Acabou tudo. Nas lojas de palavras cor-de-rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de ti, ficavam por vender. 29 Deitado na sua esteira, Chico não conseguia adormecer. Entendia tão bem a cabrinha! O pai dele arranjara trabalho longe, lá na cidade, e só podia vir a casa de quinze em quinze dias. Às vezes, para fazer mais algum dinheiro, ficava fora mais tempo. Quando chegava a hora de regressar à cidade, o pai dizia-lhe que se portasse como o chefe da casa e que devia obedecer à mãe. Como se fosse preciso dizer-lho! Ele bem sabia que a mãe, com o trabalho na fazenda do Sr. Macedo, Na primeira noite, Flor berrou sempre a chamar pela mãe e nem deixava que Kenchú tentasse acalmá-la com lambedelas carinhosas. Chico gosta particularmente de Flor. Foi ele quem lhe pôs o nome, no mesmo dia em que ela chegou à palhota, apertada nos braços fortes do pai, ainda mal se segurando nas patinhas frágeis, e a berrar pela mãe. Fora um vizinho que lha dera, como forma de pagar a ajuda no arranjo da cabana. Como quase todos os seus companheiros, Chico levanta-se bem cedinho pela manhã. Ajuda a mãe a tratar das duas cabrinhas, Flor e Kenchú, e só depois parte para a escola. Chico vive numa aldeia perdida num dos muitos países de África. Podia ser em Angola, no Senegal ou no Ruanda. Podia chamar-se Chico, Abuabar ou N’gouda. Há muitos Chicos em África. Chicos de olhos brilhantes e pés descalços, com a cabeça povoada de sonhos, com vontade de ter um futuro para viver. Chico 127 despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam bebés. A Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a — Que calor horrível! Bolas! Kekalôr! Em vez disso, ouvia-se agora: — Está bom tempo! Que maravilha! Obrigado, amigo Sol… Oh, meu Deus, como gosto do Sol… À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a brilhar. Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de braços abertos: aselha, vai mas é plantar batatas! Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes das férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de palavras cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na auto-estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos: Ó o presente que eu mais receava. — Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de facto, E, quando se abriam as prendas, era um concerto de gemidos: — Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito pouca saúde! Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos. Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos, para se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se sumo de peúgas pretas, no meio de gracejos do género: 30 Só depois de ordenhadas as cabras e de lhes ter deitado de comer, é que Chico saía para a escola. Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o 128 Os pais estranharam a mudança mas, não sabiam a que atribuí-la. Era um segredo partilhado por Chico, Flor e Kenchú. Ah, como ele compreendia a cabrinha malhada com a manchinha branca na testa! Esgueirou-se para fora da palhota sem acordar os pais e os irmãos que dormiam, saiu para a noite quente e húmida e entrou na cabana dos animais. Passou a noite inteira deitado ao lado de Flor, que se acalmou e acabou por adormecer com a cabeça poisada no peito de Chico. No dia seguinte, já aceitou de bom grado o leite que Kenchú lhe oferecia. Em certas ocasiões, as saudades eram tantas que acabavam por conseguir irromper para fora, e duas lágrimas teimosas, quentes e grossas, deslizavam suavemente pela face castanha-escura de Chico. — Pára com isso imediatamente! — gemeu a nuvem. — Se não, vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm habitualmente a lágrima ao canto do olho.) O rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A nuvem olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via ninguém chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos estavam gelados, todos os corações estavam frios. Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara. — Oh, oh! — exclamou a nuvem-chefe, que se tinha apoderado do céu cinzento. — Olhem só para isto… Um fedelho ridículo que vem à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a ninguém! Desde que as palavras cinzentas tomaram o poder, somos nós, as nuvens pardacentas, que somos os chefes. — Quando tiveres muitas saudades minhas, apertas com força esta pedrinha. A tua saudade vai passar para a minha pedra e eu vou recebê-la e tu vais sentir-te acompanhado. alguma vez vira, e colocou-lhe um na palma da mão. das nuvens. Toc, toc, bateu. — Venho à procura do Sol. Sempre que o pai partia, Chico ficava triste o resto do dia, mas depois isso passava. Quando a saudade lhe enchia o peito até cima e parecia querer saltar-lhe pelos olhos, apertava com muita força na mão o seixo que o pai lhe dera naquela tarde em que pescara o maior peixe da sua vida. O pai explicara-lhe que tinha arranjado na cidade um bom trabalho, mas que ia deixar de poder vê-los todos os dias. Depois, metera a mão na água e tirara dois seixos, os mais bonitos que o filho com os gémeos de três anos e Linita, de oito, não podia fazer tudo e precisava da ajuda dele. No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter ficado uma palavra cor-de-rosa meio gelada. “Eu”, dizia Pedro, “não quero um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz bom dia, nem obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se encontro o Sol.” O rapazinho caminhou durante muito tempo, escalou colinas geladas, pequenas e grandes montanhas, vulcões extintos. Por fim, ao cabo de meses e meses de árdua caminhada, chegou exausto e transido à casa Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de-rosa! De repente, nos engarrafamentos, as pessoas começaram a desdobrar os papelinhos cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo 129 31 Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso. O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa: Por favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado, Gosto muito de ti, Amor da minha vida, Se não se importa, etc. O rapazinho meteu-as nos bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado. Todas as que ele conseguisse levar. — Vou, a título de experiência — resmungou o Sol. — Mas atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu regresso será mais agradável. — Precisas de voltar — insistiu Pedro. E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando naquela “época cor-de-rosa”. cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos rimos, nunca dizemos palavras delicadas. Precisas de voltar. — Bom dia — cumprimentou. — Vim buscar-te. Tudo se tornou Já no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção da pequena bola amarela. Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola de bilhar perdida na imensidão do azul: era o Sol, que estava a desaparecer por causa dos maus-tratos. o Sol. — Olha — disse-lhe. — Aquela bolinha amarela ali em baixo é ajudar. atafulhada de caixas, sentaram-se, de pernas cruzadas no chão, e o professor começou a abrir as caixas. Quando a velha furgoneta partiu, deixando a velha escola Chico, Djimbu e Mkembé estugaram o passo. Que confusão! Ao chegar à escola, Chico notou um alvoroço desacostumado. Alguns homens em manga de camisa transportavam caixas para dentro do edifício da escola. Pareciam todos muito bem-dispostos, e até o Palhinhas, o cão acastanhado do professor, soltava latidos alegres e abanava a cauda, bem disposto. De tempos a tempos, sempre que o Sr. Macedo vinha à casa grande, Chico ficava parado no caminho a observar o grande carro branco e brilhante, tão brilhante que, quando o sol cintilava nos vidros, até fazia doer os olhos. E assim ficava perdido no seu segredo. era de um dia poder ter um carro como o do Sr. Macedo, o dono da fazenda onde a mãe às vezes ia trabalhar. Mas esse era o seu maior segredo e ainda não se atrevera a contar a ninguém, nem mesmo a Flor. Claro que, se o contasse a Djimbu ou a Mkembé, eles também iam querer, e deixava de ser um sonho só dele… Ir à escola era do que Chico mais gostava. O seu maior sonho, já segredado para dentro das orelhas de Flor e contado ao pai, durante uma tarde de pesca, era, um dia, poder ensinar outros meninos como ele a ler e a escrever. E haveria de trabalhar tanto, que iria até conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta novinha para os irmãos, igual a uma que vira um dia. Bem, do que ele gostava mesmo, mesmo, À saída da aldeia encontrava-se com Djimbu e Mkembé, os seus dois melhores amigos, e juntos faziam o caminho até à escola da Missão. 130 Sophie Carquain Petites histoires pour devenir grand Paris, Albin Michel, 2003 Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas tinham. E, quando alguma se lembrava de vir meter o nariz, garanto-vos que não ficava por muito tempo. O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua nuvem cor-de-rosa. E, juro-te, os vendedores de palavras cor-de-rosa começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em delicadeza, em cortesia, em civismo… Foi como mel no coração. Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas festas da passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de saúde. Em casa, as crianças voltaram a usar palavras cor-de-rosa: Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz de propósito… jogo… Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos simpáticos e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que podes entrar no tão bonito, não acha?, Pode ir à minha frente, não tenho pressa nenhuma… 32 histórias de cor e poder contá-las à noite, em volta do lume, à mãe, ao pai e aos irmãozinhos, que o escutavam com os grandes olhos castanhos muito abertos de espanto e com a respiração suspensa. Se Livros! Chico era capaz de ficar horas a fio mergulhado e perdido nas páginas de um livro. Ainda não tinha lido muitos. Só três dos meros vinte que constituíam a magra biblioteca da escola. Podia ser muito reduzida, mas os meninos achavam-se importantes por os terem e manuseavam-nos carinhosamente e com muito cuidado. Chico tinha lido os três mesmo até ao fim, e tantas, tantas vezes, até saber as Quando o professor o abriu, o rosto iluminou-se num sorriso. Muito lentamente, como um mágico que tira um coelho da cartola, o professor foi erguendo o braço. As crianças, mortas de curiosidade e com os olhos a brilhar, sustinham a respiração. O professor mostrou… livros!! Livros com imagens cheias de cor! Chico sentiu o coração a bater mais rápido. Parecia-lhe que estava a viver um sonho e só tinha medo de que a mãe o acordasse naquele momento. de lápis, lápis de cor – que bonitas as cores! – canetas – eram tão poucas as que lhes chegavam à escola! – borrachas que apagavam o que o lápis escrevia. Mas o melhor de tudo vinha no último caixote… O professor continuou a retirar lápis, lápis novos e usados, restos Era uma encomenda vinda da Europa com uma oferta de material para a escola. Perante o olhar fascinado das crianças, o professor foi retirando, com largos gestos teatrais mas sinceros, folhas soltas, restos de cadernos, cadernos e blocos novos e usados. Chico nem queria acreditar! Aquele material podia não ser novo, mas para eles isso não tinha a menor importância e era-lhes muitíssimo útil. Quem o enviara parecia adivinhar exactamente aquilo de que estavam a precisar! 