agora ou nunca mais
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AGORA OU NUNCA MAIS 1 AGORA OU NUNCA MAIS (REGISTRADO EM 23.1.2006 SOB O N. 367.372, LIVRO 680, FLS. 32 DO REGISTRO DE DIREITOS AUTORAIS DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL DO MINISTÉRIO CULTURA) Autor: Maurício Gomide Martins Rua Hortência, 698, ap. 401 30.280-250 – Belo Horizonte(MG) Fones: (31) 3564-9975 e (31) 8808-1975 DA AGORA OU NUNCA MAIS 2 [email protected] Eu, partícipe e agente da humanidade, dedico este livro àquela que nos dá à luz, nos conforta com a inocência, nos alimenta, nos protege, nos aquece no frio, nos doa sombra no calor, nos abriga pela eternidade em suas entranhas. Àquela que é nossa morada e da qual somos parte, a mãe Terra. AGORA OU NUNCA MAIS 3 Parte I MENSAGEM AGORA OU NUNCA MAIS 4 1º CAPÍTULO Alguém, ferido e em desespero, grita por socorro. Darei o melhor dos meus esforços e empregarei todos os recursos de que disponho para acudir nessa emergência. Não sei se o êxito será alcançado, mas vou tentar. Reconheço que não conseguirei me desincumbir dessa importante missão sem a sua ajuda. É necessário que me acompanhe. Sem você, não sou mais que um objeto, um inútil. Venha! Venha comigo! Não tenha receio. Precisa ter coragem. Este é o momento, e não deixe de me apoiar. Consciente-se de que o mundo precisa de nós. Venha! Será imprescindível sua colaboração nessa tarefa. De nada adiantarão meus esforços se não houver quem os testemunhe e os transforme em conhecimento por meio do artifício da leitura. Não sabe você que os grandes acontecimentos da História começaram com um simples faiscar de idéia? E neste instante ouço aqueles gritos desesperados a AGORA OU NUNCA MAIS 5 que me referi. O momento da nossa tarefa é agora; agora ou nunca mais. Olhe aquela mansão. Vislumbrei dentro dela uma aura indicativa de acontecimento extremamente importante para iniciar esta missão de socorro. É o sinal luminoso de uma alma aturdida. Intuí sua relevância, mas ainda não está clara a situação. Aquela mente em chamas impede percepção mais apurada. Impossível adivinhar. Chegamos justamente no início de um processo em desenvolvimento. Atentemos. Dentro de um dos escritórios daquela casa, num coração apertado e sofredor de um rapaz brasileiro, pulsam correntes de lava sanguínea, queimando os caminhos da vida e toldando as aspirações da alma. Guilherme, 27 anos, gênio excepcional em informática, com diversos cursos na área, acha-se sentado ante o computador. Imóvel na cadeira, olhar petrificado, perdido no tempo e no espaço, ausente de si, deixa escapar dissimulada expressão de amargura. Na tela, em imagem fixa e gélida, gráficos complexos apontam uma situação não muito clara, mas que, por força de seu significado, conseguiram levar esse jovem àquela postura de anestesia mental. Assim estava, inerte, sem vida aparente, quando começou a ver no monitor o embaralhar dos dados, evoluindo a imagem para nuvens espiraladas, alternadamente escuras e claras, até que se foi formando ante seus olhos uma figura refletida de remota memória, como fotografia que lhe parecia familiar. Era ele mesmo aos onze anos e mais três amiguinhos que se dirigiam, guapos e felizes, a algum destino. Percebia-se a dinâmica do momento pelos semblantes ansiosos, braços AGORA OU NUNCA MAIS 6 gesticulados e pernas articuladas. Essa visão não assustou o personagem. Impassível, com olhar lânguido, continuava sondando fixamente aquela composição remota, até que o quadro estático começou a dar prosseguimento ao entusiasmo da turma. Desenvolvendo-se em quadros posteriores – no início em câmera lenta –, foi aumentando o ritmo até se deslanchar em movimento normal, tomando todo o campo visual de Guilherme e se mostrando como um retorno ao passado. Está claro que o jovem estava auto-hipnotizado pelas lembranças de tempos felizes. Extraía do passado um momento especial que lhe trazia importante significado. Vinha tudo por meio do subconsciente, com cores de realidade, como se o tempo houvesse recuado por força da saudade. Talvez essa metamorfose mental se desse como antídoto às preocupações e inquietudes pelas quais passava aquele sonhador. Dando soltura à lembrança, o entorpecido observador reviu sua infância naquela sucessão de quadros. A turma rumou para os fundos de uma chácara onde havia tosco galinheiro. Num caixote, posto a certa altura do chão, uma galinha acomodada no ninho. — Num chega muito perto, que ela te bica! Galinha, quando tá com pintinho, fica brava e bica – advertiu um dos amigos. — Num bica, não! Esta é mansinha – replicou o outro. — Deixa eu chegar perto pra levantar ela. Eu também tenho... — Não! Espera aí! Eu é que descobri a galinha. Estou vigiando desde quando vi que ela num saía do ninho. Eu AGORA OU NUNCA MAIS chegava 7 perto, Acostumou e ela comigo. ficava Antes arrepiada de sair e falando pintinho, eu choco. já tinha levantado ela várias vezes, e ela nunca me bicou. — Espera aí! Eu também quero ver! — Num empurra! — Cadê os pintinhos? Num dá pra ver nada. Deixa eu ver! — Ô bocó! É preciso jeitinho. E não pode ter medo. Na rememoração, o Guilherme juvenil se aproximou com cuidado, enfiou a mão por baixo da galinha e a levantou um pouco. O suficiente para que fossem vistos os recém-chegados. Amontoados, havia uns dez pequerruchos, frágeis, inseguros, inocentes. Sem tocá-los e em silêncio, os guris ficaram absortos na admiração da cena desvelada. Era o nascer para o mundo. Aquilo os excitava e aguçava a curiosidade natural da idade pelos mistérios da existência. Estava ali, ante seus olhos, uma afirmação da Vida. Nesse momento, houve pequeno tremido na tela, embolando a cena final, de tal modo que voltaram os frios gráficos da realidade. Com essa brusca mudança no campo visual, o estático personagem saiu do estado de letargia em que se encontrava. Piscou várias vezes, tentando expulsar a fantasia, e retornou à consciência. Ainda saudoso, ficou absorto ante o computador por longo tempo, refazendo-se da viagem ao passado. Suspirou fundo, deu uma sacudida na cabeça e desligou o aparelho. Procedeu a arrumações em papéis avulsos e livros dispersos na banca ao lado. Levantou-se e chegou até a área ajardinada, em frente ao escritório, onde permaneceu parado por alguns instantes, admirando a noite escura de céu estrelado. Pensativo, AGORA OU NUNCA MAIS enquanto 8 admirava o planeta Marte, se perguntava com desgosto: “Está aí! Parece que não, mas quanta relação existe entre Marte e todo esse poder do céu com o meu computador! Mistério!...” Já era tarde – passava das onze da noite – e seus pais deveriam estar acomodados. Finalmente atravessou a pérgula que liga o conjunto de escritórios à parte residencial. Entrou direto na cozinha, beliscou umas uvas que estavam na fruteira da copa e se dirigiu ao quarto, preparando-se para o descanso. O pai de Guilherme é professor de Química na universidade local e se chama Alfredo Paiva Van Koorten, neto de imigrante Guerra. voluntária holandês, chegado após a Primeira Grande A mãe, Dona Rosa Madalena, além de assistência a uma creche, ocupa-se com os afazeres domésticos, no que se mostra dedicada e zelosa. Tiveram três filhos: Terezinha, primogênita, casada e mãe de um garoto; Guilherme e Luiz Cândido, o caçula, 25 anos, formado em Física e cursando o último período de ciência da computação. Ambos, solteiros, perfeccionista, exclusivamente moram com introspectivo a atividade e de os pais. taciturno, produzir Guilherme, mantém programas de computador para terceiros, atendendo a fartas encomendas que lhe fazem. Seu irmão mais novo ainda balança entre as diversas atividades pertinentes à Física, mas parece que não está muito preocupado com o porvir. Está mais interessado é na namorada e passa por um período róseo de vida tranqüila. Obtém alguma renda ministrando aulas de cursinho, o que paga o curso de informática, ramo com o qual também é fascinado. AGORA OU NUNCA MAIS 9 Guilherme é diferente dos irmãos. Demonstra inteligência abaixo da média e fez com grande dificuldade os estudos básicos, mas tinha grande propensão para ciências exatas. Ingressou no curso superior de informática, onde se destacou e assombrou seus professores demonstrando genialidade na área. Em pouco tempo aprendeu toda a matéria existente sobre o assunto e chegou a ser ele objeto de estudo e pesquisa por parte de médicos neurologistas. Tem cabeça grande, parece que mal colocada na coluna cervical porque sempre se ajustando em movimentos incontroláveis. Seu lábio inferior é caído e carnudo, e anda jogando o corpo para a esquerda, o que faz gastar o solado dos sapatos de uma forma irregular. Negligente com suas coisas, não consegue manter uma conversa firme e demonstra viver num mundo interior, cheio de imprecisões. Tem dificuldade na fala, apresentando discreta gagueira, seus movimentos de corpo são desajeitados e tem sempre a mesma cara, inexpressiva, demonstrando que mantém prisioneiras suas emoções, à maneira de um quase autista. A família mora em bonita mansão, construída em grande terreno fora da cidade, relativamente perto da universidade, também esta em região suburbana. É a moradia um complexo de bela concepção arquitetônica, formado por um bloco propriamente residencial e outro complementar constituído por dois escritórios, sala de estudos e um depósito. Ambos ligados por uma passarela ajardinada, coberta por pérgula curvilínea. O conjunto é enfeitado por jardins bem cuidados, exprimindo ambiente de quietude e sóbria elegância, e um variado pomar no quintal. AGORA OU NUNCA MAIS 10 Na manhã do dia seguinte, Guilherme levantou-se mais tarde, mas a mesa do café permanecia posta à sua espera. A mãe teve o cuidado de manter aquecidos o leite e o café, e havia fartura de pão, bolachas e cereais. Enquanto se alimentava, percebeu que Dona Rosa, vindo da sala, sentou-se ao seu lado, silenciosa. Parecia que lhe desejava falar, mas se continha; denotava imperceptível alguma tristeza do preocupação filho que com lhe a quase transparecia ultimamente. Depois de algum tempo, levantou-se e, passando carinhosamente a mão pelo pescoço do filho, foi cuidar de seus afazeres. Guilherme sentia-se tenso, um tanto desorientado. Deixou a mesa e, procurando estabilizar aquele estado psicológico, revolto desde a véspera, dirigiu-se ao pomar com passadas e gestos conscientemente lentos, no desejo de encontrar uma estabilidade emocional. Procurando o intento, deixou-se levar por calmo passeio ali, fazendo paradas prolongadas na observação de detalhes das fruteiras. Colheu uma goiaba e começou a comê-la calmamente. De volta do quintal, chegou perto da gaiola onde mantinha seu canário de estimação, a que dera o nome de Jóia, já posta pela mãe na parede externa do barracão para que colhesse os raios de sol. Faltava apenas o cuidado diário, rito que Guilherme reservava para si, como cultivo de ligação afeiçoada para ambos. Ao tempo em que tratava do canário, assobiava para ele, procurando sugerir-lhe o ânimo para o canto, no que afinal era atendido. Vencido o estágio de comportamento controlado, na busca de domínio da razão, Guilherme entrou em seu escritório corajosamente, mas vacilou em ligar o computador. Teve AGORA OU NUNCA MAIS 11 medo, repugnância, desgosto. Sentiu-se frágil, inseguro, como que abandonado. Vacilante, procurava ajustar suas dúvidas à razão e sentiu que estava sofrendo. Por fim, em desespero, sua alma decidiu: “Não e não! Não ligo”. Não ia dar vida ao aparelho, tentando com isso fugir do que o atormentava tanto. Não daria curso à sua angústia nem queria ver mais aqueles gráficos. Seria melhor esquecer e mudar de idéia, levar o pensamento para situações agradáveis. Sentiu-se fortalecido com essa decisão. Olhou o aparelho com desdém e repugnância. Pegou um livro qualquer e intentou concentrar a atenção no que lia só com os olhos. Mas, como nuvens que se vão formando para o preparo da tempestade, os gráficos do computador foram impondo o cenário no seu cérebro. Não conseguia fixar seu pensamento no que as palavras escritas lhe diziam. Era uma tortura lenta e desgastante. Percebia que a alma daquele objeto eletrônico desprezível insistia em invadir e dominar sua vontade. Sentia ódio por aquele algoz. Nesse momento, Alfredo entrou no escritório e, pondo-lhe o braço no ombro, com voz mansa e paternal, procurou sondar os problemas do filho. — É preciso que te fale com franqueza. Afinal, pai é pra essas coisas mesmo! — O que... o que... que foi!? – ainda assustado. — Eu e sua mãe estamos preocupados com você e esp... — Ora, pai! — Não adianta; eu tenho que falar! São coisas de pai! — Es...está bem; po...pode f...falar! AGORA OU NUNCA MAIS 12 — Parece que você tem trabalhado muito nesses seus programas e esquecido de dar alguma atenção a outros aspectos da vida. Notamos que você tem emagrecido e parece que anda meio tristonho ultimamente, que alguma coisa te preocupa. Do jeito que vai, temos medo que caia numa depressão. Isso é muito sério! Temos que abortar essa situação é antes. — Vo... você está e... e... xagerando! — Nunca é demais a gente... — Ah, pai!... Enquanto Alfredo tecia seus conselhos, Guilherme pensava: “Eh! Porque você não sabe o tamanho do problema!” — A vida não é só trabalho; o lazer deve ter também o seu lugar. Pra uma vivência melhor, tem que reservar espaço pras coisas do espírito, das emoções, do lazer. Os sentimentos não podem ser sufocados. Deixa que eles se manifestem livremente, apenas dosados pelas ponderações da razão e do bom senso. E continuou: — Tenho notado também que você está exagerando no seu serviço. Fica o dia todo metido no escritório e vai até tarde da noite. Tem tido tanta encomenda assim? — Não, pai. É que... que... — Solte suas emoções, liberte o pensamento. Você se prende! Fica só remoendo! Isso faz mal pra saúde, pro corpo e pra mente. Lembra sempre disso que vou te dizer: Você vence, você vence – encorajou o pai enquanto deixava o escritório. Naquela noite, Guilherme, atordoado pelo clamor dos gráficos que não lhe saíam da mente, tomou uma decisão de AGORA OU NUNCA MAIS 13 desassombro e pôs à prova sua coragem, como ato de desafio e desespero. Queria vencer. Ligou o monstro, dando-lhe vida e afirmação. Com a atenção inteiramente fixada na tela, manipulava aflitivamente as diversas teclas, denotando cada vez mais angústia, aflição e descontrole. Ao final, quando ficaram estampados os gráficos conclusivos, acusatórios, Guilherme deixou-se ficar imóvel ante a imagem e assim permaneceu por longo tempo, recolhido em seus pensamentos, sentindo-se vencido em sua vontade, derrotado pela imposição de uma incontida e avassaladora força maior. Sentiu-se irremediavelmente sozinho, desamparado e profundamente angustiado. Lá fora a chuva, iniciada mansinha no fim da tarde, começou a zangar com os deuses do céu, e os ódios celestes, sob a forma de ventos e trovões, demonstravam seus poderes. Os estalidos misturando-se dos a raios estalos tornaram-se adversos da mais vida, freqüentes, manifestando descargas celestes e terrestres de tensões incontidas. Pela manhã tudo estava tranqüilo. Em perfeita harmonia, o ar sereno, o sol brilhante e a natureza mostravam que sempre haverá um intervalo e oportunidade para a vida. Só a ausência de Guilherme à mesa do café matinal, ainda posta, fugia da continuidade diária. Dona Rosa, apesar de preocupada, esperou até mais tarde para dar tempo a que o filho acordasse. Até que, não suportando mais a espera, dirigiu-se ao quarto de Guilherme para acordá-lo. A cama não tinha sido usada. Ninguém no quarto. Correu aflita para o escritório, onde se defrontou com a realidade. Só pôde gritar: “Mãe do céu, me acode!” AGORA OU NUNCA MAIS 14 Seu Alfredo, quando avisado da tragédia, pediu a um amigo que o levasse a casa, tão abalado estava. Chegando ao escritório e vendo a cena, fechou a janela, trancou a porta e foi manter companhia à esposa, procurando confortá-la da melhor forma possível. Num instante a casa estava cheia de parentes e da vizinhança. A polícia, chamada para a necessária ocorrência, fez vistoria técnica no local e concluiu com firmeza que ocorrera suicídio com arma de fogo. O laudo não deixava dúvidas a respeito e acrescentava que não fora localizada qualquer mensagem. — Não pode ter sido suicídio. Guilherme não tinha motivo nenhum pra isso! – protestou Alfredo, incrédulo, ao inspetor técnico da polícia. — Deve ter tido um assalto... anda tanto bandido por aí... vocês não examinaram direito. — Pode ficar tranqüilo que é isso mesmo. Estamos acostumados com essas ocorrências; é muito difícil a gente errar. E neste caso, tem todas as evidências. — Mas vocês examinaram tudo? — Tudo. Este foi um caso até muito fácil. Ninguém mexeu nas coisas do escritório, o revólver tem as digitais dele e verificamos outras indicações conclusivas. — Mas a janela estava aberta, o que é um sinal muito estranho! — Verificamos isso também. A ventania daquela noite deve ter forçado a janela. Foi uma tempestade das bravas. Isso é bem provável... — Pode ser, mas não vejo motivo pra... AGORA OU NUNCA MAIS — Ele 15 tinha algum inimigo que fosse do seu conhecimento? — Nenhum. Ele era muito pacato, calado e se relacionava bem com todo mundo. Não merecia isso... Três dias após o infortúnio, e a família ainda se mantinha unida na casa, vivendo dias melancólicos e chorosos. Ninguém falava mais que o necessário, refletindo as pungentes dores da alma. O silêncio era a linguagem daquela infeliz família. Aos poucos, no entanto, algumas iniciativas começaram a revitalizar as brasas da vida. Terezinha retornou à sua casa, onde o marido tinha ficado tomando conta do filho pequeno. Luiz Cândido retornou às suas atividades acadêmicas. Só Alfredo se mantinha na posição de âncora moral da esposa, afastando-se de casa apenas por breves momentos necessários. Dona Rosa é quem menos cedia à realidade e continuava a dar guarida à dor e lembranças. Inconformada e com o coração dilacerado, sua alma em constante paixão tentava mitigar-lhe a perda com as lágrimas do martírio materno. Com o tempo, a cicatrização das dores foi-se efetivando e os membros da família já encontravam forças para revolver as cinzas do infortunado acontecimento. Estando a sós com o pai, Luiz Cândido, mais conhecido e tratado por todos pelo carinhoso diminutivo Candota, se abriu: — Pai, o tempo todo eu penso, mas não consigo achar uma lógica pro suicídio do Guilherme. — Não fica pensando nisso, não. Já aconteceu mesmo! Nada vai trazer o Guilherme de volta. Assim é a vida, assim é a morte. AGORA OU NUNCA MAIS — Mas tem que ter uma 16 explicação. Ele não tinha problema nenhum! Pelo menos que eu saiba! E não deixou nem um bilhete! Nem pra mamãe! Nada, nada! Quem vai suicidar, geralmente deixa um depoimento pra família, explicando o gesto e pedindo perdão! O que me intriga é que ele não deixou nada. — Nada, mesmo. Já revirei os guardados dele e não achei nada. Se tivesse alguma despedida, ele ia deixar bem à mostra. — E no computador dele? — Já olhei tudo. Só programas das encomendas. Nada de especial. Nada de problemas. — Mas ele tinha senha de acesso. — Tinha. Ele me contou. — É GRA2, não é? Eu também sabia; não sei é donde ele tirou essa combinação. — Eu sei: G de Guilherme, R de Rosa, A de Alfredo e 2 dos dois irmãos. Ele até que, no modo dele, era amoroso com a família. Não demonstrava, mas era. E sempre foi bom filho também. Você tinha um grande irmão; pode se orgulhar disso. — Está bem, mas não deixar uma despedida!... Muito esquisito! A gente não conhece a causa, mas não existe efeito sem causa. É claro que um motivo teve. Só pode! — Estive conversando com um psiquiatra amigo, e ele me deu algumas explicações possíveis pra esse caso. Você sabe que seu irmão era anormal, não sabe? — Não. Ele tinha um jeito diferente, mas era muito legal com a gente. Não vejo nada de mais nisso... só se era pela genialidade dele... AGORA OU NUNCA MAIS 17 — A gente nunca comentou isso. Você lembra que ele era tímido, recolhido, introspectivo... — Isso não é defeito. Pra mim, ele era bacana. — É, mas ele era portador de uma raríssima e pouco conhecida anormalidade chamada savantismo. — O que que é isso? — Chamam os médicos de síndrome de savant, ou síndrome do sábio. É uma constituição cerebral anormal que provoca excepcional aptidão para determinada atividade, em detrimento de outras. Redunda num tipo discreto de quase autismo. A ciência ainda não consegue explicar isso. — É, mas ele tinha amor à vida. Tinha projetos. Eu não me conformo é que não tenha deixado um bilhete. — Pois é. Segundo o psiquiatra, tudo isso contribuiu pro surgimento de uma depressão reativa súbita que leva ao suicídio. Você sabe que suicídio é uma fuga, não sabe? — Pelo que entendo, só pode ser fuga da vida. E, no caso do... — Não, meu filho. Ninguém foge da vida em si. Ele devia ter algum problema real ou imaginário, que julgava insuperável, e fugiu desse problema. Se tivesse conversado com a gente, é certo que eu ia resolver essa questão. Mas o gênio dele era assim... – e começou a mudar o tom de voz, num esforço para se conter. Candota, constrangido pela situação, manteve-se em silêncio respeitoso por longo tempo. Finalmente, vendo que o pai já se compusera, deu expressão à curiosidade, insistindo: — Ainda vamos descobrir o causador disso. Algum dia... AGORA OU NUNCA MAIS 18 — Desvia a cabeça disso; esquece. Vai ser melhor pra você. Este é o melhor conselho de pai: procura esquecer, vai. Candota ficou pensativo e não falou mais no assunto. Contudo, ficou arraigada em sua mente aquela inexplicável tragédia. Os pais de Guilherme, por respeito e amor, conservaram todos os pertences do filho amado, mantendo-os nos mesmos lugares e forma como se encontravam. Com o tempo, Alfredo voltou a se dedicar às aulas na universidade, agora com mais empenho porque isso ajudava no transe do sofrimento. Dona Rosa retornou com zelo redobrado às atividades na creche do bairro, como um modo de ajudar na cicatrização de seu abalado coração. A par dos normais compromissos, Candota mantinha, de modo involuntário, a perquirição sempre presente em seu pensamento a respeito da tragédia do irmão. Tinha que haver um motivo, e isso insistia em lhe fustigar a curiosidade. Pediu autorização aos pais para investigar as coisas de Guilherme e, não obstante os conselhos em contrário, insistiu e conseguiu a concordância. Daí em diante, nas horas vagas, passou a procurar nos guardados do irmão algum indício do seu enigmático gesto. Revirou cartas, documentos, retratos e o que mais fosse. Consultou anotações no escritório. Examinou seus livros. Conversou com os clientes de informática. Nada encontrou que lhe fornecesse uma pista. “O computador não precisava ser inspecionado, porque meu pai ali já tinha procurado” – pensou. Mas o mistério continuava a intrigá-lo e ficou a se inquirir: “Quem sabe, papai não examinou direito ou deixou passar AGORA OU NUNCA MAIS 19 alguma coisa!” Na dúvida, resolveu investigar o aparelho. Iria fazê-lo de forma minuciosa e sem pressa. Seria um trabalho estafante, mas seu impulso de curiosidade parecia mais forte e não o deixava desistir. Num exame superficial, Candota tinha notado que o aparelho estava sobrecarregado com anotações diversas e programas feitos de encomenda para terceiros. Era volumosa a carga de registros a ser verificada. Entrava em cada documento avulso, que eram muitos, e o lia com atenção e desconfiança. Começou no princípio da tela, como método de trabalho; não saltou nada que ali estivesse registrado. Até pequenas e simples anotações eram examinadas com cuidado. Às vezes parava demoradamente na análise de um registro, procurando encontrar sinais suspeitos, mesmo que fossem apenas sugestivos de rumos. Assim foi procedendo por muitas semanas. O tempo para essas incursões não era muito disponível, tendo em conta os compromissos com as aulas de física no cursinho, os estudos de informática e o cultivo de um namoro – com Beatriz – que era de seu agrado. Mas esse último compromisso, de certa forma, estava sendo relegado pela dedicação cada vez mais intensa à pesquisa do computador de Guilherme. No aparelho, depois de examinados todos os documentos avulsos, sem nada significativo encontrar, Candota abriu o arquivo de pastas, onde eram indicados os programas encomendados pela clientela. Achou desnecessário abri-las todas – eram mais de trezentas – porque eram numerosas e tinham indicação por palavra relativa a cada cliente, o que as identificava com facilidade. Refletiu bem sobre tal aspecto e AGORA OU NUNCA MAIS 20 imaginou que fora esse o mesmo raciocínio do pai quando havia pesquisado o aparelho. Assim, decidiu seguir a teimosia da metodologia adotada de início, baseado em que tudo deveria ser examinado com minúcia, pensando: “Pode ser que eu encontre uma perninha...” Sempre que podia, Candota dava prosseguimento àquele rito quase diário. Abria uma pasta de programa, lia todo o conteúdo, estudava e conferia a estrutura-fonte e passava à seguinte. Sempre o mesmo sistema, o mesmo caminho, só mudando os objetivos e especificações do programa. Era realmente trabalhosa e maçante aquela pesquisa. O material volumoso e monótono indicava não ter relação nenhuma com o enigma. Mas Candota é determinado, paciente, e continua a perseguir a tênue luz que acena para sua curiosidade. Certa noite, já tarde, dispôs-se a abrir mais uma pasta para exame, antes que fosse dormir, quando o documento chamado para abertura não abriu e exigiu senha. Nova tentativa, e o computador não cedeu. Digitada a senha geral conhecida– GRA2 –, também não foi aceita. Foi tentada a pasta seguinte, que guardava um programa de cliente, e ela se abriu normalmente. A pasta seguinte também abriu seu documento. Tentado o retorno àquela pasta resguardada e ela não cedeu; exigia senha. Insistiu em GRA2 novamente, e nada. Estava escrito na pasta o seu nome: Gaia. “Está aqui a perninha do mistério... eu sabia!” – pensou, triunfante, enquanto decidia ir dormir e renovar energias para os embates que viriam com aquele novo mistério. Passou na copa, tomou o copo de leite de costume e procurou o rumo do quarto. AGORA OU NUNCA MAIS Naquela pensamento, 21 noite, Candota procurando se lutou entregar nos à labirintos do inconsciência do repouso. Tentava, mas não encontrava na cama a posição indutora do sono. Excitado pela descoberta de algo tão estranho no caminho do que procurava, vieram-lhe à mente diversas dúvidas e hipóteses sobre o caso. Não sabia se contava ao pai sua descoberta. Imaginou que ali poderia estar a explicação do desespero do irmão, o que resultaria em mexer na ferida que ainda cicatrizava em seus pais. Talvez não conseguisse descobrir a senha específica do documento e isso seria outro fantasma em sua vida. Por fim, exausto pelas lucubrações nebulosas, sem perceber penetrou no abrigo acolhedor do sono. — Meu filho, acorda senão você vai perder a hora – ao tempo em que a mãe o tocava de leve à beira da cama. O jovem rapaz acordou assustado e, com um lépido movimento, se pôs de pé. Contudo dava tempo para os preparos e chegar na hora ao cursinho, onde tinha compromisso com as aulas. Mas precisava dinamizar suas ações e vigiar o relógio. — Ontem você ficou no escritório até muito tarde. Precisa dosar seu tempo – aconselhou a mãe, enquanto se retirava do quarto. O filho, calado, procurou concentrar-se nas providências a tomar, mas não deixou de se lembrar, de relance, da noite anterior, quando descobrira aquele intrigante nome, Gaia. Trataria disso depois. Mais tarde, chegado em casa depois de cumpridos os compromissos, Candota se dirigiu ao escritório em estado de AGORA OU NUNCA MAIS 22 intensa ansiedade. Primeiro abriu um dicionário para saber o significado de Gaia. Dizia ali: “Na mitologia grega, a Terra geratriz”. “Hum! – pensou – é sinônimo de Terra... Mas por que Terra? Esse nome... seria apenas uma fantasia, ou já indicaria talvez algum rumo de investigação?” Ligou o computador e foi direto para a pasta trancada. Tentou abrir o documento, com insistência, e o pedido de senha se pôs à frente. Foi às demais pastas que ainda não tinham sido lidas e, abrindo-as uma a uma, sem dificuldade, não as lia. Só intentava descobrir se havia outros arquivos bloqueados por senha. Todas livres. Apenas Gaia protegia com fidelidade canina os recônditos pensamentos e sentimentos de Guilherme. Certo de que tinha encontrado o portal de entrada para a sua curiosidade, firmou o objetivo de que era ali que tinha de farejar. O primeiro pesquisador foi pensamento pedir ajuda que ao pai ocorreu – teria ao de insistente contar o andamento das suas pesquisas – porque talvez ele soubesse também a senha daquele documento, pois conhecia a sigla da entrada. Vendo que nada ia conseguir, fechou a máquina e foi em busca daquela esperança. Após o lanche, seria o momento adequado para essa conversa. Na oportunidade, entrou no assunto: — Pai, tenho verificado as coisas do Guilherme, como você sabe, mas até agora não achei nada que... — Eu sabia que não ia encontrar nada mesmo. — Não, papai, não é isso. Até que achei uma coisinha no computador dele, mas preciso da sua ajuda. — O que foi? AGORA OU NUNCA MAIS 23 — Encontrei uma pasta que não abre. Está protegida com senha que não conheço. Queria saber se você tem informação dela. — Não. Eu só sabia a senha de abertura, porque ele mesmo me informou. Mas essa pasta deve ser igual às outras que andei olhando por alto; tudo ali é programa de clientes. Bobagem você perder seu tempo com isso. — Tem razão. Afinal, ele só cuidava de fazer programas! Com essa concordância, dando por finalizado o caso, Candota escolheu tratar do assunto sozinho, afastando possível interesse do pai com relação à misteriosa pasta, pois, como estava prevendo, a revelação daquele documento poderia trazer à tona informações discutíveis. Achou melhor reservar para si a ingente tarefa de decifrar – se tivesse sorte – aquela intrigante chave de Gaia. Lutaria só, mas já sabia que essa peleja seria intensamente desgastante. Conscientizou-se de que doravante deveria exercitar as virtudes da paciência e obstinação. Na próxima vez que se sentou ante o computador, compreendeu que só teria de proceder a um rito curto, rápido e simples: registrar naquele quadradinho de senha uma combinação de letras ou algarismos que fosse a mesma que Guilherme havia registrado. Para isso, tinha diversos caminhos a seguir; diversos critérios. Mas um juízo era exigível: tinha que ter imaginação, usando tudo o que conhecia da personalidade do irmão. Para a tarefa, haveria de registrar no mesmo computador as combinações que usasse, a fim de não perder tempo ao compor a mesma chave duas vezes. Assim fez. Começou então AGORA OU NUNCA MAIS 24 as tentativas, até com certo otimismo, pois julgava que sua inteligência serviria de bom condutor para aquela caçada. Começou conhecidas. imaginando Ficou na siglas busca por de pessoas vários e situações fatigáveis dias. Infrutíferas todas as tentativas. Afinal, aquele exercício nada mais era que uma procura de quase adivinhação. Um ano transcorrido, desde o falecimento de Guilherme, e ainda estava Candota ali, pacientemente, ante aquela Esfinge informatizada, como a lhe propor: “Decifra-me ou eu te devoro.” O corajoso jovem ainda enfrentava a fera, mas agora sem tecer raciocínios. Colocava as prováveis senhas, aleatoriamente, sem muita convicção, confiante que o aparelho refutaria as chaves repetidas. “Este jogo implica também um pouco de sorte” – consolava-se em pensamento. Mais algum tempo decorrido e