V alores H um anos - Agrupamento de Escolas do Castelo da Maia

Transcrição

V alores H um anos - Agrupamento de Escolas do Castelo da Maia
Valores
Humanos
95
Obediência
(i)
Fortaleza.................................................................................................................. 109
Helen Keller e Anne Sullivan ..........................................................................113
Compaixão.............................................................................................................. 101
Um gato debaixo do pinheiro de Natal...........................................................105
Obediência..................................................................................................................95
O castigo que nunca chegou..............................................................................99
Tolerância ..................................................................................................................87
A estrela de Erika ...............................................................................................91
Justiça.........................................................................................................................69
A Sombra ........................................................................................................... 73
Coerência....................................................................................................................59
A fita vermelha.................................................................................................. 63
Rectidão ......................................................................................................................51
O caminho para a verdade ................................................................................55
Responsabilidade ........................................................................................................45
Apenas um rapaz...............................................................................................49
Paciência ....................................................................................................................35
Quase me bateu ................................................................................................. 39
Diligência...................................................................................................................25
Chico ..................................................................................................................29
Honestidade................................................................................................................17
Ana e a galinha pedrês .......................................................................................21
Simplicidade.................................................................................................................9
Um presente de arromba .................................................................................... 13
Generosidade ................................................................................................................1
A casa que o amor construiu ...............................................................................5
Índice
perspectivas.
ignorância. O que é igual a um futuro sem
falta de aproveitamento e consequente
dos professores costuma ter como resultado a
atitude de desobediência face às orientações
muitos, isso levou à doença e à morte. A
lamentar que não se lembrem de que, para
com o perigo e com a transgressão. De
muito forte nos adolescentes, que se divertem
A vontade de se evidenciar foi sempre
Obediência
(ii)
* Alguns dos textos da presente antologia são adaptações da versão original.
Determinação ..........................................................................................................175
A árvore que falava .........................................................................................179
Perseverança ............................................................................................................167
A pedra no caminho..........................................................................................171
Discrição..................................................................................................................157
O homem que ficou sem sono...........................................................................161
Solidariedade ...........................................................................................................149
Uma prenda diferente.......................................................................................153
Prudência.................................................................................................................139
Marco brinca ao Bug’s Bunny ....................................................................... 143
Coragem...................................................................................................................131
A pena pesada ...................................................................................................135
Delicadeza................................................................................................................121
As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas.............................................125
1
Generosidade
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ʊ E se nós te ajudarmos na volta? ʊ sugeriu um dos amigos.
ʊ Não posso ʊ disse. ʊ Tenho de arrancar estas ervas.
ʊ Vem connosco ʊ instaram-no.
Rufus tinha a intenção de cumprir a sua promessa. Começou a
trabalhar, mas, dali a pouco, apareceram dois amigos que iam à pesca.
ʊ Está bem ʊ respondeu Rufus. ʊ Vou tirar as ervas enquanto
vocês vão à vila.
ʊ Esperamos que arranques as ervas daninhas aos nabos. Os
nabos precisam de espaço. Não podem crescer saborosos se as ervas os
sufocarem.
ʊ Estaremos fora por algumas horas ʊ disse a mãe.
O jovem Rufus não era muito crescido, mas tinha idade
suficiente para que os pais o deixassem sozinho na quinta enquanto
iam à vila. Agradava-lhe que confiassem que não se meteria em
sarilhos e que tomaria bem conta de si, sem nenhum adulto por perto.
recordava era não tanto o dia como o que então acontecera.
Rufus recordava-se de um dia quente de Verão, quando era
rapaz. Fizera algo de errado e esperava ser castigado. Mas o que
Um velho homem chamado Rufus Jones perguntava-se como é
que os pais o tinham ajudado a conhecer Deus no seu interior, em vez
de conhecer o que os outros dizem sobre Deus. A resposta não tardou.
O castigo que nunca chegou
100
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore
Lighting candles in the dark
Philadelphia, FGC, 2001
Janet Sabina
Foi nesse dia que comecei a ouvir Deus dentro de mim. Foi
nesse dia.
Depois, beijou-me e deixou-me sozinho no silêncio, com Deus.
ʊ Meu Deus, ajuda este rapaz a tornar-se o homem que Tu
queres que ele seja.
Disse tudo sobre mim a Deus, que espécie de rapaz eu era, e que
espécie de homem ela esperava que eu viesse a ser. Ela depositava
muita esperança em mim e tinha grandes sonhos. Por fim, disse:
ʊ Mas não me castigaram nem me ralharam ʊ recorda Rufus.
ʊ A minha mãe pegou-me na mão e não a largou até me levar para o
quarto e me sentar numa cadeira. Ajoelhou-se aos pés da cama e
começou a falar com Deus sobre mim.
E lá foram os três rapazes. Divertiram-se tanto a pescar e a nadar
que ficaram muito mais tempo do que Rufus previra. Quando voltaram,
os pais de Rufus estavam também a chegar.
Até aquela altura, Rufus não sentira que estivesse
particularmente quente. Mas, agora, o suor corria-lhe pela face e as
roupas colavam-se-lhe ao corpo. Quanto mais pensava nisso, mais lhe
agradava a ideia de esperar até mais tarde para fazer o trabalho e ter
ajuda.
ʊ Logo estará mais fresco. Agora está muito calor para trabalhar.
causa de sofrimentos e privações.
para si é contrário à vida em sociedade e
que a rodeiam. O instinto de tudo guardar
torna-a insensível às necessidades daqueles
presunção fecha a pessoa em si própria e
virtude da generosidade. Em contrapartida, a
atenção aos outros ajuda ao desabrochar da
e necessitam, por isso, de ser contrariados. A
Os primeiros impulsos costumam ser egoístas
O gesto de dar nem sempre é espontâneo.
Generosidade
101
Compaixão
5
Marie estremeceu de novo, à medida que sentia que o sonho
feliz se tornava um terrível pesadelo. Vinham-lhe à cabeça recordações
assustadoras. Aterrorizadas, a Mãe e a Avó tinham-na arrastado para as
árvores. Aí, deitaram-se por terra. Soldados de uniforme azul passavam
em colunas. Armas! Lutas! Explosões e gritos! Fogo! Quando tudo
acabou, a aldeia deixara de existir.
Começava sempre com um sonho agradável. Via a sua aldeia
francesa muito amada. Depois via-se a sair da casa velha e
aconchegante com a Mãe e a Avó e a passar pela rua estreita. Debaixo
de quase todas as janelas, havia floreiras garridas cujas flores
abanavam ao vento. O Sol resplandecia no campanário da igreja. Mas
havia uma reverberação assustadora que vinha na direcção da aldeia: a
reverberação das armas.
frio húmido. Enquanto se levantava para arranjar a cama feita de trapos
e de serapilheira no chão sujo, o pesadelo que lhe tinha abalado o sono
pairava sobre ela como uma nuvem negra. Tinha todas as noites o
mesmo pesadelo.
Marie acordou sobressaltada na escuridão cerrada e sentiu o
cheiro familiar da sujidade. O seu pequeno corpo estremeceu com o
Esta história é verdadeira. Passou-se em França depois
da Primeira Guerra Mundial, durante a qual uma aldeia
inteira foi destruída pelos combates.
A casa que o amor construiu
Aqueles
que
vivem
sem
necessário aprender-se a sentir compaixão.
saúde não apoiam os que estão doentes. É
situação de grande pobreza, e aqueles que têm
dificuldades esquecem que há pessoas em
minimizar.
dos sofrimentos dos outros ou para os
As pessoas têm tendência para se alhear
Compaixão
6
eram soldados. Eram trabalhadores britânicos e americanos.
Pensou que eram soldados porque traziam uniformes. Mas não
— Oh, Mãe! — gritou excitada depois de os observar por algum
tempo. — Os soldados trazem serras e martelos, em vez de armas.
Estão a construir casas.
A Mãe parecia estranhamente contente. Marie atirou com os
trapos e subiu os degraus periclitantes da cave. Viu de imediato que
outros homens de uniforme cinzento tinham vindo para a aldeia.
— Não, minha querida. Vai lá acima ver quem chegou.
— Mãe, será que os soldados voltaram? — perguntou
ansiosamente.
Quando Marie acordou, o Sol brilhava através das fendas nas
tábuas velhas que serviam de tecto. Ao ouvir sons estranhos, sentou-se
num ápice. Algo de diferente estava a passar-se naquela manhã.
Perguntava-se que sons seriam aqueles.
riam-se e entregavam moedas francesas aos miúdos ávidos. Mas,
quando partiram, a aldeia continuou em ruínas.
Enfiou-se nos trapos e voltou a cair num sono irregular. Os
soldados continuavam a marchar na sua cabeça. Depois dos soldados
franceses em uniformes azuis, tinham vindo os soldados alemães em
uniformes verdes. Para alívio de todos, depressa se foram embora.
Depois vieram os uniformes caqui dos americanos. Os americanos
À medida que a guerra se afastava, Marie, a Mãe e a Avó
vasculharam, em lágrimas, o cascalho em que a sua casa se
transformara. A pequena família mudou-se para uma antiga cave.
“Como toupeiras nos buracos do chão”, pensara Marie, com tristeza.
7
cinzento entregou a chave da porta de entrada a Marie com muita
No dia em que acabaram de a construir, o chefe dos homens de
Será que se iriam embora sem construir uma casa para a sua
família? Enquanto esperava e observava, a cave parecia-lhe mais
escura e húmida do que nunca. Quando estava quase a desistir de
esperar, Marie obteve a sua resposta. A resposta era “Sim”. A casa de
Marie, tal como as outras, foi construída em apenas três dias. Para ela,
era a casa mais bela do mundo.
Não disse “Sim”, mas também não disse “Não”. Marie montou
guarda todos os dias para ver o que aconteceria. Uma por uma, foram-se construindo casas pequenas para outras pessoas. As casas eram
pequenas e simples mas, para Marie, eram bonitas. Como ansiava por
um chão de madeira limpo para varrer e um belo telhado de telhas
vermelhas para impedir a chuva de entrar!
— Bem, Menina, veremos o que se pode fazer.
pergunta. Quando finalmente compreendeu, não se riu nem sorriu, mas
respondeu muito seriamente:
O homem pareceu surpreendido e pediu-lhe para repetir a
— O senhor pode construir-me uma casa por seis cêntimos?
Timidamente, estendeu a meia e mostrou-lhe os seis cêntimos.
Teve uma ideia súbita. Desceu os velhos degraus a correr e
pegou numa meia velha onde estavam seis cêntimos franceses que os
soldados americanos lhe tinham dado. Era o único dinheiro que a sua
família tinha. Enquanto voltava a subir as escadas, um misto de
esperança e ansiedade fazia-a tremer a cada degrau. Correu para o
chefe dos homens vestidos de cinzento.
105
Laura toma uma decisão. Amanhã, a caminho da escola, irá
bater à porta do veterinário, como fez da outra vez por causa de um
Laura.
— Não é vadio, porque eu acolhi-o e gosto dele — retorquiu
Desta vez, a mãe sempre resolvera responder.
— Nem penses! Ele tem mais que fazer do que tratar os gatos
vadios.
— É preciso chamar o veterinário — sugere Laura.
O gato sem nome nem casa tem o pêlo descaído e o salto lento;
não liga aos pássaros, já não tem fome, foge do sol e abriga-se entre
dois pés de urtigas.
— Parece que o gato cinzento vai morrer.
Então Laura repete para si, em voz baixa e grave:
A mãe não ouve, ocupada também a arrancar as ervas do
passeio, o que Laura, aliás, também devia estar a fazer para a ajudar.
— O gato cinzento está com mau aspecto; acho que está
doente… — insiste ela.
— O gato cinzento está com mau aspecto — observa Laura,
empoleirada no alto do pequeno muro que separa o jardim do baldio.
Mas o pai está a cortar a sebe e não ouve o que ela diz.
Um gato debaixo do pinheiro de Natal
106
Depois das quatro horas, ao regressar da escola, Laura encontrou
— Esta tarde, Laura, não tenho muito trabalho, e por isso vou
dar uma volta para esse lado.
ápice:
Ela gaguejou ao falar do gato e o veterinário compreendeu num
— O meu pai vai aposentar-se e sou eu que vou substituí-lo —
explica com gentileza, ao ver o espanto de Laura.
Que surpresa! É um rapaz novo que vem atender.
Durante o recreio do meio-dia, Laura escapuliu-se do pátio. Se a
professora soubesse! Se a mãe a visse! Ela sabe que pode ser suspensa
por três dias: “Que falta de responsabilidade!”. Ela bem sabe, mas o
gato cinzento está com tão mau aspecto…
“Inundado”? O rio inunda as terras; a banheira, quando
demasiado cheia, inunda o quarto de banho… mas um veterinário
“inundado”? Então, quem há-de aconselhar Laura? Não quer que se
riam dela, não quer ser motivo de troça.
— O meu marido está inundado de trabalho.
Mas é a mulher que vem à porta e lhe dá uma resposta seca:
No dia seguinte, não consegue encontrar o gato em lado nenhum
e são já mais do que horas de ir para a escola. Laura vai então sem o
gato. Bate à porta do veterinário para pedir um conselho.
“Amanhã vou esconder o gato na minha pasta, está decidido.”
passarinho caído do ninho e de um ouriço-cacheiro meio esmagado por
uma bicicleta. É um veterinário idoso muito simpático, que não a
manda dar uma volta.
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E deu-lhe de volta dois cêntimos.
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore
Lighting candles in the dark
Philadelphia, FGC, 2001
William W. Price
— Obrigado, Menina, mas quatro cêntimos são suficientes.
Será que chegava? Quase nem se atrevia a olhar para o homem.
Este sorriu-lhe e disse solenemente (em francês, claro):
colocava na mão do chefe.
Voltou rapidamente a descer os velhos degraus da cave e,
quando voltou, dirigiu-se ao chefe dos homens de cinzento. Agora que
estava acabada, a casa parecia grande e os seis cêntimos pareciam
pouco. Mas era tudo o que ela tinha, e foi-os contando à medida que os
Parou de repente, como se se recordasse de algo. Prometera-lhes
os seis cêntimos pela casa, por isso, esta ainda não era propriedade sua.
Marie pegou nela e abriu oficialmente a porta, enquanto a Mãe,
a Avó e toda a aldeia a observavam.
cerimónia, dizendo: — Menina, a sua chave.
9
Simplicidade
Sérgio
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Junto do pinheiro de Natal, está um presente que dá saltos.
Contrariamente ao habitual, a mãe sugere que se abram as prendas de
Natal antes da missa do galo. Laura nem quer acreditar. Há muitas
coisas a mudar nesta casa, de há uns tempos para cá. Talvez desde que
***
Mas ela não tinha vontade de ouvir as recordações da mãe. Foi
chorar sozinha para cima do pequeno muro. Perguntou a si mesma para
onde teria Sérgio levado o gato morto. Pareceu-lhe tê-lo visto, cinzento
e de pêlo brilhante, escapar-se por entre as ervas altas; bem sabe que
foi uma ilusão. Depois, o pintarroxo-que-tinha-medo-do-gato voltou
para o terraço e Laura riu-se das suas bicadas ávidas. Saltou
rapidamente do seu posto de observação para ir buscar migalhas
frescas.
— Tens um amigo novo. Sérgio é um nome estranho, que me
faz pensar no tecido do casaco que eu usava quando tinha a tua idade e
que…
Laura ouviu a mãe falar com seriedade de uma determinada
injecção, e concluir por fim:
Até breve, Laura!
Lamento! Tive de ajudar o teu gato a partir sem sofrer
demasiado… Foi pena, mas era melhor para ele. Quando
quiseres…
um bilhete que a mãe lhe leu:
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Colette Nys-Mazure
Contes d’Espérance
Paris, Desclée de Brouwer, 1998
— Parece filho do gato cinzento. Amanhã vou logo apresentá-lo
ao Sérgio.
No entanto, ele está aqui esta noite, o pai, bem vivo e a rir-se,
quando a mãe mostra a Laura a prenda que mexe: um gatinho cinzento.
o pai “esteve às portas da morte”, como diz a avozinha. Laura ficou a
saber que isso significa escapar à morte. Terá ela suspeitado da
gravidade do estado de saúde do pai, encontrado desmaiado no jardim
enquanto ela estava na escola?
