2002-08 Relatos de riberinhos e periferias R

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2002-08 Relatos de riberinhos e periferias R
Relato de Ribeirinhos e Periferias Urbanas (Cláudia e Paco) – 2002-08
... Terça-feira, sol escaldante. Chego na casa de dona Rita de Cássia. Já fazia algum tempo que
eu não a via. Sabia que o pai dela estava doente no interior. Fui saber como era que estava e
tomei conhecimento que ele havia morrido e que, o esposo dela também havia morrido fazia
poucos dias. O desespero era grande, pois ele era a única fonte de renda da família... Dona Rita
ficou com 9 filhos, sendo 4 ainda pequenos. Estão "sobrevivendo" da ajuda de uns e outros... Saí
de lá pensativa, tentando novamente entender onde está a paternidade de Deus. Vendo a
pobreza das famílias, não dá para imaginar as pessoas terem coisas para ajudar a sustentar esta
mulher viúva com seus filhos...
Tomei o rumo de outra casa. Era quase a hora do almoço. Ouvi na 'voz comunitária' (alto-falante)
um pedido de ajuda para outra mulher, também viúva, com 4 filhos, que pedia comida. Novamente
pensei, como vamos ajudar se ninguém têm?... Qual foi a minha surpresa: O bairro parecia estar
em plena gincana. Só se via crianças com pacotinhos nas mãos, correndo em direção à 'voz'...
Fiquei emocionada ao ver a solidariedade do povo com o povo. Só entende a fome quem passa
fome! Só entende o desespero de uma mãe ao ver seu filho chorar de fome, a outra mãe com a
situação semelhante!... Neste momento, eu pude entender que Deus não estava em silêncio.
Pelo contrário, gritava em forma de solidariedade e esperança. E entendi que era eu que, além
de não ouvir, também não via, não percebia esses sinais tão visíveis!... E tive certeza absoluta
que este povo das periferias, excluídos do mundo, da sociedade manauara, dos planos políticos,
são os preferidos de Deus!
Essas e muitas outras histórias de dores, miséria, fome, descaso, mas também de muita
esperança, é que me fizeram rir e chorar, desanimar e voltar a acreditar que o Reino de Deus
existe e que estou ajudando a construí-lo, sendo presença gratuita, simples, questionadora,
procurando ser fiel aos meus objetivos e aos objetivos da nossa pequena Equipe Itinerante!
Cláudia e Paco
Relato de agosto de 2002
O local, à primeira vista para quem olha de fora, é degradante e de aspecto feio.
Geograficamente muito acidentado e de terreno arenoso. A miséria está estampada nos casebres
pequenos, nos rostos das crianças e dos adultos. Nestes últimos dois anos em que visitamos este
lugar, não parece haver melhora externa alguma nas moradias, ruas ou bairro no seu conjunto.
A pergunta que vêm repetidas vezes à nossa mente é: "Como estas famílias se
sustentam?". Pois a imensa maioria está sem emprego e com muitas crianças. Com tudo, o que
não falta é o sorriso destas pessoas, particularmente das crianças, como se nada houvesse de
errado...
Esta área ainda está a mercê da malária e do dengue. Sempre encontramos pessoas
doentes entre as famílias que visitamos.
Dado curioso é a quase ausência de móveis dentro das casas. Porém, a televisão está
presente em 99% delas.
Cada família, uma história, uma situação, uma benção e uma tragédia. Muitos casais
sobrevivendo unidos entre brigas, piadas sobre a própria situação e bem querer... uma mistura
incrível, um gosto pela vida impressionante.
Dentre as muitas decenas de visitas que realizamos, como exemplo, colocamos aqui
apenas algumas das muitas que nos chamaram a atenção :
Simone : Mulher jovem, casada, mãe de um menino. Muito serviçal, solidária com os vizinhos,
sempre ajudando no que pode tal como: cuidar dos filhos alheios quando a mãe precisa sair
(sempre têm outras crianças em casa); cuidar da casa de alguma vizinha doente; lavar a roupa
dos outros... Ela diz com um sorriso e total simplicidade: "Eu só posso ajudar se for assim!". É a
mulher para os demais.