nosso pesquisador já não tinha tanto entusiasmo e esperança na busca do segredo. Aquela labuta já se estava tornando enfadonha e esmorecia o ânimo na procura de algo tão indefinido. Aos poucos, as atenções do jovem estavam mais concentradas na beleza de Beatriz, a quem dedicava mais tempo e coração. O cultivo desse namoro, que fortalecia o amor de ambos, foi aos poucos fazendo emergir na mente de Candota os primeiros esboços de um futuro a dois. Já freqüentava a casa da moça, e começava a sentir-se um vitorioso no projeto de vida. Por essa ocasião, Candota já tinha deixado de dar aulas no cursinho, se formara em informática e conseguira retomar quase toda a clientela que fazia encomendas com o Guilherme. Estava satisfeito com os resultados que vinha obtendo, já projetando seu nome nos meios especializados de informática. AGORA OU NUNCA MAIS 25 Quando tinha alguma folga, quase como obrigação, retomava sem entusiasmo o exercício de adivinhação da senha de Gaia, que se mantinha inexpugnável como uma redoma de aço. Assunto já quase esquecido. Em determinado dia, ao proceder a umas procuras no barracão que servia de depósito para coisas inservíveis, reconheceu a gaiola do canário de estimação de Guilherme, ali depositada, mas agora vazia e triste pela morte do animalzinho, que deve ter voado para junto de seu antigo dono. Renovada a curiosidade, fixou a atenção naquela triste prisão. Sob emoção, enquanto rememorava a representação histórica da revigorante, gaiola, uma veio-lhe ligação uma espécie incompreensível por de alento tais meios. Sentiu a intuição de que a chave de Gaia se encontrava encarcerada na gaiola; ali mesmo, à sua frente. A palavra canário foi a primeira que lhe acudiu à mente. Entusiasmado, largou a continuação da tarefa e correu para o computador. Canário seria a senha. Inexplicavelmente, esse nome não tinha sido lembrado antes. Talvez porque a ave tenha morrido poucos dias empenhasse depois na da tragédia, investigação da antes senha que Candota para Gaia. se O conseqüente envio da gaiola para o depósito também deve ter contribuído para o esquecimento. Procurando conter a ansiedade provocada pela inspiração, o alentado pesquisador teclou as letras de canário e deu entrada. Na tela, a recusa de sempre. Experimentou repetir a palavra, mas sem acento agudo. Recusada também. Frustração. Mas a força da suspeita ainda permanecia ativa e acionou o raciocínio, como ajuda naquela situação. Veio-lhe o AGORA OU NUNCA MAIS 26 nome carinhoso que o amado irmão dera ao pássaro: Jóia. Experimentou, não passou. Alguma coisa transcendental, sem explicação, continuava a rondar o tema e o seduzia com a certeza. Sob essa influência, adquiriu mais energia e entrou em frenesi. Seguidamente, e sem sucesso, registrou no campo da senha tudo o que a visão da gaiola lhe indicava: asa, pena, canto, poleiro, água, saltar, cantar, bebedouro, arame, amarelo, prisão, liberdade, porta, perna, canela, comida, voar, alpiste... Cansado, sem esperança, desistiu e desligou o aparelho. Voltou a rebuscar no barracão o objeto que antes procurava. Ainda dentro do depósito, ante a presença ali da gaiola, parou novamente sob influência de misteriosa força, adquiriu novo ímpeto mental e começou a construir uma relação. Sua mente foi conduzindo a razão para caminhos estranhos, ainda não percorridos. Veio-lhe uma insistência e foi cedendo à imaginação: “O nome da pasta é Gaia, com o G de Guilherme; o nome do canário é Jóia que tem certa identidade com Gaia pelas sílabas, pela tônica e pelo ditongo, mas não tem o G... Hum... substituindo o J pelo G, vamos ter Goia... Goia... Mas Goia, o que será? Não significa nada... Mas pode ser senha...” Algo inexplicável lhe dava indicação desse nome. Apesar desse impulso, não mantinha muito entusiasmo. Ligou novamente o computador e teclou Goia. Não adiantou; não abriu o programa. Ainda pensativo, foi especulando: “Goia não significa nada... Hum... aquele angustiado e famoso pintor espanhol se chamava Goia, mas com Y... Será?” AGORA OU NUNCA MAIS 27 Nesse pensar, Candota deu um pulo de susto. Foi um estalo de memória. Lembrou-se de que lá no armário de Guilherme, entre seus guardados, havia uma estampa enorme, reprodução de “Caprichos”, obra do célebre pintor que tanto sofreu na sua época. Na expectativa extrema, digitou Goya e... a tela se abriu... Abriu como a flor se abre para o colibri. Mostrou-se toda, desnuda, sem rubores e sem cuidados. Como num ato probatório de confiança, retirou o véu que a encobria e se ofereceu clara, definida, sem mentiras ao persistente herói. Enfim, a glória de uma busca! A satisfação era imensa. Sentia-se recompensado por aquela busca de tanto tempo. Tinha vencido uma batalha que inicialmente parecia perdida. E se pôs a pensar: “Não fosse a inspiração daquela gaiola... que me fez dar tantas voltas! Mas, afinal, ela era o ímã que me induzia ao ponto certo. Parece que foi ela que conduziu o meu raciocínio!” Extenuado pelas energias despendidas com tão renhida batalha, o jovem físico teve o bom senso de encerrar o computador e procurar o repouso necessário. Teve que conter a curiosidade em benefício do bom desvelamento do mistério que, segundo deu para perceber à primeira vista, tratava-se de documento complexo. Se desse abertura àquele documento, sua ânsia de curiosidade não pararia mais. Teve consciência do perigo de continuar, pois estava extremamente enfraquecido, tanto física como psicologicamente. descanso e assim o fez. O juízo recomendava AGORA OU NUNCA MAIS 28 2º CAPÍTULO No dia seguinte, após atender a uma compromissos inadiáveis anteriormente avalanche de marcados, Candota ainda teve que comparecer à colação de grau de odontologia de Jandira, irmã única e caçula de Beatriz. Saiu mais cedo da festa, alegando uma indisposição e se dirigiu a casa, ocasião em que carregava forte tensão ante a iminência de leitura do arquivo Gaia. Já se tinha contido o dia todo e ansiava pelo momento em que, sozinho e sem outros embaraços, ficaria conhecendo todo o segredo do irmão. Foi direto para o escritório, trancou a porta, acomodou-se frente ao computador e o ligou. Alcançada a pasta Gaia, teve o AGORA OU NUNCA MAIS 29 sabor de vitória ao digitar a senha Goya. Com olhos espertos e ansiosos, fixou a primeira tela do documento, como já tinha divisado anteriormente: um quadro com equações matemáticas, sem menção ao assunto. Curioso, examinou bem aquele quadro e descobriu no canto superior a indicação de que se tratava apenas de uma abertura simbólica. Imaginou que dali em diante começaria a abordagem do tema, por certo relativo a cálculos. Deixou-se ficar entregue à leitura e interpretação do documento por longo tempo, cada vez mais atento e mais surpreso à medida que ia avançando na tarefa. Passava direto por diversos quadros de fórmulas e equações matemáticas, às quais no momento não tinha paciência e tempo para analisar. Finalmente, com a última tela apontando dados estatísticos e a conclusão em destaque indicando o número 2036, Candota fechou o programa, desligou o aparelho e, completamente aturdido, exangue, suando na testa com abundância, jogou- se na poltrona ao lado e ali ficou por bom tempo, apavorado, ofegante, ruminando mentalmente o segredo desvelado: “Que horror! Ah!... por isso é que ele às vezes pedia pra operar o supercomputador lá da universidade! Então foi isso que levou Guilherme ao desespero! Foi fraco e não resistiu a essas evidências. Coitado, deve ter sofrido muito, e calado! Agora a gente sabe!” Candota situação. percebeu Sentiu medo a de necessidade de sofrer mental abalo fugir e daquela de ser dominado pelas mesmas forças misteriosas que se ocultavam naqueles gráficos acusatórios, os Guilherme àquele trágico descontrole. mesmos que levaram AGORA OU NUNCA MAIS 30 Deitado à espera do sono, e ainda entorpecido pelas conseqüências da violação da intimidade do irmão, veio-lhe à mente aquele quadro final do computador que, por tão ameaçador, tinha imposto a morte ao irmão, enfraquecido pelo desespero. Sentiu com vigor o peso da responsabilidade que agora carregava. Apavorado, pensou: “Não pode ser! Isso é uma desgraça! Não acredito! Impossível! Por isso é que o Guilherme não teve coragem de contar pra ninguém! E o pior é que eu também não posso contar nada pro papai, senão ele vai se contaminar também. Eh, pior é que tenho de manter segredo absoluto”. E, depois de fazer longa meditação e começar a ceder na dúvida à competência do irmão, como se acusando: “Agora minha vida mudou, e eu me tornei o responsável e depositário único do segredo. A curiosidade me levou ao inferno; que coisa horrorosa! Mas tenho que manter o máximo do bom senso, manter a cabeça firme; não posso fraquejar de jeito nenhum! Tenho que enfrentar a situação com os pés no chão. Se a realidade é essa, tenho que aceitar e lidar com ela do jeito que é; sem me deixar dominar”. Enquanto o sono não vinha – e prometia não vir, tal o estado de angústia que dominava aquela alma – e para desviar o pesadelo, Candota começou a repassar com saudade e tristeza as recordações dos tempos passados, principalmente quando os irmãos eram crianças e se folgavam nas brincadeiras da idade. Do irmão, passou às lembranças dos amigos, dos colegas de colégio, da primeira paixão e das aventuras inocentes e despreocupadas. Forçava só lembranças agradáveis, com o objetivo de abafar seu estado sofredor. Lembrou-se, ainda, de seu dileto AGORA OU NUNCA MAIS colega e 31 amigo, William Benton, filho do cônsul norte- americano na cidade. Tinham sido colegas até o fim, no ginásio e na universidade, mas William seguiu o curso de matemática. No começo, quando ingressou no ginásio, esse amigo falava português com carregado sotaque inglês. Com o tempo e a dedicada ajuda de Candota, chegou a se expressar com relativa clareza. A gentileza foi correspondida certo tempo depois pelo amigo, quando o brasileiro fez o curso de inglês, que o ajudava na desenvoltura da conversação. Nos últimos anos de escola, como eram muito chegados, estabeleceram um regulamento próprio em que dialogariam da seguinte forma: William falaria em português e Candota, em inglês, com ambos se corrigindo mutuamente. Ademais, este freqüentava a casa do cônsul, Harrison Benton Korn, e treinava o inglês com ele e a esposa, Dona Ruth, que se mostravam simpáticos e agradáveis. Era comum Candota passar as tardes ali, por conta de estudos e jogos com o amigo, ocasiões em que acabavam sendo servidos de deliciosos e lembrados biscoitos fritos, feitos caprichosamente por Dona Ruth. Candota chamava o amigo de Bento, e parece que esse tratamento o agradava, pois nunca o corrigiu nem reclamou. A amizade entre ambos se consolidou no decorrer dos anos de escola até que, formado em Matemática, o filho do cônsul se transferiu para os Estados Unidos onde cursou mestrado. Fez também doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade especialidade. correio de Princeton Mantinham eletrônico, e ali passou constante deixando a lecionar correspondência atualizados seus sua pelo assuntos AGORA OU NUNCA MAIS particulares, 32 enquanto consolidavam a sincera amizade e simpatia que os ligavam. Num Natal dos últimos anos, antes da morte de Guilherme, Bento veio passar férias na casa de Candota. Revisitaram os lugares de outrora, trocaram idéias várias e falaram de seus sonhos juvenis. Enquanto Candota revolvia suas lembranças, veio à memória o dia em que ficou conhecendo Beatriz. Foi quando entrou na loja do Seu Juarez, procurando um presente para o aniversário de sua mãe. Quando foi pagar, estava na caixa uma atraente morena de olhos expressivos. Era Beatriz, que trabalhava na loja do pai; era a contabilista e tesoureira da firma. Daí em diante, foi levado a fazer algumas comprinhas desnecessárias, só para poder ver aquele encanto e sentir o coração esquentar e pular. Parece que essas rememorações todas de tempos felizes serviram para relaxar as tensões do dia, e o saudoso jovem finalmente se deixou levar para as profundezas do sono. Ainda profundamente impressionado, na manhã seguinte Candota saiu para os jardins, contemplando cada tipo de flor que encontrava. Concentrou atenção numa touceira de gerânios onde zumbia agitada leva de abelhas, sustentando a costumeira atividade de sugar o néctar ao tempo em que polinizavam as flores. Estava ali um espetáculo indicando o início de mais um ciclo misterioso e insistente da Natureza. Componente menor, mas essencial no concerto das danças cíclicas de todo o cosmo. Por algum tempo, deixou-se ficar absorvido por aquele espetáculo de afirmação da Vida. Não só das abelhas, mas das flores também. A seu modo, estas se AGORA OU NUNCA MAIS 33 ofereciam como partícipes do enredo maior, compactuando para o êxito daquele trabalho obstinado de servir e ser servido, sempre no cumprimento dos desígnios de Deus. Por vários dias, Candota se deixava ficar absorvido pelo misterioso programa do irmão, estudando-o em seus pormenores e repassando os cálculos e dados estatísticos ali incorporados. Além do exame do programa, fez acréscimos e alterações técnicas, com base em dados mais atualizados, sempre na esperança de que o resultado final sofresse alguma alteração. “Deve ter algum erro nesse negócio... Só pode!... Num programa tão complexo assim, só pode ter algum tropeço!” – imaginava Candota, enquanto trabalhava em suas análises e aperfeiçoamentos. Depois de diversos dias de cálculos e pesquisas, sentiuse esgotado e desorientado, decidindo dar férias à cabeça. Percebeu que sofria muito. Tinha que se distrair com alguma coisa. Estava indo com um ritmo forçado e considerou que era de bom senso aplicar um método mais racional à sua atividade. Lembrou-se que há dias não visitava Beatriz. Pegou o telefone e ligou para a casa da namorada: — Bom dia. É o Candota. Por favor, eu desejo falar com a Beatriz. — Aqui é a mãe dela. A Beatriz não está; já saiu pra loja. Liga pra lá, que já deve ter chegado. — Obrigado, Dona Berta. Ligo mais tarde. Pousou o fone lentamente. Sem saber o que fazer e ainda desorientado, ficou imaginando como se distrair daquela fonte de massacre mental. Entreteve-se jogando paciência com o baralho até mais tarde, quando foi chamado para o almoço. AGORA OU NUNCA MAIS 34 À mesa já estavam os pais. Dona Rosa, com expressão de entusiasmo e satisfação, dirigiu-se ao filho e provocou: — Hoje fiz um prato do seu gosto: nhoque à napolitana. — Beleza! E verdura, tem? — Tem, sim. Couve-flor no vapor e passada na manteiga, como seu pai gosta. — Ainda bem que não estou ficando esquecido nesta casa – brincou o patriarca. Depois da refeição, Alfredo costumava puxar uma palha, recostado no sofá. Coisa de dez minutos. Após a sesta, procurou o filho que se encontrava no jardim, apreciando a Natureza como de costume. Dirigindo-se ambos para o escritório, Alfredo falou: — Parece que você está se dedicando demais ao computador. Desse jeito, acaba caindo numa depressão... do jeito do Guilherme... Você precisa enxergar isso. — Não preocupa, não! — Preocupo, sim. Parece que você está perdendo o entusiasmo pela Beatriz, o que é normal. Mas, se for o caso, procura outra que te acenda o coração. Afinal, nesta vida tudo se move em torno do amor. Por isso, ele tem centenas de facetas, sempre diferentes nas formas, sempre iguais no objetivo. Acho que você se deixou prender a uma rotina. Isso faz mal. Ante o silêncio do filho, Alfredo calmamente foi até a janela. Pensativo, ficou por algum tempo olhando o espaço profundo. Virando-se para o filho, ponderou: — Já que você não gosta de lecionar, acho que podia arrumar um outro emprego. O trabalho numa coletividade é AGORA OU NUNCA MAIS 35 colorido, interessante e areja o espírito. Fica conhecendo muitas pessoas e isso é bom. A gente aprende e ensina também. Vai se sentir útil a alguém ou a alguma coisa. Acontece uma troca de experiência de vida. Essa atividade que você herdou do Guilherme é muito solitária e... o seu mundo acaba sendo você mesmo. Fez uma pausa, observando a expressão do rapaz, que ainda se mostrava atento, e continuou: — Devemos ter idealismo, um objetivo de vida; faz bem pra saúde. Você precisa encarar as realidades do mundo. Sua irmã se casou e já constituiu família. O normal é você também seguir esse caminho, que é o envolvimento sentimental com uma moça redentora. O jovem ouviu tudo com paciência e atenção. Pesou bem as palavras do pai, compassou breve silêncio e respondeu: — Pai, você está preocupado à toa. Pode deixar que estou no controle. Quanto à Beatriz, gosto dela, mas... — E então? —Ela tem atrativos... é inteligente... parece que gosta de mim, mas... — Então? — Ô pai! Ainda é cedo pra uma definição! — Não quero te forçar a nada. Estou só tentando um aconselhamento, e pai é pra isso mesmo! — É isso aí! Casar por casar, eu não quero. Primeiro, tenho que me convencer. Ah, tinha até esquecido! Fiquei de telefonar pra ela. — Bem, qualquer problema seu é meu também. Fala comigo, e eu vou te ajudar a resolver. Se precisar, é claro! AGORA OU NUNCA MAIS 36 Pode contar com o seu pai. A Terezinha avisou que vem almoçar amanhã com a gente. Parece que tem alguns assuntos sobre costura com sua mãe. Vou andando, que tenho algumas pendências a resolver lá na escola. Candota, procurando pôr ordem no raciocínio, ficou meditando sobre a conversa: “Diabo! Tenho um estorvo na vida, que são aqueles malditos gráficos, e não posso arrumar outro com a Beatriz. Não sei pra que que eu fui abrir aquele diabólico arquivo. As coisas vinham tão bem comigo! Eh... agora não adianta reclamar. Tenho que decidir isso é hoje! Não posso demorar! Ainda bem que não fiz compromisso formal. Tudo não passa de um namoro pra gente se conhecer. Preciso conversar com ela, mas num sentido que não deixe ela iludida ou magoada. Afinal, gosto muito dela”. Pegou o telefone e marcou encontro para aquela noite. Deu depois uma espanada no carro, parado na garagem por alguns dias, e procurou se distrair com a televisão. Na proximidade da noite, preparou-se para o encontro, tirou o carro do abrigo e se dirigiu à casa de Beatriz. Já no destino, tocou a campainha e foi atendido pela namorada, que o esperava. Risonha, irradiando beleza, olhos grandes e meigos, não escondeu a satisfação. — Olá, sumido! Foi bom você ter vindo – enquanto lhe estendia em acolhida as duas mãos; ato correspondido. — Tudo bem? — Achei que você tinha se esquecido de mim. Já estava com saudade. — Andei muito atarefado com os... — Tanto serviço assim? AGORA OU NUNCA MAIS — Eh!... 37 você sabe... a gente não pode fugir dos compromissos que assume. — Nem telefonou! Vamos assentar na sala. Você prefere na sala ou na varanda? — Na varanda é melhor. O tempo está meio quente, e ali é mais arejado. Além disso, podemos ter mais conforto e mais inspiração. Quero ter um assunto franco com você, e ali é melhor. Para disfarçar o susto com esse aviso, Beatriz tentou se controlar e disse que ia à cozinha buscar uns biscoitinhos de coco que sua mãe tinha feito naquela tarde. Com isso, deu-se tempo para recompor a mente. De volta, carregando um pratinho coberto com guardanapo, passou na sala, pegou a mão do namorado e foram ambos para a varanda. Depois de acomodados num sofá balançante e de uma espera em silêncio, Beatriz se aventurou: — Que segredo é esse que você está guardando pra mim? — Eu vou te falar, mas calma aí! — Estou calma, ué! Ante o silêncio mais prolongado do namorado, Beatriz insistiu: — Fala! Olha, com três anos de namoro, acho que nossa conversa é sinceridades pra é ser que sempre reforçam leal o e verdadeira. relacionamento Essas de duas pessoas. Mas que assunto é esse afinal? Fala! Criando coragem, Candota se aventurou: — Não é nada de mais... É assunto comum dos namorados e... acho que está na hora de ser abordado, tanto pelo respeito como pela afeição que sinto por você. AGORA OU NUNCA MAIS 38 De início, parecia que estava ensaiando declaração de amor, mas aquela palavra no final – afeição, fraca para aquele momento – trouxe para o coração de Beatriz um primeiro sinal de desaponto. Ela desejaria uma palavra mais arrebatadora. Curiosa e decidida, animou o companheiro enquanto oferecia um biscoitinho: — Continua, mas seja verdadeiro, hem! Candota, sufocando seu amor por Beatriz, procurou medir bem as palavras e, um tanto formal, se manifestou pausadamente: — Tenho que ser honesto com você. Gosto de você, te acho bonita, você tem sido muito atenciosa comigo. Há dois anos estamos nos conhecendo... — Três anos – retificou Beatriz, com firmeza. — É. Três anos. — E daí? Fala! Pode falar! – animou Beatriz, impaciente, ante a estacada do namorado. — Pois é... cada vez eu te admiro mais. Estive fazendo um exame da situação e cheguei à conclusão de que não posso ser egoísta. — Egoísta! O que que é isso! — Estou tentando te explicar. Assumir compromisso com você, sem que eu esteja convencido da minha capacidade emocional de te dar completo amor e felicidade, seria uma atitude egoísta e enganadora. Eu sou incapaz de atitudes desse tipo. Gosto de você, mas não o suficiente pra comprometer o seu futuro. Percebo que devo deixar livre o seu caminho. Assim, você vai poder encontrar outra pessoa que te possa fazer feliz. AGORA OU NUNCA MAIS 39 Beatriz, sofreando o choro, com o peito palpitando e face rosada, solta a alma: — Você deve saber que eu te amo! Já dei provas disso várias vezes. Nesses anos, venho cultivando esse amor com zelo e sonhos. Você tem o seu direito de escolha, mas se gosta de mim, como disse, tudo passa a ser questão de tempo. E, já não conseguindo conter o choro, explode em lágrimas: — Não me abandona! Dá mais um tempo pra decidir! Quem sabe, você ainda me amará o suficiente! A situação ficou constrangedora. Candota, sem demonstrar, sofria ante aquelas lágrimas de amor à sua frente. Amava profundamente Beatriz e, no entanto, procurava cumprir a decisão anteriormente tomada. Sentia que estava agindo como autômato, tal como executando um esquema de computador programado para tal desempenho. Com isso, estava esmagando suas emoções. Depois de alguns segundos, ambos em silêncio e Beatriz mais controlada, Candota quebra o embaraço do momento: — Não adianta dar seguimento a uma relação que está insegura da minha parte. E você ia ficar embalada numa esperança que já não tem encanto. Reconheço que o covarde sou eu, mas não posso deixar de ser honesto com você. Beatriz nada respondeu. Manteve-se pensativa e, triste, tentava se conformar. Mais um período de silêncio e embaraço. Candota, acanhado, se despede com simples aperto de mão. Vai a passos lentos para o carro e, sem olhar para trás, retorna a AGORA OU NUNCA MAIS 40 casa. Beatriz permaneceu à porta, contendo o choro, vendo a esperança se esfumar. Apesar do sofrimento, naquela noite Candota dormiu melhor. Havia tirado da consciência um fardo, a responsabilidade da indecisão e do engano. Agora, sim, tinha retificado o rumo da sua vida. Estava preso apenas aos problemas das estatísticas, aqueles gráficos preocupantes que, como parecia, iriam acompanhá-lo pelo resto da vida. No dia seguinte – a família reunida na sala –, no meio das conversas de rotina, Candota falou aos pais: — Ontem eu terminei o namoro com a Beatriz. Não teve briga, não; foi só uma conversa franca. Falei que não estou maduro ainda pra definir um compromisso. Estou muito atarefado com os serviços encomendados e não tenho tido tempo pra ela. Foi melhor assim. Saímos amigos. — Está independência bem, e meu suas filho. decisões Você já devem tem ser idade de consideradas acertadas. Tem tempo pra aparecer a moça certa do destino. Você também não acha, Alfredo? – perguntou Dona Rosa, virando-se para o marido. Alfredo, com o jornal nas mãos, assentiu com a cabeça e não fez comentários. Mas ficou em seus pensamentos: “Será que fui eu o responsável, com aquela conversa? Não devia ter me intrometido. Acho que falei demais”. Indo cadernos ao escritório, Candota arrumados na mesa olhou e para ficou os papéis desgostoso e e desanimado. Não via uma saída. Olhou para o computador que, mudo e sem vida, devia estar esperando que alguém o ligasse. Era uma fera adormecida, inofensiva, apenas aguardando que AGORA OU NUNCA MAIS 41 lhe dessem vida para, com imagem acusatória, expor sua obra de destruição. Parou um momento para se concentrar no problema, procurando achar uma estratégia para o caso, quando recebeu um impulso de otimismo e pensou: “Quem sabe eu consigo achar algum erro? Ah! se tiver um engano no diabo dessas contas! Vai ser uma felicidade! Aí conserta tudo e vai ser uma beleza! Vai ser a minha vingança! Guilherme era gênio, mas pode ter cometido algum engano!” É verdade que já havia repassado os dados e cálculos registrados pelo irmão, mas um lapso podia ter ocorrido, o que mudaria toda a questão. Desta vez, iria coletar os informes com inteira atenção e reexames, de forma que não escapasse nada. Precisava ter certeza absoluta. Problema esclarecido, a vida voltaria a sorrir. Poderia voltar para a Beatriz, realizar os sonhos acalentados, apaixonar-se, ter muitos filhos, ser feliz. Aquele bicho-papão não mais o amedrontaria. Era só questão de coragem e autocontrole. E de sorte também. Valia a pena esmerar-se na revisão, porque podia significar a sua libertação. Até já se vangloriava mentalmente: “Liberdade! Liberdade!” Movido agora com espírito otimista, arejado por aquela decisão, fez mentalmente um esboço do plano de ação para mais logo e se dirigiu a casa. Passou pela copa, foi à sala e perguntou à Dona Rosa pela Terezinha, que tinha prometido vir. — Avisou que não pode vir pro almoço; vem à tarde e ficar pro lanche. Ela vem com o Zeninho. — Vai ver, está presa com alguma encomenda. AGORA OU NUNCA MAIS 42 — Está sim. Disse que os pedidos de arranjos têm aumentado, principalmente pras festas de crianças. Está tendo muita procura por artesanatos e ela tem queda pra coisa. Está se saindo bem. — Antes assim. Pelo menos vai ganhando o dinheirinho dela. — Tem mês que ela tira mais do que o Zenon; já viu! — Fala baixo! A inveja pode escutar! No começo da tarde, Candota se dispôs a enfrentar o desafeto eletrônico. Antes, porém, devia fazer um planejamento meticuloso sobre todos os elementos com que ia trabalhar e colocá-los numa ordem adequada, sempre se precavendo contra enganos. Como de costume, o escritório do pai, onde se localizava boa biblioteca com expressivo cabedal de publicações sobre Química, estava à sua disposição para consulta e coleta de dados. Essas fontes informativas se somavam à boa biblioteca dos filhos, que ficava no escritório pessoal. Metodicamente, consultou diversos livros, publicações oficiais, dados estatísticos. Fez conferência de registros e confrontou anotações anteriores. Finalmente, rascunhou uma espécie de guia para orientar todos os passos da verificação. Estava nesses preparativos quando foi interrompido pela rápida e estabanada abertura da porta por alguém que tinha entrado correndo no recinto. Era o sobrinho, de três anos, garoto vivaz, curioso, que foi ali em busca do abraço de costume do tio. Sinal de que Terezinha já tinha chegado. Depois de oferecer alguma atenção ao menino, deu uma arrumada nos papéis, pegou o guri nos braços e saiu rumo à AGORA OU NUNCA MAIS residência. Encontrou 43 Dona Rosa e Terezinha na sala, examinando umas roupas. — Olá, Tê! Tudo bem? O rapazinho está espertinho, hem! Lá no escritório quis mexer em tudo. É muito curioso; vai ser cientista. Enquanto falava, colocou o menino no chão. Este, com a lepidez própria da idade, pegou umas batatas que estavam na cozinha e veio pedir palitos para espetá-las e brincar de boizinho. — Tudo certo! E você, continua trabalhando nos seus programas complicados? — Complicados pra você! — Se tem alguma coisa que eu nunca vou aprender é esse tal de computador. Minha praia é as artes. Lá em casa tem um, do Zenon, mas eu nem mexo nele. Pro Zenon está certo, porque faz parte da função dele. Muitas vezes ele traz serviço pra casa e é ali que trabalha. Diz que ajuda muito, que facilita os controles. Sei lá! Será que só o trabalho na fábrica não chega? Ele é muito responsável. Por ser o gerente da fábrica, o que sobra de encargos traz pra casa. Esse meu marido trabalha além da conta. Mas não interfiro. Deixo pra lá. Ele deve saber o que faz. — Você está certa! Computador é só pra quem gosta de ferver a cabeça – arriscou Dona Rosa, olhando para o filho, que respondeu: — Mas distrai muito. Tem horas que eu fico pensando: como seria possível viver neste mundo sem a informática? Como a sociedade de antigamente pôde se entender sem computador? AGORA OU NUNCA MAIS — Isso é 44 muito simples de explicar – atreveu-se Terezinha. — A gente só sente falta daquilo que sabe que existe. Como não tinha computador na antiguidade, nunca fez falta pra ninguém. Você hoje não sente falta do exprendito! — O que que é isso!? – estranhou o irmão. — Sei lá! Quem é que sabe? Só sei que ninguém sente falta dele – arrematou Terezinha, soltando deliciosa gargalhada. — Eh, você me pegou! Mas deixa isso pra lá! Vamos mudar de assunto. O Zenon já arrumou o carro depois da batida? — Nada! Já tem oito dias que está na oficina. Parece que está tendo problema com o seguro. E eu é que sofro as conseqüências; tenho que levar e buscar ele no serviço. Se eu não tivesse meu carro, não sei como a gente ia se arranjar. — Isso é assim mesmo. O melhor é não bater. Você deve é agradecer porque seu marido não sofreu nada no acidente. — Eh... questão de sorte! Mas tudo na vida tem seus problemas. Veja só essas roupas do Zeninho; também dão problema. Estão ficando apertadas pra ele. — É o Zeninho que está crescendo depressa. — Pois é! Trouxe pra mamãe ver se consegue dar uma alargada, mas está difícil. Nas próximas vezes, vou comprar roupas bem folgadas, que é pra serem usadas mais tempo. Já tem roupa perdida. Vou ter que dar algumas pra creche. Ali ficaram certo tempo, pondo os assuntos em dia e falando das rotinas, quando Dona Rosa avisou que ia preparar café com quitandas e se retirou para a cozinha. Terezinha AGORA OU NUNCA MAIS 45 aproveitou a oportunidade. Chegou mais perto do irmão e lhe disse em voz baixa: — Vou te contar uma coisa maravilhosa, mas por enquanto é segredo. Não vai falar nada pra mamãe, porque no momento não tenho certeza. Segundo meus cálculos, estou esperando o seu segundo sobrinho. Estou entusiasmada, e o Zenon também. Dá vontade de anunciar pra todo mundo. Minha boca coça, mas ainda é cedo. Segredo, hem! Olhando a cara inexpressiva do irmão, exclamou: — Ué! Parece que a notícia não te comoveu! Não está satisfeito como eu? — Não, Tê! Não é nada disso! Estou feliz pela novidade, mas é que homem é diferente. Sente pra dentro. Fica tranqüila que tudo vai bem. E meus parabéns. Em poucos minutos, chega Dona Rosa chamando os filhos para a copa, onde tinha arrumado o café. Candota participa da mesa, mas se retira logo, deixando a conversa ficar entre as duas, ainda sobre roupas e costuras. Com o retorno ao trabalho e concentrando-se onde tinha parado, reviu os papéis, fez umas separações desconexas e... Parou. Não sabia exatamente o que estava fazendo; seu pensamento vagava desnorteado entre sombras e luz, sem referência. O otimismo daquela manhã tinha sofrido perturbação com a revelação da irmã. De alguma forma, o futuro daquela gestação estava ligado à acusação do computador. Em caráter concreto, estava sentindo o primeiro efeito negativo daqueles gráficos. Mas tinha que lutar contra essa emoção danosa e enfrentá-la com os recursos do intelecto. Confiava que sua mente era mais