Muitos acabam na marginalidade.
a indisciplina, a ignorância e a grosseria.
gostam de se fazer notar pelos piores motivos:
atitude exibicionista de tantos jovens, que
atenções. É um sinal de imaturidade a
afabilidade e não procura ser o centro das
discreto e simples, trata os outros com
sozinhos. Quem tem verdadeiro valor é
atraem a inveja dos demais e acabam
Aqueles que gostam de se enaltecer
Simplicidade
109
Fortaleza
13
Era, é claro, um carro. Não vou dizer qual era a marca, porque
penso que já nos rodeia demasiada publicidade. Era um carro novo.
Com relógio, rádio, todo artilhado. Levou uma hora a mostrar-me
O presente estava lá, à minha espera, quando cheguei das aulas.
Estacionado em frente de casa, mas nem dei por isso. O meu pai
passou o tempo a fazer alusões indirectas, mas não percebi. Por fim,
teve de me levar até lá fora e mostrar-mo. Quando me deu as chaves, a
sua cara crispou-se toda, como se lhe apetecesse chorar de orgulho e de
alegria.
A razão por que me sentia culpado por ter apanhado o autocarro
era a seguinte: tinham passado cinco dias desde os meus anos, não é
verdade? No dia do aniversário, o meu pai dera-me um presente. Um
presente de arromba. Inacreditável. Deve tê-lo planeado e andado a
poupar, literalmente, durante anos para o comprar.
Culpado por ter apanhado o autocarro. Vejam: a coisa pior
quando se é jovem é a banalidade.
mão gelada da morte. Sentia-me culpado por ter apanhado o autocarro.
Foi cinco dias depois dos meus anos. Tinha dezassete anos e
cinco dias. Era terça-feira, 25 de Novembro, um dia de chuva. Apanhei
o autocarro porque chovia muito quando saí da escola. Só havia um
lugar vago. Sentei-me e tentei afastar a nuca da gola, que ficara
encharcada enquanto esperava na paragem do autocarro, e parecia a
Um presente de arromba
elas.
dificuldades e não se deixar intimidar por
procurar compreender o sentido dessas
ou cair no desânimo. A atitude correcta é
Mas é um erro responder com agressividade
dificuldades surgem quando menos se espera.
A vida tem reviravoltas súbitas e as
Fortaleza
14
mais me livraria dele. Era meu. Pertencia-me. Era dono de um carro
novo. Todo artilhado. A malta no liceu diria: “Eh, pá! Olha para
Não fui capaz de lhe explicar. Nem eu percebia bem. Se o
tivesse levado para o liceu e o tivesse arrumado lá no parque, nunca
Fomos imediatamente dar uma volta no carro, é claro. Conduzi
até ao parque, ele trouxe-o de volta, estava ansioso por pôr as mãos no
volante e tudo correu bem. O problema só surgiu quando, na segunda-feira seguinte, descobriu que eu não fora de carro para o liceu.
Porquê?
E eu sorri. Penso.
podia ter vivido um ano ou mais no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, se admitíssemos que conseguiria uma bolsa de estudo.
Foi o que imediatamente me passou pela cabeça, antes mesmo de ele
abrir a porta reluzente. Podia ter colocado o dinheiro numa conta-poupança. É claro que eu podia vender o carro e não perderia muito
dinheiro se o fizesse rapidamente. Pensava nisso enquanto ele me
punha as chaves na mão e dizia: "É todo teu, filho!" E a cara dele
tremia outra vez.
Quanto terá custado? Não perguntei, mas deve ter sido, pelo
menos, três mil dólares. O meu pai é contabilista e nós não temos
quantias destas para coisas desnecessárias. Com aquele dinheiro, eu
Eu aprendera a guiar e em Outubro tirara a carta de condução.
Parecia-me útil, em caso de emergência, e podia fazer alguns recados à
minha mãe e sair sozinho se quisesse. Ela tinha um carro, o meu pai
tinha um carro e agora eu tinha um carro. Três pessoas, três carros. A
única chatice é que eu não queria um carro.
todos os extras.
15
Ursula K. Le Guin
Tão longe de sítio nenhum
Lisboa, Ed. Fragmentos, s/d
aquilo! Porreiro! Topem o Griffiths-Acelera!”. Alguns deles gozariam,
mas outros admirá-lo-iam verdadeiramente, e quem sabe se também a
mim, por ter a sorte de o possuir. E isso é que eu não ia aguentar. Eu
não sabia quem era, mas uma coisa é certa: não queria ser um acessório
de um carro.
Não há amizade mais séria do que aquela que une alunos e
professores. Um dos maiores exemplos deste tipo de amizade
foi a relação entre Helen Keller (1880-1968) e Anne Mansfield
Sullivan (1866-1936).
A doença arruinou a visão e a audição de Helen quando
esta não tinha ainda dois anos, cortando os seus laços com o
mundo. Como a própria descreveu mais tarde, durante quase
cinco anos, “cresceu selvagem e desregrada, rindo baixinho
ou alto para exprimir prazer, dando pontapés, arranhando e
emitindo gritos roucos para exprimir o oposto.”
A chegada de Anne Sullivan à casa dos Keller no
Alabama, vinda da Perkins Institution for the Blind (Instituto
Perkins para Cegos), em Boston, mudou a vida de Helen. A
própria professora era meio-cega devido a uma infecção
ocular da qual nunca recuperara. Quando chegou a casa de
Helen ia cheia de experiência, dedicação e amor. Conseguiu
estabelecer contacto com a mente da aluna através do toque e,
em três anos, ensinou-a a ler e a escrever em Braille. Quando
tinha 16 anos, Helen já falava suficientemente bem para poder
ir para a escola. Formou-se com distinção pela Universidade
de Radcliffe em 1904 e devotou a sua vida aos cegos e aos
cegos e surdos, como a sua professora o fizera. A amizade
entre as duas mulheres durou até à morte de Anne.
Helen escreveu sobre a chegada de Anne Mansfield na sua
autobiografia The Story of My Life (A História da Minha
Vida).
Helen Keller e Anne Sullivan
113
114
Na manhã seguinte à sua chegada, a minha professora levou-me
até ao quarto dela e deu-me uma boneca. Os meninos cegos da Perkins
que tinha vindo revelar-me a vida e, mais do que isso, amar-me.
Senti passos a aproximarem-se. Estendi a mão para o que supus
ser a minha mãe. Alguém a agarrou e pegou-me ao colo. Era a pessoa
Se alguma vez esteve no mar, envolvido por um denso nevoeiro,
como se uma escuridão branca e palpável o cercasse, e sentiu o seu
navio, tenso e ansioso, buscar o porto com o auxílio de uma sonda
enquanto o seu coração batia fortemente à espera de que algo
acontecesse, então sabe como eu me sentia antes da minha educação
começar. Só que eu não tinha sonda para me guiar, nem forma de saber
se o porto estava próximo. A minha alma clamava por luz, e a luz do
amor brilhou sobre mim naquela hora.
e iluminava a minha face. Sem dar por isso, pus-me a dedilhar as
folhas e botões que me eram familiares e que tinham brotado para dar
as boas-vindas à suave Primavera do Sul. Não sabia que maravilhas e
surpresas o futuro me traria. Raiva e amargura tinham sido os meus
sentimentos dominantes nas últimas semanas, e a essa luta titânica
seguira-se uma profunda apatia.
Na tarde desse dia memorável eu encontrava-me na varanda,
imóvel e expectante. Pelos sinais da minha mãe e pela azáfama dentro
de casa, deduzia vagamente que algo de inesperado estava para
acontecer. Sentei-me, então, nos degraus da porta da entrada. O sol
daquele fim de tarde penetrava as madressilvas que cobriam a varanda
O dia mais importante de toda a minha vida foi aquele em que a
minha professora, Anne Mansfield Sullivan, chegou a nossa casa. Foi a
3 de Março de 1887, três meses antes de eu completar sete anos de
idade.
17
Honestidade
115
satisfação pela causa do meu desconforto ter sido posta de parte. Miss
Sullivan trouxe-me o chapéu e soube que íamos sair. Este pensamento,
se se pode chamar pensamento a uma sensação sem palavras, fez-me
correr e saltar de prazer.
Um dia, enquanto brincava com a minha boneca nova, Miss
Sullivan colocou a boneca de trapos no meu colo, soletrou a palavra
“b-o-n-e-c-a” e ensinou-me que a palavra se aplicava a ambas. Dias
antes, tínhamos tido uma briga sobre as palavras caneca e água. Miss
Sullivan tinha tentado ensinar-me que eram distintas, mas eu
continuava a confundi-las. Desesperada, deixara cair o assunto, para,
logo que surgiu uma oportunidade, o retomar. Impacientei-me com a
insistência dela e atirei a boneca nova ao chão. Fiquei extremamente
feliz quando a ouvi partir-se. Não senti pena nem remorso. Não
gostava dela. No mundo hirto e escuro em que eu vivia, não havia
lugar para sentimentos fortes ou para a ternura. Senti que a minha
professora varria os fragmentos para um canto do fogão de sala e senti
Apenas movia os dedos como um macaco de imitação. Nos dias
seguintes, aprendi a soletrar muitas palavras dessa maneira: alfinete,
chapéu, chávena, sentar, levantar, andar. Só após muitas semanas é que
compreendi que tudo tinha um nome.
Institution tinham-na mandado e Laura Bridgman tinha-a vestido. Mas
só o soube mais tarde. Depois de ter brincado algum tempo com ela,
Miss Sullivan soletrou a palavra na palma da minha mão: “b-o-n-e-c-a”. Fiquei logo interessada nesta brincadeira feita com os dedos e
tentei imitá-la. Quando consegui reproduzir toda a sequência
correctamente, enchi-me de um prazer e de um orgulho infantis. Corri
escada abaixo ter com a minha mãe. Quando a encontrei, levantei a
palma da mão e fiz as letras correspondentes a boneca. Não sabia que
estava a soletrar uma palavra, nem sequer que as palavras existiam.
116
Aprendi muitas palavras novas naquele dia. Não me recordo de
todas. Mas recordo-me de aprender mãe, pai, irmã, professora.
Palavras que fariam o mundo desabrochar para mim, “como a vara de
Aarão”. Seria difícil encontrar naquele dia uma criança mais feliz do
que eu, quando à noite me deitei na cama e relembrei as alegrias que
aquele dia me trouxera. Pela primeira vez na minha vida, ansiava pelo
dia seguinte.
um nome e cada nome dava lugar a um pensamento novo. Quando
regressámos a casa, tudo aquilo em que eu tocava parecia vibrar de
vida. Via agora tudo de uma forma nova e estranha, como se tivesse
tido uma iluminação. Ao entrar em casa, lembrei-me da boneca que
tinha partido. Apalpei o caminho até à lareira e apanhei os pedaços.
Tentei juntá-los, mas em vão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
Lembrei-me do que tinha feito e senti, pela primeira vez,
arrependimento e pesar.
Saí da casa das bombas ansiosa por aprender mais. Tudo tinha
era aquela coisa fresca e maravilhosa que corria pela minha mão.
Aquela palavra viva despertou a minha alma, deu-lhe luz, esperança,
alegria, libertou-a! Embora ainda houvesse barreiras a transpor, eram
barreiras que o tempo podia derrubar.
Fomos carreiro abaixo em direcção à casa das bombas, atraídas
pela fragrância das madressilvas que a cobriam. Alguém estava a tirar
água e a minha professora pôs a minha mão debaixo do jacto. Quando
a água fresca jorrou sobre uma das minhas mãos, Miss Sullivan
soletrou-me a palavra “água” na outra mão. Fê-lo primeiro devagar,
depois rapidamente. Fiquei quieta, atenta aos movimentos dos dedos
dela. Assaltou-me subitamente uma recordação vaga de algo que
esquecera ņ a emoção de um pensamento que agora regressava. O
mistério da linguagem revelava-se-me finalmente. Soube que “á-g-u-a”
sem saída.
de revolta, até se verem, por fim, num beco
deixando atrás de si um rasto de sofrimento e
fins. Surdos à voz da consciência, caminham
vida e não olham a meios para atingir os seus
obstáculo por aqueles que querem subir na
A honestidade é encarada como um
Honestidade
117
menos agora, o que preocupa o pai, que diz que ela tem saudades de
casa e está ansioso por levá-la embora. Não concordo com ele, mas
No início, os seus movimentos eram tão insistentes que se podia
pensar que havia algo de estranho ou errado com ela. Reparo que come
— Está tão sossegada!
vermelha de lã escocesa. Aprendeu a coser esta semana e está muito
feliz. Quando conseguiu fazer uma faixa da largura da sala, acariciou o
próprio braço e encostou o trabalho à cara com doçura. Já me deixa
beijá-la e, quando está particularmente tranquila, senta-se no meu colo
por uns minutos. Mas não devolve as minhas carícias. O passo mais
importante, porém, foi dado. A pequena selvagem aprendeu a sua
primeira lição de obediência e acomodou-se ao jugo com facilidade. A
minha tarefa, que desempenharei com gosto, consiste agora em
conduzir e modelar a magnífica inteligência que desperta na sua alma
infantil. As pessoas já repararam que a Helen mudou. O pai vem ver-nos de manhã, antes de ir para o escritório, e ao fim da tarde, quando
regressa. Observa a alegria da filha enquanto esta enfia as contas ou
desenha linhas no molde de costura e exclama:
A criaturinha selvagem de há duas semanas transformou-se
numa criança gentil. Está sentada à minha beira enquanto escrevo esta
carta. A sua face está serena e feliz e tricota uma longa cadeia
Esta manhã, o meu coração exulta de alegria. Deu-se um
milagre! A luz do entendimento brilhou na cabeça da minha pequena
aluna e tudo mudou!
20 de Março de 1887
As cartas seguintes foram escritas por Anne Sullivan a propósito de
Helen Keller.
118
petrificada. Uma luz nova surgiu na sua face. Soletrou “água” várias
vezes. Depois deitou-se no chão e perguntou como se chamava.
Apontou sucessivamente para a bomba, para a latada e, virando-se de
Creio que numa carta anterior te disse que a Helen tinha
aprendido “caneca” e “leite” com mais dificuldade do que quaisquer
outras palavras. Confundia os substantivos com o verbo “beber”. Não
conhecia a palavra para “beber”, mas imitava o acto de beber quando
soletrava “caneca” ou “leite”. Hoje de manhã, enquanto se lavava, quis
saber a palavra para “água”. Quando quer saber o nome de alguma
coisa, aponta para o objecto ou acto, e bate na minha mão. Soletrei
“á-g-u-a” e nunca mais pensei no assunto até depois do pequeno-almoço. Ocorreu-me que esta nova palavra podia ajudá-la a distinguir
“caneca” e “leite”. Fomos até à casa das bombas e pus a Helen a
segurar na caneca enquanto eu dava à bomba para extrair água.
Quando a água fria jorrou, enchendo a caneca, soletrei “á-g-u-a” na
mão da Helen que estava livre. A junção tão próxima da palavra com a
sensação da água fria a jorrar assustou-a. Deixou cair a caneca e ficou
educação. Aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto manual é
a chave para tudo o que ela quer saber.
Tenho de te escrever esta manhã porque aconteceu uma coisa
muito importante. A Helen deu o segundo grande passo na sua
5 de Abril de 1887
A Helen aprendeu vários substantivos esta semana. “C-a-n-e-c-a” e “l-e-i-t-e” foram os mais difíceis de todos. Quando soletra leite
aponta para a caneca e quando soletra caneca faz o gesto de verter ou
beber, o que mostra que confundiu as duas palavras. Ainda não se deu
conta de que tudo tem um nome.
penso que teremos de abandonar a nossa casinha em breve.
21
Sonhou com comida. Parecia que, nos últimos tempos, todos os
seus sonhos tinham a ver com comida. Desta vez, sonhou com
cenouras douradas, cozidas a vapor, com natas e manteiga. Mesmo no
sonho, Ana sabia que isso era uma loucura, porque não conseguia
recordar-se de alguma vez ter comido manteiga ou natas. Mas a mãe
tinha-lhe falado sobre isso e, no seu sonho, quase podia provar aquela
delícia.
Naquele instante, Ana apercebeu-se de que não podia continuar.
Tinha de parar e de descansar. Tombou a bicicleta, assegurando-se
primeiro de que as beterrabas não cairiam do cesto. Depois estendeu-se
na relva fresca.
