A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em Aberto
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A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em Aberto
Arquivo Histórico Judaico Brasileiro 1 de 5 http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=06.03.00.00&npr=39&pg= DOAÇÃO DE DOCUMENTOS HOME Notícias Eventos AHJB na Tribuna Judaica ARQUIVO NÚCLEOS IMIGRAÇÃO PARCERIAS PUBLICAÇÕES SÓCIOS NOTÍCIAS CONTATO BUSCA Veja em nosso acervo A Ética das Vítimas do Holocausto - Um Problema em Aberto - por Samuel Belk 1- INTRODUÇÃO Entre os estudiosos modernos para os quais o sujeito é o tema central, a Ética é quase o sinônimo da moralidade. A Ética é um princípio para o julgamento das práticas de um sujeito seja ele individual ou coletivo. Ela no entanto está relacionada com o tipo de sociedade, a época e as circunstâncias na ocorrência dos fatos. Como poderia ser julgado o comportamento ético daqueles que povoaram os guetos e seus órgãos diretivos judaicos, os Yudenrat, os prisioneiros dos campos de concentração, os que realizavam trabalhos burocráticos, os que ocupavam funções de comando, como os Kapos, autores de atrocidades indiscriminadas, sem antes analisar o que estava sucedendo e a situação a que estavam submetidas as vítimas? Samuel Belk Para Primo Levi, os prisioneiros passaram a desempenhar tarefas que lhes foram determinadas pelos opressores, no entanto ele considera que a culpa máxima recai sobre o sistema, o estado totalitário, e que o concurso dos colaboradores singulares, grandes ou pequenos é sempre difícil de avaliar, pois existem atenuantes para os que poderiam ser considerados culpados. “Segundo ele ainda, se fosse obrigado a julgar, absolveria facilmente aqueles cujo concurso para o crime foi mínimo e sobre os quais a coação foi máxima”. Por aí se tem uma idéia das dificuldades que surgem, ao se analisar a ética das vítimas do holocausto. 2-A ÉTICA JUDAICA Um princípio formulado por Maimônides, filósofo e codificador das leis judaicas de há muitos séculos afirmava que “se os pagãos declararem aos judeus: dê-nos um de vocês para matar, caso contrário mataremos todos vocês. Neste caso é certo que todos seriam mortos e nenhuma alma viva seria salva A política de salvar alguns judeus, entregando outros ao sacrifício foi considerado um caso clássico de aplicação dos princípios de Maimônides e para os quais no entanto, foram sendo dadas interpretações diferentes. O rabino de Kovno, Abraham Shapiro, por exemplo, prescreveu que se uma comunidade judaica for condenada por destruição física e havendo possibilidade de salvar parte dela, os líderes da comunidade devem ter a coragem de assumir a responsabilidade de salvar, o que for possível. Em contraste com esta opinião, o Rabinato de Vilna, afirmava que “os que participaram da seleção de entrega de um pequeno número de judeus, salvando os demais da morte” podem eventualmente ser considerados culpados, pela atitude tomada. De qualquer modo, segundo Trunk, os Conselhos Judaicos não tiveram substancial influência no resultado final do Holocausto. Na Europa Oriental é difícil considerar como culpada, na deportação de judeus, à totalidade dos membros 22/2/2010 15:52 Arquivo Histórico Judaico Brasileiro 2 de 5 http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=06.03.00.00&npr=39&pg= dos Conselhos Judaicos, embora a culpabilidade de alguns de seus membros possa ser objeto de apuração. 3-A ÉTICA DO PERÍODO BÍBLICO O comportamento ético do povo judeu tem sido acompanhado e estudado durante muitos séculos, mesmo antes da conquista de Canaã, durante o seu estabelecimento na Terra Prometida, bem como após a destruição do Primeiro e Segundo Templo e em sua dispersão pela diáspora. Um exemplo ocorrido na Antigüidade é ilustrado no poema “No país das Pirâmides” de autoria do poeta David Edelstadt, ele homenageia o patriarca Moishe Rabeinu (Moisés), e critica o comportamento dos judeus, escravos no Egito, por não terem tomado nenhuma iniciativa contra seus opressores, durante o longo cativeiro em que estiveram envolvidos. 