forte e venceria AGORA OU NUNCA MAIS 46 aquele combate. Decididamente, tomou as rédeas da situação e impôs sua vontade. Iria refazer seus apanhados e chegar a uma definição; fosse para o bem ou para o mal. Sentiu um sopro de vigor e o ímpeto do confronto com a máquina. Sim, teria de ousar, mas com cautela, conforme aconselhava seu bom senso. Depois de certo tempo, dominador, reuniu e necessárias para definitiva a já catalogou se sentindo todas revisão as dos confiante e informações seus cálculos. Sentou-se ante o monstro, olhando-o com ânimo de desafio, e o ligou. Sentiu um arrepio de medo, como se estivesse entrando numa arena de combate. Na tela, sem vacilação, a imagem usual, como que a prévia abertura de cortinas de teatro. Expunha sua fria determinação de antepor não suas razões, mas seus fatos que punha à mostra um palco onde qualquer enredo da vida pode ser montado. Por certo, uma provocação e demonstração de poder daquele que pretendia aceitar o bom combate. Candota suspirou fundo, colocou os nervos em seus devidos lugares e, num ritmo lento, pensado, cauteloso, entrou no programa específico que estava revisando. Esse programa exige que sejam fornecidos dados corretos e coerentes para que possam ser feitas as análises predeterminadas. E os dados foram sendo digitados. Somente depois de cuidadosamente conferidos, um a um, eram eles incorporados ao programa. No dia seguinte deu prosseguimento ao meticuloso trabalho. Metodicamente, inseria um índice estatístico, verificava tabelas, compunha uma equação, confirmava nos livros de química as fórmulas de reações moleculares, AGORA OU NUNCA MAIS confrontava 47 indicadores parciais e, em longas pausas, repassava mentalmente a estrutura racional construída em cada caso. Não podia errar. Tinha que ter certeza de que os elementos com que estava lidando fossem confiáveis. Assim foi trabalhando, com firmeza, até a hora do almoço. Como demoraria um pouco a ser servida a refeição, tomou o rumo do quarto, momento em que sua mãe o alertou: — Não demora não, que o almoço já está saindo. Candota abriu uma gaveta do armário e, do fundo, sob roupas, retirou pequena caixa onde guardava certas coisas pertencentes à intimidade do coração. Folheou rapidamente algumas fotografias e retirou uma especial. Era o retrato de Beatriz encostada no carro. Deixando a lembrança aflorar, fica rememorando. No dia em que recebeu o carro novo foi à casa de Beatriz para mostrá-lo, como pretexto para vê-la. Ela disse, então, que esperasse um momento, entrou em casa e voltou com uma máquina fotográfica que tinha ganhado de presente de aniversário. A irmã de Beatriz, Jandira, bateu uma foto dos namorados junto ao carro, e depois se revezaram no manejo da máquina. A foto de ambos juntos saiu escura, mas a que focalizou apenas o carro e a moça dos seus sonhos ficou muito bem enquadrada, com boa exposição, e Beatriz está lindíssima nela. Depois de namorar o retrato, Candota deu um suspiro, guardou seus pertences e voltou à copa. Durante a refeição, Alfredo comentou algumas notícias políticas do jornal do dia, fez críticas ao governo e acrescentou: — Deu no jornal que os incêndios florestais no Brasil nos últimos três anos, de ano pra ano, têm subido. De dezesseis AGORA OU NUNCA MAIS 48 mil, passaram pra vinte e cinco mil. Desse jeito, não sei aonde vamos chegar. Uns dizem que a solução é conscientizar os fazendeiros, mas administração acho pública. que A o culpa assunto é do é puramente governo. Só de se conscientiza quem tem consciência. E o povo em geral não sabe nem o que é isso. Será que o povo sabe, Candota? — Consciência é ligado a sensibilidade. E as dificuldades e pressões econômicas desta nossa civilização fizeram o povo ficar insensível e egoísta. O pior é que esses incêndios aumentam também nos outros mundiais, essas tragédias países. Pelas estatísticas são crescentes. E os agentes desses crimes também aumentam. — Que agentes são esses? – perguntou Dona Rosa, curiosa, já se interessando pelo assunto. — Os agentes são os homens aculturados que, direta ou indiretamente, são forçados a praticar atos destrutivos pela necessidade de atender os seus interesses de sobrevivência ou de enriquecimento. O mundo natural é regido por uma situação de equilíbrio. Se esse equilíbrio é quebrado, o sistema entra em estado de desordem. E aí vem o caos. — Ave Maria! Então, o caos é o nosso futuro? – espantouse Dona Rosa. — Depende! Quando o desequilíbrio é instaurado em um sistema simples, localizado, a própria natureza reage e restabelece a estabilidade. É o caso, por exemplo, da nuvem de gafanhoto. Outro exemplo é a monocultura extensiva, que favorece o surgimento de pragas agrícolas, como conseqüência do processo seletivo. AGORA OU NUNCA MAIS 49 — Não entendi como a monocultura pode produzir pragas! – admirou-se Dona Rosa. — Na natureza, tem espaço pra todos. Se, num terreno onde existem pessegueiro, árvores vai ter de diversos comida pra tipos, todo eu tipo planto de um inseto e bichinhos. E o pessegueiro segue existência normal e sadia. Por quê? Porque cada um daqueles bichinhos tem o seu alimento de preferência. Se eu derrubar a mata e plantar só pessegueiros, os que se alimentavam das outras árvores vão morrer por falta de comida. Já os que se nutriam de pessegueiro vão ficar sem inimigos naturais e se imaginarão no paraíso, com preferência. a oferta Dessa abundante forma, a de alimento população de da parasitos sua de pessegueiro crescerá com tal ímpeto e abundância – aí sim, tornando-se praga – que provocará a morte das próprias fruteiras. Moral da história: o exagero de pessegueiros, por desequilíbrio do ambiente local, provocará excesso dos seus parasitos, o que, por sua vez, destruirá a sua própria fonte de alimentação. Em conseqüência, fica destruída a população da própria praga. Numa situação de desequilíbrio, sofrem todos. Todos morrem. — Mas é isso que você anda aprendendo com os seus trabalhos de informática? – pergunta Alfredo. — Não! Nada disso! Informática é instrumento de trabalho; é recurso pra alcançar resultados com rapidez. Não tem nada a ver com informações científicas, que estão nos livros e podem ser consultados por qualquer um. Essas coisas, a gente vai aprendendo com leitura, observação e raciocínio. AGORA OU NUNCA MAIS 50 Mas você deve saber disso. Na sua biblioteca tem muitos livros importantes que falam dessas coisas também. — Sim, eu sei. Achei interessante é você se entusiasmar pelo assunto. Assumiu uma impostação e linguagem professoral. Parecia um mestre apaixonado pela matéria dando aula! E depois ainda diz que não tem queda pra lecionar! Gostei de te ver! Candota percebeu que se tinha deixado embalar pelo tema e, por isso, tinha falado mais que devia. Em conseqüência, ficou meio acabrunhado e procurou mudar de conversa, comentando excelente documentário que tinha visto na televisão, em que era ensinado o preparo de mexilhões. Depois de calmo passeio pelos jardins para arejar o espírito, Candota escritório. recomeçou Enfrentou o seu desgastante computador com trabalho no naturalidade, já familiarizado com o inimigo, e ficou alimentando-o com os complexos elementos de cálculo e dados estatísticos, sempre sob a esperança de que algumas pequenas falhas encontradas na revisão fossem alterar para melhor as indicações finais. E assim continuou por mais alguns dias. Prosseguindo cautelosamente no trabalho, o tempo foi avançando, e as últimas folhas de anotações sendo viradas. O coração do nosso personagem acelerando as batidas, as orelhas esquentando, e a mente se enevoando. A decisão de parar novamente o fez estacar. Só faltava inserir o último dado e comandar a conclusão. Era intensa a ansiedade e tinha que se conter. Parecia que a cabeça ia ferver. Essa parada foi racional e salutar. Lembrou-se de Guilherme e pensou: “Tenho que ser mais forte. Não me AGORA OU NUNCA MAIS 51 entrego.” Levantou-se, foi à janela, respirou fundo algumas vezes e procurou impor o autocontrole. A tensão era forte, mas teimava que não podia ser dominado pelos caprichos do programa. Depois de uma meditação e de um exercício de relaxamento, compenetrou-se da superioridade do intelecto sobre as emoções. Reuniu forças e conseguiu superar a instabilidade. Agora estava impávido, sereno, dominador. Lentamente, já com domínio de si, cumpriu o rito previsto e a última etapa do apanhado. Sem hesitar, calcou finalmente a tecla de inclusão do último dado disponível e aguardou a elaboração e apresentação na tela das informações finais. Pronto. Ali estava à mostra o mesmo quadro estatístico apurado anteriormente por Guilherme e – o principal – a confirmação da desalentadora e nefasta data: 2036. “Guilherme era um gênio mesmo” – pensou. Foi bom ter feito a revisão. Serviu como prova de exatidão e coerência daquele programa. E isso era fundamental. Não havia mais dúvidas. Como o monstruoso resultado foi confirmado, seus cálculos só podiam estar corretos. O abalo em Candota foi grande. Aquilo equivalia a julgamento definitivo de um juiz togado que lhe apontava o dedo e dizia: “culpado!”, que sua cabeça traduzia, ressoando: “condenado... condenado...”. O certo é que ele se sentiu ao mesmo tempo derrotado e como que anestesiado; sem dores, insensível, porém de certo modo aliviado. Aquele resultado era, agora, uma informação definitiva e reveladora, traçando o rumo da sua vida e que iria afetar a sociedade, os povos, o mundo. E era segredo também. AGORA OU NUNCA MAIS 52 Não podia ser divulgado sob pena de ocasionar uma das seguintes situações contraditórias: ou Candota ser desacreditado e ridicularizado, ou o pânico aflorar e se alastrar pelos povos. Doravante, tinha que ser mantido o máximo cuidado nas conversas. Não podia partilhar o assunto com ninguém. No dia seguinte, antes de sair do quarto para o café matinal com os pais, ante o espelho procurou reverter seu abatimento psicológico mediante uma auto-análise. Raciocinou que tinha de ser forte, não demonstrar a angústia e perseguir o equilíbrio necessário para enfrentar a luta que prometia ser árdua dali em diante. Consultou sua consciência que dizia: “A partir de agora, devo desligar o nome de Guilherme desse maldito programa, como forma de prestar meu preito a ele. Será como redimi-lo pra poder descansar em paz. Por ter tido o pecado de violar seu segredo, assumo as conseqüências disso, ainda mais que fui eu que conferi tudo e confirmei como exato. Doravante, esse programa passa à minha guarda e... só peço ao Guilherme, lá do céu, que me ajude a encontrar o caminho da minha vida.” Depois do café, ainda à mesa e comentando com os pais assuntos triviais, tocou o telefone situado na mesinha do canto da copa, atendido por Dona Rosa. Depois dos cumprimentos e palavras de praxe, Dona Rosa ergueu o telefone na direção do filho: — É pra você. É a Beatriz. Candota vacilou e sentiu um baque na alma. Procurando não demonstrar aflição, levantou-se e pegou o aparelho. Seguiu-se uma conversa só de lá, pois o personagem de cá AGORA OU NUNCA MAIS 53 ficou quase só na escuta, soltando apenas expressões soltas de afirmação ou negação e balbuciando interjeições. A conversa ficou finalizada de cá por um lacônico depois-te-ligo. Dona Rosa abafou a curiosidade e sustentou o silêncio. Alfredo, que tinha permanecido calado para assuntar o diálogo, também se fez de ausente. Depois da costumeira volta pelos canteiros do jardim, onde procurava se distrair e admirar a natureza, Candota se dirigiu ao escritório, seu esconderijo e abrigo, seu ambiente. Recostando-se confortavelmente no sofá que ficava em frente da pequena estante de livros, pôs-se a meditar sobre aquelas situações de tumulto mental. Primeiro tinha que relaxar o corpo e a mente para absorver todos os dados das suas inquietações. Tinha que contar apenas consigo mesmo, pois não podia pedir conselhos a ninguém. Primeiro iria pensar sobre a Beatriz, assunto que parecia ter sido resolvido, mas que voltava a dominar sua alma depois do telefonema daquela manhã, e que despertou e agitou o seu coração. E ficou meditando: “Vamos supor que eu me entregue aos apelos do coração e procure a felicidade, casando com a Beatriz. Afinal de contas, eu a amo, eu já existo, e ela também. De qualquer modo, vamos ser vítimas desse futuro insano. Nesse caso, eu tenho que contar tudo a ela e eliminar a possibilidade de termos filhos. Contar antes do casamento? Contar depois? Se ela concordar, até aí tudo bem. Mas, como é do destino dos casais apaixonados, pode ocorrer o indesejável e ela se engravidar. Nesse caso... o peso da responsabilidade... eu não ia agüentar... eh, a vida ia ficar insuportável! Eu tenho que AGORA OU NUNCA MAIS 54 enxergar essas coisas é antes, porque depois não adianta! Não posso violentar minha consciência. Sei que meus filhos não terão futuro e serão sacrificados no pior dos infernos. Não, essa hipótese tem de ser riscada. Definitivamente, de qualquer forma isso não pode ocorrer; nem que seja por solução cirúrgica.” Por alguns minutos, Candota deixou-se ficar no vazio do pensamento, como a procurar serenidade e clareza mental. Depois de longo suspiro, prosseguiu em seus pensamentos: “Eh!... falar com a Beatriz sobre filhos... posso tentar... eu posso até ser considerado atrevido ou estúpido. Seria mal compreendido? Ou teria o acolhimento da sensatez? E se a crueza do assunto matar o amor da Beatriz? Quem sabe, o melhor seria eu me tornar irresponsável? Existe tanta gente irresponsável! Mais um não ia fazer diferença! Aí eu ia tratar apenas da minha felicidade, ficar egoísta, igual muita gente... Ahh! me dá é nojo; não é por aí! E se eu estiver sendo muito pessimista? Dúvida... ah, dúvida! Quem sabe estou louco e não sei? Na verdade, estou entre duas forças: amor e consciência. Qual seria a mais forte? O que que eu faço? Seria justo sacrificar a maior das emoções, o amor, por uma causa irresponsável da humanidade? E com base em fatos que talvez nem aconteçam! Mas... e o rigor e frieza das conclusões das projeções estatísticas? Estaria duvidando da exatidão dos meus cálculos?” “Não, assim não é possível. Parece que uma só cabeça é insuficiente pra suportar todos esses problemas. Só com a ajuda de alguém, eu ia poder sair com a melhor solução. Sim, ajuda. É isso mesmo! É disso que estou precisando. Mas de AGORA OU NUNCA MAIS 55 quem? Aí é que está a questão. Não tem ninguém. Meu pai não serve, porque vai subordinar o problema ao amor paternal. Pode ser que ele assuma os meus problemas, e aí quem vai ficar sofrendo é ele; isso eu não quero. Ou vai rir de mim? E amigos? Qual? Em quem confiar, tendo em vista que o assunto não pode sair de controle? O único é o Bento, talvez. Tem a vantagem de ser matemático. Mas mora nos Estados Unidos e... deve ter suas próprias ocupações e problemas... Eh, vamos ver...” Candota deixou a mente vagando pelos mesmos problemas existenciais, procurando uma lógica de raciocínio, mas sempre se defrontava com os obstáculos conflitantes entre as emoções e a razão. Resolveu que aproveitaria a oportunidade do diálogo que ia ter com Beatriz e procurar sondar a possibilidade da primeira hipótese – casamento sem prole – o que seria a introdução de fato novo nessa intrincada questão. Ligou para a amada e marcou o encontro para a noite. Sentiu-se aliviado por ter sido capaz de tomar uma decisão e já sentia um disfarçado otimismo. Apanhou novo ânimo e pôs fé naquele fio de esperança. Cumprindo a rigor o horário marcado, o visitante foi recebido à porta por Beatriz que se apresentou deslumbrante, com a vida toda brilhando naqueles dois olhos grandes. Tinha se preparado com especial capricho. Usava belo vestido rosa puxado para solferino sem enfeites, mas bem talhado, com diversos recortes ressaltados por sutache da mesma cor, em tom mais claro. O cabelo tinha sido arranjado com capricho, ainda que solto e sem adornos aparentes, guarnecendo aquele AGORA OU NUNCA MAIS 56 belo rosto, tratado com ligeira e suave pintura. Nas orelhas, singelos brincos completavam com sua longos formosura pingentes com oscilantes agradável e que sedutora aparência. Ao vê-la, Candota sentiu fortes pulsos de amor no coração, mas se conteve. Estendeu-lhe a mão, em cumprimento, e expressou um forçado sorriso de bom humor. — Oi, Beatriz! — Oi! Como vai? — Tenho trabalhado muito e vivendo como a vida manda. Mas está tudo bem. — Sempre a mesma desculpa. Sempre trabalhando... Entra! Vamos conversar na varanda lá de dentro. Ao passarem pela sala, Candota notou que a família estava com visita. Manifestou, sorridente, uma boa-noite-atodos e se deixou levar para a conhecida e amistosa varanda. Trocaram conversas quase protocolares sobre amenidades, ocasião em que Candota aproveitou para admirar os encantos daquela que poderia mudar, ou o seu destino, ou o da humanidade. Já estava pensando se teria coragem de abordar o assunto crucial da conversa, no interregno de longo silêncio, quando Beatriz se compôs na postura e no semblante e, com coragem e meiguice, se aventurou, olhando fixo nos olhos do amado: — Eu pedi pra conversar pessoalmente porque imaginei que você já podia ter pensado melhor sobre o nosso namoro. Te dei um tempo. Pelo que sei, você não está interessado em outra mulher. Só cuida do trabalho e deve estar se sentindo só. AGORA OU NUNCA MAIS 57 Candota percebeu a angústia dessa última palavra – só – e Beatriz prosseguiu: — Como já te disse, eu te amo! – e ficou esperando a reação. Candota, sem saber o que dizer, sofria calado. Ante o silêncio, a jovem prosseguiu: — E como você declarou que também gosta de mim, acho que está faltando apenas um entendimento... um entendimento! – repetiu, como que fazendo uma pergunta. Sem reação, insistiu: — Talvez tenha alguma coisa obscura atrapalhando melhor entrosamento e que eu desconheço. Queria que você fosse mais claro comigo. Fala, fala alguma coisa! Por fim, recebeu um impulso de coragem e disse: — Beatriz, eu também te amo, mas acho que tudo tem que se ajustar a realidades. Sei que você completaria minha vida, mas não devemos ser egoístas. — Lá vem você com a mesma conversa! — É que não podemos querer felicidade só pra nós dois. — E daí? — Temos que pensar em outras pessoas também! — E daí? Criando coragem, entrou no difícil tema, pensando: “Seja lá o que Deus quiser” e ousou: — Tenho notado, pelas suas palavras e ações, que você tem demonstrado que gosta de crianças. — Ah! adoro crianças! Elas são um mimo, não são? — Me diga uma coisa, quantos filhos você gostaria de ter? AGORA OU NUNCA MAIS — Ué... 58 estou te estranhando! Essa pergunta é a propósito de quê? Você está desviando a nossa conversa. — Não pense errado de mim. A minha pergunta tem razão de ser. Acho que ela é natural e faz parte do nosso processo de entendimento. Afinal, devemos ser honestos e francos um com o outro. Sempre foi assim! — De certo modo, você tem razão. É que me assustei com o repentino desvio do assunto que estava sendo tratado. Já que você está curioso de saber... pois é... como você sabe, gosto de crianças. Agora, quanto a filhos... isso depende do destino. Eu deixaria essa sina pra Deus resolver. Mas gostaria de ter filhos sim; quantos eu merecer. Satisfeito? — Pois é. Aí é que está a questão. No caso hipotético de assumir um compromisso com você, eu não poderia ter filhos. Se te pedisse em casamento, seria com essa condição. Candota deu cumprimento à missão, mas sentiu a vista escurecer, o cérebro rodopiar, parecendo que se tinha lançado num abismo escuro. Instintivamente, segurou firme na cadeira, esperando as conseqüências. Beatriz constrangeu-se. Achou que ele foi muito direto na revelação; não fez rodeio, não fantasiou, não amaciou nem preparou o espírito da amada. Foi brusco e mostrou falta de tato. Poderia ter sido mais gentil. Contudo, refazendo-se da surpresa, preocupou-se em afastar o obstáculo, oferecendo palavras de otimismo: — Ah, Candota! Isso hoje em dia não é problema. Com a evolução da medicina, tem muitos tipos de tratamento, e essas questões seriam resolvidas. Além disso, caso Deus não queira, AGORA OU NUNCA MAIS 59 existe a alternativa de adoção de uma criança, que não é nada difícil. Candota não queria magoar Beatriz, mas não podia deixar prevalecer aquele mal-entendido. E agora? Como sair dessa situação? Teria que usar de franqueza sem revelar seu segredo. Procurou se compor com serenidade e regulou a voz com doçura e carinho: — O caso não é esse! Não é do jeito que você está pensando! Eu, ordem. minha A pessoalmente, falta de não tenho entusiasmo problema com filhos dessa é pela insegurança de futuro que a gente está vendo neste mundo. Acho que não tem boas perspectivas de felicidade pra nossos descendentes. Esta nossa civilização está em plena decadência, em todos os aspectos, e eu temo pelos inocentes que estão por nascer. Não vejo nada de bom pras novas gerações. Esse o meu ponto de vista. Percebendo o desgosto que causou na amada, cujas feições mostravam severo aborrecimento, procurou justificar seu arrazoado, mas dando por perdida sua estratégia: — Não estaríamos realizados se vivêssemos só pra nós dois. Em conseqüência, eu estaria frustrando seus ideais de felicidade visto que você pretende uma família com descendentes. Percebendo que Beatriz não se tocou com a justificação, ainda tentou obter pelo menos uma concordância amigável e jogou sua última cartada: — Você não acha? A jovem, sentindo-se decepcionada e infeliz, retrucou zangada e com voz alterada: AGORA OU NUNCA MAIS 60 — Você é muito racionalista. Ter filhos implica realização de atos de amor que se legitimam perante a Natureza. As ações de emoções e sentimentos não podem ser prejulgadas pela razão. As aspirações do coração não se subordinam a censuras. Acho que você está enxergando o mundo com muito pessimismo. Você... — Beatriz!... — ...precisa receber uma sacudida de emoções. Não se pode pensar somente no lado escuro da lua. O luar foi feito pra encantar e estimular os sentimentos do amor. Ademais, você precisa saber que, por natureza, as mulheres são coração, e os homens ficam usando a mente pra atrapalhar o coração. Daí que a felicidade duma vida a dois reside justamente na sabedoria da dosagem certa de emoção e razão. Você demonstra que apenas pensa, não sente. Você não me ama, porque não sabe o que é amar; vive mergulhado na lógica do raciocínio. Candota, sentindo-se vencido e desencorajado, se entregou: — Você tem toda razão. Eu bem que tentei romper minhas visões negativas, mas elas continuam a comandar as minhas decisões. Sou prisioneiro delas. Seguiu-se longo silêncio. Da sala ouviam-se movimentos indicando que a visita se retirava. Candota, despertado para a realidade e percebendo as feições de revolta da moça, esforçou-se para permanecer em tom sereno e disse: — Por te amar e respeitar é que tinha que ser franco e honesto. Agora você conhece a dúvida que me atormenta. AGORA OU NUNCA MAIS 61 Acho que não temos escolha. Você encontrará outro amor a quem... — Tá! – bradou Beatriz com indignação. — Você não precisa me dizer mais nada. Chega! Já vi que não nos entendemos mesmo! — Beatriz, por favor, me leve até à porta. Despediram-se secamente nesta noite. Parece que tudo estava terminado mesmo. Na volta para casa, Candota ficou se conformando e se justificando perante a consciência. De qualquer forma, tinha sido frutífera aquela conversa, que afinal serviu para definir as condicionantes das suas dúvidas. Mas estava pesaroso por ter deixado Beatriz magoada. “Quem sabe, ela teria razão? Talvez não a amasse o suficiente” – pensou. Doravante estava delineado seu caminho, e a primeira coisa a fazer era se esforçar para abafar aquele amor. Tinha que se tornar imune a esse sentimento. Sua atenção doravante seria dirigida apenas para a luta contra o medonho computador que o atormentava. O andar do tempo impunha providências urgentes. Já o tinha gastado inutilmente com suas indecisões, e os primeiros passos deveriam ser planejados logo. Em casa, já acomodado, sentia-se ansioso apesar do esforço para relaxar. Lembrou-se dos comprimidos ansiolíticos que tinha na gaveta do armário, receitados na época em que ficou abalado pelo conhecimento do revolucionário programa e que acabou gerando essa situação. Tomou um e se aquietou, aguardando a visita de Orfeu. No dia seguinte, levantou-se mais tarde por efeito do tranqüilizante. Sentia-se bem dormido e disposto. Foi ao AGORA OU NUNCA MAIS 62 escritório; deu uma arrumada em alguns papéis e notou que alguém tinha andado mexendo em suas coisas. Parece que não estavam daquela forma. Verificou os conteúdos, mas concluiu que suas anotações não mostravam nada que pudesse revelar o verdadeiro objetivo do seu trabalho. Teria sido a faxineira? Talvez, mas resolveu não dar importância ao fato. Candota se acomodou no confortável sofá para meditar sobre o planejamento da sua vida: “Nessa indecisão é que não posso permanecer. Se não encontrar um rumo, vou ter que providenciar uma consulta ao psiquiatra. Mas como? Teria que contar meu segredo? Se chegasse a esse ponto... só se estivesse louco, mas isso eu não sei.” “Bom, de qualquer forma, descartando a hipótese do psiquiatra, agora só existe um rumo. Isso é taxativo. Eu sozinho não posso fazer nada. Divulgar minhas descobertas é arriscado. Preciso de ajuda, mas que seja forte, efetiva, condizente com a situação. Acho que o único que pode entrar nesse esforço é mesmo o Bento, porque afinal ele é norteamericano, vive nos Estados Unidos, exerce atividades intelectuais e deve ter relacionamento com pessoas influentes na política americana. E, pensando bem, numa empreitada de caráter mundial, só mesmo os Estados Unidos têm condições materiais e políticas de liderar medidas compatíveis com o problema. Não vejo outro caminho.” “Ele já me convidou várias vezes pra passar férias lá, e a oportunidade é agora. Levo todos os documentos da pesquisa pra demonstrar e colher alguma alteração que o Bento possa sugerir. Quem sabe pode dar certo? Duas cabeças pensam AGORA OU NUNCA MAIS 63 melhor. É isso aí. Vou pôr à prova a exatidão dos meus estudos ou concluir que estou louco. Pelo menos, a situação vai ficar mais clara. Antes de tudo, preciso entrar em contato com ele pra saber como anda a disponibilidade.” Depois da decisiva reflexão, ligou o computador e mandou um correio eletrônico para o amigo: “Caro Bento, saúde. Espero que tudo esteja bem com você, a Miriam e a filhota. Como você já sabe, eu não vinha muito entusiasmado no namoro com a Beatriz. Terminei de vez com ela. Nada de briga; foi acordo mesmo. Minha família continua bem. Só eu é que ando com umas preocupações de ordem intelectual. Sinto que estou precisando da sua ajuda. Se ainda tiver algum cantinho na sua casa, pretendo passar férias com vocês, mas não sei quando vou poder partir. Me comunica sua disponibilidade de tempo, pra eu preparar a viagem. Adianto que vou precisar da sua colaboração num trabalho importante que vou levar comigo. Do amigo, Candota.” Remetida a mensagem, estava inaugurado o início de uma peregrinação que só Deus sabe onde vai terminar. Estava dada uma guinada naquela vida de sofrimentos e despontava uma tênue luz de esperança. Ia aguardar a resposta do amigo, mas já podia adiantar as providências para a viagem. O primeiro passo era a comunicação de sua decisão aos pais. Para adiantar, pediria o passaporte e o visto da embaixada americana, coisas que geralmente apresentam alguma demora. AGORA OU NUNCA MAIS 64 Arrumaria os documentos que serviram de fonte à sua pesquisa e daria outros passos. Tinha que pedir ao pai um empréstimo para as despesas, pois suas economias eram insuficientes para a jornada. Agora, possuidor de extremo otimismo, calculou que, com a ajuda do amigo, em trinta dias conseguiria interessar o governo americano no assunto ou colher o fracasso total. Depois... o depois seria imprevisível. Tudo ia depender do grau de compreensão das autoridades americanas e dos cientistas que dão suporte a elas. Naquele dia, Candota disse aos pais, com certa formalidade: — Como vocês sabem, tenho trabalhado muito. Estou é precisando de férias. Como o Bento vem me convidando há tempos, decidi que chegou a hora. Já contei o dinheiro que tenho, mas não basta. Olhando para o pai, perguntou: — Dá pra você me emprestar o dinheiro das passagens? Pra minha manutenção lá, vai ser fácil; vou ficar na casa do Bento, e a despesa vai ser pouca. Pra isso eu tenho. — A gente dá um jeito, mas preciso de prazo – respondeu o pai. Contudo, ainda surpreso, indagou: — Você decidiu essa viagem assim de repente? E logo pra um lugar tão longe? Pra descansar, podia escolher uma boa praia aqui no Brasil mesmo. Temos tanto lugar bonito, tranqüilo, reparador. — Eu nunca viajei pro exterior e não vou perder esta oportunidade do convite do Bento. Vou apenas pagar uma visita. AGORA OU NUNCA MAIS 65 — E pra quando você marcou essa viagem? — Não marquei ainda. Passei um correio eletrônico pro Bento, dando conta dessa decisão e pedi que me avisasse uma boa data, de acordo com o interesse dele. Sei que ele tem lá seus compromissos. — Pra essa viagem, você tem de rever suas roupas – aconselhou Dona Rosa. — Ouvi dizer que lá faz muito frio e você tem de levar uns agasalhos. — Não preocupa não, mãe! Vou fazer planejamento da viagem e pretendo não esquecer de nada. Se ficar aqui alguma coisa, não tem importância; vou ficar em casa de amigo. O Bento é muito atencioso, como você viu quando ele esteve aqui no Natal. Lembra? — Eh! Eu conheço esse moço desde os tempos de escola e, quando ele esteve aqui, até então estava solteiro. Agora casado, as coisas costumam modificar. Você não conhece ainda a mulher dele e não sabe o ambiente que vai encontrar. Tomara que dê tudo certo. Faço votos que você goze bem as férias – arrematou Dona Rosa com tranqüilizador sorriso. Alfredo procurou encorajar o filho: — Vai e pode fazer o seu esquema de viagem que eu vou providenciar o dinheiro das passagens. Pensando bem, é até bom você conhecer outros lugares e arejar o espírito com culturas diferentes. Assim... — Ah, meu filho! – atalhou ansiosa Dona Rosa. — Vou te contar uma novidade, o Zeninho vai ganhar um irmão. Você não vai se demorar nessas férias, não é? Não vai esquecer da vida e ficar por lá, vai? Candota, fingindo surpresa: AGORA OU NUNCA MAIS 66 — A Tê! Parabéns pra ela. É até bom eu saber disso agora, porque ia na casa dela me despedir. O trabalho dela vai aumentar, mas a vida é assim mesmo, impõe essas coisas. Nos dias seguintes, Candota ocupou-se com os preparativos da viagem. Fez cópia de todos os documentos que serviram de base à sua pesquisa, gravou em disco o seu programa, os arquivos concernentes e os dados estatísticos apurados. Transpôs para um computador portátil todos os elementos com que trabalhou, fez testes e se certificou de que tudo estava em ordem. Não podia chegar à casa do Bento sem a documentação completa, que seria o apoio à argumentação. Diariamente consultava o correio eletrônico em busca da esperada notícia do amigo. No quarto, fez lista das roupas e objetos que ia levar, anotando algumas faltas e as providências próprias da véspera ou do dia da viagem. Supriu-se no comércio do que faltava, comprou cheques de viagem e se deu como aprontado. Havia apenas uma providência pendente: fazer ligeira visita à irmã, que já devia saber da viagem. A demora da manifestação do americano estava pondo Candota numa dúvida. Por isso, ficou matutando: “Quem sabe o correio eletrônico não chegou ao destino? Já havia cinco dias desde a data da mensagem. Esquisito! E se a mulher do