E também desanimada. Nem aos agricultores restava qualquer
legume. À excepção de algumas beterrabas que um homem lhe tinha
dado, mais ninguém lhe dera ou vendera o que quer que fosse.
Levava a bicicleta, mas estava demasiado cansada para pedalar.
Caminhava devagar, empurrando-a. Mas até isso fazia com que o seu
coração batesse depressa. Ultimamente, sentia-se sempre cansada.
Todas as semanas, Ana ia ao campo à procura de alimentos.
Esta história passou-se na Alemanha durante a Segunda
Guerra Mundial. A comida era escassa. As pessoas,
sobretudo as crianças, alimentavam-se mal
e andavam sempre esfomeadas.
Ana e a galinha pedrês
119
William Bennett (edited by)
The Book of Virtues
New York, Simon & Schuster, 1993
uma fada radiosa. Volteou de objecto em objecto, perguntando o nome
de tudo e beijando-me de pura alegria. Ontem à noite, quando me
deitei, lançou-se espontaneamente nos meus braços e beijou-me pela
primeira vez. Pensei que o meu coração ia rebentar de alegria.
P.S. ņ Não acabei a carta a tempo de a pôr no correio, por isso
vou acrescentar umas linhas. A Helen levantou-se hoje como se fosse
súbito para mim, perguntou o meu nome. Soletrei “Professora”.
Quando a ama trouxe a irmãzinha de Helen até à casa das bombas,
Helen soletrou “bebé” e apontou para a ama. De regresso a casa, estava
muito excitada e quis saber o nome de tudo aquilo em que tocava. Em
algumas horas tinha já adicionado trinta palavras novas ao seu
vocabulário. Eis algumas delas: porta, aberta, fechada, dar, ir, vir e
muitas mais.
22
“Não”, disse energicamente para si mesma, “o ovo é meu. A
Tirou o lenço que usava na cabeça. Com cuidado, embrulhou o
ovo e pô-lo delicadamente no cesto, juntamente com as beterrabas.
Montou na bicicleta e começou a subir a estrada. Mas um pensamento
triste tomou conta dela. Na verdade, o ovo não lhe pertencia. Pertencia
ao dono da galinha pedrês. Ana começou a pedalar cada vez mais
devagar.
Tinha de ir depressa para casa, dar o ovo à mãe. Talvez
pudessem comer uma omeleta pequenina!
A galinha pedrês afastou-se e Ana ficou sozinha com o ovo.
Agora que descansara, sentia-se melhor.
— Oh, minha linda, linda galinha! — exclamou. — Desculpa ter
sido dura contigo. Obrigada por este ovo maravilhoso!
Foi então que esta viu o ovo! Pegou nele cuidadosamente. Ainda
estava quente.
— Cu-u-u-t… cu-u-u-t… — disse a galinha, e recuou, assustada
com a voz zangada de Ana.
— Porque é que estás a olhar para mim, sua tonta? — perguntou
Ana. — Fazes tanto barulho que me acordaste.
De repente, Ana apercebeu-se de que a galinha estava a falar.
Pelo menos, estava a cacarejar e a falar da maneira que as galinhas
falam.
Sonhou, em seguida, com tomates, vermelhos e sumarentos.
Havia um monte deles e Ana preparava-se para comer um quando tudo
desapareceu. Acordou de repente e sentou-se. Na sua frente estava uma
galinha pedrês. Olharam uma para a outra.
23
— Foste tão amorosa — disse. — Gostaria de te dar algo para
Ana preparava-se para ir embora. A jovem mulher parecia
perturbada.
— Oh, muito obrigada. Aquela galinha anda sempre a vaguear e
a deixar os ovos nos sítios mais improváveis. É a única que nos resta, e
precisamos dos ovos dela para o nosso menino. É que ele está muito
doente.
— Então, isto também lhe pertence — disse numa voz quase
inaudível.
Lenta e cuidadosamente, a menina tirou o ovo do lenço e
entregou-o à mulher.
— Sim, temos — respondeu a mulher.
— Tem… tem… uma… uma galinha pedrês?
Com muita relutância e o sonho da pequena omeleta a
desvanecer-se rapidamente, Ana indagou:
— Sim? — perguntou a jovem mulher que veio à porta.
Mas parecia que a bicicleta ia cada vez mais devagar. E, quando
chegou perto da casa branca, as pernas já não conseguiam pedalar.
Muito lentamente, desceu da bicicleta e dirigiu-se à casa.
Havia uma casinha branca perto da estrada. “Não conseguem ver
nada”, disse para consigo. “Tenho o ovo todo coberto.” Começou a
pedalar mais depressa.
galinha pô-lo mesmo ao meu lado enquanto eu dormia.” Continuou a
subir a estrada. “De qualquer forma, não sei de quem é a galinha. E
mesmo que soubesse, ninguém ia adivinhar que eu tenho o ovo.”
121
Delicadeza
24
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore
Lighting candles in the dark
Philadelphia, FGC, 2001
Ruth Hunt Gefvert
— Não, Ana. — disse a mãe. — Estou aqui a pensar na filha
maravilhosa que tenho. Quando se anda sempre com tanta fome, só um
verdadeiro adulto poderia ter tomado uma decisão tão difícil.
— Então não ficou zangada comigo, mãe? Não lhe parece que
sou nova demais para ir ao campo tentar arranjar legumes?
Mas a mãe apenas acariciou o cabelo de Ana e olhou-a durante
muito tempo, sorrindo.
Quando chegou a casa, Ana contou à mãe o que se tinha
passado. Teve medo de que a mãe lhe ralhasse por chegar tarde e por
só trazer algumas beterrabas. Quem sabe se até se zangaria por não ter
ficado com o ovo…
E montou outra vez na bicicleta. Queria ir para longe daquela
casa, da galinha pedrês e do ovo maravilhoso.
— Não faz mal — disse Ana.
pores no cesto. Mas não temos quase nada. Eu… eu não tenho nada
para te dar.
25
Diligência
as principais vítimas.
grave confusão, das quais os mais jovens são
conceito de liberdade, tem criado situações de
tem vindo a instalar-se, a par de um falso
tempo atrás. A mentalidade permissiva que
delicadeza, que ainda prevaleciam há algum
linguagem tomaram o lugar da correcção e da
A falta de compostura e as liberdades de
Delicadeza
em vez de ajudar a crescer.
sociedade materialista, que ilude e explora,
aprender tornam-se presas fáceis de uma
para a miséria. Aqueles que nada querem
emocionalmente. A ignorância é caminho
sobre a realidade e crescer intelectual e
que é poder-se estudar, descobrir coisas novas
assim se venha a dar mais valor ao privilégio
mundo que não podem ir à escola. Talvez
muitas crianças e adolescentes de todo o
É bom pensar-se de vez em quando nas
Diligência
125
No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a
comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma greve
de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra
A princípio, comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do
que palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam
bons negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de
palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham
clientes uma ou duas vezes por ano, por alturas de grandes zangas.
Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de-rosa e
lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa
vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz favor… Os
vendedores de palavras cinzentas vendiam sobretudo Cabeça de alho
chocho, Não me chateies, Cala o bico…
Seria obra do Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do
picante e do amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se
porquê, preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas.
palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas, como Obrigado, Faça
favor, Se não se importa, És tão importante para mim. Palavras tão
doces que são como mel no coração.
Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de
repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta. O que são
As palavras cor-de-rosa e
as palavras cinzentas
126
E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno gracejo, à mais
insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico, Vai ver se chove,
És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por adiante!
Como receavam ficar sem provisões, como costuma acontecer
em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer conservas de
palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias, empilharam-nas nos
armários da cozinha, nos guarda-fatos, debaixo das camas.
Fechado por morte do proprietário, Liquidação total, Quinze
palavras cor-de-rosa pelo preço de uma. Mas, mesmo a preços
módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas de palavras cinzentas,
essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem conhecido, as palavras
feias são contagiosas. Se no recreio te lembrares de lançar uma,
receberás dez em troca! Abriram-se mesmo lojas especializadas em
palavras feias, risos grosseiros, insultos horríveis. E os vendedores
cinzentos trabalhavam dia e noite para descobrirem jóias raras, as
palavras mais horríveis e mais maldosas!
As lojas cor-de-rosa fechavam umas atrás das outras. Passa-se,
Os vendedores de palavras cor-de-rosa, desolados, já não sabiam
onde as armazenar.
— Para o diabo com as palavras doces — diziam os homens. —
São caras e não trazem nenhum benefício.
freguesia, Está bem arranjado, homem, Obrigado pelos seus serviços
mas está despedido. Havia guerras entre famílias, divórcios, casais que
já não se entendiam. Invejas entre irmãos, zangas… Comprava-se
vários Já não gosto de ti, Acabou tudo. Nas lojas de palavras cor-de-rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de ti, ficavam por vender.
29
Deitado na sua esteira, Chico não conseguia adormecer.
Entendia tão bem a cabrinha! O pai dele arranjara trabalho longe, lá na
cidade, e só podia vir a casa de quinze em quinze dias. Às vezes, para
fazer mais algum dinheiro, ficava fora mais tempo. Quando chegava a
hora de regressar à cidade, o pai dizia-lhe que se portasse como o chefe
da casa e que devia obedecer à mãe. Como se fosse preciso dizer-lho!
Ele bem sabia que a mãe, com o trabalho na fazenda do Sr. Macedo,
Na primeira noite, Flor berrou sempre a chamar pela mãe e nem
deixava que Kenchú tentasse acalmá-la com lambedelas carinhosas.
Chico gosta particularmente de Flor. Foi ele quem lhe pôs o
nome, no mesmo dia em que ela chegou à palhota, apertada nos braços
fortes do pai, ainda mal se segurando nas patinhas frágeis, e a berrar
pela mãe. Fora um vizinho que lha dera, como forma de pagar a ajuda
no arranjo da cabana.
Como quase todos os seus companheiros, Chico levanta-se bem
cedinho pela manhã. Ajuda a mãe a tratar das duas cabrinhas, Flor e
Kenchú, e só depois parte para a escola.
Chico vive numa aldeia perdida num dos muitos países de
África. Podia ser em Angola, no Senegal ou no Ruanda. Podia chamar-se Chico, Abuabar ou N’gouda. Há muitos Chicos em África. Chicos
de olhos brilhantes e pés descalços, com a cabeça povoada de sonhos,
com vontade de ter um futuro para viver.
Chico
127
despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam bebés. A
Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num
período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a
— Que calor horrível! Bolas! Kekalôr!
Em vez disso, ouvia-se agora:
— Está bom tempo! Que maravilha! Obrigado, amigo Sol… Oh,
meu Deus, como gosto do Sol…
À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo
das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a brilhar.
Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de braços abertos:
aselha, vai mas é plantar batatas!
Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e
enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes das
férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de palavras
cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na auto-estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos: Ó
o presente que eu mais receava.
— Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de facto,
E, quando se abriam as prendas, era um concerto de gemidos:
— Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito pouca
saúde!
Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos.
Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se
uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos, para
se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se sumo de
peúgas pretas, no meio de gracejos do género:
30
Só depois de ordenhadas as cabras e de lhes ter deitado de
comer, é que Chico saía para a escola.
Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o
128
Os pais estranharam a mudança mas, não sabiam a que atribuí-la. Era um segredo partilhado por Chico, Flor e Kenchú.
Ah, como ele compreendia a cabrinha malhada com a
manchinha branca na testa! Esgueirou-se para fora da palhota sem
acordar os pais e os irmãos que dormiam, saiu para a noite quente e
húmida e entrou na cabana dos animais. Passou a noite inteira deitado
ao lado de Flor, que se acalmou e acabou por adormecer com a cabeça
poisada no peito de Chico. No dia seguinte, já aceitou de bom grado o
leite que Kenchú lhe oferecia.
Em certas ocasiões, as saudades eram tantas que acabavam por
conseguir irromper para fora, e duas lágrimas teimosas, quentes e
grossas, deslizavam suavemente pela face castanha-escura de Chico.
— Pára com isso imediatamente! — gemeu a nuvem. — Se não,
vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm habitualmente a
lágrima ao canto do olho.)
O rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no
bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A nuvem
olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via ninguém
chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos estavam gelados,
todos os corações estavam frios.
Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara.
— Oh, oh! — exclamou a nuvem-chefe, que se tinha apoderado
do céu cinzento. — Olhem só para isto… Um fedelho ridículo que vem
à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a ninguém! Desde que as
palavras cinzentas tomaram o poder, somos nós, as nuvens
pardacentas, que somos os chefes.
— Quando tiveres muitas saudades minhas, apertas com força
esta pedrinha. A tua saudade vai passar para a minha pedra e eu vou
recebê-la e tu vais sentir-te acompanhado.
alguma vez vira, e colocou-lhe um na palma da mão.
das nuvens. Toc, toc, bateu.
— Venho à procura do Sol.
Sempre que o pai partia, Chico ficava triste o resto do dia, mas
depois isso passava. Quando a saudade lhe enchia o peito até cima e
parecia querer saltar-lhe pelos olhos, apertava com muita força na mão
o seixo que o pai lhe dera naquela tarde em que pescara o maior peixe
da sua vida. O pai explicara-lhe que tinha arranjado na cidade um bom
trabalho, mas que ia deixar de poder vê-los todos os dias. Depois,
metera a mão na água e tirara dois seixos, os mais bonitos que o filho
com os gémeos de três anos e Linita, de oito, não podia fazer tudo e
precisava da ajuda dele.
No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria
habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter ficado
uma palavra cor-de-rosa meio gelada. “Eu”, dizia Pedro, “não quero
um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz bom dia, nem
obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se encontro o Sol.” O
rapazinho caminhou durante muito tempo, escalou colinas geladas,
pequenas e grandes montanhas, vulcões extintos. Por fim, ao cabo de
meses e meses de árdua caminhada, chegou exausto e transido à casa
Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de-rosa!
De repente, nos engarrafamentos, as pessoas começaram a
desdobrar os papelinhos cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo
129
31
Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso.
O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa: Por
favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado, Gosto muito de ti,
Amor da minha vida, Se não se importa, etc. O rapazinho meteu-as nos
bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado. Todas as que ele
conseguisse levar.
— Vou, a título de experiência — resmungou o Sol. — Mas
atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu
regresso será mais agradável.
— Precisas de voltar — insistiu Pedro.
E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando
naquela “época cor-de-rosa”.
cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos rimos,
nunca dizemos palavras delicadas. Precisas de voltar.
— Bom dia — cumprimentou. — Vim buscar-te. Tudo se tornou
Já no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção da
pequena bola amarela.
Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola de bilhar perdida na
imensidão do azul: era o Sol, que estava a desaparecer por causa dos
maus-tratos.
o Sol.
— Olha — disse-lhe. — Aquela bolinha amarela ali em baixo é
ajudar.
atafulhada de caixas, sentaram-se, de pernas cruzadas no chão, e o
professor começou a abrir as caixas.
Quando a velha furgoneta partiu, deixando a velha escola
Chico, Djimbu e Mkembé estugaram o passo. Que confusão!
Ao chegar à escola, Chico notou um alvoroço desacostumado.
Alguns homens em manga de camisa transportavam caixas para dentro
do edifício da escola. Pareciam todos muito bem-dispostos, e até o
Palhinhas, o cão acastanhado do professor, soltava latidos alegres e
abanava a cauda, bem disposto.
De tempos a tempos, sempre que o Sr. Macedo vinha à casa
grande, Chico ficava parado no caminho a observar o grande carro
branco e brilhante, tão brilhante que, quando o sol cintilava nos vidros,
até fazia doer os olhos. E assim ficava perdido no seu segredo.
era de um dia poder ter um carro como o do Sr. Macedo, o dono da
fazenda onde a mãe às vezes ia trabalhar. Mas esse era o seu maior
segredo e ainda não se atrevera a contar a ninguém, nem mesmo a Flor.
Claro que, se o contasse a Djimbu ou a Mkembé, eles também iam
querer, e deixava de ser um sonho só dele…
Ir à escola era do que Chico mais gostava. O seu maior sonho, já
segredado para dentro das orelhas de Flor e contado ao pai, durante
uma tarde de pesca, era, um dia, poder ensinar outros meninos como
ele a ler e a escrever. E haveria de trabalhar tanto, que iria até
conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta novinha para os irmãos,
igual a uma que vira um dia. Bem, do que ele gostava mesmo, mesmo,
À saída da aldeia encontrava-se com Djimbu e Mkembé, os seus
dois melhores amigos, e juntos faziam o caminho até à escola da
Missão.