Dona Emília : É uma senhora já de idade, simpática, com a aparência do povo andino peruano.
Têm na alma a nostalgia do passado quando vivia no interior com fartura e as bênçãos de Deus.
Mora num casebre muito pequeno que alaga com qualquer chuvisco, de modo que precisa colocar
no chão um plástico. Mora com ela um filho que teve a casa queimada, com a esposa e 3 filho
pequenos. Ela fica com as crianças durante o dia, enquanto os pais delas vão procurar trabalho.
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Não têm como não se comover com essa situação: não têm o mínimo para sobreviver e, mesmo
assim, ainda divide com os outros...
Guito (Egilson) : Pai de 6 crianças, que foi abandonado pela mulher que foi embora com outro
deixando as crianças com ele. Desempregado, mais um mistério de como consegue sobreviver e
alimentar seus filhos. A situação das crianças faz pena. A mais velha, de 9 anos, foi passar m final
de semana com a mãe e quase foi violentada pelo padrasto que lhe transmitiu 'gonorréia' (doença
venérea): ela nos pediu para rezar por ela na Missa, para ficar boa. Apesar da situação
deprimente, as crianças são alegres. Porém, o outro dia, perguntei à maior por que estava meio
triste e ela disse: "Estou com saudades da mãe!".
José Maria : Um homem, magro, envelhecido, de raça negra pura, com dois meninos de 8 e 10
anos. Os 3 com pneumonia! Ele foi abandonado pela mulher e labuta para sustentar seus
filhinhos. Já foi dançarino de Escola de Samba: nos mostra seus sapatos cintilantes e duas
grandes fotos onde ele dança como mestre-sala...:uma história prá contar... Sempre que voltamos
na casa dele, fica feliz. Trabalha à noite e deixa suas crianças dormindo e, quando sai durante o
dia, deixa as crianças na casa vizinha. Impressiona o carinho pelos filhos e a luta para sobreviver.
Edson e Elisabete : Pais de 7 filhos pequenos. São de Natal (RN). No casebre onde moram não
há nada a não ser 3 redes: nem móveis, nem vasilhas, nem comida. Seu Edson nos conta que foi
confundido com um ladrão no bairro e foi levado pela polícia, ficando preso durante um mês e
meio, sendo solto quando outras pessoas provaram que não era ele o culpado do roubo!
Seu Manoel e dona Maria : Uma das famílias que eram minhas vizinhas (de Paco) quando
morava no Igarapé do 40, e que encontrei por acaso... ou melhor, foi a Fabiane, de11 anos, que
me viu primeiro. É uma família com 9 filhos e esperando o décimo. O maior com 15 anos e a
maior com 12! Nesta casa dá vontade de ficar, principalmente pelo jeito meigo e acolhedor das
crianças. Para celebrar o nosso reencontro, não sabemos de onde (pois o pai está desempregado
mesmo com a cara sempre sorridente) apareceu um guaraná e dois copos. Eu, Claudia, senti,
neste momento, muitas emoções diferentes de tristeza, dádiva, desespero, angústia, lembranças
da minha infância com toda a fartura e o cuidado especial de minha mãe com meus cabelos e
roupas... e dava vontade de colocar cada uma daquelas meninas no colo e arrumar seus cabelos,
mas acho que não iria fazer diferença para elas. Eu, Paco, fiquei brincando e relembrando as
velhas mágicas que as crianças pediam para fazer uma e outra vez. E todos, felizes demais,
repartimos o guaraná que deu para todos. Quando saímos, eu, Cláudia, senti que levava toda a
angústia dessa má distribuição de rende em nosso pais... mas, no coração, o consolo de termos
deixado a esperança, a alegria e a promessa de voltar.