Bento fosse uma danada, como minha mãe sugeriu, e tivesse interceptado a mensagem e jogado ela no lixo? Não. Não posso aceitar a hipótese de encontrar obstáculo logo antes de começar. Se assim fosse, já era pra pensar em desanimar. Nada disso! De qualquer jeito, tenho que ir em frente. Só preciso de uma palavra do Bento. Mas, pensando AGORA OU NUNCA MAIS 67 bem, minha situação é fraca. Conto só com ele. Eh, por enquanto não tem alternativa!” À tarde, na volta da faculdade, Alfredo procurou o filho no escritório, onde estava lendo alguma coisa para passar o tempo, e disse: — Olha, eu arrumei o dinheiro pras passagens. Dois mil dólares! Dá? — Dá, sim. — Seu amigo já respondeu? — Ainda não. Já preparei minhas coisas, mas as passagens vão ficar pra depois; deixa ele confirmar primeiro. À noite, por mais uma vez naquele dia, Candota consultou o computador para ver se havia notícias do Bento. Chegou o que esperava. Sentindo-se radiante e esperançoso, abriu o texto e leu pausadamente a mensagem: “Olá, Candota. Só hoje é que abri o correio eletrônico, porque fiquei fora de casa uma semana, dando um cursinho intensivo em Boston. Fico satisfeito que afinal você vem ver a gente. A Miriam já arrumou seu quarto, e você pode vir quando quiser. É só me avisar o dia e a hora, pra te esperar no aeroporto. Você deve marcar passagem pra Nova York, onde fica mais fácil eu te pegar. Me informa também o número do vôo e qual o aeroporto de destino, porque Nova York tem três. Quanto às suas preocupações, saiba que amigo é pra ajudar mesmo. Estou às ordens. Aguardando suas notícias, abraços meu e da Miriam. W. Benton” AGORA OU NUNCA MAIS 68 “Boas notícias! Agora, é só ultimar os preparativos” – pensou. No dia seguinte, pela manhã bem cedo, Candota foi à casa de Terezinha, entrando pela porta da cozinha, onde encontrou todos reunidos em torno da mesa do café. Zenon já estava colocando o paletó para ir trabalhar, denotando sua costumeira afobação. — Tudo bem? – cumprimentou Candota. Virando-se para a irmã, acrescentou: — Mamãe me contou a novidade. Agora é notícia pública; todo mundo vai ficar sabendo. Parabéns pra vocês. Na época da festa, devo estar de volta. Vocês sabem que eu vou passar as férias nos Estados Unidos, não sabem? — Eh! Mamãe me falou. Disse que está preocupada. Você nunca saiu de casa. Já sabe quando vai? Zenon, apalpando os bolsos para verificar a posse das chaves, do celular, da carteira, estende a mão para Candota: — Boa viagem, cunhado. Vê se não arranja namorada americana. Depois, casa e acaba ficando por lá. E, aí, as visitas ficam bem mais difíceis. Não repara não, que está na hora de ir trabalhar. Aproveita lá e te cuida, hem! — Pode deixar. Dirigindo-se à irmã, respondeu: — Tê, ainda não marquei a data da viagem, mas será por estes dias. Estou nos preparativos finais. E, virando-se para o Zeninho: — O moleque aí vai bem? Está tomando mingau e nem dá confiança pro tio, hem! Tem feito muita arte? Dá aqui um abraço no titio. Vovô e vovó também mandaram abraços pra você. AGORA OU NUNCA MAIS Zeninho 69 corresponde cumprimento, mantendo e na estende mão a os colher braços para lambuzada o de mingau, o que faz o tio tomar os devidos cuidados para não sujar a roupa. — Tê, o que você quer que eu traga lá dos Estados Unidos? — No momento, não estou pensando em nada. Se você vir alguma novidade pra nenê, pode trazer que eu vou precisar. — Está bem! Deixa comigo. Depois das despedidas, Candota foi até à agência de viagens onde colheu informações. Em casa, consultou o calendário e definiu a data da viagem para 17 de setembro, à noite – sábado – de acordo com o vôo bissemanal da companhia escolhida. À tardinha, comunicou ao pai a data, o trajeto, o preço das passagens e as providências que já havia tomado. Alfredo mostrou-se muito prático e eficiente, dizendo: — Está tudo bem! Sábado vai ser um bom dia; é dia livre pra mim. Já depositei o dinheiro na sua conta. Pode pagar com cheque seu. Candota não quis confiar no correio eletrônico para mensagem tão importante ao amigo – a decisão do dia da viagem – pois precisava evitar desencontro de informação. Chegar ao aeroporto de Nova York sem contar com a assistência do amigo seria uma penúria. À noite, telefonou para Bento e comunicou o número do vôo, o dia, a hora provável de chegada e o aeroporto. Assim estava bem; não havia perigo de a viagem dar errado. Foi orientado pelo amigo AGORA OU NUNCA MAIS 70 sobre o melhor procedimento no desembarque, indicando o local onde se encontrariam. Os dias seguintes foram gastos com uma série de providências em bancos, repartições públicas, com clientes e amigos, de forma que pudesse viajar com tranqüilidade. Na véspera da viagem, Candota fez, em seu quarto, revisão de todos os passos da bagagem. Estavam ali, o computador portátil, a mala grande e a sacola de mão. Para simplificar, resolveu acomodar o computador entre as roupas, retirando um robusto casaco que talvez não lhe fizesse falta. Rememorou os conteúdos calçados; documentos presente para a filha da da mala pesquisa; do Bento. e da sacola: objetos Nos roupas; pessoais; bolsos, levaria um o passaporte, documentos pessoais e a passagem. O que mais? Parece que estava tudo certo. Sentiu-se desse estado extremamente ansioso. e tomaria pensou se Tomou um consciência comprimido do tranqüilizante. Já estava esquecendo de levar a caixinha do remédio. Colocou-a na bolsa de mão e considerou terminado o inventário de viagem. No dia aprazado, depois de um sono sereno, sentiu-se bem disposto e otimista. Ligou o televisor para se inteirar da previsão do tempo; estimativas favoráveis. Olhou a gaveta onde guardava fotografias e deu uma namorada naquelas em que Beatriz aparecia. Ficou pensando em levar pelo menos uma, para matar saudade. Vacilante, acabou por guardar todas na gaveta. Não levaria nenhuma. O assunto estava terminado e seria bobagem manter acesa qualquer brasa emocional. AGORA OU NUNCA MAIS Além disso, 71 era necessário tirar aquela beleza dos pensamentos. Na copa, encontrou Dona Rosa que estava terminando uns riscos de molde de roupa. — Bença, mãe! Deu na televisão que o dia hoje vai ser firme. Como o vôo vai ser à noite, não tem ainda informações mais precisas. Mas setembro é época de tempo normal, tanto aqui como nos Estados Unidos. Vai ser uma boa viagem. — Não fica preocupado, não! Eu só quero é que você dê notícias logo que chegue lá. É só não esquecer da gente. Você está levando roupa pra frio? — Minha mala está completa. Estou levando até coisas que nem penso usar. Mas, por precaução... não é? Antes sobrar do que faltar. Alfredo, vindo da sala, mostrou-se sorridente e feliz. Condescendia com as esperanças do filho. De imediato, logo se ofereceu: — A que horas você tem de se apresentar no aeroporto? Nós vamos te levar pra ver você partir. — O embarque é no aeroporto internacional. — Daqui até lá são cinqüenta minutos... uma hora de carro. — Isso mesmo! O vôo sai às dez da noite, mas eu tenho que me apresentar duas horas antes, pros procedimentos finais. Toma, guarda este papel onde anotei o telefone do Bento, o endereço e o correio eletrônico, pro caso de vocês precisarem. Na expectativa da espera tensa e para empurrar o tempo, Candota achou boa idéia ler alguma coisa leve. Para afugentar AGORA OU NUNCA MAIS 72 as preocupações, pegou na estante da biblioteca o primeiro livro que lhe apareceu à vista. Acomodando-se no sofá do escritório, começou a reler trechos do Dom Quixote de la Mancha. Apesar de conhecer o livro, deliciava-se com o humor inocente do herói e se sentia feliz. Saltava capítulos para fugir da leitura formal. Sem escolher, e por acaso, deu-se lendo a descrição dos preparativos da ingente luta de Dom Quixote contra os moinhos de vento, apesar dos argumentos bem ajuizados do seu escudeiro Sancho Pança. Interrompeu a leitura; não podia continuar. Conhecedor da história e sabendo do insucesso do visionário, veio ao pensamento o paralelo entre aquela aventura e os seus próprios ideais. Estaria sendo também um Dom Quixote? Seu otimismo e disposição começaram a se deixar invadir pela dúvida. Por alguns segundos, ficou meditando. Fechou o livro, guardando-o na estante, e ligou o televisor num canal de desenho animado. Sua ordem mental indicava, resolutamente, que deveria desviar qualquer idéia de caráter derrotista. Naquele dia, o almoço foi especial. Dona Rosa caprichou no cardápio, não se esquecendo do nhoque à napolitana, prato marcante no relacionamento com o filho. Seria almoço de despedida, mas que deixasse no subconsciente dele aquele toque de presença materna. — Eh! Todas as vezes que eu vir massa nas refeições, vou lembrar daqui de casa – comentou Candota, olhando para a mãe. — Você não esquece, hem! — Isso é a marca que te ponho na idéia, pra você lembrar de voltar. AGORA OU NUNCA MAIS 73 — Olha, eu vou por trinta dias! Mas, se estiver gostando da hospedagem de lá, vou prolongar as férias por mais tempo, viu? A viagem é muito longa e precisa ser bem aproveitada. — Eu e seu pai não vamos ficar sossegados. É a primeira vez que você viaja pra tão longe. Vê se não fica por lá muito tempo. Já estou começando a sentir saudade – e começou a se emocionar. — Bobagem! Aproveita bem o passeio, que você merece. À tarde, o ambiente ficou mais alegre e animado com a família toda da Terezinha, chegada de surpresa. — A sua despedida não valeu! – disse a irmã logo que entrou e se encontrou com Candota. — Nós vamos no aeroporto também. O Zeninho está doido pra ver avião de perto. Depois que você foi lá em casa ele só fala nisso. E não pára de brincar de avião. Com todos reunidos na sala, e as conversas animadas, parecia dia de festa. Era na verdade a reunião de uma família unida em homenagem a um membro que estava prestes a se ausentar. Zenon contou, historiando os pormenores, um acidente que houve na empresa em que trabalha. E, com isso, as horas foram avançando com suavidade, sem que Candota sentisse a expectativa da viagem. Foi Alfredo quem interrompeu a reunião, anunciando que já era hora de tomar as providências, pois o relógio marcava 18:30h. Recomendava que era bom saírem mais cedo, por previdência, pois não é conveniente deixar as coisas para correrias de última hora. — Vamos que um pneu fure no caminho! – ponderou. AGORA OU NUNCA MAIS 74 Imediatamente Candota foi ao quarto e trouxe, com certo esforço, sua mala-sanfona bem abaulada. Colocou-a perto da porta de saída e foi buscar a maleta. No quarto, apalpou os pertences nos bolsos. Verificou a passagem. Tudo em ordem. Os dois carros chegaram ao aeroporto com tempo de folga, no horário marcado. Quem se previne não perde viagem. Ali estavam afinal. Feitos os procedimentos normais, a mala acusou excesso de peso, e teve que ser paga a taxa adicional. Zeninho insistia em ver os aviões de perto e sua mãe prometia mostrá-los da sacada superior, mas depois que “o titio embarcar”. O horário de partida estava confirmado e se aproximou o momento da chamada dos passageiros para a sala de embarque. Todos se despediram com emoção e Dona Rosa cedeu às lágrimas. Com Candota já isolado da família na sala de embarque, os familiares se dirigiram ao terraço superior, de onde teriam visão ampla dos aviões estacionados e das pistas de rolagem. Para Zeninho, foi uma festa. AGORA OU NUNCA MAIS 75 3° CAPÍTULO Feita a decolagem, Candota sentiu-se calmo, leve e otimista ante o ambiente acolhedor e a poltrona confortável. Sua presença naquele avião, levando-o agora para destino definido, produziu-lhe eficiente efeito tranqüilizador. Estava satisfeito e confiante em que tinha tomado a decisão adequada. Esse estado relaxante, mais o adiantado da noite e a cantiga sussurrante dos motores proporcionaram-lhe a chegada furtiva do sono. Mas não foi uma dormida contínua, porque intranqüila e recortada a todo o momento por sonhos perturbadores. Contadas as escalas e a diferença de fusos horários, o avião pousou no destino, domingo, às sete horas. Somente AGORA OU NUNCA MAIS 76 depois de quase uma hora, contudo, foram cumpridas todas as formalidades legais para o desembaraço. Conforme instruções precisas do amigo americano, Candota se dirigiu ao ponto de encontro determinado, no saguão do aeroporto. Enquanto caminhava, empurrando o carrinho com a bagagem, procurava vislumbrar o amigo naquele bulício de gente. Parecia que toda a população de Nova York estava ali apesar de ser domingo. Nunca tinha visto tanta gente girando num aeroporto. Era o primeiro embate visual que tinha naquela nova terra. À frente do ponto de referência, procurava distinguir o amigo naquela multidão quando este o surpreendeu, tocando-o pelas costas. — Ei, cara! — Bento! Sorrisos de satisfação de ambos, e se abraçaram. — Que bom te ver! E aí? – disse Bento. — Tudo certo. E você? — Mais velho e mais experiente. Mas não posso queixar. E agora, com a sua vinda, minha casa vai melhorar. Miriam vai ficar contente em te conhecer. Sua ficha já está feita com ela. Bento, pegando o carrinho da bagagem e se dirigindo para determinado rumo, recomendou: — Vamos sair logo desta confusão. Com este mundo de gente, cuidado pra não sumir de mim. — Não tem perigo. — Vamos pegar o meu carro, lá – apontando o caminho. No estacionamento, enquanto acomodavam a bagagem no porta-malas do carro, Bento disse: AGORA OU NUNCA MAIS 77 — Olha! Você não sabe, mas eu vou te contar. Mais de um ano, sofri um acidente feio de carro. Eu estava na direção, conversando com um colega lá da escola. Não sei explicar como; só sei que avancei o sinal vermelho num cruzamento, e um carro me pegou. — Você não me contou! A gente se falava pelo correio eletrônico, mas isso você não contou! — Devo ter esquecido. Também não ia te pôr preocupado. — O principal é que você está vivo. Isso é que vale! — Pois é. Sorte que ninguém morreu. Mas a trabalheira que deu, além dos prejuízos, não dá nem pra contar. Paguei tudo e fiquei no hospital uns dez dias. — Que brincadeira! — Os remendos no corpo até que foram fáceis. O pior foi o trauma psicológico. Passei um tempão sem ter condições de dirigir. Quando eu tentava, dava uma tremedeira danada. Depois, com os tratamentos que fiz e mais a minha força de vontade, consegui dominar a situação. — É isso! Trânsito é um perigo só! — Tem conseqüência. uma Não coisa: sei ainda nem ficou explicar um restinho direito, mas, de por prudência, quando dirijo ponho toda atenção no trânsito e não converso. Você vai compreender. Não repara não, hem! — Tranqüilo! Tudo bem! — Isso aumenta a segurança. — Eu entendo, cara! Acomodado no carro, Bento julgou que devia dar antes algumas explicações sobre o roteiro da viagem. AGORA OU NUNCA MAIS 78 — Moro em Nova Jersey, num condomínio a meio caminho entre a Universidade de Princeton, onde trabalho, e a capital, Trenton. Minha casa está relativamente perto de Nova York e tem boas estradas pra todos os lados. — Você caprichou na escolha, hem! Fica perto de tudo. — Pro meu caso e pra Miriam, está num lugar bem estratégico. Depois você vai conhecer melhor. Fez uma pausa, olhando curiosamente para o amigo, e indagou: — Antes de começar nossa viagem, o que que você tem de problema? Estou curioso, mas acho que não é nada grave. Pelo menos na aparência, você está bem. — Agora não dá pra tratar disso, que não é tão sério como você pode pensar. Deixa isso pra lá. Depois a gente conversa, tá? — Certo! Pega este guia rodoviário e vai se orientando enquanto a gente viaja. Assim, você vai ficar conhecendo alguma coisa sobre nossa localização. Enquanto o carro percorria o núcleo urbano, Candota manteve-se em silêncio, apreciando as novidades e detalhes do caminho. Com ajuda do mapa, foi identificando diversas referências. Sentia-se num outro mundo, em ambiente perturbador, enquanto o veículo ia rodando. As paisagens de concreto que iam surgindo lhe pareciam estranhas, e tudo se afirmava desconhecido, quase agressivo. Muita engenharia para muita gente. Parecia estar num impressionante formigueiro vazio, porque era domingo, e o povaréu devia estar recolhido. AGORA OU NUNCA MAIS Depois de 79 manobrar num extenso trevo rodoviário, entraram na auto-estrada, bastante movimentada, que os levaria ao destino. Bento acelerou a velocidade para a indicação ali permitida, fixada nas placas. Candota observou que havia, a residenciais. certas A distâncias, viagem se saídas prolongava para mais condomínios que tinha imaginado. Notou que passaram ao largo de Princeton, vista bem distante, e o amigo continuava tranqüilo ao volante. Após uma longa curva, Bento começou a diminuir a velocidade, sinal de que iria sair daquela rodovia e tomar uma estrada secundária, rumo ao caminho da residência. Passando para outra estrada, mais estreita e menos movimentada, entrou por bela alameda, contornou algumas ruas e penetrou diretamente pela frente livre de sua casa, estacionando o veículo numa ampla cobertura lateral. — Chegamos, ô meu! Está na sua casa. Achou longe? — Tendo em vista que rodamos por dois Estados e a ótima condição das estradas, gastamos pouco tempo. Estou vendo que você escolheu um condomínio bacana. Sua casa deve ser confortável. Com o barulho da chegada do carro, Miriam surgiu, vindo da frente da casa e carregando a filhinha nos braços. Sorridente, estendeu a mão para Candota e se apresentou, dizendo que estava satisfeita com a visita e que o marido falava muito sobre ele e das coisas do Brasil, principalmente dos costumes diferentes. Descida a bagagem, Bento apressou-se em prestar ajuda, carregando a mala grande. Miriam tomou a dianteira e instruiu Candota para que a acompanhasse. Passando ao lado da sala, AGORA OU NUNCA MAIS seguiu por extenso 80 corredor até uma porta. Abrindo-a explicou: — Seu quarto é este. Espero que seja do agrado. Aqui você vai ficar longe do choro da Elizabeth e pode dormir sossegado. Você sabe, criança nova não escolhe a hora de chorar. Mas em geral ela é boazinha. Encantando-se com a filha, brincou: — Não é, minha filha? Filhinha da mamãe! — Não se preocupe! Aqui está bom. Afinal, não sou nenhum marajá. Nem mereço tanto. Fico é muito grato pela sua atenção – manifestou-se Candota, com certa cerimônia. O anfitrião, logo que entrou no quarto, foi abrindo as janelas e acomodando a bagagem. Abriu os armários vazios e, chamando Miriam para sair, disse: — Agora você fica à vontade, arruma suas coisas e pode dar uma descansada. O banheiro fica aí do lado. E se faltar alguma coisa, é só me chamar. O telefone interno fica ali naquela mesinha. O amigo não se sentia propriamente cansado, pois a viagem tinha sido confortável. O que lhe pesava era certa insuficiência do sono daquela noite inquieta, tendo em vista que havia tido uma dormida sobressaltada. Como pretendia recuperar a forma, desfez a mala, escureceu o quarto, tomou um caprichado banho quente e, relaxado, deitou-se com a intenção de dormir ao menos por uma hora. Acordou com batidas na porta e a voz de Bento. — Entra, sô! — Deu pra dormir um pouco? – perguntou ao vê-lo deitado e com pijama. — Não estranhou a cama? AGORA OU NUNCA MAIS 81 — Nada! Estava mesmo precisando desse repouso. Meu sono ficou atrasado e agora parece que eu sou eu outra vez. — Vim te chamar porque nos fins de semana nós costumamos almoçar fora. Vou te esperar lá na varanda. Dando uma boa espreguiçada, Candota se sentiu renovado. Depois de enviar aos pais notícia de sua chegada, vestiu-se e saiu do quarto rumo à varanda, onde encontrou Bento sentado numa cadeira de balanço com a filhinha no colo. — Senta aí, Candota, e me conta as notícias da sua terra e da família. A Miriam está se aprontando e daqui a pouco vamos ao restaurante de costume. Você vai gostar; comida italiana. Minha sogra tinha uma cozinheira filha de italianos, e Miriam pegou gosto pela culinária daquela terra. Eu, por mim, aprecio qualquer tempero. Mas me conta como vão as coisas por lá. — Depois da morte do meu irmão, voltou a rotina de sempre. Meu pai continua entusiasmado com a Química e não larga o magistério. Nem fala em aposentadoria. E minha mãe, sempre sentimental. Ela foi quem mais sentiu a morte do Guilherme. Até hoje carrega nas feições a dor de mãe. Ela se distrai muito é como voluntária numa creche que fica perto de casa; às vezes fica o dia todo lá. Mandaram abraços pra vocês todos. E os seus pais? Será que eles se lembram de mim? — Claro! Não faz tanto tempo assim. Depois do consulado no Brasil, ele foi nomeado pra cargo elevado no Departamento de Estado, e ficamos morando em Washington. Continua no mesmo serviço até hoje. Às vezes fala em aposentar, mas parece que se acostumou com a burocracia e tem medo do ócio. Ele não tem inclinação pra outra atividade. Já ofereceram AGORA OU NUNCA MAIS cargos em empresas 82 particulares, mas recusa. Ele gosta mesmo é do serviço público. “Esta é uma esperançosa notícia, pois o pai dele está no núcleo do poder político e deve ter boas relações com as autoridades federais” – pensou Candota. Para se esclarecer melhor, perguntou: — Quer dizer que o seu pai ainda mora em Washington? — Mora. De vez em quando, eles vêm me visitar. Os avós, como mariposas atraídas pela luz, estão sempre esvoaçando em torno da Beth. É a primeira neta dos meus pais. Você se lembra da minha irmã? Ela se casou há cinco anos, mas não tem filho. Mora longe, em Dallas. — Eu me lembro dela vagamente. Quando eu ia na sua casa, ela se escondia de mim. Acho que é mais velha do que você, não é? — Dois anos. — Eh! As mulheres geralmente se casam mais cedo. — Por falar em mulher, e aquela sua namorada... a... esqueci o nome dela. — Beatriz. — Beatriz... isso mesmo. Naquela vez, no Natal, você me apresentou a ela e você estava bem entusiasmado. Ela é bonita! Acabou mesmo? — Eu continuo com os meus trabalhos de informática, na área de programação, e vou tocando a vida. No aspecto econômico, não posso me queixar. — Largou a Física? — Não. Eu gosto da Física e acompanho as atualizações. Mas me ocupo mesmo é com o computador, que é o meu vício, AGORA OU NUNCA MAIS 83 o mesmo que o Guilherme tinha. Crio programas e consigo ganhar algum dinheiro. — Então, está ganhando o dinheirão. — Nada! Só coisa miúda. De vez em quando, pego encomenda grande, mas é raro. — Informática... isso é bom só pra distrair e complementar outras atividades. Afinal, sua profissão é a de físico. Aí é que você tem que entrar de cabeça, eu acho. — Já me ofereceram a possibilidade de me inscrever pra cátedra de Física, na universidade onde meu pai trabalha, mas não tenho aptidão pra ensinar. Gosto da Física, mas não pra ensinar. É preciso muita paciência; questão de pendor. Pra mim, não dá. — Tem razão. Eu digo por experiência; ensinar é bom quando a gente gosta. Tenho colegas que ficam queixando do desgaste que sofrem. Mas pra quem gosta, como eu, não tem nada disso. Tenho é prazer de lecionar. — Já no meu caso, eu gosto mesmo é de criar, usando a fantástica potencialidade da informática. E esse ramo está, de certo modo, associado à Matemática, matéria do seu mundo intelectual. Se examinar bem, a informática abarca todas as áreas. Candota evitou tocar no assunto Beatriz, fazendo-se de distraído, para não entrar em explicações que não estava disposto a dar. Falaria disso oportunamente. Voltando o amigo, no entanto, a citar Beatriz, Candota saiu-se, fazendo comentário genérico: — Destino é fator interessante na nossa vida, não é? Cada um de nós parece ter uma urdidura adrede preparada e, AGORA OU NUNCA MAIS 84 inconsciente, cumpre esse enredo direitinho. Pensamos que a nossa vontade modifica o roteiro, mas quem sabe essa vontade também já foi prevista pela danada da Fortuna? Você, que é matemático, já procurou calcular o destino? — Não. Na minha área temos o cálculo de probabilidades que, dentro das suas limitações, funciona. Já é uma aproximação com o destino, não é? — O destino é um traçado exato; não aceita o mais-oumenos. Na verdade, ele é um mistério que habita o futuro e nem a Matemática consegue descobrir, porque ele fica escondido na abstração, até quando fica mais próximo o dia que marcou pra aparecer. Nesse caso, quando... — Acho que você é que está ficando abstrato. Deixa o destino sossegado e não liga pra isso, não! — Eu só estava meditando alto. Quando a gente... Neste discreto momento, vestido, Miriam sobraçando apareceu grande à porta, sacola e o trajando carrinho dobrável do nenê. — Podemos ir. Já fechei a casa toda. Está tudo em ordem. E, dirigindo-se ao Candota, sugeriu: — Você pode ir no banco da frente. No de trás é melhor pra mim e pra Beth. Fica mais fácil ajustar a cadeirinha no cinto de segurança. Candota respondeu que sim e ficou aguardando que Bento acomodasse o carrinho no porta-malas e entrasse no carro. Logo que pegaram a estrada, Miriam puxou conversa com o hóspede: AGORA OU NUNCA MAIS 85 — Vamos sempre a esse restaurante. Fica em Trenton, mas é perto; menos de trinta minutos. No Brasil existe restaurante com comida italiana? — Tem muitos! Lá tem casas com cardápio de quase todas as partes do mundo. — Miriam, por favor! – reclamou o marido, lembrando-a de que a conversa perturba a concentração ao dirigir o carro. Calados, foi até melhor para Candota, que pôde concentrar atenção no panorama que se ia desfilando ao correr da estrada. Chegados finalmente ao destino, acomodaram-se em acolhedor restaurante, muito bem estruturado, estabelecido em belo retiro próximo à entrada principal da cidade. Candota não perdeu a oportunidade e optou por nhoque à napolitana, como secreta homenagem à mãe. Bento ofereceu vinho tinto californiano para acompanhamento do almoço. O nenê não foi esquecido; recebeu sua papa industrializada, trazida de casa e servida em colherinha pela mãe. Terminada a sobremesa, escolhida dentre variada oferta de manjares, pudins e sorvetes, Bento pagou a conta, virou-se para o amigo e perguntou: — O que você achou da comida? O tempero é italiano, mas tem um tom meio americanizado, não tem? Fica mais do nosso gosto. Tentando ser agradável, Candota, não obstante a frustração com o sabor do nhoque – nem de longe lembrava o paladar do que Dona Rosa fazia –, manifestou-se satisfeito com a refeição e respondeu: AGORA OU NUNCA MAIS 86 — Você tem razão. Mas é natural que o tempero varie de país pra país. É conseqüência cultural. Isso é coerente e dá beleza à diversidade de gostos e prazeres. São os tons dos sabores básicos. — No Brasil também é assim? – perguntou Miriam. — Também! Imagine se os povos tivessem os mesmos valores, os mesmos gostos, as mesmas preferências. O mundo ia ser insuportável. — Já pensou? Tudo igual? Comida ia ser sofrimento, em vez de prazer – reforçou Bento. — A gente dá preferência a certos caracteres nacionais simplesmente porque nasce e é criado dentro duma contextura de tradição. Mas o restaurante é ótimo, tem bom serviço e ambiente de tranqüilidade. E esse vinho me surpreendeu; não sabia que vocês tinham vinicultura tão apurada. — Vamos embora, que a Beth já está choramingando pra dormir na caminha dela – lembrou Miriam ao marido. O retorno, feito em silêncio apenas interrompido eventualmente pelo choramingo da criança, foi tranqüilo e rápido. Ao chegarem a casa, Bento correu para abrir a porta da frente a fim de que a esposa levasse logo a guria para o quarto. Candota dirigiu-se ao seu aposento, onde pretendia colecionar os documentos atinentes ao programa que iria expor ao amigo. Não podia perder tempo. Precisava abordar o caso com o amigo antes que algum fato superveniente pudesse atrapalhar sua intenção. Pensando sobre o assunto, raciocinou e concluiu que melhor seria deixar a parte documental para depois, caso o amigo realmente se interessasse em ajudá-lo. AGORA OU NUNCA MAIS 87 Primeiro, iria expor seu problema e analisaria a reação do Bento. Daí, saberia como agir. Talvez seu otimismo não encontrasse a acolhida que esperava. Indo até a varanda, ali se assentou e ficou observando a circunvizinhança, enquanto aguardava oportunidade para uma conversa. Estava nessa distração quando surgiu Bento à porta, vindo da sala, e comentou: — Está tão pensativo aí! O que foi? Pensando sobre o destino? Vem, vou te mostrar a nossa casa. Não é tão boa como a do seu pai, mas dá pra gente se esconder. Vem! — Eu queria aproveitar este domingo pra expor o problema que já te falei. Vamos deixar pra ver a casa depois. Pode ser? — Está bem! Você é que manda. — Senta aqui. Eu preciso te falar agora, porque estamos a sós. O assunto é muito sigiloso. Bento franziu a testa, mostrando-se preocupado e concordou em sentar-se ao lado de amigo, exclamando: — Ora, ora! O que será isso que precisa ser tão secreto? Acho que não é nada com você! Não deve ser questão pessoal. Está com boa aparência! — É pessoal, sim! De tão complexa, é pessoalíssima... e coletiva também! Mas não é do jeito que você pode pensar. É coisa muito diferente. Por isso, eu preciso da sua ajuda. Você sabe, duas cabeças pensam melhor do que uma. — Você está muito sério! Pode desembuchar que estou ouvindo. AGORA OU NUNCA MAIS 88 — Primeiro, eu quero que tenha paciência comigo e que faça esforço pra tentar me compreender. Quero expor minha situação com clareza. Bento, impaciente, animou: — Pode falar! — Eu descobri um fato muito sério, de alcance mundial, e que guardo só comigo. — Caso sério, mas em que medida? — Tão sério que parece inverossímil; mas é real. Não tive confiança nem coragem de revelar ele nem pro meu pai. — Por quê? — Porque o assunto é muito perigoso se cair no conhecimento público. A única pessoa que confio, e que pode me ajudar, é você. Candota, calado, olhava para o amigo, tentando perceber indicação de seu interesse. — Prossiga! – convidou Bento, curioso. — Tem quase um ano que venho carregando na consciência a responsabilidade de conhecer o destino provável da humanidade e de não poder fazer nada. — Lá vem você outra vez com o destino. Sai dessa! Liga, não! — Por isso eu te pedi paciência. — Tudo bem! Fala. — Dependendo das medidas administrativas que os governantes tomarem, há duas prováveis situações. Uma é trágica, mas redentora. A outra, simplesmente trágica. Não tem meio-termo; não tem outro caminho. AGORA OU NUNCA MAIS 89 E, olhando fixo nos olhos de Bento, sentenciou com expressão amargurada: — A humanidade está numa bifurcação. — Não te entendi! — Decide ou não decide. Segue o rumo da morte ou da vida. — Continuo não te entendendo. Seja mais claro! — Achei necessário fazer algumas considerações pra que você pudesse captar a importância do assunto. Já entende que o problema é monstruoso? — Mas que problema? – voltou Bento com certa impaciência. — Continuo não te entendendo. Não sei nem do que você está falando! Notava-se que Candota estava ansioso e suava muito, o que embaraçava um pouco sua capacidade de encadear as idéias. — Vou entrar nos detalhes. Calma! — Calma, você! — Depois vou te mostrar os documentos que trouxe comigo e que comprovam a certeza dos meus cálculos. Você sabe que sou aficionado pela informática, não sabe? — Sei, sim. E daí? — Além dos meus estudos de física e informática, sempre me interessei pelos assuntos de ecologia. Eu estava, em certa época, estudando... Candota se interrompeu à vista de Miriam que surgiu na porta da sala, naturalmente para lhes fazer companhia na varanda. Sentando-se ao lado do marido, comentou: AGORA OU NUNCA MAIS 90 — Dois amigos de infância rememorando os tempos passados, hem! — Hum-hum! – fez Bento. Dirigindo-se ao visitante, comentou: — O William fala sempre nas aventuras que vocês dois e a turma tiveram na época em que morou no Brasil. Não sei se é por causa do país ou por influência da