A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em Aberto

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A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em Aberto
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A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em
Aberto - por Samuel Belk
1- INTRODUÇÃO
Entre os estudiosos modernos para os quais o sujeito é o
tema central, a Ética é quase o sinônimo da moralidade. A
Ética é um princípio para o julgamento das práticas de um
sujeito seja ele individual ou coletivo. Ela no entanto está
relacionada com o tipo de sociedade, a época e as
circunstâncias na ocorrência dos fatos.
Como poderia ser julgado o comportamento ético daqueles
que povoaram os guetos e seus órgãos diretivos judaicos, os
Yudenrat, os prisioneiros dos campos de concentração, os
que realizavam trabalhos burocráticos, os que ocupavam
funções de comando, como os Kapos, autores de atrocidades
indiscriminadas, sem antes analisar o que estava sucedendo
e a situação a que estavam submetidas as vítimas?
Samuel Belk
Para Primo Levi, os prisioneiros passaram a desempenhar
tarefas que lhes foram determinadas pelos opressores, no
entanto ele considera que a culpa máxima recai sobre o
sistema, o estado totalitário, e que o concurso dos
colaboradores singulares, grandes ou pequenos é sempre
difícil de avaliar, pois existem atenuantes para os que
poderiam ser considerados culpados.
“Segundo ele ainda, se fosse obrigado a julgar, absolveria
facilmente aqueles cujo concurso para o crime foi mínimo e
sobre os quais a coação foi máxima”.
Por aí se tem uma idéia das dificuldades que surgem, ao se
analisar a ética das vítimas do holocausto.
2-A ÉTICA JUDAICA
Um princípio formulado por Maimônides, filósofo e
codificador das leis judaicas de há muitos séculos afirmava
que “se os pagãos declararem aos judeus: dê-nos um de
vocês para matar, caso contrário mataremos todos vocês.
Neste caso é certo que todos seriam mortos e nenhuma
alma viva seria salva
A política de salvar alguns judeus, entregando outros ao
sacrifício foi considerado um caso clássico de aplicação dos
princípios de Maimônides e para os quais no entanto, foram
sendo dadas interpretações diferentes.
O rabino de Kovno, Abraham Shapiro, por exemplo,
prescreveu que se uma comunidade judaica for condenada
por destruição física e havendo possibilidade de salvar parte
dela, os líderes da comunidade devem ter a coragem de
assumir a responsabilidade de salvar, o que for possível.
Em contraste com esta opinião, o Rabinato de Vilna, afirmava
que “os que participaram da seleção de entrega de um
pequeno número de judeus, salvando os demais da morte”
podem eventualmente ser considerados culpados, pela
atitude tomada.
De qualquer modo, segundo Trunk, os Conselhos Judaicos
não tiveram substancial influência no resultado final do
Holocausto. Na Europa Oriental é difícil considerar como
culpada, na deportação de judeus, à totalidade dos membros
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dos Conselhos Judaicos, embora a culpabilidade de alguns de
seus membros possa ser objeto de apuração.
3-A ÉTICA DO PERÍODO BÍBLICO
O comportamento ético do povo judeu tem sido
acompanhado e estudado durante muitos séculos, mesmo
antes da conquista de Canaã, durante o seu estabelecimento
na Terra Prometida, bem como após a destruição do Primeiro
e Segundo Templo e em sua dispersão pela diáspora.
Um exemplo ocorrido na Antigüidade é ilustrado no poema
“No país das Pirâmides” de autoria do poeta David Edelstadt,
ele homenageia o patriarca Moishe Rabeinu (Moisés), e
critica o comportamento dos judeus, escravos no Egito, por
não terem tomado nenhuma iniciativa contra seus
opressores, durante o longo cativeiro em que estiveram
envolvidos.