O primeiro fim de semana que fui para presidir a celebração da Eucaristia na Capela de Todos os
Santos (que fica do lado de cá do igarapé), eu, Paco, junto com Hugo (estudante jesuíta
paraguaio, que está passando 2 anos com a gente), fomos no Sábado com nossas redes na
intenção de dormir num quarto vazio de madeira cuja porta não fecha, na Pedreira (do lado de lá
do igarapé), perto da casa desta família. Quando chegou a noite, compramos ovos que a família
preparou com sua farinha e arroz, e todos comemos. Depois disseram: "Onde cabem 12, cabem
14. E você, Paco, sabe que no Igarapé do 40 a nossa casa era ainda menor. Vocês vão dormir
conosco!". E assim foi que, mais uma vez, experimentamos a hospitalidade ilimitada dos pobres.
Abraço grande como a Amazônia
Cláudia e Paco
Relato de agosto de 2002
QUARTO - Encontro Ribeirinho – Entre os dias 5 a 8 de setembro, realizou-se o XVIII Encontro
anual das Comunidades Ribeirinhas em Manaus. Os assim denominados, genérica e
historicamente, “Ribeirinhos” aqui no Norte do Brasil, tem uma experiência de luta de mais de 30
anos. A organização começou, à partir da necessidade de garantir “o peixe nosso de cada dia”,
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que a cada dia fica mais escasso e mais caro. Isso tem uma implicação social e política muito
ligada ao que hoje se chama de “Ecologia ou Preservação da Natureza” com altas repercussões
nacionais e internacionais. Aqui no Amazonas, a luta pela preservação de Lagos, já dura quase 20
anos. No Estado do Acre, o mais conhecido, é o dos extrativistas da borracha, que culminou com
o assassinato do ecologista, Chico Mendes, a mais de uma década. O povo “ribeirinho”, se
pergunta hoje, sobre sua própria Identidade, devido ao crescimento de sua consciência cultural,
política e social. O ribeirinho se vê desprovido de uma Entidade que tenha representatividade
Jurídica frente ao governo, no que se refere aos seus direitos culturais, políticos e sociais. O
Encontro que teve a participação de mais de 50 lideranças, tratou deste tema, ouvindo os relatos
das experiências locais, mas também a experiência de organização do Movimento Sem Terra e da
Confederação dos Pescadores do Pará e sua organização regional e nacional. Concluiu-se com a
proposta de um Seminário em 2003, sobre a “Identidade Ribeirinha”, como base para criação de
uma possível Entidade Representativa. A noite cultural ficou por conta da animação dos
participantes e do Grupo Musical “Raízes Caboclas” que deu um toque artístico à vida e à luta.
Odila e Paulo Sérgio
Relato de junho de 2001
A nossa proposta de uma evangelização nova e diferenciada nos leva a conhecer e acompanhar
periodicamente três das inúmeras invasões existentes em Manaus. Ao longo deste ano, pudemos
perceber que os moradores destas invasões na sua maioria são de outros Estados: Pará,
Maranhão, Ceará e quase todos procedem de pequenas cidades ou da zona rural. Não têm
profissões capazes de atender às exigências do mercado. Vieram tentar a sorte em Manaus,
vivem em sua maioria sem emprego fixo, sem dinheiro para voltar à terra natal. Os mais idosos
sentem muita dificuldade na educação dos filhos; estes não conseguem encontrar forças diante
das tentações e seduções da cidade; muitos quando não encontram uma ocupação caem com
facilidade nas investidas das galeras, da solidão, da depressão, das drogas, do álcool,...Sendo
assim, nossa intuição nos conduz à prática de visitas personalizadas e gratuitas, apoiando e,
sobretudo, ouvindo com carinho as frustrações, as alegrias, os sonhos e as esperanças do povo
que sobrevive nas invasões.
Nesses espaços geograficamente, todos acidentados, famílias se abrigam em casebres muito
simples, vivendo do que a vida lhes oferece, enfrentando corajosamente todas as dificuldades:
lama, distâncias, transporte e outras. Mas enfim é um povo lutador, perseverante e que acredita
em um mundo melhor.