4-A ÉTICA NA ANTIGUIDADE Outro caso ocorrido ao longo de nossa história é o de Massada, durante o domínio da Palestina pelo Império Romano. Após a queda de Jerusalém, um grupo de quase mil judeus conseguiu deixar a cidade antes de sua conquista pelos romanos e refugiou-se no topo de uma montanha, em pleno deserto, nas ruínas de uma fortaleza construída por Herodes. Neste local ofereceu resistência aos soldados romanos, que os sitiava. Vendo que a resistência era inútil, os refugiados foram persuadidos pelo seu chefe Eleazar Ben Yair a se “suicidarem” em lugar de se entregarem aos romanos, e serem por eles mortos. O “suicídio”, no entanto teria decorrido da seguinte maneira: Todos mataram as esposas e filhos, e depois escolheram 10 entre eles, que tiveram a incumbência de matar um ao outro, juntando-se então aos cadáveres de seus familiares. O fato de Yair convencer os defensores de Massada de que eles seriam mortos pelos romanos também não está comprovado uma vez que os romanos utilizavam prisioneiros judeus como escravos, que estavam construindo exatamente as rampas de acesso à Fortaleza. Este tema foi abordado por um documentário exibido na TV a cabo e levanta o seguinte problema ético: Houve suicídio em Massada ou assassinato? Depois de tanto tempo passado, não há até hoje uma resposta adequada, senão aquela clássica, considerando o acontecimento como um ato de heroísmo, continuando assim o assunto em aberto. 5-A ÉTICA NO HOLOCAUSTO Mais recentemente estava sendo discutido o comportamento do povo judeu durante o Holocausto. Muitos historiadores eminentes, incluído Raul Hilberg, declararam que os judeus foram em parte culpados pela sua própria destruição. 6- UM POUCO DE HISTÓRIA Para analisar esta proposição se faz necessário uma reconstituição histórica do período do Holocausto. Podemos tomar como exemplo dois grupos distintos como os judeus alemães e os judeus do Leste Europeu, especialmente poloneses que constituíram a maioria das vítimas. Os judeus que viviam na Alemanha, durante o Terceiro Reich eram em geral altamente assimilados, falavam alemão e estavam entrosados dentro da sociedade, não usavam roupas diferenciadas e muitos deles não eram observantes da religião As primeiras discriminações contra os judeus alemães pelos nazistas se iniciaram na década de 30, com o afastamento de professores das universidades, a proibição de exercerem 22/2/2010 15:52 Arquivo Histórico Judaico Brasileiro 3 de 5 http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=06.03.00.00&npr=39&pg= funções públicas, atividades comerciais, profissões liberais, freqüentar lugares públicos e outras medidas inimagináveis. Por volta de 1938, membros das SS e grupos nazistas deram início a uma série de pogroms em toda Alemanha, com incêndio de sinagogas, casas comercias, depredação e saque de residências judaicas, prisões e segregação de judeus em guetos. Foram destruídas centenas de lojas e fábricas, o que resultou em grande número de mortes e. Cerca de 20.000 pessoas foram enviadas para campos de concentração. Excluídos das atividades sócio econômicas, cerca de 300.000 judeus conseguiram emigrar da Alemanha, representando mais de 50% dos judeus alemães. Os que ficaram não tiveram condições de deixar a Alemanha, uma vez que a totalidade dos países americanos fechou os seus portos para emigrantes judeus alemães. Podemos, pois, afirmar que os judeus alemães entenderam bem o recado dos nazistas, tanto que muitos conseguiram emigrar. Os que ficaram também teriam emigrado se tivessem tido esta oportunidade. Os judeus do Leste Europeu tiveram um comportamento diferenciado. Eles se encontravam num atraso social, cultural e econômico, Usavam a língua ídish, as vestes