130
Sophie Carquain
Petites histoires pour devenir grand
Paris, Albin Michel, 2003
Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta
felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas tinham. E,
quando alguma se lembrava de vir meter o nariz, garanto-vos que não
ficava por muito tempo.
O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua nuvem
cor-de-rosa. E, juro-te, os vendedores de palavras cor-de-rosa
começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas
especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em delicadeza,
em cortesia, em civismo… Foi como mel no coração.
Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas festas da
passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de saúde.
Em casa, as crianças voltaram a usar palavras cor-de-rosa:
Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz de propósito…
jogo…
Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos simpáticos
e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que podes entrar no
tão bonito, não acha?, Pode ir à minha frente, não tenho pressa
nenhuma…
32
histórias de cor e poder contá-las à noite, em volta do lume, à mãe, ao
pai e aos irmãozinhos, que o escutavam com os grandes olhos
castanhos muito abertos de espanto e com a respiração suspensa. Se
Livros! Chico era capaz de ficar horas a fio mergulhado e
perdido nas páginas de um livro. Ainda não tinha lido muitos. Só três
dos meros vinte que constituíam a magra biblioteca da escola. Podia
ser muito reduzida, mas os meninos achavam-se importantes por os
terem e manuseavam-nos carinhosamente e com muito cuidado. Chico
tinha lido os três mesmo até ao fim, e tantas, tantas vezes, até saber as
Quando o professor o abriu, o rosto iluminou-se num sorriso.
Muito lentamente, como um mágico que tira um coelho da cartola, o
professor foi erguendo o braço. As crianças, mortas de curiosidade e
com os olhos a brilhar, sustinham a respiração. O professor mostrou…
livros!! Livros com imagens cheias de cor! Chico sentiu o coração a
bater mais rápido. Parecia-lhe que estava a viver um sonho e só tinha
medo de que a mãe o acordasse naquele momento.
de lápis, lápis de cor – que bonitas as cores! – canetas – eram tão
poucas as que lhes chegavam à escola! – borrachas que apagavam o
que o lápis escrevia. Mas o melhor de tudo vinha no último caixote…
O professor continuou a retirar lápis, lápis novos e usados, restos
Era uma encomenda vinda da Europa com uma oferta de
material para a escola. Perante o olhar fascinado das crianças, o
professor foi retirando, com largos gestos teatrais mas sinceros, folhas
soltas, restos de cadernos, cadernos e blocos novos e usados. Chico
nem queria acreditar! Aquele material podia não ser novo, mas para
eles isso não tinha a menor importância e era-lhes muitíssimo útil.
Quem o enviara parecia adivinhar exactamente aquilo de que estavam
a precisar!
33
encarregado da fábrica lia as cartas aos empregados – numa altura em
que ele esteve muito tempo sem vir a casa. Não, desta vez ia estar com
trinta olhos. Não ia ceder à tentação de olhar, nem que passassem
Que tristeza! Ficou tão furioso que até deu pontapés no velho
embondeiro que se erguia à saída da cabana. Porque é que o Sr.
Macedo tinha de aparecer precisamente naquele momento? Por causa
daquele carro enfeitiçado, já não teve lápis para escrever ao pai – o
Chico pegou no seu, como quem recebe em mãos uma relíquia
ou um tesouro. Não, hoje ia ter muito cuidado. Da última vez que
preparara o lápis, no preciso momento em que estava a cortar a cana, o
Sr. Macedo apareceu no seu carro brilhante, a apitar a uma gazela que
se atravessara no caminho. Por momentos, Chico esqueceu tudo o que
estava a fazer, imaginando-se sentado nos bancos macios, por trás do
volante, com o vento a acariciar-lhe a face, e a apitar a impalas, zebras
e macacos. Zás! Deixou cair o braço e cortou o bico do lápis, que, se já
era pequeno, ainda mais reduzido ficou.
aproveitá-lo até ao fim. Tinham autorização para levar o material para
casa, mas ninguém o levava com medo de perder as preciosas folhas de
papel ou os lápis.
Os pensamentos de Chico foram interrompidos pela passagem
do professor. Já tinha partido os lápis em pedaços mais pequeninos,
que distribuía naquele momento pelos alunos. Cada um ia encaixar o
seu pedacinho de lápis numa caninha ou num pau para conseguir
Chico pudesse, levaria um daqueles para casa para lhos ler. Ficariam
certamente ainda mais orgulhosos dele. Se algum dia conseguisse
ganhar dinheiro, haveria de poupar até juntar o suficiente para comprar
um grande livro de histórias ou de aventuras para ler aos irmãos. O
maior e o mais grosso que houvesse à venda.
131
Coragem
34
I. Birnbaum
Ao regressar a casa, Chico apertava com força o seixinho do rio.
Tinha tantas novidades para contar em casa! E tanta coisa para
escrever ao pai! Queria dizer-lhe que, da próxima vez que viesse a
casa, ele, Chico, iria ter novas histórias para contar à noite, junto ao
fogo.
mesmo ao lado dele dois carros a apitar!
35
Paciência
sinal de cobardia maltratar os mais fracos.
amadurecimento. É, em contrapartida, um
desfavoráveis, são sempre oportunidades de
adaptar às circunstâncias, que, ainda que
enfrentar os obstáculos com serenidade e de se
É um sinal de coragem ser-se capaz de
Coragem
perder-se o autodomínio por causa delas.
contrariedades são inevitáveis e é um erro
pôr em prática diariamente, porque as
uma virtude muito importante, que se deve
quais todos saem prejudicados. A paciência é
raciocínio. Cria situações insustentáveis, das
A cólera obscurece a mente e impede o
Paciência
135
prazer e facilidade tem Konoba em vencê-lo, porque o seu alimento
— Esse monstro — disse — é tão gigantesco que escurece o dia
quando abre as asas. Pode, no entanto, tornar-se tão pequeno como um
punho de mulher, mas então fica tão pesado que os baobás se enterram
no chão com o seu peso. Sabe ser belo, se quiser, medonho, se o
desejar. É invencível. Quanto mais poderoso é quem o enfrenta, maior
Ora, uma noite, quando festejava uma jornada de caça carnívora,
chegou à aldeia um viajante curvado sobre um cajado tão gasto pelos
caminhos que mais parecia a bengala de um anão. Este venerável
vagabundo, depois de saciado com um gole de água e alimentado com
um pedaço de carne, sentou-se sob a árvore da palavra e pôs-se a
contar as maravilhas que encontrara ao longo da sua vida errante por
países longínquos. Aconteceu, assim, falar de um certo pássaro,
Konoba, que vivia numa floresta montanhosa para lá dos territórios
comuns dos homens.
«aquele a quem nada podia vencer». Era assim que lhe chamavam,
tanto entre os homens como entre os animais da terra e os espíritos
celestes.
Kassa Kena Gananina foi antigamente o herói mais poderoso,
mais temido e mais amado do povo mandinga. Um só volteio da sua
arma podia matar vinte antílopes. Um só rasgo de cólera nos olhos
assustava tanto as flechas inimigas que todas caíam a seus pés como
para lhe pedirem compaixão. Kassa Kena Gananina era, em verdade,
A pena pesada
136
um fruto fresco. Acende em ti a ira e a cólera para que eu me sacie
com elas!
— Homem poderoso e belo, eu te saúdo — disse o dragão
celeste com voz aguda. — A tua força parece-me tão saborosa como
Kassa Kena Gananina, nesse caminho enevoado, andou até ao
meio-dia sem encontrar caça ou caçador. Chegado a uma clareira, o sol
desapareceu repentinamente e à sua volta fez-se uma grande penumbra.
O céu encheu-se de um murmúrio semelhante ao que atravessa a terra
quando as suas entranhas se movem. O herói ergueu a fronte. Viu o
pássaro. Estava imóvel, à altura de uma árvore. A cabeça de bico
amarelo e curvo pendia entre as asas, tão vastas como o céu visível. Os
olhos eram parecidos com duas luas de cores variadas. As garras eram
sabres curvos.
metida nos ombros, sem descansar. Na madrugada do oitavo dia,
chegou à última aldeia antes da terra do Konoba. Perguntou onde vivia
este inimigo dos homens que desejava combater. Um velhote,
tremendo de susto só de ouvir o nome do monstro, descreveu-lhe o
caminho que desembocava na floresta.
Caminhou sete dias e sete noites, com passos largos e a cabeça
Kassa Kena Gananina, ouvindo estas palavras, franziu o
sobrolho e baixou a cabeça. Os companheiros, vendo-o assim
pensativo, desafiaram-no com insistência a sobreviver a um combate
leal contra um monstro daquela espécie. Os elogios depressa
aqueceram o coração do herói. Levantou-se, foi a casa buscar a arma e,
sem dizer palavra, saiu em direcção a essa montanha onde vivia o
prodigioso dragão.
preferido é a própria força dos seus inimigos.
Debruçou-se, soprou e a pena voou. Depois agarrou no pássaro
137
39
que sessenta e cinco guerreiros do meu clã venham tirar-te essa coisa
da nuca?
— O que te passou pela cabeça — disse ela — para precisares
Depois de ter gritado, pedido ajuda e, finalmente gemido, sem
forças, durante muito tempo, veio o crepúsculo e com ele apareceu ao
fundo da clareira uma mulher de idade. Trazia às costas uma criança
pequena de pernas roliças, mas já em idade de andar. Kassa Kena
Gananina chamou-a, agitando a mão sobre a erva e, com voz
moribunda, pediu-lhe que fosse buscar todos os homens da aldeia para
que o ajudassem a desfazer-se daquela pena tão pesada como um
monte.
no ar calmo sobre a sua cabeça. Quis agarrá-la, mas ela escapou-se-lhe
e pousou-lhe na nuca. Então, o herói curvou as costas, titubeou, caiu de
joelhos e deixou-se ir até enterrar o queixo na terra, coberto por esse
fardo insuportável. Tentou arrancar essa pena muito pesada do cabelo,
onde estava presa. Não o conseguiu e ficou grotescamente ajoelhado,
resmungando e debatendo-se como uma raposa apanhada na
armadilha.
Viu uma pena, a última liberta das asas evaporadas balancear-se
Continuei a olear o arado. Ele ficou especado e, em seguida,
baixou a moca. Quando o fez, disse-lhe:
ʊ Se precisa assim tanto de ajuda, porque não o diz? Ninguém
precisa de se magoar.
Compreendi imediatamente que não podia fugir nem lutar com
ele. Com a moca quase em cima da minha cabeça, não teria qualquer
hipótese. Por isso, fiz o que ele menos esperava. Olhei-o nos olhos.
ʊ Preciso muito de dinheiro e vou levar tudo o que você tiver.
Parou a poucos metros de mim e as primeiras palavras que disse
foram:
Um grupo de condenados trabalhava numa conduta de esgotos
numa das extremidades do campo. Parei perto do matagal que rodeava
aquele lado do campo e ajoelhei-me para arranjar e olear o arado.
Enquanto deitava óleo, ouvi um ruído que me fez olhar para cima. Dos
arbustos surgiu um homem. Vestia a farda às riscas pretas e brancas
dos condenados. Carregava aos ombros uma moca pesada que parecia
o cabo de uma ferramenta.
Esta história começa em 1947. Era um belo dia de Primavera e
encontrava-me na Florida a lavrar um campo para um amigo. Fora
objector de consciência durante a Segunda Guerra Mundial e estava
muito feliz por voltar a casa e ao trabalho do campo, a que já me
dedicava antes da guerra.
Quase me bateu
Kassa Kena Gananina estendeu o punho armado à face trocista,
saltou para um rochedo, fez voltear a sua massa de ferro. No primeiro
volteio vazou o olho esquerdo do pássaro Konoba, no segundo cegou o
olho direito, que chorou lágrimas de fogo. Então, num ruído
ensurdecedor de asas, o monstro encolheu e num instante se reduziu a
uma bola negra, que num longo silvo desceu do céu e caiu tão
pesadamente que a terra tremeu e abriu fendas. Kassa Kena Gananina,
de cabeça erguida para o grande Sol, soltou um grito de triunfo.
138
Henri Gougaud
A Árvore dos Tesouros
Lisboa, Gradiva, 1998
Kassa Kena Gananina beijou as mãos do sábio, e a partir desse
dia entregou-se à conquista infinita de um bem mais precioso do que
toda a força: a inocência.
— Para quem não sabe nada do pássaro Konoba, uma pena é
uma pena — balbuciou. — Boa noite, senhores.
Kassa Kena Gananina ficou durante muito tempo sentado no
chão, completamente estupefacto e desconcertado. Depois voltou à sua
aldeia, onde contou a aventura à sombra da Árvore da Palavra. Quando
disse como tinha sido liberto, fez-se um silêncio perplexo na
assembleia. Então, um ancião sonolento bocejou ruidosamente e disse,
levantando-se para se ir deitar:
Konoba, reduzido a uma bola no solo fendido, e estendeu-o à criança,
que o agarrou e brincou com ele, rindo, entre as suas mãos ágeis. Os
dois afastaram-se na paz do dia que acabava.
40
ajudar!” Por isso, um pouco contra a vontade, pensei no que poderia
Tive a forte tentação de dar meia volta em direcção a casa, mas
as palavras surgiram-me muito claras: “Não, Calhoun! Tens de parar e
A segunda parte desta história tem lugar muitos anos mais tarde.
Pusera de parte a agricultura e tornara-me Director do Clube de
Rapazes da minha terra: Jacksonville, na Florida. Uma noite, vinha de
uma reunião, ansioso por chegar a casa. Mesmo antes de um
cruzamento, dois carros chocaram de frente. À medida que me
aproximava, vi os dois condutores, aparentemente sem ferimentos,
saírem dos carros e correrem um para o outro, de punhos em riste. Um
deles caiu por terra e o outro, furioso, começou a pontapeá-lo e a bater-lhe com uma chave-inglesa.
liguei o tractor e continuei o trabalho. Sempre que me dirigia para
aquele lado do campo onde se encontravam os condenados, tentava ver
se o homem estava com eles, mas era demasiado longe para ter a
certeza. Supus que tinha sido a última vez que o vira, mas enganava-me.
Depois de dar graças pela força e pela orientação que recebera,
Deu meia volta e, sem dizer palavra, desapareceu no meio dos
arbustos.
ʊ Ganhou ʊ assentiu. ʊ Vou voltar.
Respondeu que sim, mas que os capatazes eram maus. Falámos
mais alguns minutos enquanto eu oleava e arranjava o arado. De
repente, deixou cair a moca.
ʊ Com que então vai fugir? Tem consciência de que vai ser um
homem procurado?
41
para me dizer que um antigo doente a tinha contactado. Chamava-se
George Harris e tinha-me reconhecido no hospital. Assegurei-lhe que
não conhecia nenhum George Harris, mas ele tinha-lhe dito que era o
A história também não termina aqui. Muitos anos mais tarde,
estava a fazer voluntariado no hospital psiquiátrico da região, ajudando
nas actividades lúdicas, quando, um dia, uma funcionária telefonou
A polícia chegou rapidamente. Eu continuava a agarrar o
homem que se debatia e me chamava nomes nada elogiosos. O outro
continuava inconsciente. A polícia trouxe algemas e estavam quase a
algemar-me quando expliquei o que se passara. Agradeceram o meu
gesto e deixaram-me ir para casa, para junto da minha mulher, que
entretanto se perguntava por que razão demorava eu tanto. Depois de
me ter vindo embora, dei-me conta de que, naquela noite escura, não
tinha olhado para a cara de nenhum dos homens, o que lamentei.
agarrei-o pelos braços, puxando-os para os lados. Ofereceu resistência
mas eu mantive-me firme. Tropeçámos no passeio e caímos perto do
outro homem inconsciente. Continuei a fazer força. Não lhe bati nem
lhe provoquei qualquer ferimento. Em breve, apareceu um homem da
estação de serviço e ofereceu ajuda. Pedi-lhe que chamasse a polícia.
Saltei para fora do carro e atravessei o curto espaço entre mim e
os dois homens: um inconsciente no passeio, o outro persistindo no seu
ataque enraivecido. Pus-me atrás deste, iluminado apenas pela ténue
luz de uma estação de serviço próxima. Antes que ele se apercebesse,
De novo, a pequena voz interior falou: “És forte e os teus
músculos não te foram dados só para o desporto. Age depressa!”
fazer: não havia tempo para ir à procura de um telefone e chamar a
polícia. O homem morreria rapidamente se os pontapés e os murros
não parassem.