Nossa percepção é que nosso jeito simples e despojado, sempre dispostos a dormir em qualquer
casa, a comer o que nos oferecem, tem despertado interesse e encantamento por parte dos
moradores, e nós acreditamos nesse jeito diferente de se colocar a serviço do reino. Porém, as
dificuldades e os desafios estão sempre presentes:
•
Como encontrar a metodologia certa para trabalhar em um ambiente tão complexo e em
constante mudança como as invasões?
•
Como enfrentar o ritmo frenético da cidade?
•
Como contribuir para o desenvolvimento de uma consciência mais crítica sem que se crie
clima de politicagem?
Cláudia e Paco
Relato de junho de 2001
O contato com as Comunidades, pessoas, famílias, foi de uma riqueza imensa. E mais uma vez
constatamos que o povo ribeirinho (que mora na beira dos rios e é chamado de “caboclo” para
distinguir dos indígenas) é o povo mais abandonado desta região amazônica! Problemas graves,
ainda não resolvidos mesmo, são: Saúde, Educação, Transporte, Comunicação, Economia
familiar, entre outros...
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Ficamos todo este tempo praticamente sem pisar em terra firme: do barco para as casas
flutuantes ou palafitas, visitando as famílias de canoa... Apenas 2 Comunidades estavam em terra
firme!
O que mais nos fez sofrer fisicamente foram os “Pium”, que são minúsculos insetos voadores que
picam para chupar o sangue, provocando coceira. Era raro o dia em que não éramos ferrados de
umas 50 a 100 vezes. Vimos muitas pessoas, principalmente crianças, cheias de feridas
inflamadas por causa das picadas infetadas. Ainda bem que ‘psicologicamente’ a gente se
acostuma e convive com isso.
Paulo Sérgio e Odila
Relato de outubro de 2002
Política e democracia para quem? Por aí passamos uns 30 dias visitando 12 comunidades. Era
tempo eleitoral e o assunto era política. “Aqui somos abandonados até mesmo em tempo de
política. Um ou outro vem por aqui e quando vem é para prometer tudo que precisamos:
escola, posto de saúde, transporte, luz, etc. Mas entra ano e sai ano e a vida continua no
mesmo ou pior”. Tivemos a oportunidade de constatar que, faltando um mês para as eleições,
em diversas comunidades a maioria das pessoas não sabiam, sequer o nome dos candidatos a
presidente e governador. Um ou outra sabia algum nome de candidato a deputado. De senador
ninguém. Imaginem na hora de votar em modernas urnas eletrônicas... e para 6 cargos!
Odila e Paulo Sérgio
Relato de outubro de 2002
O mundo das periferias é muito duro, violento, deprimente até. As famílias estão em sua
maioria desfeitas, magoas acumuladas que se transformam em vícios, muitas e muitas vezes
encontramos pessoas desesperadas e afogadas em meio aos seus problemas precisando apenas
que alguém lhes ouça como amigos...
... A família de dona Marina é composta por cinco membros. Ela é uma senhora, de saúde
frágil, que durante muito tempo teve problemas com a traição do marido Elias. A conhecemos na
comunidade Santa Clara e começamos a dar-lhe atenção, ouvir seus lamentos e freqüentar sua
casa,, dormir e comer com a família. Até que um dia ela muito feliz nos diz “ o Elias falou que
agora ele tem que mudar pois temos amigos da igreja que visitam nossa casa”. E assim parece
que foi.
Na Comunidade Santa Clara há três anos atras reuniam-se 4- 5 pessoas em um terreno ao
ar livre para rezar juntos e a animadora Cileuza queria desanimar. Iniciamos então as visitas
gratuitas, não para convidar para a igreja e sim para conhecer as famílias, nos interessar e fazer
amizade com elas.
...As pessoas começaram a gostar do nosso jeito simples, despojado, não interesseiro e
diziam “se vocês são assim tão `legais` e estão na igreja, o que tem lá deve ser bom”. Hoje a
Comunidade está muito viva e muitas das pessoas que participam dela foram visitadas por nós. A
Comunidade já caminha firme com seus próprios pés, por isso, já não se faz necessário a nossa
presença permanente e sim, apenas, quando pede alguma assessoria e, claro, quando a saudade
das amigas e amigos aperta.
Paco e Cláudia
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