Texto Completo - Universidade São Francisco
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HORIZONTES Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco Volume 30 Número 1 Janeiro/Junho de 2012 ISSN 0103-7706 A revista Horizontes é um veículo de divulgação e debate da produção científica na área de Educação e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, Itatiba/SP. O propósito da revista é servir de fórum para a apresentação de pesquisas desenvolvidas, estudos teóricos e resenhas na área de Educação, em suas vertentes históricas, culturais e de práticas educativas. Com vistas a manter uma interlocução com pesquisadores nacionais e internacionais, a revista aceita publicações nas línguas portuguesa, inglesa, francesa e espanhola. Os textos publicados são submetidos a uma avaliação às cegas pelos pares, componentes do conselho editorial ou consultores ad hoc. Os conteúdos não refletem a posição, opinião ou filosofia, nem do Programa de Pós-Graduação nem da Universidade São Francisco. A revista é composta de dossiês com temática educacional coerente com a política editorial da mesma e/ou artigos de demanda espontânea encaminhados e aprovados para publicação. Os direitos autorais das publicações da Horizontes são da Universidade São Francisco, permitida apenas ao autor a reprodução do seu próprio material, previamente autorizado pelos editores da revista. As transcrições e traduções são permitidas, desde que no limite dos 500 vocábulos e mencionada a fonte. Editores Alexandrina Monteiro Jackeline Rodrigues Mendes Paula Leonardi Conselho Editorial Ademir Donizeti Caldeira - UFScar Maria Auxiliadora Bueno Megid - Puccamp Alfredo Veiga-Neto - UFRGS Maria Carolina Galzerani Boverio - Unicamp Beatriz Maria Eckert-Hoff - Unianchieta Maria Cristina Soares Gouveia - UFMG Carlos Alberto de Oliveira - Unitau Maria Gorete Neto - UFMG Celi Espasandin Lopes - Unicsul Maria José Rodrigues Faria Coracini - Unicamp Celina Ap. Garcia de Souza Nascimento - UFMS Maria Laura Magalhães Gomes - UFMG Daniel Clark Orey - UFOP Maria Tereza Menezes Freitas - UFU Dario Fiorentini - Unicamp Maura Corsini Lopes - UNISINOS Décio Gatti Júnior - UFU Maurício Rosa - ULBRA Denise Silva Vilela - UFScar Patrick Anderson - Université de Franche-Comté Elisabeth Ramos da Silva - Unitau Rebecca Rogers - Université Paris Descartes Elizeu Clementino de Souza - UNEB Renata Prenstteter Gama - UFScar Elzira Yoko Uyeno - Unitau Rita de Cássia Galego – USP Ernesto Sérgio Bertoldo - UFU Rosana Giaretta Sguerra Miskulin - UNESP/RC Gelsa Knijnik - UNISINOS Samuel Edmundo López Bello - UFRGS Juliana Santana Cavallari - Unitau Vera Lúcia Gaspar da Silva - UDESC Maria Ângela Borges Salvadori - USP Edição Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Revisão Enid Polachini Abreu Projeto Gráfico, Revisão e Diagramação Samanta Mazzolini Publicações: Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Secretaria de Pós-Graduação Apoio Executivo às Comissões de Pós-Graduação Av. Alexandre Rodrigues Barbosa, 45 - Centro CEP: 13251-900 Itatiba-SP Tel: (11) 4534-8040/ 4534-8080 Fax: (11) 4524-1933 Homepage: http://www.saofrancisco.edu.br/itatiba/mestrado/educacao Editora Universitária São Francisco - EDUSF Av. Francisco de Assis, 218 CEP: 12916-900 Bragança Paulista - SP Tel: (11) 4534-8040 Fax: (11) 4524-1933 Homepage: http://www.saofrancisco.edu.br/edusf Horizontes / Universidade São Francisco. -- Vol. 14 (1996)-. -- Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 1996v. : il. Anual, 1996-2003; semestral, 2004Continuação de: Revista das Faculdades Franciscanas (1983-1985); Revista da Universidade São Francisco (1986-1989); Horizontes: revista de ciências humanas (1990-1995) Disponível on-line: http://www.usf.edu.br/revistas/horizontes ISSN 0103-7706 (versão impressa) ISSN 2317-109X (versão on-line) 1.Ciências humanas - Periódicos. 2. Linguagem - Periódicos. 3. Educação Periódicos. 4. Educação matemática - Periódicos 5. Historiografia - Periódicos. I. Universidade São Francisco. Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de Processamento Técnico da Universidade São Francisco. Pede-se permuta Se pide canje We ask for Exchange On demande l’échange Man bittet um Austausch Si richiede lo scambio Indexação em: Psicodoc (Espanha); Clase (México); Francis (França). 3 Sumário Artigos 5 Editorial 7 “Meu Catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira Evelyn de Almeida Orlando 17 Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios Luciane Ribeiro Dias Gonçalves 25 Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX Priscila Kaufmann Corrêa 35 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus Fabiana Rodrigues Carrijo João Bôsco Cabral dos Santos 47 O Curso de Pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador Juçara Gomes de Moura Maria Aparecida Lopes Rossi 57 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG Luciane Manera Magalhães 69 Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância Edilaine Vagula Marilda Aparecida Behrens 79 Resenha: Lev Vigotski mediação, aprendizagem e desenvolvimento uma leitura filosófica e epistemológica Renata Correa Rocha 83 Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco no período de janeiro a junho de 2012. 91 Normas para publicação Publishing Norms 4 5 Editorial A Revista Horizontes, iniciativa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco, chega à sua trigésima edição, consolidando-se como órgão de divulgação de produções relacionadas a Linguagem, Discurso e Práticas Educativas; Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas, bem como História, Historiografia e Ideias Educacionais, linhas de pesquisa do programa. Igualmente, mantém seu espaço aberto a colaborações de pesquisadores do país e de outras partes do mundo, fomentando diálogos interdisciplinares, sempre necessários à pesquisa educacional. Dossiês temáticos e contribuições oriundas de demanda espontânea, ambos submetidos à avaliação do comitê científico, em conjunto com resenhas temáticas e os resumos das dissertações defendidas no programa formam a estrutura básica dos números da revista. Neste número, a revista Horizontes publica sete artigos que versam sobre diferentes temáticas. Em “Meu catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira, Evelyn de Almeida Orlando se debruça sobre a coleção título do artigo a fim de observar o projeto de escolarização da catequese empreendido pelo Monsenhor Álvaro Negromonte. Articulam-se, neste projeto, as questões postas no debate educativo do período (1940 – 1960), a adequação de métodos e programas a idades diversas, a seriação do conteúdo, o trabalho a partir da criança, a interação com o material didático e entre professor e aluno. Assim, ao analisar as questões materiais e o conteúdo do Meu catecismo, Orlando toca nestes pontos fundamentais. Mas, também, discute o avanço e apropriação da Igreja, especificamente na figura deste padre, de novas pedagogias e de releitura interna empreendida pela Igreja alcançando novas representações da instituição ao atualizar seu discurso. Em Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios, Luciane Ribeiro Dias Gonçalves, ao recuperar as ideias de alguns autores, discute em que implica, para o trabalho docente e para os currículos, a obrigatoriedade de inserção da história da África e da cultura afrobrasileira nas escolas. O deslocamento do eurocentrismo para uma perspectiva que entende que a existência de um povo já o qualifica como objeto a ser estudado é tematizado ao longo do texto. Priscila Kaufmann Corrêa apresenta o artigo Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX. As quatro mulheres focalizadas neste estudo escreveram obras clássicas. São elas: Condessa de Ségur (Meninas exemplares), Louisa May Alcott (Mulherzinhas), Johanna Spyri (Heidi) e Maria Clarice Marinho Villac (Clarita da pá virada). A autora apresenta uma breve análise da vida dessas mulheres, discute o uso de fontes literárias na pesquisa historiográfica bem como a noção de escala e a forte religiosidade presente nestas obras. No artigo de Fabiana Rodrigues Carrijo e João Bôsco Cabral dos Santos, intitulado Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus, os autores propõem uma análise discursivoliterária que discute as diferentes posições-sujeito de Carolina Maria de Jesus em seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, onde a autora narra sua existência como moradora de uma favela, em meio à pobreza e à exclusão. A análise dos autores discute essas diferentes posições na escrita do texto, no qual é criado um relato em que a personagem é protagonista de uma história/estória, onde os fios dessa escritura apresentam diferentes marcas do sujeito-narrador, do sujeito-personagem e, ainda do sujeito-autor, formando um tipo de relato autobiográfico. Discutindo a reformulação curricular de cursos de Pedagogia em Goiás, o artigo de Juçara Gomes de Moura e Maria Aparecida Lopes intitula-se O curso de pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador. O estudo focaliza a década de 1980 e as influências governamentais e sociais para democratização do ensino que acaba por propor a reformulação do curso de pedagogia, formando profissionais que atuariam nas escolas de primeiro grau. Para a compreensão deste processo, as autoras recuperam as mudanças históricas nos métodos de alfabetização que implicam diferentes compreensões de ensino-aprendizagem, de aluno e de professor, chegando aos conteúdos específicos do curso de pedagogia para o ensino de leitura e escrita. Em A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juíz de Fora/MG, Luciane Manera Magalhães discute a formação desses profissionais nos cursos de Pedagogia a partir de análise de documentos (currículos, grades curriculares, programas das disciplinas) e de entrevistas com os professores regentes e coordenadores dos cursos. Para problematizar os conteúdos envolvidos nesta formação, a autora 6 recupera e discute o conceito de “transposição didática” e expõe onde este conceito pode ser lido na Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica. As discrepâncias entre carga horária e metodologias de ensino são apontadas como foco para reformulação da proposta de formação. No artigo intitulado Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância, de Edilaine Vagula e Marilda Aparecida Behrens, as autoras propõem uma discussão sobre as modalidades de formação de professores em um ambiente complexo frente às demandas provenientes das relações entre o ensino e as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Para essa discussão, as autoras ressaltam a questão do currículo na educação a distância guiado por uma perspectiva de dialogicidade, interatividade e aprendizagem colaborativa, de forma a contribuir para um processo de autoformação do professor. O volume termina apresentando a resenha do livro Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento uma leitura filosófica e epistemológica, elaborada por Renata Correa Rocha, bem como a relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco no período de janeiro a junho de 2012, através da publicação de seus resumos. Esperamos que a leitura seja prazerosa e que estes artigos possam estimular o diálogo com outras pesquisas. Alexandrina Monteiro Jackeline Mendes Rodrigues Paula Leonardi 7 “Meu Catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira Evelyn de Almeida Orlando* Resumo Este artigo analisa o projeto pedagógico de escolarização da catequese do Monsenhor Álvaro Negromonte com base em uma série de manuais de catecismo produzida pelo autor para o ensino primário entre os anos 1940 e 1960. Seu projeto abarcava uma mudança de cunho didático-pedagógico no conteúdo apresentado, mas também uma mudança editorial, buscando transformá-los em livros didáticos interessantes para os alunos. Esses livros serviram para dar uma virada no ensino religioso, desprestigiado entre os alunos, e pôs em circulação novas representações pedagógicas acerca da Igreja, que, sem perder as suas finalidades, atualizou e reconfigurou seus discursos, muitas vezes, como uma estratégia para se manter nos debates da vida moderna. Dessa forma, a cultura católica foi se fazendo presente na História da Educação ao mesmo tempo em que ao se apropriar das contribuições das ciências educacionais modernas ia reconfigurando as práticas educativas católicas. Palavra-chave: História da Educação; pedagogia católica, escola nova, manuais de catecismo. "My Catechism": catholic culture and modernity in textbooks production for brazilian childhood education Abstract This article examines Monsignor Alvaro Negromonte's pedagogical project of schooling the catechesis from a series of catechism manuals, produced by the author for primary education, between 1940 and 1960. His project involved a change of didactical/pedagogical nature in the content presented, but also an editorial change, seeking to turn them into interesting textbooks for students. These books worked a shift in religious education, discredited among students, and put into circulation new pedagogical representations about Catholic Church which, without losing its purposes, updated and reconfigured its speeches, often as a strategy to stay in the debates of modern life. Thus, the Catholic culture became present in the History of Education at the same time that, by appropriating the contributions of modern educational sciences, reconfigured the modern Catholic educational practices. Key-words: History of Education; catholic teaching; new school; cathecism books. Introdução Os quatro livros da série “Meu Catecismo” foram publicados pelo Monsenhor Álvaro Negromonte1 em 1942 e fazem parte da sua coleção de quatorze catecismos didáticos endereçados à escola, destinados a todas as séries, do primário ao Curso Normal2. A publicação desses manuais em forma de coleção, tendo como principais destinatários os alunos das escolas confessionais católicas e também os das escolas públicas, deve ser entendida como uma estratégia de escolarização da sociedade, que buscava associar instrução e doutrinação religiosa nas suas práticas educativas. Nesse projeto, a civilização dos costumes empreendida pela escola corroborava o projeto salvífico, e ambos eram pensados de forma interdependente, configurando o conceito de educação integral na perspectiva católica, que contempla a educação da mente (por meio do desenvolvimento cognitivo), do corpo (por meio do cultivo de corpos castos e saudáveis) e do espírito (por meio da educação moral). Esse tripé ajudaria a formar o homem cristão, * Endereço eletrônico: [email protected] encaminhando-o na direção da salvação da sua alma, verdadeira finalidade da educação para a Igreja e um dos principais pontos de discordância que acirrou a disputa nos anos 1930 em torno do campo educacional, estabelecendo em posições opostas, “católicos e liberais”. O tema da educação religiosa sensibilizou, significativamente, os educadores católicos pela forte mobilização criada em torno da discussão acerca do ensino religioso nas escolas públicas, de onde foi retirado com a instauração do Estado Republicano. O movimento em prol da laicização do ensino não foi aceito pelos católicos que, apesar de terem aceitado o novo regime, consideravam essa medida absolutamente incompatível com um país de maioria católica3. O grupo que defendia o laicismo na educação e o grupo católico se colocaram em polos antagônicos no movimento que se instaurou em prol da educação nacional. O termo “educadores católicos” é utilizado neste trabalho na perspectiva proposta por Magaldi ao analisar esses posicionamentos. Segundo a autora, 8 Evelyn de Almeida Orlando ao nos utilizarmos do termo ‘educadores católicos’, estamos considerando, não a fé religiosa- de natureza individual – do intelectual em questão, mas sua adesão a um projeto de educação inserido no movimento mais amplo de renovação católica. Tal projeto educacional possuía como núcleo a temática da orientação religiosa, considerando-a em clara articulação com a visão do papel essencial da família na formação do indivíduo e de seu lugar inviolável na definição do modelo a ser seguido na educação dos filhos (MAGALDI, 2006, p. 102). O objetivo deste artigo é compreender o projeto pedagógico do Monsenhor Álvaro Negromonte como parte de um movimento de renovação catequética que se alastrou pelo mundo no século XX, que incidia diretamente em uma mudança nas práticas educativas católicas, a partir da análise de parte da sua coleção de catecismos, especificamente, os catecismos primários, atentando para a mudança de cunho didático no conteúdo e na mudança editorial proposta por seu autor. O movimento de recristianização sociedade pela escolarização da catequese que tomou corpo no Brasil no final dos anos de 1920 estava ligado a mudanças que a Igreja Católica vinha empreendendo no âmbito internacional. Em 1905, com a Encíclica Divini Illius Magistri, única dedicada à catequese, o Papa Pio X reconheceu o primado da catequese na missão da Igreja e uma onda de ações foi desenvolvida nesse sentido. Em 1912, foi publicado o Catecismo da doutrina cristã, um texto que buscava condensar as verdades da fé em um texto único de catecismo, uma exigência desde o Concílio de Trento, que não se chegou a se concretizar totalmente4; Em 1923, foi criado o Conselho Catequético central com a missão de promover e coordenar ações catequéticas em todo o mundo; em 1929, foi instituída a disciplina Catequética nos cursos teológicos e, dois anos depois, também nas faculdades de teologia; Em 1935, foi decretada a instituição do Conselho Catequético em todas as dioceses (BOLLIN & GASPARIN, 1998). Nessa direção, uma série de reuniões catequísticas foram promovidas, inovando os debates com semanas e dias de atualização que eram destinadas não só aos sacerdotes, mas também à formação de catequistas leigos para serem enviados às áreas com pouco clero. Esses encontros propiciaram um avanço nos debates sobre a catequese e estimularam a reflexão sobre antigos e novos problemas do ensino de catecismo, envolvendo um número cada vez maior de leigos nos projetos da Ação Católica, ampliando o leque das discussões educacionais que, em vários países como a França, Bélgica, Alemanha, Portugal, Itália, dentre outros, passaram a apresentar um diálogo maior com a esfera científica (BOLLIN & GASPARIN, 1998). Foi na efervescência desse movimento que, no Brasil, a partir dos anos 1930, o padre Álvaro Negromonte empreendeu um projeto de renovação da pedagogia católica que abrangia várias ações encadeadas5, dentre as quais, a reformulação nos textos de catecismo, adaptandoos para a escola, em estreita relação com as contribuições oriundas das Ciências da Educação. Certamente, ele não foi o único, no Brasil, a empreender projetos nessa direção. Em diferentes estados, educadores católicos vinham manifestando a necessidade de se reformular o ensino religioso, formar novos professores dentro das novas concepções pedagógicas modernas e produzindo ações nessa direção6. O discurso psicopedagógico que se instalou nesse campo levou a Igreja a rever sua concepção de criança e o método utilizado para a instrução e transmissão da fé. Alguns catequistas, influenciados pelas ciências da educação e pelo movimento escolanovista, modificaram sua práxis pedagógica e criaram novos métodos, incorporando, sobretudo, as suas contribuições de caráter técnico-didático. O trabalho de Negromonte ganha relevo nesse contexto porque suas ações foram calcadas em duas importantes estratégias que o conduziram a essa posição de destaque nesse movimento: concomitantemente, ele conquistou uma importante rede de sociabilidade que contribuiu para propagar de forma vigorosa as suas ideias em diferentes espaços da sociedade e desenvolveu um projeto pedagógico vasto, sistematizado e com um alto grau de coesão. Seus livros foram publicados de forma sequencial e articulados a um projeto de formação de professores, veiculado na imprensa periódica educacional católica do Estado de Minas e, posteriormente, convertidos em uma coleção de livros didáticos, que abrangia da 1ª série primária ao Curso Normal. A esses, posteriormente, foi acrescentado um conjunto de livros destinados à educação das famílias, dando a ver uma proposta de colaboração entre família e escola em seu projeto pedagógico. Ancorado nas discussões travadas com os escolanovistas mineiros, o trabalho do padre Negromonte está articulado em larga medida aos usos que os católicos fizeram do impresso nas Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 “Meu Catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira suas estratégias de conformação do campo doutrinário da pedagogia, como assinala Carvalho (1994). Ao utilizar o livro como um dos principais instrumentos de difusão da sua proposta pedagógica, o autor revela a compreensão que vinha sendo dada a esse tipo de objeto acerca da cultura material escolar. Um novo texto de catecismo para o ensino primário “Tudo estava a pedir um texto nosso...” (Negromonte, 1942a). Como uma das principais estratégias de ação nessa direção, Negromonte propôs uma reformulação nos textos de catecismo em um duplo aspecto: material e textual. O novo significado da catequese compreendia uma formação voltada para a vida religiosa na prática. Deveria se ensinar a doutrina sem perder de vista o aspecto formativo da educação religiosa, mas de forma atraente, interessante para os alunos e, consequentemente, eficaz para o objetivo ao qual se propunha. Os antigos manuais não atendiam a essas expectativas. Os novos textos, se quiserem realmente servir à finalidade do catecismo, que é formar o cristão prático, devem ter uma feição inteiramente diversa da atual. Sei que diante de um catecismo novo, todos sentiremos uma impressão estranha. Temos na mente aquelas perguntas, aquelas expressões que decoramos em criança e ensinamos mil vezes aos pequenos; acostumamo-nos aquela ordem de matéria; afizemo-nos até o tipo de livro dos nossos catecismos [...] Mude-se aquilo e nós estranharemos [...] Mas é preciso mudar! (NEGROMONTE, 1942a, p.75). Legitimado por importantes figuras do catolicismo, ao falar na Revista Eclesiástica Brasileira sobre essa necessidade de um texto novo de catecismo, Negromonte já o preparava em quatro volumes, sob o estímulo de amigos como D. Hélder Câmara que não hesitava em referenciar suas obras como modelos de programas escolares a serem adotados. O padre Hélder Câmara chamava a atenção do corpo de agentes eclesiásticos para as realizações do padre Álvaro Negromonte: sentindo, por experiência própria, a falta que fazem livros adaptados ao meio brasileiro, não se contentou em dizer como esses livros deveriam ser escritos. Deu-nos Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 9 os livros de que precisávamos. Ofereceunos o mestre brasileiro um manual para o curso de admissão e uma coleção completa para o curso secundário. No momento, ele prepara uma coleção também, completa, para o curso primário (CÂMARA, 1941, p.401). Assim, os novos textos publicados por Negromonte foram produzidos como livros didáticos. Tal conceito, segundo Munakata, permite ampliar o leque de possibilidades do autor em relação aos usos do texto. Pare ele, livro didático é para usar: ser carregado à escola; ser aberto; ser rabiscado; ser dobrado, ser lido em voz alta em alguns trechos e em outros em silêncio; ser copiado; ser transportado de volta à casa; ser aberto denovo; ser ‘estudado’ [...] Objeto para ser usado, livro didático implica não uma relação direta e imediata do aluno e do professor com o conteúdo, esse mundo platônico de formas inteligíveis, mas antes atividades, práticas e de fazeres, numa situação efetiva de ensino e aprendizagem (1997, p. 204). E foi nessa perspectiva que ele produziu a série Meu Catecismo. Na abertura dos quatro livros, destinados ao primário ele apresenta uma Nota ao aluno, onde explica qual a relação que ele deve ter com o livro. No volume destinado ao 2º ano é possível depreender como a sua forma de se dirigir ao aluno é permeada de sentidos, revelando ainda seu conhecimento e apropriação das contribuições da Psicologia Infantil. Criança! Este catecismo é seu. Foi para você que eu o escrevi. Veja o nome dele: “MEU CATECISMO”. Leia-o com cuidado, estude nele com gosto. Pegue seus lápis de cores para colorir as figuras, mas tudo de uma vez, não. É para ir colorindo só a lição do dia. Complete as lições escrevendo o que falta. Faça os desenhos. O livro vai ficar todo estragado. Não faz mal. No fim do ano dê a mamãe para guardar: será uma ótima lembrança quando você for grande. E, para o ano você terá outro catecismo. Seja sempre bonzinho, queira bem ao Menino Jesus e reze por mim (NEGROMONTE, 1942, p. 9). 10 Evelyn de Almeida Orlando A postura incentivada pelo autor de interação com o objeto material tinha um sentido de propiciar uma relação de aproximação e intimidade com o texto que deveria ser estendida ao próprio processo de ensino-aprendizagem. Da mesma forma que o aluno deveria se sentir à vontade para interagir com o livro, dobrando, pintando, manuseando suas páginas, fazendo anotações, ainda que salvaguardando alguns cuidados que refletiam hábitos de moderação como não pintar o livro todo de uma só vez, ele deveria se sentir à vontade para interagir também em suas aulas, com a professora, perguntando, participando, se expressando, como forma de facilitar a aprendizagem dos saberes considerados elementares para a sua fé. Os livros de catecismo do padre Álvaro Negromonte se configuravam como “uma tentativa de condensar e simplificar num espaço mínimo e portátil o que se teria necessidade de conhecer e utilizar na atividade escolar”. Evidentemente, Isso implica uma série de critérios já apontados: conteúdo adequado ao currículo, legibilidade e inteligibilidade apropriados ao público-alvo, subdivisão da obra em partes, como texto propriamente dito, boxes, resumos, glossário, bibliografia, atividades e exercícios, etc, segundo, uma estrutura de organização adequada à aprendizagem; e, sobretudo, subordinação do estilo do texto e da arte gráfica a esse objetivo de servir de instrumento auxiliar de ensinoaprendizagem” (MOREIRA LEITE apud MUNAKATA, 1997, p.101). Nesse sentido, conforme Darnton (1990) é importante a dupla estratégia, que combina a análise textual à pesquisa empírica para destrinchar uma fonte tão elucidativa. A materialidade evidencia a história dessa produção e fornece elementos que iluminam as sombras desses livros que foram estabelecidos como monumento na memória coletiva daqueles que com ele interagiram. Segundo Chartier, mais do que nunca, historiadores de obras literárias e historiadores das práticas e partilhas culturais têm consciência dos efeitos produzidos pelas formas materiais. No caso do livro, elas constituem uma ordem singular, totalmente distinta de outros registros de transmissão tanto de obras canônicas quanto de textos vulgares. Daí, então, a atenção dispensada, mesmo que discreta, aos dispositivos técnicos, visuais e físicos que organizam a leitura dos escritos quando se torna um livro (1994, p. 8). O suporte material de um texto o carrega de significação para o leitor. As distintas formas materiais estão diretamente ligadas às práticas de leitura, à produção de sentidos. No mundo do texto, é preciso se atentar para o que Chartier chama de “formas e sentidos”, que vai da produção material até a apropriação da mensagem pelo leitor. O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação [...] A ordem dos livros tem também um outro sentido. Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são tão suscetíveis (CHARTIER, 1994, p. 8). Publicada, inicialmente, pela Editora Vozes, a série Meu Catecismo, posteriormente, passou, juntamente com os outros livros do padre para a Editora José Olympio e, a partir de 1960, para a Edições RUMO, aberta pelo autor em sociedade com seu sobrinho para divulgação de obras de cunho religioso e literário7. Os livros aqui analisados, no entanto, foram diferentes edições publicadas pela José Olympio. Por serem destinados ao curso primário, esses livros apresentavam uniformidade no formato, no título, no método de exposição das lições e nos conteúdos, encadeados e aprofundados de forma sequenciada. Tinham em vista responder a necessidade de novos textos de catecismo, mais didáticos, mais interessantes, mais voltados para a Psicologia da criança, sem deixar escapar os conceitos mais importantes da doutrina e da fé. Do ponto de vista material, tratava-se de brochuras com formatos em torno de 12, 5 cm por 18,5 cm. O número de páginas variava de acordo com o público alvo. As duas primeiras séries possuíam conteúdo mais sucinto, enquanto os livros da terceira e da quarta série apresentavam maiores desdobramentos das lições, o que resultava em um consequente aumento do número de páginas. As capas dos livros da série Meu Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 “Meu Catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira Catecismo, publicados pela José Olympio, são todas ilustradas com figuras traçadas, mantendo uma cor de fundo padrão em diferentes edições. O formato da capa permanece o mesmo: uma tarja vermelha no alto e no pé da página, com o nome do autor e o da editora respectivamente; a ilustração, ocupando quase toda a capa reservando um espaço para o título Meu Catecismo, abaixo da ilustração, e a série no alto, à esquerda, destacada dentro de um círculo vermelho. As contracapas dos manuais dessa série, em sua maioria, serviam como espaço de propaganda para os livros da coleção Monsenhor Álvaro Negromonte, com exceção do volume três, que traz essa referência nas orelhas e, na contracapa, faz uma propaganda do Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino Freire. A folha de rosto segue a habitual sequência burocrática de informações: nome da coleção com a indicação do volume; título do livro; a indicação da série; a autoria das ilustrações; a edição, nome da editora, lugar em que se situa e ano de publicação. Alguns elementos são distintivos na estrutura desses livros. Em todos eles, aparece uma carta do Papa endossando o trabalho do autor, o que, por sua vez, funcionava como selo de legitimidade da obra; há, ainda, uma nota da editora falando sobre o autor, sua trajetória e seu trabalho educacional (nos volumes um e três); uma nota “Aos professores” por parte do autor explicando o seu método e a proposta didática para o uso do texto; uma carta do padre às crianças falando do livro em questão (nos volumes dois e três)8. Não há bibliografia em nenhum deles. Mas, algumas indicações de textos bíblicos e missal aparecem como recurso para consulta do aluno sobre determinado assunto. Todas as lições possuem ilustrações vazadas, permitindo que o aluno possa interagir com ela, colorindo-a ao seu gosto. No volume para o primeiro ano, as ilustrações ocupam uma página inteira e precedem as lições. No segundo e terceiro, elas ocupam quase toda a página, salvo alguns casos em que aparecem em tamanho menor no meio das lições. No quarto volume as ilustrações estão em quadros pequenos, no interior das lições, com legendas ao lado, que algumas vezes aparecem para o aluno completar. Essa possibilidade que o livro apresenta torna não só o conteúdo mais didático e aprazível ao aluno como, do ponto de vista comercial, incide diretamente na circulação do objeto em dois aspectos: ao desmistificar o velho caráter sagrado que se configurou em torno de sua representação, ele se torna um objeto de desejo pessoal, cada um quer ter o seu próprio livro de catecismo, Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 11 rompendo com a tradição de passar de um irmão a outro e garantindo suas vendas no ano seguinte; as ilustrações vazadas, de acordo com Smith Jr (1990), poderiam não ser apenas uma estratégia didática, mas, sobretudo, uma possibilidade de compensação comercial por terem custo reduzido. De uma forma geral, o “texto novo de catecismo” presente nas alocuções do padre Negromonte, deveria ser tão atrativo quanto os das outras disciplinas escolares, acompanhando as inovações que a Psicologia sugeria para o trabalho com as crianças, para maior eficácia do processo ensino-aprendizagem. Segundo Negromonte, “para sermos entendidos das crianças falemos sua língua, reduzamo-nos ao seu vocabulário, embora com a louvável preocupação de aumentá-lo e enriquecê-lo [...]. A mudança de linguagem de um texto novo de catecismo é indubitavelmente preocupação de primeira linha” (1942a, p. 75). O senso de medida, pouco comum na maioria dos catecismos, revela-se uma das preocupações do padre, que procura, através das lições do Meu Catecismo, oferecer apenas o que o aluno pode comportar, em lições que vão aumentando as dosagens e se desdobrando de acordo com a série. Essa possibilidade de um programa de catecismo seriado se apresenta como uma das principais vantagens do catecismo escolar. Preocupado em formar para a vida, as lições apoiam-se no método integral, desenvolvido, claramente, na nota “Aos Professores”, onde o autor retoma algumas sugestões de trabalho aprofundadas na Pedagogia do Catecismo. A proposta era fornecer um roteiro temático, em lições, para que os professores pudessem, de forma inventiva, adaptá-los às realidades das suas salas de aula. Nos volumes para o segundo, terceiro e quarto ano, o conteúdo da nota “Aos Professores” é, praticamente, o mesmo, acrescentando um ou dois parágrafos com explicações específicas, como é o caso do livro para o terceiro ano, que o padre indica quais as lições que podem ser suprimidas se não houver tempo de dar todo o conteúdo9. No volume para o quarto ano, o autor explica que o livro foi pensado para duas aulas semanais. Na escola em que só houver uma aula semanal, a matéria deverá ser dividida e o livro poderá ser usado, também, no ano seguinte. Em todas as notas, Negromonte reforçava a importância de seguir o seu método que, segundo ele, era baseado em uma história de onde sai a doutrina, na qual se fundamenta a formação. No volume Guia do Catequista, destinado a orientar o trabalho no segundo ano, ao tratar dessa questão, o padre afirma: 12 Evelyn de Almeida Orlando sendo a inteligência a faculdade mestra do homem vamos direto à inteligência: a leitura, dando a história e a doutrina, deve ser entendida. Feita a leitura, vem a verificação, através do questionário, em cada lição, apelando-se mais para a Inteligência que para a memória. O que for bem entendido será facilmente conservado. Seguem os exercícios, cuja importância nunca será demasiado encarecida. Por vários motivos: integram a lição, que ficará muito incompleta sem eles; constantemente é neles que se completam os quatro pontos da formação e dão maior prazer às crianças, constituem excelente aprendizagem para a ação católica com seus métodos do “ver, julgar e agir”, pois sou dos que acham a capacidade de julgar o ponto fundamental da educação. Gravíssimo erro seria eliminá-los, sob qualquer pretexto. Pelo contrário: devemos multiplicá-los até. Outras atividades, que o livro não pode dar – álbuns, cartazes, dramatizações, excursões -, serão praticadas com agrado e proveito. As recapitulações, orais ou escritas (em forma de testes, serão muito úteis, algumas vezes ao ano. Cada lição termina com uma pergunta e sua resposta, para o aluno decorar. Deste modo evitamos inconvenientes do sistema e lhe aproveitamos as vantagens. É que perguntas e respostas não devem ser ponto de partida, mas de chegada – quando a doutrina aprendida vai ser conservada numa fórmula completa (NEGROMONTE, 1961, p. 7-8). As marcas dessa relação de interdependência, que se estabeleceu ao longo dos séculos entre catequização e leitura, aparecem de forma clara nos livros dessa série. De um ponto de vista prático, as lições se organizam de forma que “lição e exercício” acabam, quando não exercendo, auxiliando o processo de alfabetização. Essa articulação também tem uma história. Segundo Hèbrard (2007), a lição e o exercício fazem parte da história das práticas escolares. Assim, a “lição é a ordem do saber que só se exprime quando perfeita. O exercício, ao contrário, é essa autorização que a instituição dá ao aluno, de mostrar suas tentativas, seus esforços, seus fracassos, suas dificuldades. Expor o momento da aprendizagem muito mais que seu resultado: é isso o exercício” (Hèbrard, 2007, p. 4). A ênfase, nos exercícios, dada pelo autor, insere-se nessa perspectiva de aprendizagem e na formação de habitus10. Para ele, a finalidade do ensino religioso é criar atitudes e hábitos [...] perfeita escola para a vida, o catecismo deve encaminhar para o cumprimento dos deveres [...] insistiremos nesses pontos de formação sempre e sempre porque são a essência da catequese e porque a constituição de um hábito requer, em geral, não pequenos cuidados (NEGROMONTE, 1960, p.12). Os exercícios, propostos nas lições, incluem o habitual questionário, a partir do segundo ano, com perguntas abertas. Além disso, é clara a referência para que o professor vá além dos exercícios propostos e utilize dos recursos que a moderna Pedagogia já atestou serem proveitosos, como as dramatizações, a confecção de álbuns, pelos próprios alunos, a ornamentação da sala em conjunto, excursões, jogos, recapitulações e a mesma técnica de leitura usada na aula de Língua Portuguesa, “mesmo porque todo ensino, principalmente no curso primário deve ser entrosado” (NEGROMONTE, 1960, p. 13). As lições da série Meu Catecismo são organizadas em pequenas porções, que se desdobram e se aprofundam ao longo do curso primário, de acordo com a capacidade dos alunos. O método tradicional era descrito por Negromonte como muito dogmático e apresentava a tendência de prescrever, de fora para dentro, o que a criança deveria aprender, sem a preocupação de saber se ela era capaz ou se o programa estabelecido estava de acordo com as suas potencialidades momentâneas e suas aptidões. Em contrapartida, sua proposta pedagógica estabelecia porções de medida para os conteúdos, de forma que o ensino religioso não aborrecesse o aluno, tornando-se indesejado e pouco compreensível. Esse encadeamento e organização das lições, reforça o que Lajolo (1996) afirma em relação ao livro didático e confere aos catecismos do padre Álvaro Negromonte maior legitimidade quanto ao seu papel na História da Educação Brasileira. Para Lajolo o livro didático é instrumento específico e importantíssimo de ensino e de aprendizagem formal [...] Assim, para ser considerado didático, um livro precisa ser estudado de forma sistemática, no ensinoaprendizagem de um determinado objeto do conhecimento humano, geralmente já consolidado como disciplina escolar. Além Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 “Meu Catecismo”: cultura católica e modernidade na produção de livros didáticos para a educação da infância brasileira disso, o livro didático caracteriza-se ainda por ser passível de uso na situação específica da escola, isto é, de aprendizado coletivo e orientado pelo professor (1996, p. 4). Os catecismos escolares produzidos por Negromonte eram, na verdade, os livros utilizados nas aulas de ensino religioso. Por essa razão deveriam estar equiparados, pedagogicamente, com as outras disciplinas escolares, gráfica e pedagogicamente. Neste caso, o projeto do seu autor buscava atender o princípio da funcionalidade. A expressão “educação funcional” foi usada por Edouard Claparède11 para designar a educação que se propõe desenvolver os processos mentais considerando-os, não em si mesmos, e sim quanto à sua significação biológica, ao seu papel, à sua utilidade para a ação presente ou futura, para a vida. A educação funcional é a que toma a necessidade da criança, o seu interesse em atingir um fim, como alavanca da atividade que se deseja despertar nela (CLAPARÈDE, 1954, p.1). A função da lição seria, a partir do interesse, produzir ações que respondessem a uma necessidade. Com isso, Negromonte se aproximava da Pedagogia Funcional de Claparède. De acordo com este autor, “o interesse é o princípio fundamental da atividade mental [...] Agir, ter uma conduta, é escolher, a cada passo, entre muitíssimas reações possíveis. O móvel dessa escolha contínua é o interesse” (CLAPARÈDE, 1954, p. 61). Nessa perspectiva, ao tratar da pessoa de Jesus Cristo, tal como o autor faz logo na