33 encarregado da fábrica lia as cartas aos empregados – numa altura em que ele esteve muito tempo sem vir a casa. Não, desta vez ia estar com trinta olhos. Não ia ceder à tentação de olhar, nem que passassem Que tristeza! Ficou tão furioso que até deu pontapés no velho embondeiro que se erguia à saída da cabana. Porque é que o Sr. Macedo tinha de aparecer precisamente naquele momento? Por causa daquele carro enfeitiçado, já não teve lápis para escrever ao pai – o Chico pegou no seu, como quem recebe em mãos uma relíquia ou um tesouro. Não, hoje ia ter muito cuidado. Da última vez que preparara o lápis, no preciso momento em que estava a cortar a cana, o Sr. Macedo apareceu no seu carro brilhante, a apitar a uma gazela que se atravessara no caminho. Por momentos, Chico esqueceu tudo o que estava a fazer, imaginando-se sentado nos bancos macios, por trás do volante, com o vento a acariciar-lhe a face, e a apitar a impalas, zebras e macacos. Zás! Deixou cair o braço e cortou o bico do lápis, que, se já era pequeno, ainda mais reduzido ficou. aproveitá-lo até ao fim. Tinham autorização para levar o material para casa, mas ninguém o levava com medo de perder as preciosas folhas de papel ou os lápis. Os pensamentos de Chico foram interrompidos pela passagem do professor. Já tinha partido os lápis em pedaços mais pequeninos, que distribuía naquele momento pelos alunos. Cada um ia encaixar o seu pedacinho de lápis numa caninha ou num pau para conseguir Chico pudesse, levaria um daqueles para casa para lhos ler. Ficariam certamente ainda mais orgulhosos dele. Se algum dia conseguisse ganhar dinheiro, haveria de poupar até juntar o suficiente para comprar um grande livro de histórias ou de aventuras para ler aos irmãos. O maior e o mais grosso que houvesse à venda. 131 Coragem 34 I. Birnbaum Ao regressar a casa, Chico apertava com força o seixinho do rio. Tinha tantas novidades para contar em casa! E tanta coisa para escrever ao pai! Queria dizer-lhe que, da próxima vez que viesse a casa, ele, Chico, iria ter novas histórias para contar à noite, junto ao fogo. mesmo ao lado dele dois carros a apitar! 35 Paciência sinal de cobardia maltratar os mais fracos. amadurecimento. É, em contrapartida, um desfavoráveis, são sempre oportunidades de adaptar às circunstâncias, que, ainda que enfrentar os obstáculos com serenidade e de se É um sinal de coragem ser-se capaz de Coragem perder-se o autodomínio por causa delas. contrariedades são inevitáveis e é um erro pôr em prática diariamente, porque as uma virtude muito importante, que se deve quais todos saem prejudicados. A paciência é raciocínio. Cria situações insustentáveis, das A cólera obscurece a mente e impede o Paciência 135 prazer e facilidade tem Konoba em vencê-lo, porque o seu alimento — Esse monstro — disse — é tão gigantesco que escurece o dia quando abre as asas. Pode, no entanto, tornar-se tão pequeno como um punho de mulher, mas então fica tão pesado que os baobás se enterram no chão com o seu peso. Sabe ser belo, se quiser, medonho, se o desejar. É invencível. Quanto mais poderoso é quem o enfrenta, maior Ora, uma noite, quando festejava uma jornada de caça carnívora, chegou à aldeia um viajante curvado sobre um cajado tão gasto pelos caminhos que mais parecia a bengala de um anão. Este venerável vagabundo, depois de saciado com um gole de água e alimentado com um pedaço de carne, sentou-se sob a árvore da palavra e pôs-se a contar as maravilhas que encontrara ao longo da sua vida errante por países longínquos. Aconteceu, assim, falar de um certo pássaro, Konoba, que vivia numa floresta montanhosa para lá dos territórios comuns dos homens. «aquele a quem nada podia vencer». Era assim que lhe chamavam, tanto entre os homens como entre os animais da terra e os espíritos celestes. Kassa Kena Gananina foi antigamente o herói mais poderoso, mais temido e mais amado do povo mandinga. Um só volteio da sua arma podia matar vinte antílopes. Um só rasgo de cólera nos olhos assustava tanto as flechas inimigas que todas caíam a seus pés como para lhe pedirem compaixão. Kassa Kena Gananina era, em verdade, A pena pesada 136 um fruto fresco. Acende em ti a ira e a cólera para que eu me sacie com elas! — Homem poderoso e belo, eu te saúdo — disse o dragão celeste com voz aguda. — A tua força parece-me tão saborosa como Kassa Kena Gananina, nesse caminho enevoado, andou até ao meio-dia sem encontrar caça ou caçador. Chegado a uma clareira, o sol desapareceu repentinamente e à sua volta fez-se uma grande penumbra. O céu encheu-se de um murmúrio semelhante ao que atravessa a terra quando as suas entranhas se movem. O herói ergueu a fronte. Viu o pássaro. Estava imóvel, à altura de uma árvore. A cabeça de bico amarelo e curvo pendia entre as asas, tão vastas como o céu visível. Os olhos eram parecidos com duas luas de cores variadas. As garras eram sabres curvos. metida nos ombros, sem descansar. Na madrugada do oitavo dia, chegou à última aldeia antes da terra do Konoba. Perguntou onde vivia este inimigo dos homens que desejava combater. Um velhote, tremendo de susto só de ouvir o nome do monstro, descreveu-lhe o caminho que desembocava na floresta. Caminhou sete dias e sete noites, com passos largos e a cabeça Kassa Kena Gananina, ouvindo estas palavras, franziu o sobrolho e baixou a cabeça. Os companheiros, vendo-o assim pensativo, desafiaram-no com insistência a sobreviver a um combate leal contra um monstro daquela espécie. Os elogios depressa aqueceram o coração do herói. Levantou-se, foi a casa buscar a arma e, sem dizer palavra, saiu em direcção a essa montanha onde vivia o prodigioso dragão. preferido é a própria força dos seus inimigos. Debruçou-se, soprou e a pena voou. Depois agarrou no pássaro 137 39 que sessenta e cinco guerreiros do meu clã venham tirar-te essa coisa da nuca? — O que te passou pela cabeça — disse ela — para precisares Depois de ter gritado, pedido ajuda e, finalmente gemido, sem forças, durante muito tempo, veio o crepúsculo e com ele apareceu ao fundo da clareira uma mulher de idade. Trazia às costas uma criança pequena de pernas roliças, mas já em idade de andar. Kassa Kena Gananina chamou-a, agitando a mão sobre a erva e, com voz moribunda, pediu-lhe que fosse buscar todos os homens da aldeia para que o ajudassem a desfazer-se daquela pena tão pesada como um monte. no ar calmo sobre a sua cabeça. Quis agarrá-la, mas ela escapou-se-lhe e pousou-lhe na nuca. Então, o herói curvou as costas, titubeou, caiu de joelhos e deixou-se ir até enterrar o queixo na terra, coberto por esse fardo insuportável. Tentou arrancar essa pena muito pesada do cabelo, onde estava presa. Não o conseguiu e ficou grotescamente ajoelhado, resmungando e debatendo-se como uma raposa apanhada na armadilha. Viu uma pena, a última liberta das asas evaporadas balancear-se Continuei a olear o arado. Ele ficou especado e, em seguida, baixou a moca. Quando o fez, disse-lhe: ʊ Se precisa assim tanto de ajuda, porque não o diz? Ninguém precisa de se magoar. Compreendi imediatamente que não podia fugir nem lutar com ele. Com a moca quase em cima da minha cabeça, não teria qualquer hipótese. Por isso, fiz o que ele menos esperava. Olhei-o nos olhos. ʊ Preciso muito de dinheiro e vou levar tudo o que você tiver. Parou a poucos metros de mim e as primeiras palavras que disse foram: Um grupo de condenados trabalhava numa conduta de esgotos numa das extremidades do campo. Parei perto do matagal que rodeava aquele lado do campo e ajoelhei-me para arranjar e olear o arado. Enquanto deitava óleo, ouvi um ruído que me fez olhar para cima. Dos arbustos surgiu um homem. Vestia a farda às riscas pretas e brancas dos condenados. Carregava aos ombros uma moca pesada que parecia o cabo de uma ferramenta. Esta história começa em 1947. Era um belo dia de Primavera e encontrava-me na Florida a lavrar um campo para um amigo. Fora objector de consciência durante a Segunda Guerra Mundial e estava muito feliz por voltar a casa e ao trabalho do campo, a que já me dedicava antes da guerra. Quase me bateu Kassa Kena Gananina estendeu o punho armado à face trocista, saltou para um rochedo, fez voltear a sua massa de ferro. No primeiro volteio vazou o olho esquerdo do pássaro Konoba, no segundo cegou o olho direito, que chorou lágrimas de fogo. Então, num ruído ensurdecedor de asas, o monstro encolheu e num instante se reduziu a uma bola negra, que num longo silvo desceu do céu e caiu tão pesadamente que a terra tremeu e abriu fendas. Kassa Kena Gananina, de cabeça erguida para o grande Sol, soltou um grito de triunfo. 138 Henri Gougaud A Árvore dos Tesouros Lisboa, Gradiva, 1998 Kassa Kena Gananina beijou as mãos do sábio, e a partir desse dia entregou-se à conquista infinita de um bem mais precioso do que toda a força: a inocência. — Para quem não sabe nada do pássaro Konoba, uma pena é uma pena — balbuciou. — Boa noite, senhores. Kassa Kena Gananina ficou durante muito tempo sentado no chão, completamente estupefacto e desconcertado. Depois voltou à sua aldeia, onde contou a aventura à sombra da Árvore da Palavra. Quando disse como tinha sido liberto, fez-se um silêncio perplexo na assembleia. Então, um ancião sonolento bocejou ruidosamente e disse, levantando-se para se ir deitar: Konoba, reduzido a uma bola no solo fendido, e estendeu-o à criança, que o agarrou e brincou com ele, rindo, entre as suas mãos ágeis. Os dois afastaram-se na paz do dia que acabava. 40 ajudar!” Por isso, um pouco contra a vontade, pensei no que poderia Tive a forte tentação de dar meia volta em direcção a casa, mas as palavras surgiram-me muito claras: “Não, Calhoun! Tens de parar e A segunda parte desta história tem lugar muitos anos mais tarde. Pusera de parte a agricultura e tornara-me Director do Clube de Rapazes da minha terra: Jacksonville, na Florida. Uma noite, vinha de uma reunião, ansioso por chegar a casa. Mesmo antes de um cruzamento, dois carros chocaram de frente. À medida que me aproximava, vi os dois condutores, aparentemente sem ferimentos, saírem dos carros e correrem um para o outro, de punhos em riste. Um deles caiu por terra e o outro, furioso, começou a pontapeá-lo e a bater-lhe com uma chave-inglesa. liguei o tractor e continuei o trabalho. Sempre que me dirigia para aquele lado do campo onde se encontravam os condenados, tentava ver se o homem estava com eles, mas era demasiado longe para ter a certeza. Supus que tinha sido a última vez que o vira, mas enganava-me. Depois de dar graças pela força e pela orientação que recebera, Deu meia volta e, sem dizer palavra, desapareceu no meio dos arbustos. ʊ Ganhou ʊ assentiu. ʊ Vou voltar. Respondeu que sim, mas que os capatazes eram maus. Falámos mais alguns minutos enquanto eu oleava e arranjava o arado. De repente, deixou cair a moca. ʊ Com que então vai fugir? Tem consciência de que vai ser um homem procurado? 