139
Prudência
42
-me pessoalmente, antes de morrer. Voltou para o carro e partiu.
Contou-me que estudara e se tornara professor. Tinha mulher e
dois filhos. Agora estava bastante doente e queria ver-me e agradecer-
ʊ O meu nome é George Harris.
ʊ Sim ʊ disse. ʊ Quem é o senhor?
ʊ É Cal Geiger, não é?
Nunca respondeu às minhas cartas, mas, um dia, quando estava a
construir uma chaminé na Carolina do Norte, apareceu um carro com
matrícula da Virgínia. O condutor dirigiu-se a mim e perguntou:
Pensei que seria este o final da história, mas não. Embora tenha
mudado muitas vezes de casa, George Harris não perdeu as minhas
coordenadas. Escrevia a dizer-me que estava bem e mandou-me vários
presentes – um belo banco de carpinteiro, um par de botas em couro e
um relógio Hamilton, da colecção “Railway Special”. Respondi-lhe
sempre, a agradecer-lhe, para o apartado que vinha nas encomendas.
dela. Quando abrimos a encomenda, vimos um relógio Bulova que,
ainda hoje, vinte anos depois, funciona perfeitamente.
Depois disso, sofrera um esgotamento cerebral e ficara no
hospital psiquiátrico durante algum tempo. Quando saiu, foi trabalhar e
começou a poupar dinheiro. Agora, queria enviar-me um presente pelo
correio. A funcionária tentou convencê-lo a vir trazê-lo pessoalmente,
mas ele não quis. Por isso, uns dias mais tarde, passei pelo escritório
condenado fugitivo que me ameaçara outrora. E que era também o
condutor que batera no outro homem e que o teria morto se eu não o
tivesse feito parar. Se não tivesse sido eu, ele ter-se-ia tornado um
assassino.
43
M. Clark; E. Briggs; C. Passmore
Lighting candles in the dark
Philadelphia, FGC, 2001
Calhoun Geiger
Sei que o que se diz e o que se faz podem fazer a diferença. Fiz a
diferença para George Harris, mas também fiz a diferença para mim
próprio. Quando penso em toda esta história e no que significou para
mim, sinto uma enorme gratidão por ter conhecido George Harris.
precipitação
pode
dar
maus
marcas que não se podem apagar.
certos actos que, depois de praticados, deixam
de se vir a lamentar as consequências de
de agir, de contrário, há fortes probabilidades
resultados. É sempre preferível pensar antes
A
Prudência
45
Responsabilidade
lavar.
143
Sam tem pele escura, sobrancelhas espessas, cabelo e barba
Bunny, o coelho, está a ser perseguido por Sam.
Entretanto, na sala, passam-se coisas emocionantes.
Regressa, descansada, à cozinha e mete a loiça na máquina de
“Ah, o Bug’s Bunny! Ainda bem que há programas tão
simpáticos para as crianças”, pensa a Sr.ª Carolina.
Vê então um coelho engraçado passar aos saltinhos, um porquito
que agita o chapéu e faz cabriolas.
Quando está mau tempo, descalça-se antes de entrar, sem que
seja preciso dizer-lhe. Não, a Sr.ª Carolina não tem nada contra o facto
de José vir ver televisão, absolutamente nada. Por vezes, quando as
crianças estão sentadas na sala semi-obscura em frente do aparelho, a
Sr.ª Carolina entra sem fazer barulho e dá uma olhadela ao ecrã.
vê-lo ali sentado em frente ao aparelho, com o rosto delgado e sério e
as mãos sobre os joelhos irregulares.
Os pais do José não têm televisão. Porém, há certos programas
que ele não gostaria de perder. Por isso, duas ou três vezes por semana,
lá se senta ele frente à televisão, em casa de Marco, o amigo que mora
no prédio defronte. A mãe de Marco, a Sr.ª Carolina, não tem nada
contra as visitas de José. É um rapazinho calmo, poder-se-ia dizer, ao
Marco brinca ao Bug’s Bunny
144
Puummmm!
Miac! Miac!
Mas o coelho não é preguiçoso. Enche um melão com dinamite
e consegue pô-lo na mesa do almoço. Sam parece ser não só mau mas
também míope. Já está a levar o melão à boca rodeada de barba
espessa.
O pobre do coelho quase não sobrevive a isto. Mas o fumo da
pólvora já se dissipou. Bunny ainda cá está, são como um pêro, e
malha com um cacete em cima de Sam. Sam escapa-se, vai buscar uma
faca de cabo comprido e quer reduzir Bunny a pó.
Pam!
Boing!
Pum!
O mau puxa de duas pistolas e aponta-as à inocente cabeça do
coelho Bunny. O grande malandro! E o coelho que só lhe tinha
arreganhado amigavelmente os dentes da frente!
É que a acção já começou.
Por acaso, Marco até viu no jornal uma fotografia de Amadeu,
assaltante de bancos. Tinha uma cara simpática, cara lisa sem barba, e
vestia um fato normal com estampados de espinhas de peixe. Mas
agora Marco não pensa nisso. Não tem tempo para pensar.
“Ele tem mesmo um aspecto de mau”, pensa Marco. “Pele
escura e todo desgrenhado. Eu era capaz de reconhecer imediatamente
um mau na rua.”
desgrenhados.
índole.
atrair para as suas vidas problemas de toda a
dificilmente poderão viver em sociedade sem
liberdade, não respeitam os direitos dos outros
Calcam-se com os pés, fazem-se explodir.
Centenas, milhares, que dão tiros uns aos outros.
145
Um bando inteiro de maus, um bando de coelhos, muitos diabos
pequeninos estão agora dentro dele.
Quando, no fim do programa, carrega no botão e apaga o ecrã,
as imagens continuam a faiscar algures dentro dele.
José assusta-se, como se fosse sempre a primeira vez. Está
imóvel, de olhos fixos no ecrã. Marco, pelo contrário, ri-se às
gargalhadas. Há muito que se habituou aos divertidos jogos assassinos.
Um pouco mais tarde, é enfiado numa panela de água a ferver.
Engraçado a valer. É de morrer a rir como se matam um ao outro!
responsável. Aqueles que, no exercício da sua
não é acompanhada por uma atitude atenta e
Pronto! Agora é que o mau vai ter uma surpresa. O coelho dá-lhe uma salsicha de dinamite para comer. À conta dessa, o coelho
acaba dentro de uma máquina de lavar roupa em funcionamento.
Cá vem ele a arrastar-se de debaixo da porta, mais espalmado do
que um mata-moscas.
Errado, queridas crianças!
Agora é que o apanhou de vez.
que esta se torna um conceito vazio quando
alegam o direito à liberdade, sem perceberem
responsabilidade de muitos jovens, que
É de lamentar a falta de sentido de
Responsabilidade
No momento seguinte, já vai outra vez, são como um pêro, a
correr atrás do coelho. Uma perseguição emocionante. Sam tramou
uma coisa infame: e lá vai – socorro! – uma porta de chumbo a cair
sobre Bunny.
Chuviscam estrelas. Do mau, resta apenas uma nuvem de
pólvora. Mas… um, dois, três… cá está ele, chamuscado e careca
como um frango depenado.
146
Sam riu maldosamente e deu-lhe com o punho na cara.
— Então vou mostrar-te.
— Bunny, estás a ver o animalzinho no meu punho? — Bunny
abanou a cabeça e, curioso, inclinou-se para ver.
E, de uma vez, Sam perguntou:
Então o coelho bateu-lhe duas vezes com o martelo na cabeça.
— Dois — respondeu Sam.
— Um ou dois quadrados de açúcar?
Bunny tinha uma chávena de chá na mão e perguntou:
Marco ainda está a pensar no Bug’s Bunny. Lembra-se agora de
cenas que viu na última semana, ou na penúltima, e que achou mesmo
engraçadas.
Marco e José sentam-se no muro que separa o local cimentado
dos arbustos de jardim.
entre os caixotes do lixo, a treinar-se com as andas.
O que mais gostava de fazer agora era qualquer coisa maluca.
Partir um vidro, destruir uma bicicleta ou, pelo menos, meter dentro
uma grade da cave. Só que o porteiro, no fim do trabalho, deita-se
sempre por baixo da janela da cozinha, a apreciar o ar morno do fim da
tarde, como ele próprio costuma dizer. O seu filho Hugo está no pátio,
Não o deixam em paz. Vão todos atrás de Marco, quando este
desce as escadas com José e atravessa o pátio nas traseiras do prédio.
Ralam, amordaçam.
Matam à pancada, esquartejam.
49
No fim da tarefa, a velhota agradeceu-lhe o trabalho e deu-lhe
Ele, que tinha de fazer de conta que era um bom rapazinho, não
teve outro remédio. Passou o resto do dia a acartar pedras, as pedras
que ele lançara do alto do monte.
— Bom rapazinho, importas-te de me ajudar a consertar o muro?
O rapaz ficou de boca aberta. E mais sem fala ficou quando a
velhinha lhe propôs:
— Foi uma bênção que me caiu do céu — dizia a velhinha. —
Precisava, há que tempos, de consertar o muro do quintal, mas não
tinha forças para trazer tantas pedras. Se não fosse esta avalanche...
No fim do seu feito, já cansado, aproximou-se da casa da
velhinha, para ver de perto os resultados da sua proeza. Andava a
velhinha a recolher as pedras, espalhadas pelo quintal.
uma pedreira que havia perto e pôs-se a atirar pedras e a rebolar
pedregulhos, que iam cair no quintal da velhota. Para o que lhe havia
de dar!?
Um dia, por maldade, deu-lhe na veneta atormentar uma pobre
velhota, que vivia numa casinha pobre, à beira do povoado. Foi para
Mas emendou-se. Eu conto como foi.
Era uma vez um rapaz bravio que gostava de pregar partidas e
fazer matulices, só por embirração. Era muito antipático este rapaz.
Apenas um rapaz
Ninguém morre.
Ninguém fica mutilado.
Ninguém fica doente.
Nunca se vê sangue.
147
Marco não consegue entender. Era só uma brincadeira. Na série
de televisão que acabou de ver, fazem coisas muito piores uns aos
outros. E nunca há lágrimas.
Olha fixamente para a boca de José, que está puxada para o lado
de uma forma tão esquisita, como se José estivesse a rir. Mas José não
está a rir. Aperta os dentes convulsivamente. Por entre a fileira dos
dentes a respiração sai tumultuosa. O olho magoado deve doer-lhe
muito. Outro rapaz ter-se-ia atirado a Marco, mas José limitou-se a
virar na direcção de Marco o olho são, que agora também está muito
pequeno e a piscar. O olho acusa Marco. “Porquê?”, parece perguntar.
Marco, agora, está muito assustado.
pálpebra começa a nascer uma nódoa negra.
O riso explode como um balão de pastilha elástica. Ouve-se José
a gemer. A mão apalpa a sobrancelha, o sangue goteja. Por baixo da
— Poing! — grita Marco. Ao mesmo tempo, o punho fechado
aterra no olho direito de José.
José aproxima a cara muito perto e pestaneja, cansado.
— Não.
— Eh, Zé! — disse Marco de repente, estendendo-lhe o punho
fechado. — Consegues ver a pastilha elástica minúscula que está na
unha do meu polegar?
148
Jutta Modler (org.)
Frieden fängt zu Hause an
München, DTV Junior, 1989
Eveline Hasler
do muro. Pelo caminho, sentiu a mão de José. É quente, palpitante, e
acima dos nós dos dedos, está um pouco molhada pelas lágrimas que
enxugou.
— Anda — diz Marco, pegando na mão de José e afastando-o
— Então, até à próxima vez, meus queridos amigos. E
seeeeempre alegres!
— Bug’s Bunny, Bug’s Bunny! — grita o filho do porteiro, que
passa a correr junto ao muro e que apanhou as últimas palavras de
Marco. Pára no tapete, olha para o muro, puxa os lábios para a frente
para imitar um nariz a farejar e grunhe com uma voz grossa de porco:
— Só queria brincar ao Bug’s Bunny — diz Marco.
— Desculpa, José.
50
António Torrado
www.historiadodia.pt
já não é um venenoso rapazote. Nem rapazinho, nem rapazote. Apenas
um rapaz. Nem muito mau, nem muito bom. Como quase toda a gente,
aliás.
Sem que possa ser considerado um virtuoso rapazinho, também
Ora pois! Serviu-lhe de emenda. Mudou de intenções. Não posso
garantir se, dessa vez em diante, nunca mais pregou partidas. Um
diabinho não se transforma de repente num santinho. É exigir demais.
Mas, na verdade, deixou-se de brincadeiras tolas.
um grande boião de mel. O rapaz lá se foi, cansado e a lamber os
beiços, um tanto confundido. À noite, quando se deitou, estava cá com
uma dor nas costas, que não lhes digo nada! Mas regalado com o mel
que a velhinha lhe dera.
Solidariedade
149
Rectidão
51
Muitas pessoas deprimidas acabaram no
suicídio por não terem encontrado ninguém
capaz de se interessar pelos seus problemas e
de lhes incutir alguma esperança. O egoísmo,
associado à mecanicidade do dia-a-dia, não
permite a atenção ao outro, o gesto de
que convém atrai a desconfiança dos outros e
leva à solidão. Quem engana acabará por ser
enganado, porque quem semeia joio não pode
colher trigo. Nada é mais importante do que
uma consciência tranquila, embora o
caminho da verdade nem sempre seja fácil.
torna-se árida.
manifestação de afecto. Mas, sem isso, a vida
delicadeza, a palavra que encoraja, a
A ausência de diálogo leva à solidão.
Solidariedade
Adoptar o princípio de mentir sempre
Rectidão
55
Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que
— O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, com um
grande salto, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo.
Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar isso e já se ouvia o
barulho de vidros partidos: a última pedra de Matias tinha voado
direita à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou a olhá-la
petrificado.
As suas brincadeiras com as pedras já tinham causado
aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente
por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse
de uma importância vital!
Ricardo meneia a cabeça e murmura algo de ininteligível de
cada vez que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar
golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até em determinada
folha de um ramo. Ricardo já não suporta este hábito. É que Matias
tem tudo menos boa pontaria.
Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no final das aulas.
— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz
O Sr. Silva está furioso. O filho da vizinha, um bebé de apenas
dez dias, voltou a acordá-lo. Chora muito. E chora com muita força.
A chuva que caía há dias parara finalmente nessa tarde. Um
suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que
o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e
já não seria cancelado por causa do mau tempo.
153
Do lado de fora, a vizinha, com o bebé nos braços, sorri
embaraçada para o Sr. Silva.
Naquele instante, toca a campainha da porta.
— Ora ainda bem! — diz, satisfeito. O bebé deixara de chorar
de um momento para o outro.
Durante algum tempo, o Sr. Silva olha fixamente para a parede
que o separa da casa da vizinha. Depois, levanta-se de um salto e
atravessa a sala com o punho erguido. Enfurecido, bate na parede até a
mão lhe doer.
Hoje sente-se particularmente incomodado porque está
desiludido e de mau-humor. É o seu aniversário. Faz sessenta anos,
mas ninguém lhe deu os parabéns. Ninguém lhe mandou um postal. Na
caixa do correio só encontrou um prospecto de publicidade que
amarrotou e meteu de imediato no fogão.
A vizinha trouxe-a para casa há três dias, e há três dias que ela
começa a gritar de cada vez que o Sr. Silva quer fazer a sesta.
— Que criança horrível — resmunga, às voltas no sofá.
Depois do almoço, o Sr. Silva gosta de dormir uma horita, mas o
bebé do lado não o deixa.
Uma prenda diferente
O caminho para a verdade
154
— Fico contente por estar tudo bem com o senhor.
Pela fresta da porta, a vizinha acena com a cabeça.
— Claro! — diz o Sr. Silva.
— Ah, um ou outro, muito finos — diz a vizinha, recuando
devagar em direcção à sua porta. — Desculpe, agora tenho de ir dar-lhe de comer. Eu sigo as recomendações à risca, sabe.
— Oh... ela já tem cabelo!
O Sr. Silva tossica.
— Chama-se Catarina. O meu marido e eu estamos muito
felizes, porque era mesmo uma menina que queríamos.
— Tem dez dias e quatro horas — responde a vizinha.