primeira lição do primeiro volume, criando um enredo entre as lições, deveria não só despertar a curiosidade do aluno como aguçar o seu interesse em saber mais sobre o assunto. Primeiro, Jesus aparece como um menino que, como todos os outros, têm uma história que segue com o seu nascimento, com os convidados que foram lhe prestigiar com presentes, a sua vida em família, o seu crescimento e a sua relação de proximidade com as crianças. Suscitado o interesse, estabelecida a relação de proximidade, a eficácia do processo está no que Claparède chama de “Lei de Adaptação funcional”, que pode ser formulada pelo seguinte corolário: a ação se produz quando é de natureza a satisfazer a necessidade ou o interesse do momento. Dela se extrai a seguinte regra de aplicação prática: para fazer um indivíduo agir, deve-se colocá-lo nas condições próprias ao aparecimento da necessidade que a Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 13 ação que se deseja suscitar tem por função satisfazer. Na mesma perspectiva quando trata da Igreja, da missa e das festas como instituições sagradas, mas também como espaços de sociabilidade, o autor espera criar necessidades que suscitarão um conjunto de ações para satisfazê-las e que resultarão na configuração de um cristão prático. As lições sobre os Mandamentos, a graça, a oração, os sacramentos estão carregadas de um código comportamental próprio da civilidade cristã. Segundo Chartier (2004, p. 58), “cristã e universal por excelência, a civilidade se diferencia, portanto, na sua execução em tantos comportamentos convenientes a cada estado ou situação”. De maneira que esse conjunto de regras, que se constituem práticas de um determinado grupo, faz parte do processo civilizatório ao qual o homem está submetido. Mas, a civilidade, segundo La Salle, vai além das normas de conveniência social, se estiver embasada no Evangelho. Nesse caso, ela é uma maneira de render homenagem a Deus: ter uma postura modesta e decente é respeitar sua presença perpétua, ser civil e honesto com outros é prestar honra a ‘ membros de Jesus Cristo e a Templos vivos, animados pelo Espírito Santo. A civilidade é, então, ao mesmo tempo, honestidade e piedade e abrange tanto a Glória de Deus e a salvação como a conveniência social (CHARTIER, 2004, p. 64). O Tratado de civilidade de La Salle, citado reiteradamente por Elias no volume um do Processo Civilizador (1990), cristianiza os fundamentos da civilidade e faz circular, a um público infantil, “normas de condutas coercitivas e exigentes na intenção de frear os impulsos sensuais e afetivos” (CHARTIER, 2004, p. 67). A estratégia estaria em criar, no aluno, o interesse por esses preceitos, tornando sua aprendizagem uma necessidade. Nesse ponto, poderia se perguntar: como criar essa necessidade na escola? Ao que Claparède responde: “A solução desse problema parece desesperadora. Não o é, entretanto, para quem leve em conta os ensinamentos da psicologia da criança. Esse saberá que o jogo, o brinquedo, é uma das principais necessidades da criança” (1954, p. 157). Não por acaso, foi esse o caminho que Negromonte elegeu em seu projeto pedagógico. Os professores deveriam atrair os alunos, despertando-lhes a curiosidade, estimulando-os a participarem da aula, através de jogos e 14 Evelyn de Almeida Orlando brincadeiras pautados na temática em questão. Com isso, eles iriam incorporando, por uma necessidade que lhes é inerente - a brincadeira inúmeros hábitos e normas de conduta que passariam reger a sua vida cotidiana, transformando-os em verdadeiros cristãos, pela fé e pelas práticas. Ao tratar dessa questão em sua Pedagogia do Catecismo, o padre ensinava: Chego a uma classe de criancinhas todas desatentas. A catequista ensina quantas naturezas há em Jesus Cristo e se esforça com as mãos para manter os pequeninos voltados para ela, a fim de ouvi-la. E não consegue nada. Eu tiro do bolso meia dúzia de santinhos e os espalho no banco. A criançada rodeia. Chovem comentários. Fazem-se perguntas inocentíssimas, deliciosíssimas. Respondo e faço outras [...] Deixa eu ver [...] e estendem as mãozinhas ávidas, os olhos rutilantes, fonte contraída, suspensa a respiração (NEGROMONTE, 1940, p. 149150). O que parecia ser uma preocupação apenas de ordem metodológica, acabou se tornando a base de uma proposta pedagógica para as aulas de ensino religioso, fazendo com que os saberes elementares sobre a doutrina da Igreja, que consistem no conteúdo básico desses manuais, associado às questões do seu cotidiano, permitissem ao aluno estabelecer as articulações necessárias entre fé e vida, através de um conjunto de práticas que reforçam a civilidade cristã. Considerações Finais A mudança de cunho didático no conteúdo e a mudança editorial empreendida pelo Monsenhor Álvaro Negromonte em seus textos de catecismo foram elementos essenciais para a renovação do ensino religioso e a Pedagogia católica na sociedade brasileira entre as décadas de 30 e 60 do século XX. De fato, o catecismo auxiliou na recristianização da nação no que tange à disputa externa pelo campo religioso, mas do ponto de vista interno, a qualidade dos novos cristãos era fruto de um projeto de cristianização mais eficiente e duradouro. A publicação de novos livros de catecismos, em um novo suporte material e textual, tinha um significado mais amplo para a Igreja, que ia além da esfera pedagógica e recaía no âmbito político. Publicar é tornar algo público. É fazer conforme assinala Bourdieu “passar do oficioso ao oficial. A publicação é a ruptura de uma censura” (2001, p. 244). Publicar novos textos de catecismos era uma demonstração pública do diálogo católico com os novos tempos que vinha tentando ser silenciado pelo grupo de liberais republicanos, ao fazerem frente ao catolicismo. Significava romper com a censura republicana e imprimir as marcas da Igreja na História. Dessa forma, a cultura católica foi se fazendo presente na educação ao mesmo tempo em que, ao se apropriar das contribuições das ciências educacionais modernas, reconfigurou muitas das suas práticas educativas. Essa renovação da Pedagogia Católica permite pensar em outros enfoques e contornos que configuraram a educação brasileira na primeira metade de século XX, imprimindo marcas, ainda sombreadas na historiografia educacional do Brasil. Referências Bibliográficas BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a Redemocratização. In: FAUSTO, Boris. História da Civilização Brasileira: O Brasil Republicano: Economia e cultura – 1930 – 1964. Tomo II, v. 4º. 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Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1964, vol. 24, fasc.3. (Depoimentos contracapa) CERTIDÃO DA ESCRITURA DE EDIÇÕES RUMO S.A. In: Diário Oficial da União. 29 de março de 1960. Seção 1, parte 1, p. 5751, 5752. NEGROMONTE, Álvaro (Pe.) Meu Catecismo: 2º ano primário. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1942 ______________________. Meu Catecismo: 3º Ano Primário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1957. _____________________. Meu Catecismo: 4º Ano Primário. 17ª ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1959. _____________________. Meu Catecismo: 1º Ano Primário. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1960. 16 Evelyn de Almeida Orlando Notas 1 O Monsenhor Álvaro Negromonte, foi um intelectual da educação católica que atuou, principalmente, nos Estados de Minas Gerais e no Rio de Janeiro, implementando, a partir de Minas, um projeto pedagógico que alcançou circulação nacional e lhe conferiu o título de um dos maiores educadores católicos do Brasil, como atestam D. Jaime Câmara e Gilberto Freyre (1964). 2 Sobre a coleção, ver Orlando (1998). 3 Sobre a posição dos católicos face ao regime republicano e os desdobramentos da questão laicista na educação brasileira a partir dos anos de 1930, ver Jamil Cury (1978), Horta (1994), Beozzo (1984). 4 Alguns países como Itália, Alemanha e Áustria adotaram em diferentes momentos, textos únicos de catecismo que refletiam mais a idéia de identidade sócio-cultural do que a unificação das práticas educativas da Igreja. O próprio Catecismo da Doutrina Cristã, apesar de ter sido difundido em muitos países, só foi instituído, na prática, como texto oficial na Itália. Sobre esse movimento catequístico no âmbito internacional, ver Bollin & Gasparin (1998). 5 Tais ações não se constituem objeto de análise deste artigo, mas podem ser encontradas nos trabalhos de Orlando (2008), Calvo (1986) e Silva (2005) 6 Essa expressividade pode ser vista nas teses do Congresso Catequístico Brasileiro, realizado em 1928, em Belo Horizonte e nas teses apresentadas no I e no II Congresso Católico de Educação, realizados pel Confederação Católica Brasileira de Educação (CCBE), em 1934 e 1937, nas cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, respectivamente. Só o I Congresso de Educação católica publicou Anais com as teses apresentadas. No entanto, as teses apresentadas nos outros dois congressos foram largamente difundidas na imprensa periódica católica do Estado de Minas, sobretudo, nos jornais O Horizonte e O Diário. 7 Ver Certidão de Escritura publicada no Diário Oficial da União (1960) 8 Essa carta, que muda a cada série, tendo em vista o público para o qual se dirige, aparece como um dos elementos pré-textuais dos livros da série Meu Catecismo e confere uma singularidade à obra, por estabelecer uma relação pessoal entre o autor, o objeto impresso e o leitor. Por ser endereçada a cada público específico, o fato de alguns dos manuais analisados não a conterem revela que as reimpressões não são uniformes, mesmo se tratando de uma coleção publicada pela mesma casa editorial. 9 “Quando não for possível dar as 31 lições durante o ano, suprimam-se, digo com pena: foi tudo tão planejado!) as seguintes: O homem, Promessa do Salvador, Vida Oculta, Vida pública, A missa une os cristãos, As festas da Igreja, Perdão dos pecados, Para a boa confissão, Os Sacramentos, A comunhão, Respeito à Igreja, Os Mandamentos” (NEGROMONTE, 1957. p. 10) 10 A prática de leitura, para o autor, também se constitui em um exercício. Mesmo quando a professora lê a lição, ou apresenta a lição, os alunos devem estar ouvindo, atentos, concentrados, o que ele defende também como processo ativo de aprendizagem. 11 Segundo Claparède, foi na América que surgiu a Psicologia funcional, com William James, sendo nada mais do que a “aplicação à Psicologia, por um lado, do ponto de vista biológico, e, por outro, do ponto de vista pragmatista, segundo o qual, antes de mais nada é a ação que importa: não vivemos para pensar, pensamos para viver”. No entanto, para Claparède, James não expõe de maneira muito explícita os princípios da educação funcional, tendo sido John Dewey quem realizou essa parte do programa. A concepção da educação funcional está presente portanto, segundo o próprio Claparède, em toda a obra pedagógica de John Dewey (CLAPARÈDE, 1954). Sobre a autora: Evelyn de Almeida Orlando: Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NEPHE) da UERJ. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 7-16, jan./jun.2012 17 Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios Luciane Ribeiro Dias Gonçalves* Resumo Este artigo é uma reflexão teórica que busca dar sentido à cultura negra no cotidiano escolar, a partir da promulgação da Lei 10.639/03, que lançou para a escola o desafio de trazer a história da África e cultura afro-brasileira como um dos conteúdos eleitos para discussão em sala de aula. A dificuldade de implementação da referida lei pousou sobre a falta de conhecimento sobre o assunto, o que nos convoca a discutir acerca da uma postura pertinente, por parte da escola, frente a cultura negra. Nesse trabalho, apresento e defendo como pertinente, a postura de reconhecimento e valorização da cultura negra a partir do resgate da história da África, designando à Educação o papel relevante de romper com o legado eurocêntrico que tem excluído a cultura negra. Proponho a utilização dos valores civilizatórios afro-brasileiros e as africanidades como forma de fortalecimento da autoestima negra e a construção de uma nação mais criativa e produtiva. Palavras-chave: Cultura negra, valores civilizatórios, africanidades. Culture, education and law 10.63903: discussions, trends and challenges Abstract This article is a theoretical reflection that seeks to make sense of the black culture in school everyday, from the enactment of the law 10.63903, which launched to school the challenge of bringing the history of Africa and Afro-Brazilian culture as one of the elected content for classroom discussion. The difficulty of the implementation of the law landed on the lack of knowledge on the subject, which convenes to discuss about an appropriate posture on the part of the school, front black culture. In this work, present and defend as relevant, the posture of recognition and appreciation of black culture from the rescue of African history, referring to the important role of Education break with Eurocentric legacy that has deleted the black culture. I propose the use of African-Brazilian civilization values and africanidades as a way of strengthening of selfesteem and the construction of a more creative and productive nation. Keywords: black culture, civilization, values africanidades. A formação pluriétnica da população brasileira é um fato inquestionável. Mesmo um olhar empírico direcionado a realidade à nossa volta é capaz de nos fazer perceber o quão diversa é a nossa composição étnico-cultural. É justamente isso que diferencia a população brasileira: a sua pluralidade de matrizes culturais. Não seria mais justo e produtivo que esta diversidade estivesse presente em todos os setores da sociedade e, principalmente, no campo da Educação? É fato que a diversidade cultural não é reconhecida de forma equânime pela escola. Em um breve olhar sobre este espaço, percebe-se a existência do predomínio, para não dizer hegemonia, da matriz cultural europeia como cultura eleita para o trabalho pedagógico. Porém, a atual discussão sobre as conjunturas sociais tem promovido aberturas de espaços para maior número de contestações e revoltas dos diversos setores “excluídos”. Diante disso, somos instados a perguntar: se somos um país diverso, por que a Educação não reflete esta diversidade? Como uma forma de resposta a esse estado de coisas, as culturas excluídas e grupos subjugados têm procurado * Endereço eletrônico: [email protected] cada vez mais formas de reestruturações curriculares, o reconhecimento de seus valores e influências, conforme Gonçalves (2004) destaca, em um de seus estudos. A discussão sobre a questão das relações raciais tem ocupado papel de destaque nos debates recentes. Os movimentos negros têm buscado espaço para que, no ambiente escolar, seja dada visibilidade à cultura negra, para que aluno(a)s negro(a)s e branco(a)s possam (re)ver a formação da nossa sociedade e sua própria formação identitária. Nessa perspectiva, a postura da instituição educacional, revelada pela sua proposta curricular, deve se preocupar com as culturas negadas a fim de promover mudanças na estrutura sócioeconômica da sociedade. Sobre isso, Santomé indica que: O discurso educacional tem que facilitar que as crianças de etnias oprimidas, assim como as dos grupos dominantes, possam compreender as inter-relações entre os preconceitos, falsas expectativas e condições infra-humanas de vida das populações marginalizadas com as 18 Luciane Ribeiro Dias Gonçalves estruturas políticas, econômicas e culturais dessa mesma sociedade (SANTOMÉ, 1995, p. 170). Dessa forma, recorro a um conjunto de símbolos gráficos de origem akan, chamado adinkra para buscar o ideograma sankofa. Este ideograma é representado por uma estilização do pássaro, que vira a cabeça para trás. Como a cultura africana é povoada de mitos e símbolos que expressam conceitos filosóficos, o sankofa significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”, sempre podemos retificar nossos erros. Esta é a proposta deste texto: voltar às raízes e buscar compreendê-la nas suas especificidades. A proposta é que reformulemos a nossa representação sobre cultura negra, que a busquemos, voltando às nossas raízes, para que a escola possa reformular a sua postura eurocêntrica. Contudo, podemos nos questionar: Qual é a cultura negra que se reivindica estar presente nos currículos e no cotidiano escolar? Disponho-me, neste ensaio, a discutir a cultura negra, especificamente no que tange ao fato de sua negação e seu silenciamento nos currículos escolares, uma vez que, atualmente, a necessidade legal tem feito com que educadore(a)s de todo país repensem suas práticas eurocêntricas. Busco, assim, apresentar o arcabouço jurídico normativo que impulsiona esta mudança. A partir daí, discuto que a mudança não pode ser apenas no acréscimo de conteúdos nas disciplinas que compõem os currículos dos diversos níveis de ensino. Argumento a necessidade de se conhecer conceitualmente as africanidades e os valores civilizatórios, pois são eles que alicerçam o reconhecimento da cultura negra. Educação, cultura e identidade Em 2003, foi sancionada a normativa que propõe uma mudança no contexto eurocêntrico da escola. A Lei 10.639/03 inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”. Apesar de ser um avanço em termos das reivindicações históricas dos movimentos negros, essa normativa suscitou vários questionamentos e dúvidas entre os profissionais da Educação. O motivo destas dificuldades está diretamente ligado à ausência do debate sobre a história de África e sobre a cultura afro-brasileira na formação inicial, tendo como consequência a necessidade de elegê-las como temática na formação continuada de professores. Em seu primeiro artigo, a referida lei determina: 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (BRASIL, 2003). Entende-se assim por que tantos profissionais da educação ficaram atônitos com a promulgação da lei, enquanto que outros profissionais que, por vários motivos estiveram envolvidos com as manifestações culturais negras brasileiras, sentiram-se à vontade para trazer a temática para suas salas de aula. Durante a formação inicial poucos profissionais de Educação puderam conhecer a história de África e em suas vidas presenciaram a desqualificação das manifestações culturais negras. Entendo que este seja um dos motivos que causaram dificuldades de implementação da proposta em seus momentos iniciais. Contudo, hoje vários profissionais têm conseguido construir seus caminhos buscando apoio nas manifestações culturais negras de suas localidades. Voltaram atrás e buscaram nas raízes. Acredito que precisamos superar a estereotipia, a invisibilidade e a folclorização da cultura negra para atendermos de forma efetiva e transformadora os preceitos legais. África é um continente pouco conhecido por nós, brasileiros, a não ser nas suas formas estereotipadas e apresentadas pela mídia ressaltando a pobreza, miséria e doenças. Certamente, não é esta visão que a lei suscita o debate. Precisamos conhecer a história de lá que nos faz aqui. Para Cunha Jr, a simples existência de um povo deveria ser a justificativa para que houvesse o reconhecimento da história e da cultura do mesmo para a Educação. Contudo, isso não se evidencia na prática ou quando se diz estar contemplando, a cultura negra brasileira não se consegue reconhecer na versão apresentada. Para ele, “a dificuldade deste reconhecimento é em virtude da forma caricatural e reduzida com que somos incluídos nessas versões da cultura e da história nacional” (CUNHA Jr, 2005, p. 254). Ainda nesse sentido, Gomes destaca que cada vez mais confirmaremos que, para entender o Brasil, é preciso conhecer e compreender a África (GOMES, 2003, p.84). O compromisso político que a autora traz mostra que a intrínseca ligação histórica entre Brasil e África não pode ser reduzida a passado, mas ao contrário, marca Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios também a atualidade. Cunha Jr corrobora com a questão destacando a postura seletiva que a Educação tem frente aos conteúdos: Cultura, identidade e história apresentarão sempre aspectos críticos ao serem tratados pela carga política que estas definições e conceitos encerram. A educação transmite a cultura, assim, ela se reserva o direito de dizer o que é cultura. Cabe, antes de qualquer coisa, perguntarmos qual educação, para quem e para quê? A educação faz a seleção dos temas por um critério unicamente ideológico, político, mas se ampara nas ciências para justificar as escolhas. Vendo que as ciências fazem um esforço para serem consideradas neutras, e também verdadeiras. Consideramos as ciências como não neutras. Como espelho de uma sistematização dos conhecimentos provisórios, portanto mutáveis, sem o sentido de certo ou errado, muito menos de verdadeiro ou falso. As definições de cultura e história abrangem sempre concepções sobre as quais não existe uma unanimidade de perspectiva, e as definições fazem parte da cena do confronto políticos entre os grupos sociais (CUNHA Jr, 2005, p. 20). A definição de conteúdos voltados a contemplar a diversidade da cultura negra é prioritária, neste momento. No que diz respeito à cultura negra brasileira, sabemos da sua variedade. Como discuti no início deste texto, prevalece nos currículos escolares uma postura eurocêntrica que nos leva a materialização da invisibilidade e folclorização da cultura negra brasileira nas práticas pedagógicas. Nunes destaca que: Historicamente temos o processo de exclusão da cultura negra da cultura oficial, consequência de uma ideologia racista e discriminatória que tem negado a participação desses povos na constituição da cultura nacional. Esta cultura de base africana sempre foi desvalorizada e comumente associada à bruxaria, tratada como folclórica e exótica (NUNES, 2011, p. 39). A atuação da escola deve ser voltada para o resgate da cultura negada e silenciada com intuito de desconstruir visões pejorativas e discriminatórias. Isso implica na problematização Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 19 da discussão, levando-nos a uma reflexão mais ampla e ao entendimento sobre os processos de produção de uma cultura elaborada de base africana no contexto brasileiro, bem como avaliar a participação das populações afrodescendentes na cultura nacional e nos sistemas educacionais recolocando esta temática na orientação dos temas educacionais do Brasil. Assim, o desafio lançado por este artigo é de buscarmos a compreensão da cultura negra na perspectiva dos conceitos de africanidades. Esta postura nos leva a outra forma de encarar a contribuição negra para a cultura nacional e está alicerçada no respeito à herança africana ancestral recriada e ressignificada no contexto brasileiro. Não seria a troca da cultura europeia pela cultura africana; contrariamente, a proposta é do diálogo dessa com as outras etnias, ao mesmo tempo, em que, inevitavelmente, evidencia-se com as formas de dominação ocidental. Nesse sentido, precisamos (re)conhecer as especificidades desses povos, buscando compreender como, ao longo do seu processo histórico e social, têm se ressignificado os valores socioculturais de base africana e construído formas bem particulares de cultura. Africanidades e valores civilizatórios presentes na cultura negra Na sociedade brasileira, houve a tentativa de se descartar as contribuições da cultura negra quando da composição da nossa identidade. A atualidade exige uma nova postura com relação a isso. Necessitamos romper com eurocentrismo e reconhecer a contribuição africana, buscando nele as bases do seu pensamento para que nos sirva como referência na (re)elaboração do conhecimento. Com a escravização do povo africano, seu sequestro e a extradição para outros países, os colonizadores impuseram a ruptura violenta com os valores civilizatórios deste povo. Em África, os negros tinham em cada um dos grupos sua cultura própria. A escravização colocou todos em um único grupo e ainda houve a tentativa de forçar a cultura dos colonizadores. O povo africano possuía/possui uma forma de ver o mundo e estabelecer relações com ele que perduram naqueles países e em outros, espalhados pelo mundo através da diáspora africana. Surpreendentemente, ao invés de ser anulada a cultura negra consegue dar uma resposta criativa, como denomina Oliveira (2006). Para este autor, a população negra espalhada pelo mundo através da diáspora conseguiu resistir em suas tradições e, além disso, 20 Luciane Ribeiro Dias Gonçalves através de uma resposta criativa espalhou-a pelo mundo. Oliveira destaca que o que é repassado de geração para geração não são os mesmos conhecimentos originais trazidos de África. Para ele, valores civilizatórios, são elos, valores e princípios que nos aproximam, guardando características da cultura negra, reconstruída no contexto brasileiro, preservando, entretanto, sua matriz africana. Dessa forma, consideramos que nos atermos a entender estas contribuições é propício ao momento mundial que traz à tona discussões sobre sociedade, cidadania, paz, meio ambiente, crise na produção econômica e outras temáticas em que a visão de mundo africana pode contribuir de várias formas. A negação da cultura negra foi estabelecida nas relações de poder e, desta forma, fazer um resgate desta cultura também tem uma conotação política. Entender que a cultura negra trazida durante a colonização pelos escravizados pode/deve ser considerado conhecimento muda a representação do povo negro na atualidade. Historicamente, os vários movimentos de resistências do povo negro conseguiram, mesmo sob pena de sanções, manter uma forma cultural própria de lidar com o mundo. Tanto para uma criança/jovem negro quanto para um não negro entender isso pode mudar sua forma de se ver e ver o mundo. Entendo que esta é a possibilidade da Educação reposicionar-se frente ao processo que Freire chamou de Pedagogia do Oprimido. Esta pode ser a hora em que a Educação poderá assumir seu caráter inovador e transformador, carecendo, porém, de que reconheçamos os valores civilizatórios presentes na cosmovisão afro-brasileira, pois é ela, conjuntamente com as demais contribuições étnico-culturais, que nos faz ser o que somos. Embaso-me em Cunha Jr, na tentativa de esclarecer alguns elementos dos valores civilizatórios afro-brasileiros: Para a constituição de um pensamento de base africana alguns elementos foram fundamentais: a comunidade e o seu enraizamento na terra, e a ancestralidade. Estas marcas significam, para o africano, a noção de repetição dos ciclos da vida, dos astros e do universo. Sequência que se repete, mas com modificações, com acréscimos. Como trajetórias que são próximas, mas não se repetem, com idéias que hoje, no mundo ocidental, são representadas na matemática pelas teorias do caos. A idéia da comunidade e da cabeça humana inspira as circularidades de representação do mundo para os africanos. A terra sempre foi redonda para os africanos, em função desta concepção circular de representação da perfeição. O ser humano pensante está sempre no centro do pensamento dos diversos povos e filosofias africanas. A ancestralidade é a marca de permanência do ser sobre o tempo. Neste se assentam todos os processos de conhecimento e de evolução do mundo. No conceito de ancestralidade e a marca de permanência do ser sobre o tempo. Neste se assentam todos os processos de conhecimento e de evolução do mundo. No conceito de ancestralidade e do respeito a ela se fundam os princípios da organização social e da interação do ser humano coletivo com os demais seres da natureza. O pensamento africano procura sempre a explicação da totalidade como um conjunto indivisível complexo e de conexões múltiplas. A comunidade, sua terra e seu povo constituem a base da identidade e da construção das sociedades africanas. A força vital e a palavra são dois conceitos que explicam os dinamismos, as mudanças, nas sociedades africanas. A força vital é a energia a ser acumulada para a continuidade e para a mudança. A palavra é cultuada com conhecimento e como elemento de criação. A palavra precisa ser pronunciada com cuidado, dado seu poder de criação. A palavra tem um sentido rítmico na sua expressão. Para os africanos, também os tambores falam (CUNHA Jr, 2005, 262-3). Quando buscamos os valores civilizatórios afro-brasileiros, tomamos a postura de negar a afirmação construída historicamente para resguardar o processo de escravização de que o povo negro era um povo desprovido de cultura e conhecimento. Pelo contrário, além de possuírem conhecimento este povo conseguiu de forma resistente e criativa manter este conhecimento em toda a diáspora. São saberes ligados às diversas áreas do conhecimento como as artes, as ciências, religião, literatura entre outras. Souza, pesquisando a realidade da Educação Infantil e a criança negra constatou que os valores civilizatórios afrobrasileiros como a circularidade, a oralidade, a alegria, a ancestralidade, a aprendizagem Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios iniciática, o princípio da energia vital são valores que “se consolidados na Educação Infantil, podem ganhar fôlego e potência para se ampliarem para além dos muros da escola com o status que nos é socialmente devido, neste longo processo de constituição da sociedade brasileira” (SOUZA, 2005, p.8). A autora acrescenta ainda que: As culturas africanas assentam-se em três pilares básicos: oralidade, relação dinâmica com a ancestralidade e sincronicidade entre o espaço histórico (aye) e o espaço sagrado (orun). A oralidade dá sustentação às histórias humanas e sagradas desses povos. Entre os iorubas (povo da África Ocidental: Nigéria, Togo e Daomé), a "oratura" sustenta-se nos Versos Sagrados de Ifá, transmitidos pelos mais velhos aos mais jovens, iniciados na tradição. Essa é a forma de veiculação do axé (força vital ancestral), inoculado no rito de passagem iniciático. A relação dinâmica com o ancestral não o segrega no passado. Pelo contrário: o ancestral – histórico e mítico orixá – está presente no dia-a-dia do fazer humano. Ele é o elo que liga o ioruba ao mundo sagrado, orun. Mundo que retroalimenta os sonhos e as realizações dos seus descendentes (SOUZA, 2005, p. 10). Reconheço que necessitamos nos apropriar de forma mais concreta deste saber. Fazse necessário um processo de formação inicial e continuada que possa esclarecer os princípios dos valores civilizatórios afro-brasileiros, para que efetivamente possamos utilizá-los de forma transformadora. Esta reflexão recoloca as discussões sobre formação da identidade nacional, questiona a inferiorização negra e o papel da cultura negra neste processo. A Educação é prioritária neste debate que é premente. A escola ficará de braços cruzados? Poderemos continuar numa postura eurocêntrica frente a tantas evidências de contribuições da cultura negra? Este é o questionamento que acredito ser pertinente neste momento. Impossível ficarmos inertes frente às discussões apresentadas até aqui quando pensamos em uma escola democrática/transformadora e em aluno(a) crítico/participativo(a). Pensarmos nas contribuições da cultura negra esquecidas pela escola eurocêntrica é pensar na escola que nega o outro conhecimento que pode ser ampliado e esclarecido. Para Gomes, trata-se de compreender que há uma lógica gerada Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 21 no bojo de uma africanidade recriada no Brasil, a qual impregna a vida de todos nós, negros e brancos. Nesse sentido, qualquer adjetivação da cultura, seja cigana, judaica, indígena ou negra, é uma construção social, política, ideológica e cultural que, numa sociedade que tende a discriminar e tratar desigualmente as diferenças, passa a ter uma validade política e identitária. A cultura negra possibilita aos negros a construção de um “nós”, de uma história e de uma identidade. Diz respeito à consciência cultural, à estética, à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude, marcadas por um processo de africanidade e recriação cultural. Esse “nós” possibilita o posicionamento de negro diante do outro e destaca aspectos relevantes da sua história e de sua ancestralidade. A cultura negra só pode ser entendida na relação com as outras culturas existentes em nosso país. E nessa relação não há nenhuma pureza; antes, existe um processo contínuo de troca bilateral, de mudança, de criação e recriação, de significação e ressignificação. Quando a escola desconsidera esses aspectos ela tende a essencializar a cultura negra e, por conseguinte, a submete a um processo de cristalização ou de folclorização (GOMES, 2003, p. 78-9) Concordando com a autora, entendo que é impossível a compreensão da nossa história desconsiderando a participação de africanos e indígenas na composição desta sociedade. Sem conteúdos referentes à História da África, o entendimento sobre as origens do povo brasileiro fica comprometido (NUNES, 2011). Quando solicitados a externar formas de manifestações afro-brasileiras presentes em nossa sociedade, muitos poderão responder manifestações como samba, capoeira e congada, por exemplo. Certamente, estas são exemplificações de manifestações culturais negras, porém quando falamos de africanidades, pretendemos ir além da constatação factual. Queremos compreender como estas manifestações se organizam, como se perpetuam, como são as relações de poder estabelecidas nelas, enfim, queremos buscar, nestas manifestações, os seus princípios herdados das culturas africanas que podem contribuir à construção de uma mudança 22 Luciane Ribeiro Dias Gonçalves conceitual visão de mundo. Buscar as africanidades é um processo de resgate. Silva esclarece que: Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm origem africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, viver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura africana que. Independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia a dia (SILVA, 2005, p. 155). Compreender as africanidades se faz necessário no contexto atual, com a intenção de que, conhecendo melhor a história e a cultura negra, a observação do cotidiano, da escola, dos diversos espaços sociais pode, na perspectiva das africanidades, promover o combate a discriminação racial e cultural. A Educação pode utilizar as africanidades nas diversas disciplinas. Cada conteúdo disciplinar tem seu potencial interdisciplinar. Devemos nos aproximar das diversas manifestações culturais negras existentes e dialogar com elas a fim de entender a realidade e servir-nos do trabalho dos movimentos negros, por exemplo, que têm desenvolvido alternativas para preservar a cultura negra e da mesma forma, divulgá-la abrangentemente. a participação de todas é se reconhecer nas particularidades. Incorporar a diversidade cultural e étnica significa assumir o compromisso com a dignidade humana. À Educação cabe o papel relevante de romper com o legado eurocêntrico que tem excluído a cultura negra. Isso contribuirá para que possamos compreender a história de África e sua cultura. Assim poderemos sem temor “voltar atrás” e aprender com ela preceitos básicos para conseguirmos relacionar com o que somos hoje. Esse é uma exigência básica da cidadania, pois é a afirmação de nossa identidade cultural enquanto um direito da pessoa humana. A intenção da discussão apresentada neste artigo é de que a Educação aposse-se da cultura negra a fim de promover uma revolução em nosso país; a revolução em busca da cidadania baseada no reconhecimento da história e cultura negra que forma a nossa identidade nacional. As crianças negras serão favorecidas na formação do seu processo identitário e de autoestima. Ser descendente de uma cultura rica em princípios e valores é algo que muda a visão de si mesmo. As crianças brancas poderão confrontar seus saberes culturais com os apreendidos da cultura negra, e com isso, aumentar seu repertório de alternativas para enfrentar o mundo. Isso só poderá contribuir para construir uma nação mais criativa e produtiva. Referência Bibliográfica Considerações Finais O valor que a cultura tem para um povo é enorme. Talvez isso justifique o fato de, no Brasil, ter havido um esforço grandioso para que a cultura negra fosse “invisibilizada” e “inferiorizada”. A ideologia do branqueamento em conjunto com a defesa da mestiçagem, até por meio políticas públicas nacionais, demonstram algumas das metodologias utilizadas para isso. Contudo, na contramão, a cultura negra conseguiu subverter a ordem e preservar-se nos diversos pontos de resistência negra e, ainda na atualidade, pode ser observada a manutenção de aspectos dos valores civilizatórios africanos presentes entre nós. Acredito que o resgate da cultura negra não interessa somente às crianças e jovens negros/negras, mas a todos os alunos de outras ascendências étnicas. Dada a grandiosa participação de várias contribuições étnicas na formação da sociedade brasileira, em seus diversos aspectos, inclusive o cultural, reconhecer BRASIL, 2003. Lei n. º 10.639, de 09.01.03: altera a Lei 9394/96 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira”. CUNHA Jr, Henrique. Nós afro-descendentes: história africana e afro-descendente na cultura brasileira. In: ROMÃO, Jeruse. História da Educação do negro e outras histórias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, alfabetização e diversidade. 2005. p. 249-274. GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e Educação. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, nº 23, Maio/Jun/Jul/Ago 2003, p. 75-85. GONÇALVES, Luciane Ribeiro Dias. A questão do negro e políticas públicas de educação multicultural: avanços e limitações. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia: 2004. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 Cultura, educação e lei 10.639/03: discussões, tendências e desafios 23 NUNES, Cícera. A Cultura de base africana e sua relação com a Educação escolar. In: Revista Metáfora Educacional. N.10, jun. 2011. Infantil. In: Valores afro-brasileiros na Educação. Ministério da Educação. TV Escola . Salto para o Futuro.. 2005. p. 30-36. OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba, Editora Gráfica Popular, 2006. SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas na sala de aula – Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. SOUZA, Andréia Lisboa. Valores afro-brasileiros na Educação. In: Valores afro-brasileiros na Educação. Ministério da Educação. TV Escola. Salto para o Futuro. 2005. p. 03-14. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, Kabenguele. Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, alfabetização e diversidade, 2005. TRINDADE. civilizatórios Azoilda Loretto da. Valores afro-brasileiros na Educação Sobre a autora: Luciane Ribeiro Dias Gonçalves: É doutora em Educação pela UNICAMP (2011), mestre em Educação pela UFU (2004). Atualmente é professora adjunta na Faculdade de Ciências Integradas do Pontal - FACIP / UFU no curso de Pedagogia. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 17-23, jan./jun.2012 24 25 Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX Priscila Kaufmann Corrêa* Resumo A pesquisa aqui apresentada encontra-se em fase inicial e lida com as histórias de vida de quatro escritoras e um conjunto de suas obras publicado entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. As escritoras escolhidas são a Condessa de Ségur, Louisa May Alcott, Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac. Todas elas escreveram livros destinados ao público infantil e juvenil e, por este motivo, este estudo procura reunir e analisar o caráter educativo das obras, traçando seus paralelos e suas peculiaridades, assim como seus alcances e limites no contexto em que foram produzidos. Neste primeiro momento são apresentadas a vida e a obra de cada uma destas mulheres e inicia-se a construção de um diálogo entre suas trajetórias de vida, abrindo para reflexões possíveis para este estudo que ora se inicia. Palavras-chave: História da Educação, Literatura infantojuvenil, Escritoras, Trajetórias de vida. Reading for children: life and work of four writers from the mid nineteenth and the early twentieth century Abstract The research presented here is in the initial stage and deals with the life stories of four writers and a collection of their works published between the second half of the nineteenth century and the first half of the twentieth century. The writers chosen are the Comtesse de Ségur, Louisa May Alcott, Johanna Spyri and Maria Clarice Marinho Villac. All of them have written books aimed at children and youth, and for this reason, this study seeks to gather and analyze the educational character of the works, tracing their parallels and their peculiarities, as well as its scope and limits in the context in which they were produced. At this moment life and work of each of these women are presented and this study starts building a dialogue between their life trajectories, opening for possible reflections. Keywords: Juvenile Literature, History of Education, Writers, Life trajectories. Apresentação (...) dentro de cem anos, pensei, alcançando a porta de casa, as mulheres terão deixado de ser o sexo protegido. Logicamente, participarão de todas as atividades e esforços que no passado lhes foram negados. (...) Tudo pode acontecer quando a feminilidade tiver deixado de ser uma ocupação protegida, pensei ao abrir a porta. Virginia Woolf Virginia Woolf ansiava pela emancipação feminina, defendendo que as mulheres poderiam circular pelo meio social e desempenhar as atividades que desejassem, inclusive como escritoras. Para poder se dedicar ao exercício da escrita Virginia Woolf defendia que a mulher precisaria de um teto e uma renda, o que asseguraria sua independência e autonomia para circular pelo meio social, buscando inspiração para suas produções. As atividades domésticas e a dedicação à família, segundo a autora, teriam afastado as mulheres de outras possibilidades de ocupações. * Endereço eletrônico: [email protected] Este cenário pouco alentador não impediu que mulheres em diferentes países se tornassem escritoras que alcançaram fama e obtiveram uma renda com suas produções. Meninas exemplares, Mulherzinhas, Heidi e Clarita da pá viradas são algumas obras destinadas aos públicos infantil e juvenil que se consagraram ao longo de várias décadas. As obras escritas pela Condessa de Ségur, por Louisa May Alcott, por Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac1 são consideradas clássicos da literatura infantojuvenil, posto que são publicadas, adaptadas e relembradas até os nossos dias. São livros que marcaram as leituras de muitas gerações em diferentes lugares do mundo e ainda são lembradas com saudades. Alguns livros inclusive foram transformados em filmes e séries de televisão, dando mostras da longevidade destas narrativas, sempre reinventadas. O período de publicação das obras abrange a segunda metade do século XIX até o início do século XX, momento no qual as mulheres ganharam espaço no âmbito social, dando mostras de seu talento para a escrita. A Condessa de Ségur publicou cerca de 20 obras, das quais se destaca a trilogia composta pelos 26 Priscila Kaufmann Corrêa livros Meninas exemplares, Os desastres de Sofia e As férias. Louisa May Alcott também publicou diversos livros, consagrando-se com os livros Mulherzinhas e Boas esposas. Johanna Spyri, por sua vez, tornou-se célebre com as obras Heidi e Heidi pode precisar do que aprendeu. Maria Clarice Marinho Villac completa o grupo com sua trilogia Os cinco travessos, Clarita da pá virada e Clarita no Colégio. O que leva as mulheres a se debruçarem sobre o exercício da escrita? O que as move no desejo de orientarem as gerações futuras acerca do comportamento esperado para o sexo feminino? Longe de perscrutar a alma das escritoras, esta pesquisa se propõe a analisar uma coletânea de livros publicados por mulheres destinados às meninas e moças. Cada obra foi concebida em momentos e lugares diferentes, porém é possível tecer diálogos entre as publicações, destacando-se o fato de serem escritas por mulheres, possuírem protagonistas femininas e serem destinadas ao público infantil e juvenil, mais especificamente às meninas e moças. Cada obra carrega em si os valores e ideais que circulavam pela sociedade no período em que foram publicados, permitindo investigar também as relações sociais que estavam em jogo. Trata-se de um estudo que se encontra em sua fase inicial e este texto se propõe a ser um ensaio que busque refletir sobre os primeiros passos desta pesquisa. Neste sentido as ideias aqui esboçadas não são conclusivas e se abrem para novas possibilidades de reflexão. Mulheres escritoras: quatro trajetórias de vida Este estudo partiu de uma indagação acerca dos livros escritos pela Condessa de Ségur, Louisa May Alcott, Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac, que se apresentavam como livros desejáveis para a leitura de crianças e jovens, principalmente do sexo feminino. A publicação destas obras até nossos dias indicam que ainda existem valores e elementos morais considerados adequados nestes romances. Além disso, o fato de todos estes livros terem sido escritos por mulheres em momentos históricos que começavam a abrir a possibilidade para a profissionalização feminina aponta para um possível diálogo entre estes livros. Apesar de terem sido publicados em países diferentes e momentos distintos, os livros possuem elementos em comum, posto que todos eles têm meninas como protagonistas e que se destinavam aos públicos infantil e juvenil. Mesmo tendo sido publicadas no exterior, tais obras chegaram ao Brasil, seja em suas versões originais, seja em edições traduzidas. Neste sentido, o estudo destas obras carece também de uma investigação sobre a sua circulação, os caminhos que percorreram até chegarem aos seus leitores e leitoras e as políticas das editoras para a divulgação destes impressos. Entretanto, a mera reflexão acerca dos livros e seu conteúdo não se apresenta como uma possibilidade muito profícua à pesquisa. O estudo da trajetória de vida de cada uma das escritoras e a compreensão do que as levou a se dedicarem à literatura permitirão uma análise mais aprofundada das obras e a construção de um diálogo que busque aproximações entre estas mulheres e suas obras, sem desprezar suas peculiaridades. A breve apresentação da vida e dos livros de cada escritora se mostra necessária neste ensaio. Esta análise inicia-se pelos livros da Condessa de Ségur, que deixou um legado considerável para seus netos e jovens leitores. Sophie Rostopchine nasceu em São Petersburgo, na Rússia, no ano de 1799. Segundo relatos, sua infância teria sido marcada pelo rigor da educação familiar, inclusive com castigos físicos. No ano de 1817 a família Rostopchine precisou fugir da Rússia, exilando-se na França. Após dois anos a jovem Sophie se casou com Eugène de Ségur, com quem teve oito filhos (LEÃO, 2007, p. 05). A carreira de escritora começou aos 58 anos de idade, quando já tinha 19 netos, a quem dedicava suas obras. Seu primeiro livro intitulado Os novos contos de fadas, foi lançado em 1856 pela Editora Hachette. Desde 1852 o editor Louis Hachette possuía uma rede de livrarias nas estações de trem, que comercializava a coleção Bibliothèque de chemins de fer. O marido de Sophie era presidente da Companhia das Estradas de Ferro do Leste e autorizou o editor a implantar suas livrarias nas estações. Foi também Eugène que apresentou a esposa a Louis Hachette. A partir de 1856 Sophie de Ségur passou a produzir livros compor a Bibliothèque Rose, coleção destinada ao público infantil e juvenil que se tornou independente da Bibliothèque des chemins de fer. A Condessa contribuiu com vinte obras para a Bibliothèque Rose, tornando-se uma escritora célebre entre as crianças e jovens. Desta coleção será selecionada, para esta pesquisa, a assim chamada “Trilogia de Fleurville”, que traz as personagens que marcaram a obra da escritora. A trilogia é composta pelos títulos As meninas exemplares, Os desastres de Sofia e As férias. Os dois primeiros livros foram publicados simultaneamente em 1858, enquanto a terceira obra foi lançada no ano seguinte. As principais personagens das três histórias são as irmãs Camila e Madalena e suas amigas Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX Margarida e Sofia. Esta última personagem comete muitas travessuras e vivencia muitas tristezas com a perda dos pais. Em As meninas exemplares o leitor é apresentado às irmãs Camila e Madalena, crianças que nunca brigam e vivem em perfeita harmonia. Elas vivem com a mãe viúva, Mme. de Fleurville e ajudam a resgatar Mme. De Rosbourg e sua filha Margarida de um acidente de carruagem. As duas passam a morar com a família de Fleurville e Margarida inicia um esforço para se tornar tão virtuosa e obediente quanto suas amigas. As meninas recebem a visita de Sofia, uma órfã que mora com sua madrasta, Mme de Fichini, que a maltrata e espanca. A madrasta viaja à Itália e deixa Sofia sob os cuidados de Mme de Fleurville e Rosbourg. A menina inicia um percurso de aperfeiçoamento moral, no qual ela aprende a ser mais comedida e obediente. Durante este percurso ela já não sofre castigos físicos. Mme de Fleurville adota a postura de tutora e a menina aprende a refletir sobre seus erros e se arrepender sobre seus atos. Um momento significativo da narrativa se dá quando Sofia se recusa a doar uma parte da geleia de cereja que as meninas preparariam para uma senhora humilde e seus seis filhos. A discussão leva a uma briga entre Sofia e Margarida, que começam a se agredir. Camila e Madalena procuram impedir as amigas e Mme de Fleurville decide levar Sofia ao gabinete de penitência para copiar o Pai Nosso dez vezes. A menina destrói tudo o que encontra, mas, após este acesso de raiva, acaba se arrependendo. Ao ser informada que não levaria uma surra, mas que continuaria naquele gabinete, a menina pede perdão a Mme de Fleurville. Sofia passa a morar na casa de Fleurville, pois sua madrasta voltou a se casar e não poderia ficar com a menina. O passado de Sofia é revelado em Os desastres de Sofia, no qual são narradas as travessuras da menina de quatro anos, quando ainda morava com os pais. Em As férias Sofia também relembra seu passado, o falecimento de seus pais e reencontra o primo, Paulo, que julgava ter perdido numa viagem de navio que fazia com seus pais. Nesta obra também aparecem os primos de Camila e Madalena: Léon, Jean e Jacques. A formação do menino Paulo pelo pai de Margarida, Sr. Rosbourg, delineia a necessidade da fé católica. Ambos conseguiram se salvar vivendo em uma ilha habitada por selvagens e a fé se mostrou um elemento que os diferenciava da tribo e fortalecia sua esperança em retornar. Nesta obra o aspecto religioso é mais evidente do que nas anteriores. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 27 Com relação às obras da Condessa, Nelly Novaes Coelho (2010a, p. 201) coloca que elas “revelam um mundo onde tudo deve funcionar harmoniosamente, desde que cada indivíduo permaneça em seu lugar e atue com honestidade, entusiasmo e devoção aos que lhe são superiores”. Ao analisar a contribuição da Condessa de Ségur para a literatura infantil, Coelho se mostra bastante severa, uma vez que acredita que o “humanismo generoso” presente nos livros da autora, apesar de fomentar a generosidade, a piedade e o afeto, também incentivam a humildade, a obediência e a submissão, que não contribuem para o rompimento das desigualdades. Reconhecendo a importância da obra da Condessa de Ségur, é preciso atentar para o potencial e as limitações de sua obra. Longe de classificar sua obra como tradicional ou inovadora, buscar-se-á analisar a trilogia de Fleurville na sua contribuição para o âmbito educacional, o que implica em uma investigação que contemple a complexidade do contexto de criação e circulação destas obras. Além das particularidades da obra da Condessa, pretende-se, com este estudo, buscar tecer diálogos entre a trajetória de vida desta escritora e de suas colegas de profissão, como Louisa May Alcott, que publicou seu célebre Mulherzinhas uma década após Sophie lançar seus livros. A obra de Louisa May Alcott apresenta um viés pedagógico, por sua experiência ao lado dos pais, Amos Bronson Alcott e Abigail May Alcott. Amos Alcott era adepto da filosofia transcendental e diretor da escola “Little Paradise”, onde eram aplicadas as ideias pedagógicas de Pestalozzi e Jefferson (COELHO, 2010a, p. 202). Abigail Alcott, por sua vez, era defensora do sufrágio feminino e da abolição. Nascida em 1832 em Germantown, na Filadélfia, Louisa May Alcott, vivenciou as discussões filosóficas, políticas e pedagógicas de seu pai. A família de Louisa passou por diversas dificuldades financeiras, levando seu pai a instalar sua escola em locais diferentes, uma vez que suas ideias pedagógicas acabavam sendo questionadas pelos pais dos alunos, que eram retirados da instituição. Esta condição fez com que as mulheres da família buscassem o sustento por meio do trabalho. Louisa trabalhou como professora, costureira, governanta, empregada doméstica e escritora. Sua vivência doméstica inpirou-a ao campo literário, publicando novelas para adultos e terminando por dedicar-se à literatura para crianças, por sugestão de seu pai. Seu romance Mulherzinhas conta a história das irmãs March; Margaret, Josephine, 28 Priscila Kaufmann Corrêa Elizabeth e Amy. O livro narra um ano na vida das meninas, no qual elas trabalham e se esforçam para manter a casa junto com sua mãe, enquanto seu pai está distante, auxiliando as tropas durante a guerra civil. Durante esse percurso as meninas fazem amizade com Theodore Laurence, o menino que mora na casa vizinha. Cria-se um forte vínculo de amizade entre as meninas, o menino e seu avô. Como a família empobreceu, as meninas precisam trabalhar, cada uma em função diferente. Meg é governanta de duas crianças, enquanto Jo trabalha como dama de companhia de uma tia abastada. Beth se dedica aos afazeres domésticos, enquanto Amy frequenta a escola. O ano das meninas se passa com bastante esforço e dedicação, valorizando o trabalho e a boa conduta moral. O desfecho se dá com o retorno do pai e o noivado de Margaret, a mais velha das irmãs. No romance Boas esposas cerca de dois anos se passam após o desfecho do primeiro livro. Neste momento Meg se prepara para o casamento e sua vida em um novo lar, ao lado do Sr. Brooke, que fora preceptor de Laurence. Neste livro as irmãs tornam-se mulheres, cada qual encontrando um marido digno e dedicado, à exceção de Beth, que falece. A menina contraíra febre escarlatina e a doença a enfraqueceu. O relato de seu falecimento se mostra tocante, colocando a morte como uma passagem, para a qual a alma precisa estar preparada. Diferentemente das obras da Condessa de Ségur, guiadas pela moral católica, os livros de Louisa May Alcott são norteados pela moral protestante. A importância do trabalho, a necessidade do aperfeiçoamento moral sem se apegar a símbolos e amuletos fazem parte do romance. Em diversos momentos as irmãs March são postas à prova, devendo escolher pelo caminho desejável. O aspecto religioso, que envolve a fé em Deus, emerge também em Heidi, de Johanna Spyri. A autora nasceu em Hirzel, na Suíça, em 1827. Filha do médico Johann Jakob Heusser e da poetisa Meta Heusser-Schweizer, Johanna viveu na cidade natal até os 15 anos de idade, quando se mudou para Zurique para estudar. Anos depois ela retornou para ensinar seus cinco irmãos e auxiliar a mãe nos afazeres domésticos. Johanna casou-se em 1852 com o jurista Joh Bernard Spyri, com quem teve um único filho, cuja gestação levou a uma crise de depressão, da qual teve dificuldades para se recuperar. A vida de casada também não se mostrou muito satisfatória. Por meio da mãe Johanna conheceu o pastor Cornelius Rudolph Vietor em Bremen, que a estimulou a escrever, como uma terapia para dar vazão ao seu descontentamento. O pastor convenceu-a a publicar histórias em algumas gráficas da cidade. Sua primeira história “Uma folha sobre o túmulo de Vrony” foi publicado em Bremen em 1871 e tornou-se um sucesso. Joahanna Spyri se lançou no mercado da literatura infantil com a obra Sem casa, no ano de 1878, porém seu grande sucesso foi seu livro Heidi, publicado no ano seguinte. A história de Heidi ganhou uma continuação com Heidi pode precisar do que aprendeu, lançada em 1881. A personagem Heidi tornou-se célebre, sendo adaptado para o cinema e para desenhos animados e traduzido para 50 línguas. Ao longo de sua vida Johanna Spyri publicou 31 livros, 27 coletâneas de histórias e quatro brochuras, deixando uma obra vasta. Para este estudo serão analisadas as obras que têm Heidi como protagonista. No primeiro livro é apresentada a menina dos Alpes, que, sendo órfã, foi levada pela tia para morar com o avô. O avô não era bem visto pelos moradores da aldeia, vivendo afastado nas montanhas. A chegada da neta, porém, altera a rotina do homem, que a acolhe em sua casa. A menina se adapta rapidamente à nova vida, acompanhando Pedro, o pastor de cabras até os campos que servem de pastagem. O avô possuía duas cabras, que acompanhavam o menino todos os dias, junto com as outras enviadas por seus donos das aldeias. A menina também fez amizade com a avó de Pedro, que era cega. A presença de Heidi amenizava os longos dias passados em sua frágil cabana. A menina inclusive convenceu o avô consertar a cabana, tornando-a mais resistente aos ventos. Certo dia, porém, a tia da menina retorna para levá-la a Frankfurt, onde ela passaria a fazer companhia a Clara, que se locomove com cadeira de rodas. A menina é filha do senhor Sesemann, que, apesar das suas posses, não podia fazer a filha voltar a andar. A governanta de Clara, Tinette, não se mostra favorável à presença da visitante, uma vez que Heidi não conseguia se adaptar à rotina na cidade, longe da natureza. Além disso, os modos rústicos da menina incomodam a senhora. A passagem por Frankfurt fragiliza a saúde de Heidi, que demonstra sentir falta da vida nas montanhas. Por outro lado, a estadia na cidade permitiu a Heidi conhecer a avó de Clara, que a estimulou a aprender a leitura e a escrita. A avó de Clara também ensinou Heidi a rezar, pedindo que Deus assegurasse o melhor caminho, mesmo que isso significasse um afastamento de seu lar nos Alpes. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX Por fim, Heidi retorna para casa, por indicação do médico de Clara. A volta da menina gera mudanças na vida do avô, que passa a levar a neta para a escola na aldeia durante o inverno. A frequência à Igreja sinaliza também a reconciliação do avô com os moradores da aldeia. Em Heidi pode precisar do que aprendeu Clara visita sua amiga nos Alpes. A menina passa um mês com Heidi, sob os cuidados de seu avô, que se mostra um excelente enfermeiro. A dieta à base de pão, queijo e leite de cabras e a atmosfera alpina fortalecem sua saúde a tal ponto que pode voltar a andar. O pai de Clara, Sr. Sesemann, torna-se grato ao avô, comprometendo-se a cuidar de Heidi quando o avô viesse a falecer. As narrativas de Heidi são simples, deixando claro que o contato da menina com a natureza e o ambiente dos Alpes são vitais para sua saúde. A vida rústica nas montanhas se mostra mais desejável que a vida na cidade, cercada de casa e edifícios e distante do campo e da floresta. A religiosidade aparece também nas obras desta autora, uma vez que a fé em Deus assegura o retorno da menina à casa do avô e convence o homem a frequentar a igreja. A moral protestante orienta a religiosidade da obra, aproximando-a dos livros de Louisa May Alcott. O aspecto moral da formação feminina perpassa os livros de todas as autoras. Maria Clarice Marinho Villac é a representante brasileira do grupo de escritoras escolhido para esta pesquisa. A autora se utiliza de suas próprias memórias e experiência de vida para elaborar suas narrativas e apontamentos. Maria Clarice nasceu em Itu no ano de 1903. Quando criança, circulava pelas fazendas de seus avós no interior do estado de São Paulo, além de estudar como interna no Colégio Progresso Campineiro. Casou-se com Dr. Paulo José Villac ao se formar e tornou-se escritora quando perdeu o marido aos 27 anos de idade, tendo cinco filhos para criar. O primeiro livro que publicou foi Cinco travessos, em 1937, pela Editora Revista dos Tribunais, com uma tiragem de 44 mil exemplares (VILLAC, 2008). O livro seguinte foi lançado em 1939, com o título de Clarita da pá virada. Este foi republicado na década de 1980 pela editora Fermata e, posteriormente, em 2006, pela editora Lacruce. O último livro de Maria Clarice, Clarita no Colégio, saiu em 1945 pela editora Cristo-Rei e foi republicado em 2008, também pela editora Lacruce. O livro Clarita da pá virada relata primordialmente a vida no campo, na qual a protagonista se mostra uma criança peralta. Nesta obra, Maria Clarice narra sua infância nas Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 29 fazendas da família, apresentando seus familiares e as crianças que a acompanhavam em suas brincadeiras e confusões. A menina chega a frequentar a escola, aprendendo elementos do catecismo, a leitura e a escrita, porém o ingresso definitivo no universo escolar se dá no final do livro, quando Clarita toma o trem para Campinas, para estudar no Colégio Progresso. Este deslocamento marca uma nova fase na vida de Clarita, deixando para trás a infância repleta de brincadeiras para dedicar-se aos estudos. O cenário primordial de Clarita no Colégio é o Colégio Progresso, por vezes alternado pelo espaço rural, quando a menina passa as férias nas fazendas da família. A vida no colégio não se mostra fácil, uma vez que Clarita precisa aprender a controlar seus impulsos e adequar-se às regras do internato. Seu comportamento acabou merecendo alguns castigos e muitas conversas com Dona Emília, que emerge como figura central no esforço de tornar Clarita uma menina mais obediente. A religião católica é o elemento utilizado pela diretora para que Clarita incorpore o comportamento esperado para uma menina. A Primeira Comunhão, a Crisma e o ingresso na Pia União das Filhas de Maria são descritos como momentos cruciais na trajetória escolar da menina, que abraça a religião católica com fervor. A moralidade calcada na religião católica aproxima a autora brasileira das obras da Condessa de Ségur. Por fim, a obra Cinco travessos: amiguinhos de Jesus Hóstia se diferencia dos outros dois livros por se destinar a um público diferente: as mães de família. O livro reúne os apontamentos de Maria Clarice sobre a formação de seus filhos, narrando alguns acontecimentos considerados dignos de nota. Cinco travessos foi publicado, como a própria autora explica, “impelida por reiteradas instâncias de algumas amigas, religiosas de uma Santa Ordem” (1956, p. 05). Na obra a “mãe brasileira” relata como buscou criar seus cinco filhos dentro dos preceitos da moral católica, estimulando-os a amarem Jesus e a realizarem sua Primeira Comunhão por volta dos cinco anos de idade. Apesar de não ser exatamente uma obra destinada aos públicos infantil e juvenil, Cinco travessos permite identificar a influência da escolarização sobre a vida de Maria Clarice, que estimulou os filhos a uma vida religiosa intensa, tal qual aquela vivenciada no colégio. Estes apontamentos se mostram um registro valioso sobre o papel da mulher formada no Colégio Progresso Campineiro nas décadas iniciais do século XX. Mesmo sendo o registro de uma única 30 Priscila Kaufmann Corrêa mãe, o que não possibilita generalizações, ele auxilia a compreender o que o cotidiano do internato, permeado de práticas religiosas, suscitou em pelo menos uma de suas alunas. Maria Clarice Marinho Villac é a única escritora do século XX, que também leu os livros da Condessa de Ségur e se identificava com a personagem Sofia. Neste sentido, a pesquisa das trajetórias de vida das escritoras permitirá identificar aproximações e peculiaridades de cada autora, tecendo um diálogo entre estas mulheres e suas obras. Também não pode ser ignorado o caráter educativo das publicações, uma vez que se destinam a leitores e leitoras em formação. As fontes iniciais para este estudo são os livros As meninas exemplares, Os desastres de Sofia, As férias, Mulherzinhas, As boas esposas, Heidi, Heidi pode precisar do que aprendeu, Os cinco travessos, Clarita da pá virada e Clarita no Colégio. Contudo, para conhecer a trajetória de vida da Condessa de Ségur, de Louisa May Alcott, Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac, a consulta de outros documentos se mostra necessária. Biografias, correspondências, catálogos de editoras, textos de críticos de literatura e outras fontes referentes à vida pessoal das escritoras e suas famílias permitirão compreender um universo mais amplo que levou estas mulheres a se dedicarem à escrita e o papel que desempenharam no âmbito familiar e social. A materialidade dos livros também será analisada, uma vez que cada uma das autoras conseguiu assegurar a publicação de seus trabalhos, permitindo que circulassem em diferentes espaços. O formato dos livros, a política editorial adotada para a sua divulgação são aspectos que não podem ser ignorados e que auxiliam na compreensão do alcance das obras. Tal questão também permitirá compreender os motivos que tornariam as obras desejáveis para a leitura de crianças e jovens, especialmente do sexo feminino. Dessa forma, buscar-se-á elaborar um amplo panorama deste conjunto de obras, investigando as condições da criação e posterior impressão, assim como sua difusão, consagrando estas obras entre a literatura para a infância e a juventude. Percursos possíveis Ao analisar as obras de ficção realista de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann, Peter Gay (2010) sinaliza para a riqueza das publicações literárias para o historiador, que as toma como fontes, frutos de seu tempo. Diante desta possibilidade, o conjunto de livros proposto para esta pesquisa também será investigado à luz da história. Embora se trate de obras de cunho literário, as narrativas ali traçadas fornecem elementos importantes acerca das expectativas sobre a formação da infância. Gay argumenta ainda que a ficção é um espelho que “fornece reflexos muito imperfeitos” (2010, p. 18), e que não reflete a realidade tal como se apresenta. Isso significa que os livros em si não podem ser tomados como “testemunhos” de seu tempo e outras fontes devem auxiliar na composição dos cenários e das narrativas acerca das trajetórias de vida das quatro escritoras. Os romances da Condessa de Ségur, de Louisa May Alcott, Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac se perpetuaram graças à sua publicação. Cabe, pois, procurar identificar as condições vivenciadas pelas autoras que permitiram que seus escritos fossem transformados em livros impressos. Também é interessante compreender os motivos que asseguraram a longevidade destes livros e sua aceitação no contexto escolar. Uma vez que se busca analisar as trajetórias de vida, as condições da criação e da impressão dos romances, será preciso ampliar os documentos a serem utilizados para este trabalho. Conforme Peter Gay (2010, p. 24): (...) qualquer um que avalie a evidência que um romance pode fornecer deve procurar conhecer não apenas a ficção em questão, mas seu criador e a sociedade desse escritor. (...) Para compreender o que a ficção tem para oferecer ao pesquisador, ele deve aprender o que a fez acontecer. Como já foi sinalizado anteriormente, outros documentos como correspondências das e para as autoras, catálogos das editoras, e fontes que ofereçam indícios sobre a vida das escritoras se mostrarão valiosos para este estudo. A compreensão da trajetória de vida de cada escritora, o contexto em que conceberam suas obras permitirão lançar novas luzes sobre suas publicações e perceber em que medida a vida destas mulheres e suas produções se entrelaçam. O trabalho com as fontes exige um rigor metodológico que oriente o trabalho do historiador, impedindo que papéis e livros sejam encarados como provas que falam por si. Neste contexto, Thompson (1981, p. 37) afirma que: Os fatos estão ali, inscritos no registro histórico, com determinadas propriedades, mas isso não implica, decerto, uma noção de que esses fatos Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 Leituras para crianças: vida e obra de quatro escritoras entre a metade do século XIX e início do Século XX revelam seus significados e relações (conhecimento histórico) por si mesmos. Cabe ao historiador saber interrogar suas fontes a fim de obter delas as informações de que precisa para elaborar sua narrativa. Recorrendo mais uma vez a Thompson: “A evidência histórica existe, em sua forma primária, não para revelar seu próprio significado, mas para ser interrogada por mentes treinadas numa disciplina de desconfiança atenta” (ibidem, p. 38). Dessa forma, as perguntas que o historiador formula às suas fontes seguem uma determinada lógica e são orientadas por suas inquietações no presente. Porém, como Thompson alerta: “A evidência histórica tem determinadas propriedades. Embora lhe possam ser formuladas quaisquer perguntas, apenas algumas serão adequadas” (ibidem, p. 50). O trabalho de pesquisa sobre Condessa de Ségur, Louisa May Alcott, Johanna Spyri e Maria Clarice Marinho Villac e suas produções exigirá uma investigação cuidadosa, elaborando perguntas que sejam adequadas aos romances e ás demais fontes. Conforme Bloch (2001, p. 78): Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos [portanto] pelo menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos todavia saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer. A noção de escala também se mostra importante a este estudo, pois ela percorre os contextos macro e micro, desde o meio social de cada escritora e amplia para os lugares pelos quais suas obras circularam, identificando em que medida se aproximam e se distanciam. Não se trata, aqui, de estabelecer se as autoras estudadas se enquadram em esquemas meramente conservadores ou inovadores, criando uma divisão estanque, mas perceber os alcances e limites das produções destas mulheres, que se dedicaram à escrita em um período no qual poucas poderiam ter esta possibilidade. Nelly Coelho (2010b, p. 19) confronta uma visão tradicional e uma visão inovadora para a literatura infantil, porém tal divisão se mostra muito limitada, já que não permite “reconhecer as circulações fluídas, as práticas partilhadas que atravessam os horizontes sociais” (CHARTIER, 2002, p.134). Um primeiro contato com os relatos e estudos sobre a vida das escritoras permite identificar que das quatro autoras, três tiveram a Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 31 preocupação em oferecer livros de caráter educativo às crianças. Em suas obras, a Condessa de Ségur se mostrava contrária aos castigos físicos e defendia o catolicismo ultramontano, que se guiasse pelas orientações do Vaticano (HEYWOOD, 2008). Os livros de Louisa May Alcott, por sua vez, relatam o aperfeiçoamento moral proposto pelo método pedagógico do pai da escritora, Amos Bronson Alcott. O método de Bronson Alcott também repudiava os castigos físicos e se apresentava como ousado, uma vez que levava os próprios alunos a refletirem sobre seus atos, buscando seu desenvolvimento cognitivo e moral (SAXTON, 1995). Os livros de Maria Clarice Marinho Villac também trazem a trajetória da protagonista, que serve de exemplo inspirador, já que a menina travessa consegue se tornar uma menina virtuosa e obediente. Tais livros concorriam com a obra de Monteiro Lobato nas bibliotecas infantis, bem como com os livros estrangeiros, como publica a Folha da Noite em 06 de junho de 1946. Além disso, as três escritoras se utilizaram de suas memórias da infância para escreverem seus livros. Maria Clarice Marinho Villac relata a própria infância em seus livros, enquanto a Condessa de Ségur e Louisa May Alcott se inspiram naquele período de suas vidas para escreverem para as crianças. A lembrança da infância auxiliaria as escritoras na elaboração de seus personagens, por vezes de comportamento exemplar e, mais freqüentemente, com uma postura a ser corrigida. Também não se pode esquecer que o próprio exercício da escrita se mostrou fundamental para as quatro mulheres, por projetálas na vida pública, fornecendo-lhes uma renda e por oferecer a possibilidade de se expressarem e liberarem de circunstâncias de descontentamento, como no caso de Johanna Spyri e de Louisa May Alcott, cuja família apresentava uma situação financeira precária. Estes primeiros indícios levam a perceber que o diálogo entre as trajetórias das escritoras e suas obras é possível, podendo ser ampliado para permitir a compreensão de um panorama maior da condição destas mulheres nos diferentes países e a circulação de suas publicações pelo mundo, um dos fatores que permitiu a sua consagração. O relato de pesquisa aqui exposto não pode apresentar questões conclusivas, mas se inicia com a possibilidade da construção de reflexões e diálogos enriquecedores. Fontes bibliográficas 32 Priscila Kaufmann Corrêa ALCOTT, Louisa May. Little women/ Good wives. Londres: Wordworth Editions, 2006; FOLHA DA NOITE. “Monteiro Lobato disputa com Walt Disney a preferência dos frequentadores da Biblioteca Infantil”, 08 de junho de 1946; SÉGUR. Comtesse de. Les petites filles modèles. Casterman, 2003; __________________. Les malheurs de Sophie. Paris: Librio, 2000; __________________. Hachette, 2010; Les vacances. Internet via WWW. 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Horizontes, v. 30, n. 1, p. 25-34, jan./jun.2012 35 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus Fabiana Rodrigues Carrijo* João Bôsco Cabral dos Santos** Resumo Este artigo objetiva referendar a escritura de uma autora que conseguiu alçar voos mais longínquos que as suas limitadas condições socioeconômicas lhe impuseram. Propõe, ainda, desvelar que os escritos de Carolina Maria de Jesus indicam uma cisão conceitual do mundo através de uma ressignificação do discurso do cotidiano e que este é materializado através de alegorias severamente vividas. A instância-sujeito autor coloca na experiência empírica de um discurso da exclusão a real experiência da fome e faz deste experimento uma forma de visão social. Apoiado nos aportes teóricos da AD (francesa), o presente artigo ambiciona olhar para o corpus de base literária, ainda que não canônica, constituída pela obra intitulada Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, com vistas a propor um trabalho em interface, que, a par de bosquejar os processos de subjetivação, ambiciona, ainda, delinear o que estamos denominando de discursividade literária incanônica em Carolina Maria de Jesus. Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus, Escritura, Discursividade Literária. In the chinks of grimpy notebooks: Carolina Maria de jesus’ the testimonial embroidery Abstract This paper aims at approaching the way of writing focusing an author who postponed her social, economic and limited conditions. It also proposes examining the writings from Carolina Maria de Jesus as an indication of a conceptual reframing of everyday discourse. Such experiences will be demonstrated, considering the author dislocation to the condition of subjective instance who reveals a discourse of social exclusion bringing to literature such a kind of social portrait. It is registered in the theoretical contributions of AD (french), that this thesis project aims to look, closely, to the corpus of basic literary, although incanonic, consisting by the work entitled “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, with a view to propose an interface that work together to sketch the processes of subjectivation, aims also to outline what we are calling for literary discursivity incanonic Carolina Maria de Jesus. This paper aims to assess the writings of an author who succeeded in overcoming the limitations of her social and economical status. It is our purpose, as well, to reveal that Carolina Maria de Jesus's writings suggest a split in world conception by means of a resignification of the everyday discourse and that it is materialized through a harshly lived alegories. This subject-author puts in the empirical experience of an exclusion discourse the real experience of hunger and turns this experience into a socially envisioned form. Taking the French Discourse Analysis, we consider the literary non-canonical Keywords: Carolina Maria de Jesus, literary minorities writings, literary discursivity. Introdução: “Principiando algumas prévias discussões em torno da escritura de Carolina” Carolina Maria de Jesus entrevê na escrita a possibilidade de ir além da favela, do quarto de despejo, contudo o faz buscando como modelo de objeto estético literário, a norma culta, os tons românticos e ultrarromânticos de autores rastreados no lixo e com os quais buscava meios, artifícios e respaldo para seguir adiante, para ser aceita na cultura letrada. Segundo Sousa (2004, p.13) “A linguagem fraturada de Carolina deve ser entendida pelo que de fato é: a tentativa de uma pessoa das camadas subalternas de dominar os códigos da cidade letrada.” Estamos diante de uma instância-sujeito que criva o mundo, ressignifica-o e o enuncia no entremeio de uma *Endereço eletrônico: [email protected] **Endereço eletrônico: [email protected] literariedade que busca uma inclusão no universo discursivo da literatura como forma de inserção social. Trata-se, pois de uma tentativa de deslocamento de um lugar social de pobreza e miséria para um lugar discursivo imaginário de constituição pelo seu dizer sobre si. Um exercício de alteridade da e pela linguagem que lhe confere uma autoria como forma de emergência de um sujeito do mundo nele próprio. Em outras palavras, no artigo intitulado “Experiência e representação o feminino, o latinoamericano” Richard (2002, p.149) profere: Vários textos do feminismo latinoamericano operam com este ideologema do corpo (realidade concreta, vivência prática, conhecimento espontâneo, 36 Fabiana Rodrigues Carrijo, João Bôsco Cabral dos Santos biografia cotidianas, oralidade popular), que encarna a fantasia de uma América Latina animada pela energia salvadora do compromisso social e da luta comunitária, cujo valor documental e testemunhante seria julgado politicamente superior a qualquer elaboração teóricodiscursiva. Esta relocalização da mulher (vivência, ação, “experiência pessoal”, da imediatez do fazer (vivência, ação, experiência, compromisso) com seus emblemas domésticos e cotidianopopulares, faz par com uma imagem do feminino/latino-americano, que o simboliza como o “outro” selvagem (preconceitual) da academia. Não é sem razão que Carolina opte e entreveja na escrita uma possível ascensão para os seus textos, que, após um período de existência/resistência, foram seguidos de um silenciamento total para autora e obra, fadadas ambas ao esquecimento. Seu caráter autobiográfico-ficcional-realista enuncia de si num ethos outro, o da literatura, o da inserção e aceitação social, o da condição humana digna. A própria escrita nessa discursividade revela-se enquanto alteridade de uma forma-sujeito da miséria que se transpõe para um lugar discursivo de ser humano inserido em um mundo possível. É instigante, quase um contrassenso pensar que alguém, para ter acesso ao mundo letrado - entenda-se, aqui, literário - tenha que fazê-lo lançando mão de um tipo de forma, de padrão literário que, de antemão, já o exclui. Ou seja, sair do subterrâneo, do processo de submissão e tentar infiltrar-se em um processo outro, em um viés outro para mostrar justamente o quarto de despejo, o subsolo, a periferia da cidade. Vê-se a emergência de um sujeito em interpelação que procura na escrita, na literatura, nos modelos literários, uma forma de deslocamento de sua condição ideológica. Referencial Teórico: algumas notações temáticas e metodológicas Carolina, o sujeito-autor, diferencia-se de outros favelados por ter sido e se permitido ir para além do quarto de despejo (o espaço físico favela). Ela se singulariza por ser uma catadora de sonhos (ainda que pegos/catados na leitura de autores românticos, ainda que impetrados por uma memória discursiva que anuncia e enuncia a leitura de Casimiro de Abreu, Castro Alves, dentre outros entrevistos em Quarto de Despejo – diário de uma favelada1 (1960) - sonhos e inspiração encontrados no lixo, nos papéis revoltos das ruas por Carolina Maria de Jesus. Assim, os sonhos de Carolina – tanto o sujeito empírico (aquele sujeito do mundo) tanto o sujeito discursivo (enquanto instância e/ou função assumida pelo autor em uma dada discursividade) – perpassavam pela rudeza das sucatas, mas entremostravam as auspiciosas aspirações de uma mulher favelada, pobre, semiescolarizada, provedora única de três filhos em um barraco e, ainda, confabuladora de uma ‘escrita de si’ que evidencia as rasuras de um sujeito em ininterrupto embate com as palavras. O sujeito-autor, para recorrermos aqui a uma das funções e/ou posições possíveis propostas por Foucault (2009), tenta traduzir a matéria local: a favela e os seus problemas diários apostando na possibilidade de harmonizar as misérias reais que evidenciam a fonte/origem de seu dizer para estabelecer um dizer outro. Um dizer que, justamente por tratar do real, pode parecer/configurar estranho para outros que não o vivenciaram e/ou não o vivenciam. Daí a necessidade premente de se fazer ouvir, de se fazer lida, para mostrar, ainda que, em uma linguagem pretensamente dicotômica, híbrida, (re)vele/(des)vele as mazelas humanas fazendo com que o real, o periférico se tornem universal, digno de nota e, talvez por esta razão, digno de ser lido, um exercício de autoria que significa a história pelo crivo de um protótipo de estética, dito consagrado, com o intuito de buscar uma legitimidade de enunciação. A expressão literária de um realismo cotidiano, enfim, traduzido em sentidos da constituição de uma instância-sujeito que esboça uma tomada de posição perante seu lugar social. Assim, uma estetização desse real por um viés romântico/ultrarromântico instaura uma espécie de legitimação de um cotidiano que necessita de representação. Seguindo, ainda, as considerações de Richard (2002, p.149, grifos do autor): Ainda que seja certo que as batalhas descolonizadoras, as lutas populares e as convulsões ditatoriais na América Latina gestaram texto e conhecimento fora do cânone livresco (nas margens informais e subversivas do extra-acadêmico), emblematizar esse corpo de experiências como a única verdade do feminismo latino-americano (sua verdade primária e radical; radical por extrateórica) vem a confirmar o estereótipo primitivista de uma outra “outricidade” que só tem vida através de afetos e sentimentos. Esta “outricidade” é romanceada pela Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus intelectualidade metropolitana, que concebe o popular e o subalterno, o feminino e o latino-americano, como uma espécie anterior à tradução, de modo que deixa intacta a hierarquia representacional do centro: um centro que continua hegemonizando, assim, as mediações teórico-conceituais do “pensar”, enquanto relega a periferia à empiria do dado, para sua sociologização ou antropologização através das histórias de vida e do testemunho. A instância enunciativa sujeitudinal, para recorrermos aqui às extensões principiadas por Santos (2009), Carolina Maria de Jesus lança mão de um recurso narrativo inovador para a época, final da década de 50, princípio de 60, a narrativa em diários e/ou relatos memorialísticos, especialmente, oriundos das penas, das mãos de uma mulher e antecipa em dez anos esse tipo de gênero textual materializado por escritores (homens) e vale-se dele para alinhavar/tecer um relato em que os fios discursivos, embora chamuscados de dor, entremostram a memória de uma mulher negra, semiescolarizada, favelada, mãe solteira, moradora da favela do Canindé e catadora de lixo. Ao se tomar Carolina Maria de Jesus como instância enunciativa sujeitudinal, observase o jogo de alteridades entre a forma-sujeito pobre, o lugar social ‘excluída’ e o lugar discursivo sujeito de si pela inserção literária. A materialidade linguística por essa instância produzida inaugura a singularização de uma modalidade de expressão estética que se consagraria na temporalidade de uma causalidade estética da modernidade. O caráter memorialista instaura, também, a alteridade autor/personagem como uma relação sujeitudinal dialética, pensada na perspectiva de expressar uma evanescência do cotidiano como elemento de perpetuação de uma historicidade do sujeito. Fios e agulhas em mãos carolinianas tecem/destecem/alinhavam/suturam e cerzirão um discurso literário incanônico, para utilizarmos aqui um neologismo que possa indicar, em uma de suas acepções, o fato de a crítica literária especializada da época não enquadrá-lo dentro dos cânones da referida ocasião. Uma incanonicidade que desvela o caráter de unicidade da própria tentativa de apropriação de características de uma literatura romântica e/ou ultrarromântica. Nesse sentido, a crítica não poderia reconhecer o produto estético de uma individuação no nível de autoria, uma vez que assim quebraria os dogmas de uma erudição ad referendum. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 37 Assim conforme dissera Sousa (2004, p.158): ...a tessitura narrativa de Carolina, que compreende também a linguagem que lhe serve de meio para representar a realidade na qual vive, se é truncada e rasurada, é porque dá a ver as contradições que operam dentro da sociedade. O fato de Carolina, como diz Marisa Lajolo (1996), estar na contramão do momento literário dos anos 60, quando a literatura buscava na cidade, na cultura de massa, meios para criar uma linguagem literária que respondesse àquele momento histórico, na verdade, evidencia a exclusão social – que é também cultural, e se assim é, é também de gosto, uma vez que o padrão de gosto de Carolina não corresponde ao da época. E se não corresponde é porque está fora dos circuitos da elite dominante. Em uma leitura ingênua, pretensamente ingênua, ficamos indignados, quando não amofinados pelo fato de que, se o que apregoava Virgínia Woolf, em outras condições materiais, intelectuais, enfim, sob outras condições de produção histórico-ideológica e cultural, a mulher que escrevia, que quisesse lançar mão de ser escritora deveria fazê-lo quando, de fato, tivesse um teto todo seu. Carolina, em meio ao caos, literalmente, em meio ao lixo, encontra nos cadernos encardidos recolhidos deste mesmo lixo, a possibilidade entreaberta de sair de seu limitado mundo e confabular meios, entenda-se, aqui, materiais, intelectuais e financeiros para prover os seus e provê-los com o dinheiro advindo da escrita. Sua escritura, que, a despeito de ter e ser um valor testemunhal inegável, (re)vela uma autenticidade do vivido, (des)vela, ainda, uma espontaneidade de sua consciência de mulher, mãe, favelada, escritora, consciente, delatora e/ou relatora das ocorrências da favela e/ou para nos servirmos de uma metáfora elaborada pelo sujeito-autor (Carolina Maria de Jesus), denunciante do Quarto de Despejo. Se há valor testemunhal, há e haverá ainda uma representação, uma abstração, um simulacro desse mesmo real transfigurado, desta feita em discurso literário - ainda que incanônico-, pois quem estabelece o que seja ou não canônico, também o faz lançando mão do que é e/ou está sendo produzido na referida época, a supor que outros textos com outras características e/ou oriundos das mãos de uma mulher negra, favelada, mãe solteira, pobre, descendente de 38 Fabiana Rodrigues Carrijo, João Bôsco Cabral dos Santos escravos, dentre outras atribuições, fatalmente não estariam, portanto, dentro do intitulado cânone. Essa testemunhalidade advém, principalmente, da alteridade constituinte dessa representação. Uma alteridade que imbrica papéis sociais, projeta estereótipos sociais e ratifica vislumbres sujeitudinais nunca antes idealizados nos meandros literários. Tal representação de uma ‘escrita de si’ singularizada entremostra os deslocamentos do sujeito permeados pela interpelação da linguagem frente aos olhares sobre os mundos possíveis. Não é sem razão que, se tivermos contato com os textos/os manuscritos originais de Carolina, facilmente identificamos uma escritura que precisa, ininterruptamente, grafar com força, com toda a força possível (necessidade de escrever e reescrever, fortemente, sua história) se materializando em um texto como se ele fosse sempre um palimpsesto, uma escritura em palimpsesto. A escrita em palimpsesto é utilizada aqui com a concepção que era dada pelos gregos, não só no sentido literal, mas na acepção de raspar o texto e reescrever, fortemente, por cima, deixando à mostra aquela versão primeira. Sem contar que Carolina já escrevia em cadernos que eram retirados do lixo e, neste caso, já evidenciavam, já traziam em si uma página amarela, folhas arrancadas, descoladas e (re)aproveitadas – um dizer já alterado/retalhado e outro que seria – intensamente - reescrito nas folhas/nas fissuras dos cadernos encardidos. Essa escrita ‘por sobre’ revela uma historicidade pertencente a uma anterioridade que determina o lugar social do sujeito, trazendo a superposição de outra escrita que, por uma alteridade em clivagem, revela o lugar discursivo da instância enunciativa sujeitudinal escritora. Dessa forma, a alteridade ‘por sobre’/‘superposição’ significa essa movência sujeitudinal que constitui uma forma-sujeito traduzido por seu lugar social e faz emergir uma tomada de posição reveladora do lugar discursivo autor. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de registrar o deslocamento simultâneo entre os três lugares (posição-sujeito, lugar social e lugar discursivo), síntese da criação literária que se enuncia nos cadernos encardidos. Carolina Maria de Jesus – enquanto instância sujeito que congrega inúmeras posições possíveis, a saber: sujeito-autor; sujeito-narrador; sujeito-personagem, ao criar um relato em que a personagem é protagonista de uma história/estória, desvela uma escritura em que as marcas do sujeito-narrador, do sujeitopersonagem e ainda do sujeito-autor resvalam a um tipo de relato autobiográfico, como já sugere o título Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960) - mais precisamente, em um diário íntimo que, a par de revelar o preço dos alimentos, dos transportes, também faz uso do intitulado “discurso citado” para testemunhar, dar cunho de veracidade aos relatos. Segundo Sousa (2004), não basta para Carolina citá-los, é preciso lançar mão deste recurso para testemunhar (com uma autenticidade possível) os comentários de outros favelados, de outros moradores, de outras personagens. É imperioso comprovar que eles de fato existiram, ainda que tenha que recorrer – não raras vezes – ao tom de ameaça aos seus vizinhos e personagens do seu diário, prometendo citar nome, endereço, profissão e até mesmo número do documento de identidade. O estranho diário de Carolina é utilizado para recorrer, aqui, ainda que de maneira avizinhada, ao título de uma tese2 cunhada com o desejo de explicitar sua escritura. Tal explicitação faria emergir na obra da escritora, a marca legítima de um cânone – os românticos e ultrarromânticos. Ao tentar reproduzir este cânone, Carolina Maria de Jesus singularizou-o e reportou-se a outro gênero textual, mais tipicamente próximo dos textos memorialísticos. QD acaba por apresentar uma discursividade outra, fora do cânone literário vigente, que intitulamos aqui, de incanonicidade. A existência de um diário constitui-se como um elemento revelador das condições de produção da obra da escritora, condições de produção que trazem à tona temáticas, sentidos recorrentes, índices de interpelação da instânciasujeito em sua clivagem com o mundo e a sociedade em que vivia. Essas temáticas, sentidos e enfoques de interpelação fazem emergir elementos da memória, da história e da anterioridade discursiva de uma época, de um grupo social e de um legado de acontecimentos e condições de vida que significam a evanescência sentidural da obra da escritora. Como proceder diante de um texto que, a todo momento, se nos apresenta enquanto uma figura de linguagem intitulada oxímoro? Como se portar diante da materialidade discursiva em que as funções-autor, narrador, personagem, dentre tantas outras possíveis, se apresentam dispersas, quando não imiscuídas e não raras vezes inseparáveis? Como apreender um sujeito-autor que, em um processo de interpelação – nos moldes que apregoara Pêcheux (1997, p.148) -, promovem a constituição de um sujeito que é chamado à existência? Carolina é prontamente, ininterruptamente, instigada/incitada à existência: Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus seja para apresentar aos outros a favela e a miséria dos favelados (seus iguais); seja, ainda, para se destacar deles, por possuir, por ambicionar à detenção da cultura letrada para, a par dela, e utilizando-a enquanto ferramenta, alçar voos longínquos ou tão-somente revelar ao mundo sua condição de negra, favelada, mãe solteira, catadora de lixo e escritora. Se o sujeito se constitui na e pela ideologia e traz tatuado/inscrito em seu processo de subjetivação (no ato de se constituir, ininterruptamente, sujeito) um lugar social, uma posição social, uma formação discursiva e, consequentemente, um lugar discursivo, Carolina Maria de Jesus - o sujeito-autor, a partir de uma dada condição ideológica, política, social, histórica, no espaço limítrofe do barraco nº 05, na Rua A, da Favela do Canindé - quer crer que a escrita, a escritura é uma profissão possível, pretendida, ambicionada. Mesmo cônscia de suas limitações relacionadas à cultura intitulada letrada, padrão, infiltra o mundo literário ou, conforme expressa Lajolo, “arromba” a literatura, provocando fissuras no arcabouço desta “república das letras brancas e cultas”, “mundo das concordâncias e das crases” (LAJOLO, 1996, p.43-44, grifos da autora). Há na materialidade discursiva apreendida no corpus literário incanônico de Quarto de Despejo inscrições dicotômicas, reveladoras de marcas de oralidade e marcas de um discurso mais próximo dos textos românticos e/ou intitulados letrados. Essas inscrições se sobrepõem na alteridade da produção de sentidos e da constituição da instância-sujeito na emergência da obra. Dicotômicas porque se deslocam, transmutam-se, movem-se signicamente no encaminhamento da enunciação literária. Segundo a fortuna crítica de Carolina Maria de Jesus, notadamente os textos oriundos de áreas antropológicas e sociológicas, especialmente os escritos por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine, a autora só detinha o segundo ano primário. Toda a leitura que o sujeito-autor Carolina entremostra em QD, apreendido por meio dos sentidos veiculados nesta obra e, também, entrevistos nas diversas marcas no interdiscurso caroliniano fora tateada/buscada/burilada nos moldes tomados enquanto cânone – os poetas românticos, entre eles, Casimiro de Abreu – primeiro poeta a ser lido e tomado como referência, dentre outros, como Castro Alves –, aceito e referendado pela autora como um dos grandes poetas, o poeta dos pobres, das minorias, dos excluídos. É estimulante o fato de que a instânciasujeito Carolina Maria de Jesus possui uma Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 39 escolaridade que parece aquém daquilo que adquirira em termos de letramento – nos moldes do que pontua Magda Soares: “como práticas sociais efetivas de leitura e escrita”. Marisa Lajolo, ao apresentar a Antologia Pessoal de Carolina Maria de Jesus com o prefácio intitulado “Poesia no Quarto de Despejo, ou um ramo de rosas para Carolina” profere sobre a escritura de Carolina uma escrita que, a despeito de apresentar a cultura popular, a fala do povo, os erros de sintaxe, os inúmeros erros de concordância, as rimas pobres, as canções populares, a trova/prosa oriunda, advinda de seus ancestrais negros – o avô descrito como um Sócrates africano – mostra, entremostra, delineia o exercício, o fardo exercício de buscar/garimpar, recolher os termos/vocábulos mais próximos do dicionário, mais elitistas, mais incomuns, mais atípicos de uma cultura fartamente anunciada como sub-letrada. Uma tessitura singular que desvela o exercício do dizer, um exercício inacabável do dizer... Carolina escreve e se inscreve como um sujeito-autor, um sujeito-narrador e um sujeitopersonagem marcado/circunscrito/cerzido/alinhavado – para recorrermos aqui aos vocábulos correlacionados à tessitura, ao exercício de alinhavar, cerzir, costurar o dizer – e, ao cosê-lo, tenta remendar, alinhavar um lugar possível para o discurso caroliniano. O que seria esse discurso caroliniano? Uma conjuntura de sentidos em efeito que revela a referencialidade polifônica de uma instânciasujeito que enuncia pela significância de uma discursividade tomada como literária. Efeitos de uma historicidade, de uma anterioridade discursiva, de uma memória discursiva que insere a instância-sujeito escritora em um ethos sócioeconômico-literário, para enunciar um pathos resultante de sua clivagem e interpelação de um mundo possível que vivencia e sobre o qual e a partir do qual produz um logos que se inscreve em uma amplitude linguístico-estético-literário. É paradoxal, para não dizer instigante, o fato de Carolina Maria de Jesus tomar como molde os poetas românticos, o verso com rima, os motes do amor, da saudade, do amor à pátria, quando na ocasião – década de 60 – eram outros os conceitos, os moldes: havia/era a necessidade de justamente por fim ao verso, à forma, à convenção, como apontavam os modernistas: Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no inicio da rua 40 Fabiana Rodrigues Carrijo, João Bôsco Cabral dos Santos Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria. (...) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo (QD, p.36). Esqueceram de informar à Carolina, como bem pontuara Lajolo, quais eram os modelos denominados canônicos, literários: E, como não tinha sido informada, Carolina ia ao dicionário apesar dos tropeços e do peso do cartapácio. E o resultado são os poemas salpicados de lantejoulas do quilate de abscondado, desídias, estentóreo, recluída, cafua, infausto, cilícios, ósculos, agro, olvidame, érebo, e similares ourivesarias falsas, que dão a seu livro um indesejado tom de pastiche involuntário (LAJOLO, 1996, p. 52-53). Não obstante o prefácio referendar um livro de poemas, postumamente editado, o comentário acima também se assemelha à materialidade discursiva entrevista na obra que constitui o corpus de análise desse artigo, qual seja QD. A escritura de Carolina é paradoxal. Ela abriga, congrega quando não metamorfoseia o dizer, recorrendo às intituladas lantejoulas3 para abrilhantar, para enfeitar, para adornar o discurso pobre, miserável, destoante do dito progresso econômico, político, cultural anunciado. As lantejoulas também são indicativas do desejo do sujeito-autor de pertencer a outro lugar discursivo, outro lugar social, um lugar legitimado, talvez acadêmico/canonizado, para o seu dizer tão miserável, e, mesmo sendo, intitulando-se, apresentando-se humilde, tem sonhos vastos, tem sonhos auspiciosos. Se os sonhos são verdes, se os sonhos são ditosos, a realidade é negra, é dura, é sofrível, é roxa – “cor da amargura que envolve o coração dos favelados” (QD, p.34) é repetível, pois os dias são sempre iguais, os relatos são/serão sempre os mesmos: a busca pela sobrevivência, a luta, a enraivecida luta pela sobrevivência, quando, em muitos momentos, o sujeito-narrador, ao relatar as agruras dos favelados, os aproxima dos corvos, quando não os apresentam como inferiores a estes e outros animais: As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer (QD, p.35). Deus é o rei dos sabios. Êle pois os homens e os animais no mundo. Mas os animais quem lhe alimenta é a Natureza porque se os animais fossem alimentados igual aos homens, havia de sofrer muito. Eu penso isto, porque quando eu não tenho nada para comer, invejo os animais (QD, p.61). Só há beleza, só haverá beleza se ela vier concretizada na metáfora da banha frigindo na panela, e/ou ainda, quando há feijão com arroz e a promessa de uma refeição, ainda que parca, ainda que carente dos nutrientes necessários. Pelos enunciados já citados nas diversas ocorrências, o que se observa é a diversidade de inscrições, de formações discursivas distintas. De acordo com os estudos pecheutianos, a formação discursiva é o lugar da constituição do sentido. (PÊCHEUX, 1997, p.162) É nesta acepção que empregamos a aludida notação temática. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc). Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc, recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas: retomando os termos que introduzimos acima e aplicando-os ao ponto específico da materialidade do discurso e do sentido, diremos que os indivíduos são “interpelados” em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam “na linguagem” as formações ideológicas que lhes são correspondentes (PÊCHEUX, 1997, p.160-161- grifos do autor). Ora, Carolina revela-se a escritora dos pobres e de suas agruras. Ora ela se apresenta como a delatora dos favelados e de suas lambanças, fugindo e/ou fingindo escapar às suas misérias; ora ela se exibe como a apaziguadora, aquela pessoa que, por acreditar e se reconhecer escritora, é a única expectativa dos seus companheiros de miséria. É sempre ela que põe fim às brigas, às discórdias, é sempre ela que abranda os mexericos, é sempre ela a portavoz dos Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus favelados. É ela, também, que, em muitos momentos controversos, para não dizer paradoxais, parece intuitivamente desvelar uma inscrição que a apresenta como uma mulher à frente do seu tempo. Escolhe criar os filhos sozinha, opta por não ter marido e não se sujeitar a apanhar e, ainda, a ter que sustentar a casa como fazem muitas de suas vizinhas, que trabalham fora e ainda parecem tambor, apanham de seus companheiros. Em outros enunciados há referência ao preconceito contra os imigrantes nordestinos, proferindo que são sempre eles a se meter em confusão, são sempre eles a iniciar uma briga, são sempre eles os preguiçosos, cachaceiros, baderneiros; tal atitude resvala em uma atitude pré-concebida, quando não preconceituosa. Como esta é apenas uma pré-análise, outros caminhos poderão ser trilhados/ construídos/constituídos. É sabido que a proposta inicial era trabalhar/cotejar alguns enunciados representativos de algumas formações discursivas que desvelassem o sujeito em sua ininterrupta constituição enquanto instância enunciativa sujeitudinal. Há inúmeras inscrições do sujeito-autor em uma dada discursividade política, ideológica, social, literária, dentre tantas outras possíveis. Carolina – enquanto sujeito-autor - em inúmeros momentos fala/descreve a necessidade de o poeta estar vinculado àquilo que registra. Ela se reconhece como uma poeta dos pobres. Insiste-se aqui no termo poeta e não poetisa, a supor-nos que aquele não carrega em si nenhuma acepção de gênero (masculino e/ou feminino) e porque a própria Carolina também usa o termo/vocábulo poeta. A escrita não tem gênero; aliás, não tem sexo: “Vi os pobres sair chorando. E as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos representam em relação ao povo”. (QD, p.54) Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, ao referendar, junto com Marisa Lajolo, a obra intitulada Antologia Pessoal de Carolina Maria de Jesus, publicada postumamente (1996, p.17) pontua que: Carolina escrevia muito. Não só músicas – sambinhas pobres também foram perpetrados por ela – mas, ao lado de múltiplos gêneros, principalmente, versos agarrados nas linhas do simplismo, da rima mais que fácil e da repetição. Carolina foi e era por definição poeta. Sequer dizia-se poetisa. Sem entender o Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 41 significado disto, tudo que for dito sobre ela soará pouco e, mais que incompleto, vazio. (MEIHY, 1996, p.17) Carolina escreveu diários, teatro, letras de música, poesia, romance – ela perpassou por diversos gêneros textuais, embora tenha ficado conhecida apenas como a autora de diários íntimos. Essa diversidade de escrituras literárias funda-se na necessidade de uma expressividade sujeitudinal inscrita em uma discursividade literária que a revelasse como instância-sujeito nesse universo discursivo. Trata-se de uma constituição sujeitudinal plural em busca de um lugar discursivo que a revelasse enquanto instância enunciativa sujeitudinal escritora. Na materialidade discursiva de QD é possível identificar, assinalar diversos recursos utilizados para compor o dizer. Trechos carregados de metáforas, textos (des)veladores dos motes utilizados nos textos de Casimiro de Abreu, em Castro Alves, o uso de metáforas, o recurso da hipercorreção – quando a instânciasujeito Carolina, sabendo-se não possuidora do código letrado, tenta se infiltrar nesse código e se corrigir... Que chega ao exagero ou, ainda, abeirase nas bordas do que se intitula hipercorreção. O uso exagerado e fora do código normativo dos pronomes, da escolha de vocábulos burilados, garimpados nos dicionários. Nesse sentido, o dizer de Carolina traz tatuada a marca do interdiscurso. E é inegável, em muitos momentos, para recorrermos aqui as expressões apontadas por Umberto Eco (1994), o sujeito-leitor (re)conhece trechos, falas, verbetes, transcrições de outros discursos, de outros autores, notadamente os autores românticos. Veja-se este fragmento: Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvorêdos que existe no inicio da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria. (...) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: “Ri criança. A vida é bela”. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a epoca está apropriada para dizer: Chora criança. A vida é amarga (QD, p.36). Nessa perspectiva, é possível cotejar a posição de Maingueneau (2006, p.72) quando discute a questão do discurso constituinte: 42 Fabiana Rodrigues Carrijo, João Bôsco Cabral dos Santos Como todo discurso constituinte, a literatura mantém uma dupla relação com o interdiscurso: de um lado, as obras se alimentam de outros textos mediante diferentes procedimentos (citações, imitações, investimento de um gênero...) e, do outro, elas se impõem à interpretação, ao emprego. É assim que o sujeito-autor ou a instância enunciativa sujeitudinal escritora faz uso do que lera, do que ouvira, do que entrara em contato e (re)toma esses outros dizeres com outras acepções. Não é, de maneira alguma, mera reprodução, mas um outro dizer, marcado por outras inscrições sociais, políticas, históricas, ideológicas e culturais. Senão seria apenas uma réplica dessas inscrições sem uma clivagem do mundo que significativamente enunciasse e referendasse o que disse Maurice Blanchot (1996), quando argumentou que o que importa não é dizer, mas redizer e, neste redito, dizer a cada vez uma vez primeira. Pelos excertos supracitados é facilmente perceptível uma releitura e/ou uma relocalização dos enunciados, dos vocábulos, das expressões fundadoras do estilo romântico de alguns escritores, entre eles, Casimiro de Abreu, Castro Alves e o próprio Gonçalves Dias com o poema Canção do Exílio que exalta a terra, os bosques, as várzeas, as flores, os amores. Conforme assevera Pêcheux “... o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala”” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob o domínio do complexo das formações ideológicas (1997, p.162 – grifos do autor). Considerações Finais: Realizando algumas breves exposições e indicando um ponto-evírgula A instância enunciativa sujeitudinal escritora Carolina Maria de Jesus é/representa um grito de protesto contra as injustiças cometidas contra os favelados, as minorias, os pobres. Sua voz é contundente, cáustica. Neta de escravos, seu discurso entremostra em ‘pé de garrafa’ – a exemplo do mito africano – as migalhas, a dor, a complacência com os desvalidos e, ainda que, não sendo homem para mudar o curso da história, sonha com o mundo das letras, com o mundo dos adeptos ao dom da palavra – aqueles que são mais abastados culturalmente e socialmente providos de tradição letrada. Talvez, nesse sentido, o discurso caroliniano revele uma leve aproximação com o mundo de Alice – na medida em que confabula sonhos e ambiciona torná-los possíveis. Este será seu dedal de mudança, possível legado aos seus irmãos de cor. O dizer de Carolina é simples, contundente, direto, sem meios-tons, sem o requinte da sofisticação, embora se encontrem espalhadas algumas lantejoulas, aqui e ali para recorremos ao comentário feito por Marisa Lajolo (1996). O que esta autora chama de lantejoulas são algumas metáforas, algumas expressões atípicas para alguém com tão pouca escolaridade formal. Sua singularidade se revela não somente na denúncia social, mas ainda na possibilidade de criar artifícios ficcionais para desvelar a singularidade de sua denúncia. Deitar e acordar, com lápis e papel na mão, não é uma atitude puramente mecânica; é uma singularidade que desvela na ação de escrever e de catar a probabilidade de catar sonhos/realizar sonhos feitos os de Alice no País das Maravilhas, de Carroll. A despeito de crer, de ter a lucidez de ver e entrever que os lugares já estão postos, que as injustiças se repetem, ininterruptamente, tais como os elementos frasais com que iniciam seus dias esquadrinhados em seu diário. Carolina sonha com um mundo utópico, ideal, em que homens e bichos sejam tratados com dignidade; aliás, em muitos momentos de desespero, chega a crer que os animais são privilegiados, pois conseguem se alimentar, enquanto os favelados, em inúmeros momentos, não têm o que comer. Carolina representa a figura de uma catadora de palavras – para calar/sufocar a fome do não saber institucionalizado, por outro lado, não dissonante deste, também, configura a catadora de sonhos – para criar/confabular/engendrar um universo de sobrevivência possível. As páginas de cadernos amarelados pela ação do tempo chegaram às mãos de Audálio Dantas como que por coincidência. Por uma obra do acaso, ou como diria o estimado Rosa (2001), pela força do acaso que conspira ainda que o “viver seja um descuido prosseguido”. Estava o jornalista andando na favela – a procura de artifícios para engendrar um relato sobre os favelados, quando como por uma eventualidade ouve falar de Carolina – a favelada que anotava tudo o que ocorria na favela. Golpe de gênio e/ou mera obra do acaso? O fato é que Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus encontrou ali alguém que, sendo da favela, poderia falar muito melhor em nome desta, pois isso daria maior veracidade ao testemunho. O tempo de Carolina é o tempo do Era uma vez, ainda que estabeleça uma possibilidade de porvir, de tornar a ser, ainda que antecipe em 10 (dez) anos a escrita em diário... feito/concebido por uma mulher. Era uma vez uma menina que desde sempre havia sido destinada a ser poeta... Por isso, recorrendo a sua memória, ao senso comum e ao relato de um médico, quando frequentemente sentia dores na cabeça... Ele retrucava/sentenciava que ela havia nascido para ser poeta... Era este o seu destino, era esta a sua sina. Carolina ambicionava ser poeta, mais do que isto, desejava sobreviver desta escritura e outra vez... Relembramos Alice no país das maravilhas: “Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhante. Que a minha vista estou no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades” (QD, p39). Assim, em 1958, aparece Audálio Dantas metamorfoseado em Chapeleiro Maluco – bem, no caso de Carolina, não tão maluco assim, já que ele, em sua antevisão jornalística, apura e prepara um contexto editorial favorável para receber Carolina Maria de Jesus – um achado. Alguém que, vindo da favela, seria sua porta-voz. Nada mais convincente em um país que se abria, ainda que ilusoriamente, para a popularização, para a democratização da cultura, mostrar a favela por seu próprio ângulo, pelo seu próprio viés. Na aludida ocasião houve talvez uma confluência de astros: o acaso, a escrita, a mensagem, os leitores, só faltou/careceu e, talvez, este seja o aspecto que tenha recebido maior aceno de Carolina, o ressentimento, o ressentir-se pela falta de receptividade da crítica literária à sua obra e pela mesma razão também entremostrou a não aceitação de Carolina, aos cânones literários vigentes. Talvez date daí sua frustração, sua fuga para o sítio de parelheiros e para seu processo de encapsulamento. Se por parte dos leitores teve uma audiência/uma aceitação imensa – superando em um só dia até mesmo autores [intitulados] clássicos, como Jorge Amado, por outro lado e, dissonante deste –, pois mesmo tendo sido Quarto de Despejo um dos livros mais lidos no Brasil, na década de 60, quiçá no mundo, não fora aceita pelos poetas de salão, pelos intitulados acadêmicos e/ou imortais. Carolina sentou-se e olhou as páginas em branco que pretendia preencher com o saldo de sua solidão e de suas carências pessoais, emocionais, financeiras. De forma atabalhoada, Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 43 começa a entender que a vida é determinada pelas escolhas e estas já foram a priori determinadas pelas diferenças culturais, sociais, políticas, profissionais, étnicas e, ainda, de gênero – o peso, o árduo peso de ser mulher: negra, favelada, mãe solteira e com baixa escolaridade. E ela, a instância-sujeito Carolina Maria de Jesus, como tantos, sempre tivera dificuldade em escolher. Talvez justamente porque as escolhas já estavam postas a priori. Nesse momento, a sua era uma vida tão encapsulada que parecia ser impossível chegar ao cerne, à origem deste enovelamento. A sua história é multifacetada. Realizando uma remota comparação entre a obra Alice no País das Maravilhas e a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus pode-se dizer que esta é repleta de fantasias oníricas e lúdicas acerca da realidade e da linguagem. São simbolizações e alegorias que, a um primeiro parecer, contestam a lógica e o senso comum primando pelo nonsense, pelo absurdo. Contudo, como a própria instância-narradora profere: “há de existir alguém que lendo o que escrevo dirá isto é mentira, mas as misérias são reais” o non-sense é só aparente, só quem passa pela fome é quem sabe o que é sentir a fome, segundo esta mesma instância-sujeito narrador profere “a fome tambem é professora”. (QD, p.31) Essa ludicidade desvela, contudo, metáforas lúcidas a respeito do mundo e da sociedade, da divisão entre favelados/miseráveis e ricos; entre o quarto de despejo e a sala de estar. A instância-sujeito Carolina Maria de Jesus transpõe para a materialidade linguística e discursiva o mundo lúdico de Alice, embora o faça ao revés... Seu mundo é a favela, são as marginais da cidade de São Paulo – cheias de incertezas e ilogicidades. São Paulo como no país das maravilhas é dividido/cindido em castas/classes, proleátrios e classe média. Carolina, a catadora, representa/configura a carta de espada (os servidores, os jardineiros, os pedreiros, os proletários, os desvalidos, os jogados para o quarto de despejo). QD e a sua recepção entremostram os matizes da favelada, um quadro em que as cores primárias e secundárias não são associadas ao belo, mas antes ao cheiro de podridão, aos entretons cinzentos e esfumaçantes da poeira, da lama, do mau cheiro, da pinga, da imundície que exala da favela, trazendo à mostra a metáfora dos desvalidos esfomeados – quando então, passado o boom editorial, autora e obra são silenciadas. Contudo, o livro QD cresce no mercado editorial nacional e internacional, alça voos desmedidos, trazendo esta metáfora dos desvalidos e esfomeados, contudo a academia faz 44 Fabiana Rodrigues Carrijo, João Bôsco Cabral dos Santos vista grossa ao mercado editorial crescente para o Quarto de Despejo. “Era uma vez”... a vida da instânciasujeito Carolina Maria de Jesus é repleta de questionamentos existenciais: a fome, a luta contra o tempo para catar, enovelar, dormir, sonhar, tornar possível, trabalhar... A incoerente realidade externa não se coaduna com a realidade interna. Não é suficiente ser diferente do modelo social de um determinado momento histórico; é preciso diferenciá-lo, trazer à tona o que era apenas vago e sufocador – para recorrermos aqui aos dizeres de Clarice. Era imperioso modificar esse momento histórico, ainda que em folhas catadas no lixo. Tal atitude desvela coragem, muita coragem. QD metaforicamente revela um rito de passagem para a coragem: a coragem de ser mulher, a coragem de ser mãe, a bravura de resistir à fome e utilizá-la como pauta para a denúncia social, política e histórica, a força de SER só no mundo, os ônus de ser uma mulher negra, semiescolarizada, favelada, mãe solteira, catadora de lixo e escritora. Alice, assim como Carolina Maria de Jesus, devolvem ao seu país, por intermédio de seu discurso, dedais de projetos que visam às minorias sociais. Talvez essa seja a melhor, a única porção que lhe cabia, talvez essa seja a atitude de uma ‘Alice negra da modernidade’ com sua pequena varinha de condão – principiar as denúncias, revelar as mazelas que afligem os favelados, os seus iguais. Carolina propõe uma cisão conceitual do mundo por meio de uma ressignificação do discurso, e esse discurso é materializado através de alegorias vividas, duramente, severamente vividas. A instância-sujeito autor coloca na experiência empírica do discurso a real experiência da fome e faz desta experiência uma forma de visão social. A propósito, observando as considerações foucaultianas bem delineadas nas linhas do livro O que é um autor?, bem como nas folhas que antecedem a este e atribuídas aos prefaciadores do presente livro: mais vale o projeto de empreender uma tentativa de rascunhar uma ‘escrita de si’, portanto acreditar-se no gesto de superar que nas próprias superações; “a própria escrita (grafia) é um gesto da vida, e que, se a pode negar, destruir, banalizar, também a pode ‘salvar’”. (2009, p.8-9).Talvez no exercício de catar o lixo e salvaguardar os dias vividos haja no corpo de Quarto de Despejo um projeto social, literário e filosófico do sujeito autor Carolina Maria de Jesus de proteger-se da própria solidão, salvar-se da loucura, defender-se da miséria que consome os sonhos e os engaveta nos escaninhos obscuros da memória. Como indagações finais e que não se encerram com a proposição desta leitura, deste gesto de interpretação, faríamos nossas as palavras de J.Ullmo4 (2009, p.87): Onde é que se encontra o que especifica um autor? Bem, o que especifica um autor é justamente a capacidade de alterar, de reorientar o campo espistemológico ou o tecido discursivo, como formulou. De facto, só existe autor quando se sai do anonimato, porque se orientam os campos epistemológicos, porque se cria um novo campo discursivo que modifica, que transforma radicalmente o precedente. Carolina Maria de Jesus – enquanto posição sujeito – desestabilizou o posto, se permitiu ir além do quarto de despejo, ousou um atrevimento: possuir uma casa de alvernaria5, considerado na época um atrevimento de negrinha metida, arrombou a literatura da ocasião, nos dizeres de Marisa Lajolo (1996), provocou fissuras no meio jornalístico e ainda que não tenha sido considerada uma autora da ordem do cânone, desestabilizou o posto e fundou uma discursividade outra para além do cânone. Inventariou um legado que lhe permitiu escrever diversos gêneros discursivos, teatro, poemas, canções, cartas, novelas, diários (o conhecido), dentre outros. Carolina sai do anonimato, desestabiliza, quebra regras, ainda que seja e tenha o intuito de seguir a norma considerada padrão, a norma culta, incomoda por não ser possível imputar-lhe uma categoria, uma etiqueta. Carolina fere todas as etiquetas intituladas e bravamente rotuladas como aceitáveis para ser considerada uma escritora: ser escolarizada, ter formação clássica e vir de uma camada social mais abastada. Carolina – enquanto sujeito empírico – é negra, favelada, pobre, mãe solteira, semiescolarizada, descendente de escravos e leitora autodidata. Assim, reciclava lixo e ao reciclá-lo entrevia uma realidade outra, acreditava no poder da escrita como forma de anotar os dias e preservá-los do esquecimento. Tentava, ainda, registrar as lambanças de seus irmãos de cor e apontar os deslizes deste e daquele governante. Tinha uma coragem para além do prontamente esperado, ao reciclar lixos, mantinha o desejo de um dia mudar o curso da história, separava lixo e trocava por gêneros alimentícios em uma época que nem se falava em reciclagem. Resgatou e preservou seu instinto primeiro de escriturar e inventariar o que é e seria da ordem do não inventariável: a vida infame dos Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 Nas fissuras dos cadernos encardidos: O bordado testemunhal de Carolina Maria Jesus homens comuns. E se sua ‘escrita de si’ abespinha-se é também porque desestabiliza o posto, esfola regras, funda um novo campo discursivo e ousa falar da vida cotidiana com todas as suas singularidades, com toda a precariedade e inalterabilidade dos dias, em que vida privada e pública se entrelaçam no quarto de despejo (espaço privado, o quarto de Carolina), mas contracenam aos olhos de todos os favelados, no meio da favela (no quarto de despejo, espaço público), no centro paupérrimo do descaso e dos desvalidos... lá onde jorram todas as estórias e escorrias da cidade, quiçá do país. Referências Bibliográficas BLANCHOT, M. Conversação infinita. In: COMPANGNION, A. O trabalho da Citação. Trad. de Cleonice P.B. Mourão. 