idade escolar que a memória dele sempre volta com saudade. — Todo mundo gosta de lembrar dos tempos da meninice – justificou-se Bento. — Fala muita coisa daquele tempo. Eu acho bom escutar as histórias que ele conta; é engraçado! Conta que a turma roubava jabuticaba numa chácara. E, olhando para o marido, arrematou: — Que coisa feia! — Não roubava, apenas colhia – corrigiu maliciosamente Bento, olhando para o amigo. — Roubar é pecado; colher, não – justificou-se, dando uma gargalhada marota. — De qualquer modo – continuou Miriam –, o tempo de infância é muito bom, não é? Eu me recordo, também com saudade, dos tempos de férias que passava na fazenda dos meus avós. Era muito bom lá! Tudo me encantava; as galinhas, o gado, o céu estrelado... E dando um suspiro de saudade: — Na cidade não se vê nada disso... Nem a beleza do céu! Fica tudo poluído, muito materializado! Mas o tempo passa, não é? A gente perde a inocência, adquire responsabilidade, torna-se cidadã, enfrenta a peleja da vida e co... AGORA OU NUNCA MAIS 91 — Você está saudosa da fazenda? – atalhou o marido. — Quando aposentar, vou comprar uma estância e você vai poder voltar a compartilhar com a Natureza. Gosto também da vida livre do campo. Resta saber se nossos filhos também vão apreciar a tranqüilidade. — Hã! Eles vão ser produto de cultura diferente. Vão preferir é a agitação da cidade. Nunca vão saber o que é tranqüilidade. — Mas até lá, eles já serão adultos e vão ter a vida deles. — Mas eu me lembro que foi um tempo bom, que a memória guarda pra sempre! Pena é que meus avós já morreram, e a fazenda hoje pertence a uma empresa agrícola. — Depois você voltou lá? – perguntou Candota. — Não, mas deve estar completamente modificada. O progresso destrói os nossos sonhos. Ah! estava esquecendo, William! Mamãe telefonou dizendo que eles vêm passar dois dias com a gente. Papai melhorou da dor de coluna. Candota, ante essa notícia, sentiu que as atenções de Bento seriam divididas com os sogros. Talvez tivesse que ser mais oportunista na exposição do seu problema. Resolveu não tocar no assunto enquanto Miriam estivesse ali por perto, para não ser novamente interrompido e evitar que ela pegasse uma ponta da confidência. Talvez Bento o abordasse, mas teria que ser cauteloso. Não acreditava que a esposa pudesse guardar sigilo. Miriam, dirigindo-se a Candota: — Meus pais residem em Baltimore. É perto daqui; uma hora de carro. De vez em quando, eles vêm cá. Mais por causa da Beth. Eles têm dois netos homens, das minhas irmãs, mas AGORA OU NUNCA MAIS 92 esta é a primeira neta, e acham ela um xodó. Outras vezes, somos nós que viajamos pra lá. Seus pais vão bem? Eles também têm netos? Bento, que se achava calado, percebeu que o amigo se sentia tolhido pela presença de Miriam e parecia ter ficado meio acabrunhado. — Eu moro com meus pais, e eles também têm um neto, filho da minha irmã Terezinha. Mas vão ganhar breve o segundo neto. Esse é o esquema da vida, não é? Um desdobrar contínuo de gerações que se amam no tempo curto e se desconhecem no tempo longo. — Acho que não te entendi. Os pais amam os filhos e são por eles amados eternamente. Pelo menos isso é o normal. E mesmo depois da morte esse amor perdura, eu penso. — Você está certa; é isso mesmo! Mas eu me referi a gerações. Quanto mais próximas, mais se amam; quanto mais afastadas, mais se desconhecem. O fator tempo é que determina a intensidade dessas ligações afetivas. O tempo parece coisa à toa, mas altera tudo, e a gente quase não percebe, não é? — Justamente por isso, é que entendo que a vida deve ser desfrutada intensamente, com toda a alma, porque ela não se repete. Se ela... Interrompida sua atenção por algo que só as mães percebem, disse: — Me dá licença que eu vou olhar a Beth; parece que chorou. William, você já mostrou a casa pro Candota? Mostra pelo menos o seu escritório. Ele vai gostar de ver suas coisas – AGORA OU NUNCA MAIS 93 foi dizendo enquanto se encaminhava ligeiro para a porta principal da casa. Bento atendeu à sugestão da esposa e guiou o amigo pela casa toda, mostrando-lhe também o belo e grande quintal com piscina e deixou o escritório para o final, onde entraram. Fechando a porta por dentro, pediu que Candota se assentasse e o interrogou: — Você foi interrompido na varanda, mas aqui pode falar livremente. Notei que você está tendo cuidados na preservação do seu segredo, no que está certo. Afinal, segredo é segredo. Mas ainda não estou sabendo do seu problema. Pode falar, que estou interessado no assunto. — Pois é. Eu sempre me ocupei com os problemas da ecologia e, na ocasião, estava envolvido com programações pra dois projetos diferentes. Um era pra avaliações econômicas, e o outro pra tensões tangenciais duma obra grande. — Não precisa rodear. Fala logo qual é o problema! – interrompeu Bento com impaciência. — Calma! Eu vou chegar lá! Baseado num estudo do Guilherme sobre projeções, desenvolvi um programa que resultou em conclusões sobre o ambiente presente no futuro – esquecendo-se Candota da promessa feita à memória do irmão. — Futurologia? — Não! Futurologia trabalha com especulações idealísticas e muita imaginação fantasiosa. Eu me propus executar um trabalho científico estatísticos, consistente, observância da com lógica e objetivas das fontes oficiais. Mediante... base usando em estudos informações AGORA OU NUNCA MAIS 94 — Isso é muito complexo. Imagino que é difícil – atalhou Bento. Sem se perturbar, Candota, centrado apenas na idéia da exposição, prosseguiu: — Mediante informático o especial desenvolvimento de projeções de um angulares, programa entendi que aqueles dados podiam alimentar esse programa sob a forma de simulação da realidade futura. Você sabe que o computador não mente, não é? — E você conseguiu fazer esse tal de programa? — Foi o que deu mais trabalho! Nele, figurei todas as situações e condições atuais, em tudo que se relaciona com transformações, ecológicas. É alterações um e, esquema naturalmente, dinâmico e as condições muito complexo realmente. Com qualquer introdução de determinado dado potencial, o programa se ajusta automaticamente nessa nova situação. — Fez isso sozinho? — Eh... Como já te falei, o Guilherme criou a base do programa. Depois eu estudei o assunto, acrescentei novos dados, aperfeiçoei e fiz testes de comprovação. Tudo com ajuda de livros, de informes científicos, dados e estatísticas oficiais. — Fez alguma prova? — Diversas. Fiz várias simulações de curtíssimo prazo em ambientes diferentes, pra comprovar a eficiência do programa, e o resultado foi positivo. Essas experiências foram muito úteis porque me levaram a fazer ajustes finos no programa-mestre. Acho que não tem campo nele pra ser mexido, mas pretendo AGORA OU NUNCA MAIS 95 que você dê uma examinada nele. A sua crítica é muito importante. — Vai sobrar pra mim? Eu ainda nem sei que história é essa! — Mas vai saber. Veja só a minha situação. Eu não tinha ninguém a quem pedir opinião. Fiquei angustiado e desorientado; não perdi o juízo porque sou forte e comando minha cabeça. — Bobagem! — Sacrifiquei interesses emocionais pra poder me dedicar à busca de soluções que beneficiassem a humanidade. Foi preciso até sufocar o amor que sentia pela Beatriz! — Por quê? — Teria que contar tudo a ela. E acho que ela não está preparada pra entender as implicações desse problema. Além disso, eu não podia ficar dividido entre duas paixões. — Acho que você está exagerando as coisas. — Eu é que sei os apertos que passei! E tudo solitariamente! — Em qualquer circunstância da vida, principalmente quando a situação parece mais grave, a gente deve ficar em guarda, usando a razão e a inteligência. Serenidade! Serenidade, meu caro! Esse é o segredo pra essas horas. — Você tem toda razão, e foi o que fiz! Consegui me controlar e vim aqui te pedir ajuda. — Bom!... Você fez o programa de projeção evolutiva e depois a simulação. E daí? Ele abarcou todo o mundo ou só a atividade industrial? E que aplicações você encontrou? É muita coisa que você tem que me explicar. AGORA OU NUNCA MAIS 96 — O programa é global. Não pode ser de outra forma. Todas as partes, como a atmosfera, os mares, os países e as culturas são interdependentes e intercambiáveis. Até a batida de asas duma borboleta... você sabe! Bento, franzindo a testa como que enxergando sério problema a ser enfrentado – o problema seria o próprio Candota e não o assunto que trazia –, levantou-se, pôs a mão no ombro do amigo, procurando tirá-lo da tensão em que se encontrava, e disse: — Bem, Candota. Estou enxergando que esse caso é complicado e precisa de estudo mais atento. Você vai concordar comigo que precisamos de um tempo longo pra eu me inteirar de todos os aspectos. — Mas você já viu a gravidade do problema, não é? — Acho que ainda não entendi nada! Vamos precisar é de uma conversa mais demorada. — Nada!? – exclamou meio desanimado. — Só alguma coisinha; mas valeu o papo. E, consultando o relógio, esclareceu: — Vou olhar os meus compromissos e depois vamos marcar encontro, só pra tratar desse assunto. Não esquenta a cabeça, vai! A realidade da vida e a Matemática ensinam que não existe problema sem solução. Ainda bem! Já pensou?! Depois vamos conversar com calma. Daqui a pouco, eu venho te chamar pra gente tomar uma cervejinha gelada. Relaxa. Vai esfriando a cabeça, vai! — Olha, eu sei que entre marido e mulher não deve existir segredo, mas eu te peço que, por enquanto, não fale sobre esse assunto com a sua mulher, tá? AGORA OU NUNCA MAIS 97 — Mais cedo ou mais tarde, vai precisar saber, é claro! Mas por ora não vou falar nada. Pode ficar tranqüilo. Depois da saída do amigo, Candota se sentiu aliviado por ter, pela primeira vez, comunicado o que sua mente mantinha aprisionado durante tanto tempo. Parece que, finalmente, tinha dado um grito que havia muito estava engatilhado na garganta. Não falou tudo, é verdade, mas as amarras foram soltas, o que já era o começo libertador do seu sufoco. Agora, teria de aguardar o convite do amigo para nova reunião, o que esperava não demorasse. Naquela programa. noite, Releu Candota alguns, rebuscou ligou o os apanhados computador, reviu do os procedimentos, tudo como preparo da apresentação que ia fazer para o amigo. Precisava estar seguro dos informes, porque Bento deixou transparecer que tinha certa resistência em aceitar a sua exposição. Mas isso podia ser considerado natural ante o tremendo impacto negativo que a visão do futuro podia mostrar. Sabia que, de modo geral, as pessoas tendem a não aceitar fatos desagradáveis, principalmente quando advêm de uma situação ainda teórica. Sentiu necessidade de dar descanso à alma. Ligou o aparelho de televisão e ficou procurando um canal de notícias, pois estava acostumado a se manter atualizado com os acontecimentos mundiais. Isso o manteve ocupado por algum tempo. Talvez por influência mesmo da diferença do fuso horário, o sono se manifestou cedo, e Candota procurou o conforto da cama. AGORA OU NUNCA MAIS 98 Teve noite tranqüila e despertou bem disposto no dia seguinte. Ouvindo vozes altas e sons de alegria de pessoas chegando a casa, consultou o relógio e viu que havia dormido além da hora pretendida. Outra conseqüência da diferença horária. Percebeu, pelo alarido, que os pais de Miriam haviam chegado. Bem, ia conhecer Thomas W. Klintok, renomado advogado e político no Estado de Maryland segundo tinha ouvido nas conversas com os anfitriões. Candota dirigiu-se à sala, onde se pôs a manusear algumas revistas enfadonhas que tratavam de modas e outras frivolidades. Achou um álbum de fotografias, tiradas por ocasião do casamento do Bento. Diversos retratos continham anotações de compareceram identificação à solenidade. dos parentes Ficou apresentado aos que iam desfilando se e amigos imaginando que sendo pelas páginas assim identificadas. Súbito Miriam entra na sala, acompanhada pelos pais, dirigindo-se ao hóspede que imediatamente se levanta e dá curso às apresentações. Depois desse ritual, Miriam se retira, alegando obrigações domésticas, e ficam os três em cordial conversa. Klintok é homem forte, bem nutrido, boa estatura, com aparência vigorosa de quem goza de excelente saúde. Não demonstra sofrer da coluna. Exceto pelas têmporas branqueadas, mostra-se com idade inferior à real. Corado, liso, bigode farto e bem aparado, mantém constante sorriso de felicidade que – percebe-se – não é forçado, mas advém do espírito de sua natureza bem conservada e vida folgada. AGORA OU NUNCA MAIS 99 Veste-se sobriamente e com capricho, em destaque os sapatos bem lustrados. Adota o uso de suspensórios por baixo do colete tradicional, este com ar afirmativo pela exposição quase acintosa de farta corrente de ouro, guarnecendo o relógio dourado, recolhido no bolsinho do lado contrário. Empertigado, conversa bem, demonstra inteira convicção de suas idéias, mostrando-se incapaz, no entanto, de analisar qualquer hipótese em contrário. Dona Helen, a esposa, que ainda usa chapéu, é magra e alta. Tem aparência de idade superior à do marido. Cobre-se com indumentária clássica, bem cuidada mas sem luxo. Fala comedidamente e parece estar inteiramente em harmonia com a personalidade do consorte. No início da conversa, Candota é perguntado sobre os mais variados assuntos relativos ao Brasil, sempre atendidos com explicações amplas e atenciosas. Estava satisfeito em poder revelar aspectos de sua terra e sentir-se útil nas explanações. Dona Helen, agora aposentada pela universidade de Baltimore onde lecionava História, mostrava-se mais curiosa sobre pormenores da cultura. O marido atinha-se a questões políticas. Enfim, era conversa animada e agradável, o que fez nosso personagem esquecer as preocupações arraigadas no subconsciente. Depois dessa sessão de perguntas, Klintok achou-se na obrigação de retribuir, versando sobre si. — Como posso te chamar? — Pode me chamar de Candota, que fico satisfeito. — Está bem. Caro Candota, fico muito satisfeito de te conhecer. Eu digo que moro em Baltimore, mas na realidade AGORA OU NUNCA MAIS 100 minha casa fica em Annapolis, a pequena capital de Maryland, lugar muito bom pra se viver, encostadinho de Baltimore, onde tenho minha banca de advocacia. De imediato – hábito de não perder oportunidades – enfiou a mão no bolsinho do paletó, tirou seu cartão de visitas e estendeu a mão, prosseguindo: — Vou te dar meu cartão e depois você vai nos visitar. Será prazer te receber em casa. Aí tem também a indicação do meu escritório porque, caso precise, terá o melhor apoio jurídico do país. Sei que você não vai fazer nenhuma bobagem por aí, mas pode pisar, por distração ou inocência, nalguma lei americana, e as leis por aqui estão em toda parte. — Também reside em condomínio em Annapolis? — Não. Moro no centro da cidade, na mansão que pertenceu ao meu avô. Meu pai morou lá também, mas por pouco tempo. Foi obrigado a mudar pra Washington quando foi nomeado diretor da Secretaria de Comércio Exterior. Nessa época eu era solteiro, estudava na Universidade John Hopkins, em Baltimore, e morava na casa de um tio. Logo depois de formado, fiquei conhecendo a Helen, na Igreja Metodista que freqüentávamos. Depois de casado, passei a residir na mansão e trabalhar, por recomendação do meu pai, na banca do famoso advogado e político Sans Shefield. Durou pouco, mas aprendi muita coisa ali. Durou pouco porque Shefield foi eleito senador por Maryland e pôs à frente da banca um parente que se envolveu com negócios escusos. Isso gerou enorme escândalo na época. Pouco tempo depois, o próprio Shefield foi assassinado, e a banca se desintegrou. — São os riscos da política – comentou Candota. AGORA OU NUNCA MAIS 101 — Não – tornou Klintok. — Política é atividade honrosa e segura como outra qualquer. — Eu quis dizer que há riscos em todas as atividades – emendou Candota. — Pois bem. Se a política é exercida com seriedade, os louvores e respeito vêm de todos os lados. No caso do Shefield, ninguém ficou sabendo dos motivos, mas parece que sofreu pressões nebulosas por parte de pessoas interessadas em usufruir vantagens por sua posição de senador. Ele era muito liberal e isso facilitou o acesso de pessoas inescrupulosas ao seu círculo de relações. Na política, como na vida, é boa tática a gente manter as boas conveniências já conhecidas e se acautelar com as novidades oportunistas. Com a derrocada da banca, fiquei deslocado, meio aturdido. — E ficou desempregado, então? — Por pouco tempo. Graças à educação doméstica e religiosa que recebi, me ensinando a olhar todos os atos da vida com otimismo, confiança e serenidade, e ao apoio financeiro do meu pai, aproveitei o vazio da área jurídica em Baltimore. Reuni os melhores advogados remanescentes e fundei nova banca, titulando ela com meu nome. Hoje tenho dezesseis advogados trabalhando pra mim. Fico na supervisão e no relacionamento com os clientes mais importantes. É claro que no começo a firma teve dificuldades. Com o empenho profissional da turma e um pouco de sorte, depois de um ano já tínhamos firmado o nosso bom conceito no círculo de Baltimore. Com ajuda do meu pai, conseguimos muitas procurações nos assuntos de Washington. E o conceito de seriedade e competência, depois de conquistado, dá trabalho AGORA OU NUNCA MAIS 102 dobrado pra ser conservado. Não se pode descuidar nunca. Meu pai, antes de morrer, me dizia sempre: “Se você quer garantir segurança e felicidade, procure conservar sempre o que de bom adquiriu”. Enquanto Klintok continuava alisando suas vaidades, Candota ficou pensando: “Imagina se eu exponho minhas teses pra uma mente dessas! Pra ele, tudo está bem, certinho, e vai continuar assim pra sempre. Essa disposição e caráter será que provêm duma gênese mental? Ou a boa e sólida situação material é que condicionam essas posições? Eh, daí já dá pra ver as dificuldades que vou enfrentar quando tiver que dialogar com gente do governo! O conservadorismo se defende de idéias, interpondo um escudo mental protetor”. Depois, Klintok versou sobre a família. Contou que tinha outras duas filhas, casadas com gente importante e residentes em Estados do Meio-Oeste. Nesses assuntos, Dona Helen participou com entusiasmo, informando sobre as filhas, pelo que dava descanso ao loquaz marido. Esgotado esse tema, Klintok passou entusiasmados a conversa elogios ao para Partido a política, Representativo, fazendo de sua preferência e ardência. Combateu o aborto e defendeu os valores morais pregados pela Igreja, manifestando-se contrário à conspurcação das escolas com o aviltante ensino das teorias evolucionistas. Candota pouco se externava; tornou-se um ouvinte complacente. No campo das idéias, estava tolhido ante tão árido terreno. Percebeu que devia manter conversa contida, dentro de assuntos e expressões genéricas. AGORA OU NUNCA MAIS 103 — Olá, pessoal! – cumprimentou Bento, chegando da universidade. Tinha saído cedinho e retornava com feição alegre. Dirigiu-se direto para o interior da casa, naturalmente em busca da esposa e filha. — Me dá licença! – disse Dona Helen, levantando-se da poltrona. — Vou ver a Beth. Fique à vontade. — No seu país vocês tratam muito de política? Têm muitos partidos? De qual partido você gosta mais? – retornou Klintok, numa enxurrada de perguntas. — Eu não estou muito a par desse assunto, mas calculo que temos mais de dez partidos. Cada um tem sua vez no poder. Lá em casa nós cuidamos mais é de estudo, cultura e trabalho. Ninguém se entusiasma com política. Klintok cofiou o bigode, como a repensar o que dizer, pois ficou na certeza de que o assunto de política estava encerrado. — Então, você é físico! E seu pai, químico! Família de cientistas. Sempre admirei os cientistas. Eles é que constroem o verdadeiro progresso. A área de atuação da minha família é a da palavra. Nada mais do que palavras... – e ficou pensativo. Candota não sabia o que dizer, na circunstância, quando Miriam apareceu na sala, incorporando-se na conversa e contando “prodígios” da Beth. Naquela tarde, tendo Bento retornado à universidade, a família se reuniu a fim de irem ao supermercado da cidade para compras. Convidado, Candota aproveitou a oportunidade para um passeio. No início da noite, Candota estava em seu quarto quando bateram à porta. AGORA OU NUNCA MAIS 104 — Pode entrar. Era o confidente em mais uma visita. — Olha – foi logo dizendo –, eu quero te esclarecer que precisamos conversar, mas hoje não é possível porque tenho que dar presença na casa. E eu já percebi que essa nossa conversa não pode ser fragmentada; tem de ter continuidade. Por causa do sigilo do assunto, amanhã cedo eu vou te levar no meu gabinete, lá da universidade e, sem interferência, quero te ouvir. Amanhã você levanta mais cedo? Ou quer que eu te chame? — Você não tem que dar aula amanhã? Como é que fica o seu trabalho? — Não. Já ajeitei tudo. Meu assistente me substitui. Quanto às pesquisas, elas não têm prazo pra terminar. Pesquisa é coisa que nunca acaba; tem sempre mais. — Está bem! É melhor você me chamar, porque meu ritmo circadiano ainda não está ajustado. Foi uma noite tranqüila para Candota. Enfim teria sossego para expor toda a sua angústia. Imaginou que o ambiente no gabinete do amigo deveria ser favorável. Candota acordou com o toque do telefone em seu quarto. Levou susto. Estranhou, mas atendeu. Era o Bento. — Te acordei? — Ora, é você! Esqueci que tinha telefone interno. — Não combinamos de te acordar? Não vai dormir mais. Estou te esperando aqui na copa pro desjejum. Depois de um reforçado café da manhã, Bento avisou: AGORA OU NUNCA MAIS — Amor, 105 eu vou levar o Candota pra conhecer a universidade e vamos demorar. Não precisa esperar. Vamos voltar tarde. Miriam notou que Candota carregava um embrulho volumoso e a maleta do computador de mão. Raciocinou que os dois não iriam apenas passear, mas projetavam apresentar na escola algum trabalho da área matemática; alguma tese ou trabalho científico. Talvez tivessem programado uma palestra ou participação em conferência na universidade. Esse tipo de atividade do marido era normal, acontecia com freqüência, e Candota podia ser um convidado especial. Isso constituía ocupação própria dos interesses acadêmicos, e Miriam não sentiu qualquer interesse em fazer perguntas. Apenas observou: — William, vê se não chega muito tarde, que meus pais pretendem voltar hoje no começo da noite. Eles gostam de despedir de todos. — Vamos chegar a tempo. Pode me esperar pro lanche da tarde. AGORA OU NUNCA MAIS 106 4° CAPÍTULO Foi agradável o trajeto até à universidade. Mantendo o silêncio, Candota foi prestando atenção, apreciando os belos condomínios por onde passavam. A universidade é um grande complexo de construções – onde é fácil se perder. Bento parou o carro num amplo estacionamento que, como explicou, fica mais perto de seu escritório. Há outros nas demais áreas. No percurso final, feito a pé, Bento cumprimentou diversos colegas e alunos que também estavam chegando e começavam a dar vida à escola com seu vozerio. Com passos ligeiros, foram direto para o refúgio de destino. Um corredor imenso, no segundo andar da ala norte de um dos edifícios, era via de acesso a diversas salas independentes, destinadas aos professores. A de Bento era identificada por plaqueta com seu nome e o do departamento disciplinar. AGORA OU NUNCA MAIS 107 — Agora, aqui, você está livre de qualquer interrupção e podemos conversar com tranqüilidade – foi falando Bento, enquanto trancava a porta. Em seguida, sentou-se ante a mesa de trabalho, emudeceu a campainha do telefone, desligou o celular, apontou ao amigo a cadeira que estava à frente e provocou: — Pode acabar de explicar seu problema, que vou ficar sintonizado. Quero descobrir o que tem de tão importante dentro do seu coco. Candota, tentando diversas posições na cadeira, procurava encontrar melhor jeito, denotando o nervosismo ante aquele clímax da revelação. Limpou a garganta, assumiu semblante tenso e começou: — Pra entender bem a questão é preciso expor, antes, as condições reais que existem e que me levaram a conclusões importantes. — Você já me fez o seu prólogo, lá em casa. Não precisa repetir. — Não. Lá foi só um comecinho. Você ainda não sabe nada, como você mesmo disse. — Está bem! — Tenho que te mostrar o alicerce do assunto, senão você não vai ser capaz de perceber o problema. Depois de uma pausa, pensativo, continuou: — Sim. É isso mesmo! Eu tenho que ter habilidade de expor o problema duma forma que você seja capaz de entender e sentir. Não basta compreender; precisa sentir a gravidade da situação. — Que história é essa de sentir? Eu só quero entender! AGORA OU NUNCA MAIS 108 — Entender só não basta; o assunto é envolvente. Pra ter uma compreensão perfeita, é preciso sentir todos os aspectos do problema. — Está bem! Vou me esforçar... — Pra ficar claro: eu digo sentir, mas com comando da inteligência. Isso é importante! Nós somos racionais. Vê lá, hem! — Ah! isso é fácil! Tenho inteligência sobrando. Continua. — É certo que eu confio na sua inteligência. Mas sentir, mesmo... acho que é o mais difícil. — Vai! — Pra facilitar, você deve entrar na atmosfera do problema. Abandona a propensão natural às rotinas otimistas, induzidas pelo seu ambiente cultural. Assim, você vai ter melhor percepção. — Nesse ponto, você pode ficar tranqüilo. Estou prestando muita atenção. Pode falar, sô! – respondeu Bento, mostrando-se já impaciente. — Como computação já que te expliquei, fornece montei indicações um programa precisas da de situação futura. Nele inseri os dados estatísticos de todos os elementos atuantes que configuram as condições vivenciais do planeta no presente. A própria Natureza atua nesse processo com dinâmica própria, já conhecida pelos cientistas, e que obedece às leis físico-químicas. — Você, então, fez uma salada estatística. — Não. Até pode chamar assim, mas fiz uma salada bem arrumadinha, com todos os elementos dispostos numa ordem AGORA OU NUNCA MAIS 109 lógica. Salada bonita e inocente, mas que pode explodir num tempo predeterminado. — Não fica zangado! Fiz apenas uma brincadeira. — A imagem da salada até que é boa. Olha só o que que eu fiz. Classifiquei os dados em duas grandes partes – fazendo gestos no ar, como se estivesse ali escrevendo. — Uma vem das ações do homem, que podem ser positivas ou negativas, e a outra, dos comportamentos da Natureza, também com ponderação positiva ou negativa. Você é matemático, sabe: numa equação em que figuram forças variáveis positivas e negativas o resultado pode ter duas soluções. Ou positiva, ou negativa. — Não. Pode ter três. O resultado pode ser zero também. — Discordo! Num raciocínio estritamente técnico, você está certo, mas no caso que trato não tem possibilidade de dar resultado nulo, porque as forças atuantes são dinâmicas e instáveis. Qualquer resultado de equilíbrio – zero, como você diz – ia valer só pra um momento pontual teórico. Mas como o fator tempo – o tempo, viu? –, entra nessa equação, o desequilíbrio operacional é constante. Entendeu? — Entendi, mas vamos deixar esses pormenores técnicos de lado. Pode continuar! — Resumindo um pouco minha explicação, devo esclarecer que, justamente por causa desse dinamismo todo, tive muita dificuldade em montar o programa de projeção. E nesse aspecto, vou precisar que você analise os dados que estão computados, pra eu ter mais firmeza. — Então, você não tem certeza? AGORA OU NUNCA MAIS 110 — O programa foi refeito, analisado e testado. Tenho convicção que está correto, mas é sempre bom outra cabeça fazer a crítica. Não me considero onisciente. Depois eu te mostro os papéis que serviram de base no estudo. Por enquanto, quero continuar o raciocínio anterior. — Você está meio afobado! Vai com calma, sô! — Coloquei no computador todos os fatores destrutivos produzidos pela civilização – que são muitos – e os correspondentes regenerativos oferecidos pela Natureza como reação. Depois, adicionei os informes favoráveis da ação humana – que são poucos – e os prejudiciais da Natureza, que também são poucos, mas violentos. — Você considerou as variáveis nessas equações? — Xi! Elas são muitas e me deram bastante o que pensar. Por segurança, estabeleci índices marginais de oscilação pra cada valor. Por isso, o resultado final do computador não é fixo; ele indica certa margem pra avaliação. Mas é margem pequena e pode ser desprezada. Na conclusão, não chega a dois anos pra mais ou pra menos. — Explica melhor esse tal de resultado. Você pulou alguma coisa nessa exposição. — Vou explicar, mas na hora certa. Primeiro, quero te provocar e te obrigar a raciocinar junto comigo. Olha só: você já prestou atenção que todas as forças políticas, de qualquer sistema social ou regime econômico, seja ele socialista ou capitalista, democrata ou ditatorial – exceto as de povos primitivos –, só se preocupam com desenvolvimento, progresso, crescimento? — Não vejo mal nisso. Todos aspiram por progresso. AGORA OU NUNCA MAIS 111 — E assim é porque a humanidade cresce fisicamente sem parar. Veja: o animal humano é um ser muito especial pra ser reproduzido em escala industrial. Você sabe que qualquer coisa, em todo o cosmo, tem um limite de crescimento ou expansão, não sabe? — Vai! — Os administradores deste nosso mundo não enxergam isso. Eles só pensam em desenvolvimento. Acham que é um bem. — E não é um bem pra humanidade? — Não! Aí é que está o engano! Repara que desenvolvimento é palavra maligna. Você já imaginou um gato crescendo sem parar? Ele sozinho tinha que ficar apoiado em metade do planeta. Depois, duas patas na Terra e duas na Lua. Concorda que nada deve crescer eternamente? — Que isso! Acho que você está exagerando! — Raciocínio é raciocínio em qualquer lugar e em qualquer época. Matemática é puro raciocínio! Você é até um privilegiado nessa área. — Está bem! O gato. E daí? — Pra que existisse harmonia na Natureza e felicidade nos humanos, a população mundial devia ser pequena, compatível com a capacidade planetária, em harmonia com todos os componentes do planeta. Num estudo paralelo que fiz... — Continua! — Bem, deixa isso pra lá! Estava adiantando as coisas. — Até agora, não percebi aonde você quer chegar. Fica mais calmo; temos muito tempo. AGORA OU NUNCA MAIS 112 — Tem razão! Estou muito emocionado; é a primeira vez que conto essas coisas pra alguém. Bento, escuta bem! — Estou ouvindo! Fica tranqüilo! Relaxa, vai! Candota se levantou, deu uns passos lentos na sala, chegando até a janela e ficou pensativo. Bento, em expectativa. Depois de uns minutos e sentindo-se mais relaxado, Candota se aproximou da mesa e, antes de se assentar, permanecendo por algum tempo em pé, disse: — A dinâmica desta civilização... veja bem, essa dinâmica não pode continuar. Ela é destrutiva do nosso meio de vida, do nosso ambiente. Você é capaz de enxergar a enormidade do problema? Já não podemos falar em meio ambiente; agora é meio vital. Você não tem que perceber esta civilização. Tem que perceber é a dinâmica dela. Ela é ação e essa ação... — Você não está sendo pessimista? – interrompeu Bento, assustado. — Calma, aí! Eu ainda não te revelei o principal. Você sabe que a toda ação corresponde uma reação... — De valor igual e em sentido contrário. É uma lei da Física! — E, se é lei, é imposição da Natureza. De acordo? Pois bem. Isso ocorre também com a Terra. A toda ação predatória do homem, a Natureza tenta reagir com procedimentos de restauração, mas a ação do homem é intensa e contínua. Não dá tempo trezentos pra anos, coitadinha havia da menos Natureza de um se recuperar. bilhão de Há