41 para me dizer que um antigo doente a tinha contactado. Chamava-se George Harris e tinha-me reconhecido no hospital. Assegurei-lhe que não conhecia nenhum George Harris, mas ele tinha-lhe dito que era o A história também não termina aqui. Muitos anos mais tarde, estava a fazer voluntariado no hospital psiquiátrico da região, ajudando nas actividades lúdicas, quando, um dia, uma funcionária telefonou A polícia chegou rapidamente. Eu continuava a agarrar o homem que se debatia e me chamava nomes nada elogiosos. O outro continuava inconsciente. A polícia trouxe algemas e estavam quase a algemar-me quando expliquei o que se passara. Agradeceram o meu gesto e deixaram-me ir para casa, para junto da minha mulher, que entretanto se perguntava por que razão demorava eu tanto. Depois de me ter vindo embora, dei-me conta de que, naquela noite escura, não tinha olhado para a cara de nenhum dos homens, o que lamentei. agarrei-o pelos braços, puxando-os para os lados. Ofereceu resistência mas eu mantive-me firme. Tropeçámos no passeio e caímos perto do outro homem inconsciente. Continuei a fazer força. Não lhe bati nem lhe provoquei qualquer ferimento. Em breve, apareceu um homem da estação de serviço e ofereceu ajuda. Pedi-lhe que chamasse a polícia. Saltei para fora do carro e atravessei o curto espaço entre mim e os dois homens: um inconsciente no passeio, o outro persistindo no seu ataque enraivecido. Pus-me atrás deste, iluminado apenas pela ténue luz de uma estação de serviço próxima. Antes que ele se apercebesse, De novo, a pequena voz interior falou: “És forte e os teus músculos não te foram dados só para o desporto. Age depressa!” fazer: não havia tempo para ir à procura de um telefone e chamar a polícia. O homem morreria rapidamente se os pontapés e os murros não parassem. 139 Prudência 42 -me pessoalmente, antes de morrer. Voltou para o carro e partiu. Contou-me que estudara e se tornara professor. Tinha mulher e dois filhos. Agora estava bastante doente e queria ver-me e agradecer- ʊ O meu nome é George Harris. ʊ Sim ʊ disse. ʊ Quem é o senhor? ʊ É Cal Geiger, não é? Nunca respondeu às minhas cartas, mas, um dia, quando estava a construir uma chaminé na Carolina do Norte, apareceu um carro com matrícula da Virgínia. O condutor dirigiu-se a mim e perguntou: Pensei que seria este o final da história, mas não. Embora tenha mudado muitas vezes de casa, George Harris não perdeu as minhas coordenadas. Escrevia a dizer-me que estava bem e mandou-me vários presentes – um belo banco de carpinteiro, um par de botas em couro e um relógio Hamilton, da colecção “Railway Special”. Respondi-lhe sempre, a agradecer-lhe, para o apartado que vinha nas encomendas. dela. Quando abrimos a encomenda, vimos um relógio Bulova que, ainda hoje, vinte anos depois, funciona perfeitamente. Depois disso, sofrera um esgotamento cerebral e ficara no hospital psiquiátrico durante algum tempo. Quando saiu, foi trabalhar e começou a poupar dinheiro. Agora, queria enviar-me um presente pelo correio. A funcionária tentou convencê-lo a vir trazê-lo pessoalmente, mas ele não quis. Por isso, uns dias mais tarde, passei pelo escritório condenado fugitivo que me ameaçara outrora. E que era também o condutor que batera no outro homem e que o teria morto se eu não o tivesse feito parar. Se não tivesse sido eu, ele ter-se-ia tornado um assassino. 43 M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001 Calhoun Geiger Sei que o que se diz e o que se faz podem fazer a diferença. Fiz a diferença para George Harris, mas também fiz a diferença para mim próprio. Quando penso em toda esta história e no que significou para mim, sinto uma enorme gratidão por ter conhecido George Harris. precipitação pode dar maus marcas que não se podem apagar. certos actos que, depois de praticados, deixam de se vir a lamentar as consequências de de agir, de contrário, há fortes probabilidades resultados. É sempre preferível pensar antes A Prudência 45 Responsabilidade lavar. 143 Sam tem pele escura, sobrancelhas espessas, cabelo e barba Bunny, o coelho, está a ser perseguido por Sam. Entretanto, na sala, passam-se coisas emocionantes. Regressa, descansada, à cozinha e mete a loiça na máquina de “Ah, o Bug’s Bunny! Ainda bem que há programas tão simpáticos para as crianças”, pensa a Sr.ª Carolina. Vê então um coelho engraçado passar aos saltinhos, um porquito que agita o chapéu e faz cabriolas. Quando está mau tempo, descalça-se antes de entrar, sem que seja preciso dizer-lhe. Não, a Sr.ª Carolina não tem nada contra o facto de José vir ver televisão, absolutamente nada. Por vezes, quando as crianças estão sentadas na sala semi-obscura em frente do aparelho, a Sr.ª Carolina entra sem fazer barulho e dá uma olhadela ao ecrã. vê-lo ali sentado em frente ao aparelho, com o rosto delgado e sério e as mãos sobre os joelhos irregulares. Os pais do José não têm televisão. Porém, há certos programas que ele não gostaria de perder. Por isso, duas ou três vezes por semana, lá se senta ele frente à televisão, em casa de Marco, o amigo que mora no prédio defronte. A mãe de Marco, a Sr.ª Carolina, não tem nada contra as visitas de José. É um rapazinho calmo, poder-se-ia dizer, ao Marco brinca ao Bug’s Bunny 144 Puummmm! Miac! Miac! Mas o coelho não é preguiçoso. Enche um melão com dinamite e consegue pô-lo na mesa do almoço. Sam parece ser não só mau mas também míope. Já está a levar o melão à boca rodeada de barba espessa. O pobre do coelho quase não sobrevive a isto. Mas o fumo da pólvora já se dissipou. Bunny ainda cá está, são como um pêro, e malha com um cacete em cima de Sam. Sam escapa-se, vai buscar uma faca de cabo comprido e quer reduzir Bunny a pó. Pam! Boing! Pum! O mau puxa de duas pistolas e aponta-as à inocente cabeça do coelho Bunny. O grande malandro! E o coelho que só lhe tinha arreganhado amigavelmente os dentes da frente! É que a acção já começou. Por acaso, Marco até viu no jornal uma fotografia de Amadeu, assaltante de bancos. Tinha uma cara simpática, cara lisa sem barba, e vestia um fato normal com estampados de espinhas de peixe. Mas agora Marco não pensa nisso. Não tem tempo para pensar. “Ele tem mesmo um aspecto de mau”, pensa Marco. “Pele escura e todo desgrenhado. Eu era capaz de reconhecer imediatamente um mau na rua.” desgrenhados. índole. atrair para as suas vidas problemas de toda a dificilmente poderão viver em sociedade sem liberdade, não respeitam os direitos dos outros Calcam-se com os pés, fazem-se explodir. Centenas, milhares, que dão tiros uns aos outros. 145 Um bando inteiro de maus, um bando de coelhos, muitos diabos pequeninos estão agora dentro dele. Quando, no fim do programa, carrega no botão e apaga o ecrã, as imagens continuam a faiscar algures dentro dele. José assusta-se, como se fosse sempre a primeira vez. Está imóvel, de olhos fixos no ecrã. Marco, pelo contrário, ri-se às gargalhadas. Há muito que se habituou aos divertidos jogos assassinos. Um pouco mais tarde, é enfiado numa panela de água a ferver. Engraçado a valer. É de morrer a rir como se matam um ao outro! responsável. Aqueles que, no exercício da sua não é acompanhada por uma atitude atenta e Pronto! Agora é que o mau vai ter uma surpresa. O coelho dá-lhe uma salsicha de dinamite para comer. À conta dessa, o coelho acaba dentro de uma máquina de lavar roupa em funcionamento. Cá vem ele a arrastar-se de debaixo da porta, mais espalmado do que um mata-moscas. Errado, queridas crianças! Agora é que o apanhou de vez. que esta se torna um conceito vazio quando alegam o direito à liberdade, sem perceberem responsabilidade de muitos jovens, que É de lamentar a falta de sentido de Responsabilidade No momento seguinte, já vai outra vez, são como um pêro, a correr atrás do coelho. Uma perseguição emocionante. Sam tramou uma coisa infame: e lá vai – socorro! – uma porta de chumbo a cair sobre Bunny. Chuviscam estrelas. Do mau, resta apenas uma nuvem de pólvora. Mas… um, dois, três… cá está ele, chamuscado e careca como um frango depenado. 146 Sam riu maldosamente e deu-lhe com o punho na cara. — Então vou mostrar-te. — Bunny, estás a ver o animalzinho no meu punho? — Bunny abanou a cabeça e, curioso, inclinou-se para ver. E, de uma vez, Sam perguntou: Então o coelho bateu-lhe duas vezes com o martelo na cabeça. — Dois — respondeu Sam. — Um ou dois quadrados de açúcar? Bunny tinha uma chávena de chá na mão e perguntou: Marco ainda está a pensar no Bug’s Bunny. Lembra-se agora de cenas que viu na última semana, ou na penúltima, e que achou mesmo engraçadas. Marco e José sentam-se no muro que separa o local cimentado dos arbustos de jardim. entre os caixotes do lixo, a treinar-se com as andas. O que mais gostava de fazer agora era qualquer coisa maluca. Partir um vidro, destruir uma bicicleta ou, pelo menos, meter dentro uma grade da cave. Só que o porteiro, no fim do trabalho, deita-se sempre por baixo da janela da cozinha, a apreciar o ar morno do fim da tarde, como ele próprio costuma dizer. O seu filho Hugo está no pátio, Não o deixam em paz. Vão todos atrás de Marco, quando este desce as escadas com José e atravessa o pátio nas traseiras do prédio. Ralam, amordaçam. Matam à pancada, esquartejam. 49 No fim da tarefa, a velhota agradeceu-lhe o trabalho e deu-lhe Ele, que tinha de fazer de conta que era um bom rapazinho, não teve outro remédio. Passou o resto do dia a acartar pedras, as pedras que ele lançara do alto do monte. — Bom rapazinho, importas-te de me ajudar a consertar o muro? O rapaz ficou de boca aberta. E mais sem fala ficou quando a velhinha lhe propôs: — Foi uma bênção que me caiu do céu — dizia a velhinha. — Precisava, há que tempos, de consertar o muro do quintal, mas não tinha forças para trazer tantas pedras. Se não fosse esta avalanche... No fim do seu feito, já cansado, aproximou-se da casa da velhinha, para ver de perto os resultados da sua proeza. Andava a velhinha a recolher as pedras, espalhadas pelo quintal. uma pedreira que havia perto e pôs-se a atirar pedras e a rebolar pedregulhos, que iam cair no quintal da velhota. Para o que lhe havia de dar!? Um dia, por maldade, deu-lhe na veneta atormentar uma pobre velhota, que vivia numa casinha pobre, à beira do povoado. Foi para Mas emendou-se. Eu conto como foi. Era uma vez um rapaz bravio que gostava de pregar partidas e fazer matulices, só por embirração. Era muito antipático este rapaz. Apenas um rapaz Ninguém morre. Ninguém fica mutilado. Ninguém fica doente. Nunca se vê sangue. 147 Marco não consegue entender. Era só uma brincadeira. Na série de televisão que acabou de ver, fazem coisas muito piores uns aos outros. E nunca há lágrimas. Olha fixamente para a boca de José, que está puxada para o lado de uma forma tão esquisita, como se José estivesse a rir. Mas José não está a rir. Aperta os dentes convulsivamente. Por entre a fileira dos dentes a respiração sai tumultuosa. O olho magoado deve doer-lhe muito. Outro rapaz ter-se-ia atirado a Marco, mas José limitou-se a virar na direcção de Marco o olho são, que agora também está muito pequeno e a piscar. O olho acusa Marco. “Porquê?”, parece perguntar. Marco, agora, está muito assustado. pálpebra começa a nascer uma nódoa negra. O riso explode como um balão de pastilha elástica. Ouve-se José a gemer. A mão apalpa a sobrancelha, o sangue goteja. Por baixo da — Poing! — grita Marco. Ao mesmo tempo, o punho fechado aterra no olho direito de José. José aproxima a cara muito perto e pestaneja, cansado. — Não. — Eh, Zé! — disse Marco de repente, estendendo-lhe o punho fechado. — Consegues ver a pastilha elástica minúscula que está na unha do meu polegar? 