tradicionais, eram observantes da religião e viviam isolados em pequenas comunidades. Até então, apesar de sofrerem esporadicamente pogroms da população católica fortemente anti-semita e das diversas ocupações da Polônia, pela Rússia, Alemanha e Estados Bálticos, viviam e se acostumavam com a proteção das autoridades constituídas, de modo que a conquista do país pelos alemães, em 1939, foi considerada como mais uma das ocupações, nas quais os judeus se davam bem, das muitas que a Polônia sofreu. A oportunidade de emigração para eles em número superior a 3.000.000 não foi concedida pelos nazistas, como tiveram inicialmente os judeus alemães. Ao contrário, lhes foi totalmente proibida a emigração, face ao Regulamento Proibindo a Emigração Judia do Governo Central, datado de 1940. Após a tomada da Polônia, numa fulminante ofensiva que durou menos de um mês os judeus poloneses foram então concentrados em guetos, em precárias condições de higiene, em total promiscuidade, por excesso de população, falta de alimentos e meios de sustento. No gueto de Varsóvia, criado em novembro de 1939, foram encurraladas mais de 400.000 pessoas, em um lugar onde cabiam somente 35.000, em condições normais. Também foram instalados guetos em um grande número de cidades polonesas. Alojados em guetos fechados, sem nenhum contato com o exterior, não podiam tomar conhecimento da Solução Final, iniciada em 1942, pois eram enganados pelos alemães, que escondiam o destino das vítimas, Mas apesar de tudo isto houve um grande número de revoltas, sem muito resultado, diante de um exercito armado, com os mais modernos equipamentos.. Em Auschwitz, por exemplo, muitos escritores judeus que tomaram parte dos Sonderkomandos ( trabalhadores nos fornos crematórios) eram na realidade ativistas do movimento subterrâneo. Entre eles se encontrava Zalmen Gradovski. que dirigiu uma revolta no crematório número 4 e acabou sendo enforcado. Ele deixou um grande número de documentos, que enterrou perto de Auschwitz, posteriormente encontrados. Neles, descreve sua vida desde o gueto, a deportação, sua chegada a Auschwitz e seu trabalho no Sonderkomando. 22/2/2010 15:52 Arquivo Histórico Judaico Brasileiro 4 de 5 http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=06.03.00.00&npr=39&pg= Em todas as cidades polonesas a população judaica, era governada por entidades denominadas Kehilot. Os nazistas passaram a aproveitar estas entidades, conhecidas posteriormente por Conselhos Judaicos (Yudenrat) para controlar os judeus do gueto e impor suas ordens. O judeu Chaim Rumkovski, que os nazistas colocaram como governador do gueto de Lodz, organizou a polícia, cortes de justiça, prisões, escolas, hospitais e oficinas de trabalho, que produziam artigos manufaturados para os alemães em troca de alimentos e matérias primas. No entanto, quando em setembro de 1942 os alemães exigiram a deportação do gueto das crianças com menos de 10 anos e dos anciãos com mais de 65 anos de idade, Rumkovski solicitou às mães a entrega dos seus filhos e justificando que, com isso, salvaria o resto da população. Sobre este episódio assim ele se manifestou: Fiz de tudo para anular a amarga sentença e sugeri que em lugar dos idosos retirassem apenas as pessoas doentes, pois no gueto havia muita gente tuberculosa, cujos dias estavam contados...Sei que é um plano satânico mas não posso deixar de propô-lo para poder salvar as pessoas sãs. As crianças foram retiradas das casas pela polícia judaica e entregues aos alemães. Um observador judeu do gueto escreveu em setembro, posteriormente à deportação: A evacuação das crianças e dos anciãos se tornou uma realidade. A. polícia judaica executou a retirada das pessoas de suas casas. Por sua vez a retirada deles do gueto foi feita pela polícia nazista. As crianças eram carregadas em carretas puxadas por cavalos. Eles nunca tinham visto cavalos de verdade e esperavam