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Cumpre mencionar que essa obra não passou por uma revisão gramatical; nesse sentido os referidos excertos entremostram as singularidades de um sujeito autor que enquanto sujeito empírico, pertencente a uma dada comunidade, só cursou até o segundo ano primário, em uma Escola Espírita de Sacramento denominada Allan Kardec. 2 Tese de doutoramento de Germana Henriques Pereira de Sousa intitulada Carolina Maria de Jesus – O Estranho Diário da Escritora Vira-lata, defendida em 2004 na Universidade de Brasília, ilustra os desdobramentos de sua escritura. 3 Recursos linguageiros de uma expressividade linguística que ilustra e caracteriza representações de um dizer que reflete um realismo acontecimental, isto é, da ordem do acontecimento. 4 O livro de Foucault O que é um autor? é resultante de uma seleção de textos do autor reunidos sobre a problemática do sujeito e a sua relação com a escrita. Trata-se de uma das suas inúmeras conferências proferidas e traz a participação de alguns debatedores/mediadores, entre eles: Maurice de Gandillac, Lucien Goldmann, J. Ullmo que realizaram algumas contribuições/questões durante a conferência que resultou nesse livro. 5 Casa de Alvenaria está sendo usado aqui em duplo sentido: o primeiro deles, talvez mais premente, é a casa de alvenaria conquistada por Carolina com a vendagem do seu primeiro livro lançado, a saber: Quarto de Despejo – diário de uma favelada (1960) e, na segunda acepção, também se refere a outro livro bancado, desta feita pela própria autora com o dinheiro ganho na edição de Quarto de Despejo. Livro que não recebeu os acenos tanto de público, quanto de mídia e, ainda, do meio acadêmico como uma grande promessa empreendida por Carolina. Assim, tanto a autora como os livros publicados após seu best-seller Quarto de Despejo foram fadados ao esquecimento. Sobre os autores: Fabiana Rodrigues Carrijo: Professora de Língua Materna no Ensino Fundamental do Estado de Goiás. Autora e executora de um projeto de leitura intitulado: Tecendo e (des) tecendo com laços de amor e dor: como recobrar o prazer pela leitura no espaço da biblioteca. Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos do Instituto de Letras e Linguística na Universidade Federal de Uberlândia. Membro partícipe do Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos. (LEDIF). João Bôsco Cabral dos Santos: Professor Associado 2 do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Estudos Linguísticos pela UFMG. Coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Polifônicos. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 35-46, jan./jun.2012 47 O Curso de Pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador1 Juçara Gomes de Moura* Maria Aparecida Lopes Rossi** Resumo O trabalho objetiva refletir sobre a organização curricular do curso de Pedagogia em Goiás, na década de 1980, e suas contribuições para com a formação do professor alfabetizador. Parte-se da proposição de que o curso de Pedagogia sofre, ao longo da sua história, influências políticas do Estado e dos movimentos sociais que reivindicavam a democratização da escola. Tais reivindicações materializaram-se na organização de um currículo que buscava “transformar a escola de 1º Grau como um espaço verdadeiramente democrático”. O novo currículo dá ênfase na compreensão da educação, da escola e da prática pedagógica, considerando sua historicidade e funções sociais e o desenvolvimento de uma consciência crítica no processo de formação do pedagogo. Assim, o curso busca formar profissionais com o domínio de conteúdos específicos da alfabetização que passa a ser compreendida como um processo, que envolve a compreensão e o trabalho com a função social da leitura e da escrita. Palavras – Chave: Alfabetização, Currículo, Curso de Pedagogia. The Pedagogy Course in Goiás and a training literacty teacher Abstract This essay aims to reflect on the curriculum of the Faculty of Education in Goiás, in the 1980s, and their contributions to the training of literacy teachers. It starts with the proposition that what we call Faculdades de Educação in Brazil have traditionally influenced state policies and social movements that demanded the democratization of school. Such claims were materialized into a curriculum organization organizing that sought to "transform the school from Grade 1 as a truly democratic space." The new curriculum emphasizes the understanding of education, schools and pedagogical practice, considering its historical and social functions and developing a critical consciousness in the process of formation of the pedagogue. Thus, the course seeks to train professionals that master specific literacy contents in which literacy is understood as a process that involves understanding and working with the social function of reading and writing. Key - Words: Literacy, Curriculum, Pedagogy course. Introdução O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a organização curricular do curso de Pedagogia em Goiás, na década de 1980, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (FE/UFG) e no Departamento de Educação da Universidade Católica de Goiás (EDU/UCG), assim como suas contribuições para a formação do professor alfabetizador. Parte-se da proposição de que o curso de Pedagogia, criado em 1939 no Brasil, sofre, ao longo da sua história, influências políticas do Estado e dos movimentos sociais, especificamente do movimento dos educadores, no final da década de 1970 e início da década de 1980, que reivindicava, entre outras questões, a democratização do espaço escolar. Essa reivindicação materializou-se na organização de um currículo, na FE/UFG e no EDU/UCG que buscava “transformar a escola de 1º Grau em um espaço verdadeiramente democrático”. Para transformar esta escola era necessário, também, formar um profissional docente, em nível superior, com compromisso político, competência * Endereço Eletrônico: [email protected] ** Endereço Eletrônico: [email protected] e habilidades para alfabetizar crianças das escolas públicas. A reivindicação de uma escola democrática está relacionada à luta dos educadores contra a política de um Estado autoritário (GERMANO, 1993) que controlava ideologicamente a educação escolar em todos os níveis; empreendia reformas na educação, colocando-a numa relação direta e imediata com a produção capitalista e incentivava a participação do setor privado na expansão do sistema educacional. Nesse momento histórico, de controle ideológico da educação, o curso de Pedagogia formava profissionais habilitados para o trabalho técnico nas escolas: Administração Escolar, Inspeção Escolar, Orientação e Supervisão Escolar. A formação para a docência estava direcionada às disciplinas pedagógicas, para atuação, do pedagogo, no Magistério do 2º Grau, nas Escolas Normais. Essa formação era criticada pelo movimento dos educadores, como uma formação que ignorava os aspectos ideológicos e sociais da educação e sobrepunha a técnica aos aspectos políticos da prática 48 Juçara Gomes de Moura, Maria Aparecida Lopes Rossi pedagógica. Nesse sentido, os documentos do novo currículo do curso de Pedagogia, organizado em 1984 na FE/UFG e em 1985 no EDU/UCG, registram a influência do movimento dos educadores em prol de uma educação pública que transformaria especificamente a escola de 1º Grau, ou seja, a escola responsável pela alfabetização dos filhos dos trabalhadores. É importante ressaltar que a FE/UFG foi pioneira, no Brasil, ao reformar o curso de Pedagogia, dando ênfase na formação do profissional pedagogo como docente/alfabetizador para atuar na escola de 1º Grau. Ao reorganizar o curso de Pedagogia, a FE/UFG e o EDU/UCG dão ênfase à compreensão da educação, da escola e da prática pedagógica, considerando a historicidade da educação e suas funções sociais; a importância do desenvolvimento de uma consciência crítica no processo de formação do pedagogo; a necessidade de recriação da escola de primeira fase do primeiro grau; a busca de superação da dicotomia na relação teoria-prática; a importância de formar pedagogos com capacidade para responderem aos reais interesses da classe trabalhadora; a necessidade da formação de um profissional que recuperasse a experiência e o saber que o aluno traz, ao chegar à escola, submetendo-o ao crivo da reflexão e da crítica. Assim, o curso, nas duas instituições referidas, passa a formar profissionais pedagogos para atuarem na escola de 1º Grau com o domínio de conteúdos específicos da alfabetização. É interessante lembrar que, nesse momento histórico, a alfabetização passa também a ser compreendida como um processo que envolve a compreensão e o trabalho com a função social da leitura e da escrita. Essa concepção é concebida no Brasil, já a partir da década de 50, quando o Censo, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), considerava como alfabetizado aquele que soubesse ler e escrever um bilhete simples, o que implicava exercer uma prática de leitura e escrita. Essa visão amplia o que era considerado alfabetizado até a década de 40 pelo mesmo Instituto, quando os indivíduos que declaravam saber ler e escrever eram tidos como alfabetizados. Desse modo, desloca-se a ênfase anterior, que era dada ao aspecto técnico da leitura e da escrita, priorizando-se a decodificação, e passa-se a considerar a importância do trabalho com textos desde a fase inicial da alfabetização. A discussão sobre a alfabetização nas escolas brasileiras remonta ao final do século XIX. É interessante também observar que, nesse momento histórico, os profissionais responsáveis pela alfabetização das crianças eram formados pelas Escolas Normais. Até esse período o ensino da leitura e da escrita, nas escolas primárias, no Brasil, escolas essas, consideradas tradicionais, era fundamentado nos Métodos sintéticos. A soletração, a silabação e a consciência fonológica são as características desse modelo de alfabetização (CARVALHO, 2009). Na soletração, por exemplo, a ênfase é dada aos mecanismos de codificação e decodificação, o objetivo é ensinar às crianças, a combinatória das letras e sons. Nele, a alfabetizadora parte de unidades simples, as letras, mostrando para os alunos, que essas, quando se juntam, representam os sons, representam as sílabas, e as sílabas, por sua vez, formam as palavras. Em 1890 (MORTATTI, 2000) foi inaugurada no Estado de São Paulo a EscolaModelo do Carmo, semelhante à Training School dos americanos, fundamentada nos princípios da Escola Nova. Nesta Escola-Modelo, anexa à Escola Normal, concebia-se o método analítico para o ensino da leitura como o mais apropriado para as crianças. Esse método de ensino parte do “todo” para as “partes”, iniciando-se a alfabetização por meio da sentença. Nesse modelo de alfabetização, a compreensão é de que a criança tem uma visão globalizada da realidade, ela tende a perceber o todo, o conjunto, antes de captar os detalhes. Neste aspecto, a alfabetizadora inicia o ensino da leitura e da escrita apresentando às crianças uma sentença. Após essa apresentação e leitura da sentença, realizada pelas crianças, a professora trabalhava as palavras e, após, as sílabas e as letras. Assim, esse método, caracterizado como analítico, diferencia-se do método sintético, que parte da silabação. Os adeptos dessa nova concepção de alfabetizar criticavam o método sintético, caracterizando-o como arcaico, “que contrariava a função de globalização característica da mente infantil” (CARVALHO, 2009, p. 32). Os críticos consideravam o método analítico como moderno, mais lógico e mais rápido. Nesta perspectiva, a escola primária, ao adotar a pedagogia do método analítico, método moderno, também era considerada pelos críticos como um espaço mais divertido, prazeroso, que amenizava para as crianças a difícil e árida aprendizagem das primeiras letras. Na década de 1960, no Brasil, o educador Paulo Freire cria um método de alfabetização de adultos fundamentado na ideia de que, para alfabetizar, é preciso compreender o homem como ser político e que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 O Curso de Pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador não possa prescindir da continuidade da leitura daquele (FREIRE, 1984, p. 11)”. Nessa perspectiva, o papel do alfabetizador é dialogar com o oprimido sobre temas que lhe falem de situações concretas e de experiências que o alfabetizando vive diariamente. O autor fazia críticas ao modelo de educação que dá ênfase à memorização. Segundo ele: A memorização mecânica da descrição do objeto não se constitui em conhecimento do objeto. Por isso é que a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto e feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura nem dela, portanto, resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala (Idem, p. 18). A partir da segunda metade da década de 1970, período em que um forte movimento político dos educadores brasileiros passa a compreender a educação também como um ato político, grupos de professores e pesquisadores passam a estudar os trabalhos de Bakhtin, Leontiev, Luria e Vygotsky (FREITAS, 1994). Esses estudos influenciam a compreensão de educação e do ensino da leitura e da escrita. Em Vygotsky, a Psicologia humana tem como característica a compreensão de que a internalização das atividades são socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas. Isso significa que a formação dos processos mentais se dá a partir do social e, neste sentido, a leitura e a escrita são concebidas como um espaço de interlocução e a linguagem compreendida como constitutiva e não constituída. Para Bakhtin (1992), o indivíduo apresenta-se como um fenômeno sócio ideológico e “esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica e internamente condicionada por fatores sociológicos (1992, p. 38)”. A partir desses estudos, que levam à necessidade de se ampliar o conceito de alfabetização, Soares (2004) destaca que, ainda na década de 80, é introduzido no Brasil, tanto nas ciências da linguagem quando no campo da educação, o termo letramento, que vem destacar a diferença entre este conceito e o conceito de alfabetização. Segundo a autora, esses dois conceitos, embora designem processos interdependentes, simultâneos e indissociáveis, “envolvem conhecimentos, habilidades e competências específicos, que implicam formas Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 49 de aprendizagem diferenciadas e, consequentemente, procedimentos diferenciados de ensino (SOARES, 2004, p.15)”. A autora explica ainda que a inserção no mundo da escrita se dá por meio da aquisição de uma tecnologia e a isso se chama alfabetização. O letramento se dá com o desenvolvimento de competências de uso efetivo dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita. Com isso, como salienta Rojo (2009), passa-se a entender leitura como um ato que envolve diversos procedimentos e capacidades (perceptuais, motoras, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, linguísticas) todas dependentes da situação e das finalidades de leitura. (ROJO, 2009, p. 75). O conceito de letramento, conforme explica Kleiman (1995), afirma-se no meio acadêmico como uma forma de diferenciar “os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita” (KLEIMAN, 1995, p. 15,16). Essas considerações são importantes para entender a reorganização do currículo do curso de Pedagogia na década de 1980 em Goiás na FE/UFG e no EDU/UCG. É o primeiro momento na história da educação brasileira em que se materializa a formação de professores em nível superior para atuar na alfabetização. O curso de Pedagogia e os conteúdos específicos para o ensino da leitura e da escrita Na reformulação do curso de Pedagogia, na década de 1980,foram incluídas no currículo das duas instituições formadoras, FE/UFG e EDU/UCG, as disciplinas: Língua Portuguesa; Língua Portuguesa 1ª fase do 1º grau: metodologia e conteúdo; Alfabetização; Português I; Língua Portuguesa; Didática da Comunicação e Expressão; Alfabetização I; Alfabetização II; Cultura, Linguagem e Alfabetização; Alfabetização III; Estágio III – Alfabetização. A reorganização do curso de Pedagogia, com a inclusão das disciplinas acima referidas, deve ser entendida no seu aspecto histórico, político e cultural. Isso significa que a seleção dos conteúdos do novo currículo se deu em meio a contradições e conflitos, redundando em soluções “negociadas”. Considera-se que esses aspectos são fundamentais na reflexão sobre a formação docente, mas que o presente trabalho, devido a sua complexidade, não tem como objetivo explorar. Moura (2011), ao analisar o currículo de Pedagogia na FE/UFG e no EDU/UCG, mostra os 50 Juçara Gomes de Moura, Maria Aparecida Lopes Rossi diferentes conteúdos selecionados para formar profissionais da pedagogia responsáveis pelo ensino da leitura e da escrita. Como exemplo, a ementa da disciplina Língua Portuguesa – 1ª fase do 1º grau: metodologia e conteúdo registra os conteúdos básicos necessários ao domínio da pedagoga/alfabetizadora: Introdução ao estudo dos princípios que subsidiam a aprendizagem do aluno de 1ª fase do 1º grau, em Língua Portuguesa, nos aspectos bio-psico-linguísticos e sociais. Desenvolvimento do conteúdo de Língua Portuguesa relativo à 1ª fase do 1º grau nos aspectos: Leitura, (leitura básica, informativa e recreativa), Linguagem oral – audição, Expressão escrita (composição, ortografia e escrita) e Aspectos Gramaticais. Métodos, processo e técnicas. Princípios e métodos de avaliação da aprendizagem em Língua Portuguesa (UFG/CCEP. Resolução nº 207/84. Anexo II, 1984, p. 2). O Plano de curso da referida disciplina, datado de 1986, registra como conteúdo: Linguagem – oral – audição; Leitura; Escrita; Ortografia; Composição e Gramática. Os objetivos traçados no plano propõem que os alunos conheçam os aspectos que interferem na aprendizagem da leitura; analisem os aspectos de desenvolvimento da linguagem na primeira fase do 1º grau; criem estratégias para o desenvolvimento de cada aspecto da linguagem na escola de 1º grau. Na bibliografia registrada no plano, estão trabalhos que trazem reflexão sobre os temas: iniciação à leitura, leitura na 1ª série, o processo de alfabetização, diagnósticos e dificuldades na aprendizagem da leitura, leitura na escola primária, linguagem e escola. As obras, com seus respectivos autores, registradas no plano são: Iniciação à Leitura (ARAÚJO, Maria Ivonne Atalécio de. 1985); Leitura na 1ª Série (BACHA, Magda Lisboa. 1969); O Processo de Alfabetização e um Modelo em Tentativa (SANT´ANNA, Flávia Mara. 1980); Diagnóstico de Dificuldades na Aprendizagem da Leitura (MEC-INEP-CBPE. 1973); Leitura na Escola Primária (SILVEIRA, Juracy. 1960); Linguagem e Escola (SOARES, Magda. 1986). A leitura da ementa da disciplina Língua Portuguesa – 1ª fase do 1º grau: metodologia e conteúdo, estruturada no novo currículo do curso de Pedagogia da FE/UFG, ano 1984, e a leitura do plano de curso, ano 1986, mesmo este contando com a obra de Magda Soares, que neste período já realizava discussões sobre a linguagem como uma construção social, revelam uma concepção de ensino da leitura e da escrita cuja ênfase recai sobre a ciência Psicologia (aspectos biopsicolínguísticos) e sobre o domínio da gramática (Expressão escrita, composição, ortografia e aspectos gramaticais). Frente a esse dado, é importante reconhecer que uma reorganização curricular, mesmo realizada em um momento histórico com forte conotação política não garante os avanços preconizados pelos seus idealizadores, pois a materialização do currículo, como a seleção dos conteúdos das diferentes disciplinas, depende também da concepção política, concepção metodológica e de formação dos profissionais docentes que atuam no curso. Isso significa que a seleção e organização dos conteúdos podem negar os princípios norteadores do currículo. A ênfase no aspecto psicológico é também perceptível na ementa da disciplina Fundamentos de Alfabetização I do EDU/UCG, datada de 1985, e que prevê o conteúdo básico para a formação da pedagoga/alfabetizadora: Abordagens psico-pedagógicas e sóciopolíticas da alfabetização: determinantes individuais, sócio-culturais e intraescolares do desempenho em leitura e escrita. Leitura e escrita: conceituação, método, técnicas, estágios e preparo psicomotor e psicossocial (UCG/EDU, 1985, p. 70-71). Já em 1991, os conteúdos da mesma disciplina, na mesma instituição, têm como preocupação os Estudos introdutórios da alfabetização infantil em sentido mais amplo: concepções históricas clássicas (UCG/EDU, 1991). O Plano de curso da disciplina, também datado de 1991, tem como conteúdo a ideia de infância, a concepção de homem, de sociedade que orienta os sistemas pedagógicos, a criança e a escola como instituição: aspectos históricos, a inserção social da criança na família, na escola e na sociedade. O estudo dos teóricos da educação, o significado da alfabetização; a visão tradicional de alfabetização e seus pressupostos teóricos, metodológicos, ideológicos, e compreensão da formação profissional; visão escolanovista, seus pressupostos teóricos, metodológicos, ideológicos e compreensão de formação profissional. Na bibliografia do plano de curso estão registradas obras que discutem temas como: a história social da família e da infância; a mistificação pedagógica; o que é a criança; fundamentos e didática na educação pré-escolar; Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 O Curso de Pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador provação cultural e educação primária; e as funções da pré-escola. Aqui é possível perceber a seleção de conteúdos voltados para a formação de um profissional pedagogo que compreenda a alfabetização não só no aspecto psicológico, mas também nos seus aspectos históricos, sociológicos e culturais. Essa concepção de formação do alfabetizador demonstra que os avanços nas pesquisas, estudos e reflexões sobre os temas alfabetização e ensino da leitura e da escrita só se concretizam no currículo do curso de Pedagogia, em Goiás, a partir da década de 1990. Essas considerações levam à afirmação de que uma nova organização do curso traz um novo desafio para as instituições formadoras: formar pedagogos com competência para alfabetizar/letrar crianças filhas de trabalhadores. As disciplinas relacionadas com o conteúdo do ensino da leitura e da escrita trazem a contribuição dos estudos da Linguística Textual e da Análise do Discurso, colocando o ensino da língua em uma perspectiva discursiva, com o objetivo de levar os alunos à reflexão sobre a língua e seu funcionamento na sociedade. Conforme Rossi (2010), um exemplo dessa produção pode ser encontrada em Geraldi (2001), que, em 1984, ao lançar a coletânea de textos reunidos sob o título “O texto na Sala de Aula”, chama para uma reflexão sobre o ensino de Língua Portuguesa, propondo um redimensionamento das atividades de sala de aula. Ao discutir as diferenças entre ensinar uma língua, levando o aluno a entender e produzir enunciados, ou enfatizar apenas o ensino de descrições linguísticas, o autor se coloca a favor da primeira alternativa, afirmando ser necessário repensar as práticas de ensino. Nessa perspectiva, Geraldi (1993) coloca o texto no centro do processo ensino/aprendizagem de línguas, dizendo que: [...] é no texto que a língua –objeto de estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões. (GERALDI, 1993, p.135). Para Koch e Elias, a dificuldade em se adotar o texto como norteador das ações de ensino/aprendizagem de língua materna situa-se, principalmente, no ensino de leitura, que ainda se fundamenta em uma concepção de leitura como Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 51 decodificação, em que o leitor é assujeitado pelo sistema e caracterizado por uma espécie de não consciência. Para essas duas autoras, a transformação exige que se passe a considerar a leitura como um processo de construção de sentidos que acontece em condições determinadas de caráter sócio-históricas. Nessa concepção, conforme Koch e Elias: O sentido de um texto é construído na interação texto-sujeito, e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior (KOCH e ELIAS, 2006, p. 11). Colocar essa proposta em prática (BRONKCART, 2003) implica uma modificação da concepção de linguagem que normalmente subjaz às práticas escolares, além de se questionar a tese do primado do sistema sobre o funcionamento textual, e, portanto, do caráter de anterioridade do ensino de gramática em relação ao ensino textual. Gregolin, ao fazer um estudo das transformações no conceito de língua e os efeitos destas no ensino da língua portuguesa, mostra que esse deslocamento das concepções sobre a língua e o ensino: [...] nos aproximaram cada vez mais de uma consciência sobre o papel da língua na sociedade. Esses avanços da teoria lingüística determinaram novas visões sobre a língua e, nesse sentido, contribuíram para a construção da cidadania ao revelarem o papel da língua portuguesa na consolidação de nossa identidade brasileira, (GREGOLIN, 2007, p. 55). Em seu estudo, a autora destaca ainda que as concepções de língua que estiveram na base do ensino a partir dos anos 60 acompanharam a história do país, tanto no aspecto político quanto da própria teoria, com seus avanços e transformações. Assim, ela mostra que “da ênfase na comunicação durante o regime militar, com a abertura política passamos à sociolingüística, à textualidade e à discursividade (GREGOLIN,2007, p.70)”. Contribuindo para esse debate, Bortoni- 52 Juçara Gomes de Moura, Maria Aparecida Lopes Rossi Ricardo (2004) ressalta em seus trabalhos a importância de a escola reconhecer a existência das variantes não padrão presentes no seu interior, defendendo que escola e professor, diante dessa diversidade, devem adotar uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos educandos e às diferenças entre a cultura que eles representam e a da escola. Nesse sentido, a autora ressalta um outro marco dos estudos sobre alfabetização e ensino de Língua Materna, que vão contar com a contribuição da Sociolinguística. Tais estudos representam uma ruptura no que tradicionalmente foi considerado “erro de português”, defendendo que estes chamados erros são diferenças entre variedades da língua. A autora explica que: Com frequência essas diferenças se apresentam entre a variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma cultura de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informalidade, e culturas de letramento, como a que é cultivada na escola. (BORTONIRICARDO, 2004, p. 37). Essas reflexões revelam complexidade e desafios na busca da formação do profissional pedagogo como responsável pelo ensino da leitura e da escrita nas escolas dos anos iniciais de escolarização. Percebe-se que a reorganização curricular do curso de Pedagogia, em Goiás, na década de 1980, na FE/UFG e no EDU/UCG, sofreu influências, entre outras, do movimento político dos educadores e da introdução, no campo da linguagem, de estudos de teóricos tais como Bakhtin (Linguagem) e Vygotsky (Psicologia). Nesse sentido, coloca-se o desafio para as universidades: formar profissionais com competência no domínio de conteúdos que contribuem significativamente para com a prática da alfabetização. Desafio também para os professores do curso de Pedagogia: pesquisas atuais apontam que ainda persistem práticas pedagógicas, de pedagogas, nas salas de alfabetização, cuja ênfase é dada nos mecanismos de codificação e decodificação e cujo objetivo é ensinar às crianças a combinatória das letras e sons. Para Rossi (2009), esse fato se explica na medida em que se percebe que as teorias voltadas para explicitar o processo de ensino/aprendizagem não têm necessariamente equivalência com os procedimentos e atividades que os professores colocam em prática na sala de aula, já que a profissão docente deve ser percebida dentro de uma historicidade que a condiciona e é resultante das inter-relações com a realidade cultural. Como ressalta Villas Boas (apud Rossi, 2009), o trabalho docente não é construído de forma isolada, uma vez que o professor, ao assumir o seu papel, recebe todas as imposições da escola e do sistema de ensino em que se insere. Já para Cagliari (1999), os professores carecem de uma melhor formação técnica. Ele critica os cursos de formação, dizendo que eles se dedicam em demasia às disciplinas pedagógicas, metodológicas e psicológicas, esquecendo-se do que seria necessário a respeito da linguagem. Para o autor, os conhecimentos sobre o fenômeno linguístico trabalhados nos cursos de graduação ainda são insuficientes, e não embasam adequadamente o professor para lidar de forma adequada com o fenômeno linguístico e, por conseguinte, a alfabetização. Assim, o que se pode concluir é que, apesar das mudanças promovidas no Currículo dos Cursos de Pedagogia, voltadas para formar o profissional competente para letrar e alfabetizar as crianças das camadas populares, ainda há muito que caminhar. Os currículos ainda são muito generalistas, enquanto se necessita de um profissional com uma formação mais aprofundada nos estudos que embasam a alfabetização. Essa é a visão de Soares, quando ela afirma que “Não há possibilidade de alguém ser alfabetizador, ensinar a língua e, ao mesmo tempo, ser professor de ciências, de história e de matemática” (SOARES, s.d., p.9). Para a autora, um professor alfabetizador necessita ter um domínio amplo da língua portuguesa, a fim de que saiba usar a língua escrita nas suas diversas variações. Além disso, ela enfatiza ainda que esse professor deve ter uma formação em diferentes áreas como sociolinguística, psicolinguística e fonologia, sem o que: [...] é impossível entender o processo da criança para relacionar fonemas com grafemas; tem de conhecer literatura infantil, que é com o que se deve trabalhar para que a criança aprenda a língua escrita; gêneros textuais, teorias da leitura e diferentes estratégias exigidas por diferentes gêneros textuais (SOARES, s.d., p. 10). Essas preocupações da autora demonstram os desafios que se colocam na organização curricular de um curso que pretende formar profissionais com competência para alfabetizar crianças, filhas de trabalhadores, muitas vezes oriundas de meios iletrados, Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 O Curso de Pedagogia em Goiás e a formação do professor alfabetizador especificamente em um momento histórico em que a maioria das crianças tem garantido por lei, o acesso aos bancos escolares, mas que essa mesma maioria não tem garantido o direito de dominar as funções sociais da leitura. Considerações finais Ao objetivar discutir a formação do pedagogo na UCG e UFG (na década de 1980) e o ensino da leitura e da escrita, este trabalho pretendeu contribuir para com a reflexão sobre este tema. As análises aqui postas, apesar de não encerrarem, ou darem como definitivas, as compreensões sobre o assunto, mostram a complexidade na organização de um currículo, especificamente no que concerne à formação de docentes alfabetizadores. O que se pode visualizar, no estudo das transformações que o currículo do curso de Pedagogia experimenta, ao longo da sua história, a partir da década de 1980, em Goiás, é que este se mostra articulado com a produção acadêmica da área e com o desenvolvimento das teorias que subsidiam o processo de alfabetização e ensino de Língua Materna. É importante salientar que essas reflexões se referem ao currículo escrito, que Goodson (1995) denomina de currículo pré-ativo, currículo escrito, formal ou currículo como documento. O autor considera importante analisar esses documentos na medida em que promulgam e justificam determinadas intenções básicas de escolarização, à medida que vão sendo operacionalizadas em estruturas e instituições. Nessa análise, apesar de considerarmos a importância dos conteúdos de ensino da Língua Materna, incluídos no currículo, acreditamos, como Soares (s/d), que com tão poucas disciplinas voltadas especificamente para a alfabetização, o currículo escrito do curso de Pedagogia, ainda não dá conta da formação inicial de um profissional que necessita ter um domínio amplo da língua portuguesa, e uma formação em diferentes áreas como sociolinguística, psicolinguística e fonologia, sem o que fica difícil entender um processo tão complexo como a alfabetização. O que se depreende dessa discussão é que a questão da formação do professor alfabetizador ainda não está resolvida e carece de estudos e pesquisas que embasem os currículos dos cursos de graduação. Para além disso, é preciso que se construa, nos cursos de formação de professores, um espaço de estudo e reflexão, pensando a formação desse profissional a partir de uma práxis criadora que supere o processo ensino/aprendizagem calcado na repetição e na visão tradicional de ensino. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 47-55, jan./jun.2012 53 Para nós o maior desafio continua sendo formar o profissional que seja capaz de não só levar o aluno à aquisição da técnica da leitura e da escrita, mas, sobretudo, alfabetizar letrando, mostrar-se sensível à diversidade linguística presente na sala de aula, saber dotar os alunos dos saberes linguísticos necessários para o exercício da plena cidadania, em uma sociedade grafocêntrica, que valoriza os bens culturais próprios da cultura letrada. Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BORTONI-RICARDO. 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E-mail: 56 57 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG Luciane Manera Magalhães* Resumo A presente pesquisa foi realizada com o objetivo de se investigar três eixos fundamentais do processo de formação inicial: (i) os cursos que oferecem formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG; (ii) as disciplinas específicas e/ou correlacionadas à alfabetização, disponibilizadas na grade curricular dos cursos, e (iii) a relação teoria/prática vislumbrada por meio das metodologias empregadas pelos professores formadores. Realizamos uma pesquisa qualitativa, de cunho interpretativista e contamos com a contribuição da abordagem quantitativa no tratamento dos dados generalizáveis. Os resultados obtidos apontaram para (i) a inexistência de cursos de formação inicial específicos para a formação do professor alfabetizador; (ii) a diminuição da oferta de cursos de formação inicial na área, no município; (iii) a discrepância da carga horária destinada às disciplinas específicas ao se comparar as diversas instituições e (iv) a diversidade de metodologias que ora conjugam teoria e prática, ora priorizam a teoria. Palavras-chave: Formação inicial; professores alfabetizadores; grade curricular. The initial training of teachers of literacy in the city of Juiz de Fora/MG Abstract This research was conducted with the purpose of investigating three fundamental axis of the process of initial training: (i) the courses they offer initial training of teachers of literacy in the city of Juiz de Fora/MG; (ii) the specific disciplines and/or related to literacy, available on curriculum grid of courses and (iii) the theory/practice relation observed through the methodologies employed by teachers trainers. We conducted a qualitative research, interpretativist and we are counting on the contribution of the quantitative approach in the treatment of the data being generalized. The obtained results showed (i) the lack of initial training courses specific to the training of the teacher alphabetizing; (ii) a decline in the supply of initial training courses in the area, in the municipality; (iii) the discrepancy of time load between the specific disciplines in the various institutions and (iv) the diversity of methodologies. Keywords: initial training; teachers of literacy, curriculum grid. Introdução A formação inicial dos professores alfabetizadores é uma das diversas facetas diretamente relacionadas ao sucesso/fracasso escolar do aluno, no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Destaque-se que a formação do alfabetizador sempre se deu por vias indiretas; é ele ou o profissional formado há mais tempo pelo antigo curso normal, oferecido por ocasião do ensino médio, ou o profissional formado pelos cursos normais superiores, ou o pedagogo. O que se observa é que, independente da formação inicial, nenhum dos referidos cursos que habilitam o professor a atuar como alfabetizador oferece formação específica para a área, o que não acontece, por exemplo, na área médica. O recémgraduado em medicina é habilitado a trabalhar como clínico geral, mas para atuar como especialista em uma determinada área precisa passar por um período de residência na referida área. Por que não tomarmos o exemplo para a educação? Seria a alfabetização de crianças menos importante que a sua saúde? Para que essa formação específica do professor alfabetizador * Endereço eletrônico: [email protected] seja criada e funcione na prática, certamente precisaríamos de incentivo das esferas governamentais em pelo menos dois sentidos: (i) na concepção e implantação de cursos/estágios que funcionariam como “residências de alfabetização”, e (ii) na entrada desse profissional no mercado de trabalho, a qual precisaria ser atrelada à sua formação específica como professor alfabetizador, com salário diferenciado para se poder captar os melhores profissionais. O que temos presenciado em muitas escolas, entretanto, é um movimento cruel para com o professor recém-formado: é exatamente ele, sem experiência de magistério, que, ao ser aprovado em concurso público, vai ocupar as classes de alfabetização, sobretudo, aquelas com “alunos que não aprendem a ler e escrever”, entre outras mazelas. Isto porque, em muitas escolas públicas, o professor novato é o último a escolher a turma em que vai atuar, ou seja, não escolhe, fica com a turma que “sobra”. Outro aspecto a se considerar é que o professor alfabetizador, com exceção da dinâmica de algumas escolas que articulam dois professores para o ensino das diversas áreas de conhecimento, 58 Luciane Manera Magalhães é o profissional responsável pela alfabetização linguística de seus alunos, mas também pela alfabetização matemática e pelo ensino de história, geografia, ciências... Como se pode querer um professor alfabetizador que seja competente ao mesmo tempo em tantas áreas de conhecimento? A formação do professor alfabetizador Hoje, quem forma o professor alfabetizador, no Brasil, são exclusivamente os cursos de pedagogia. Como se estruturam esses cursos? Como são organizadas suas grades curriculares? Que profissionais almejam formar? As respostas a estas questões revelam que a formação do professor da escola básica não é a meta da maioria destes cursos, muito menos o alfabetizador. Esses cursos apresentam, em geral, uma estrutura tradicional de formação de professores, usualmente marcada pela cisão teoria/prática, em que predomina, como referencial epistemológico, a “racionalidade técnica” (SCHÖN, 1992). Na racionalidade técnica os princípios científicos são apresentados hierarquicamente como mais relevantes que os conhecimentos de ordem prática, os quais são considerados como aplicação dos primeiros (SCHÖN, op. cit.). Esse referencial epistemológico impõe, segundo Gómez (1992), “uma relação de subordinação dos níveis mais aplicados e próximos da prática aos níveis mais abstratos de produção do conhecimento” (p.97), dificultando a constituição de um conhecimento sistematizado que auxilie o futuro professor a articular os conhecimentos trabalhados na formação com