148 Jutta Modler (org.) Frieden fängt zu Hause an München, DTV Junior, 1989 Eveline Hasler do muro. Pelo caminho, sentiu a mão de José. É quente, palpitante, e acima dos nós dos dedos, está um pouco molhada pelas lágrimas que enxugou. — Anda — diz Marco, pegando na mão de José e afastando-o — Então, até à próxima vez, meus queridos amigos. E seeeeempre alegres! — Bug’s Bunny, Bug’s Bunny! — grita o filho do porteiro, que passa a correr junto ao muro e que apanhou as últimas palavras de Marco. Pára no tapete, olha para o muro, puxa os lábios para a frente para imitar um nariz a farejar e grunhe com uma voz grossa de porco: — Só queria brincar ao Bug’s Bunny — diz Marco. — Desculpa, José. 50 António Torrado www.historiadodia.pt já não é um venenoso rapazote. Nem rapazinho, nem rapazote. Apenas um rapaz. Nem muito mau, nem muito bom. Como quase toda a gente, aliás. Sem que possa ser considerado um virtuoso rapazinho, também Ora pois! Serviu-lhe de emenda. Mudou de intenções. Não posso garantir se, dessa vez em diante, nunca mais pregou partidas. Um diabinho não se transforma de repente num santinho. É exigir demais. Mas, na verdade, deixou-se de brincadeiras tolas. um grande boião de mel. O rapaz lá se foi, cansado e a lamber os beiços, um tanto confundido. À noite, quando se deitou, estava cá com uma dor nas costas, que não lhes digo nada! Mas regalado com o mel que a velhinha lhe dera. Solidariedade 149 Rectidão 51 Muitas pessoas deprimidas acabaram no suicídio por não terem encontrado ninguém capaz de se interessar pelos seus problemas e de lhes incutir alguma esperança. O egoísmo, associado à mecanicidade do dia-a-dia, não permite a atenção ao outro, o gesto de que convém atrai a desconfiança dos outros e leva à solidão. Quem engana acabará por ser enganado, porque quem semeia joio não pode colher trigo. Nada é mais importante do que uma consciência tranquila, embora o caminho da verdade nem sempre seja fácil. torna-se árida. manifestação de afecto. Mas, sem isso, a vida delicadeza, a palavra que encoraja, a A ausência de diálogo leva à solidão. Solidariedade Adoptar o princípio de mentir sempre Rectidão 55 Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que — O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, com um grande salto, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo. Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar isso e já se ouvia o barulho de vidros partidos: a última pedra de Matias tinha voado direita à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou a olhá-la petrificado. As suas brincadeiras com as pedras já tinham causado aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse de uma importância vital! Ricardo meneia a cabeça e murmura algo de ininteligível de cada vez que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até em determinada folha de um ramo. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias tem tudo menos boa pontaria. Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no final das aulas. — Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz O Sr. Silva está furioso. O filho da vizinha, um bebé de apenas dez dias, voltou a acordá-lo. Chora muito. E chora com muita força. A chuva que caía há dias parara finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo. 153 Do lado de fora, a vizinha, com o bebé nos braços, sorri embaraçada para o Sr. Silva. Naquele instante, toca a campainha da porta. — Ora ainda bem! — diz, satisfeito. O bebé deixara de chorar de um momento para o outro. Durante algum tempo, o Sr. Silva olha fixamente para a parede que o separa da casa da vizinha. Depois, levanta-se de um salto e atravessa a sala com o punho erguido. Enfurecido, bate na parede até a mão lhe doer. Hoje sente-se particularmente incomodado porque está desiludido e de mau-humor. É o seu aniversário. Faz sessenta anos, mas ninguém lhe deu os parabéns. Ninguém lhe mandou um postal. Na caixa do correio só encontrou um prospecto de publicidade que amarrotou e meteu de imediato no fogão. A vizinha trouxe-a para casa há três dias, e há três dias que ela começa a gritar de cada vez que o Sr. Silva quer fazer a sesta. — Que criança horrível — resmunga, às voltas no sofá. Depois do almoço, o Sr. Silva gosta de dormir uma horita, mas o bebé do lado não o deixa. Uma prenda diferente O caminho para a verdade 154 — Fico contente por estar tudo bem com o senhor. Pela fresta da porta, a vizinha acena com a cabeça. — Claro! — diz o Sr. Silva. — Ah, um ou outro, muito finos — diz a vizinha, recuando devagar em direcção à sua porta. — Desculpe, agora tenho de ir dar-lhe de comer. Eu sigo as recomendações à risca, sabe. — Oh... ela já tem cabelo! O Sr. Silva tossica. — Chama-se Catarina. O meu marido e eu estamos muito felizes, porque era mesmo uma menina que queríamos. — Tem dez dias e quatro horas — responde a vizinha. — Ele é ainda muito novinho, não? O Sr. Silva coça a barba rala, olha para a cara vermelha do bebezinho e pergunta: ajuda. “Ela está a falar a sério” — pensa confuso. A vizinha ouviu o bater dele mas percebeu mal: pensou que o vizinho estava a precisar de — Porquê? — Se eu precisava de alguma coisa? — suspira o Sr. Silva. — Que tivesse caído ou que se sentisse mal e precisasse de ajuda — disse de uma só vez. — Por isso, vinha ver se precisava de alguma coisa. — O quê? — pergunta o Sr. Silva de testa franzida. — Desculpe — disse. — Eu pensei que... 56 Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça. Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e, desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia aceitar uma injustiça daquelas. Mas dentro da casa, ninguém se moveu. — É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo, a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira, na escola. Já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro, fechando a porta com força. Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Irado como estava, nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente: Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio. Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos pais de Ricardo. “Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é muito severo.” Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou. — Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que vou levar-te já ao teu pai, e vais ver o que vai acontecer-te! alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente, furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto. Matias Com os meus cumprimentos Espero pela resposta em frente da sua casa. Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade, afinal, consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela e vou pagá-lo com a minha próxima semanada. Caro Sr. Pinto, 57 Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta, entregue por um estafeta motorizado. E, admirado, leu: Matias entregou a carta, feliz. — Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta pode chegar ao destino em meia hora. Ex-cepcio-nal-mente! O empregado olhou-o sorrindo e respondeu: — E a carta é entregue agora mesmo? — Chega e sobra, rapaz. — Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a cidade? De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou: “Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?” 155 Lene Mayer-Skumanz (Org.) Hoffentlich bald Wien, Herder Verlag, 1986 Em casa, o Sr. Silva anda de um lado para o outro profundamente surpreendido. Ela está contente por estar tudo bem com ele. Há uma pessoa que se preocupa com ele. Afinal não está tão só como pensava. O Sr. Silva nem cabe em si de contente. Afinal, sempre recebeu uma prenda de aniversário e, ainda por cima, bem bonita! 58 Jutta Modler (org.) Brücken Bauen Wien, Herder, 1987 Eva Rechlin — Ora — resmungou Matias — não fales tanto, senão perdemos também a segunda parte do jogo. — Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste… bem, nunca hei-de esquecer. A resposta que o pai de Ricardo mandou a Matias pesava quase 40 kg e vinha a rir-se. Era o Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à espera na soleira da porta, disse: Discrição 157 Coerência 59 aqueles que são famosos têm mais valor do que a generalidade das pessoas. Mas tudo não passa de ilusão. Aqueles que têm verdadeiro valor não são os que se evidenciam em programas medíocres ou em espectáculos que são uma coisa nas palavras e outra nos actos, aqueles que mudam de acordo com as conveniências do momento, acabam por transformar a sua vida numa farsa, da qual não sairão incólumes. por tornar melhor o mundo em que vivem. esforçam, de um modo muitas vezes anónimo, desportivos alienantes, mas os que se Nos dias de hoje, é comum pensar-se que Discrição Aqueles que prometem e não cumprem, Coerência 63 Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos. vida. O quê? Português, francês. Hoje sei, acima de tudo, o amor da A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antes, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse. Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos. 161 para a tolerância e por isso respeitava os direitos dos outros. À medida O homem era pessoa de bem e defensor da paz. Não podia aceitar a ideia de que alguém pudesse ser perseguido, torturado e morto só por ter ideias políticas diferentes ou outra religião. Fora educado Esta história é verdadeira e aconteceu poucos dias antes de começar o Verão do ano de 1940. Ainda há muita gente viva que se lembra bem desse homem e daquilo que ele fez, deixando de pensar em si e pensando nos outros e na sua salvação. O homem era diplomata e nascera no norte de Portugal. Chamava-se Aristides de Sousa Mendes, era casado e tinha vários filhos. A sua carreira como cônsul levou-o até à cidade francesa de Bordéus, onde lhe chegaram as primeiras notícias do começo da Segunda Guerra Mundial quando as tropas alemãs atacaram a Polónia e a Inglaterra se opôs a essa agressão, em defesa da liberdade e da democracia, declarando que faria frente, pelas armas, aos agressores. que fora educado para obedecer às ordens dos seus superiores, estivesse onde estivesse. Nunca lhe passara sequer pela cabeça a possibilidade de um dia vir a infringir essa regra. Era uma vez um homem que um dia ficou sem sono. Queria dormir, mas não conseguia, apesar de sempre ter dormido bem. Quando fechava os olhos, não lhe saía da cabeça a tristeza que havia no olhar das crianças que se apinhavam junto da porta da casa onde morava e trabalhava. Era um homem bom que gostava do que fazia e Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias do que tristezas. Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar. O homem que ficou sem sono A fita vermelha 162 Durante três dias não houve descanso para ninguém dentro do Consulado, e ainda sobrou tempo para se dar água e comida àqueles uma eternidade. O homem queria dormir, mas não era capaz. Ecoavam-lhe na cabeça as vozes das crianças que sofriam de fome e de sede e que, lembrando-lhe os seus filhos, tinham o direito de viver e de crescer em liberdade. De Lisboa, o cônsul português recebera ordens muito rigorosas no sentido de não deixar chegar refugiados a Portugal. Pensou e voltou a pensar, consultou a mulher e escreveu uma longa carta aos filhos explicando o que tencionava fazer e as razões dessa opção. Espreitou pela janela e viu nos olhos das crianças um sorriso fugidio que representava a última réstia de esperança. Por elas valeria a pena arriscar. Por elas e pelos princípios que defendia. Foi assim que a palavra «desobediência» entrou definitivamente no seu vocabulário. Mandou abrir as portas do Consulado de Portugal e forneceu aos funcionários carimbos e selos brancos para poderem emitir o maior número de vistos possível. A partir desse momento seria uma batalha sem tréguas contra o tempo. Cada minuto contava. Cada dia parecia estado ao lado dos alemães e do que eles representavam. que as tropas alemãs invadiam países como a Bélgica ou a Holanda e se aproximavam da fronteira francesa, iam chegando a Bordéus refugiados das nações ocupadas, em busca de um visto no passaporte que lhes permitisse chegar a Espanha e depois a Portugal, apanhando mais tarde, em Lisboa, um barco ou um avião que os levasse para países como os Estados Unidos da América, o Brasil ou a Argentina, onde não havia guerra. Portugal e Espanha, governados por ditadores como Hitler, o senhor da Alemanha, não tinham entrado na guerra e iriam manter-se à margem dela, embora durante muito tempo tenham 64 de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste. A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora. Morena, Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada. Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos. Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia. Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura. Porque, mais do que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia. Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez em quando. — Estou à espera da professora… Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas. 65 Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido. Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro. Hoje sei que o amor dos outros se não adia. Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo. Começava a Primavera. Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar. E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do Sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores? Mas o próximo domingo foi cheio de Sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas. — Vou vê-la no próximo domingo — anunciei às companheiras. E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo. Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades. hospital. Olhei o retratinho dela na caderneta. 163 Figueira da Foz ou para as Caldas da Rainha. Mais tarde, a maioria conseguiu partir para países onde havia liberdade. Alguns voltaram depois do final da guerra às suas terras, outros nunca mais quiseram O homem não se deixou vencer pelo cansaço, pelo sono, pela fome ou pela sede. A vida dos outros estava primeiro. Se eles tinham pressa, a sua conseguia ser ainda maior. No Consulado, houve quem o avisasse: «O senhor bem sabe o que lhe pode acontecer!» Mas ele não quis saber e continuou a passar vistos, perdendo a conta às pessoas que já tinha conseguido salvar. Terão sido dez mil, quinze mil ou trinta mil? Não se sabe ao certo. Sabe-se sim que chegaram a Lisboa e que depois foram encaminhados para o Estoril, para a Ericeira, para a — Talvez amanhã de manhã já possamos estar a caminho da liberdade, porque há ali dentro um homem bom que nos quer ajudar. — Mãe, tenho fome e sede e quero sair deste sítio — dizia a menina austríaca para a mãe pálida e exausta. de Lisboa teria consequências dramáticas para o seu futuro e o da sua família. Ainda assim, não recuou. Sabia que a razão estava do seu lado e não estava disposto a abdicar dessa razão, que correspondia à salvação de milhares de vidas. Aristides de Sousa Mendes sabia que o desrespeito pelas ordens que esperavam à porta em intermináveis filas, com a esperança de que o pesadelo por fim terminasse. Pela rádio chegavam notícias da rendição da França, o que significava que já faltava muito pouco para que as tropas de Hitler chegassem também a Bordéus, perseguindo e prendendo judeus e opositores políticos ao regime nazi. Era preciso actuar ainda mais depressa. O cônsul conseguiu arranjar tempo para ir às cidades de Bayonne e Hendaye onde havia um grande número de refugiados tentando passar a fronteira em direcção a Espanha. 164 liberdade. Essa porta abriu-se e por ela passou uma réstia de luz, desenhando no cetim negro do céu, entre as estrelas, a linda palavra Ainda não houve um grande realizador de cinema que fizesse um filme sobre esta história verdadeira, à semelhança do que Steven Spielberg fez com Oskar Schindler, mas pode ser que ainda venha a ser feito. Nunca é tarde para celebrar os feitos dos heróis. Naquelas noites quentes de Junho de 1940, havia em Bordéus um português que não conseguia dormir. Não lhe saía da memória a aflição das crianças que queriam ver abrir-se a porta que as deixasse seguir o caminho até à — Chama-se herói, filho. Quem faz o que ele fez por nós só pode ter esse nome. O pai, não contendo uma lágrima comovida, respondeu-lhe: — Como é que se chama aquele senhor que, em Bordéus, nos passou os vistos para podermos chegar a este país? no Rossio, em Lisboa, um menino de cabelo loiro perguntou aos pais, enquanto estes procuravam uma pensão ou um hotel onde pudessem instalar-se até conseguirem arranjar bilhetes num barco ou num avião para Nova Iorque: A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital. Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender. Três dias bastaram para que o cônsul Aristides de Sousa Mendes abrisse a milhares de refugiados as portas para a liberdade, desobedecendo a Salazar e ao regime que ele dirigia. Por isso foi prontamente banido da carreira diplomática e proibido de exercer qualquer actividade profissional, morrendo na miséria em 1954, com os filhos dispersos por países como os Estados Unidos, onde puderam estudar e seguir as suas carreiras. Num dia quente de Junho de 1940, 66 Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas. As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo. Aurora ensinou-me para sempre esta verdade. * Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros. E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia. voem tão alto em dias de Primavera. E morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa. Lembrem-se como de um ovo de pássaro podem sair asas que Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem. No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança. vê-las porque não conseguiram esquecer as horas de sofrimento e perda. 67 Matilde Rosa Araújo O Sol e o Menino dos Pés Frios Lisboa, Livros Horizonte Lda, 2001 Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir. 165 AAVV Contos de um Mundo com Esperança Lisboa, Texto Editora, 2003 José Jorge Letria «Esperança», escrita em português como esta história verdadeira que é sempre bom contar e recontar. Porquê? Porque é sempre possível que a tragédia volte a acontecer, onde e quando menos se espera. Perseverança 167 Justiça 69 de desilusões, de novas tentativas e, por vezes, de muitos sacrifícios. Se as diversões forem colocadas em primeiro lugar, é provável que os frutos a colher se tornem bastante amargos. homens facilmente esquecem os seus princípios morais, embora gostem de exibir em público uma imagem de respeitabilidade. por de muitos. Quando se trata de dinheiro, os ficam Os verdadeiros sucessos são feitos de esforços, que escrúpulos em enriquecer à custa da pobreza capacidades desenvolver devido à falta de perseverança. Há Perseverança social, criadas por aqueles que não têm Existem graves situações de injustiça Justiça — Nada de bom pode vir a uma nação — dizia ele — cujo povo reclama e espera que outros resolvam os seus problemas. Deus concede os seus dons a quem trata dos problemas por conta própria. razoável, a fechar-se durante o dia em casa. Esta parecia sempre adormecida ou abandonada. De manhã à noite, o sol brilhava por entre as casas altas, ao longo da pequena rua onde ele morava. Era insuportável! 73 O sábio, por seu lado, ia até à varanda, deitava-se, e, à medida que as estrelas apareciam no céu admirável, sentia-se a reviver pouco a pouco. Em breve surgia gente em todas as varandas, pois até as pessoas cor de acaju precisam de ar! Como tudo se animava então! Os sapateiros, os alfaiates, todos se espalhavam pela rua. Viam-se mesas, cadeiras e milhares de luzes. Um falava, outro cantava; passeava-se; as Que prazer, então! Logo que, no quarto, se acendia uma vela, a sua sombra estendia-se por toda a parede e estirava-se o mais possível até ao tecto, como que a recuperar forças. O sábio dos países frios, que era ainda jovem, julgava-se uma fornalha ardente; mas emagrecia cada vez mais e a sua sombra estreitava-se consideravelmente. O sol prejudicava-o. Por isso ele só se reanimava depois do poente. 171 Logo depois surgiu a cantar um jovem soldado. A longa pluma do seu quépi ondulava na brisa, e uma espada reluzente pendia-lhe à cintura. Ele pensava na extraordinária coragem que revelaria na guerra. E continuou a reclamar sobre a inutilidade dos outros, sem ao menos tocar, ele próprio, na pedra. — Onde já se viu tamanho descuido? — disse ele contrariado, enquanto desviava a sua parelha e contornava a pedra. — Por que motivo esses preguiçosos não mandam retirar a pedra da estrada? Primeiro, veio um fazendeiro com uma carroça carregada de sementes que ele levava para a moagem. Uma noite, enquanto todos dormiam, pôs uma enorme pedra na estrada que passava pelo palácio. Depois, foi esconder-se atrás de uma cerca e esperou para ver o que acontecia. Conta-se a lenda de um rei que viveu há muitos anos num país para lá dos mares. Era muito sábio e não poupava esforços para inculcar bons hábitos nos seus súbditos. Frequentemente, fazia coisas que pareciam estranhas e inúteis; mas tudo se destinava a ensinar o povo a ser trabalhador e prudente. Nos países tropicais o sol queima de uma forma terrível! As pessoas ficam trigueiras como o acaju e até escuras como os negros. Vindo do seu país frio, chegara a uma destas regiões quentes um sábio que julgava poder passear ali como na sua terra; mas cedo se persuadiu do contrário. Viu-se obrigado, como qualquer pessoa A pedra no caminho A Sombra 172 — Meus amigos — disse o rei — com frequência encontramos A filha do moleiro foi para casa com o coração cheio de alegria. Quando o fazendeiro e o soldado e todos os outros ouviram o que havia ocorrido, juntaram-se em torno do local onde se encontrava a pedra. Revolveram com os pés o pó da estrada, na esperança de encontrarem um pedaço de ouro. Ela abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro. Ergueu a caixa. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa. Havia na tampa os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem retirar a pedra.” E tentou arrastar dali a pedra. Era muito pesada, mas a moça empurrou, e empurrou, e puxou, e inclinou, até que conseguiu retirá-la do lugar. Para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra. Era muito trabalhadora e estava cansada, pois desde cedo andara ocupada no moinho. Mas disse consigo própria: “Já está quase a escurecer e de noite, alguém pode tropeçar nesta pedra e ferir-se gravemente. Vou tirá-la do caminho.” Finalmente, ao cair da noite, a filha do moleiro passou por lá. Assim correu o dia. Todos os que por ali passavam reclamavam e resmungavam por causa da pedra colocada na estrada, mas ninguém lhe tocava. O soldado não viu a pedra, mas tropeçou nela e estatelou-se no chão poeirento. Ergueu-se, sacudiu a poeira da roupa, pegou na espada e enfureceu-se com os preguiçosos que insensatamente haviam deixado uma pedra enorme na estrada. Também ele se afastou então, sem pensar uma única vez que ele próprio poderia retirar a pedra. 74 a entrada? O rés-do-chão era todo constituído por lojas; em parte alguma se via corredor ou escada que conduzisse aos andares superiores. Uma noite, o sábio despertou e julgou ver um clarão estranho na varanda da casa vizinha; as flores brilhavam como chamas e, no meio delas, estava uma rapariga alta, esbelta e encantadora, que brilhava tanto como as flores. Esta luz intensa feriu os olhos do nosso homem que se levantou de chofre. Foi afastar a cortina da janela, para observar a casa em frente; mas tudo desaparecera. Apenas permanecia entreaberta a porta que dava para a varanda, e a música continuava a ouvir-se. Havia bruxedo ali dentro! Quem habitava ali? Por onde seria — É alguém que estuda continuamente o mesmo trecho sem conseguir aprendê-lo — disse. — Que perseverança! música incomparável, mas isso talvez fosse produto da sua imaginação, pois de boa vontade acharia tudo incomparável nos países quentes — se o sol não brilhasse sempre. O proprietário da casa em que morava dissera-lhe que ignorava em absoluto o nome e a condição do locatário daquela casa, e, quanto à música, declarou-a horrivelmente enfadonha. Só uma casa, aquela que estava situada em frente da do sábio, é que não dava sinal de vida. Mas morava lá alguém, pois, na varanda, desabrochavam flores admiráveis, o que necessariamente indicava que alguém as regava. À noite, também se abria a porta, mas, lá dentro, de onde saía uma música suave, estava escuro. O sábio achava aquela carruagens circulavam; passavam burros fazendo soar as campainhas; era lançado à terra um morto, ao som de cânticos sagrados; os garotos atiravam petardos; os sinos das igrejas repicavam; numa palavra, a rua estava bastante animada. — Vai! Mas não fiques muito tempo por lá! 75 regressasse, contasse a sua própria história, acusá-lo-iam de plagiário, Grande era a sua contrariedade, não por causa da sombra ter desaparecido, mas porque ele conhecia, como toda a gente nos países frios, a história de um homem sem sombra, e, se um dia, quando No dia seguinte, quando saiu, para ir tomar o café e ler os jornais exposto ao sol, exclamou de repente: — Que é isto? Onde está a minha sombra? Terá realmente partido ontem à noite e ainda não terá vindo? Que aborrecimento! A estas palavras o sábio levantou-se e a sombra fez o mesmo que ele. Voltou-se o sábio e a sombra voltou-se igualmente. Mas alguém que tivesse prestado atenção teria visto que a sombra entrava, pela porta entreaberta, em casa do vizinho, no momento em que o sábio, por sua vez, entrava no seu quarto, correndo atrás de si o cortinado. sinal. E fez com a cabeça um sinal à sombra, e a sombra repetiu o 173 William J. Bennett O Livro das Virtudes II Editora Nova Fronteira, 1996 Então, o sábio rei montou no seu cavalo e, dando delicadamente as boas-noites, retirou-se. «Creio que a única coisa que ali vive, em frente, é a minha sombra: como ela se instala elegantemente entre as flores, junto à porta entreaberta! Se pudesse entrar, ver o que se passa e vir-mo contar!» — Vamos! — convidou, a gracejar. — Ao menos mostra que serves para alguma coisa: entra! obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos, se assim preferirmos, reclamar alto e bom som enquanto nos desviamos deles, ou podemos retirá-los e descobrir o que eles significam. A decepção é normalmente o preço da preguiça. Uma noite, estava o sábio sentado na varanda; por detrás dele, no quarto, brilhava uma vela; era, pois, muito natural que a sua sombra se desenhasse na parede do vizinho. Ela destacava-se entre as flores e repetia todos os movimentos do sábio. — Entre! — disse. 76 tenho, por conseguinte, meios para me resgatar. — Já calculava que o senhor não me reconhecesse — respondeu o homem, delicadamente. — É que eu fiz-me corpo; tenho carne e uso fato. Não reconhece a sua antiga sombra? O senhor julgou que eu nunca mais voltaria. Tive muita sorte, depois que o deixei; estou rico e — A quem tenho a honra de falar? — perguntou o sábio. Mas ninguém entrou. Foi abrir e viu um homem muito alto e muito magro, correctamente vestido e com ar distinto. porta. Um dia, estava ele sentado no quarto, quando alguém bateu à De regresso ao seu país, escreveu vários livros sobre o que o mundo tem de verdadeiro, de belo e de bom: e muitos anos se passaram assim. Provavelmente ficara lá uma raiz da antiga. Ao fim de três semanas, tinha uma sombra decente, que, em viagem para os países do Norte, cresceu de tal forma que o nosso sábio até se contentaria com metade. Esta separação atormentou-o muito; mas, nos países quentes, tudo cresce depressa, e, ao fim de oito dias, com grande prazer, notou que das suas pernas, enquanto passeava ao sol, saía uma nova sombra. À noite, voltou à varanda, depois de ter colocado a luz bem por trás dele, para que a sua sombra voltasse; mas foi em vão que se estendeu, se encolheu e repetiu a mesma palavra: «Vem! Vem!». A sombra não apareceu. acusação que de nenhum modo merecia. Resolveu, pois, não falar nisso a ninguém. E assim fez. minha mão: prometo-te. Um homem é um homem, e uma palavra… 77 — Fica tranquilo! Não direi a ninguém quem tu és. Aqui tens a — Contar-lho-ei, mas com uma condição: é que jamais diga a ninguém que eu fui a sua sombra. Tenciono casar-me; os meus meios permitem-me sustentar família e até mais do que isso. — De que dívidas falas tu? Acredita que me sinto feliz com a tua sorte. Senta-te, velho amigo, e conta-me tudo o que se passou. Que vias tu em casa do vizinho, no país quente? — Diga o que lhe devo — redarguiu a sombra. — Não gosto de dívidas. — És então tu! — respondeu o sábio. É extraordinário! Nunca julgaria que a minha antiga sombra regressasse sob a forma de um homem. um grande êxito. Senti desejo de o ver antes da sua morte e de, ao mesmo tempo, visitar a minha pátria. Bem sabe, a pátria ama-se sempre. Como sei que tem outra sombra, cumpre-me perguntar-lhe agora se lhe devo alguma coisa a ela ou ao senhor. Faça favor de dizer. —Tudo isto é extraordinário, mas o senhor não é também um homem extraordinário? E eu, sabe-o muito bem, segui, desde a infância, os seus exemplos. Achando-me amadurecido para fazer sozinho o meu caminho na vida, o senhor lançou-me nela, e eu colhi — Ainda não estou em mim! — disse o sábio. — O que significa isto? E fez tilintar um molho de berloques ligados à pesada corrente de ouro do relógio, enquanto os seus dedos, cobertos de brilhantes, lançavam mil faíscas. 175 Determinação 78 — Peço-lhe perdão; é um hábito antigo. Tem toda a razão, isso — Eu via tudo, como lhe disse há pouco. Mas peço-lhe, antes de continuar: não é por orgulho, mas, como homem livre e dotado de grandes conhecimentos, sem falar da minha posição e da minha fortuna, não me trate mais por tu. — Mas, afinal, o que vias tu? — perguntou o sábio. — Encontrei-me na antecâmara; estava um pouco escuro, mas distingui na minha frente uma fila imensa de quartos, cujas portas se encontravam abertas de par em par. Fazia-se luz a pouco e pouco e, sem as precauções que tomei, teria sido fulminado pelos raios, antes de chegar junto da donzela. — A Poesia! — exclamou o sábio. — Sim, é verdade; muitas vezes ela não é mais do que um eremita no meio das grandes cidades. Vi-a por um instante… Brilhava na varanda como uma aurora boreal. Vamos! Continua. Uma vez passada a porta entreaberta… mil anos. Li todos os poemas possíveis, conheço-os perfeitamente. Através deles vi tudo e tudo sei. — Veja se adivinha quem morava no quarto do vizinho! — começou a primeira sombra. — Era um ente encantador, era a Poesia. Permaneci lá três semanas, e este tempo valeu para mim mais de três Dito isto, a sombra sentou-se e, ou fosse por orgulho ou fosse para aprender, colocou os pés calçados de botas de verniz sobre o braço da nova sombra, que repousava aos pés do dono como um cão de água. Esta estava muito quieta, impaciente por ouvir como se poderia libertar e tornar-se senhora de si própria. — E uma palavra é uma sombra. 79 janelas para dentro dos salões, e, pelas clarabóias, para as mansardas. Olhei por onde ninguém podia olhar e vi o que ninguém podia nem — Repito-lhe mais uma vez que vi tudo. Se ali tivesse entrado, o senhor não se teria transformado num homem, mas eu transformei-me! Aprendi a conhecer a minha verdadeira natureza, os meus talentos e o meu parentesco com a poesia. Quando ainda estava consigo, nunca reflectia nisso; mas o senhor deve recordar-se como eu aumentava sempre, ao nascer e ao pôr-do-sol. Ao luar, eu parecia quase mais distinto que o senhor; mas ainda não compreendia a minha verdadeira natureza. Foi na antecâmara para onde me enviou que aprendi a conhecê-la. Estava amadurecido no momento em que me largou no mundo; mas o senhor partiu, de repente, deixando-me quase nu. Senti logo vergonha: precisava de vestuário, de botas, de todo aquele verniz que faz um homem. Escondi-me, digo-lhe sem receio – persuadido de que o senhor não o publicitará – debaixo das saias de uma confeiteira que ignorava o meu valor. Só à noite é que saía para percorrer as ruas, ao luar. Subia e descia ao longo das paredes, olhando pelas grandes brincadeiras e pelos sonhos de encantadoras crianças? — Mas, enfim, os deuses da antiguidade passeavam-se por essas salas? Os antigos heróis nelas combatiam? Estavam povoadas pelas — Pareciam-se com tudo isso. É verdade que não as atravessei; mas da antecâmara vi tudo. — Que aspecto ofereciam as salas interiores? Pareciam-se com uma floresta cheia de frescura, com uma igreja sagrada ou com um céu estrelado? — Tudo! Eu vi tudo e sei tudo. não acontecerá mais. Enfim, o que via o senhor? porque interiormente. utilidade, ajudam a crescer surgir. Mas estes também têm a sua sobretudo quando os obstáculos começam a é pretendido. A tentação de desistir é grande, vontade necessária para se levar a cabo o que alcançar, deve-se ter também a força de Sempre que se tem um objectivo a Determinação 80 — O senhor exagera! — Faz mal; olhe para mim; eu engordo, e é o que é preciso. O senhor não conhece o