4-A ÉTICA NA ANTIGUIDADE
Outro caso ocorrido ao longo de nossa história é o de
Massada, durante o domínio da Palestina pelo Império
Romano. Após a queda de Jerusalém, um grupo de quase
mil judeus conseguiu deixar a cidade antes de sua conquista
pelos romanos e refugiou-se no topo de uma montanha, em
pleno deserto, nas ruínas de uma fortaleza construída por
Herodes. Neste local ofereceu resistência aos soldados
romanos, que os sitiava.
Vendo que a resistência era inútil, os refugiados foram
persuadidos pelo seu chefe Eleazar Ben Yair a se
“suicidarem” em lugar de se entregarem aos romanos, e
serem por eles mortos.
O “suicídio”, no entanto teria decorrido da seguinte maneira:
Todos mataram as esposas e filhos, e depois escolheram 10
entre eles, que tiveram a incumbência de matar um ao
outro, juntando-se então aos cadáveres de seus familiares.
O fato de Yair convencer os defensores de Massada de que
eles seriam mortos pelos romanos também não está
comprovado uma vez que os romanos utilizavam prisioneiros
judeus como escravos, que estavam construindo exatamente
as rampas de acesso à Fortaleza.
Este tema foi abordado por um documentário exibido na TV a
cabo e levanta o seguinte problema ético: Houve suicídio em
Massada ou assassinato? Depois de tanto tempo passado,
não há até hoje uma resposta adequada, senão aquela
clássica, considerando o acontecimento como um ato de
heroísmo, continuando assim o assunto em aberto.
5-A ÉTICA NO HOLOCAUSTO
Mais recentemente estava sendo discutido o comportamento
do povo judeu durante o Holocausto. Muitos historiadores
eminentes, incluído Raul Hilberg, declararam que os judeus
foram em parte culpados pela sua própria destruição.
6- UM POUCO DE HISTÓRIA
Para analisar esta proposição se faz necessário uma
reconstituição histórica do período do Holocausto. Podemos
tomar como exemplo dois grupos distintos como os judeus
alemães e os judeus do Leste Europeu, especialmente
poloneses que constituíram a maioria das vítimas.
Os judeus que viviam na Alemanha, durante o Terceiro
Reich eram em geral altamente assimilados, falavam alemão
e estavam entrosados dentro da sociedade, não usavam
roupas diferenciadas e muitos deles não eram observantes
da religião
As primeiras discriminações contra os judeus alemães pelos
nazistas se iniciaram na década de 30, com o afastamento
de professores das universidades, a proibição de exercerem
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funções públicas, atividades comerciais, profissões liberais,
freqüentar lugares públicos e outras medidas inimagináveis.
Por volta de 1938, membros das SS e grupos nazistas deram
início a uma série de pogroms em toda Alemanha, com
incêndio de sinagogas, casas comercias, depredação e saque
de residências judaicas, prisões e segregação de judeus em
guetos. Foram destruídas centenas de lojas e fábricas, o que
resultou em grande número de mortes e. Cerca de 20.000
pessoas foram enviadas para campos de concentração.
Excluídos das atividades sócio econômicas, cerca de 300.000
judeus conseguiram emigrar da Alemanha, representando
mais de 50% dos judeus alemães.
Os que ficaram não tiveram condições de deixar a Alemanha,
uma vez que a totalidade dos países americanos fechou os
seus portos para emigrantes judeus alemães.
Podemos, pois, afirmar que os judeus alemães entenderam
bem o recado dos nazistas, tanto que muitos conseguiram
emigrar. Os que ficaram também teriam emigrado se
tivessem tido esta oportunidade.
Os judeus do Leste Europeu tiveram um comportamento
diferenciado. Eles se encontravam num atraso social,
cultural e econômico, Usavam a língua ídish, as vestes
tradicionais, eram observantes da religião e viviam isolados
em pequenas comunidades.