aqueles que fundamentarão sua prática pedagógica. Dessa maneira, a formação inicial, em muitos casos, acaba fragmentando o conhecimento ao organizar sua grade curricular por meio de disciplinas teóricas, metodológicas e estágios. As disciplinas teóricas tratariam dos fundamentos necessários à formação do professor - apenas os fundamentos de caráter geral como a psicologia, sociologia, história da educação, dentre outros - e não se incluem aí, com raras exceções, os fundamentos concernentes aos conteúdos que os professores ensinarão aos alunos da escola básica, como português, matemática, ciências, história e geografia, exatamente nos quais eles deveriam ter o domínio. As disciplinas metodológicas estariam ligadas às didáticas dos conteúdos a serem ministrados pelos futuros profissionais, mas como aprender como se ensina se não se sabe o conteúdo a ser ensinado? Por fim, a formação inicial oferece aos futuros profissionais a possibilidade de conhecerem o seu campo de trabalho, por meio dos estágios. As escolas que servirão de campo de aprendizado não são, geralmente, escolhidas por seu potencial em ensinar práticas bem sucedidas, mas pela acessibilidade dos estagiários. Em decorrência disso, aprende-se muito mais o que não se deve fazer. Conforme aponta o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (BRASIL, 2001), o professor precisa, por um lado, dominar os conteúdos com os quais irá trabalhar e, por outro, ser capaz de didatizar estes conhecimentos. Mello (2000) destaca que “a prática do curso de formação docente é o ensino, portanto cada conteúdo que é aprendido pelo futuro professor em seu curso de formação profissional precisa estar relacionado com o ensino desse mesmo conteúdo na educação básica”. Assim, os cursos de formação inicial precisariam estruturar-se de forma a propiciar a transposição didática (CHEVALLARD, 1985) dos conhecimentos trabalhados, assunto que trataremos, detalhadamente, na próxima seção. Os recursos da transposição didática na formação inicial Procedente da Sociologia, o conceito de transposição didática (TD) foi cunhado por Michel Verret (1975), nos anos 70, no interior de um movimento de revisão e reconceitualização da didática. Apesar de a transposição didática não ser o núcleo duro do trabalho de Verret, ele introduz o conceito em um capítulo de sua obra Le temps des études, por meio da problematização acerca da transformação do saber dito teórico ou científico em saber escolar, apresentando, assim, os primeiros fundamentos da TD. No início dos anos 80, Chevallard, com o objetivo de fazer da didática das matemáticas uma ciência, retoma o conceito de TD como um instrumento de base, desenvolve-o e especifica-o no que diz respeito à “passagem dos saberes científicos aos saberes ensinados”. Em meados de 1985, Chevallard e Johsua retomam o conceito em um trabalho empírico, no campo do ensino da matemática, especificamente sobre a noção de distância. É somente depois desses trabalhos que um público maior teria acesso ao conceito. De acordo com os pressupostos da noção de transposição didática, o sistema didático, em seu sentido restrito é constituído por três facetas e as interações entre elas: o professor, os alunos e o saber ensinado (CHEVALLARD, 1985). Esse sistema está inserido em um ambiente que, segundo o autor, compreende os pais dos alunos, Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG os pesquisadores (1) e as instâncias políticas. Chevallard não explicita por que apenas esses três grupos de sujeitos fariam parte do ambiente, mas, considerando-se a organização da sociedade francesa, pode-se compreender que seriam eles os que “decidem”, em primeira instância, o que será ensinado. Em outras palavras, os pais de alunos teriam sua participação efetiva por meio das associações de pais, os pesquisadores, por meio dos resultados de pesquisa divulgados, e as instâncias políticas, por meio das leis e decretos publicados, programas e currículos instaurados. Há que se considerar, entretanto, que esses três segmentos não estão isolados como ilhas; eles convivem com outros sujeitos responsáveis pelos diferentes saberes produzidos nos diversos setores da sociedade que, de uma forma ou de outra, são, a nosso ver, também constitutivos desse ambiente maior - o que descarta o entendimento da noção de TD enquanto apenas um movimento unidirecional, de passagem do saber científico para o didático. Entre o sistema didático, compreendido em seu sentido restrito, e o ambiente tem-se o que Chevallard (op.cit.) tem denominado de noosfera, instância que pode ser entendida como o sistema didático em sentido amplo, lugar de produção formal do conhecimento a ser ensinado. Por sua posição privilegiada, a noosfera compreende o ponto de ligação entre o sistema didático e o seu ambiente, articulando-os, como ilustra o diagrama que propomos a seguir: Diagrama 1: a transposição didática nas diferentes instâncias de produção de saber SHAPE \* MERGEFORMAT. Neste diagrama, sist. did. é a abreviatura de sistema didático, S, de saber, Prof., de professor e As de alunos. Um primeiro aspecto a destacar, nesse diagrama (1), é a presença de fronteiras “pontilhadas” entre os sistemas didáticos que ilustram a dinamicidade entre eles e o ambiente em que estão inseridos. Em outras palavras, podese dizer que os conhecimentos constituídos nas diferentes instâncias interpenetram-se, não se apresentando, portanto, hermeticamente fechados, isolados. Considerando-se que a noosfera é um conceito proveniente da filosofia, que designa a “camada humana pensante”, no contexto educacional ela é compreendida como o espaço em que são elaboradas, formalmente, as soluções para os problemas que surgem no funcionamento didático (CANELAS-TREVISI, 1997). Assim, é nesse espaço em que atuariam profissionais, por exemplo, os especialistas em educação; os especialistas em linguística aplicada; os redatores de programas e/ou parâmetros curriculares; os Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 59 autores de artigos de revistas e/ou periódicos de didática, de pedagogia e áreas afins (incluindo-se aí, muitas vezes, o próprio professor); os redatores de livros didáticos e/ou paradidáticos; a mídia, por meio de programas especializados, incluindo-se nesta lista os profissionais responsáveis pela formação inicial do professor. Em resumo, profissionais responsáveis direta ou indiretamente pela divulgação do saber científico, por meio de sua didatização. Assim, ao mesmo tempo em que esses profissionais seriam responsáveis por garantir a menor distância entre o saber que é ensinado nas escolas e o saber que é resultado direto de pesquisas, eles atuariam no sentido de garantir uma distância considerável entre esse saber ensinado e o saber de senso comum, daí um dos sentidos da existência da instituição escola. A distância entre o saber científico e o saber ensinado, no nosso entender, não deve representar uma hierarquia de saberes, mas uma transformação de saberes que ocorre nas diferentes práticas sociais, em função da diversidade dos gêneros discursivos e dos interlocutores aí envolvidos. A passagem do saber científico ao saber ensinado não pode ser compreendida como a transposição do saber no sentido restrito do termo, mas apenas uma mudança de lugar. Supõe-se essa passagem como um processo de transformação do saber, que se torna outro em relação ao saber destinado a ser ensinado. Assim, no processo de didatização, o saber apresenta-se subordinado a diferentes conjuntos de regras representados, por exemplo, pelas forças institucionais da pesquisa (KUHN, 1983); pela própria instituição escolar (tipo de escola, objetivos, projeto pedagógico) (PETITJEAN, 1998); pelas forças políticas (programas e currículos de secretarias de educação); pela força do mercado (livros didáticos e/ou paradidáticos). Ao se pensar na formação inicial de professores, há que se considerar que diferentes tipos de conhecimentos estão envolvidos no processo ensino/aprendizagem em ambiente didático, mas nem todos estão diretamente envolvidos no processo de transposição didática, no sistema de ensino stricto sensu, pois não se constituem em um objeto a ensinar. Considerando-se o ensino da leitura, por exemplo, saber que quando lemos um texto há um processo de elaboração de significados, que consistiria no reconhecimento de unidades significativas, que vão sendo estocadas em nossa memória de trabalho, por meio de um processo de fatiamento, e que esta memória tem uma capacidade limitada de estocagem de unidades (sejam letras, sílabas, palavras ou sintagmas) 60 Luciane Manera Magalhães (KLEIMAN, 1992), pode auxiliar o professor – em formação inicial – a refletir sobre a didática e/ou metodologia a ser utilizada em sala de aula e a reconhecer que abordagens de alfabetização alicerçadas em unidades menores que a palavra dificultam o aprendizado do aluno, se se quer formar o leitor proficiente. Mas esse é um tipo de conhecimento que não se espera ver no ensino fundamental. Esse tipo de conhecimento deveria servir de alicerce (objeto de estudo) para a prática alfabetizadora do professor; mas não enquanto objeto de ensino. Finalmente, esse tipo de conhecimento não seria objeto de transposição didática no nível do sistema didático stricto sensu, pois não será (ou não deveria ser) ensinado pelo professor. O processo de transformação do conhecimento se dá porque os funcionamentos didático e científico do conhecimento não são os mesmos. Eles inter-relacionam-se, mas não se sobrepõem. Assim, um determinado objeto de conhecimento (invenção exposição científica) conhecimento, para que seja ensinado em situação acadêmico-científica ou escolar, necessita passar por transformações (4), uma vez que não foi criado com o objetivo primeiro de ser ensinado (SCHNEUWLY, 1995). A cada transformação sofrida pelo conhecimento, corresponde, então, o processo de transposição didática. As TDs funcionam, assim, em dois níveis: exterior (lato sensu) e interior (stricto sensu). No nível exterior, têm-se as TDs realizadas no domínio do ambiente e no domínio da noosfera. São concernentes às relações entre os conhecimentos de referência e os conhecimentos destinados ao ensino. As TDs internas são realizadas no sistema de ensino stricto sensu, que envolve professor, alunos e saber; são as transformações operacionalizadas no conhecimento, no momento da exposição didática. As TDs podem ser representadas pelo esquema, exposto no quadro a seguir: objeto a ensinar (“divulgação”) no qual a primeira seta indica que o conhecimento científico não é absoluto, mas mantém uma estreita relação com a sociedade, situada em um determinado momento histórico conforme destacam Joshua et alii (1993). Enquanto objeto de conhecimento, o saber sofre suas primeiras transformações no ato da exposição científica. A segunda seta marca as transformações sofridas pelo conhecimento científico no espaço da noosfera; por meio da ação dos diferentes profissionais responsáveis direta e/ou indiretamente pela divulgação do conhecimento, conforme já apontado anteriormente. A terceira seta indica as transformações sofridas pelo conhecimento durante a exposição didática, mediante sua ‘textualização’ (5) (mise en texte) pelo professor (CHEVALLARD, 1985). De fato, o momento de exposição didática não seria, a nosso ver, o único momento de ‘textualização’ do conhecimento, uma vez que não se pode separá-lo de seu caráter linguísticodiscursivo. Assim, pode-se dizer que o conhecimento é textualizado no momento de sua invenção e retextualizado a cada transposição didática. A retextualização (6) diz respeito ao processo de transformação de um texto em outro; considerando-se que, ao sujeito, cabe redimensionar a projeção de imagens entre interlocutores, de seus papéis sociais e comunicativos, dos conhecimentos partilhados, das objeto de ensino (exposição didática) motivações e intenções, do espaço e do tempo de produção/recepção, enfim, de atribuir novo propósito à produção textual (MATÊNCIO, 2002); o que nem sempre é evidente para o sujeito ao operar a retextualização. Pode-se dizer que um dos maiores problemas enfrentados solitariamente pelo professor alfabetizador é exatamente o de redimensionar o objeto de conhecimento (objeto de estudo objeto de ensino) ao “transpô-lo” de uma prática discursiva para outra. Ou seja, tratar o conhecimento levando em consideração a mudança da situação discursiva – curso de formação inicial, por exemplo, para aula de leitura na escola fundamental – e, consequentemente, dos interlocutores envolvidos. Apesar desse processo de redimensionamento do conhecimento, no sistema didático stricto sensu, ser da competência do professor alfabetizador, iniciativas de criação de disicplinas que priorizem o processo reflexivo, por meio do qual o profissional em formação tenha a oportunidade de confrontar conhecimentos mais teóricos com aqueles subjacentes à prática alfabetizadora, podem oferecer-lhe pistas que o auxiliem nesta complexa tarefa. Desta forma, a TD (7), operada pelo fututro professor, seria iniciada no próprio ambiente de formação, sendo concretizada, por ele, na sala de aula de ensino fundamental. Essa maneira de trabalhar o conhecimento Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG permite ao professor “... saber no sentido de conhecer conscientemente, ter uma consciência refletida do que se está ensinando. [pois] Sem o saber, não há ensino, mas iniciação ou imitação no nível puramente prático.” (SCHNEUWLY, 1995:48). Os conteúdos envolvidos na formação inicial do professor alfabetizador Discutimos, na seção anterior, os fundamentos da TD e suas relações com a formação inicial do professor alfabetizador. Nesta seção, interessa-nos colocar em pauta os conteúdos envolvidos na formação inicial deste profissional. Inúmeras publicações (SOARES, 2004, 2008; ALBUQUERQUE, 2007; LEITE, COLLELO e ARANTES, 2007, para citar apenas algumas) têm contribuído com a ressignificação da alfabetização em nosso país. Em um momento histórico em que não se aceita mais apenas o termo “alfabetizar” para designar todo o aprendizado a ser vivenciado pela criança em fase de alfabetização, os conteúdos a serem ministrados nos cursos de formação inicial de professores alfabetizadores ampliam-se vertiginosamente. Se incluirmos aí os resultados de pesquisas na área da linguística aplicada, mais especificamente da sociolinguística, a lista de conteúdos aumentaria ainda mais. Segundo a Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica, em cursos de nível superior (BRASIL, 2000), o currículo precisa conter os conteúdos necessários ao desenvolvimento das competências exigidas para o exercício profissional e precisa tratá-los nas suas diferentes dimensões: na sua dimensão conceitual – na forma de teorias, informações, conceitos; na sua dimensão procedimental – na forma do saber fazer e na sua dimensão atitudinal – na forma de valores e atitudes que estarão em jogo na atuação profissional. Os diferentes âmbitos do conhecimento profissional do professor prevêem conteúdos com essas diferentes dimensões. A seleção dos conteúdos deve levar em conta sua relevância para o exercício profissional em toda sua abrangência e sua contribuição para o desenvolvimento da competência profissional, tomando em conta o professor como pessoa e como cidadão. (BRASIL, 2000, p. 42 – grifos Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 61 nossos). Noutros termos, segundo as diretrizes, para se promover uma formação inicial de professores de educação básica que seja de qualidade, precisamos propiciar a esses profissionais em formação o acesso aos conteúdos específicos da alfabetização com os quais vai trabalhar em sua atuação profissional e, ainda, a possibilidade de transformá-los em objetos de ensino para seus alunos (leia-se "transposição didática"). Ainda com base nas diretrizes, a seleção dos conteúdos a serem tratados na formação inicial devem levar em consideração sua relevância para o exercício profissional do futuro professor. Quais conteúdos seriam, então, relevantes? Tomando-se como referencial a formação do professor alfabetizador, Soares (1993), nos responde: Um alfabetizador precisa conhecer os diferentes componentes do processo de alfabetização e do processo do letramento. Conhecer esses processos exige conhecer, por exemplo, as práticas sociais e usos da língua escrita, os fundamentos do nosso sistema de escrita, as relações fonema/grafema que regem nosso sistema alfabético, as convenções ortográficas... exige ainda a apropriação do conceito de texto, de gêneros textuais... Mas, além de conhecer o objeto da aprendizagem, seus componentes lingüísticos, sociais, culturais, o alfabetizador precisa também saber como é que a criança se apropria desse objeto, ter uma resposta para a pergunta: “como é que se aprende a ler e escrever? (SOARES, 1993). Observe-se que a formação do professor alfabetizador precisaria contemplar um viés linguístico que pudesse informá-lo acerca do objeto de ensino que será uma de suas ferramentas de trabalho: a língua. Mas não é isto que vislumbramos nos cursos de formação inicial conforme apontaram os dados desta pesquisa. Com o intuito de investigar como tem se dado a formação dos professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG, realizamos uma pesquisa junto às instituições formadoras de professores do ensino fundamental. Desta questão, formulamos os objetivos específicos e o desenho da pesquisa, os quais serão tratados na próxima seção. 62 Luciane Manera Magalhães Objetivos e metodologia de pesquisa Ao concebermos esta pesquisa, várias questões instigavam-nos, tais como: quais cursos formam o professor alfabetizador? Existem disciplinas específicas que tratam da alfabetização? Existem disciplinas que tratem de assuntos que possam propiciar a interface com a alfabetização? Qual a carga horária destinada a estas disciplinas? São disciplinas mais voltadas para as reflexões teóricas, práticas, ou promovem a interação entre elas? Existem estágios específicos em alfabetização? São apenas de observação ou incluem a intervenção do professor em formação? Visando responder estas questões, elaboramos três objetivos específicos que direcionaram a presente pesquisa, quais sejam: (i) investigar todos os cursos que oferecem formação inicial de professores alfabetizadores, no município de Juiz de Fora/MG; (ii) identificar as disciplinas específicas de alfabetização e as correlacionadas; (iii) examinar a relação teoria/aplicação/prática nas disciplinas específicas de alfabertização; (iv) analisar as metodologias de ensino empregadas pelos professores formadores. Para alcançar os objetivos propostos, realizamos uma pesquisa qualitativa, de cunho interpretativista, associada à pesquisa quantitativa no trato dos dados generalizáveis. Os instrumentos utilizados foram: (i) análise de documentos (currículos, grades curriculares, programas das disciplinas), e (ii) entrevistas com os professores regentes e coordenadores dos cursos. A formação inicial de professores alfabetizadores em Juiz de Fora/MG Em 2009, o município de Juiz de Fora/MG contava com sete instituições de ensino superior (as quais são denominadas de A, B, C, D, E, G) que ofereciam o curso de pedagogia e uma instituição que oferecia o curso normal superior (denominada de F), ambos presenciais. Devido à baixa na demanda de alunos, três instituições (A, F, G) deixaram de oferecer o curso após a conclusão das turmas de 2009, uma (D) forma sua última turma em dezembro do ano corrente e não abriu vagas para o próximo vestibular. Assim, atualmente, o município conta apenas com três instituições (B,C, E) que oferecem o curso de pedagogia presencial. Apesar de nem todos os cursos estarem em funcionamento no ano corrente, os profissionais formados por eles foram colocados no mercado de trabalho nos últimos dois anos, por isto analisaremos os dados obtidos junto às seis instituições. Para analisar as disciplinas de alfabetização, definimos como categorias a ênfase dada nos conteúdos. Classificamos, assim, como (i) disciplinas teóricas, aquelas voltadas para os fundamentos da alfabetização; como (ii) disciplinas aplicadas, aquelas ligadas às metodologias, incluindo-se aí as didáticas e; por fim, as (iii) disciplinas práticas, aquelas destinadas aos estágios. No total geral dos sete cursos, identificamos a existência de 11 (onze) disciplinas específicas da área de alfabetização e 25 (vinte e cinco) correlacionadas, conforme pode-se observar no quadro (1), em anexo. Por meio da análise dos programas e das entrevistas com os professores responsáveis pelas disciplinas específicas da área de alfabetização, podemos organizar as referidas disciplinas em quatro grandes grupos: (i) as exclusivamente teóricas; (ii) as que aliam teoria e aplicação; (iii) as que aliam teoria, aplicação e prática; e (iv) as que têm ênfase na prática. Das onze disciplinas oferecidas nos sete cursos, seis (55%), pertencem ao grupo (i); três (27%) ao grupo (ii); uma (9%) ao grupo (iii) e uma (9%) ao grupo (iv) (confira quadro 2, em anexo). Destaque-se que dos sete cursos de formação inicial, quatro (57%) só oferecem disciplinas exclusivamente teóricas na área da alfabetização, o que significa que a transposição didática dos conhecimentos específicos da área ficará a cargo do professor, quando se defrontar com sua primeira turma de alfabetização. Quando voltamos nosso olhar para a carga horária total das disciplinas obrigatórias da área, constatamos grande discrepância. Apesar de a maioria das instituições oferecer apenas uma disciplina na área (57%), a carga horária destas disciplinas oscila entre 60 e 144 horas. Há apenas um curso (E) que oferece três disciplinas específicas; entretanto, uma delas é eletiva, raramente disponibilizada, por falta de professor. Com base nas entrevistas com os professores regentes das disciplinas específicas, foi possível constatar dez dinâmicas diferentes, as quais coocorrem nas práticas dos professores. As estratégias metodológicas utilizadas pelos professores podem ser identificadas em duas grandes categorias: (i) aquelas centradas no professor (como as aulas expositivas e a apresentação de vídeos), e (ii) aquelas centradas nos alunos (como seminários, trabalhos em grupo, Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG trabalhos de campo, estudos de casos, discussões em grupo, elaboração de atividades, análise de materiais, pesquisas individuais). As dinâmicas podem ser assim distribuídas: (i) centradas no professor: - aula expositiva (30%); - apresentação de vídeo (5%). (ii) centradas no aluno: - seminário (20%); - trabalho em grupo (10%); - trabalho de campo (10%); - estudo de casos (5%); - discussão em grupo (5%); - elaboração de atividades (5%); - análise de materiais (5%); - pesquisa individual (5%). Observe-se que as metodologias centradas no professor somam 35% das ocorrências, e as centradas no aluno, 65%. Poder-se-ia, equivocadamente, pensar que as atividades centradas no aluno estariam atreladas a processos reflexivos acerca da prática de alfabetização, mas não é o que acontece. Do conjunto de dinâmicas desenvolvidas na formação inicial, 65% estão pautadas nas reflexões mais teóricas (aula expositiva, seminário, trabalho em grupo e pesquisa individual) e apenas 35% oferecem reflexões que propiciam ao aluno relacionar a prática aos pressupostos teóricos (trabalho de campo, estudo de casos, elaboração de atividades e análise de materiais), o que ratifica a soberania da teoria sobre a prática, ficando mais uma vez a transposição didática por conta do futuro professor. Considerações finais A necessidade de mudança na formação inicial do professor alfabetizador é patente. Se se quer verdadeiramente mudar o cenário nacional no que concerne à alfabetização da população, é preciso que se repensem as bases da formação do profissional responsável por tão importante tarefa. Essa mudança não se faz com a criação de leis e diretrizes distantes da realidade nacional. Pensar em um profissional competente requer dar-lhe condições para sê-lo. É urgente a criação de cursos de formação inicial de professores que tenham como meta formar o profissional que vai atuar na educação básica; é urgente a concepção de cursos/estágios complementares que formem especificamente o professor alfabetizador, de tal forma que esse profissional possa ter condições de atuar competentemente na área, garantindo melhores Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 63 resultados aos nossos alunos de escola pública. Consideramos que a aprendizagem de conteúdos teóricos é imprescindível na formação do professor, mas não é condição suficiente para determinar o bom desempenho do profissional; aliar objeto de estudo e objeto de ensino por meio de processos reflexivos, entretanto, pode ser um importante passo na garantia de um melhor desempenho da prática pedagógica. Referências ALBUQUERQUE, E. Conceituando alfabetização e letramento. In SANTOS, C. F. e MENDONÇA, M. Alfabetização e Letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 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(2) « Le savoir, ingrédient essentiel de l’enseignement, existe d’abord comme savoir utile dans les situations avant d’être transposé dans la situation d’enseignement et devenir savoir enseigné, c’est-à-dire un autre savoir » (todas as traduções que aparecem no corpo do texto foram realizadas livremente por nós). (3) « ... le passage du savoir savant au savoir enseigné ». (4) Estas transformações seriam, sobretudo, marcadas pela necessidade didática de reordenação do saber (VERRET, 1975), mas também da linguagem. (5) Chevallard (1985) utiliza a expressão ‘mise en texte du savoir’ (textualização do saber) para referir-se ao processo de preparo e/ou planejamento didático realizado pelo professor. (6) Segundo Marcuschi (2001), a retextualização pode-se dar 1. da fala para a escrita; 2. da fala para a fala; 3. da escrita para a fala e 4. da escrita para a escrita (p.48). (7) Referimo-nos aqui à TD operada pelo professor em formação continuada; o que não descarta as transformações sofridas pelo saber nas TDs operadas na divulgação científica, seja por meio dos diferentes autores, seja através do professor universitário. (8) « … savoir dans le sens de connaître consciemment, avoir une conscience réfléchie de ce qui est à enseigner. Sans le savoir, il n’y a pas enseignement, mais initiation ou imitation au niveau purement pratique ». Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 66 Luciane Manera Magalhães ANEXO 1 Instituições Disciplinas específicas alfabetização A - Linguística e alfabetização - Alfabetização e Letramento I - Alfabetização e Letramento II CH 60h C D E F 40h G 68h 68h - Fundamentos, metodologia e prática de alfabetização 144h - Fundamentos teóricometodológicos em alfabetização I - Estágio supervisionado em alfabetização 60h - Fundamentos teóricometodológicos em alfabetização II (eletiva) 60h - Alfabetização e Letramento (Teórica e Prática) - Alfabetização e Letramento CH - Língua e linguagem: ato de ler - Língua e linguagem: ato de escrever - Língua e linguagem: ato de aprender usar e refletir - Língua e linguagem: ato de aprender a aplicar - Língua e linguagem: ato de saber fazer - Língua e linguagem: rede de saberes em contextos orais - Língua e linguagem: comunicação social - Pedagogia Saber docente: Literatura infanto-juvenil - Pedagogia Saber docente: rede de saberes em Língua Portuguesa 30h 30h - Língua Portuguesa I - Língua Portuguesa II - Conteúdo e Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I - Conteúdo e Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa II - Literatura infanto-juvenil 40h 40h - Língua Portuguesa I - Conteúdo e Metodologia do ensino de português I - Conteúdo e Metodologia do ensino de português II - Português Instrumental - Literatura e escola - Práticas de leitura e produção de textos 34h Total Disc. Total CH 10 330h 07 440h 05 306h 30h 30h 30h 30h 30h 30h 30h 80h B - Alfabetização, Leitura e escrita I - Alfabetização, Leitura e escrita II Disciplinas relacionadas à linguagem - Fundamentos teórico-metodológicos em português I 80h 80h 80h 68h 68h 72h 108h 04 108h 60h 432h 180h 03 60h 140h 80h - Fundamentos teórico-metodológicos em português II (eletiva) - Língua Portuguesa I (100h) - Português Fundamentos e Metodologia - Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa 02 03 120h (eleti vas) 320h 02 160h 60h 100h 80h 80h Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 A formação inicial de professores alfabetizadores no município de Juiz de Fora/MG 67 ANEXO 2 Grupos de disciplinas Teóricas Teórico-aplicada Téorico-aplicada-prática Prática TOTAL Quantidade 6 3 1 1 11 Porcentagem 55% 27% 9% 9% 100% Este trabalho insere-se no contexto das pesquisas realizadas no interior do Grupo de Estudos e Pesquisa ALFABETIZE, da FACED/UFJF. Agradecemos às acadêmicas de Pedagogia (Karina Emmanuelle de Souza, Raissa de Araujo Pifano e Vanessa Titonelli Alvim) e Letras (Gillian Mariana Luciano) pelo apoio na geração dos dados. Sobre a autora: Luciane Manera Magalhães: Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Horizontes, v. 30, n. 1, p. 57-67, jan./jun.2012 68 69 Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância Edilaine Vagula* Marilda Aparecida Behrens** Resumo O presente artigo originou-se numa pesquisa exploratória aliada a experiência como docente e pesquisadora e nas discussões realizadas na área de formação de professores por meio da educação a distância, dentro da Linha de Teoria e Prática Pedagógica na Formação de Professores, no grupo de PEFOP “Paradigmas Educacionais e formação de professores”, do Programa de Pós-Graduação em Educação Stricto Sensu, de uma Universidade particular de grande porte. Buscamos nesta caminhada de investigação referenciais que auxiliassem como fonte de reflexão para a formação de professores na educação a distância. Nosso objetivo foi discutir as modalidades de formação de professores em um ambiente complexo que superem o paradigma conservador para atender às constantes transformações que envolvem o ensino e aprendizagem frente às Tecnologias da Informação e Comunicação. Trabalhamos com aportes teóricos que dão sustentação à prática pedagógica nessa modalidade de ensino. Assim, a pesquisa nos conduziu, em primeiro lugar, a repensar nossas práticas pedagógicas enquanto professores formadores e, para tal, nos apoiamos nos resultados obtidos em trabalhos como Belloni (1998-1999), Kenski (2008), Pereira (2003), Morin (2000) e Pretti (2005), bem como, a refletir sobre o desafio de acolhermos a proposta de paradigma inovadores na ciência e na educação, em especial, com a contribuição de Capra (1996, 2002), Boaventura Santos (1997,1987), Morin (2002), entre outros. O currículo na educação a distância não deve oferecer apenas a possibilidade de acesso às informações e teorias, mas também às estratégias relevantes para a construção de novos conhecimentos, incluindo-se nestes procedimentos o confronto com situações práticas, por meio da dialogicidade, interatividade e aprendizagem colaborativa, contribuindo para um processo de autoformação. Acreditamos que os cursos de licenciatura a distância, se optarem por uma visão paradigmática inovadora no ensino e na aprendizagem, podem formar melhores profissionais da educação, baseados numa visão complexa, acolhendo como eixo para a docência e a pesquisa, a formação crítica e a transformadora. Palavras-chave: Formação de professores. Educação a distância. Trabalho docente. Teacher formation and teaching profession in distance education Abstract This essay has been originated in an exploratory research combined with our experience as teacher and researcher, as in discussions in the area of teacher training through distance education within the Educational Theory and Practice Line in Teacher Education, by PEFOP group (educational paradigms and teacher training) of a Graduate Program in Education stricto sensu, in a large private university. We seek this path of research references that could help as a source of reflection for teacher education in distance education. Our goal was to discuss the modalities of teacher training in a complex environment that exceed the conservative paradigm to meet the constant changes that involve the teaching and learning forward Information Technology and Communication. We have worked with theoretical frameworks that support the teaching practice in this type of education, so the search has led us, first, to rethink our teaching practices as teachers and trainers, and to this end, we rely on the results of work as Belloni (1998 - 1999), Kenski (2008), Pereira (2003), Morin (2000) and Pretti (2005), as well as to reflect on the challenge we welcome the proposed paradigm innovators in science and education, in particular, the contributions of Capra (1996, 2002), Boaventura Santos (1997.1987), Morin (2002), among others. The curriculum in distance education should not only offer the possibility to access information and theories, but also the strategies relevant to the construction of new knowledge, including the confrontation with these procedures practical situations through dialog, interactivity and collaborative learning, contributing to a process of self-education. We believe that teacher graduation courses in distance education, if they opt for a paradigmatic vision in innovative teaching and learning, can form better education professionals, based on a complex view, welcoming as hub for teaching and research, training and critical manufacturing. Keywords: Teaching formation. Distance education. Teaching practice. *Endereço eletrônico: [email protected] **Endereço eletrônico: [email protected] 70 Edilaine Vagula, Marilda Aparecida Behrens Introdução O exercício da docência pressupõe concepções pedagógicas que se solidificam durante nossa trajetória acadêmica, mesmo antes do início da carreira profissional, que são construídas em nossas primeiras vivências escolares. O contexto de profundas transformações culturais, epistemológicas, ideológicas, sociais e profissionais, estruturante de revoluções nos diversos campos de conhecimento, de informação e de tecnologia, influencia profundamente o desafio de ser responsável por educar as novas gerações. A preocupação com os processos formais na Educação a Distância (EaD), pelos quais os professores aprendem a ensinar, continua sendo relevante, pois ainda buscamos a superação de metodologias repetitivas focadas na reprodução e na memorização para empreender aprendizagens que auxiliem na produção do conhecimento. Há que se diminuir, por conseguinte, o distanciamento, ou mesmo os conflitos, que possam ocorrer entre os saberes dos acadêmicos e os saberes dos professores em ação, produzidos no exercício de suas tarefas cotidianas. A produção do conhecimento amplia-se com rapidez e o aluno precisa aprender a aprender, ou seja, “ser capaz de realizar aprendizagens significativas por si mesmo, em uma ampla gama de situações e circunstâncias”. (COLL, 1992, p. 41). Partindo do princípio que ensinar é atividade intencional e planejada, na qual a interação professor e aluno estão mediadas pelas tecnologias, deve ocorrer uma mudança de postura no aluno e no professor, e ambos precisam ser ativos nesse processo. A Formação de Professores na EaD constitui-se de uma das temáticas mais investigadas nesta área. Torna-se evidente a necessidade de investir na formação inicial, a fim de instrumentalizar os professores para que possam criar novas possibilidades para a mediação na EaD, utilizando-se de diferentes linguagens. Nessa perspectiva, o professor passa a ser o mediador entre o aluno, o conhecimento e a construção das propostas curriculares que se materializam na teleaula e no material didático. Para Moore e Kearsley (2007, p. 4), Educação a Distância é o aprendizado planejado que ocorre normalmente em um lugar diferente do local de ensino, exigindo técnicas especiais de criação do curso e de instrução, comunicação por meio das várias tecnologias e disposições organizacionais e administrativas especiais. Promover a interação ativa entre professor, aluno e tutor por meio do diálogo é possibilitar a construção dialética do conhecimento, e esse processo ocorre mediado por ferramentas de comunicação e apoiados por uma equipe de trabalho, levando em consideração que “no ensino a distância, a tecnologia está sempre presente e exige mais atenção de ambos, professores e aprendizes” (KENSKI, apud BARBOSA, 2003, p. 101). Portanto, essa modalidade de ensino centra-se na aprendizagem do aluno. A EaD rompe barreiras culturais, de tempo e espaço geográfico e envolve planejamento, pois a partir da realidade dos alunos pode ser construído um projeto pedagógico que possa orientar as ações dos professores com foco na interdisciplinaridade e atendimento às regionalidades. Esse projeto deve contar com diversas possibilidades de interação como: chat, aula web, fórum, portfólio, livros com linguagem dialógica, produzidos por professores da disciplina em parceria com outros autores, e-mail, biblioteca digital, física e outros. Portanto, a questão central que este estudo procurou responder foi a seguinte: Como a formação inicial de professores na EaD tem se constituído e qual a relação com o trabalho docente? O professor deve ser percebido como um construtor de culturas e de saberes, levando em conta que a vida pessoal e, especialmente, a profissional se constroem, em parte, pela trajetória profissional, a qual cria campos específicos de significação, a partir das experiências vivenciadas. Docência e autoformação profissional Não há um modelo único de EaD. As instituições podem apresentar projetos diversificados, que apresentam inúmeras combinações de tecnologias, recursos educacionais e linguagens. Atualmente percebemos que a oferta de EaD organiza-se em torno do denominado modelo Blended learning, também chamado de modelo misto, caracterizado por múltiplas estratégias de aprendizagem e organizadas de forma simultânea e integrada permitindo maior flexibilidade e levando em consideração peculiaridades como características de alunos, por exemplo faixa etária. A utilização desse modelo pedagógico exige um aluno capaz de ser autônomo em suas atividades acadêmicas, um modelo no qual os próprios alunos decidem sobre seu percurso educativo, utilizando diferentes meios, mídias e estratégias de ensino, que contemplam desde Horizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância atividades presenciais junto ao grupo social, com acompanhamento tutorial presencial, até o estudo autodirigido em ambiente virtual de aprendizagem, favorecendo as trocas colaborativas mediadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC). O uso intensivo das novas tecnologias de informação e comunicação, assim como sua democratização, possibilitaram a ampliação da educação a distância, e hoje esta atende a uma grande parcela da população, com ênfase na relação dialógica e flexibilidade no ensino. Dessa forma, nesse cenário multimidiático, a necessidade de aprimoramento constante tem-nos levado a um repensar de nossas práticas, enquanto formadores de professores, para atuar na educação básica. Tal fato implicou uma maior regulação pelo ministério da Educação em relação à EaD no que diz respeito à busca de sua qualidade. A análise dos diferentes contextos, no que se refere à Formação de Professores, pode ser realizada tendo como pano de fundo a produção de pesquisas e de proposições teóricas e os documentos emitidos por órgãos responsáveis pela execução de políticas públicas. É nessa instância de análise que buscaremos contextualizar a oferta dos cursos que visem à formação de professores na modalidade EaD, pelo seu peso no cenário da produção científica sobre Formação Inicial de Professores. Acreditamos que formar profissionais da Educação, tendo a docência e a pesquisa por princípios, como eixos de sua formação, é o essencial. Para Calixto, Oliveira e Oliveira (2009): Rever o processo de ensinoaprendizagem, privilegiando o trabalho colaborativo entre formadora e formando(as) e contemplando o protagonismo do aprendiz ao indicar os pontos de avanço e os que precisam ser aperfeiçoados/inovados, pode contribuir para a auto-formação contínua do docente-pesquisador sobre sua própria prática. Talvez seja esse um dos caminhos para a consolidação de uma cultura avaliativa