homens dilapidando pouco o nosso ambiente. Hoje, somos seis bilhões AGORA OU NUNCA MAIS 113 destruindo o planeta com fúria e intensidade progressiva. A ação do homem é uma só: destruir, destruir e destruir. — Correspondendo a seis vezes mais destruição! — Não, meu prezado! Seiscentas vezes mais; seiscentas! A capacitação tecnológica gerou uma conseqüência de índice geométrico. E a Natureza não conta com esse índice. Um homem, atualmente, gasta dez minutos pra derrubar uma árvore que levou duzentos anos pra se desenvolver. — É verdade! — A Natureza bem que procura reagir. Em última análise, ela reage é em nosso próprio benefício, tentando restabelecer o equilíbrio vital. Mas, dentro dos nossos parâmetros, ela se manifesta muito lentamente, como todas as ações cósmicas. No relógio da Natureza, um minuto leva um ano pra decorrer. E esse interregno, entre ação e reação, é importante na análise de combinação dos fatores finais. O computador acusou que a capacidade de regeneração da Terra vai ficar definitivamente esgotada em 2036. — 2036! – exclamou Bento, apavorado. — Mas está muito perto! Não pode ser! Deve ter algum engano nessa história! — Agora, o mais importante: como a Natureza demora a dar o troco, a humanidade só vai perceber a esterilidade planetária, em caráter progressivo e irreversível, depois de 20 anos daquela data, lá pra 2056. Bento olhava o amigo com os olhos arregalados de espanto e não disse nada. — Em outras palavras, depois de 2036 já não vai ter retorno; não será possível qualquer conserto na situação. Mais: até 2036, a humanidade não vai querer acreditar que AGORA OU NUNCA MAIS 114 está à beira do abismo, mas a bomba já estará armada pra explodir. Aí, é só esperar. Bento estava concentrado de corpo e mente na exposição do amigo e sentia firmeza e convicção em suas palavras. Ficou impressionado com o rumo do que pensava inicialmente ser apenas um pequeno problema. Procurou raciocinar com as informações agora conhecidas, mas sua emoção tomou a frente de seu cérebro e, ficando de pé ante o amigo, exclamou em completo descontrole: — Isso é catastrófico! Não tenho condições de acreditar! Você me hipnotizou! Você está men... Candota o interrompeu bruscamente, dando quase um grito: — Pára! O que que é isso! Vamos parar e relaxar um pouco. Bento, completamente transtornado, com os olhos espremidos e demonstrando medo e sentimento de traição, manteve-se em silêncio, encarando fixamente os olhos de Candota. Via-se pela expressão que engendrava um raciocínio acusatório. Depois de longo tempo, chegou-se bem perto do rosto do amigo e perguntou com voz calma, mas incisiva: — Você ainda não me contou o motivo do suicídio do Guilherme! – como que sugerindo algo relacionado ao programa. Candota levou um susto com essa mudança repentina de postura do amigo. “Eu teria ido direto demais com o assunto, a ponto de perturbar a mente dele? Será que tive pouco tato e habilidade? Ou o Bento não tem a fortaleza mental que eu imaginava?” – pensava, enquanto procurava um caminho para AGORA OU NUNCA MAIS 115 esfriar a situação. Evidente que não ia contar tudo, mas pretendeu dar uma satisfação sem provocar agravamento da situação. — Vou te contar tudo direitinho, mas primeiro trata de controlar suas emoções. Eu já tinha te prevenido pra usar a inteligência. Você não é assim! Eu te conheço; sei que é inteligente e muito racional. Controla aí, vai! Bento se afastou daquela situação muito próxima e agressiva, voltou a uma postura de expectativa, ainda de pé, desviando o olhar para o vazio da sala, como a dizer que estava escutando. — O Guilherme se suicidou por decisão repentina, sem deixar qualquer recado. Nem pra mamãe. O motivo é mistério até hoje; ninguém conhece. Mas você sabe que ele era introspectivo, calado, não tinha namorada. Vivia num mundo só dele. Isso deve ter influído. Algum motivo fantasioso deve ter sido a causa. Afinal, ele provou que era mentalmente fraco. — Não teria sido por causa dessa projeção de futuro... desse programa? — Ora, Bento! Eu trabalhei com o programa, aperfeiçoei ele, estou muito preocupado com a revelação que traz, mas não me deixo abalar por isso. Se você é mentalmente sadio, também não. O caso do Guilherme é que ele era mesmo possuidor de uma personalidade propensa à depressão. É o que acontece com muita gente por aí. Não é o nosso caso. Ao tomar contato a primeira vez com isso, a gente se assusta, mas depois o bom senso prevalece. O programa traduz uma realidade e nós temos que preocupar é com essa realidade. AGORA OU NUNCA MAIS 116 Bento ouviu e não se manifestou; continuou com o olhar perdido, naturalmente pensando sobre o ambiente nublado que tinha criado. Depois de longo tempo de mutismo, cada um procurando se arrefecer, Bento interrompeu a pausa e, com voz conciliadora, se manifestou: — Você me desculpe. A culpa foi minha. Agora esfriei a cabeça, e você pode continuar a exposição. Mas que é um baque a gente se dar conta da realidade, ah! isso é! — Eu também estou controlado, mas vou te dizer que a culpa não foi sua, não. Não existe culpado nessa questão. Se existe culpado é o próprio assunto que é explosivo, como eu já tinha te avisado. — Deixa isso pra lá! Está tudo bem comigo. — Tudo bem, mesmo? Posso confiar? — Claro, ô meu! — Uma coisa é importante eu te dizer: estou só te relatando o problema. Relatando, narrando, contando, transmitindo. Minha idéia se restringe a isso. — Como assim? — Meu objetivo não é te convencer de um dogma; é só expor um resumo do problema pra você poder entender, perceber, sentir. Nessa nossa conversa, o seu intelecto é que tem que funcionar. — Claro! Tudo tem que passar pelo meu julgamento mesmo! — Isso! Tem que ter crítica. Agora parece que você está começando a entender a situação. E ela nada mais é do que a realidade. É só questão de enxergar. AGORA OU NUNCA MAIS 117 — Eh!... Eu não vou assim na sua conversa, não! Eu vou teimar em ser otimista. Tenho que ser o advogado do outro lado. Preciso encontrar um modo de te contestar. — E vou ficar satisfeito se você conseguir me mostrar que estou errado. Vai ser um alívio e uma grande felicidade. E eu estou precisando mesmo de alguém que faça a crítica. — É na contraposição de idéias que a gente encontra novos rumos. Por princípio, não aceito enquanto não submeter essas idéias ao meu próprio crivo racional. Vamos ver... estou pensando... pode ter algum erro nesse programa. Não pode? — Pode. — Acredito que tem brechas nessa teoria. Ninguém é absolutamente exato. O seu estudo vai precisar de exame profundo da minha parte e de outros cérebros. Isso é muito sério pra ser aceito de imediato. Você não acha? — Estou de pleno acordo. Tudo demanda estudo acurado, principalmente quando se trata de assuntos funestos. Foi por isso que vim te procurar e pedir ajuda. Claro que seu estudo da matéria vai ser importante, mas só no que aparece superficialmente já dá pra sentir a gravidade da situação. Não dá? — Se dá! Cheguei a ficar desnorteado! — Você já percebeu que essa teoria – como você chama – não pode ser solta na rua? Ou você fica desmoralizado, ou provoca comoção pública de repercussão imprevisível. — Tem razão. Mas sabe o que eu acho? Você pode sair por aí falando isso pra todo mundo que ninguém vai te acreditar. Eles vão dizer é que você é louco. AGORA OU NUNCA MAIS 118 — Eh! Sempre foi assim! Faz parte da índole humana! A verdade trágica é inverossímil; a bondosa, crível. Ninguém quer acreditar nas más notícias, mas crêem piamente nos benefícios das promessas vãs e enganosas. — Também acho. Repara que o povo diz, depois que ocorreu, que toda tragédia natural foi de surpresa, inesperada! Mas salvação da alma e prêmio de loteria todo mundo acha que vai ganhar! — Agora, você pode avaliar a minha agonia lá no Brasil, a de condenado ao silêncio. E você pode dimensionar, também, que a confiança que te devoto é uma porta de fuga pra mim. Só de te contar meu segredo, fico aliviado. E te agradeço muito por me ouvir. Só amigo mesmo! — Estou pensando uma coisa... — O que é? — Assim de estalo, acho que você teve muito tempo pra pensar no assunto e deve ter procurado soluções viáveis. — Eh! Pensei nas saídas pra esse problema. Encontrei vários recursos, mas todos são paliativos e caem no mesmo lugar comum. Na essência, só existe uma solução. — Qual é? — É como eu já te disse. O caminho que estamos trilhando vai dar numa única solução que depende das lideranças mundiais: ou decidem, ou não decidem. — Mas decidir o quê? Você não falou sobre a solução encontrada. Quero saber até aonde você chegou. — Eu vi que se impressionou com a minha exposição. Isso demonstra que foi capaz de perceber a seriedade do problema. — Você me amarrotou, isso sim! AGORA OU NUNCA MAIS 119 — Mas vai se amarrotar muito mais depois que eu te mostrar os dados da análise. Mas mantenha a sua mente sob controle. Vê lá, hem! — Que que isso! Você pretende me crucificar? — Acho que você ainda não está preparado pra isso. Eu trouxe os documentos, mas eles vão ficar pra depois. Até agora, você não está convencido da exatidão da minha tese, o que é bom. Depois, se ela se confirmar nos seus estudos, aí vamos falar de novo. Meio desorientado pelas últimas palavras ouvidas, Bento procurou se recompor nas tensões, ficou pensativo por alguns instantes e disfarçou: — Você não advinha o que estou pensando. — Sei, sim. Você vai ter que contar tudo pra Miriam. — Isso! Mas vou pedir segredo absoluto. Eu confio nela. Você sabe, a gente tem que partilhar assunto importante com a esposa! Bento, sentindo a hora, levantou-se, foi até uma estante onde consultou uma agenda e telefonou para alguém do restaurante. Instruiu que lhe mandassem duas refeições simples. Voltando-se para o amigo, disse: — Vamos almoçar aqui mesmo. Não pretendo sair pro restaurante. A gente perde muito tempo. Bento estava curioso com aquela conversa e não pretendia deixar o assunto no meio. Economizando seu tempo, esperava conseguir mais informações antes que tivesse de voltar a casa. Sem escrúpulo e usando a liberdade que tinha com o amigo, foi logo provocando: AGORA OU NUNCA MAIS 120 — Você me deu a entender que esse assunto é sério mesmo. Se os seus cálculos estiverem corretos, 2036 é quase amanhã. Por que deixar pra depois a discussão do problema? Eu... — Estou gostando de ver sua coragem! — ...como te disse, não posso aceitar nada sem exame minucioso. Mas já estou enxergando com mais clareza o que você me apontou, mesmo antes de fazer as análises. Não vou deixar de examinar seus cálculos depois. Isso é claro pra você, eu sei. Vou querer analisar tudo. Mas, dando como certa sua teoria, já podemos adiantar algumas questões. Agora me explica os pormenores. — algumas Vou explicar. considerações Mas preciso, pra você antes, poder pôr em entender relevo melhor essa... — Você está sendo muito didático! Pode abreviar. — Não, meu amigo. Isso não é ser muito didático. A importância do assunto exige que ele, apesar de resumido, seja bem explicado pra ser bem entendido. É o que procuro fazer. Em caso vital como este que estamos tratando, não posso deixar dúvidas no caminho. — Foi só uma observação. Acho que é a minha ansiedade. Não repara, vai! — Veja que toda atividade humana moderna tem como objetivo o danado do lucro, o ganho, o bem material. Pior: ganhar já não é o fito dos homens, mas acumular esses ganhos. — Pra quê? Bobagem! Bastava o suficiente. Todos perdem tudo na hora da morte! AGORA OU NUNCA MAIS 121 — Isso mesmo! Existe uma visão distorcida na concepção econômica dessa nossa civilização. — Começou com a revolução industrial. E hoje continua com as tecnologias que reinam no comércio, na indústria, nos serviços profissionais, na política, na religião, nas ciências, em tudo enfim. — Você está começando a enxergar as distorções. Mas, prosseguindo, quero acrescentar algumas perspectivas que passam despercebidas. alguém obtém Como determinado não existe lucro, milagre, alguém perde quando valor correspondente. — Isso é uma lei universal. — Correto. Como o consumidor também adquire ganhos – os da subsistência –, o alguém que afinal paga tudo não sai da área dos humanos. De onde vem esse maldito lucro? Diretamente, sai dos que consomem, como costumam afirmar os economistas. Mas, na verdade, vem mesmo é do meio, do ambiente, do substrato vivencial, isto é, vem da Natureza, vem dos bens do nosso planeta, que são chamados, apropriadamente, de recursos. — Realmente! — Todo bem que você imaginar foi arrancado da Natureza. Num exame mais acurado, você pode concluir que a Terra, apesar da grande contribuição solar, é que paga tudo. Paga com seu próprio corpo, com sua própria vitalidade, ficando em chagas. Dessa atividade do ganha-ganha, a que chamamos de atividade econômica, é que vêm todas as demais conseqüências danosas. A cultura do consumismo é um crime contra o planeta. AGORA OU NUNCA MAIS — Espera 122 aí; um ponto é defensável. O lucro é moralmente sustentável. Ele, em si, não é um mal, pois apenas comanda e faz mover a atividade humana que traz o desenvolvimento, objetivo que se ajusta com a atividade social, própria dos humanos. — Você falou certo, mas só dentro do contexto cultural que moldou nossa mente segundo normas ditadas pelo egoísmo. Dentro dessa ótica, o lucro é defensável. Mas o assunto que trato é amplo e passa por cima de considerações éticas. Estou tentando expor uma situação global das causas maléficas sobre nosso ambiente. Veja você os motores que movimentam a sociedade moderna. — Esses motores que você fala devem ser os interesses econômicos, presentes em todas as sociedades. — E que são o mal. As forças do dinheiro lutam pelo desenvolvimento e progresso, pois trazem lucros pra eles. Essas elites e os políticos, que fazem as vontades delas e são seus representantes, estão sempre medindo os indicadores econômicos. O PIB, por exemplo. — Faz parte do sistema essa aferição. — Quando há um perder de forças do sistema, com os indicadores apontando deflação, isto é, produção e consumo decrescentes, eles lamentam e fazem sombrios prognósticos pro futuro. Tal situação balança a estabilidade dos pilares da economia de mercado do ganha-ganha, com reflexos dolorosos no orçamento individual de toda a população. — É claro! Eles têm que se defender. — Em escala mundial, é angustiante essa tragédia. Mas o que eles não percebem é que a degradação ambiental, além do AGORA OU NUNCA MAIS 123 desequilíbrio climático e ecológico, provoca descontroles na economia, trazendo o caos financeiro. É bom notar que tais espasmos econômicos têm efeitos proporcionalmente menores nas nações, segundo seus estágios de desenvolvimento, de tal forma que as comunidades indígenas primitivas nenhuma influência receberão. — Mas, se a estrutura mundial está construída com base nesses critérios, é natural que indicadores negativos sejam vistos como debilitantes do sistema. — Certo! Mas de qualquer forma, numa projeção, o sistema financeiro está ameaçado. Resta saber se os argentários do mundo querem perder seus bens excessivos agora, mas salvando o planeta, ou se preferem uma bancarrota total, radical e definitiva. Bento ficou pensativo, olhou para o amigo com expressão de incredulidade e observou: — Você estava falando sobre os índices do PIB que... — Eh! Eu queria é apontar que o decaimento daqueles índices constituem vantagem pro planeta. Diminuindo o ganhaganha, melhora a condição do planeta. Observe bem que estou falando em função dos interesses maiores da Terra, e não em função dos interesses individuais. Esta é uma visão global, ampla. — Não estou entendendo bem. Explica melhor essa questão. — Você percebe que o interesse do todo deve se sobrepor ao interesse de uma parte desse todo? — Como? AGORA OU NUNCA MAIS 124 — Questão de lógica! Sem o todo, não há parte. Se o todo se extinguir, as partes dele também se extinguirão. Claro! Pensa bem! — Deu nó... Espera aí, deixa eu pôr a cabeça no lugar. E Bento procurou se concentrar, demonstrando confusão. Olhou indagativamente para o amigo e ouviu: — Pra poder enxergar o conjunto – o interesse da Terra –, é preciso que você apague da idéia os interesses da sua própria individualidade. Tem de imaginar que você é um juiz inteiramente imparcial e honesto. E ampliar ao máximo sua visão mental. — Eh! Agora entendo a sua lógica. É isso mesmo! E a solução? — Eu defendo, no caso, que as autoridades promovam, gradualmente e sob cuidadoso controle, a desaceleração da economia de mercado. Ainda tem tempo. Tudo que cresce sem parar, não cresce, incha. E, inchando sem parar, num dado momento estoura. — Exceto se for um gato, não é? – emendou Bento, dando boas gargalhadas. Candota começou também a rir, o que contribuiu para relaxar aquela tensão de conversa séria, que já estava toldando o espírito de ambos. Mantinham ainda o semblante risonho, trocando brincadeiras, quando o copeiro bateu à porta, trazendo o repasto encomendado. Dando folga à mente, os amigos cuidaram dos interesses do corpo, temperando o almoço com suave e digestiva conversa sobre frivolidades. Como sobremesa, Bento convidou o visitante para conhecer os pormenores do escritório. AGORA OU NUNCA MAIS 125 Mostrou-lhe como organiza o currículo de aulas, os arquivos de pesquisas, as lembranças de viagens acadêmicas e as fotografias de astros celestes que coleciona. Depois dessa ligeira digressão, Bento sentou-se novamente à mesa e deu a entender que deveriam terminar de engolir o indigesto assunto. — Segundo informes oficiais – continuou Candota enquanto se dirigia para sua cadeira –, só a emissão de dióxido de carbono na atmosfera aumentará em 70% nos próximos 25 anos. Isso equivale a 38 bilhões de toneladas. Trinta e oito bilhões, Bento! Você tem noção do que é isso? — Absurdo! — As atividades humanas, de modo inteiramente irresponsável e irracional, estão importunando até os vírus em seu habitat que, procurando seus espaços de sobrevivência, invadem as coletividades e provocam essas epidemias que grassam por aí. Além disso, tais atividades poluem a atmosfera, os rios, os mares, os oceanos, o solo, o subsolo. Nada escapa. Até a nossa mente elas poluem. — A nossa mente! Como? Explica melhor. — Ora, Bento! Se você atentar direitinho, vai ver que estamos vivendo num mundo de mentiras. — Que mentiras! — Ou, falando de outra forma, de verdades falsas, construídas pelas tecnologias na propaganda, na indústria e na política. Hoje, tudo se resume a propaganda! — Você está exagerando! AGORA OU NUNCA MAIS 126 — Essa questão é muito abrangente e você vai descobrir por si. Eu estava falando é sobre a poluição, e você me desviou. Dizia que... Bento, procurando reforçar o assunto, sacudiu a cabeça em concordância e disse: — É verdade! O automóvel, que na construção exige muita matéria-prima – produzida com grandes destruições e sujeiras no ecossistema – é ele próprio, depois de acabado, um agente poluidor contundente. — Não! Se você pensar bem, o agente poluidor não é o automóvel, mas o homem que fabrica e dirige ele. Está comprovado que existe correlação do aumento da temperatura média do planeta com as emissões de gases-estufa. O efeito estufa na Terra é fenômeno evidente, ancorado por diversos estudos e previsto pela Lógica. — Eh, eu tenho lido algumas coisas sobre o alerta dos cientistas! Mas parece que ninguém liga pra isso. — Pelo que sei, só eu é que ligo! — Um só não adianta nada. Vamos ver no que vai dar essa sua hipótese. Continua. — Não estou falando sobre hipóteses, mas sobre fatos concretos. Essa é a grande diferença. O monstro está aí na porta da nossa caverna, e ninguém se incomoda. Todo o equilíbrio do ecossistema está sendo perturbado, com reações já à vista. Estudos científicos concluíram que a humanidade consome quarenta por cento mais que a capacidade de renovação da biosfera. Em outras palavras, isso é esgotamento do planeta. — Incrível como a humanidade não se dá conta disso! AGORA OU NUNCA MAIS — 127 Humanidade representada pelos seus governantes incompetentes e irresponsáveis. As mudanças climáticas, as alterações nos regimes hídricos e o desequilíbrio na biodiversidade são outros sinais significativos das reações às nossas ações irracionais. São sinais claros de advertência. Candota sentia a boca seca, tanto pela emoção em argumentar como pela tensão ao falar. Sorvendo lentamente um copo d’água, justificou-se: — O mais triste de tudo é que isso que estou te dizendo não é novidade. É publicado esporadicamente e sem destaque na mídia, tendo como fonte os cientistas. Você deve saber disso. Estou repetindo o que é público. — E por que isso não tem repercussão? — É muito simples. Tratam do assunto sem destaque, como se fosse fato de insignificante importância. O que a grande mídia não explica é que todas essas ações destruidoras são conseqüência de visões e posturas políticas dos diversos sistemas que conforme já dominam te a expliquei constituem quando a atual identifiquei civilização, as causas. Também não falam nada sobre as conseqüências catastróficas. Sobre isso não falam nada. É tabu. — Deve ter um motivo pra isso! — Tem, sim! É porque essa mídia também é representante das elites e faz parte do sistema político que domina cada país. Estamos vivendo uma civilização que é auto-aniquiladora. Ela se destrói enquanto se glorifica do próprio crescimento. Isso é irresponsabilidade. Não percebe, ou não quer perceber, que cresce à custa do definhamento de seu suporte, a Terra. AGORA OU NUNCA MAIS 128 — Você disse que a Natureza demora a reagir. Então, esse prazo que você achou pode estar errado! — Eu explico. Esses indícios perceptíveis atualmente já são conseqüência das degradações cumulativas dos últimos anos da era industrial. — Eh!... Ultimamente têm ocorrido com mais freqüência cataclismos naturais que parecem mesmo um aviso. — A Natureza protesta a longo prazo. Por isso é que temos de tomar providências com certa antecedência. E o meu programa acusou o ano de 2036 como o último prazo pro início de atuações adequadas. Até aquela data, as ações humanas de reversão, conservação recompensadas por e ela. recuperação Isso da porque Natureza suas serão forças de regeneração ainda não estarão esgotadas. A continuar assim, vamos poder viver relativamente bem até 2100, talvez; mas nessa época já não terá salvação. É verdade que até lá já morremos de velho. Mas... e os nossos descendentes? Vão ficar numa armadilha que nós mesmos estamos construindo e legando a eles. — Puxa! A sua conversa é desconcertante. Nunca ouvi análise tão negativista. E o pior é que não estamos tratando de ficção. — As conferências, tratados, protocolos, acordos e movimentos de conscientização ecológicos que você tem visto por aí, porque superficiais e enganadores, nada alteram os interesses materialistas dos senhores do poder. Acho que só com a apresentação dos fatos contundentes evidenciados no meu programa, que têm sentido de ultimato, é que as AGORA OU NUNCA MAIS 129 autoridades vão tomar as decisões apropriadas. Apesar disso, tem tempo. O prazo, no entanto, é muito pequeno. — Está bem! Você pintou a situação atual do planeta dum jeito que bate com os informes divulgados pelos meios científicos e que já eram, de modo geral, do conhecimento público. Mas até agora não me disse qual a solução do problema. Você só deu a entender que é a parte mais difícil do esquema. Sou forte. Estou pronto pra te ouvir. — Eu não vou te dar uma solução pronta e acabada. Isso não existe. Eu tenho na idéia apenas indicação do rumo da saída. E essa via é dura! — Quer dizer que você tem várias soluções possíveis? — Não é assim. Tem vários procedimentos, mas um só caminho; e esse eu vou te apontar. Você já deve ter notado, pela minha paixão ao fazer diversas explanações, que ficou evidente a identidade do criminoso. — O bandido dessa história parece que é o próprio homem. — Exatamente! Ele é agente e também vítima dos próprios atos. Sob esse enfoque fica todo o êxito da solução. Tente entender que a decisão certa tem apenas uma opção – desfazer gradualmente tudo o que diz respeito a progresso, desenvolvimento, crescimento. Aí está incluída a problemática do aumento populacional, que é o cerne da questão. — Reverter o crescimento demográfico? — Também. Aliás, é o principal fator nessa equação. Se você diminui a quantidade de agentes causais, reduz as conseqüências dos seus efeitos. — Primário! AGORA OU NUNCA MAIS 130 — Pois é. As providências devem incluir restrições à reprodução, é evidente. O homem é quem perverte tudo. Concorda? — Vai! — Logo, ele deve ser o foco no processo regenerativo da Natureza. E não esqueça que o homem é componente dessa mesma entidade. Ele é Natureza e, ao modo de células cancerosas em um corpo, que se reproduzem sem parar, vai matando o próprio meio de vida. Entende a imagem? Você sabe, o planeta Terra é um corpo vivo. Por enquanto! — Pelo que você disse, esse problema exige medidas urgentes. Mas essa reversão é demorada. — Demora um pouco. Por isso deve começar logo e ser enquadrada em norma rígida, sob pena de fracasso. E não pode ser feita de modo paliativo, como os políticos costumam agir. A solução que proponho é de execução totalmente administrativa. — Não estou entendendo bem esse ponto. — As medidas restritivas devem promover condições pra Natureza readquirir forças suficientes à auto-sustentação, mas de forma gradativa pra não abalar muito o vínculo social. É preciso lembrar que, com essas primeiras ações, aquela data fatal vai sendo postergada. Eu não vou dar a receita, porque as providências das autoridades deverão ser monitoradas por uma comissão de notáveis, responsável por todo o processo. Naturalmente que cientistas e técnicos devem ficar à frente nas análises e procedimentos. Nada de políticos. — Você é contra os políticos, hem! AGORA OU NUNCA MAIS — Eles 131 só servem pra atrapalhar.Você já parou pra raciocinar que o mundo não necessita de políticos? Que bastam apenas administradores? Enquanto Candota estava falando, quase com naturalidade, Bento foi ficando vermelho e com as feições transformadas demográfico. depois que ouviu Notava-se a angústia referência e ao assunto desorientação ante aquela exposição que o levou a sentir a ameaça concreta. — Candota, pára um pouquinho. Deixa eu olhar uma coisa. Levantou-se, andou lentamente pelo escritório. Abriu algumas gavetas, como a procurar algum guardado, só para distrair a atenção. Fingiu rebuscar algumas anotações de aula, ensaiou idas e vindas e tomou um copo d’água bem devagar, sem vontade. Candota, calado, observando. Depois de alguns minutos, Bento readquiriu lucidez suficiente e disse: — Estou me esforçando pra entender o problema por inteiro. Mas é bom parar por aqui. Agora estou vendo que o assunto é muito sério. Já tenho toda a questão na minha cabeça. Você afinal me contagiou. Vou ter que meditar muito. Fiquei um pouco perturbado, mas já passou. Tomara que essa história não se confirme. — Quero te pedir um favor. Procura se acalmar. Eu não tive a intenção de te magoar. — Não, não foi nada! Vamos mudar de assunto. Já estou bem. Acho que por hoje chega. — Está lembrando que temos de ir embora, a tempo de fazer a despedida de seus sogros? AGORA OU NUNCA MAIS 132 — Sim, sim – respondeu, ainda aturdido. — Está na hora mesmo. Vamos pra casa. Depois do retorno, Bento colocou o carro no abrigo e se manifestou: — Vem comigo até o escritório pra você deixar lá o seu computador e os dados do programa. Estou disposto a examinar e enfrentar tudo. Vou fazer a minha crítica. Candota, enquanto depositava os embrulhos sobre a mesa do escritório, revelou ao amigo a senha de acesso e fez algumas observações sobre os papéis, cuidando para que ficasse mais fácil a análise do programa. Disse que o chamasse para as despedidas e que ia ficar no quarto. Ao sair, avisou: — Se você precisar de esclarecimentos ou se tiver alguma dúvida, me chama. A sua análise não deve aceitar pontos obscuros sem uma melhor explicação. Mais tarde, no momento das despedidas dos hóspedes, via-se que a família era amorosa e alegre, tantos os beijos e abraços entre eles. Candota foi alvo de atenções e protocolares cumprimentos de mão. Klintok, antes de entrar em seu carro, renovou o convite para que o visitasse em Annapolis. Naquela noite, Candota notou que Bento se trancou no escritório, saindo mais tarde. E, não tendo ido ao trabalho nos dois dias seguintes, passou grande parte do tempo recolhido ali. Certa manhã, estando apreciando as flores do jardim lateral, ouviu o seguinte diálogo entre o casal, que se encontrava na copa: — William, eu preciso que você vá ao banco renovar o seguro do meu carro, que ele vence na próxima segunda-feira e eu não estou podendo sair. Tem umas coisas aqui em casa AGORA OU NUNCA MAIS 133 que eu preciso ajeitar, antes de recomeçar meu trabalho lá na biblioteca. — Tem tempo! Está com medo de perder o prazo? — Você sabe que eu não gosto de deixar as coisas pra última hora. Nas minhas anotações, isso ficou agendado pra hoje. E a minha licença lá na biblioteca está vencendo. — Estou compondo um relatório de pesquisa com prazo certo de entrega. Se você não se importar, vou lá amanhã ou depois. Pode ser? — Não tem problema. É só não esquecer! Pelos termos da conversa, Candota concluiu que seu confidente estava afincado no estudo do programa e que ainda não havia revelado nada à esposa. Estava começando a temer que tinha trazido para o amigo um problema conjugal. Mas que fazer? Já tinha iniciado sua epopéia, e – pensava – “bom herói tem de lutar até o fim. Igual Dom Quixote. Nada de desanimar”. Sabia que mais dias encontraria muitos obstáculos pela frente. Tinha que ser obstinado em qualquer circunstância. Enquanto aguardava uma provável manifestação do amigo, procurava distrair-se com exercícios físicos, natação, passeios pela vizinhança. Não deixava de exercer o prazer de observar os insetos e as flores dos jardins e extasiar-se com suas cifradas mensagens de vida. Nesse enlevo, ficava longo tempo. Desde que chegou, tinha mandado dois correios eletrônicos para os pais e aproveitou para mandar mais um, dando conta de sua boa saúde e de que tudo ia bem. Recebeu AGORA OU NUNCA MAIS 134 confortantes mensagens de casa, salientando que já estavam com saudade. Certa manhã, Bento disse ao amigo, de forma que Miriam escutasse: — Vem comigo até o escritório. Quero discutir com você uns assuntos de física pra inserir no relatório de pesquisa que estou fazendo. Com a sua assessoria, será mais fácil. E foram os dois para lá. Porta trancada, Bento acomodou numa mesinha os papéis e o computador do Candota, dizendo: — Está aí o material todo. Agora vai ser mais fácil compreender seu arrazoado. Vi tudo. Examinei os dados estatísticos, verifiquei as equações, estudei as simulações de teste e avaliei as conclusões parciais. A data final de 2036 é compatível com as estratégias do programa. Até aí, tudo bem. Mas eu te pergunto. Quem sou eu pra dizer que tudo ali está certo? — É só... — Deixa eu falar. A minha avaliação diz respeito apenas à coerência matemática, à clareza de apresentação e à lógica das inserções. Aceitei como válidos os excertos provindos das leis físicas, da química e alguns procedimentos da informática, que desconheço. Você vai entender isso. É natural, porque são ramos do conhecimento que estão fora da minha especialidade. Considerando corretos todos os informes, a sua tese é perfeita. O que é lamentável. E triste também. — Eu não tenho uma tese. Eu tenho é uma evidência, produto da nossa própria ação egoística. Os fatos existem. O que eu fiz foi apenas calcular