um passeio alegre Rumkovski aceitou a imposição dos nazistas de deportação seletiva dos judeus do gueto, isto é, ele decidia quem ia viver e quem ia morrer enquanto outros dirigentes ao contrário, quando não havia outra alternativa, achavam melhor não colaborar e deixar o problema exclusivamente para os alemães. Neste caso ficavam sujeito a sanções ou se suicidaram, como fez o dirigente do Yudenrat do gueto de Varsóvia, Adam Czerniakow. O veredicto de culpado ou não, é uma matéria a ser considerada para cada caso individual, pois os dirigentes se comportavam em função das possíveis reações dos alemães e a decisão era individual, não coletiva dos Conselhos Judaicos. Em razão desta situação, muitos dirigentes sobreviventes do Holocausto, foram levados às cortes de Israel, porém a discussão no tribunal e os debates pouco contribuíram para definir uma posição. A Suprema Corte de Jerusalém adotou uma posição “benevolente” em relação ao assunto em pauta, quando absolveu Hirsch Birnblat, antigo chefe da polícia judaica de uma cidade polonesa e que tinha sido condenado à pena de 5 anos de prisão, por uma corte distrital. O mesmo aconteceu com o Dr. Karstner, um líder judeu da Hungria que conseguiu salvar mais de 1.500 jovens, enquanto deportava outros milhares para os campos de extermínio. Ele foi julgado em Israel pelo crime de colaboração, porem foi absolvido em 1958. 7- CONCLUSÃO Diante dessas considerações, verificamos que, embora a responsabilidade moral das vítimas pelo Holocausto esteja restrita às pessoas individualmente, ainda assim a apuração da culpabilidade não é fácil e as opiniões dos diversos 22/2/2010 15:52 Arquivo Histórico Judaico Brasileiro 5 de 5 http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=06.03.00.00&npr=39&pg= autores são contraditórias. Embora muitos judeus tivessem colaborado com as autoridades nazistas, sua culpabilidade tem atenuantes. O nacional socialismo exerceu um poderoso poder de corrupção do qual foi difícil de escapar. Segundo a opinião de Primo Levi. a máxima culpa recai sobre o Estado totalitário. O concurso do crime por parte dos colaboradores singulares grandes e pequenos é sempre difícil de avaliar, Assim, podemos concluir que a resposta à proposição de que os judeus, que colaboraram com os alemães, seriam culpados, está muito longe de ser respondida. O problema da ética do caráter merece uma análise muito mais profunda pelas suas dificuldades historiográficas, pela necessidade de maior número de pesquisas e ainda, face às divergências de opiniões entre autores, historiadores e a própria justiça de Israel. O grande poeta Hersh Leivik afirmava: “Eu não estive lá” Será que é possível julgar seres humanos submetidos a condições extremamente desumanas por parâmetro normais de ética e moral? Prevalece o humano ou o instinto animal de sobrevivência? Qual é o limite de resistência? Também são questões em aberto. Poderá realmente haver uma resposta? É o que esperamos. Bibliografia 1- ARENDT, Hannah. Eichman em Jerusalém. S. Paulo: Companhia das Letras, 1999. 2- BADIOU, Alain. La Etica,Ensaio sobre la consciencia del Mal. (Rio de Janeiro, Relume- 1995 3--GANN, Ernest. Massada, Fortaleza Heróica. Rio de Janeiro: Editora Record-1970. 4- JONES, David H. Moral Responsability in the Holocaust: a Study in the Etics of Character. Boston: -Rowman and Littefield, 1999. 5--LEVI, Primo. Os afogados e sobreviventes. S.Paulo: Editora Paz e Terra, 1990. 6--TRUNCK, Isaiah. Judenrat:The Jewish Councils in Eastern Europe under Nazi Occupation. New York: The Macmillan Comp, 1972. *Samuel Belk, Engenheiro de Segurança do Trabalho e Engenheiro Civil, Mestre em Letras pela Faculdade Filosofia, Letras e Ciência Humanas da USP, Roteirista e Diretor de shows de musica judaica. EMail: [email protected] voltar Copyright © e termos de uso 22/2/2010 15:52
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