Até então, apesar de sofrerem esporadicamente pogroms da
população católica fortemente anti-semita e das diversas
ocupações da Polônia, pela Rússia, Alemanha e Estados
Bálticos, viviam e se acostumavam com a proteção das
autoridades constituídas, de modo que a conquista do país
pelos alemães, em 1939, foi considerada como mais uma das
ocupações, nas quais os judeus se davam bem, das muitas
que a Polônia sofreu.
A oportunidade de emigração para eles em número superior
a 3.000.000 não foi concedida pelos nazistas, como tiveram
inicialmente os judeus alemães. Ao contrário, lhes foi
totalmente proibida a emigração, face ao Regulamento
Proibindo a Emigração Judia do Governo Central, datado de
1940.
Após a tomada da Polônia, numa fulminante ofensiva que
durou menos de um mês os judeus poloneses foram então
concentrados em guetos, em precárias condições de higiene,
em total promiscuidade, por excesso de população, falta de
alimentos e meios de sustento.
No gueto de Varsóvia, criado em novembro de 1939, foram
encurraladas mais de 400.000 pessoas, em um lugar onde
cabiam somente 35.000, em condições normais. Também
foram instalados guetos em um grande número de cidades
polonesas.
Alojados em guetos fechados, sem nenhum contato com o
exterior, não podiam tomar conhecimento da Solução Final,
iniciada em 1942, pois eram enganados pelos alemães, que
escondiam o destino das vítimas, Mas apesar de tudo isto
houve um grande número de revoltas, sem muito resultado,
diante de um exercito armado, com os mais modernos
equipamentos..
Em Auschwitz, por exemplo, muitos escritores judeus que
tomaram parte dos Sonderkomandos ( trabalhadores nos
fornos crematórios) eram na realidade ativistas do
movimento subterrâneo. Entre eles se encontrava Zalmen
Gradovski. que dirigiu uma revolta no crematório número 4 e
acabou sendo enforcado. Ele deixou um grande número de
documentos, que enterrou perto de Auschwitz,
posteriormente encontrados. Neles, descreve sua vida desde
o gueto, a deportação, sua chegada a Auschwitz e seu
trabalho no Sonderkomando.
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Em todas as cidades polonesas a população judaica, era
governada por entidades denominadas Kehilot. Os nazistas
passaram a aproveitar estas entidades, conhecidas
posteriormente por Conselhos Judaicos (Yudenrat) para
controlar os judeus do gueto e impor suas ordens.
O judeu Chaim Rumkovski, que os nazistas colocaram como
governador do gueto de Lodz, organizou a polícia, cortes de
justiça, prisões, escolas, hospitais e oficinas de trabalho, que
produziam artigos manufaturados para os alemães em troca
de alimentos e matérias primas.
No entanto, quando em setembro de 1942 os alemães
exigiram a deportação do gueto das crianças com menos de
10 anos e dos anciãos com mais de 65 anos de idade,
Rumkovski solicitou às mães a entrega dos seus filhos e
justificando que, com isso, salvaria o resto da população.
Sobre este episódio assim ele se manifestou:
Fiz de tudo para anular a amarga sentença e sugeri que em
lugar dos idosos retirassem apenas as pessoas doentes, pois
no gueto havia muita gente tuberculosa, cujos dias estavam
contados...Sei que é um plano satânico mas não posso deixar
de propô-lo para poder salvar as pessoas sãs. As crianças
foram retiradas das casas pela polícia judaica e entregues
aos alemães.
Um observador judeu do gueto escreveu em setembro,
posteriormente à deportação:
A evacuação das crianças e dos anciãos se tornou uma
realidade. A. polícia judaica executou a retirada das pessoas
de suas casas. Por sua vez a retirada deles do gueto foi feita
pela polícia nazista. As crianças eram carregadas em
carretas puxadas por cavalos. Eles nunca tinham visto
cavalos de verdade e esperavam um passeio alegre
Rumkovski aceitou a imposição dos nazistas de deportação
seletiva dos judeus do gueto, isto é, ele decidia quem ia
viver e quem ia morrer enquanto outros dirigentes ao
contrário, quando não havia outra alternativa, achavam
melhor não colaborar e deixar o problema exclusivamente
para os alemães. Neste caso ficavam sujeito a sanções ou se
suicidaram, como fez o dirigente do Yudenrat do gueto de
Varsóvia, Adam Czerniakow.