reflexiva, investigativa e questionadora rumo à construção de uma nova pedagogia – com tecnologia – para a educação face-a-face e/ou à distância. (p. 9). O currículo deve contribuir para a formação do professor em uma perspectiva que leve em consideração a tríade ação–reflexão-ação. Essa tríade sustenta-se pela relação ensino com Horizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 71 pesquisa, em que, por meio do conteúdo trabalhado, o aluno pode entrar em contato com a pesquisa, estabelecendo proximidade com o desconhecido. Essa questão favorece a articulação entre as disciplinas estudadas, visto que as mesmas partem de um eixo norteador comum: o de fundamentar a formação do graduando tendo como elemento condutor o diálogo entre a área educacional e as demais áreas do conhecimento. Preocupado com o processo de expansão da educação a distância, e buscando estabelecer critérios de qualidade, o MEC - Ministério da Educação - elaborou os Referenciais de Qualidade para a Educação a Distância (BRASIL, 2007), levando em consideração, dentre outros elementos, a necessidade de aprendizagem permanente e cooperativa. Segundo a proposta, as discussões acerca da Educação a Distância “têm oportunizado reflexões importantes a respeito da necessidade de ressignificações de alguns paradigmas que norteiam nossas compreensões relativas à educação, escola, currículo, estudante, professor, avaliação, gestão escolar, dentre outros” (BRASIL, 2007, p.3). Podemos perceber a preocupação do MEC em buscar a construção de um projeto político pedagógico dos cursos de educação a distância que contemplem a relação epistemológica de educação, currículo e ensino. Esse processo tem a utilização da tecnologia como suporte de mediação e deve estar pautado em uma filosofia que priorize a interatividade, a partilha de projetos e o respeito às diferentes culturas e conhecimentos. Em relação a isso: O conhecimento é o que cada sujeito constrói - individual e coletivamente como produto do processamento, da interpretação, da compreensão da informação. É, portanto, o significado que atribuímos à realidade e como o contextualizamos. (BRASIL, 2007, p.9). A interatividade é considerada como essencial na formação a distância. Vale destacar: O desenvolvimento da educação a distância em todo o mundo está associado à popularização e democratização do acesso às tecnologias de informação e de comunicação. No entanto, o uso inovador da tecnologia aplicada à educação deve estar apoiado em uma filosofia de aprendizagem que proporcione aos 72 Edilaine Vagula, Marilda Aparecida Behrens estudantes efetiva interação no processo de ensino aprendizagem, comunicação no sistema com garantia de oportunidades para o desenvolvimento de projetos compartilhados e o reconhecimento e respeito em relação às diferentes culturas e de construir o conhecimento ( BRASIL, 2007). O documento expressa, como ponto central, a necessidades de momentos presenciais e virtuais, baseado em uma proposta curricular inovadora, que possibilite a integração entre metodologias e conteúdos, bem como a autoreflexão do aluno, ou seja, o diálogo consigo mesmo e a sua própria concepção de cultura, em confronto com outras culturas. Promove a superação da visão “fragmentada do conhecimento e dos processos naturais e sociais, enseja a estruturação curricular por meio da interdisciplinaridade e contextualização”. (BRASIL, 2007, 9.) Destaca, ainda, a necessidade de a realidade ser considerada em suas múltiplas dimensões, pois, “ao propor o estudo de um objeto, busca-se, não só levantar quais os conteúdos que podem colaborar no processo de aprendizagem, mas também perceber como eles se combinam e se interpenetram”. (BRASIL, 2007, 8.). A interdisciplinaridade e a contextualização devem possibilitar uma compreensão da realidade, formando o sujeito social e como destaca o disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) “[...] o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1996, art.2). Prevê a necessidade de um módulo introdutório nos cursos para que o aluno domine as especificidades da EaD, a tecnologia e o conteúdo programático do curso, sendo que cada instituição deve prover a recuperação de estudos e propostas avaliativas que contemplem os ritmos de aprendizagem dos alunos. O projeto do curso deve contemplar a diversidade curricular expressa nas disciplinas e nos serviços de apoio, como intérprete de Libras e material em Braile. A formação do professor passou a ser questionada e redefinida com base no “impacto das tecnologias e das comunicações sobre os processos de ensino e de aprendizagem, suas metodologias, técnicas e materiais de apoio” (BRASIL, 2000, p.2). O decreto 5.622 (BRASIL, 2005), que revoga o Decreto 2.494/98 e regulamenta o Art. 80 da Lei 9.394/96 (LDB) define a EaD como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempo diversos. Necessitamos de um modelo que combata o modelo sequencial e linear e que possibilite redes de conhecimento, com estrutura curricular baseada na “metáfora do rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, apud BRITO, 2006, p. 6), pois nessa proposta o saber não apresenta hierarquia e não está centralizado. Nesse modelo, qualquer ponto pode estar ligado a qualquer outro ponto em que os eixos temáticos estejam em permanente construção. Nesse sentido, os “saberes que se desterritorializam e se interpenetram produzindo novas abordagens conceituais e metodológicas” e podem “ser acessado[s] a partir de inúmeros pontos, podendo remeter a quaisquer outros em seu território”, não podendo assim, ser reduzido[s] à homogeneidade. (BRITO, 2006, p. 6-7) A produção específica sobre o tema Formação de Professores na EaD vem enfatizando a necessidade de um trabalho interdisciplinar que envolva docentes e coordenadores de curso, possibilitando trabalhos individuais e coletivos que permitam ao aluno articular saberes teóricos com saberes práticos, um trabalho inexistente em algumas instituições, mas que na prática tem contribuído para experiências de sucesso. Trabalhar em uma perspectiva interdisciplinar é possibilitar o constante diálogo entre as disciplinas que compõem o currículo. No que diz respeito à educação a distância, o modelo atual apresenta para fragilidades, e Torres (1998, p. 176) salienta: "a questão [...] da formação inicial está se diluindo, desaparecendo". Ao mesmo tempo, Barreto (2004, p.1191-1192) aponta para o “esvaziamento” existente no processo de formação de professores, e este é tratado apenas como formação continuada, pois a formação inicial não tem possibilitado o acesso às tecnologias, restringindo-se, em muitos casos “a mera transposição de aulas para os novos suportes”. Belloni (1998, p.16) ressalta que os professores exercem forte influência na melhoria dos sistemas educativos e que “qualquer melhoria ou inovação em educação passa necessariamente pela melhoria e inovação na formação de formadores.” Mas o desafio que se impõem é a complexidade dos saberes Horizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância envolvidos para o professor ensinar, e em especial, como as instituições formadoras devem agir para envolver os alunos na busca da produção do conhecimento. Este processo demanda buscar uma metodologia que acolha múltiplos procedimentos, que proporcione a visão de todo, que seja significativa, que proponha problematizações retiradas da realidade dos alunos envolvidos, pois este e outros fatores levam os estudantes a acompanhar o curso ou a abandoná-lo por falta de interesse. A metodologia proposta na EAD precisa considerar um universo mais amplo, pois movimento paradigmático da sociedade exige a superação da visão reducionista de conviver no universo e enfrentar um mundo repleto de incertezas, contradições, paradoxos, conflitos e desafios. Significa aceitar o questionamento e a reflexão intermitente dos problemas e das suas possíveis soluções. Assim, “Na realidade, busca aceitar uma mudança periódica de paradigma, uma transformação na maneira de pensar, de se relacionar e de agir para investigar e integrar novas perspectivas” Behrens (2006, p.21). Em sua pesquisa, Pereira (2003, p. 206) constata que: “o uso das tecnologias na educação a distância vem se limitando a repetir métodos convencionais da educação presencial, que mostraram ser ineficazes”. As reflexões sobre o ensino e a aprendizagem devem levar o professor a repensar suas práticas pedagógicas enquanto professores, por conseguinte, proporcionando, em teoria, um rompimento com formas tradicionais e lineares da condução dos processos de ensino e aprendizagem. Neste novo olhar sobre a prática pedagógica, cada vez mais competências desejáveis devem ser desenvolvidas, mesmo considerando-se os obstáculos a serem superados. A educação, porém, parece incrustar-se em uma redoma de vidro impenetrável e demora a absorver aos novos paradigmas. Nesta perspectiva, a Educação a Distância herda os paradigmas conservadores que caracterizam ainda grande parte do ensino presencial, daí a necessidade de superar a ação docente baseada na visão a cartesiana, única e fragmentada para focalizar as diferentes modalidades de aprender e que criem possibilidades de entender a educação e o currículo numa visão complexa, bem como os necessários desdobramentos na prática pedagógica. A prática pedagógica demanda uma ação pessoal e profissional, não apenas de origem individual, mas coletiva, dado que o professor é um indivíduo inserido num contexto históricocultural. Portanto, a proposta curricular do curso deve ser construída coletivamente de forma que as Horizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 73 discussões em curso possam se desvincular de modelos tradicionais e assim contribuir para o desenvolvimento do pensamento reflexivo. Muitas vezes, faltam-lhe estratégias de análise e reflexão, bem como suporte teórico que possa embasar a sua prática, o que dificulta os processos de reflexão na e sobre a sua própria prática, interferindo no seu desenvolvimento profissional e pessoal. A ênfase na formação de professores reflexivos pode contribuir para a construção da sua identidade profissional. Neder (2005) defende a educação a distância como “uma possibilidade de (re) significação paradigmática no contexto do processo de formação de professores”. Nessa modalidade de ensino, todo projeto de curso e plano docente deve abrir caminhos para o desenvolvimento da autonomia do educando, com o intuito de formar alunos reflexivos e críticos, o que implica uma mudança de paradigma. O processo de Formação de Professores em um paradigma inovador precisa considerar a comunicação mediada, que constitui o cerne da prática pedagógica, que tem como instrumento a tecnologia. Como pano de fundo dessa perspectiva, sobre formação de professores, acreditamos que deva ser levado em conta o contexto históricocultural em que ocorrem esses processos formativos, para se compreender as limitações e as possibilidades de práticas pedagógicas como colaboradoras no processo de construção da autonomia do aluno, em suas diferentes dimensões e não somente limitada à aprendizagem autônoma, ao estudo independente (PRETI, 2005, p.129). Para tanto, refletir sobre o tipo de homem que queremos formar, a opção teóricometodológica - a visão crítica e a concepção de avaliação em uma perspectiva mediadora - pode contribuir para a formação de sujeitos ativos, reflexivos, cidadãos atuantes e participativos na transformação do espaço sócio-histórico no qual participam. Trata-se de exigências do paradigma inovador ou da complexidade, que propõe que o currículo atenda uma visão crítica, reflexiva e transformadora na Educação e exige a interconexão de múltiplas abordagens, visões e abrangências. A complexidade segundo Moraes (2004, p.20): Complexidade esta compreendida como princípio articulador do pensamento, 74 Edilaine Vagula, Marilda Aparecida Behrens como um pensamento integrador que une diferentes modos de pensar, que permite a tessitura comum entre sujeito e objeto, ordem e desordem, estabilidade e movimento, professor e aluno e todos os tecidos que regem os acontecimentos, as ações e interações que tecem a realidade da vida. O pensamento complexo empreende o conhecimento como uma teia proposta com base nas conexões em sistemas integrados, pois, na visão de Morin (2000, p.46), “Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da analise pela síntese; é preciso conjugá-las. Existem desafios da complexidade com os quais os desenvolvimentos próprios de nossa era planetária nos confrontam inelutavelmente”. Assim, considerar na EaD uma visão complexa implica garantir uma ação docente que se reflita em uma prática pedagógica crítica, reflexiva e inovadora. Portanto, a ação educativa necessariamente deve atender a uma nova visão de mundo, de sociedade e de homem. A busca de respostas a essa questão paradigmática levou-nos a refletir sobre a necessidade urgente de que os cursos a distância focalizem os processos dialógicos, superando o ensino repetitivo e sem sentido, com pergunta e repostas prontas e acabadas, e colocando em seu lugar a comunicação e a mediação, como propõe Pereira (2003, p.200): [...] a comunicação mediada representa a essência do processo de aprendizagem, entendida no seu sentido seu duplo sentido: o primeiro refere-se a mediação entre o conteúdo e o aluno; o segundo, à relação entre o professor e o aluno. O uso intensivo da tecnologia como mediação do trabalho pedagógico envolve novas competências, que não têm sido contempladas na formação inicial e nos programas de formação continuada. O trabalho docente na EaD continua sendo fundamental, o que nos conduz, inevitavelmente, ao repensar de nossas práticas diante da necessidade de criar estratégias de ensino que enfatizem a produção de conhecimentos por parte dos professores em formação e, portanto, não reduzidos à transferência e aplicação de conteúdos adquiridos, para que construam uma prática pedagógica baseada na autonomia e na motivação. A interatividade articulada com a tecnologia deve ser a base da prática docente desenvolvida na EaD, pois [...] determina, de modo fundamental, o uso que se faz dos meios de comunicação, as novas relações entre os atores do processo de aprendizagem que se estabelecem no plano da linguagem e na produção do material didático (FIORENTINI; MORAES, 2003, p. 318). Os procedimentos de ensino, as diferentes formas de ensinar e avaliar devem contribuir com a interação, possibilitando o diálogo e o desenvolvimento do aluno. O diálogo, para Moore (1993 apud DIAS; LEITE, 2010), deve ser resultado de interações favoráveis ao desenvolvimento da aprendizagem. Ele esclarece, ainda, que o diálogo precisa ser intenso, uma vez que pouco diálogo conduz ao aumento da distância transacional, e este é um “espaço de potenciais mal-entendidos entre as intervenções do instrutor e as do aluno” (DIAS; LEITE, 2010, p. 77-78). Tal fato pode ser influenciado pela estrutura do curso, pois as tecnologias contribuem para a redução da distância transacional. Através do diálogo, o aluno aprimora seu pensamento crítico e reflexivo, adquirindo mais autonomia, podendo posicionar-se em relação ao seu próprio aprendizado. Ao se referir às interações, Nunes e Vilarinho (2006, p. 118) pontuam que é papel do professor captar as dificuldades, elogiar, estimular, ouvir, promover melhores relações e, dessa forma, manter “o nível acadêmico do diálogo faz parte da sensibilidade do professor”. Realizamos leituras e reflexões com base no texto de Tardif (2002), que caracteriza o saber docente como múltiplo e pluriorientado por diversos saberes, originados dos saberes curriculares, das disciplinas, do exercício profissional e da experiência pessoal. Tardif (2002, p. 302-303) propõe três modelos de identidade de professores: o tecnólogo do ensino, o prático reflexivo e o ator social, assim caracterizados: O tecnólogo de ensino se define por possuir competências de perito no planejamento do ensino e sua atividade é baseada num repertório de conhecimentos oriundos da pesquisa científica (grifo nosso); O prático reflexivo, que se serve muito mais de sua intuição e pensamento é caracterizado por sua capacidade de adaptar-se a situações novas e de conceber soluções originais [...] é o próprio modelo do profissional de alto Horizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 Formação de professores e o exercício da docência numa visão complexa na educação a distância nível (grifo nosso); O ator social desempenha o papel de agente de mudanças, ao mesmo tempo em que é portador de valores emancipadores em relação a diversas lógicas de poder que estruturam tanto o espaço social quanto o espaço [institucional]. (grifo nosso). O processo educativo com essa visão exige propor competências e habilidades que permitam diferenciar o modelo empregado na EaD. Concordamos com Perrenoud (2002) quanto a sua observação de que os saberes constituem o fundamento das competências, uma vez que “uma competência não é nada mais do que uma aptidão para dominar um conjunto de situações e processos complexos, agindo com discernimento” (p. 8). O professor, em sua formação profissional, necessita, portanto, que lhe sejam propiciadas condições para que futuramente, enquanto agente, possa dispor de recursos cognitivos pertinentes, de saberes, de informações, de atitudes, de valores e consiga mobilizá-los em momentos oportunos. Emprestamos do autor as seguintes questões: “Estamos desenvolvendo essas “habilidades e competências” de modo satisfatório, para que os alunos saibam “mobilizá-las num momento oportuno”? Criamos condições para que se “estabeleçam ligações dos saberes à ação e ao trabalho?” (p. 9). Para adquirir esses saberes é necessário, todavia, que os alunos aprendam. Em nossas instituições formadoras não verificamos, com freqüência, as condições propícias à aquisição dessa gama de saberes. O professor, como qualquer outro profissional, vive um processo histórico, caracterizado por mudanças contínuas e pela presença de produtos sociais, por exemplo, que emergem da tecnologia da informação, para os quais nem sempre está preparado para participar e intervir. A ausência de espaços para a construção de conhecimentos críticos leva alguns contextos escolares a inviabilizarem a prática reflexiva sobre os saberes teóricos e práticos. Considerações Finais As discussões durante os quinze encontros de discussão temáticas dentro da Linha de Teoria e Prática Pedagógica na Formação de Professores, no grupo de PEFOP “Paradigmas Educacionais e formação de professores”, do Programa de PósHorizontes, v. 30, n. 1, p. 69-77, jan./jun.2012 75 Graduação em Educação Stricto Sensu. Esse processo investigativo proporcionou a pesquisa exploratória aliada aos questionamentos gerados nas experiências dos docentes e da pesquisadora envolvida no processo de na área de formação de professores por meio da educação a distância. Buscamos nesta caminhada de investigação referenciais que auxiliassem a reflexão sobre a formação de professores na educação a distância. Atingimos nosso objetivo de discutir modalidades de formação de professores em um ambiente complexo que superem o paradigma conservador para atender as constantes transformações que envolvem o ensino e aprendizagem frente as Tecnologias da Informação e Comunicação. Apresentamos e compartilhamos neste artigo o fruto da tentativa de demonstrar a nossa incursão no campo da produção do conhecimento relativo à Formação de Professores na modalidade da EaD, o que nos conduziu durante todo processo de pesquisa a questionar e encontrar possíveis soluções para repensar nossas práticas pedagógicas enquanto professores formadores nessa modalidade. As conclusões a que chegamos apontam para necessidade de pensarmos com urgência em um meio de romper com as formas tradicionais e lineares da condução dos processos de ensino e aprendizagem na EaD e nas outras modalidades de ensino, determinando assim uma profunda mudança paradigmática. Neste novo olhar, cada vez mais competências desejáveis devem ser desenvolvidas, mesmo considerando os obstáculos a serem superados. Portanto, acreditamos que a proposta curricular a ser construída coletivamente pelos docentes responsáveis pela oferta dos Cursos, dadas as discussões em curso, venha a desvincular-se de modelos tradicionais e assim contribuir para o desenvolvimento do pensamento reflexivo. Finalmente, lembramos que o objetivo desta pesquisa não foi o de apresentar modelos para a formação de professores na EaD, mas oferecer subsídios para que as estratégias utilizadas na condução dos cursos que se propõem a formar professores possam ser repensadas. É nessa perspectiva que consideraamos urgente tanto uma mudança na e para a identidade deste profissional quanto políticas públicas formuladas apropriadamente, de modo que a formação deste profissional convirja para as definidas coletivamente por associações reconhecidas, como as da ANPED e ANFOPE. Concluímos, assinalando que as instituições precisam contribuir no sentido de formar professores para um uso pedagógico da 76 Edilaine Vagula, Marilda Aparecida Behrens Informação e Comunicação que venha a corresponder a um paradigma complexo e que abandone os modelos reducionistas baseados unicamente na racionalidade técnica. Para tanto, eles devem ser reorganizados, pois ainda, na maioria das vezes, partem de uma educação tradicional que concebe ensino focado unicamente na transmissão de conhecimento. Com base na pesquisa, acreditamos que o desafio está posto, pois muitas vezes discutimos que esse é o maior problema a se refletir na EaD, ou seja, a abordagem pouco envolvente e reducionista que caracteriza o abandono dos alunos ao longo do processo de ensino e aprendizagem. Referências ALVES, Lynn; NOVA, Cristiane. Educação a Distância: Uma Nova Concepção de Aprendizagem e Interatividade. São Paulo: Futura, 2003. 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Lev Vigotski mediação, aprendizagem e desenvolvimento uma leitura filosófica e epistemológica. Tradução de Anna Rachel Machado e Eliane Gouvêa Lousada. Ed. Mercado de Letras, Campinas, SP, 2012. A pesquisadora e professora Janette Friedrich, membro do grupo de pesquisa “História e Epistemologia das Ciências da Linguagem”, é uma grande especialista em Vigotski. Neste ano de 2012, a autora de A significação histórica da crise em psicologia (Paris, Dispute, 2010) e A teoria da linguagem, de Karl Buhler (Maseille, Agone, 2009), livros publicados em francês, lançou um novo livro, também em francês e recentemente traduzido por Ana Rachel Machado e Eliane Gouvêa Lousada. Em Lev Vigotski mediação, aprendizagem e desenvolvimento uma leitura filosófica e epistemoógica, Janette Friedrich nos traz uma oportunidade de conhecermos ainda mais sobre as obras desse autor já bastante conhecido e discutido por outros tantos escritores, o que pode trazer ao leitor certa desconfiança sobre a originalidade dessa nova obra. No entanto é importantíssimo frisar que esta originalidade está garantida, pois segundo Ana Luiza Smolka, que escreve o prefácio desse livro, “a novidade dessa publicação encontra-se no modo como a autora lê e dialoga com a teoria de Vigotski, como compreende e discute suas ideias, como nos convida a uma leitura que nos leva a pensar no interior do pensamento do autor”. Friedrich inicia seu livro com uma volta ao início do século XX, um momento decisivo para a constituição das ciências do homem, pois um grande número de correntes que até hoje dominam o pensamento teórico e os métodos empíricos nas ciências do homem se constituíram nesse período. Para apresentar o pensador russo e soviético Lev Séminovitch Vigotski, a quem esta obra é dedicada, Friedrich utiliza-se de um método que busca discutir algumas partes da obra de Vigotski, tentando não “falar sobre ele”, mas sim pensar no interior de sua obra. Nas palavras da autora “mostrar o que ele faz, o que ele diz, quando ele o diz; pensar o que ele pensa, quando o lemos” (Friedrich, 2012, P. 14). Portanto, para cumprir seu objetivo a autora apresenta em cinco capítulos questões relevantes que nos ajudam a entender a importância da obra de Vigotski na construção de uma psicologia como ciência que estuda o ser * Endereço eletrônico: [email protected] humano, proporcionando a nós educadores uma definição da função da escola na formação deste. No primeiro capítulo, intitulado “A psicologia é possível como ciência?”, Friedrich traz discussões do livro A significação histórica da crise em psicologia, escrito por Vigotski em 1927, no qual ele tentava desenvolver as bases e as premissas necessárias para uma psicologia que pudesse ser uma ciência por inteiro. Friedrich retoma a análise realizada por Vigotski do caminho das diferentes correntes de sua época, iniciando pela observação de que cada ciência define seu objeto com a ajuda de uma abstração primária. Retomando a questão da crise, Vigotski demonstra o problema da psicologia dos anos 20, apontando que nessa disciplina pode se encontrar pelo menos três abstrações psicológicas, que servem de base para uma corrente determinada. A primeira delas é a psicologia do homem normal. A segunda corrente é a ciência do comportamento. E a terceira é a ciência da abstração. Ainda nessa retomada das diferentes correntes da psicologia, Friedrich recupera a distinção que Vigotski faz entre as ciências gerais e as ciências particulares e afirma que o conhecimento científico não se produz apenas por meio das experiências, das percepções, das observações e de sua denominação, mas também e em grande parte por meio de um trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos, eis aí o que está na base do projeto vigotskiano de uma psicologia geral (FRIEDRICH, 2012, P. 33). Diante da afirmação de Vigotski, Friedrich levanta os seguintes questionamentos: “o que é esse famoso conteúdo real de um conceito? Como se pode conhecer a realidade por meio dos conceitos?” Para responder a tais questionamentos a autora utiliza exemplos apresentados pelo autor. O segundo capítulo, com título “O termômetro da psicologia”, traz discussões a respeito do método de pesquisa, que, segundo Vigotski, tem o objetivo de produzir a correspondência entre o conhecimento e a relidade. Para isso Friedrich recupera a discussão de Vigotski em relação aos métodos utilizados pela pscicologia, na qual ele distingui dois grupos 80 de métodos: o grupo dos métodos diretos e o grupo dos métodos indiretos, fazendo uma crítica aos métodos diretos e reexaminando os métodos que têm um caráter indireto, que para ele são métodos que nos aproximam da verdade, em que “interpretar significa recriar o fenômeno a partir de seus traços e de suas influências com base nas regularidades anteriormente estabelecidas” (VIGOTSKI, 1927, P. 164 apud FRIEDRICH, 2012, P. 44). Diante de tais afirmações, Vigotski propõe a substituição dos conceitos de base: da consciência e de comportamento, por um outro que corresponde ao método indireto, o conceito de psiquismo. Friedrich retoma então o conceito de psiquismo, levando o leitor a entender tal conceito e demontrando que esse só pode ser definido por meio de métodos indiretos, de construção de hipóteses, de reconstrução e de interpretação dos traços da filtragem. No capítulo três, o próprio título, “A ideia de instrumento psicológico”, já nos dá uma noção do conteúdo que será nele discutido. Friedrich ressalta a importância da tese de Vigotski sobre os instrumentos psicológicos, pois para o autor todas as funções psíquicas superiores, como por exemplo, a atenção voluntária ou a memória lógica, surgem com o auxílio dos instrumentos psicológicos e, consequentemente, se constituem como fenômenos psíquicos mediatizados (FRIEDRICH, 2012, P. 53). Para falar sobre esses instrumentos a autora recupera uma discussão sobre a memória natural e a memória artificial, demonstrando que a tarefa de memorização se realiza com o auxílio do instrumento psicológico. Para deixar ainda mais clara a tese de Vigotaki sobre esses instrumentos psicológicos, a autora faz uma diferenciação entre os instrumentos ou ferramentas de trabalho e os instrumentos psicológicos, e traz também argumentos encontrados em Vigotski para ajudar o leitor a compreender a escolha conceitual feita pelo autor ao utilizar o par de conceitos natural e artificial e não, como se poderia esperar, o par de conceitos natural e cultural. Outra questão que tem destaque nesse capítulo para a compreensão completa do que é para Vigotski, um instrumento psicológico, é a distinção entre a atividade mediatizada e a atividade mediatizante. A autora faz ainda uma observação sobre a natureza sócio-histórica dos instrumentos psicológicos, demonstrando que o indivíduo interioriza as relações sociais que ocorrem entre as pessoas; assim sendo, “o indivíduo deve estar no centro da pesquisa, pois o que se estuda é o indivíduo particular em sua qualidade de um ser pensante” (FRIEDRICH, 2012, P. 75). No capítulo quatro, Friedrich retoma as discussões de Vigotski acerca de como se dá a formação dos conceitos, por isso recebe o título de “A formação dos conceitos na criança”. A autora inicia o capítulo trazendo uma crítica do autor em relação ao método da definição e o método da abstração, já que nenhum dos dois permite acesso ao pensamento da criança. Ressalta ainda a crítica de Vigotski em relação ao dispositivo de Ach, pois esse, assim como os outros métodos, também não permite descobrir a natureza genética do processo de formação de conceitos. Friedrich nos apresenta então, o método utilizado por Vigotski e Sakharov para o estudo dos conceitos, método que segundo Vigotski possibilitou o estudo de como o sujeito emprega os signos enquanto meios de dirigir suas operações intelectuais e como, em função desse modo de utilização da palavra, de sua aplicação funcional, se desenrola e se desenvolve todo o processo de formação do conceito em seu conjunto (VIGOTSKI, 1934, P. 202 apud FRIEDRICH, 2012, P. 86). Para ajudar o leitor a ter maior compreensão sobre a especificidade da posição de Vigotski, a autora destaca duas diferenças em relação às três outras maneiras de definir e de analisar os conceitos. A primeira diferença referese à concepção da linguagem, pois para Vigotski “o pensamento não se expressa na palavra, mas se reliza na palavra” (VIGOTSKI, 1934, P. 428 apud FRIEDRICH, 2012, P. 87). A segunda diferença, de grande importância aos profissionais da educação, é que esse estudo permitiu reconhecer a existência de três grandes estágios de formação de conceitos no processo de desenvolvimento da criança: o estágio dos conceitos sincréticos, o estágio dos complexos e o estágio do pseudoconceito e o verdadeiro conceito. Essa análise realizada por Vigotski do processo de formação dos conceitos e a interpretação que dela faz acarretam duas consequências em relação ao desenvolvimento: a primeira, o fato de que no processo de desenvolvimento da criança podemos identificar diferentes formas de pensamento em conceitos e que os conceitos utilizados por elas antes da adolescência compõem equivalentes funcionais; a segunda, o papel que Vigotski atribui à escola no ensino dos conceitos científicos. Para finalizar, o quinto e último capítulo aborda exatamente a última consequência relatada no parágrafo anterior, recebendo o título “O aporte específico da escola”. A autora inicia-o fazendo uma diferenciação entre conceitos cotidianos e conceitos científicos, o que, segundo ela, ajuda o leitor a compreender melhor o papel 81 que Vigotski atribui à escola, já que para ele a especificidade dessa instituição é ensinar os conceitos científicos. Para Vigotski, é a capacidade de trabalhar com as generalizações já existentes que os conceitos científicos permitem, que deve ser privilegiada no ensino escolar. A partir de tal afirmação, a autora levanta dois questionamentos: “o que a criança adquire como capacidades quando se dá a aprendizagem dos conceitos científicos?” E “em que consiste, no final das contas, o aporte específico da escola?” (FRIEDRICH, 2012, P. 102). Para responder a tais questionamentos, Friedrich retoma uma série de exemplos apresentados por Vigotski, e demonstra que a criança inicialmente utiliza ideias, operações, palavras sem ainda fazer generalizações a partir desse conhecimento, sem ainda ter consciência do conceito que está por trás de tudo isso. Assim sendo, a tomada de consciência, segundo Vigotski, é uma das duas principais neoformações da escola; a outra é o domínio ou a intervenção da vontade (VIGOTSKI, 1934, P.309 apud FRIEDRICH, 2012, P. 105). Ainda discutindo as reflexões de Vigotski sobre a escola, Friedrich analisa a relação entre aprendizagem e desenvolvimento que, segundo ela, complementam tal discussão. Para estabelecer tal relação, Vigotski apresenta três teorias que procuram explicá-la. A primeira, que considera a aprendizagem e o desenvolvimento como dois processos independentes, a segunda, em que a aprendizagem e desenvolvimento são tratados como único e mesmo processo, e a terceira, que afirma uma verdadeira interdependência entre esses dois processos. Sua própria concepção define-se a partir de duas grandes teses: a primeira afirma que “a aprendizagem precede o desenvolvimento” (VIGOTSKI, 1934, P. 348 apud FRIEDRICH, 2012, P. 109), afirmação que se reflete no conceito de zona de desenvolvimento proximal, muito discutida nos últimos anos. A segunda certifica que o ritmo de desenvolvimento não coincide com o ritmo das aprendizagens. É importante ressaltar que é o poder fazer e o saber fazer que demonstram o desenvolvimento da criança e, em consequência, o sucesso das aprendizagens. No entanto esse conhecimento não é dado nem adquirido, ele é mostrado, acentuado, demonstrado pelo professor e, a partir dessas operações, ele é construído pela criança. O que é mostrado pelo professor é usado como um instrumento pela criança que se transforma ao mesmo tempo em objeto e sujeito (FRIEDRICH, 2012, P. 114). Isso esclarece a ideia de mediação discutida por Vigotski e demonstra a importância da participação ativa do aluno no processo de construção de seu próprio conhecimento, pois sem essa participação a aprendizagem não acontece. Friedrich finaliza seu livro com uma conclusão que possibilita ao leitor uma retomada dos principais assuntos abordados em seu diálogo com Vigotski, proporcionando maior compreensão sobre a concepção de sujeito exposta ao longo dos capítulos. Essa é uma obra que, sem dúvida nenhuma, demonstra o imenso conhecimento e capacidade que a autora tem em dialogar com esse autor tão importante para o campo da educação, evidenciando o papel da escola e dos educadores na formação desse sujeito ativo, capaz de em sua relação com o mundo utilizar os instrumentos necessários para a construção de seu próprio conhecimento. Sobre a autora: Renata Correa Rocha: Mestranda em Educação pela Universidade São Francisco de Itatiba. Formadora de professores da rede Municipal de Itatiba. E-mail: [email protected] 82 83 Relação das dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco no período de janeiro a junho de 2012 ALENCAR, Laine Cristina Forati de. (Im)possibilidades de organizar ações pedagógicas que articulem materiais produzidos a partir de diferentes perspectivas educacionais. 2012. 135p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Alexandrina Monteiro. A presente pesquisa faz parte de uma inquietação profissional sobre a realidade de duas concepções metodológicas de ensino e aprendizagem: a de um sistema apostilado baseado em concepções empiristas, que ressalta atividades prontas para os alunos – como se aprendessem da mesma forma e no mesmo tempo; e a de outro sistema de ensino baseado na concepção metodológica do construtivismo – onde os alunos são considerados sujeitos de sua aprendizagem através das mediações que o professor tende a fazer para que eles pensem, reflitam e evoluam no processo de aprendizagem. Para tanto, inicio a pesquisa ressaltando alguns princípios da concepção construtivista e como a criança aprende e aprofundo este tema demonstrando a realidade de um curso, no qual fui formadora por cinco anos em uma rede municipal em que a concepção metodológica era de um apostilado. Realizei uma breve pesquisa sobre a municipalização do ensino no Brasil para então chegar até o início dos apostilados, ou seja, enfatizar alguns pontos do porque este sistema privado adentrou as redes municipais de ensino. Continuo a pesquisa tecendo uma breve análise de algumas atividades que compõem o material apostilado e atividades similares na perspectiva do curso em questão: o Letra e Vida e sua concepção de ensino. Esta análise não teve um fechamento final, levando-nos apenas a reflexões e questionamentos sobre as duas propostas de ensino e a educação em um contexto mais amplo que é algo ainda em construção diária, incerteza e busca de respostas contínuas. Palavras-chave: construtivismo. material didático. metodologias. intervenção pedagógica. currículo escolar BAGNE, Juliana. A elaboração conceitual em matemática por alunos do 2º ano do ensino fundamental: movimento possibilitado por práticas interativas em sala de aula. 2012. 206p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Adair Mendes Nacarato. Esta pesquisa, em que a professora assumiu também o papel de pesquisadora, é de abordagem qualitativa, com alunos do 2º ano do ensino fundamental de uma escola municipal de Jundiaí/SP e tem como foco a problematização em sala de aula. Com o objetivo de analisar tanto o movimento de elaboração conceitual matemática dos alunos, inseridos num ambiente de problematizações, quanto as ações mediadas pela professora-pesquisadora nesse contexto, toma como referencial teórico a perspectiva histórico-cultural e busca responder a seguinte questão de investigação: “Como os cenários de investigação pautados no diálogo, na cooperação e em problematizações possibilitam a circulação de significações matemáticas numa sala de aula de 2º ano do ensino fundamental?”. A documentação foi constituída por registros produzidos pelos alunos, audiogravações das tarefas propostas aos alunos e diários de campo da professora-pesquisadora. A análise focalizou sete episódios selecionados e centrou-se no movimento de elaboração conceitual em sala de aula, com foco na produção de significações para o conceito de medida. Os resultados evidenciam o quanto os alunos trazem significações matemáticas relativas a contextos não escolares envolvendo medidas e como esses conceitos espontâneos possibilitam o acesso aos conceitos científicos, num movimento de argumentação, socialização, interações e ações mediadas. Esse movimento é possibilitado pelo cenário de investigação criado em sala de aula, no qual os alunos, em grupos e no coletivo da sala, socializam e compartilham ideias matemáticas. Há indícios de que os alunos produziram significações para o conceito de medida, para o uso de unidades padronizadas de comprimento e massa, para o número como quantidade e como medida e para os instrumentos que possibilitam essas medições. Também ficaram evidentes as aprendizagens da professora-pesquisadora com o processo, tanto no campo da prática docente quanto no campo da pesquisa em sala de aula. Palavras-chave: Problematizações matemáticas. Anos iniciais. Grandezas e medidas. Prática pedagógica. BROLEZZI, José Luis. Medidas do tempo em tempos contemporâneos: o Uso de saberes e práticas relacionados aos astros em contextos agrícolas. 2012. 136 p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Alexandrina Monteiro. 84 Esta dissertação de Mestrado tem como objetivo problematizar a construção de saberes relacionados à astronomia que circulam nas práticas pedagógicas da educação formal e a legitimação dessas práticas a partir da discussão sobre a constituição e a mobilização desses saberes por meio das práticas agrícolas e a sua ligação com os eventos celestes, usando como referência uma comunidade tradicional localizada no interior do Estado de São Paulo. Esperase que essas discussões contribuam para se pensar na escola e no currículo escolar de outra forma, a partir de um outro lugar. Para tanto, foi realizada uma pesquisa com apontamentos etnográficos usando como procedimentos entrevistas, diários de campo e revisões bibliográficas, para, com o material coletado, analisar como as tais práticas e os saberes desse grupo são produzidos, transmitidos e legitimados. Tomamos como eixo central a discussão sobre o tempo relacionado à organização dessas práticas. As questões orientadoras foram: “De que forma um grupo de agricultores organiza seu tempo e suas práticas agrícolas?” e “Quais saberes atravessam essas práticas e por que o grupo os utiliza?”