mundo. Aconselho-o a fazer uma viagem; e, melhor ainda, como tenciono fazer uma este Verão, dar-me-á muito prazer se me quiser acompanhar, na qualidade de sombra. Eu pago a viagem. —Ai! Escrevi acerca da verdade, da beleza e da bondade, mas ninguém prestou atenção a nada! Estou desesperado! — Como está? — perguntou. Exactamente um ano depois, a Sombra voltou. — Que caso mais notável! — murmurou o sábio. Ditas estas palavras, a sombra saiu. -os em grande quantidade; o director da Casa da Moeda cunhou-me belas moedas; as mulheres acharam-me gentil. Foi assim que me tornei no que sou. E agora, apresento-lhe os meus respeitos. Eis o meu cartão; moro do lado do sol e, em tempo de chuva, encontrar-me-á sempre em casa. devia ver. Para lhe dizer a verdade, este mundo é muito vil; e, se não fosse o preconceito de que um homem significa alguma coisa, eu não me preocuparia nada em sê-lo. Vi coisas inimagináveis entre as mulheres, entre os homens, entre os pais e as crianças. Vi o que ninguém devia saber, mas o que todos ansiavam por saber – o mal do próximo. Se tivesse escrito um jornal, devorá-lo-iam; mas preferi escrever às próprias pessoas. Desencadeava-se um terror inaudito por todas as cidades por onde eu passava. Temiam-me e amavam-me. Os professores fizeram-me professor, os alfaiates deram-me fatos; tenho- 81 — O senhor está a ser franco comigo — disse a Sombra, ou, — Visto que somos companheiros de viagem e que temos crescido juntos, tratemo-nos por tu: é mais íntimo. Puseram-se a caminho. A Sombra tornara-se o amo, e o amo convertera-se na sombra. Por toda a parte se seguiam um ao outro, sempre em contacto, pela frente ou por trás, conforme a posição do sol. A Sombra sabia sempre ocupar o conveniente lugar do amo, e o sábio não se melindrava com isso. Estava sempre bem-disposto e, um dia, disse à Sombra: — Precisa de ir a banhos — aconselhou-lhe a Sombra, que tinha voltado a vê-lo. — É o único remédio. Irei consigo, pois a minha barba não cresce, o que é uma doença. É preciso ter barba. Eu pago a viagem; o senhor fará a descrição do que virmos e isso entreter-me-á pelo caminho. Seja razoável; aceite a minha oferta; viajaremos como antigos camaradas. — Parece uma sombra — disseram-lhe uma vez, e isso fê-lo estremecer. O sábio achava-se cada vez pior, cheio de aborrecimentos e de desgostos. O que ele dizia da verdade, da beleza e da bondade, produzia na maior parte dos homens o mesmo efeito que as rosas num animal. — O mundo é assim e será sempre assim — redarguiu a Sombra, indo-se embora. — Vai longe demais! — disse o sábio. — Depende. Pode estar certo de que a viagem lhe fará bem. Seja a minha sombra, não tem nenhuma despesa a fazer. 179 Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões. A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar. Até os homens vinham sentar-se debaixo dela no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos. E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas. redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta… A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das Abrigava, sob a sua corcha, toda a sabedoria de África. Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra. A árvore que falava 180 Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles de que precisavam para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar… Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e ocos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes ensinava porque não sabiam escutar. «Essa é boa!», pensou este. «Eu trato-o por senhor e ele trata-me por tu.» Não obstante, resignou-se. E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil. 82 curada, pois não vê que tenho uma sombra, e até uma sombra — Vossa Alteza Real acha-se felizmente muito melhor — respondeu a Sombra. — Sofria de ver demasiado claro, mas agora está — A sua doença é não ter sombra. Cheia de curiosidade, entabulou, durante um passeio, uma conversa com aquele estrangeiro. Na sua qualidade de princesa, não necessitava de muitos rodeios. Disse-lhe logo: Logo distinguiu a Sombra entre todas as outras pessoas: «Ele veio aqui para fazer crescer a barba, segundo dizem; mas a verdadeira causa da sua viagem é que não tem sombra nenhuma.» Chegados aos banhos, encontraram uma grande quantidade de estrangeiros; entre outros, uma formosa princesa atingida por uma doença inquietante: via claro demais. A partir desse momento, a Sombra começou a tratar por tu o seu antigo amo. antes, o verdadeiro amo — Eu também lhe vou falar com franqueza. Na qualidade de sábio, o senhor deve saber quão estranha é a Natureza. Há pessoas que não podem tocar um bocado de papel pardo sem se sentirem mal; outras tremem quando ouvem esfregar um prego numa vidraça; quanto a mim, sinto a mesma sensação quando ouço tratarem-me por tu: afigura-se-me que isso me deita por terra, como no tempo em que eu era a sua sombra. Bem vê que isto em mim não é orgulho, mas sensibilidade. Não posso deixá-lo tratar-me por tu, mas tratá-lo-ei eu a si: será metade do que deseja. mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos! No dia seguinte, os juvenis sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de Quando as suas crias estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-las até à árvore. Ao cair da noite, esta enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar as mais palradoras. E cada uma escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto. 83 — Eu sabia tudo isso na minha infância — respondeu a Sombra — e estou certo de que a minha sombra, que vedes ali, em frente à — Então, não sabe responder? — interrogou a princesa. E começou a interrogá-lo sobre coisas difíceis, a que ela própria não seria capaz de responder. A Sombra fez uma careta. À noite, a princesa dançou com a Sombra no grande salão de baile. Ela era muito ágil, mas o seu cavalheiro ainda era mais; nunca encontrara um como ele. Disse-lhe o nome do seu país, que ele conhecia muito bem, pois tinha olhado para ele através das janelas do comboio. Ele contou mesmo à princesa certas coisas que a surpreenderam muito. Era o homem mais instruído do mundo! Ela testemunhou-lhe, pouco a pouco, toda a sua estima, e, quando uma vez mais dançaram, traiu o seu amor por olhares que pareciam atravessá-lo. Não obstante, como era rapariga sensata, disse para consigo: «Ele é instruído, dança perfeitamente, mas será um homem verdadeiramente culto? Isto é o mais importante; vou observá-lo melhor». embora; divirto-me aqui muito e este rapaz agrada-me. Oxalá que a barba não lhe cresça, porque, se não, vai-se embora!» «O quê! – pensou a princesa. – Estarei realmente curada? É verdade que a água, na época em que vivemos, possui uma virtude singular, e estes banhos têm grande reputação. No entanto, não irei já extraordinária. Vê a pessoa que me segue continuamente? Não é uma sombra vulgar. Do mesmo modo que, às vezes, se dá por libré aos criados um tecido mais fino do que aquele que se usa em si próprio, assim eu adornei a minha sombra como um homem. Até lhe dei uma sombra. Por muito caro que isso me custe, gosto de ter coisas que os outros não têm. 181 E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco. Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não reflectia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem. Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar. *** E todos diziam que ela estava morta. desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixara de lhes falar. Logo que eles chegaram ao país da princesa, a Sombra disse ao — Mas… com que é que vou pagar-vos? Eu não tenho nada, bem sabem! 182 — Não pode ser — protestou o homem. — É preciso que o tronco fique inteiro para o tantã. Se não, como é que a tribo poderá — Deixa-te disso! — insistiram os homens fortes. — Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte. — Ninguém! Nem mesmo a minha sombra — disse a Sombra, que tinha razões para isso. — Pequeno homem, nós ajudámos-te — disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. — O nosso trabalho deve ser pago. 84 qualificar de sombra por toda a gente. Nunca dirás que foste um — Escuta, meu amigo: sou feliz e poderoso, e vou dar-te uma prova particular da minha benevolência. Habitarás o meu palácio, tomarás lugar a meu lado na carruagem real e receberás cem mil escudos por ano. No entanto, ponho uma condição: é que te deixes sábio: E a princesa e a Sombra depressa ajustaram o casamento. Mas ninguém devia sabê-lo antes da princesa ter regressado ao seu reino. «Que homem tão distinto», pensou, «para ter uma sombra tão sábia! Seria uma bênção para o meu povo, se eu o escolhesse para esposo.» E aproximou-se do sábio para lhe falar do Sol, da Lua, do homem sob todos os aspectos; e ele respondia convenientemente e com muito espírito. — De acordo — disse a princesa. — Não estou bem certo disso, mas julgo que sim, visto que ela me seguiu e escutou durante tantos anos. Somente, Vossa Alteza Real permitir-me-á que chame a sua atenção para um ponto muito particular: esta sombra sente-se de tal forma orgulhosa por pertencer a um homem que, para a encontrar de bom humor, condição necessária para que responda bem, é preciso tratá-la como se fosse um homem. — A sua sombra! É de admirar! porta, lhe responde muito facilmente. Quando o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram-lhe sinal que parasse: Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro. Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto. uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã. Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo. Todos acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo. Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. montanhas. «Que nobre carácter» — pensou a princesa. 85 — É uma resolução medonha — respondeu a Sombra, fingindo que suspirava. — Perco um servidor fiel. — Pobre sombra — disse a princesa. — É bem desgraçada. Talvez fosse um benefício tirar-lhe o pouco de vida que lhe resta. Sim, pensando bem, julgo necessário acabar com ela em segredo. — Sem dúvida; mas receio que nunca mais se restabeleça. — É horrível! Espero que a tenham encarcerado. — Acabo de assistir a uma cena cruel: a minha sombra enlouqueceu. Imagina que se lhe meteu na cabeça que é um homem, e que eu sou a sua sombra. — Estás a tremer! — disse a princesa, quando voltou a ver a Sombra. — O que há? Tem cuidado! Não adoeças no dia da tua boda. E a sombra chamou a guarda, que já obedecia ao noivo da princesa, e o sábio foi levado. — Mas eu chegarei primeiro e mandar-te-ei prender. — Vou já ter com a princesa! — Ninguém acreditará em ti: sê razoável, ou chamo a guarda. — Mas é demais! — exclamou o sábio. — Nunca consentirei nisso; vou esclarecer a princesa e todo o país. Quero dizer a verdade: sou um homem, e tu, tu não passas de uma sombra vestida! homem, e, uma vez por ano, quando eu me mostrar ao povo na varanda iluminada pelo sol, deitar-te-ás a meus pés como uma sombra. É ponto assente que vou desposar a princesa. A boda tem lugar esta noite. estais aqui reunidos. 183 — Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos: Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer. Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio. E expeliu uma baforada do seu cachimbo. — O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado. reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra: Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lhos pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito *** Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos. tocar? 184 E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toros e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar. De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez, porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos. O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde! — O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho. De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente: passo em frente. Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio. — Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte. Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram: Expeliu uma outra baforada e calou-se. — É verdade que estamos aqui — respondeu o Ancião. — Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião. 86 Hans-Christian Andersen Contos de Andersen Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1959 O sábio não viu nada, não ouviu nada, porque o tinham matado. À noite, toda a cidade estava iluminada. Dispararam-se salvas de artilharia; por toda a parte se ouvia músicas e cantares. A princesa e a Sombra mostraram-se à varanda, e o povo, ébrio de alegria, aclamou-os três vezes. 87 Tolerância — Sim, mas… — começou o pequeno homem. — Ah não? E essa árvore? É tua, não é? — Sabes bem que não tenho nada de meu. — O que me dás em troca? — Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado! 185 — Eh! — respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. — Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele? — Podias emprestar-me o teu podão? — perguntou muito educadamente o pequeno homem. — Ah! És tu? — disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. — O que queres de mim? lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido. Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo. *** aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras. 186 Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de *** — Em troca? — zombou o vizinho. — Não há troca nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel. — Desculpa — disse o pequeno homem com a sua voz gentil. — Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor. — Tu, outra vez! — bocejou o vizinho. — O que queres? Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo. De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore? cinzel para o fazer. Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou. Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo. Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava. — Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão. multidões como um rastilho de pólvora. de superioridade que se estenderam às pela própria intolerância e por falsas ideias ao longo dos tempos por governantes cegos o diálogo. Actos hediondos têm sido cometidos erro levantar-se barreiras onde deveria existir diferentes nem por isso são inferiores. É um sinal de maturidade. Aqueles que são Ser-se capaz de aceitar a diferença é um Tolerância 187 Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá em África a esta espécie de tambor). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor. Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor. E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projecto. Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz. — Ah sim? E isto, isto não é madeira? — perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã. — Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! — respondeu. uma acha na nossa fogueira, como todos fazem. — De acordo, — disseram eles — mas com a condição de pores Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu tantã pelo fogo. coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear um fogo. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez. 188 Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da Só faltava levá-la ao curtidor. A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la, para a tornar mais suave e tão sólida como o couro. *** E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor. — Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! — retorquiu a criança. — Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta — suplicou o pequeno homem. — É pena — disse a rapariga. — Porque também eu necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos. — Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar. — O que queres de mim? — interrompeu a criança. — Sim, quer dizer… — começou ele. — Bom dia — respondeu ela. — És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume? — Bom dia — disse à criança. guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela. Israel, tínhamos passado pelo campo de concentração de pendurada ao seu pescoço, disse-lhe que, no regresso de tinha dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David -nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não passáramos duas semanas a fazer pesquisas, confessou- região. Quando lhe disse que vínhamos de Jerusalém, onde Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela apresentou-se como sendo Erika. entrou na sua loja, e uma senhora, sentada perto de nós, ofensiva dos Aliados durante a guerra. O comerciante causados por este tornado se assemelhavam aos da última lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o Na noite anterior, um tornado tinha-se abatido sobre esta trabalhadores a limparem as ruínas do telhado da Câmara. passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns meu marido e eu estávamos sentados na borda de um Mundial, encontrei a mulher de que fala esta história. O Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Nota da autora A estrela de Erika 91 189 Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e sentiu de novo coragem. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados. Regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho. Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno. Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida. Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer. E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé. um bocado do tambor. — De acordo — concluiu o curtidor. — Contentar-me-ei com — Mas já não há nenhuma árvore! — lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor! Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prémio do seu trabalho. aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não tinham querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas. 190 Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio. Um por um, todos os membros da tribo aproximaram-se dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio. O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira. criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta. O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de *** 92 Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que os meus pais tinham pressa de deixar o bairro rodeado de arame farpado para onde tinham sido relegados, de escapar ao tifo, ao excesso de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um local mais acolhedor, onde teriam comida e trabalho? Terão chegado Imagino muitas vezes como teria sido a vida dos membros da minha família durante as últimas semanas que passámos juntos. Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos os seus bens, forçados a abandonar a casa, enviados para o gueto. O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao Holocausto. Não sei se tive irmãos ou irmãs. Não sei em que cidade nem em que país nasci. Não sei como me chamava ao nascer. Não sei o dia. Nasci em 1944. Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu povo foram mortos. Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou asfixiados nas câmaras de gás. Eu escapei. Depois, contou-nos a sua história… conseguira franquear a porta. tinha tentado visitar o campo de Dachau, mas que não Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia, 93 pai, deve ter afastado o arame farpado que ocultava a abertura. Deve ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a minha mãe deve ter espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe disse “Desculpa. Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um caminho por entre aquela mole humana até à janela do vagão? Terá murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente? Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá chorado? Rezado? Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O meu pai estaria junto dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão falado do que iam fazer? Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para me proteger dos maus cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste vagão lotado. Tinha de certeza compreendido que não íamos para um lugar seguro. apertados um contra o outro? De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens campestres estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias ficámos naquele comboio? Quantas horas os meus pais passaram Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à estação, juntamente com centenas de outros judeus. Amontoados num vagão de transporte de animais. De pé, uns contra os outros, por falta de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os ferrolhos? até eles os rumores sobre os campos da morte? Até mesmo os homens… 191 Do Spillers L’arbre qui parle Toulouse, Milan Poche, 1999 A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta. E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África. às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore. 94 A minha estrela ainda brilha. Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti L’étoile d’Erika Toulouse, Milan Jeunesse, 2003 A minha árvore lançou raízes. Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso como as estrelas do céu. Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um membro do meu povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada. Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou muita da tristeza que me assaltava com frequência, percebeu o meu desejo de pertencer a uma família. Tivemos três filhos, que hoje têm os seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu. Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à escola. Fez tudo por mim. Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher que se ocupou de mim. Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha idade e atribuiu-me uma data de nascimento. Decidiu que me chamaria Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de uma passagem de nível. Havia pessoas à espera que o comboio passasse; viram-me cair do vagão de carga. No caminho que conduzia à morte, a minha mãe lançou-me à vida. A minha mãe atirou-me pela janela do comboio. com toda certeza foi o que aconteceu a seguir.