a data provável do caos. Estamos ante dois pontos: ou a inteligência humana impõe ações de AGORA OU NUNCA MAIS 135 reversão agora, e com urgência, ou ela não se chamará inteligência. — Tem publicidade razão. não Mas o podemos; que vamos manter fazer, segredo, afinal? também Dar não. Continuo na expectativa que seu programa tem algum erro básico, o que torna ele apenas um pesadelo. Precisamos submeter o seu trabalho a exame de pessoas capacitadas pra isso. A propósito, o que você tinha na cabeça quando disse que precisava da minha ajuda? Você está vendo que não posso te ajudar em nada. A não ser te oferecer solidariedade com a sua angústia. — Não podemos perder tempo expondo o programa pra exame de outras pessoas. Isso vai ser feito, naturalmente, no momento adequado e dentro de outras circunstâncias. Agora, temos é que achar uma forma de arranjar ajuda efetiva. — Que ajuda é essa? E de quem? — Eu ainda não tinha te falado sobre isso, mas vou explicar. Em princípio, esse é um problema mundial. Logo, o assunto deve ser apresentado perante o governo do mundo. Como não existe essa entidade, o que é gravíssimo, temos que tentar convencer o governo dos Estados Unidos, na qualidade de líder mundial, a se sensibilizar pelos interesses de sobrevivência do globo terrestre. E a ameaça, evidenciada no meu programa, deve ser o alerta que vai servir pra obriga-lo a tomar uma também posição, estão comprometido. em porque jogo. os Nesse seus risco, interesses está nacionais todo mundo AGORA OU NUNCA MAIS 136 — Isso! É por aí que temos de argumentar. Acho que a questão de segurança é a mais sensível do meu país. Mas os interesses econômicos... sei lá! Vai ser difícil. — Se conseguirmos que o seu país considere os riscos à sua própria segurança, é certo que o meu programa vai ser exaustivamente analisado antes de qualquer providência efetiva. Se tiver falhas, é nessa hora que vamos saber. De qualquer forma, vai ser o momento de desafogo. Porque, ou vamos estar errados e aliviados, ou estamos certos, o que vai fazer o governo americano se mexer. E aí, nesse caso, a gente vai se sentir mais responsável. — E a Organização das Nações Unidas? Ela representa os interesses de todos os países e pode acolher esse assunto. — Ora, ora! A ONU é uma espécie de clube social de amigos e inimigos em pugnas políticas. Ela não tem qualquer jurisdição. Está subordinada aos interesses conflitantes de cada país. É um centro de discussões acadêmicas. Ela, enfim, não tem autoridade efetiva. O que faz falta neste planeta, que se tornou tão pequeno, é um órgão administrativo real, pelo menos pra assuntos ecológicos mundiais. Quem tem condições políticas, financeiras e militares pra liderar uma decisão dessa magnitude são os Estados Unidos. — Você segurança, é um acredita sonhador! que vai Apesar conseguir do interesse sensibilizar estrutura feita de dinheiro e aço? Você não enxerga isso? — Aí é que entra o seu esforço. — Eu!? Quem sou eu? Sai dessa, cara! — Você é americano... — E daí? de uma AGORA OU NUNCA MAIS 137 — ...conhece seu país e tem seus relacionamentos. Temos que entrar nessa engrenagem, e com sua ajuda. — Meus relacionamentos são na área acadêmica! — Seu pai deve ter amigos em Washington, suponho. Seu sogro, pelo que comentou comigo, é bem considerado no círculo oficial. — Eles são comodistas. Não creio que estejam dispostos a entrar em uma odisséia. À primeira vista, seu projeto é uma loucura! E não me ponha nessa encrenca. Vê se não vai me jogar no brejo, hem? — Sem esforço, a gente não arranja nada. Por isso é que conto com você. Temos de obter ajuda de qualquer jeito pra chegar no final ao miolo desse governo. Todo grande movimento da História começou com a faísca das ações e palavras de um único homem. Pensa bem, o mundo depende de nós. Bento ficou pensativo. Sentiu que a solução daquele problema era mais complicada que o próprio problema. Veio à sua mente que teria de solicitar favores, entrar no círculo político, licenciar-se da Universidade e contar tudo para a Miriam. Como que dizendo, pensou: “Candota, coitado, sozinho não tem condição nenhuma. Se ele procurasse outros recursos, não ia adiantar nada. Ele tem razão. Isso é assunto pra um país líder, que possua condições de impor decisões. Também, se meu país não liderar, qual outro vai assumir o encargo? Nenhum tem condições pra uma empreitada tão pesada assim”. — Entenda que não estou te forçando a nada. Tudo fica na dependência da sua decisão. Acho que eu não tinha outra saída. Como amigo, era da minha obrigação te expor essa AGORA OU NUNCA MAIS 138 ameaça. Ela tanto afeta a mim como a você e toda a humanidade. Como amigo, eu só vejo duas direções: eu te defendo contando, e você me defende ajudando como puder. — Xi! Parece que você me jogou num tacho de melado! Preciso de tempo pra pensar. Deixa eu amadurecer a questão que depois volto a te falar. Tenho que ir à cidade pra renovar o seguro do carro da Miriam. Quer ir comigo? — Claro! É bom apanharmos outros ares. Vai ser bom pra nós dois; descansa a cabeça. Procurando a esposa, Bento a informou da sua intenção. — Amor, eu e o Candota vamos na cidade renovar o seu seguro. — Aproveita e leva esta listinha pra comprar. No dia seguinte, estando Candota na sala de televisão, chega o amigo, acompanhado da esposa. Bento, pedindo licença, encaminha-se para o televisor e o desliga. Miriam, mostrando-se meio assustada, fitava o hóspede e lhe transmitia pela expressão a mensagem clara: “Eu já sei”. Candota notou a nova situação e, de certo modo, considerou-a favorável, pois indicava que estava vencida mais uma etapa da sua missão. Agora, era só enfrentar os arrazoados que os dois iriam apresentar. Ficou na expectativa e procurou se mostrar tranqüilo. Bento tomou a iniciativa na abordagem da questão, justificando-se: — Candota, como já tinha falado, contei o nosso segredo pra Miriam. Você sabe, não podia ser de outra forma. Eu e ela não temos segredos. — Correto, corretíssimo! Já tínhamos tratado disso. Tudo bem! – reforçou Candota. AGORA OU NUNCA MAIS 139 — A Miriam concorda com você e também acha que esse problema tem que ser depositado é nas mãos de quem tem autoridade e condições de resolver. Não tem outra saída. Estive pensando sobre as pessoas que possam ajudar. Eu sou amigo do filho de um deputado aqui do Estado de Nova Jersey. Mas acho que ele tem pouca expressão política na capital. Aproveitando o silêncio que se fez após a demonstração de desânimo do Bento, Miriam encorajou-se e deu vida à conversa: — William, eu acho que o meu pai pode ajudar. Ele é muito relacionado com os políticos de Washington e já fez diversos favores na área judicial. Meu pai não deixa de comparecer nos eventos oficiais. É um recurso! O que que você acha? — Acho que não. Seu pai é pessoa muito boa, mas extremamente conservador e otimista. Acho que não vai entender a gravidade do problema. — E o seu pai? — Com essa última mudança de governo, ele ficou sem amigos na cúpula. Agora, é só gente nova no governo. Candota, percebendo a insuficiência de auxílio e o desânimo dos amigos, argumentou: — Olha, eu só preciso duma apresentação com alguém da alta esfera. Alguém que tenha influência no governo. Daí em diante, eu me viro. Eu quero é expor a situação pra esse alguém e libertar a minha pronto! Me dou por satisfeito. consciência. Dever cumprido, AGORA OU NUNCA MAIS 140 — Ó Candota, você é cândido mesmo! A coisa não é tão fácil assim! Primeiro, a gente tem que encontrar um caminho – ponderou Bento. Os três naquela encruzilhada, pensativos, desanimados. Longo silêncio na sala; ninguém se olhava. Todos procurando os recursos da razão. Bento, de estouro, tomou uma decisão: — Miriam, amanhã vou levar o Candota a Washington pra conversar com meu pai. Vamos ver o que que ele pode fazer. Afinal, não vamos pedir nenhum favor. Temos é que envolver mais gente nesse problema. Do jeito que está é que não pode ficar. Pensando bem, temos o direito e obrigação de mostrar esse perigo e a sua gravidade. E o assunto está, em essência, relacionado com a segurança do país. Afinal, é uma atitude patriótica. Esse é o mote da nossa estratégia: Segurança Nacional. — É isso aí! – exclamou Miriam. — Vocês têm é que apelar mesmo pro patriotismo dessa gente. Quanto mais, melhor. Até serem ouvidos. — Beleza! Isso mesmo! Você encontrou a indicação do caminho; é por aí mesmo – entusiasmou-se Candota. — Acho que meu pai é capaz de entender pelo menos a urgência do problema. Ele é muito entusiasmado com o país, e o patriotismo faz parte da profissão dele. — Além disso, ele é mais vivido, mais experiente. Acho que a opinião dele é muito importante – reforçou a Miriam. — Vamos ver! Temos é que programar os nossos passos. Está decidido. Primeiro, vamos falar com meu pai. animado? Vamos mesmo? Está AGORA OU NUNCA MAIS 141 — Claro! Afinal somos dois mosqueteiros à procura de um terceiro. Depois, vamos precisar é de muitos mosqueteiros – brincou Candota, demonstrando um sopro de coragem. Bento, sentindo-se com ânimo e despachado, disse à esposa: — Amor, você arruma a minha maleta que amanhã cedo nós vamos a Washington. Vamos de avião, que é mais prático. Vou telefonar pro meu pai, avisando. E você, Candota, vai arrumando as suas coisas. Faz duas cópias extras do programa, que talvez a gente tenha de apresentar provas da história toda. Ah! vou telefonar pro meu assistente também! Assim, viajo tranqüilo. AGORA OU NUNCA MAIS 142 5° CAPÍTULO Foi uma viagem rápida; a capital ficava próximo. No aeroporto, Bento indicou ao taxista o endereço do escritório, explicando ao companheiro: — Meu pai está avisado da nossa vinda. Ele disse que era pra passar pelo escritório. Depois, vamos todos pra casa. O táxi parou defronte de imponente e grande edifício, separado da rua por imensa esplanada ajardinada e cruzada por diversas pistas de rolagem. Toda cercada, era guarnecida logo na entrada por maciça guarita com cancela e diversos guardas fardados. Bento deu instruções ao chofer: — Pode chegar até à guarita, pra você deixar a gente lá dentro. AGORA OU NUNCA MAIS 143 Manobrado o táxi com frente para a cancela, aproximouse um guarda que pediu credenciais. Bento mostrou-lhe um documento e a barreira foi liberada. Candota se encantou com o esmero dos canteiros e com as flores ali cultivadas. Mentalmente louvou os jardineiros do lugar. Desceram diante de belo pórtico, sobriamente ornamentado, próprio de construções que abrigam os símbolos do poder. Estavam diante do prédio do poderoso Departamento de Estado. À entrada da majestosa construção, outra exigência de documentos. Notava-se a presença de seguranças em todas as partes. Bento, que já conhecia os caminhos, dirigiu-se rapidamente para o gabinete do pai, situado no quinto andar. Depois de se apresentarem perante um secretário numa antesala e de esperarem um pouco, foram convidados a entrar. Korn veio ao encontro do filho, mostrando-se alegre e afetuoso. Virou-se para Candota e exclamou: — Meu caro, é bom te ver! Fico satisfeito que tenha vindo. Como vai a sua família? Antes que se manifestasse, Korn abriu a porta de um armário e recomendou que guardassem ali as maletas. Candota agradeceu as atenções. Foi perguntado sobre algumas coisas do Brasil, e retribuiu as amabilidades respondendo a todas as perguntas. Foram convidados a se assentar nas poltronas que formavam um conjunto ao lado do escritório. Bento perguntou pela mãe e foi logo explicando o motivo da visita. Não fez muitos rodeios. Estava no princípio de sua exposição quando foi interrompido pelo pai que, olhando alternadamente para os dois, disse: AGORA OU NUNCA MAIS 144 — Calma, William! Parece que você está engatilhando uma conversa especial. Isso precisa ser bem discutido lá em casa. Estou notando, pelos seus cuidados na fala, que o assunto está pedindo sigilo, e aqui é o lugar menos indicado pra isso. Levantando-se da poltrona e, antes de se dirigir à mesa do escritório, recomendou: — Esperem um pouco, que vou dar algumas instruções pro meu secretário e já volto. Candota encantou-se com a perspicácia demonstrada por Korn e cochichou para o amigo: — Seu pai pegou a importância do assunto no ar. Gostei de ver! — Também com a experiência diplomática de tantos anos! Korn pegou o interfone e se comunicou com o subalterno, dizendo que não voltaria à tarde. Depois, avisou ao chofer que o esperasse à saída. — Podemos ir. Peguem a bagagem. Desceram até o portal oposto àquele pelo qual tinham entrado. Era um lugar adequado para embarque mais discreto. Mesmo se tratando de carro do serviço federal, devidamente identificado, o motorista teve que parar à cancela da guarita principal. Mas um simples olhar do guarda foi o suficiente para a liberação. No percurso, delongado por instruções de Korn, este foi apontando ao Candota os diversos departamentos administrativos da capital, não deixando de passar pelas imediações da Casa Branca e do Congresso. Ao se desviar o veículo para uma avenida mais simples, Bento esclareceu que AGORA OU NUNCA MAIS 145 estavam entrando no bairro residencial onde moravam os pais. Era um bairro especial – notava-se – pela suntuosidade das moradias, sempre grandes, majestáticas, construídas no meio de enormes terrenos abertos, sempre ajardinados e com todos os complementos de conforto. Foram recebidos à porta de entrada pelo mordomo, fiel escudeiro do século XXI, que se apressou em pegar as maletas. No interior, acudiu à ante-sala Dona Ruth. Abraçando o filho e o Candota, mostrou-se satisfeita por revê-los, não deixando de perguntar pela netinha. O anfitrião chamou os dois para a biblioteca, onde ofereceu latinhas de cerveja, dizendo que ali podiam conversar à vontade e que o filho terminasse de expor o assunto. À medida que Bento desenvolvia o raciocínio, de modo conciso, e mostrava os documentos sobre o programa da projeção ecológica, fazia pausas para pedir confirmações de Candota. O pai se mostrou bom ouvinte, como hábil diplomata que era. Manteve-se em silêncio, prestou muita atenção e não fez perguntas até o fim. Quando Bento arrematou as conclusões, aludindo a 2036 e finalmente espalmando as mãos, dando a entender que havia terminado, o pai ponderou: — Acho que vocês dois estão enxergando monstros em bolhas de sabão. Aceito que seus dados são corretos, mas apenas em princípio, como primeira formulação. Entendo que esse programa está, até o presente, na classificação de hipótese. Pra merecer atenção das autoridades, precisa passar por estudo crítico a ser efetuado por renomados cientistas. Este é um país otimista, que não vai criar interesse por teses pessimistas. AGORA OU NUNCA MAIS 146 — Seu Korn – interveio Candota –, sua opinião é muito importante, mas creio que meu estudo é realista. E o pior é que ele é ameaçador e perigoso. É verdadeiro alarme, um aviso. Entendo que a vacilação, no caso, aumenta o risco. — Mas você não tem uma prova conclusiva. — Prova conclusiva mesmo, só depois de 2036. Korn percebeu que tinha feito uma observação inadequada e se corrigiu: — Eu quis dizer um estudo crítico por cientistas da confiança do governo. — Papai, acho que a sua observação sobre estudo crítico é correta. É justamente isso que estamos querendo. Que o assunto seja acolhido pelo governo pra estudo e análise. Não queremos que as autoridades engulam ele como pílula. O problema é muito sério pra não ser considerado. Vim aqui pedir sua ajuda pra esse estudo, justamente pra ser examinado por alguma autoridade do país. O nosso esforço não implica interesse pessoal. — Ah! isso eu sei! — Nossa ação é patriótica e humanitária. A rigor, não estamos pedindo favor; apenas cumprindo um dever. Acho que nesse objetivo você pode ajudar. Como podemos chegar ao secretário da Defesa? — Não, William. Isso não é caso pro Departamento da Defesa; ao menos por enquanto. — Você deve ter conhecimento com o secretário de Estado; ele deve ser seu amigo. Você trabalha lá. — Xi! Você nem imagina. A estrutura burocrática é muito complexa. Não é simples, como você pode estar pensando. AGORA OU NUNCA MAIS Além disso, 147 com a recente mudança do Presidente, os secretários são novos. Nenhum da outra administração foi mantido. Conheço o secretário de Estado apenas por participar de cerimônias oficiais. Também, isso não é assunto pro Departamento de Estado. — Mas o caso não é só da segurança do mundo; isso tem a ver com a segurança nacional. Com a nossa segurança! — Eu entendo, mas esse problema primeiro tem que passar por outras alçadas. — Bem, qual o caminho que você aconselha, então? – perguntou, angustiado, o filho. Korn calou-se por uns instantes, mostrando-se pensativo. Tocado talvez pelo amor paterno e tendo revisto suas primeiras opiniões, um tanto duvidosas, disse: — Considerando que o programa ainda é uma hipótese e também o risco que carrega, vou tentar ajudar, apesar de não comungar com as suas conclusões. Vou lavar minhas mãos. Não quero, por omissão, contribuir pra um desastre feio como esse. Prefiro pecar por zelo. E trabalhar pela segurança do mundo afinal é um privilégio, não é? Os visitantes interrogativos. Suas estavam almas em silêncio, continham com com olhares esforço as expectativas pelas palavras de apoio do patriarca. — Deixa eu pensar! Isso aí equivale à subida duma escada. Vocês vão ter que passar por vários degraus. Eh! O primeiro degrau é conseguir ser ouvido com ajuda de uma cunha política. Vamos ver se colocamos essa bomba na mão de alguém. AGORA OU NUNCA MAIS 148 — Ô pai, aquele deputado de Nova Jersey, o Harveys, não pode ajudar? Eu tenho diálogo com ele. — Não, William. Esse assunto pede discrição e exige auxílio de gente graúda. Eu tinha diversos contatos importantes na cúpula, mas, com a mudança política na última eleição, restaram nas minhas relações apenas alguns senadores. Um deles é meu vizinho de fundo, senador Albert Brighton. Ele não é do partido do governo, mas é muito respeitado em todas as rodas. Já foi conselheiro especial no antigo governo do presidente Trasten. Vou falar com ele. Vou ver se consigo pra vocês audiência com o administrador da Agência de Proteção Ambiental, que é quem tem autoridade pra tratar do assunto antes de ser encaminhado à Presidência. Candota, deixa comigo um disco de cópia com o programa, pra reforçar os meus argumentos. — Está aqui. Que ele seja nosso melhor mensageiro! — Tem que ser. Obrigado. — Quero só lembrar que a questão é sigilosa – advertiu Candota. — Esse senador vai ter que ser discreto. O assunto é explosivo – acrescentou Bento. — Fiquem tranqüilos! Ele é homem inteligente e vai saber a importância do segredo. E eu não vou fazer discurso pro Brighton. Vou resumir ao máximo o assunto, ressaltando a urgência e o caráter de risco. Se essa via não tiver sucesso, posso tentar outros recursos. Vamos ver. Depois, William, eu te dou notícias. Vocês vão dormir aqui hoje? — Vamos. E já deixamos marcadas as passagens de volta pra amanhã cedo. AGORA OU NUNCA MAIS 149 — Tudo bem. O mordomo vai indicar os quartos em que vocês vão ficar. William, depois você leva o Candota pra conhecer a casa. À noite, na sala, todos estavam assistindo ao noticiário da televisão. Em dado momento, o apresentador informou: “Decidindo antiga reivindicação das empresas petrolíferas, o governo acaba de liberar, para exploração do petróleo, a região no Alaska que estava demarcada como habitat do urso polar”. Os participantes entreolharam-se, da recém-realizada significativamente, mas reunião permaneceram recolhidos em seus pensamentos. “Lamentável! Mais um passo rumo ao insaciável progresso” – pensou Candota. Já no avião, na volta, os dois amigos conversaram sobre assuntos leves, refletindo o estado de espírito esperançoso, adquirido com a conversa do patriarca. Esperavam que em poucos dias avançassem nos entendimentos com as autoridades. Candota, calculando que o tempo programado de trinta dias seria insuficiente para o término da empreitada, julgou melhor insinuar ao amigo essa dúvida. — Acho que essa nossa epopéia vai demorar um pouco. Vou ter de voltar pra casa, deixando os encaminhamentos intermediários pra você. Pros passos finais, eu volto. — De jeito nenhum! Você vem aqui, me põe plantando bananeira e vai embora? O que que é isso! Estamos amarrados agora, e eu não vou te deixar ir enquanto a gente não levar o assunto até o fim. Eu sei que você não tem compromisso na sua terra; você mesmo me falou! bicho! Qual é, AGORA OU NUNCA MAIS 150 — Mas a Miriam pode não achar bom a minha presença muito demorada. Sou hóspede; devo ser incômodo pra vocês. — Deixa de bobagem! Vira essa boca pra lá! Você mesmo me convenceu que o risco que passamos é maior do que qualquer outra consideração. Depois de entregar o problema na mão do governo, podemos conversar sobre sua viagem e... — Mas, Bento! — Nada disso! No momento, não! Agora você ficou prisioneiro do seu programa, e eu também estou amarrado. Não percebe a situação? — Sei! Acho até que você tem razão, mas precisa conversar com a sua mulher. — Conversar o quê? Não tem nada que conversar. Miriam é muito sensata e compreensível. Ela é amiga dos meus amigos. Além disso, você está esquecendo que agora ela participa da nossa conjuração? — Está bem, mas não fica chateado comigo, porque não é caso pra isso. Eu só queria reforçar a sua liberdade e abrir condições pra um entendimento mais franco. E confesso que fiquei mais tranqüilo depois da sua reação. — Ora essa! Bem entendidos, voltaram a outros assuntos mais amenos, ficando em suas almas a certeza de consolidação daquela amizade e o esforço comum no encaminhamento do problema. Quatro dias se passaram sem notícias de Korn. Na casa de Bento, ninguém falava no assunto do programa, a não ser de passagem, a fim de poupar desgastes e tensões, porque afinal era um quesito que mexia muito com o cérebro e as AGORA OU NUNCA MAIS 151 emoções. Mas, no íntimo, estavam todos ansiosos à espera de telefonema da capital. Bento tinha retornado às aulas na Universidade, mas o entusiasmo com também tinha já elas diminuiu reassumido perceptivelmente. suas funções na Miriam biblioteca municipal, e a rotina da casa havia sido alterada. Até a Beth entrou na mudança. Agora ficava parte do tempo na creche. Candota passava os dias num estado de indiferença com a vida, sentindo um vazio no tempo pela espera, apesar de procurar distrair-se com exercícios matinais, andanças pelo condomínio, observações dos jardins, programas de televisão e leituras de livros garimpados na biblioteca da casa. Num fim de semana, Miriam sugeriu ao marido que fossem a Annapolis no domingo para visitar os pais. Candota foi convidado. Os amigos, sem notícias de uma definição de seus problemas, sentiram que seria conveniente se distraírem com a viagem. Seria uma boa e oportuna fuga da rotina modorrenta da semana. Depois de tudo arrumado, puseram-se na estrada. Em menos de duas horas, já estavam entrando na pequena cidade. Contornando trecho de uma graciosa baía, o carro parou defronte de sólida portada que guarnecia imponente conjunto arquitetônico. Anunciando-se pelo interfone, o portão foi aberto, e Bento dirigiu o carro pelo pátio ajardinado até a entrada principal da residência. Era um prédio grande, construção antiga em estilo colonial, linhas sóbrias, pintado com cores tristes. Parecia, como homenagem aos antepassados, ter passado por diversas AGORA OU NUNCA MAIS 152 ações de manutenção, preservando os talhes e cores de outrora. Localizava-se no centro de uma quadra inteira. Muito arvoredo nas laterais e no fundo do terreno. Ao chegarem, já estavam à porta os pais de Miriam. Abraçaram-se com alegria e entusiasmo, como não se vissem havia muito tempo. Costume familiar. Candota foi recebido com atenção e sorrisos pelos anfitriões. Como sempre, nesses encontros, a Elizabeth foi a rainha da festa. Dona Helen não disfarçava o deleite de acarinhar a menina. As mulheres se entretinham no interior da casa e os homens foram se acomodar nas poltronas da sala, numa conversa bem animada. Klintok fornecia o combustível dos assuntos com sua verbosidade. Mantinha com o genro longos diálogos sobre a política nacional, e Candota notou que diversas vezes ele concordava com as posições do sogro, porque devia saber que não valia a pena contestá-lo, tão convicto e inarredável mostrava-se ele de suas idéias. Num momento de pausa, parecendo que Klintok tomava fôlego para perorar algum novo tema, Bento se levantou, pediu licença e se internou na casa, talvez procurando livrar-se daquela conversa maçante. Klintok, após consultar o relógio demoradamente, olhou bem para Candota e, sem mudar o tom de voz, disse: — Então você está querendo destruir o mundo? “Pronto! Começou a encrenca” – pensou Candota. O coração disparou, e Candota se sentiu acuado. Parecia que tinha cometido um crime e estava sendo acusado. Tudo indicava que coçou a língua da Miriam, e teria contado tudo aos pais. É provável que não tenha descrito o assunto com a AGORA OU NUNCA MAIS 153 devida fundamentação, e a impressão do pai só podia ser negativa. Tudo o que não queria, aconteceu. E Dona Helen também deve estar participando da embrulhada. — Não estou entendendo bem o que você quer dizer – retornou Candota, ainda sem graça, voz desafinada, tentando recompor o raciocínio após o choque da surpresa. — Minha filha me telefonou outro dia, dizendo que ela e o marido não andam dormindo direito, que estão sobressaltados, entristecidos, preocupados. Disse que o William anda muito descontrolado e nervoso; até o choro da Beth anda perturbando ele. Com a minha insistência em saber dos motivos, disse que isso tudo começou depois que você induziu o William a acreditar numa teoria subversiva, retrógrada e caótica. — Ela disse isso? Fez classificação negativa do assunto? — Não. Ela explicou a sua teoria e tentou uma justificativa; quis até me convencer! Mas, pelo que falou, vi logo que isso é uma aberração. Eu é que acho essa sua história absurda, verdadeiro contra-senso. Fora da realidade até! — Seu Klintok, peço por favor que não faça juízo apressado sobre um simples estudo analítico, gerado com dados de pesquisa científica. É normal que a ciência tenha a ânsia da curiosidade. Ela busca conhecer o porquê das coisas. — Bem, se é ciência eu não tenho alcance pra formar um juízo. Mas não posso aprovar é o estrago que essa sua ciência pretende causar. A ciência que eu conheço e admiro sempre construiu. Não vê que maravilha a nossa modernidade? A ciência só destrói na guerra, mas a guerra é uma aberração AGORA OU NUNCA MAIS 154 que até hoje ninguém conseguiu explicar. E essa sua teoria está me parecendo uma pregação de guerra subversiva. Candota percebeu que tentar esclarecer seus estudos para Klintok seria perder tempo, complicando a situação. De momento, julgou melhor minimizar a importância do problema, jogando-o ao depósito de coisas inservíveis. Pelo menos para aquele contestante. caminho. Mas, de Se não desse qualquer forma, certo, não tentaria podia outro cultivar adversidade naquele espírito tão conservador. Achou melhor contemporizar o assunto e encontrar uma saída diplomática. Manteve a calma e retornou: — Meu estudo não ficou bem compreendido. Na verdade, minha teoria não tem tanta importância assim. É apenas uma teoria científica, como tantas outras que existem por aí. Foi exposta pro Bento em caráter de conversa, sem intenção de magoar ninguém. Parece que há um mal-entendido nessa história. — Se tem desencontro de informações, é preciso que o assunto fique bem esclarecido. E, nesse caso, é você quem tem de aclarar a idéia deles. — Com todo o respeito, Seu Klintok, vou tentar esclarecer o assunto de forma que... — Um momento. O que eu tinha de dizer, já disse. As suas teorias a mim não afetam. Eu sou um homem amadurecido e já curtido pelas lutas da vida e não me deixo influenciar por fantasias. Quem está sobressaltado são os dois, que são verdes ainda. Espere aí um pouco, que vou chamar eles pra ouvir suas explicações. AGORA OU NUNCA MAIS 155 Enquanto aguardava a chegada dos amigos, Candota foi mentalmente construindo a estratégia do seu arrazoado. Devia ser honesto, coerente e cuidadoso para não ferir mais os brios do patriarca. Tinha, no entanto, que se ater à realidade do momento. Chegam afinal à sala, inclusive Dona Helen. Candota sentiu calafrio ao vê-la, ante a possibilidade de que lhe fizesse alguma pergunta sem consistência ou imprevisível. Todos olhavam para Candota, com expressões interrogativas. Sentaram-se em silêncio. Klintok, com ares de presidente de um tribunal, virou-se para o genro e ponderou mansamente: — William, eu estive conversando com o Candota a respeito da teoria dele sobre o fim do mundo, e me explicou que se trata apenas de simples divagação científica. Como eu sei que vocês andam transtornados com o assunto, pedi que esclarecesse bem a questão. Afinal, acho que não precisamos viver hoje um mal que está previsto acontecer num futuro incerto. E tudo não passa de hipótese científica. Não é isso, Candota? — Exatamente! O estudo que fiz não deixa de ser uma hipótese. Ela só pode ser levada mais a sério quando for examinada e criticada por uma comissão de cientistas. Quanto a isso não há dúvida, e nós estamos de acordo. Mas, enquanto não for devidamente analisada, ela não deixa de preocupar. Isso é natural. Não diz o sábio ditado popular que o Seguro morreu de velho? Quando a gente desconfia da possibilidade de um mal, o melhor a fazer é tomar cautela. Sem se amedrontar, é claro. Na questão da minha hipótese, não AGORA OU NUNCA MAIS 156 precisamos alterar os ânimos. Não pode é deixar o pessimismo tomar conta da nossa inteligência. Ouvindo essas palavras finais, Klintok esboçou ligeiro sorriso de aprovação e as reforçou: — Nem às vésperas duma hecatombe podemos perder a serenidade. — Isso mesmo! – confirmou Candota. — Temos de manter nosso controle emocional ante qualquer adversidade. É uma atitude de bom senso. Nesse momento, Dona Helen, que a tudo prestava atenção, pigarreou e perguntou ao Candota: — É verdade que está previsto o fim do mundo pra 2036? Candota já esperava pergunta desse tipo. Sentiu que tinha de ser contundente e dar uma resposta que satisfizesse, senão desencadearia diálogo estéril por longo tempo. — Não, Dona Helen; não é verdade. Essa data se refere apenas a uma referência estatística. Ademais, eu não podia fazer afirmação assim tão exata. Dona Helen parece que se deu por satisfeita, não exatamente com a resposta, mas pelo alívio causado pela negativa. Candota, por sua vez, não deixou de dizer uma verdade. Klintok não se perturbou com a interferência da esposa. Mas aproveitou o embalo da pergunta e, dirigindo-se ao genro e à filha, provocou: — Mas os nossos amigos aqui parece que ficaram preocupados com essa hipótese. Pelo visto, então não existe fundamento nessa atitude. AGORA OU NUNCA MAIS 157 Miriam, que permanecia calada, como a se remir do pecado de ter produzido todo o desconforto, fez apenas lento gesto de cabeça, indicando negativa. Bento, percebendo a situação incômoda do amigo, procurou acalmar o sogro: — Ah! essas preocupações são passageiras! Acontecem só quando a gente toma conhecimento de alguma coisa que está fora da nossa rotina. O Candota é que nos mostrou a pesquisa, mas se ela tivesse sido publicada no jornal, ia causar a mesma repercussão na nossa cabeça. Ele não pode ser acusado de nada; ele apenas me deu informações sobre essa teoria. Faz parte dos nossos assuntos acadêmicos. A Miriam ficou meio apavorada quando eu contei pra ela, mas, depois que trocamos idéias a respeito, ficamos mais