— Ele é ainda muito novinho, não?
O Sr. Silva coça a barba rala, olha para a cara vermelha do
bebezinho e pergunta:
ajuda.
“Ela está a falar a sério” — pensa confuso. A vizinha ouviu o
bater dele mas percebeu mal: pensou que o vizinho estava a precisar de
— Porquê?
— Se eu precisava de alguma coisa? — suspira o Sr. Silva.
— Que tivesse caído ou que se sentisse mal e precisasse de
ajuda — disse de uma só vez. — Por isso, vinha ver se precisava de
alguma coisa.
— O quê? — pergunta o Sr. Silva de testa franzida.
— Desculpe — disse. — Eu pensei que...
56
Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça.
Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e,
desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia
aceitar uma injustiça daquelas. Mas dentro da casa, ninguém se moveu.
— É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo,
a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira,
na escola. Já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro,
fechando a porta com força.
Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Irado como estava,
nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente:
Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio.
Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para
arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias
perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em
Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça
baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos
pais de Ricardo.
“Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele
a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é
muito severo.”
Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos
mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou.
— Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que vou
levar-te já ao teu pai, e vais ver o que vai acontecer-te!
alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente,
furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto.
Matias
Com os meus cumprimentos
Espero pela resposta em frente da sua casa.
Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade, afinal,
consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela
e vou pagá-lo com a minha próxima semanada.
Caro Sr. Pinto,
57
Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta,
entregue por um estafeta motorizado. E, admirado, leu:
Matias entregou a carta, feliz.
— Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta
pode chegar ao destino em meia hora. Ex-cepcio-nal-mente!
O empregado olhou-o sorrindo e respondeu:
— E a carta é entregue agora mesmo?
— Chega e sobra, rapaz.
— Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a
cidade?
De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A
mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e
um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a
carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o
dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou:
“Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo
telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?”
155
Lene Mayer-Skumanz (Org.)
Hoffentlich bald
Wien, Herder Verlag, 1986
Em casa, o Sr. Silva anda de um lado para o outro
profundamente surpreendido. Ela está contente por estar tudo bem com
ele. Há uma pessoa que se preocupa com ele. Afinal não está tão só
como pensava. O Sr. Silva nem cabe em si de contente. Afinal, sempre
recebeu uma prenda de aniversário e, ainda por cima, bem bonita!
58
Jutta Modler (org.)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
Eva Rechlin
— Ora — resmungou Matias — não fales tanto, senão perdemos
também a segunda parte do jogo.
— Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste…
bem, nunca hei-de esquecer.
A resposta que o pai de Ricardo mandou a Matias pesava quase
40 kg e vinha a rir-se. Era o Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à
espera na soleira da porta, disse:
Discrição
157
Coerência
59
aqueles que são famosos têm mais valor do
que a generalidade das pessoas. Mas tudo não
passa de ilusão. Aqueles que têm verdadeiro
valor não são os que se evidenciam em
programas medíocres ou em espectáculos
que são uma coisa nas palavras e outra nos
actos, aqueles que mudam de acordo com as
conveniências do momento, acabam por
transformar a sua vida numa farsa, da qual
não sairão incólumes.
por tornar melhor o mundo em que vivem.
esforçam, de um modo muitas vezes anónimo,
desportivos alienantes, mas os que se
Nos dias de hoje, é comum pensar-se que
Discrição
Aqueles que prometem e não cumprem,
Coerência
63
Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros.
Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto
ou até muito mais que os alunos.
vida.
O quê? Português, francês. Hoje sei, acima de tudo, o amor da
A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo
antes, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles
rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua,
dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que
continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os
seus pacientes cavalos.
161
para a tolerância e por isso respeitava os direitos dos outros. À medida
O homem era pessoa de bem e defensor da paz. Não podia
aceitar a ideia de que alguém pudesse ser perseguido, torturado e morto
só por ter ideias políticas diferentes ou outra religião. Fora educado
Esta história é verdadeira e aconteceu poucos dias antes de
começar o Verão do ano de 1940. Ainda há muita gente viva que se
lembra bem desse homem e daquilo que ele fez, deixando de pensar
em si e pensando nos outros e na sua salvação. O homem era diplomata
e nascera no norte de Portugal. Chamava-se Aristides de Sousa
Mendes, era casado e tinha vários filhos. A sua carreira como cônsul
levou-o até à cidade francesa de Bordéus, onde lhe chegaram as
primeiras notícias do começo da Segunda Guerra Mundial quando as
tropas alemãs atacaram a Polónia e a Inglaterra se opôs a essa
agressão, em defesa da liberdade e da democracia, declarando que faria
frente, pelas armas, aos agressores.
que fora educado para obedecer às ordens dos seus superiores,
estivesse onde estivesse. Nunca lhe passara sequer pela cabeça a
possibilidade de um dia vir a infringir essa regra.
Era uma vez um homem que um dia ficou sem sono. Queria
dormir, mas não conseguia, apesar de sempre ter dormido bem.
Quando fechava os olhos, não lhe saía da cabeça a tristeza que havia
no olhar das crianças que se apinhavam junto da porta da casa onde
morava e trabalhava. Era um homem bom que gostava do que fazia e
Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão
nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se
recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que
ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora.
Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias do que tristezas.
Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer.
Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude
compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de
amor. O seu «preço», que dinheiro algum consegue comprar.
O homem que ficou sem sono
A fita vermelha
162
Durante três dias não houve descanso para ninguém dentro do
Consulado, e ainda sobrou tempo para se dar água e comida àqueles
uma eternidade.
O homem queria dormir, mas não era capaz. Ecoavam-lhe na
cabeça as vozes das crianças que sofriam de fome e de sede e que,
lembrando-lhe os seus filhos, tinham o direito de viver e de crescer em
liberdade. De Lisboa, o cônsul português recebera ordens muito
rigorosas no sentido de não deixar chegar refugiados a Portugal.
Pensou e voltou a pensar, consultou a mulher e escreveu uma longa
carta aos filhos explicando o que tencionava fazer e as razões dessa
opção. Espreitou pela janela e viu nos olhos das crianças um sorriso
fugidio que representava a última réstia de esperança. Por elas valeria a
pena arriscar. Por elas e pelos princípios que defendia. Foi assim que a
palavra «desobediência» entrou definitivamente no seu vocabulário.
Mandou abrir as portas do Consulado de Portugal e forneceu aos
funcionários carimbos e selos brancos para poderem emitir o maior
número de vistos possível. A partir desse momento seria uma batalha
sem tréguas contra o tempo. Cada minuto contava. Cada dia parecia
estado ao lado dos alemães e do que eles representavam.
que as tropas alemãs invadiam países como a Bélgica ou a Holanda e
se aproximavam da fronteira francesa, iam chegando a Bordéus
refugiados das nações ocupadas, em busca de um visto no passaporte
que lhes permitisse chegar a Espanha e depois a Portugal, apanhando
mais tarde, em Lisboa, um barco ou um avião que os levasse para
países como os Estados Unidos da América, o Brasil ou a Argentina,
onde não havia guerra. Portugal e Espanha, governados por ditadores
como Hitler, o senhor da Alemanha, não tinham entrado na guerra e
iriam manter-se à margem dela, embora durante muito tempo tenham
64
de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste. A Aurora estava
doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso
Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora. Morena,
Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só
os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade.
Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.
Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a
vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E
evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas
meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo,
quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.
Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto
de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas.
Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no
princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um
longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que
seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.
Porque, mais do que português e francês, havia uma bela matéria
a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender
essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a
aprendia.
Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a
maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes
tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos
«eléctricos», dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com
o bater das patas dos cavalos que passavam de vez em quando.
— Estou à espera da professora…
Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
65
Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros.
Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras
lhe haviam transmitido.
Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama
branca, de ferro.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia.
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para
outro próximo domingo.
Começava a Primavera.
Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido
visitar.
E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do Sol, fui passear.
Ver mar? Campos verdes? Flores?
Mas o próximo domingo foi cheio de Sol. Sol do próprio astro,
quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso
das meninas.
— Vou vê-la no próximo domingo — anunciei às companheiras.
E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.
Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta
fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me
mandado saudades.
hospital. Olhei o retratinho dela na caderneta.
163
Figueira da Foz ou para as Caldas da Rainha. Mais tarde, a maioria
conseguiu partir para países onde havia liberdade. Alguns voltaram
depois do final da guerra às suas terras, outros nunca mais quiseram
O homem não se deixou vencer pelo cansaço, pelo sono, pela
fome ou pela sede. A vida dos outros estava primeiro. Se eles tinham
pressa, a sua conseguia ser ainda maior. No Consulado, houve quem o
avisasse: «O senhor bem sabe o que lhe pode acontecer!» Mas ele não
quis saber e continuou a passar vistos, perdendo a conta às pessoas que
já tinha conseguido salvar. Terão sido dez mil, quinze mil ou trinta
mil? Não se sabe ao certo. Sabe-se sim que chegaram a Lisboa e que
depois foram encaminhados para o Estoril, para a Ericeira, para a
— Talvez amanhã de manhã já possamos estar a caminho da
liberdade, porque há ali dentro um homem bom que nos quer ajudar.
— Mãe, tenho fome e sede e quero sair deste sítio — dizia a
menina austríaca para a mãe pálida e exausta.
de Lisboa teria consequências dramáticas para o seu futuro e o da sua
família. Ainda assim, não recuou. Sabia que a razão estava do seu lado
e não estava disposto a abdicar dessa razão, que correspondia à
salvação de milhares de vidas.
Aristides de Sousa Mendes sabia que o desrespeito pelas ordens
que esperavam à porta em intermináveis filas, com a esperança de que
o pesadelo por fim terminasse. Pela rádio chegavam notícias da
rendição da França, o que significava que já faltava muito pouco para
que as tropas de Hitler chegassem também a Bordéus, perseguindo e
prendendo judeus e opositores políticos ao regime nazi. Era preciso
actuar ainda mais depressa. O cônsul conseguiu arranjar tempo para ir
às cidades de Bayonne e Hendaye onde havia um grande número de
refugiados tentando passar a fronteira em direcção a Espanha.
164
liberdade. Essa porta abriu-se e por ela passou uma réstia de luz,
desenhando no cetim negro do céu, entre as estrelas, a linda palavra
Ainda não houve um grande realizador de cinema que fizesse
um filme sobre esta história verdadeira, à semelhança do que Steven
Spielberg fez com Oskar Schindler, mas pode ser que ainda venha a ser
feito. Nunca é tarde para celebrar os feitos dos heróis. Naquelas noites
quentes de Junho de 1940, havia em Bordéus um português que não
conseguia dormir. Não lhe saía da memória a aflição das crianças que
queriam ver abrir-se a porta que as deixasse seguir o caminho até à
— Chama-se herói, filho. Quem faz o que ele fez por nós só
pode ter esse nome.
O pai, não contendo uma lágrima comovida, respondeu-lhe:
— Como é que se chama aquele senhor que, em Bordéus, nos
passou os vistos para podermos chegar a este país?
no Rossio, em Lisboa, um menino de cabelo loiro perguntou aos pais,
enquanto estes procuravam uma pensão ou um hotel onde pudessem
instalar-se até conseguirem arranjar bilhetes num barco ou num avião
para Nova Iorque:
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe
profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital. Sabemos
todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.
Três dias bastaram para que o cônsul Aristides de Sousa Mendes
abrisse a milhares de refugiados as portas para a liberdade,
desobedecendo a Salazar e ao regime que ele dirigia. Por isso foi
prontamente banido da carreira diplomática e proibido de exercer
qualquer actividade profissional, morrendo na miséria em 1954, com
os filhos dispersos por países como os Estados Unidos, onde puderam
estudar e seguir as suas carreiras. Num dia quente de Junho de 1940,
66
Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura,
com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de
sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.
As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do
próximo domingo.
Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.
*
Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que
estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos
outros.
E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que
precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto
natural que se não adia.
voem tão alto em dias de Primavera. E morrem, também, e todas as
primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de
cada um de nós, desta força imensa.
Lembrem-se como de um ovo de pássaro podem sair asas que
Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase
transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem,
para de novo nascerem.
No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude,
a sua doçura, a sua esperança.
vê-las porque não conseguiram esquecer as horas de sofrimento e
perda.
67
Matilde Rosa Araújo
O Sol e o Menino dos Pés Frios
Lisboa, Livros Horizonte Lda, 2001
Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na
minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã
com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.
165
AAVV
Contos de um Mundo com Esperança
Lisboa, Texto Editora, 2003
José Jorge Letria
«Esperança», escrita em português como esta história verdadeira que é
sempre bom contar e recontar. Porquê? Porque é sempre possível que a
tragédia volte a acontecer, onde e quando menos se espera.
Perseverança
167
Justiça
69
de desilusões, de novas tentativas e, por vezes,
de muitos sacrifícios. Se as diversões forem
colocadas em primeiro lugar, é provável que
os frutos a colher se tornem bastante amargos.
homens facilmente esquecem os seus princípios
morais, embora gostem de exibir em público
uma imagem de respeitabilidade.
por
de muitos. Quando se trata de dinheiro, os
ficam
Os verdadeiros sucessos são feitos de esforços,
que
escrúpulos em enriquecer à custa da pobreza
capacidades
desenvolver devido à falta de perseverança.
Há
Perseverança
social, criadas por aqueles que não têm
Existem graves situações de injustiça
Justiça
— Nada de bom pode vir a uma nação — dizia ele — cujo povo
reclama e espera que outros resolvam os seus problemas. Deus
concede os seus dons a quem trata dos problemas por conta própria.
razoável, a fechar-se durante o dia em casa. Esta parecia sempre
adormecida ou abandonada. De manhã à noite, o sol brilhava por entre
as casas altas, ao longo da pequena rua onde ele morava. Era
insuportável!
73
O sábio, por seu lado, ia até à varanda, deitava-se, e, à medida
que as estrelas apareciam no céu admirável, sentia-se a reviver pouco a
pouco. Em breve surgia gente em todas as varandas, pois até as pessoas
cor de acaju precisam de ar! Como tudo se animava então! Os
sapateiros, os alfaiates, todos se espalhavam pela rua. Viam-se mesas,
cadeiras e milhares de luzes. Um falava, outro cantava; passeava-se; as
Que prazer, então! Logo que, no quarto, se acendia uma vela, a
sua sombra estendia-se por toda a parede e estirava-se o mais possível
até ao tecto, como que a recuperar forças.
O sábio dos países frios, que era ainda jovem, julgava-se uma
fornalha ardente; mas emagrecia cada vez mais e a sua sombra
estreitava-se consideravelmente. O sol prejudicava-o. Por isso ele só se
reanimava depois do poente.
171
Logo depois surgiu a cantar um jovem soldado. A longa pluma
do seu quépi ondulava na brisa, e uma espada reluzente pendia-lhe à
cintura. Ele pensava na extraordinária coragem que revelaria na guerra.
E continuou a reclamar sobre a inutilidade dos outros, sem ao
menos tocar, ele próprio, na pedra.
— Onde já se viu tamanho descuido? — disse ele contrariado,
enquanto desviava a sua parelha e contornava a pedra. — Por que
motivo esses preguiçosos não mandam retirar a pedra da estrada?
Primeiro, veio um fazendeiro com uma carroça carregada de
sementes que ele levava para a moagem.
Uma noite, enquanto todos dormiam, pôs uma enorme pedra na
estrada que passava pelo palácio. Depois, foi esconder-se atrás de uma
cerca e esperou para ver o que acontecia.
Conta-se a lenda de um rei que viveu há muitos anos num país
para lá dos mares. Era muito sábio e não poupava esforços para
inculcar bons hábitos nos seus súbditos. Frequentemente, fazia coisas
que pareciam estranhas e inúteis; mas tudo se destinava a ensinar o
povo a ser trabalhador e prudente.
Nos países tropicais o sol queima de uma forma terrível! As
pessoas ficam trigueiras como o acaju e até escuras como os negros.
Vindo do seu país frio, chegara a uma destas regiões quentes um
sábio que julgava poder passear ali como na sua terra; mas cedo se
persuadiu do contrário. Viu-se obrigado, como qualquer pessoa
A pedra no caminho
A Sombra
172
— Meus amigos — disse o rei — com frequência encontramos
A filha do moleiro foi para casa com o coração cheio de alegria.