. Para embasar nossa discussão e análise, valemo-nos dos autores Foucault, Bauman, Wenger e Gallo. Este trabalho nos permitiu compreender que é necessário mudar o ponto a partir do qual olhamos e questionamos as práticas escolares, sendo possível pensar sobre os saberes que perpassam o campo da Astronomia construindo diferentes significados e sentidos surgidos na problematização de outras práticas, em particular daquelas que envolvem a medida de tempo como elemento para a organização de atividades agrícolas. Isso nos permitiu também (re)pensar como vem sendo praticado o ensino de Astronomia na escola (de forma disciplinar) e problematizar a possibilidade de circulação das práticas não-escolarizadas na organização dos currículos escolares. Palavras-Chave: Astronomia. Currículo. Ensino de Ciências. Medida de Tempo. Práticas Agrícolas. CAMPOS, Alessandro Marcelino. A recuperação paralela em matemática: entre o prescrito e o realizado. 2012. 145p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Adair Mendes Nacarato. Esta dissertação tem como foco a recuperação paralela e o fracasso escolar. Foi realizada na rede municipal de Itatiba e na rede estadual paulista e teve como questão norteadora: “Quais são as percepções de alunos e professores sobre a recuperação paralela e as implicações para a sustentação do fracasso escolar em matemática?”. Seus objetivos são: 1) apresentar como os documentos legais, produzidos pelos diferentes sistemas de ensino, prescrevem os projetos de recuperação paralela aos alunos com lacunas conceituais; 2) identificar como o fracasso escolar em matemática vem sendo produzido em sala de aula a partir da ótica dos alunos; 3) apontar como os professores que atuam nas aulas de recuperação paralela percebem esse projeto oficial. Os dados foram produzidos com base em entrevistas com alunos e com três professoras em processo de recuperação paralela; em observações de aulas de duas professoras; e em análise documental. A análise centrou-se em três categorias e evidenciou que, embora os sistemas de ensino garantam, legalmente, as classes de recuperação para os alunos com defasagens conceituais em matemática, há um grande distanciamento entre o prescrito e o realizado. Os resultados corroboram nossa hipótese inicial: o fracasso escolar é produzido na escola e por ela, e a forma como os processos de recuperação paralela vêm sendo implantados nas escolas pouco tem contribuído para a aprendizagem matemática dos alunos. Palavras-chave: fracasso escolar; sucesso escolar; relação com o saber; recuperação paralela em matemática; condições de trabalho docente. DALLAN, Maria Salomé Soares. Análise discursiva dos estudos surdos em educação: a questão da escrita de sinais. 2012. 136p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Márcia Aparecida Amador Mascia. A prática de trabalho com alunos surdos falantes de Libras – Língua de Sinais Brasileira - propiciou que assistíssemos a várias mudanças nas concepções educacionais que pensam a educação desse sujeito. Atualmente, tanto os professores surdos quanto os ouvintes chegaram a um aparente consenso de que estes alunos têm direito a uma educação bilíngue (Libras e Língua Portuguesa na modalidade escrita) para que ele se desenvolva e adquira conhecimento. Observando os atuais movimentos reivindicatórios por uma educação de qualidade para estas pessoas, elegemos como corpus desta pesquisa uma análise da coletânea acadêmica de quatro volumes, intitulada “Estudos Surdos”, editada pela Editora Arara Azul, confrontando-a com a atual Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva. O objetivo específico é localizar, nestes documentos, dados que possibilitem dar visibilidade às inovações propostas para o ensino dos alunos com surdez inseridos nas escolas regulares. Buscamos especificamente propostas de acesso ao conhecimento, como por exemplo, uma escrita acessível, própria para a Libras, buscando identificar quais os regimes de 85 verdade que esses textos veiculam em relação à necessidade de mudanças nos paradigmas educacionais, uma vez que o percurso educacional do sujeito surdo falante de Libras na escola ainda aponta lacunas que muitas vezes o transformam em deficiente quando este é solicitado a ler e escrever em uma língua oral auditiva. Partimos do pressuposto de que as línguas de sinais têm um sistema próprio de escrita, que já está sendo ensinado em cursos de graduação e pós-graduação em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, desde outubro de 2006 através do Curso de Letras Libras da Universidade Federal de Santa Catarina. Esta pesquisa pôde coletar dados que revelam que as opiniões expressas nesses documentos com relação ao direito a uma Escrita em Sinais ainda são incipientes para a implantação efetiva desta escrita, pois o sujeito revelado dos Estudos Surdos apresenta traços que denunciam uma transmutação dos mecanismos de biopoder, controle do corpo, impostos aos sujeitos falantes de línguas de sinais desde o tão debatido Congresso de Milão de 1880: incentiva-se mais que o sujeito aprenda a inscrever-se melhor nas práticas de leitura e escrita em português, normalizando-o e mantendo as relações de poder-saber inalteradas, do que realmente permitir que ele se inscreva nas práticas de leitura e escrita através da língua de sinais, à cultura surda. As considerações realizadas nesse estudo pretendem trazer uma reflexão aos educadores e gestores educacionais, no sentido de repensarmos a educação dos alunos surdos em relação às diferenças a que cada sujeito tem direito, ou seja, aceitar por inteiro a língua de sinais e os sujeitos que falam e são falados por ela: naturalizar sua escrita, seja em português ou em sinais. Palavras chave: Libras. Escrita em Sinais. Signwriting. Educação Bilíngue. Surdez. FAVRE, Fernanda de. A compreensão dos elementos da petição inicial para a produção de textos no curso de direito. 2012. 190p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Luzia Bueno. A presente pesquisa tem como objetivo a compreensão do gênero petição inicial, dentro do Direito. Para isso, procuramos responder às seguintes perguntas: a) Quais são os elementos constituintes de uma petição inicial da vara de família e sucessões nos manuais, conforme o modelo de análise do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD); b) Quais são os elementos desse tipo de petição em textos concretos? e c) Há diferenças ou semelhanças entre a petição concreta e a do modelo? Como abordagem teórica, optamos por utilizar a perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo de Bronckart (2009a, 2009b), mais o estudo de gêneros textuais na escola e sua funcionalidade, de acordo com Dolz e Schneuwly (2010). A fim de atingir o nosso objetivo, analisamos 5 petições modelo e mais 10 petições concretas, todas de direito civil, em especial, na área de Direito de família. Nossa análise nos permitiu perceber que, principalmente nesse ramo do Direito, os textos prontos, que possuem apenas espaços a serem preenchidos, não permitem que aquele que está elaborando-o apareça, isto é, passe a expor seu ponto de vista, defenda seu Direito e, mais, avalie para o leitor seu conteúdo escrito, dê suas opiniões ao julgador da petição. E ainda, mostre por meio de citações doutrinárias ou jurisprudenciais posições semelhantes à que está defendendo para seu cliente. Os modelos nem “abrem” espaço para que os que se utilizam dele possam expor o que precisam, de verdade, para obtenção de êxito na causa. Palavras-chave: petição inicial. gêneros textuais. interacionismo sociodiscursivo. letramento jurídico. FEITOZA, Cláudia de Jesus Abreu. Trabalho docente em EAD: representações construídas em uma entrevista de instrução ao sósia. 2012. 186p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Luzia Bueno. O presente trabalho tem como objetivo principal contribuir para o conjunto de pesquisas que tratam sobre o trabalho do professor visando à compreensão do trabalho docente em Educação a Distância (doravante EaD). Para isso, procedemos com a análise e interpretação das representações construídas acerca da atividade docente que emergiram de um texto proveniente de uma entrevista de instrução ao sósia. Para detectar essas representações, adotamos um quadro teórico-metodológico que considera o trabalho como uma atividade humana complexa e, como tal, postula que a mesma deve ser estudada à luz de várias ciências. A nossa pesquisa está ancorada em dois aportes teóricos: o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) e as ciências do trabalho (Ergonomia da Atividade e Clínica da Atividade). A partir dos estudos de Vygotsky, esse quadro teórico-metodológico considera as duas principais atividades humanas – trabalho e linguagem – como forma de desenvolvimento humano. Nesse quadro, o trabalho é tido como forma de agir humano do qual podem ser extraídos modelos de agir que se configuram na e pela linguagem materializada em textos orais ou escritos. O texto objeto de interpretação originou-se a partir de uma entrevista de instrução ao sósia, procedimento utilizado na área de Psicologia do Trabalho como forma de intervenção e transformação das situações 86 concretas de trabalho que vem sendo usado recentemente, no Brasil, como forma de produção de dados acerca do trabalho educacional. Nesse procedimento, o pesquisador coloca-se no papel do sósia e o trabalhador entrevistado deve orientá-lo na execução de suas tarefas. No caso desta pesquisa, a professora pesquisadora realizou a entrevista de instrução ao sósia com um professor experiente em EaD para acessar as representações/interpretações/avaliações sobre o seu trabalho, bem como compreender como a atividade desse profissional se constitui. O diferencial em relação a esse método de produção de dados foi o uso da ferramenta MSN (conversa instantânea), procedimento adotado para o qual também esperamos contribuir, apontando as suas possíveis vantagens e limitações. A análise do texto produzido revelou as diferentes fases da atividade do professor em EaD; estas, por sua vez, evidenciaram diferentes conjuntos de tarefas que eram atribuídas ao professor que, devido à linearidade e cronologia do curso da atividade, assumia diferentes funções. Foi possível identificar, também, que os diferentes elementos constituintes da atividade do professor, bem como a forma de organização de seu trabalho parecem ser regidos por normas, regras do ofício e práticas próprias, que em muito se diferenciam da atividade docente na modalidade presencial, podendo, portanto, constituir um novo gênero da atividade. Palavras-chave: Interacionismo Sociodiscursivo; Trabalho Docente; Educação a Distância; Entrevista de Instrução ao Sósia, MSN. GOMIDE, Cristiane Guerra dos Santos. O processo metodológico de inserção de jogos computacionais em sala de aula de matemática: possibilidades do movimento de ação e reflexão da professora-pesquisadora e dos alunos. 2012. 186p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Regina Célia Grando. A presente pesquisa buscou investigar como a inserção de jogos computacionais em aulas de matemática pode possibilitar um movimento de ação e reflexão da professora-pesquisadora e dos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, numa perspectiva de resolução de problemas. Teve como objetivos: 1) identificar os processos de resolução de problemas de jogo em sala de aula, com os jogos The Jaguar’s Eye, Diner City e Yellowout; 2) identificar as potencialidades da utilização dos jogos computacionais Yellowout, para a mobilização de conceitos matemáticos, em sala de aula e 3) evidenciar o processo de reflexão e ação da professora-pesquisadora durante o desenvolvimento do trabalho pedagógico. Apresentou-se uma reflexão teórica sobre a importância dos jogos na educação buscando refletir sobre a cultura lúdica juvenil. Discute-se sobre a importância da inserção da tecnologia na educação e sobre o uso dos jogos computacionais para a aprendizagem da matemática a partir da metodologia de Resolução de Problemas. A pesquisa foi desenvolvida numa abordagem qualitativa em dois momentos: o primeiro foi constituído pelo desenvolvimento dos jogos The Jaguar’s Eye, Diner City em que tivemos dois trios de alunos que estavam cursando o oitavo ano do Ensino Fundamental. O segundo momento foi constituído pelo desenvolvimento dos jogos Yellowout com uma turma com 35 alunos do nono ano do Ensino Fundamental. Os dados empíricos foram produzidos através de audiogravações, diário de campo da pesquisadora e resolução de situações-problema escritas. Esta última, especificamente para o segundo momento de nossa pesquisa. As análises possibilitam desenvolver trabalhos em sala de aula como utilizar os jogos computacionais The Jaguar’s Eye, Diner City e Yellowout, na perspectiva da metodologia de resolução de problemas em uma turma de oitavo/nono ano do Ensino Fundamental a fim de mobilizar os alunos para a aprendizagem; o registro possibilitando a relação entre a Matemática a partir do jogo e a Matemática ensinada em sala de aula; o papel do professor na mediação pedagógica, as interações entre os grupos de alunos; como também, suas ações e reflexões durante a ação do jogo; possibilitando trazer para o jogo situações do cotidiano. Os resultados apontam para a importância da pesquisa do professor sobre a sua prática, assim, ao refletir sobre suas ações, produz novos saberes com as experiências vividas, além do processo de re-significação da própria prática pedagógica possibilitando o desenvolvimento profissional da professora que utiliza jogos computacionais nas aulas de matemática. Palavras-Chave: Saberes Profissionais. Jogos Computacionais. Educação Matemática. GRILLO, Rogério de Melo. O Xadrez Pedagógico na Perspectiva da Resolução de Problemas em Matemática no Ensino Fundamental. 2012. 279p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Regina Célia Grando. A presente pesquisa busca investigar de que maneira um trabalho de mediação pedagógica com o xadrez escolar, em uma perspectiva de resolução de problemas, possibilita a aprendizagem matemática por alunos 87 do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, elencamos os seguintes objetivos: 1- evidenciar como alunos de um 9º ano do Ensino Fundamental produzem e/ou ressignificam o conhecimento matemático, em sala de aula, a partir da prática com o jogo de xadrez; 2- identificar as potencialidades metodológicas do xadrez escolar, em um movimento de resolução de problemas. Destacamos que essa pesquisa, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida em uma escola de zona rural, do município de Passos/MG, com alunos de um 9º ano do Ensino Fundamental. Os dados foram produzidos a partir dos seguintes instrumentos: audiogravação das aulas; diário e notas de campo do professor-pesquisador; cadernos dos alunos; resoluções de situaçõesproblema (oral e escrita); e registros de jogo. No que concerne a análise dos dados, optamos por desenvolvêla a partir de dois eixos, sendo um que considera o xadrez na sala de aula enquanto comunicação oral e outro que busca evidenciar a potencialidade do xadrez pedagógico por meio do registro escrito. As nossas análises nos permitiram inferir que o xadrez pedagógico, em uma perspectiva metodológica da resolução de problemas, possibilitou que os alunos produzissem conhecimento matemático, em um ambiente de jogo. A comunicação oral e os registros escritos por meio de situações-problema, puzzles, jogos pré-enxadrísticos e jogo propriamente dito, juntamente com a mediação pedagógica do professor-pesquisador, contribuíram para identificar as potencialidades pedagógicas do xadrez no desenvolvimento de habilidades como a percepção espacial, o raciocínio lógico e hipotético-dedutivo, a tomada de decisões, a abstração, a previsão e a antecipação, dentre outras. Ademais, evidenciam a produção de conhecimento matemático a partir do xadrez, por meio de um processo de análise das possibilidades de jogo, levantamento de hipóteses, construção de estratégias, reflexão sobre erros e acertos e criação de problemas. Palavras-chave: Xadrez; Mediação Pedagógica; Resolução de Problemas; Conhecimento Matemático. LIMA, Maria Aparecida Ferreira de. O poder da biblioteca nos processo de (in)visibilidade do saber: um estudo de caso da EJA. 2012. 119p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Alexandrina Monteiro. O poder da biblioteca nos processos do saber investiga as práticas de organização e acervo em bibliotecas, para tanto discute os efeitos e mecanismos de legitimação e valorização do campo de saber da EJA. Esse estudo inicia-se a partir do projeto de pesquisa intitulado “Múltiplas Representações da educação de Jovens e adultos: professores (as) da rede municipal de Itatiba-SP”, que tem como um dos objetivos a organização de um centro de referencia de EJA no Município de Itatiba e Região. Desse modo, a nossa investigação discute algumas das práticas presentes no fazer da bibliotecária, em especial no que se refere as práticas atravessadas por atividades de classificação e organização do material do acervo. Tais práticas serão por nós analisadas com o intuito de compreender quais saberes/poderes são nelas mobilizadas. Ou seja, nos interessa investigar que mecanismos de legitimação e valorização (simbólica no sentido proposto por Bourdieu) circulam em certas práticas de organização e classificação de trabalhos sobre e da EJA e quais os efeitos que produzem sobre a consolidação ou não desse campo do saber. Diante disso, somos atravessadas por algumas questões como: Quais sentidos, significados, valores são construídos pelos modelos de classificação, indexação e organização de acervos em especial aqueles relacionados a EJA? Qual o lugar ou não-lugar da EJA quando analisada na perspectiva da biblioteca - aqui entendida como o local de organização e classificação de saberes legitimados? Como os fios das novas tecnologias se cruzam com as tramas da organização de acervos de bibliotecas e de centros de referências? Para problematização e discussão de nossa pesquisa, investigamos a visibilidade ou apagamento do conceito EJA, no Banco de Teses da Capes. Palavras-chave: EJA. educação de jovens e adultos. Biblioteca. banco de teses da Capes. MATTIASSI, Rosana Cristina. O plano de ensino no trabalho docente: artefato ou instrumento de desenvolvimento do professor em um espaço não formal de educação. 2012. 196p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Luzia Bueno. Esta dissertação tem por objetivo investigar o trabalho docente, mais especificamente mostrar as representações que os professores têm acerca do Plano de Ensino, documento construído anualmente, normalmente no início do ano, dentro de um espaço não formal de educação. Desta forma, com nossa pesquisa visamos mostrar como a construção, o entendimento, a leitura e utilização do Plano de Ensino é apresentado em textos produzidos em situação de trabalho, por professores que atuam dentro de um espaço não formal de educação. Para isso adotamos o quadro teórico-metodológico do Interacionismo sociodiscursivo, como apresentado por Bronckart (1997, 2004a). Além disso, para complementação de nossas análises, recorremos às Ciências do Trabalho, mais precisamente à Clínica da Atividade (Clot, 1999, 88 2001; Faita,2001) e a Ergonomia da Atividade (Amigues, 2004, Saujat, 2004,2005), buscando o aprofundamento das questões ligadas ao trabalho. A coleta de dados foi realizada numa Fundação que faz parte do terceiro setor e tem como foco principal de trabalho a educação. Ela conta, atualmente, com sete unidades educacionais entre espaços consideramos formais e não formais de educação. Esta pesquisa deu-se dentro de uma dessas unidades considerada como um espaço não formal de educação, que atende adolescentes de baixa renda entre 10 e 16 anos. Neste espaço, são oferecidas oficinas pedagógicas por professores que possuem diferentes níveis de escolarização e de forma contratual. Para coleta de dados, utilizamos a Instrução ao Sósia, metodologia que coloca o sujeito de pesquisa como instrutor de uma tarefa a ser realizada, no caso desta dissertação, pela pesquisadora. A tarefa solicitada foi a orientação para a construção de um Plano de Ensino. A análise dos dados foi realizada tendo como base o quadro de procedimentos de análise do Interacionismo sociodiscursivo (Bronckart & Machado, 2005; Machado e Bronckart, 2004; Clot, 1999,2001; Faita, 2001; Amigues, 2004, Saujat,2004,2005) estabelecendo um diálogo entre o Interacionismo sociodiscursivo e as Ciências do Trabalho. Os resultados das análises dos textos orais construídos pelos professores participantes da pesquisa revelaram o distanciamento entre o que é prescrito pelo próprio professor no Plano de Ensino realizado na Instrução ao Sósia e entre o que é realmente realizado em situação de trabalho. Os dados ainda apontam o esforço empreendido pelos professores na construção deste documento, tido ainda como uma tarefa burocrática para a qual não se sentem preparados porque não há o domínio deste gênero textual. Além disso, os professores entrevistados não o reconhecem como instrumento de desenvolvimento, pelo contrário, há marcas de angústias geradas pelo não domínio do gênero. Em nossas análises, observamos, ainda, que os professores se esforçam para atender as solicitações da instituição educacional e à sociedade como um todo, que transfere a maior parte da responsabilidade da boa formação do aluno ao trabalho do professor, desconsiderando toda a complexidade que envolve este trabalho. Ressaltamos que a construção de documentos que fazem parte das atividades desenvolvidas pelos professores merece ser mais pesquisada uma vez que é parte constituinte das atividades docente. Palavras-chave: Trabalho Docente, Plano de Ensino, Instrução ao Sósia. MENDES, Maria Helena Peçanha. A aprendizagem do professor sobre o trabalho docente com gêneros textuais: o artigo de opinião no 9º ano do ensino fundamental. 2012. 138p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Luzia Bueno. A presente pesquisa tem como objetivo específico buscar compreender o trabalho com gêneros textuais tanto a partir dos produtos, os textos dos alunos, quanto do processo, com as reflexões por escrito de uma professora. Para isso, procura-se verificar em que medida a aplicação de uma sequência didática provoca mudanças nos textos de opinião iniciais e finais de alunos do Ensino Fundamental II e, por outro lado, quais os aspectos do trabalho com uma sequência didática de artigo de opinião são revelados no diário de campo do professor. Acreditamos que ao trabalhar, explorar e refletir sobre o gênero textual artigo de opinião, o professor aproxima os alunos de situações originais de produção dos textos não escolares. Essa aproximação oferece condições e instrumentos para que o aluno compreenda o funcionamento do gênero textual, apropriando-se de suas peculiaridades e especificidades, o que facilitará o domínio que deverá ter sobre ele. Além disso, o trabalho com o artigo de opinião contribui para o aprendizado de prática de leitura, de produção textual, argumentação e de compreensão, habilidades essas que poderão ser empregadas no uso e apropriação de outros gêneros de diversas esferas de circulação dos textos produzidos na sociedade. A opção por esta perspectiva proporciona aos alunos a oportunidade de lidarem com a língua em seus mais diversos usos, ou seja, não são somente aquelas composições escritas tradicionais com a qual se trabalha na instituição escolar – descrição, narração e dissertação – mas, sim, com o texto que é produzido diariamente em todos os momentos em que nos comunicamos, tanto na forma escrita como na forma oral, nas mais diversas esferas sociais. Para tanto, optamos por utilizar a perspectiva do Interacionismo sociodiscursivo de Bronckart (1999), o estudo de gêneros textuais na escola e sua funcionalidade, de acordo com Dolz & Schneuwly (2004), os trabalhos do Grupo ALTER sobre o trabalho docente. A metodologia utilizada foi a elaboração de uma sequência didática, a posterior aplicação da mesma, em seguida, coletamos o material e o analisamos conforme a perspectiva adotada. Nossa análise nos permitiu elencar quais capacidades de linguagem foram desenvolvidas, como a linguístico-discursiva, e outras que não apresentaram mudança entre os alunos, como a capacidade de ação, analisar elementos não comum ao gênero encontrados e tecer considerações sobre a grade adotada. Além disso, descrevemos em detalhes os modelos de agir, a relação entre o professor e os alunos, a aplicação da SD e as inquietações e anseios que permearam o trabalho professor durante a realização da pesquisa. Ao final, elaboramos sugestões ao professor para seu trabalho em 89 sala de aula com gêneros textuais, contribuindo, assim, com algumas possibilidades de trabalho com gêneros textuais em sala de aula. Palavras-chave: Interacionismo Sociodiscursivo, Sequência Didática, Artigo de Opinião, Diário de Campo. PEREIRA, Cristiane Cardoso Maia. A formação matemática de professores polivalentes em início de carreira nos anos iniciais do ensino fundamental. 2012. 116 p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Adair Mendes Nacarato. A presente pesquisa teve o objetivo de investigar o início da carreira, bem como a formação profissional do professor que ensinará matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, aspectos sobre os quais se centram as discussões teóricas. Partimos do pressuposto de que a reduzida carga horária destinada à Metodologia do Ensino de Matemática no curso de Pedagogia não possibilita ao futuro professor construir um repertório de saberes profissionais para o ensino dessa disciplina e de que muitos, nos primeiros anos de docência, tendem a reproduzir práticas vivenciadas quando estudantes. A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi realizada com alunas concluintes e egressas de um curso de Pedagogia de uma instituição privada do estado de São Paulo e reuniu dados por meio dos seguintes instrumentos: 1) respostas a um questionário aplicado às referidas alunas; 2) entrevistas semiestruturadas, realizadas com seis egressas do mesmo curso; 3) observações de aulas de duas professoras no primeiro ano de docência; 4) diário de campo da pesquisadora; 5) transcrição das entrevistas. Os resultados apontam que essas graduandas, egressas do Ensino Médio em escolas públicas, trazem experiências negativas em relação à Matemática e avaliam que a formação oferecida no curso de Pedagogia não lhes deu segurança para ensinar essa disciplina. Duas professoras em início de carreira viveram dilemas quanto ao contexto de trabalho, e a Matemática ficou relegada a um plano secundário, pela necessidade de sobrevivência na profissão. Muitos desafios são postos a esses profissionais: falta de estabilidade profissional; mudanças constantes de escolas e de turmas; falta de apoio das equipes gestoras e dos pares nas escolas nas quais atuam. Uma das professoras investigadas revelou indícios de uma postura mais crítica em relação à profissão docente e criou formas de sobreviver, mesmo em condições adversas de trabalho. Palavras-chave: Formação docente em matemática. Curso de Pedagogia. Início de carreira. RODRIGUES, Daniel Santini. A filosofia no currículo do ensino médio: aspectos discursivos nos documentos oficiais. 2012. 118p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Jackeline Rodrigues Mendes. O processo de discussão e de incorporação da Filosofia no currículo escolar trata-se da reimplantação de uma disciplina que por muito tempo ficou ausente na maioria das instituições de ensino. Tendo deixado de ser obrigatória em 1961 (Lei n. 4.024/61) e sendo, em 1971 (Lei n. 5.692/71), excluída do currículo escolar oficial, criou-se um hiato em termos de seu amadurecimento como disciplina. E embora na década de 1990, através da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96) se tenha determinado que ao final do ensino médio o estudante deva “dominar os conteúdos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (LDB n. 9394/96, art. n. 36), nem por isso a Filosofia passou a ter um tratamento de disciplina, como os demais conteúdos, mantendo-se no conjunto dos temas ditos transversais. Somente com a lei nº. 11.648, de 2008, que a Filosofia reaparece como disciplina obrigatória no Currículo do Ensino Médio. Sendo assim, o presente trabalho objetiva discutir as relações de poder-saber que permearam a questão da Filosofia no currículo do Ensino Médio. Para isso, este trabalho pretende, a partir de uma análise discursiva, problematizar o movimento relativo à discussão em torno do ensino de Filosofia no Ensino Médio tendo como corpus de análise os seguintes documentos oficiais: Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, no capítulo referente ao Ensino de Filosofia. Diante desse quadro, o presente trabalho tem como questões norteadoras de pesquisa: Quais as relações de poder-saber que permearam a questão do ensino de Filosofia no currículo do Ensino Médio? De que forma estas relações apontam para um tipo de sujeito do currículo? Para a discussão e problematização desta pesquisa, este trabalho fundamentar-se-á nos estudos no campo do Currículo, numa perspectiva pós-crítica, e na analítica discursiva de Foucault (1995, 2003, 2008), principalmente com seus conceitos de discurso, relações de poder-saber e sujeito. Palavras-chave: Ensino de filosofia. Currículo. Análise discursiva. 90 SERAPHIM, Robinéia da Costa. O sujeito entre o desejo e o excesso: a escrita de si por adolescentes em aulas de arte. 2012. 181p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Márcia Aparecida Amador Máscia. Considerando-se o crescente número de problemas enfrentados pelo sistema educacional contemporâneo em virtude das radicais transformações sócio-culturais, decidimo-nos voltar para a questão da ausência de limites dos adolescentes. Este trabalho tem como objetivos levantar os efeitos de sentido presentes em relatos de adolescentes que apontam para a constituição de subjetividades, bem como apontar as suas marcas discursivas e rastrear qual tipo de sujeito prevalece: o sujeito do desejo ou o sujeito do excesso. O corpus analisado constituiu-se de relatos de processo de criação em artes visuais presentes em diários de adolescentes, bem como o produto final desses relatos de processo, ou seja, o objeto de arte. Nossa pesquisa sustenta-se pelos pressupostos teóricos que embasam os estudos das transformações sócio-culturais, de pensadores como Hall, Bauman e Lipovetsky. Enquanto isso, Foucault nos mostra o que resta ao sujeito atravessado por essas transformações em sua terceira fase, a escrita de si. Também valemo-nos de alguns insights psicanalíticos embasados nos pensamentos de Birman e Forbes para buscar compreender as conseqüências das transformações sócio-culturais para as mudanças nos mecanismos psíquicos que levaram os sujeitos a ter uma nova relação com a falta. Para a análise dos dados, velemo-nos dos pressupostos da Análise do Discurso Francesa de Michel Pêcheux que entende o discurso como uma malha composta pela história, pela ideologia e pelo inconsciente. Os resultados de nossa pesquisa demonstram que o sujeito da educação contemporânea é um sujeito ambivalente, que ora é excesso e ora é desejo/excesso. Verificamos, portanto, que na educação, jamais teremos um sujeito que se mostre plenamente desejante como na época moderna e como ainda concebe a educação na contemporaneidade. Palavras-chave: sujeito; escrita de si; adolescência; análise do discurso; arte. SILVA, Márcia Lázara Pinheiro. Gracejos e artimanhas como Jogos Discursivos na Feira Livre: Contribuições para se pensar os saberes e os processos de aprendizagem na prática social de venda e compra. 2012. 96p. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Universidade São Francisco, Itatiba/SP. Orientadora: Jackeline Rodrigues Mendes. A feira livre pode ser entendida na contemporaneidade como um espaço social-educativo não formal, permeado por saberes, possíveis de denotar significação as práticas educacionais formais. Desse modo, o presente trabalho, discute como se engendram esses saberes no contexto da feira livre e adota como eixo norteador as relações de poder-saber (Michel Foucault) por meio do discurso proferido pelo sujeito feirante, como figura de integração, interação e convencimento na contemporaneidade. Outro fator significativo é entender como se alicerça essa comunhão de sujeitos, os feirantes, diante das relações capitalistas e da Globalização que regem as relações sociais, políticas e econômicas na atualidade, e a forma como os sujeitos feirantes conduzem essa dinâmica para manter a feira livre ávida frente às diversas possibilidades que acometem todos os sujeitos pós-modernos. E, a partir desse tocante, presenciar a cena e o acontecimento por meio do estudo etnográfico e pensar a feira livre como uma comunidade alicerçada sob os usos e costumes (Thompson, 1998) e sobre a prática (Wenger, 1998). Logo, a pesquisa se fundamenta nas teorias pós-criticas e, na análise do discurso a partir de Michel Foucault e de seus sistemas conceituais sobre o discurso, o sujeito, a linguagem e o poder-saber. Palavras-Chave: Jogos Discursivos, Comunidade, Sujeito, Poder-Saber. 91 Normas para publicação I. Tipos de colaborações aceitas pela revista Horizontes Trabalhos originais relacionados à Educação em suas vertentes históricas, culturais e práticas educativas que se enquadrem nas seguintes categorias: 1. Relatos de pesquisa, entre 20-25 laudas padrão, especificadas no item IV; 2. Estudos teóricos, entre 15-20 laudas padrão; 3. Entrevistas e/ou depoimentos de pesquisadores e estudiosos de reconhecida relevância no meio acadêmico nacional e internacional, entre 10-15 laudas padrão; 4. Revisão crítica da literatura: análise de um corpo abrangente de investigação, relativa a assuntos de interesse para o desenvolvimento da Educação nas vertentes assinaladas anteriormente, limitada a 15-20 laudas padrão; 5. Resenha: revisão crítica de obra recém-publicada, orientando o leitor quanto a suas características e usos potenciais, até 5 laudas padrão. 1. Seleção de artigos: originais que se enquadrem nas categorias 1 a 5 acima descritas serão avaliados quanto à originalidade, relevância do tema, qualidade da produção, além da adequação às normas editoriais adotadas pela revista. Serão aceitos para análise pressupondo-se que todas as pessoas listadas como autores aprovaram o seu encaminhamento com vistas à publicação. 2. Critérios relevantes para publicação a) Ineditismo do material: o conteúdo do material enviado para publicação não deverá ter sido publicado anteriormente. Os conteúdos e declarações contidos nos trabalhos são de total responsabilidade dos autores. b) Revisão por pareceristas: os trabalhos enviados serão apreciados pelo Conselho Editorial, que poderá fazer uso de consultores ad hoc, a seu critério. Os pareceres dos consultores comportam três possibilidades: a) aceitação integral; b) aceitação com reformulação; c) recusa integral. Os autores serão notificados da aceitação ou recusa de seus artigos, sempre que possível. Os originais, mesmo quando recusados, não serão devolvidos. Revisão de linguagem poderá ser feita pelo Conselho Editorial da revista. Quando este julgar necessárias modificações substanciais que possam alterar a idéia do autor, este será notificado e encarregado de fazê-las, devolvendo o trabalho reformulado no prazo máximo de um mês. 3. Direitos autorais: os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à revista Horizontes. A reprodução total dos artigos desta revista em outras publicações, ou para qualquer outra utilidade, está condicionada à autorização escrita do(s) editor(es). Pessoas interessadas em reproduzir parcialmente os artigos desta revista (partes do texto que excederem 500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deverão ter a permissão escrita do(s) autor(es). Manuscritos submetidos que contiverem partes de texto extraídas de outras publicações deverão obedecer aos limites especificados para garantir originalidade do trabalho submetido. Recomenda-se evitar a reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações e, se não for possível, o manuscrito só será encaminhado para análise se vier acompanhado de permissão escrita do detentor do direito autoral do trabalho original para a reprodução. Em nenhuma circunstância os autores citados nos trabalhos publicados nesta revista repassarão direitos assim obtidos. 4. Língua: Os trabalhos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa. 5. Exemplares: Será oferecido 1 (um) exemplar da revista para cada autor ou co-autor da revista. 6. Notas sobre o(s) autor(es): incluir uma breve descrição (30-40 palavras) sobre as atividades atuais do(s) autor(es) e sobre a sua formação. II. Como enviar artigo aos editores 92 O trabalho para publicação deverá ser enviado aos editores da Horizontes nos seguintes endereços eletrônicos: História, Historiografia e Idéias Educacionais Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected] Linguagem, Discurso e Práticas Educativas Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected] Matemática, Cultura e Práticas Pedagógicas Profa. Dra. Profª. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected] III. Forma de apresentação dos manuscritos Os manuscritos serão aceitos em língua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa. Normas de publicação: a revista adota normas de publicação da ABNT. Formatação: os artigos devem ser digitados em espaço duplo em fonte tipo Times New Roman ou Arial, tamanho 12. 3.1 Título completo na língua em que o manuscrito foi preparado. 3.2.Título completo em inglês, compatível com o título na língua em que o manuscrito foi preparado. 3.3. Nome de cada um dos autores. 3.4. Afiliação institucional de cada um dos autores (incluir apenas o nome da universidade e a cidade). 3.5. Nota de rodapé com agradecimentos dos autores e informação sobre apoio institucional ao projeto, se necessário. 3.6. Nota de rodapé com endereço eletrônico. 3.7. Resumo na língua em que o manuscrito foi preparado e que deve ter no máximo 150 palavras. 3.8. Após o resumo, fornecer de 3 a 5 palavras-chave na língua do manuscrito, em letras iniciais minúsculas e separadas com ponto-e-vírgula. 3.9. Resumo em inglês (abstract). 3.10. Keywords compatíveis com as palavras-chave. Observação: A Horizontes tem, como procedimento padrão, fazer revisão final do abstract, reservando-se o direito de corrigi-lo, se necessário. No entanto, recomenda-se que os autores solicitem a um colega bilíngüe que revise o abstract, antes de submeter o manuscrito. Este é um item muito importante do trabalho, pois em caso de publicação será disponibilizado em todos os indexadores da revista. IV. Estrutura do texto 4.1. Notas. Devem ser evitadas sempre que possível. No entanto, se não houver outra possibilidade, devem ser indicadas por algarismos arábicos no texto e listadas, após as referências, em página separada e intitulada de Notas. 4.2 Citações dos autores. As citações de autores deverão ser feitas de acordo com as normas da ABNT 93 Summary of the Instructions Subscription of papers Original papers related to Education in the following perspectives: historical, cultural and educative practices. Papers can be written in Portuguese, English, French or Spanish. 1. Format: · Title; · Name of the author(s) and affiliation; · Abstract in the first language – around 150 words; · Key-word; · Abstract in another language – around 150 words; · key-words in another language; · The text should include: Introduction, Development, Conclusion, Endnotes, and References (according to ABNT); · Include at the end the author’s bio-data. 2. The length of the paper should be around 20 pages. 3. Double-spaced typewritten copy (12-point font, Times new Roman, Courier New or Arial). Papers should be sent to: Profa. Dra. Paula Leonardi: [email protected] Profa. Dra. Jackeline Rodrigues Mendes: [email protected] Profa. Dra. Alexandrina Monteiro: [email protected] 94