O veredicto de culpado ou não, é uma matéria a ser
considerada para cada caso individual, pois os dirigentes se
comportavam em função das possíveis reações dos alemães
e a decisão era individual, não coletiva dos Conselhos
Judaicos.
Em razão desta situação, muitos dirigentes sobreviventes do
Holocausto, foram levados às cortes de Israel, porém a
discussão no tribunal e os debates pouco contribuíram para
definir uma posição.
A Suprema Corte de Jerusalém adotou uma posição
“benevolente” em relação ao assunto em pauta, quando
absolveu Hirsch Birnblat, antigo chefe da polícia judaica de
uma cidade polonesa e que tinha sido condenado à pena de
5 anos de prisão, por uma corte distrital. O mesmo
aconteceu com o Dr. Karstner, um líder judeu da Hungria
que conseguiu salvar mais de 1.500 jovens, enquanto
deportava outros milhares para os campos de extermínio. Ele
foi julgado em Israel pelo crime de colaboração, porem foi
absolvido em 1958.
7- CONCLUSÃO
Diante dessas considerações, verificamos que, embora a
responsabilidade moral das vítimas pelo Holocausto esteja
restrita às pessoas individualmente, ainda assim a apuração
da culpabilidade não é fácil e as opiniões dos diversos
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autores são contraditórias.
Embora muitos judeus tivessem colaborado com as
autoridades nazistas, sua culpabilidade tem atenuantes. O
nacional socialismo exerceu um poderoso poder de corrupção
do qual foi difícil de escapar. Segundo a opinião de Primo
Levi. a máxima culpa recai sobre o Estado totalitário. O
concurso do crime por parte dos colaboradores singulares
grandes e pequenos é sempre difícil de avaliar,
Assim, podemos concluir que a resposta à proposição de que
os judeus, que colaboraram com os alemães, seriam
culpados, está muito longe de ser respondida. O problema da
ética do caráter merece uma análise muito mais profunda
pelas suas dificuldades historiográficas, pela necessidade de
maior número de pesquisas e ainda, face às divergências de
opiniões entre autores, historiadores e a própria justiça de
Israel.
O grande poeta Hersh Leivik afirmava: “Eu não estive lá”
Será que é possível julgar seres humanos submetidos a
condições extremamente desumanas por parâmetro normais
de ética e moral?
Prevalece o humano ou o instinto animal de sobrevivência?
Qual é o limite de resistência? Também são questões em
aberto.
Poderá realmente haver uma resposta?
É o que esperamos.
Bibliografia
1- ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém. S. Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
2- BADIOU, Alain. La Etica,Ensaio sobre la consciencia del
Mal. (Rio de Janeiro, Relume- 1995
3--GANN, Ernest. Massada, Fortaleza Heróica. Rio de
Janeiro: Editora Record-1970.
4- JONES, David H. Moral Responsability in the Holocaust: a
Study in the Etics of Character. Boston: -Rowman and
Littefield, 1999.
5--LEVI, Primo. Os afogados e sobreviventes. S.Paulo:
Editora Paz e Terra, 1990.
6--TRUNCK, Isaiah. Judenrat:The Jewish Councils in Eastern
Europe under Nazi Occupation. New York: The Macmillan
Comp, 1972.
*Samuel Belk, Engenheiro de Segurança do Trabalho e
Engenheiro Civil, Mestre em Letras pela Faculdade Filosofia,
Letras e Ciência Humanas da USP, Roteirista e Diretor de
shows de musica judaica.
EMail: [email protected]
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