Quando o fazendeiro e o soldado e todos os outros ouviram o que
havia ocorrido, juntaram-se em torno do local onde se encontrava a
pedra. Revolveram com os pés o pó da estrada, na esperança de
encontrarem um pedaço de ouro.
Ela abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro.
Ergueu a caixa. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa.
Havia na tampa os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem
retirar a pedra.”
E tentou arrastar dali a pedra. Era muito pesada, mas a moça
empurrou, e empurrou, e puxou, e inclinou, até que conseguiu retirá-la
do lugar. Para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra.
Era muito trabalhadora e estava cansada, pois desde cedo andara
ocupada no moinho. Mas disse consigo própria: “Já está quase a
escurecer e de noite, alguém pode tropeçar nesta pedra e ferir-se
gravemente. Vou tirá-la do caminho.”
Finalmente, ao cair da noite, a filha do moleiro passou por lá.
Assim correu o dia. Todos os que por ali passavam reclamavam
e resmungavam por causa da pedra colocada na estrada, mas ninguém
lhe tocava.
O soldado não viu a pedra, mas tropeçou nela e estatelou-se no
chão poeirento. Ergueu-se, sacudiu a poeira da roupa, pegou na espada
e enfureceu-se com os preguiçosos que insensatamente haviam deixado
uma pedra enorme na estrada. Também ele se afastou então, sem
pensar uma única vez que ele próprio poderia retirar a pedra.
74
a entrada? O rés-do-chão era todo constituído por lojas; em parte
alguma se via corredor ou escada que conduzisse aos andares
superiores.
Uma noite, o sábio despertou e julgou ver um clarão estranho na
varanda da casa vizinha; as flores brilhavam como chamas e, no meio
delas, estava uma rapariga alta, esbelta e encantadora, que brilhava
tanto como as flores. Esta luz intensa feriu os olhos do nosso homem
que se levantou de chofre. Foi afastar a cortina da janela, para observar
a casa em frente; mas tudo desaparecera. Apenas permanecia
entreaberta a porta que dava para a varanda, e a música continuava a
ouvir-se. Havia bruxedo ali dentro! Quem habitava ali? Por onde seria
— É alguém que estuda continuamente o mesmo trecho sem
conseguir aprendê-lo — disse. — Que perseverança!
música incomparável, mas isso talvez fosse produto da sua
imaginação, pois de boa vontade acharia tudo incomparável nos países
quentes — se o sol não brilhasse sempre. O proprietário da casa em
que morava dissera-lhe que ignorava em absoluto o nome e a condição
do locatário daquela casa, e, quanto à música, declarou-a horrivelmente
enfadonha.
Só uma casa, aquela que estava situada em frente da do sábio, é
que não dava sinal de vida. Mas morava lá alguém, pois, na varanda,
desabrochavam flores admiráveis, o que necessariamente indicava que
alguém as regava. À noite, também se abria a porta, mas, lá dentro, de
onde saía uma música suave, estava escuro. O sábio achava aquela
carruagens circulavam; passavam burros fazendo soar as campainhas;
era lançado à terra um morto, ao som de cânticos sagrados; os garotos
atiravam petardos; os sinos das igrejas repicavam; numa palavra, a rua
estava bastante animada.
— Vai! Mas não fiques muito tempo por lá!
75
regressasse, contasse a sua própria história, acusá-lo-iam de plagiário,
Grande era a sua contrariedade, não por causa da sombra ter
desaparecido, mas porque ele conhecia, como toda a gente nos países
frios, a história de um homem sem sombra, e, se um dia, quando
No dia seguinte, quando saiu, para ir tomar o café e ler os jornais
exposto ao sol, exclamou de repente: — Que é isto? Onde está a minha
sombra? Terá realmente partido ontem à noite e ainda não terá vindo?
Que aborrecimento!
A estas palavras o sábio levantou-se e a sombra fez o mesmo
que ele. Voltou-se o sábio e a sombra voltou-se igualmente. Mas
alguém que tivesse prestado atenção teria visto que a sombra entrava,
pela porta entreaberta, em casa do vizinho, no momento em que o
sábio, por sua vez, entrava no seu quarto, correndo atrás de si o
cortinado.
sinal.
E fez com a cabeça um sinal à sombra, e a sombra repetiu o
173
William J. Bennett
O Livro das Virtudes II
Editora Nova Fronteira, 1996
Então, o sábio rei montou no seu cavalo e, dando delicadamente
as boas-noites, retirou-se.
«Creio que a única coisa que ali vive, em frente, é a minha
sombra: como ela se instala elegantemente entre as flores, junto à porta
entreaberta! Se pudesse entrar, ver o que se passa e vir-mo contar!»
— Vamos! — convidou, a gracejar. — Ao menos mostra que
serves para alguma coisa: entra!
obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos, se assim preferirmos,
reclamar alto e bom som enquanto nos desviamos deles, ou podemos
retirá-los e descobrir o que eles significam. A decepção é normalmente
o preço da preguiça.
Uma noite, estava o sábio sentado na varanda; por detrás dele,
no quarto, brilhava uma vela; era, pois, muito natural que a sua sombra
se desenhasse na parede do vizinho. Ela destacava-se entre as flores e
repetia todos os movimentos do sábio.
— Entre! — disse.
76
tenho, por conseguinte, meios para me resgatar.
— Já calculava que o senhor não me reconhecesse — respondeu
o homem, delicadamente. — É que eu fiz-me corpo; tenho carne e uso
fato. Não reconhece a sua antiga sombra? O senhor julgou que eu
nunca mais voltaria. Tive muita sorte, depois que o deixei; estou rico e
— A quem tenho a honra de falar? — perguntou o sábio.
Mas ninguém entrou. Foi abrir e viu um homem muito alto e
muito magro, correctamente vestido e com ar distinto.
porta.
Um dia, estava ele sentado no quarto, quando alguém bateu à
De regresso ao seu país, escreveu vários livros sobre o que o
mundo tem de verdadeiro, de belo e de bom: e muitos anos se
passaram assim.
Provavelmente ficara lá uma raiz da antiga. Ao fim de três semanas,
tinha uma sombra decente, que, em viagem para os países do Norte,
cresceu de tal forma que o nosso sábio até se contentaria com metade.
Esta separação atormentou-o muito; mas, nos países quentes,
tudo cresce depressa, e, ao fim de oito dias, com grande prazer, notou
que das suas pernas, enquanto passeava ao sol, saía uma nova sombra.
À noite, voltou à varanda, depois de ter colocado a luz bem por
trás dele, para que a sua sombra voltasse; mas foi em vão que se
estendeu, se encolheu e repetiu a mesma palavra: «Vem! Vem!». A
sombra não apareceu.
acusação que de nenhum modo merecia. Resolveu, pois, não falar
nisso a ninguém. E assim fez.
minha mão: prometo-te. Um homem é um homem, e uma palavra…
77
— Fica tranquilo! Não direi a ninguém quem tu és. Aqui tens a
— Contar-lho-ei, mas com uma condição: é que jamais diga a
ninguém que eu fui a sua sombra. Tenciono casar-me; os meus meios
permitem-me sustentar família e até mais do que isso.
— De que dívidas falas tu? Acredita que me sinto feliz com a
tua sorte. Senta-te, velho amigo, e conta-me tudo o que se passou. Que
vias tu em casa do vizinho, no país quente?
— Diga o que lhe devo — redarguiu a sombra. — Não gosto de
dívidas.
— És então tu! — respondeu o sábio. É extraordinário! Nunca
julgaria que a minha antiga sombra regressasse sob a forma de um
homem.
um grande êxito. Senti desejo de o ver antes da sua morte e de, ao
mesmo tempo, visitar a minha pátria. Bem sabe, a pátria ama-se
sempre. Como sei que tem outra sombra, cumpre-me perguntar-lhe
agora se lhe devo alguma coisa a ela ou ao senhor. Faça favor de dizer.
—Tudo isto é extraordinário, mas o senhor não é também um
homem extraordinário? E eu, sabe-o muito bem, segui, desde a
infância, os seus exemplos. Achando-me amadurecido para fazer
sozinho o meu caminho na vida, o senhor lançou-me nela, e eu colhi
— Ainda não estou em mim! — disse o sábio. — O que
significa isto?
E fez tilintar um molho de berloques ligados à pesada corrente
de ouro do relógio, enquanto os seus dedos, cobertos de brilhantes,
lançavam mil faíscas.
175
Determinação
78
— Peço-lhe perdão; é um hábito antigo. Tem toda a razão, isso
— Eu via tudo, como lhe disse há pouco. Mas peço-lhe, antes de
continuar: não é por orgulho, mas, como homem livre e dotado de
grandes conhecimentos, sem falar da minha posição e da minha
fortuna, não me trate mais por tu.
— Mas, afinal, o que vias tu? — perguntou o sábio.
— Encontrei-me na antecâmara; estava um pouco escuro, mas
distingui na minha frente uma fila imensa de quartos, cujas portas se
encontravam abertas de par em par. Fazia-se luz a pouco e pouco e,
sem as precauções que tomei, teria sido fulminado pelos raios, antes de
chegar junto da donzela.
— A Poesia! — exclamou o sábio. — Sim, é verdade; muitas
vezes ela não é mais do que um eremita no meio das grandes cidades.
Vi-a por um instante… Brilhava na varanda como uma aurora boreal.
Vamos! Continua. Uma vez passada a porta entreaberta…
mil anos. Li todos os poemas possíveis, conheço-os perfeitamente.
Através deles vi tudo e tudo sei.
— Veja se adivinha quem morava no quarto do vizinho! —
começou a primeira sombra. — Era um ente encantador, era a Poesia.
Permaneci lá três semanas, e este tempo valeu para mim mais de três
Dito isto, a sombra sentou-se e, ou fosse por orgulho ou fosse
para aprender, colocou os pés calçados de botas de verniz sobre o
braço da nova sombra, que repousava aos pés do dono como um cão de
água. Esta estava muito quieta, impaciente por ouvir como se poderia
libertar e tornar-se senhora de si própria.
— E uma palavra é uma sombra.
79
janelas para dentro dos salões, e, pelas clarabóias, para as mansardas.
Olhei por onde ninguém podia olhar e vi o que ninguém podia nem
— Repito-lhe mais uma vez que vi tudo. Se ali tivesse entrado, o
senhor não se teria transformado num homem, mas eu transformei-me!
Aprendi a conhecer a minha verdadeira natureza, os meus talentos e o
meu parentesco com a poesia. Quando ainda estava consigo, nunca
reflectia nisso; mas o senhor deve recordar-se como eu aumentava
sempre, ao nascer e ao pôr-do-sol. Ao luar, eu parecia quase mais
distinto que o senhor; mas ainda não compreendia a minha verdadeira
natureza. Foi na antecâmara para onde me enviou que aprendi a
conhecê-la. Estava amadurecido no momento em que me largou no
mundo; mas o senhor partiu, de repente, deixando-me quase nu. Senti
logo vergonha: precisava de vestuário, de botas, de todo aquele verniz
que faz um homem. Escondi-me, digo-lhe sem receio – persuadido de
que o senhor não o publicitará – debaixo das saias de uma confeiteira
que ignorava o meu valor. Só à noite é que saía para percorrer as ruas,
ao luar. Subia e descia ao longo das paredes, olhando pelas grandes
brincadeiras e pelos sonhos de encantadoras crianças?
— Mas, enfim, os deuses da antiguidade passeavam-se por essas
salas? Os antigos heróis nelas combatiam? Estavam povoadas pelas
— Pareciam-se com tudo isso. É verdade que não as atravessei;
mas da antecâmara vi tudo.
— Que aspecto ofereciam as salas interiores? Pareciam-se com
uma floresta cheia de frescura, com uma igreja sagrada ou com um céu
estrelado?
— Tudo! Eu vi tudo e sei tudo.
não acontecerá mais. Enfim, o que via o senhor?
porque
interiormente.
utilidade,
ajudam
a
crescer
surgir. Mas estes também têm a sua
sobretudo quando os obstáculos começam a
é pretendido. A tentação de desistir é grande,
vontade necessária para se levar a cabo o que
alcançar, deve-se ter também a força de
Sempre que se tem um objectivo a
Determinação
80
— O senhor exagera!
— Faz mal; olhe para mim; eu engordo, e é o que é preciso. O
senhor não conhece o mundo. Aconselho-o a fazer uma viagem; e,
melhor ainda, como tenciono fazer uma este Verão, dar-me-á muito
prazer se me quiser acompanhar, na qualidade de sombra. Eu pago a
viagem.
—Ai! Escrevi acerca da verdade, da beleza e da bondade, mas
ninguém prestou atenção a nada! Estou desesperado!
— Como está? — perguntou.
Exactamente um ano depois, a Sombra voltou.
— Que caso mais notável! — murmurou o sábio.
Ditas estas palavras, a sombra saiu.
-os em grande quantidade; o director da Casa da Moeda cunhou-me
belas moedas; as mulheres acharam-me gentil. Foi assim que me tornei
no que sou. E agora, apresento-lhe os meus respeitos. Eis o meu cartão;
moro do lado do sol e, em tempo de chuva, encontrar-me-á sempre em
casa.
devia ver. Para lhe dizer a verdade, este mundo é muito vil; e, se não
fosse o preconceito de que um homem significa alguma coisa, eu não
me preocuparia nada em sê-lo. Vi coisas inimagináveis entre as
mulheres, entre os homens, entre os pais e as crianças. Vi o que
ninguém devia saber, mas o que todos ansiavam por saber – o mal do
próximo. Se tivesse escrito um jornal, devorá-lo-iam; mas preferi
escrever às próprias pessoas. Desencadeava-se um terror inaudito por
todas as cidades por onde eu passava. Temiam-me e amavam-me. Os
professores fizeram-me professor, os alfaiates deram-me fatos; tenho-
81
— O senhor está a ser franco comigo — disse a Sombra, ou,
— Visto que somos companheiros de viagem e que temos
crescido juntos, tratemo-nos por tu: é mais íntimo.
Puseram-se a caminho. A Sombra tornara-se o amo, e o amo
convertera-se na sombra. Por toda a parte se seguiam um ao outro,
sempre em contacto, pela frente ou por trás, conforme a posição do sol.
A Sombra sabia sempre ocupar o conveniente lugar do amo, e o sábio
não se melindrava com isso. Estava sempre bem-disposto e, um dia,
disse à Sombra:
— Precisa de ir a banhos — aconselhou-lhe a Sombra, que tinha
voltado a vê-lo. — É o único remédio. Irei consigo, pois a minha barba
não cresce, o que é uma doença. É preciso ter barba. Eu pago a
viagem; o senhor fará a descrição do que virmos e isso entreter-me-á
pelo caminho. Seja razoável; aceite a minha oferta; viajaremos como
antigos camaradas.
— Parece uma sombra — disseram-lhe uma vez, e isso fê-lo
estremecer.
O sábio achava-se cada vez pior, cheio de aborrecimentos e de
desgostos. O que ele dizia da verdade, da beleza e da bondade,
produzia na maior parte dos homens o mesmo efeito que as rosas num
animal.
— O mundo é assim e será sempre assim — redarguiu a
Sombra, indo-se embora.
— Vai longe demais! — disse o sábio.
— Depende. Pode estar certo de que a viagem lhe fará bem. Seja
a minha sombra, não tem nenhuma despesa a fazer.
179
Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que
tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta
a muitas questões.
A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais
velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se,
enquanto eles gostavam de falar.
Até os homens vinham sentar-se debaixo dela no momento das
grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus
ramos.
E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos
leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela
escutava com todas as suas folhas.
redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos,
conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos
ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os
ramos baixos para fazerem a sesta…
A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou
a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das
Abrigava, sob a sua corcha, toda a sabedoria de África.
Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma
árvore maior e mais velha do que qualquer outra.
A árvore que falava
180
Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em
breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a
Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os
seus fogos e matavam mais animais do que aqueles de que precisavam
para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso
«a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a
escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez,
sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer.
Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…
Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e ocos como tinham
vindo, e a sua tagarelice nada lhes ensinava porque não sabiam escutar.
«Essa é boa!», pensou este. «Eu trato-o por senhor e ele trata-me por tu.» Não obstante, resignou-se.
E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da
árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava.
E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore,
desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de
uma presa fácil.
82
curada, pois não vê que tenho uma sombra, e até uma sombra
— Vossa Alteza Real acha-se felizmente muito melhor —
respondeu a Sombra. — Sofria de ver demasiado claro, mas agora está
— A sua doença é não ter sombra.
Cheia de curiosidade, entabulou, durante um passeio, uma
conversa com aquele estrangeiro. Na sua qualidade de princesa, não
necessitava de muitos rodeios. Disse-lhe logo:
Logo distinguiu a Sombra entre todas as outras pessoas: «Ele
veio aqui para fazer crescer a barba, segundo dizem; mas a verdadeira
causa da sua viagem é que não tem sombra nenhuma.»
Chegados aos banhos, encontraram uma grande quantidade de
estrangeiros; entre outros, uma formosa princesa atingida por uma
doença inquietante: via claro demais.
A partir desse momento, a Sombra começou a tratar por tu o seu
antigo amo.
antes, o verdadeiro amo — Eu também lhe vou falar com franqueza.
Na qualidade de sábio, o senhor deve saber quão estranha é a Natureza.
Há pessoas que não podem tocar um bocado de papel pardo sem se
sentirem mal; outras tremem quando ouvem esfregar um prego numa
vidraça; quanto a mim, sinto a mesma sensação quando ouço tratarem-me por tu: afigura-se-me que isso me deita por terra, como no tempo
em que eu era a sua sombra. Bem vê que isto em mim não é orgulho,
mas sensibilidade. Não posso deixá-lo tratar-me por tu, mas tratá-lo-ei
eu a si: será metade do que deseja.
mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos
daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!
No dia seguinte, os juvenis sabiam um pouco mais da arte de
voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham
sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de
Quando as suas crias estavam suficientemente grandes para
voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito
levá-las até à árvore. Ao cair da noite, esta enchia-se de chilreios.
Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar as mais
palradoras. E cada uma escutava o murmúrio que subia da raiz mais
profunda até ao raminho mais alto.
83
— Eu sabia tudo isso na minha infância — respondeu a Sombra
— e estou certo de que a minha sombra, que vedes ali, em frente à
— Então, não sabe responder? — interrogou a princesa.
E começou a interrogá-lo sobre coisas difíceis, a que ela própria
não seria capaz de responder. A Sombra fez uma careta.
À noite, a princesa dançou com a Sombra no grande salão de
baile. Ela era muito ágil, mas o seu cavalheiro ainda era mais; nunca
encontrara um como ele. Disse-lhe o nome do seu país, que ele
conhecia muito bem, pois tinha olhado para ele através das janelas do
comboio. Ele contou mesmo à princesa certas coisas que a
surpreenderam muito. Era o homem mais instruído do mundo! Ela
testemunhou-lhe, pouco a pouco, toda a sua estima, e, quando uma vez
mais dançaram, traiu o seu amor por olhares que pareciam atravessá-lo.
Não obstante, como era rapariga sensata, disse para consigo: «Ele é
instruído, dança perfeitamente, mas será um homem verdadeiramente
culto? Isto é o mais importante; vou observá-lo melhor».
embora; divirto-me aqui muito e este rapaz agrada-me. Oxalá que a
barba não lhe cresça, porque, se não, vai-se embora!»
«O quê! – pensou a princesa. – Estarei realmente curada? É
verdade que a água, na época em que vivemos, possui uma virtude
singular, e estes banhos têm grande reputação. No entanto, não irei já
extraordinária. Vê a pessoa que me segue continuamente? Não é uma
sombra vulgar. Do mesmo modo que, às vezes, se dá por libré aos
criados um tecido mais fino do que aquele que se usa em si próprio,
assim eu adornei a minha sombra como um homem. Até lhe dei uma
sombra. Por muito caro que isso me custe, gosto de ter coisas que os
outros não têm.
181
E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das
Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou,
trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a
cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom
de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado
bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.
Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas
dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se
acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do
pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico
muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois,
calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos
parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a
expressão do homem se iluminava.
Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não reflectia nem fogo nem
sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo,
era um homem.
Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido.
Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada
viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e
as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa uma girafinha
e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.
***
E todos diziam que ela estava morta.
desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela
deixara de lhes falar.
Logo que eles chegaram ao país da princesa, a Sombra disse ao
— Mas… com que é que vou pagar-vos? Eu não tenho nada,
bem sabem!
182
— Não pode ser — protestou o homem. — É preciso que o
tronco fique inteiro para o tantã. Se não, como é que a tribo poderá
— Deixa-te disso! — insistiram os homens fortes. —
Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.
— Ninguém! Nem mesmo a minha sombra — disse a Sombra,
que tinha razões para isso.
— Pequeno homem, nós ajudámos-te — disseram os homens
fortes com as suas vozes grossas. — O nosso trabalho deve ser pago.
84
qualificar de sombra por toda a gente. Nunca dirás que foste um
— Escuta, meu amigo: sou feliz e poderoso, e vou dar-te uma
prova particular da minha benevolência. Habitarás o meu palácio,
tomarás lugar a meu lado na carruagem real e receberás cem mil
escudos por ano. No entanto, ponho uma condição: é que te deixes
sábio:
E a princesa e a Sombra depressa ajustaram o casamento. Mas
ninguém devia sabê-lo antes da princesa ter regressado ao seu reino.
«Que homem tão distinto», pensou, «para ter uma sombra tão
sábia! Seria uma bênção para o meu povo, se eu o escolhesse para
esposo.»
E aproximou-se do sábio para lhe falar do Sol, da Lua, do
homem sob todos os aspectos; e ele respondia convenientemente e com
muito espírito.
— De acordo — disse a princesa.
— Não estou bem certo disso, mas julgo que sim, visto que ela
me seguiu e escutou durante tantos anos. Somente, Vossa Alteza Real
permitir-me-á que chame a sua atenção para um ponto muito
particular: esta sombra sente-se de tal forma orgulhosa por pertencer a
um homem que, para a encontrar de bom humor, condição necessária
para que responda bem, é preciso tratá-la como se fosse um homem.
— A sua sombra! É de admirar!
porta, lhe responde muito facilmente.
Quando o homem pegava de novo no machado para podar os
ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a
árvore com ele fizeram-lhe sinal que parasse:
Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro.
Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem
tocar em conjunto.
uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse
de novo a savana, iria fazer um tantã.
Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha
É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha
levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se
atreveram a segui-lo.
Todos acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um
cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.
Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da
velha árvore.
montanhas.
«Que nobre carácter» — pensou a princesa.
85
— É uma resolução medonha — respondeu a Sombra, fingindo
que suspirava. — Perco um servidor fiel.
— Pobre sombra — disse a princesa. — É bem desgraçada.
Talvez fosse um benefício tirar-lhe o pouco de vida que lhe resta. Sim,
pensando bem, julgo necessário acabar com ela em segredo.
— Sem dúvida; mas receio que nunca mais se restabeleça.
— É horrível! Espero que a tenham encarcerado.
— Acabo de assistir a uma cena cruel: a minha sombra
enlouqueceu. Imagina que se lhe meteu na cabeça que é um homem, e
que eu sou a sua sombra.
— Estás a tremer! — disse a princesa, quando voltou a ver a
Sombra. — O que há? Tem cuidado! Não adoeças no dia da tua boda.
E a sombra chamou a guarda, que já obedecia ao noivo da
princesa, e o sábio foi levado.
— Mas eu chegarei primeiro e mandar-te-ei prender.
— Vou já ter com a princesa!
— Ninguém acreditará em ti: sê razoável, ou chamo a guarda.
— Mas é demais! — exclamou o sábio. — Nunca consentirei
nisso; vou esclarecer a princesa e todo o país. Quero dizer a verdade:
sou um homem, e tu, tu não passas de uma sombra vestida!
homem, e, uma vez por ano, quando eu me mostrar ao povo na varanda
iluminada pelo sol, deitar-te-ás a meus pés como uma sombra. É ponto
assente que vou desposar a princesa. A boda tem lugar esta noite.
estais aqui reunidos.
183
— Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que
Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para
dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos
Anciãos:
Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o
pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.
Os outros membros do Conselho, sentados em círculo,
aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma
baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio.
E expeliu uma baforada do seu cachimbo.
— O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar
adequado.
reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se
desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos
Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa
seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:
Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas.
Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a
propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes
agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e
também quando não lhos pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito
***
Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o
assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
tocar?
184
E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas,
toros e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da
E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.
De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos
homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um
pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno
homem assim o fez, porque era costume dar uma prenda aos Anciãos,
como agradecimento pelos seus conselhos.
O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao
final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que
decidiria mais tarde!
— O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o
próximo Conselho.
De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz
trémula, acrescentou precipitadamente:
passo em frente.
Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um
O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a
expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.
— Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.
Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes
cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:
Expeliu uma outra baforada e calou-se.
— É verdade que estamos aqui — respondeu o Ancião. — Mas
o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.
86
Hans-Christian Andersen
Contos de Andersen
Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1959
O sábio não viu nada, não ouviu nada, porque o tinham matado.
À noite, toda a cidade estava iluminada. Dispararam-se salvas de
artilharia; por toda a parte se ouvia músicas e cantares. A princesa e a
Sombra mostraram-se à varanda, e o povo, ébrio de alegria, aclamou-os três vezes.
87
Tolerância
— Sim, mas… — começou o pequeno homem.
— Ah não? E essa árvore? É tua, não é?
— Sabes bem que não tenho nada de meu.
— O que me dás em troca?
— Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!
185
— Eh! — respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo
a quem interromperam a digestão. — Não me deixas dormir com esse
barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão!
E se eu precisar dele?
— Podias emprestar-me o teu podão? — perguntou muito
educadamente o pequeno homem.
— Ah! És tu? — disse o vizinho, bocejando como um
hipopótamo. — O que queres de mim?
lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho
estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o
pedido.
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no
entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso
decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja
Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição
do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava
para fazer um bom tambor para a tribo.
***
aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os
animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
186
Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido,
atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não
para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de
***
— Em troca? — zombou o vizinho. — Não há troca nenhuma
porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha
fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.
— Desculpa — disse o pequeno homem com a sua voz gentil.
— Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes
o favor.
— Tu, outra vez! — bocejou o vizinho. — O que queres?
Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso
acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.
De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria
sem reclamar mais um pedaço da árvore?
cinzel para o fazer.
Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento
depressa terminou.
Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno.
No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.
Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta
de que o pequeno homem precisava.
— Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira
e emprestar-te-ei o meu podão.
multidões como um rastilho de pólvora.
de superioridade que se estenderam às
pela própria intolerância e por falsas ideias
ao longo dos tempos por governantes cegos
o diálogo. Actos hediondos têm sido cometidos
erro levantar-se barreiras onde deveria existir
diferentes nem por isso são inferiores. É um
sinal de maturidade. Aqueles que são
Ser-se capaz de aceitar a diferença é um
Tolerância
187
Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as
Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã
foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá
em África a esta espécie de tambor). Mas o pequeno homem
apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.
Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de
tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande
tambor.
E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a
árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar
o seu belo projecto.
Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a
cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.
— Ah sim? E isto, isto não é madeira? — perguntou o mais forte
dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.
— Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! — respondeu.
uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.
— De acordo, — disseram eles — mas com a condição de pores
Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu
tantã pelo fogo.
coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas
endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som
chegasse mais longe. Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já
havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem
para atear um fogo. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um
pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.
188
Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da
Só faltava levá-la ao curtidor.
A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes
de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê-la, para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.
***
E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem
foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.
— Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! —
retorquiu a criança.
— Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem
falta — suplicou o pequeno homem.
— É pena — disse a rapariga. — Porque também eu necessito
de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há
nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.
— Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí.
Mas já não tenho madeira para te dar.
— O que queres de mim? — interrompeu a criança.
— Sim, quer dizer… — começou ele.
— Bom dia — respondeu ela. — És tu que dás madeira a toda a
gente em troca de uma ferramenta ou de lume?
— Bom dia — disse à criança.
guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que
seria mais fácil falar com ela.
Israel, tínhamos passado pelo campo de concentração de
pendurada ao seu pescoço, disse-lhe que, no regresso de
tinha dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David
-nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não
passáramos duas semanas a fazer pesquisas, confessou-
região. Quando lhe disse que vínhamos de Jerusalém, onde
Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela
apresentou-se como sendo Erika.
entrou na sua loja, e uma senhora, sentada perto de nós,
ofensiva dos Aliados durante a guerra. O comerciante
causados por este tornado se assemelhavam aos da última
lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos
bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o
Na noite anterior, um tornado tinha-se abatido sobre esta
trabalhadores a limparem as ruínas do telhado da Câmara.
passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns
meu marido e eu estávamos sentados na borda de um
Mundial, encontrei a mulher de que fala esta história. O
Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra
Nota da autora
A estrela de Erika
91
189
Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana.
Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e sentiu de novo coragem.
Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito
esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.
Regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o
tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.
Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de
madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada
conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.
Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar
cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.
Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda
para o fazer.
E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi
curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.
um bocado do tambor.
— De acordo — concluiu o curtidor. — Contentar-me-ei com
— Mas já não há nenhuma árvore! — lamentou-se o pequeno
homem. Ficou apenas um tambor!
Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha
ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como
prémio do seu trabalho.
aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros
não tinham querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro
insuportável das peles molhadas.
190
Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro,
cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças
Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam
toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o
sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a
doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens
escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras,
faziam silêncio.
Um por um, todos os membros da tribo aproximaram-se dele.
Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena
guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho
crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas
enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do
pequeno tambor. E faziam silêncio.
O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a
tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a
aldeia e à savana inteira.
criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.
O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro
que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que
ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto.
No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo
djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas
mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então,
quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz
que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de
***
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Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que
os meus pais tinham pressa de deixar o bairro rodeado de arame
farpado para onde tinham sido relegados, de escapar ao tifo, ao excesso
de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local
para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um
local mais acolhedor, onde teriam comida e trabalho? Terão chegado
Imagino muitas vezes como teria sido a vida dos membros da
minha família durante as últimas semanas que passámos juntos.
Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos os seus bens,
forçados a abandonar a casa, enviados para o gueto.
O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao
Holocausto.
Não sei se tive irmãos ou irmãs.
Não sei em que cidade nem em que país nasci.
Não sei como me chamava ao nascer.
Não sei o dia.
Nasci em 1944.
Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu
povo foram mortos. Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de
fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou asfixiados nas câmaras
de gás. Eu escapei.
Depois, contou-nos a sua história…
conseguira franquear a porta.
tinha tentado visitar o campo de Dachau, mas que não
Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia,
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pai, deve ter afastado o arame farpado que ocultava a abertura. Deve
ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei
Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a
minha mãe deve ter espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu
Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe
disse “Desculpa. Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um
caminho por entre aquela mole humana até à janela do vagão? Terá
murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente?
Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá
chorado? Rezado?
Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O
meu pai estaria junto dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão
falado do que iam fazer?
Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para
me proteger dos maus cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste
vagão lotado. Tinha de certeza compreendido que não íamos para um
lugar seguro.
apertados um contra o outro?
De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens
campestres estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias
ficámos naquele comboio? Quantas horas os meus pais passaram
Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à
estação, juntamente com centenas de outros judeus. Amontoados num
vagão de transporte de animais. De pé, uns contra os outros, por falta
de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os
ferrolhos?
até eles os rumores sobre os campos da morte?
Até mesmo os homens…
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Do Spillers
L’arbre qui parle
Toulouse, Milan Poche, 1999
A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou
a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se
empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas,
que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam
sob os ramos baixos para fazerem a sesta.
E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de
África.
às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber,
por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga
árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.
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A minha estrela ainda brilha.
Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti
L’étoile d’Erika
Toulouse, Milan Jeunesse, 2003
A minha árvore lançou raízes.
Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso
como as estrelas do céu. Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de
estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um membro do meu
povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada.
Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou
muita da tristeza que me assaltava com frequência, percebeu o meu
desejo de pertencer a uma família. Tivemos três filhos, que hoje têm os
seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu.
Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à escola.
Fez tudo por mim.
Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher
que se ocupou de mim. Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha
idade e atribuiu-me uma data de nascimento. Decidiu que me chamaria
Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de
uma passagem de nível. Havia pessoas à espera que o comboio
passasse; viram-me cair do vagão de carga. No caminho que conduzia
à morte, a minha mãe lançou-me à vida.
A minha mãe atirou-me pela janela do comboio.
com toda certeza foi o que aconteceu a seguir.

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