sossegados. O Candota, lá no Brasil, também passou por esse transe, mas hoje trata do assunto com a maior tranqüilidade. Klintok olhou para a filha, procurando sondar sua reação àquelas palavras, remexeu-se na poltrona com desassossego e disse ao genro: — Eu não entendo uma coisa. Esse assunto vai ficar estacado na cabeça de vocês ou vão tomar alguma providência pra ficar esclarecida essa tal de hipótese? — Justamente isso é que eu queria explicar. Nós estamos pensando em tomar o único caminho plausível, que é entregar o problema pra uma comissão de cientistas pra eles confirmarem ou não a correção dos cálculos do Candota. Afinal, não podemos adotar posição de passividade. Klintok, mostrando-se acorde, disse: AGORA OU NUNCA MAIS 158 — É isso que eu já tinha dito. E essa tal de comissão deve ficar a cargo do nosso governo, que tem todas as condições de examinar o assunto. Nós temos gente muito capacitada. E o órgão mais adequado pra isso é o Conselho de Qualidade Ambiental. O que eles disserem, podem confiar. Eu conheço vários dos membros. Ali figuram diversos cientistas com competência reconhecida no mundo todo. Eu sugiro que vocês mandem esses estudos pra lá, e pronto. Ficam resolvidas as dúvidas. — Eu e o Bento, depois, vamos examinar essa opção. Mas é boa a idéia. — Me mandem os papéis que eu mesmo entrego eles pro presidente daquele órgão. Somos amigos há muito tempo e temos bom entendimento – ofereceu-se Klintok. Admirado pela mudança repentina no senso do dono da casa, Candota tirou a conclusão de que Klintok estava convicto da incorreção dos dados estatísticos e muito interessado em afastar logo as inquietudes da filha e do genro. Mas a oferta de interferir no encaminhamento desorientado. Precisava de do tempo exame, para uma deixou-o resposta adequada. Pensou na ajuda de Korn, ainda sem notícias, e enxergou que duas interferências num mesmo assunto poderiam se cruzar e oferecer obstáculo a um exame normal. Além disso, a indicação de órgão público diferente do mencionado por Korn mostrava discrepância de competência. Depois, com calma, conversaria com o parceiro a respeito. À oferta, Candota contrapôs: — Não, Seu Klintok, por enquanto, não. Agradeço e não dispenso sua ajuda, mas vamos aguardar um pouco. Eu e o AGORA OU NUNCA MAIS 159 Bento estamos refazendo alguns cálculos, e a pesquisa por ora não está em ponto de ser avaliada. A propósito, peço que mantenham o caso sob sigilo até que ele seja entregue ao governo. É assunto explosivo e pode ser mal-interpretado por alguém dos meios de comunicação. — Somos discretos. Pode ficar tranqüilo. Virando-se para o genro, Klintok reforçou a oferta: — William, depois que vocês examinarem esse assunto, me telefona. Vocês são inexperientes nessa área de governo, e eu posso dar um auxílio. Além disso, considero que isso é assunto que diz respeito à segurança do país. E, nesse caso, tenho a obrigação patriótica de ajudar. Num gesto, ambiente, como Klintok destinado levantou-se, a aliviar abriu a a porta tensão do do armário climatizado para vinhos e dali retirou duas garrafas. Sugeriu que Dona Helen servisse a bebida e começou a discorrer sobre a vinícola californiana que tinha produzido aquele vinho. Gabou-se de que se tratava de safra especial e que o rótulo era numerado. Mais tarde, depois do retorno dos visitantes, Dona Helen, estranhando a oferta do marido em ajudar naquele assunto melindroso, perguntou: — Esse moço está possuído de idéia fixa e esdrúxula, e você ainda quer bancar o ridículo com seus amigos, prometendo ajudar eles? Você não percebe que esse rapaz só veio do Brasil pra trazer desassossego pra nossa filha? — Calma, estratégica. Helen! Quando me Eu apenas convenci adotei de que uma o posição moço é desequilibrado – marcou até data pro fim do mundo –, achei AGORA OU NUNCA MAIS 160 melhor despistar minha posição. Em vez de me defrontar com ele, me ofereci pra ajudar. Se ele me entregar a papelada, digo que encaminhei pro departamento competente. Quando ele cansar de esperar uma resposta, informo que o processo foi arquivado por inconsistência. Com isso, elimino a causa das aflições que esse visionário veio plantar na casa da nossa filha. — E se ele não te entregar os documentos? — Vai entregar; tenho certeza! Vou ficar em cima do William, cobrando a remessa dos papéis. Vou explicar que, sem prestígios políticos como os das minhas amizades, eles não vão conseguir que o projeto seja levado a sério, nem sequer examinado. — O William tem outros meios de alcançar as autoridades. O Korn pode tentar ajudar eles. — Nada disso! O Korn é apenas funcionário burocrático, e o círculo dele está restrito à área diplomática. Ele não tem penetração na faixa superior. Não se pode nem comparar com as amizades que tenho na alta esfera. Meu poder de fogo é muito superior ao dele. Pode ficar tranqüila. — Você, então, não pode descuidar de trabalhar a cabeça do William. — Dia sim, dia não, vou telefonar pra ele. Em Washington, Korn já tinha dado cumprimento à promessa. Havia falado com o senador Brighton e aguardava seu pronunciamento. Não podia insistir, sob risco de se tornar aborrecido. Cautela, jeito, finura, argúcia, eram as qualidades exigíveis de um ex-diplomata, e Korn sabia disso. Mesmo tendo ressaltado a urgência do assunto, tinha que se mostrar paciente e aguardar a oportunidade certa. Como vizinho de AGORA OU NUNCA MAIS 161 fundo, os encontros casuais eram poucos, mas não os podia forçar. Tinha mesmo é que esperar. Essa virtude tinha sido exercitada por toda a carreira diplomática e não seria agora que se deixaria dominar pelo anseio. Nesse mesmo domingo, o senador chamou Korn ao telefone. Depois de se identificar, disse: — Como vai? Se você estiver disponível, dá um pulo até minha casa. Quero conversar sobre aquele assunto. — Vou aí agora. — Pode entrar direto no meu escritório, que estou te esperando. Korn, que já conhecia bem a casa do vizinho, tantas as vezes que ali tinha estado, percebeu que a instrução para que entrasse diretamente no escritório indicava a reserva com que o senador estava tratando o caso, e que pretendia manter uma conversa protegida. Enfim, ia ter alguma notícia. — Não repare que te receba no escritório – foi dizendo o senador logo após os cumprimentos de praxe. — Aqui podemos conversar mais à vontade. — Você tem razão; fica melhor. — Vamos sentar! Enquanto Korn se ajeitava ante a escrivaninha, o anfitrião pegou um bule que estava sobre uma bandeja e ofereceu uma xícara ao amigo. — Chá de hortelã. Aceita? — Ótimo! Também gosto. Depois de sorverem a infusão, bocadinhos, o senador se manifestou: calmamente e aos AGORA OU NUNCA MAIS — Estive 162 com o administrador da APA, Agência de Proteção Ambiental. O nome dele é Devers, Charles Devers. Temos relacionamento antigo. Foi Assessor para Assuntos Ambientais por oito anos lá no Senado. Está no cargo há pouco tempo. Foi nomeado pelo novo Presidente por méritos próprios. Não houve nenhuma indicação política. Foi escolhido, naturalmente, pela projeção que o nome dele alcançou na ocasião daquele horrível acidente ecológico, ocorrido nas praias da costa oeste. Não sei se você se lembra. — Eu me lembro do desastre, mas não dos personagens. — Bom, o fato é que ele é muito dedicado à defesa do meio ambiente. Por isso, foi fácil a nossa conversa. Pena que tenha sido curta. A agenda dele estava muito carregada. Ele me atendeu foi mesmo por causa da atenção que me dedica. — Afinal de contas, você é senador! — Também por isso. Fora esses aspectos, o Devers é muito responsável e liberal; gosto dele. Eu fiz relato sucinto do problema, e ele me deu muita atenção. Não cheguei a entrar nos pormenores. O principal é que deixei cravado no espírito dele a urgência e a seriedade do assunto. Acho que isso é o principal e que ele ficou impressionado. Os pormenores do problema, depois os rapazes explicam. — O administrador marcou alguma agenda? — Não. Ele me disse que tem diversos compromissos nos próximos dias, inclusive uma audiência com o Presidente. Não pode atender os moços em agenda de rotina, porque quer discutir o assunto em profundidade com os assessores. Deixou claro que pretende marcar um horário amplo pra ouvir as AGORA OU NUNCA MAIS 163 justificativas e fundamentos científicos da matéria. Não tem outro jeito; temos que aguardar. — Muito obrigado pelos seus esforços. — Esse encontro será muito importante. Se o seu filho não conseguir apresentar o problema com boa base de sustentação e se não conseguir convencer o Devers a respeito do caráter de urgência e gravidade nacional, o assunto será considerado arquivado. Não estou exatamente por dentro da questão, mas, se for do jeito que você expôs pra mim, o caso será considerado de segurança nacional. Não é pra menos! — Segurança do mundo, melhor dizendo! — Eh! Se for considerado caso sério, até nós do Congresso vamos ter que participar da discussão. Korn sentiu-se satisfeito com o êxito conseguido até ali e se apressou em dar notícias ao filho assim que chegasse em casa. Não teve êxito, contudo, mas deixou recado na secretária eletrônica: que lhe ligasse logo que possível. Naquele domingo, chegados de Annapolis mais tarde na noite, ninguém se lembrou de consultar a secretária eletrônica. Bento, mentalmente, programou para o dia seguinte conversar com o amigo sobre o oferecimento do sogro. Cansados, procuraram o repouso da cama. Candota dormiu até mais tarde e, quando se levantou, os amigos já tinham saído para o trabalho. À tarde, no retorno a casa, Bento recebeu pela esposa o recado do pai. Ansioso, ligou de volta e ouviu as boas notícias. Dando ares de otimismo e mostrando semblante alegre, comentou as boasnovas com a esposa e chamou o amigo ao escritório. AGORA OU NUNCA MAIS 164 — Eu tinha planejado trocar idéias com você sobre a conversa de ontem com meu sogro, quando se ofereceu pra ajudar na nossa... — Também estava pensando nisso e tenho umas opiniões. — Agora acho que não adianta nem pensar. Recebi notícia do meu pai dando conta de êxito inicial na tal conversa com o senador. — Ô, boas falas! Conta! — O administrador da Agência de Proteção Ambiental, Devers, se dispôs a receber a gente, mas quer reservar uma agenda aberta e com assessores. Parece que enxergou importância na questão. Meu pai me avisou que vai ser sabatina rigorosa e nós precisamos pôr todas as cartas na mesa. Se perder essa guia, vamos ter que passear no deserto. — Essa agência será o órgão adequado pra tratar de segurança? — Segundo meu pai, o administrador se reporta diretamente ao Gabinete da Presidência. Não precisamos saber exatamente os caminhos burocráticos. É aquele esquema: a gente entrega a bomba nas mãos de quem de direito e, daí, não vamos ter mais nada com o caso. Missão cumprida! — Exceto oferecer assessoria, pra não deixar a coisa desviar do caminho certo. Eu tenho interesse em acompanhar toda a evolução do processo. Se for possível. — É claro! Eu também! Mas aí, se a gente tiver êxito na apresentação inicial, o resto é sopa. Já pensou?! — Agora, acho que você pode comunicar ao seu sogro que iniciamos um curso de pesquisa na universidade pra analisar AGORA OU NUNCA MAIS 165 meu programa. Assim, ele vai ficar mais tranqüilo e fica na nossa reserva pro caso da gente precisar. — À noite eu ligo pra lá e explico. — Pelo jeito, a entrevista com Devers vai demorar um pouco. Temos que ter paciência e mais paciência. Enquanto isso, vamos estudando as diversas estratégias que a gente pode adotar. Você me ajuda no plano da abordagem. — Vamos nos antecipar e ensaiar bem o nosso papel. Eh, mas vai ser duro esperar! Isso é que me põe nervoso. Por mais que eu procure me controlar, não tenho tido êxito. Ando muito agitado, ansioso... sei lá! — Eu tenho uns comprimidos pra ansiedade. Em casos extremos eu tomo um e me sinto mais calmo. Você quer experimentar? — Não, obrigado. Não costumo tomar remédio sem receita. É perigoso! — De fato, mas esses que tenho foram receitados por médico, lá no Brasil. Não têm contra-indicação, exceto com bebida alcoólica que potencializa o efeito. — Está certo, mas mesmo assim eu prefiro não tomar. Deixa pra lá, não preocupa, não. Se a coisa piorar, procuro um médico. — Então, acho que deve ir ao médico logo. Ficar aí sofrendo sem precisão! — Ainda não. Deixa ver! — Faz uma meditação e busca o autocontrole. Dizem que dá certo! — Vou tentar. Agora, o melhor é a gente buscar distração e esperar pela entrevista. Além do planejamento com você, AGORA OU NUNCA MAIS vou retomar 166 uma pesquisa atraente sobre equações assimétricas que eu desenvolvia e que estava parada. Esse vai ser um bom remédio pra mim. — Boa receita essa: “pra ansiedade, matemática nela”! Nesse caso, o melhor mesmo é a gente jogar paciência com baralho. Sabe jogar? — Está me ironizando, mas te garanto que não é a matemática que cura ansiedade. A saída é a gente se distrair com qualquer coisa que seja do agrado. — Você está certo. É isso aí! Vou usar seu computador pra dar notícias pro meu pessoal. Vou dizer que você está me segurando aqui por mais uns tempos. — Pode usar, mas vê se não mente muito, hem! Meu computador é beato e pode reclamar. — Eu só minto no minuto. — Ô! Sai dessa! Alguns dias se passaram sem novidades. Não diminuíram os telefonemas de Klintok para o genro. Apesar da tolerância deste, essa insistente interferência não deixava de atormentar a todos. O clima já começava a dar sinal dos rigores do inverno, e Candota tinha que limitar suas atividades esportivas fora da piscina. Ficava mais tempo absorto em leituras, pois a biblioteca do amigo era bem sortida e interessante. Em certa noite, Bento recebeu telefonema do pai, informando que Devers tinha marcado a esperada entrevista para quinze horas da próxima quarta-feira no seu gabinete em Washington. Emocionado e todo sorridente, deu a notícia à esposa e ao Candota, que também se tomaram de redentora AGORA OU NUNCA MAIS 167 esperança. Estava ali a oportunidade de ser cumpridos os ditames da consciência e vislumbradas novas perspectivas de vida. E Miriam exclamou, entusiasmada: — Enfim, a salvação do mundo! O destino da humanidade, agora, está nas mãos de vocês dois. Caprichem! — Já preparamos tudo – tranqüilizou o marido. Tinham dois dias de prazo para os preparativos da viagem, que devia ser realizada na véspera do encontro, a fim de que se apresentassem descansados e bem dispostos. Dormiriam na casa de Korn. Na terça-feira, pegaram o avião para Washington, levando todos os documentos comprobatórios do programa. Na casa dos anfitriões, receberam informações adicionais sobre os aspectos burocráticos que iriam enfrentar e conselhos variados. Recomendações de quem é mais vivido e experiente. Naquela noite, depois do noticiário da televisão, ainda assistiram na sala a desenhos animados, como distração, acompanhados por uma boa copada de cerveja. Finalmente se recolheram aos quartos, que ficavam contíguos. Se antes os amigos se sentiam melancolicamente ansiosos, agora o nervosismo da expectativa tomava ares de descontrole rítmico. Antes, a espera indeterminada era um sofrimento sob cinzas; agora, a ânsia da espera queimava. Miriam, lembrando-se das vésperas de seu casamento, havia recomendado ao marido que, antes de deitar, bebesse água com açúcar. Candota, no quarto, depois de um bom banho de água esperta, sentindo-se extremamente tenso e imaginando que não conseguiria dormir, resolveu tomar o tranqüilizante de AGORA OU NUNCA MAIS 168 costume. Abriu o vidrinho e observou aqueles comprimidinhos. Tão pequenos! Decidiu tomar dois em vez de um só. Deitou-se e procurou se aquietar. Depois de quinze minutos de espera, o sono não vinha; só a ansiedade teimava em permanecer. Levantou-se e, para reforço, engoliu mais um comprimido. Deitou-se novamente e, preocupado com o dia seguinte, ficou pensando nas diversas hipóteses de comportamento do administrador. Quais as perguntas que lhe faria? Como responderia? Os assessores seriam impertinentes? Antevia um escritório amplo e com muito luxo. A mesa do encontro devia ser redonda... ou seria oval? Não; era retangular, de jacarandá preto com diversas cadeiras brancas em volta. Do teto pendia rico lustre de cristal azulado, mas iluminava pouco. O ambiente transmitia agradável impressão de acolhimento e sossego. Para aquele momento, seria imperioso que estivesse tranqüilo... calmo... sereno... AGORA OU NUNCA MAIS 169 Parte II TRAGÉDIA AGORA OU NUNCA MAIS 170 6° CAPÍTULO Candota foi andando por longo corredor, mal iluminado, até que se viu numa ante-sala com diversas cadeiras estofadas, revestidas com tecido vermelho e dispostas ao longo das divisórias. No centro, uma mesinha alta de três pernas. Nas paredes, quadros de diversos tamanhos e desalinhados, figurando paisagens bucólicas. Sentado perto da porta, Bento já tinha chegado e estava esperando e fumando um comprido cigarro. Ao lado, no chão, grande quantidade de tocos de cigarro. — Você já veio, Bento!? — Há muito tempo! Fiquei com medo de chegar atrasado. Você sabe que não podemos perder a hora, senão... — É mesmo! É a única oportunidade que a gente vai ter! — Cadê os discos de cópia? — Ai, meu Deus! Esqueci! O embrulho ficou em cima da mesa da copa, junto com o meu amuleto da sorte. AGORA OU NUNCA MAIS 171 — Não tem importância. Usa a minha pasta. Ela tem várias repartições e tem discos de todas as cores. Nisso, surgiu da porta lateral um secretário que se identificou e anunciou que o administrador os esperava. — Façam o favor de entrar – disse. Ingressando pela porta que o secretário indicava, caminharam por lúgubre e estreito corredor, ladeado nas paredes por diversos retratos de figuras ilustres. Em frente, via-se a porta do gabinete. Estava fechada, trancada com corrente e cadeado, e havia enorme calendário nela fixado, que cobria toda a metade superior da porta. estampa mostrando frondosa e imponente Tinha uma árvore sendo derrubada a machado. Marcava o dia oito de abril e era encimado pelo ano de 2036, grafado com enormes e grossos algarismos. Aberta a porta, o secretário apontou a direção a seguir, mas Candota reagiu com rudeza: — Desnecessário me mostrar o caminho, tantas vezes tenho vindo aqui! O secretário se afastou sem responder, e Candota avançou pela enorme sala até onde se localizava grande mesa retangular. À cabeceira achava-se o administrador. No lado direito estavam assentados quatro assessores. Permaneciam impassíveis em seus lugares. Candota se aproximou do administrador. Este, sem se levantar, disse: — Eu sou James G. Crosh, substituto do titular que está de férias. Estes são meus assessores. AGORA OU NUNCA MAIS — Olá! Muito 172 prazer. E eu sou Candota, autor do programa que se encontra em poder dessa agência. Quero apresentar Bento, meu amigo e colaborador. E esta aqui é minha esposa, Beatriz. — Muito prazer também. Podem se assentar neste lado – indicando o lado esquerdo da mesa. — É preciso que você, Candota, dê detalhada explicação sobre seu estudo de simulação, pra eu poder analisar com a ajuda dos meus assistentes. Esse material chegou a esta agência, foi examinado com atenção, mas não conseguimos entender ele direito. — Já cansei! Não vou explicar mais. Também, agora não adianta. Tem anos que venho tentando alertar o governo quanto ao suicídio da humanidade, mas vocês, que são os responsáveis pelo governo americano, ficaram por tanto tempo adiando esta reunião que agora é tarde. A situação ficou muito mais difícil. Agora, não adianta mesmo! — Como assim? Não estou te entendendo. — Ora, ora! Porque a população mundial cresceu pra dez bilhões, as ações danosas ao ambiente se multiplicaram, e eu não sei mais as medidas a ser tomadas. Vocês demoraram 30 anos pra tomar conhecimento de um assunto que pedia urgência. Está claro que vocês não sabem o que significa urgência. — É pra isso mesmo que estamos aqui – retorquiu Crosh. — Se não discutirmos o assunto agora, tudo vai ficar pior. — É tarde! Você não enxerga isso? — Pelos documentos em meu poder, o seu trabalho aponta pra este ano o fim do mundo. AGORA OU NUNCA MAIS 173 Tomando ares de prazer e ironia, com leve sorriso, acrescentou: — E, no entanto, parece que nada vai acontecer. Está tudo indo bem. Acho que você cometeu um ingênuo descuido. Mas, como recebi ordens do Presidente pra examinar essa tal de teoria e elaborar parecer fundamentado, preciso de melhores esclarecimentos. — Este ano é apenas uma referência estatística. Em projeções tão complexas como as que você tem aí, a definição de data é flutuante, com margem ou intervalo de erro, tendo em vista as inúmeras equações que incorporaram diversas variáveis aleatórias. A indicação deste ano é um limite de confiança; e qualquer estatístico entende isso. Você tem aí os informes dos 30 últimos anos? — Sobre o quê? — Sobre os fatores degenerativos do planeta que entraram nos meus cálculos. Verifique aí se os índices de poluição atmosférica continuam crescentes. Confira se aumentou a área de desertificação das terras cultiváveis. Olhe se o regime dos rios ainda perenes diminuiu e se foi ampliada a quantidade de mananciais secos. Observe se a fauna aquática continua em extinção. Examine se as misérias e comoções sociais têm sido ampliadas. Atente se todas as indicações negativas expandiram e se as positivas diminuíram. Espie se as reações recentes da Natureza fornecem indicação de serem elas cada vez mais incisivas, com vastas inundações, secas prolongadas, ciclones imensos, desertificações contínuas e degelos generalizados. — Espera um pouco! Deixa eu verificar. AGORA OU NUNCA MAIS 174 Procurou os papéis, ticou os índices indicados, conferiu e respondeu: — Tenho aqui todas essas indicações. A resposta é sim pra todas as dúvidas citadas. — Não! Não são dúvidas! São indicações reais que confirmam as projeções feitas há trinta anos. Eu não fiz milagre nenhum; apenas simulei no computador a realidade atual com dados dinâmicos daquela época. Você está vendo que meu programa apontava um resultado correto, que foi sendo confirmado com as atualizações anuais. O administrador, dirigindo-se aos auxiliares, indagou: — Então? O que vamos fazer pra abortar esse processo? Um dos adjuntos se manifestou: — Eu estudei profundamente o trabalho do Candota. Pena que tenha chegado às minhas mãos só há quinze dias. Isso devia ter sido resolvido há muito tempo. Não sei o que houve. Mas creio que, com a tecnologia altamente desenvolvida e disponível, não precisamos de conselhos destrutivos desse estrangeiro. Ainda temos oportunidade de abortar os efeitos negativos apontados. Outro assessor foi mais explícito: — Bem, esse assunto está sendo tratado nas esferas burocráticas há muitos anos. Presidentes anteriores não tiveram muito interesse em discutir o problema e foram empurrando com a barriga e prov... — Por quê? – interrompeu Bento, curioso. — Porque, segundo deixaram transparecer, teriam que tomar medidas impopulares, o que ia prejudicar os objetivos eleitorais. Além disso, não houve entendimento dos outros AGORA OU NUNCA MAIS países com 175 os Estados Unidos, e a questão foi tratada secretamente. Se a ONU não tivesse sido dissolvida por inoperância, os entendimentos teriam sido mais frutíferos e rápidos. O atual Presidente, pressionado pelo Conselho Científico Internacional, resolveu retornar a papelada pra esta agência. Tive recomendação especial pra acelerar parecer a respeito. E, pelo que pude concluir, o tempo urge. Acho que ainda existem condições pra uma solução efetiva. Você também não acha, Candota? — Sim, ainda há tempo, mas não pra salvar a Terra da destruição. Ela já está condenada; é só esperar. Existe oportunidade apenas pra prolongar, com grande sofrimento, a nossa existência e a de nossos filhos. A dos nossos netos, duvido. Bisnetos? Jamais! Elevando a voz, numa demonstração de descontrole emocional, prosseguiu: — Eu não tenho filhos por decisão própria, estão ouvindo? Ia me sentir um criminoso se legasse a eles esta terra maldita, agredida e imunda! O prazo pra medidas adequadas foi perdido. Estamos atualmente em processo degenerativo, sem retorno. Angustiado, olhos arregalados e feições de nojo, gritou: — Vocês não conseguem enxergar isso? Seus criminosos! O administrador se mostrou desagradado e ofendido com essas palavras tão pessimistas e falou gritado: — Olha aqui! Nós não te convocamos pra trazer derrotismo nem ofensas. Eu e meus conselheiros precisamos é de incentivos pra dar o desempenho que o presidente Gerfield exigiu e espera. Se você e seus amigos se dispuserem a AGORA OU NUNCA MAIS 176 colaborar, podemos continuar esta reunião. Caso contrário, sou obrigado a dispensar sua presença. Menos tenso, Candota ainda se dispôs a continuar a argumentação e respondeu: — Crosh, você precisa entender que meu desejo é justamente o de ajudar o governo nessa situação. Mas o que preciso deixar claro é que a oportunidade já passou. Agora eu posso ajudar, mas fica entendido que estamos numa emergência. E, assim, todas as recomendações que podemos fazer ao Presidente vão ser de caráter excepcionalíssimo. — O que você quer dizer com isso? — Você viu aí que o causador de toda essa degeneração é o homem. Logo, a primeira medida é diminuir com urgência a quantidade de gente. — Acho que temos de diminuir é a poluição! Ironicamente, tornou Candota: — Você capacidade pra está certíssimo! perceber que Poluição!... não existe E você poluição tem neste planeta? — Ora, não existe! E a poluição do ar, dos rios, do mar, da terra... — Não existe. Só existe uma única poluição: a poluição de gente. — Você está falando sem coerência! — Vê se, nessa situação, você elimina, mentalmente, a poluição de gente que eu falei! — E daí? AGORA OU NUNCA MAIS 177 — Daí que, não tendo gente, não vai ter poluição de ar, de água, de nada. Repito que não existe poluição. Existe é o agente poluidor. Esse é que tem que ser combatido. — Mas como? — Não precisa extinguir a humanidade. Basta reduzir ela a um nível compatível com as atuais condições de vivência. — Você está falando em controle populacional? Já existem diversos programas com essa finalidade. — Programas! Ora, programas! — Então, o que é? — Controle agora é bobagem! É pano quente! Estou falando é que devem ser eliminados com urgência 80% da população. Urgente, está ouvindo? Se demorar um pouco, tem que ser 90%. — Você é louco! Isso não é solução administrativa! — Digo 80% da população pra que os 20% possam viver por mais algum tempo. É uma condição peremptória. E é decisão administrativa, sim. — Eu queria ouvir a opinião dos meus assessores sobre isso. Fala você, primeiro – apontando para o auxiliar mais próximo. — Acho que estamos discutindo assunto extremamente grave. Deve ser, portanto, compartilhado com outras autoridades, inclusive com o Congresso e o Presidente. Se a coisa chegou a esse ponto, eu me considero incompetente pra tratar do assunto. Eliminar 80% da humanidade é decisão pra quem disponha de um poder absoluto. Só mesmo um superhomem! — E você? – apontando para o seguinte. AGORA OU NUNCA MAIS 178 — Penso que esse programa é sério e deve ser discutido mesmo, mas não com o Candota, que parece estar com o juízo prejudicado. Não podemos perder tempo com uma pessoa temperamental e inconseqüente. — Fala você – indicando o terceiro. — Como matemático, examinei o programa e não achei erros; deve estar correto. Quanto a medidas de saneamento da situação, creio que deveriam ser convocados cientistas e os congressistas pra participar e dar legitimidade às decisões. Precisamos de opiniões de pessoas normais, não de aventureiros visionários e pessimistas como o autor. — Você é o último. Fala. — Eu também opino que esse moço e seus amigos não têm competência política pra tratar do assunto. Eles podem entender de física, mas não entendem nada de política. Eles devem ser afastados das discussões. O nosso governo tem gente à altura que pode bem administrar a situação. Candota se manteve calado, triste, pensando no quanto tinha sofrido naqueles anos todos e, por fim, ser relegado à situação de simples espectador da tragédia terrena. Sentiu-se derrotado, impotente. Seu destino doravante seria o de um humanista desiludido e angustiado, como tantos outros, conhecidos pela História. Tão aturdido, mal ouviu as palavras finais de Crosh: — Estou de pleno acordo com as opiniões dos meus conselheiros. Por isso, encerro esta sessão e – dirigindo-se a Candota – não vou precisar da sua presença nem a de seus amigos. Está encerrada a reunião. AGORA OU NUNCA MAIS Pegando 179 Beatriz pela mão, Candota virou-se para o parceiro e disse: — Vamos! Vamos pra casa. É bobagem insistir e depois ficar decepcionado com os humanos. Não adianta. A verdadeira racionalidade está nos animais irracionais. — Os animais, coitados! Inocentes e puros, vão perecer com a gente, vitimados por nós, os Reis da Criação. É o castigo de quem peca – acrescentou Bento enquanto se levantava. — Eh, é isso ai! Só o homem é realmente pecador e será o único a ser julgado no Juízo Final. Oito dias após a fracassada reunião, Candota lê no jornal da manhã, em página interna, a notícia de que um desconhecido Conselho para Assuntos Emergenciais, por ordem do presidente Gerfield, realizou uma reunião secreta e decidiu convocar os melhores cientistas do mundo para juntar-se aos conselheiros. Tendo em vista a qualificação dos convocados e a urgência com que foram chamados – dizia o jornal – especulase que o governo deva estar planejando a construção de nova arma de guerra, mais poderosa que a bomba atômica, concebida também com a colaboração de cientistas. Candota, com olhos arregalados, evidentemente transtornado e possuído de idéia fixa, ficou mastigando a notícia: “Não se trataria de arma. A bomba atômica já tem poder destrutivo absoluto. Hum!... a reunião foi secreta! O Presidente deve estar apertado. É o meu relatório de simulação que está bulindo com a máquina de governo. Agora estão enxergando a gravidade da situação e entrando em desespero. É isso!”. AGORA OU NUNCA MAIS 180 Chamou Beatriz, mostrou-lhe o jornal nervosamente e releu com eloqüência a notícia. Comentou suas suspeitas num tom de angústia, e a esposa aconselhou: — Pára de se preocupar com essa questão. A informação deve ser de outro assunto. Você só fica pensando nisso. Acaba ficando louco. Procura se distrair e mudar o pensamento pra outras áreas. Não adianta a gente se desgastar com uma simples cisma. Afinal, é o destino que conduz nossas vidas. — O destino, em si, não existe. No universo, o que existe mesmo são forças, são energias. E a vida é um tipo aprimorado de energia. O intelecto é a manifestação mais refinada de energia que conhecemos. O embate dessas energias todas é que constrói o destino. — O que tem de ser, será. Essas suas preocupações não mudam nada. Você viu que em 30 anos não conseguiu mudar o mundo. Agora, muito menos! Ocupa sua cabeça com as aulas de física, meu amor. A Física é uma área de conhecimento fascinante e tem muito campo pra pesquisas. Fica só com ela e você vai se sentir melhor. — É no conhecimento dela que eu me inspiro pra sentir a Vida! E não se deixou levar pelas razões da esposa. Não adiantava se esforçar para aceitar os seus conselhos. O destino do mundo era a sua vida. Telefonou para Bento, procurando obter sua opinião e convencê-lo de suas próprias desconfianças. Este, no entanto, que já se tinha conformado com a situação, procurou acalmar o amigo, repetindo as advertências de Beatriz e encaminhando a conversa para AGORA OU NUNCA MAIS assuntos 181 acadêmicos da universidade, onde ambos trabalhavam. Candota estava ficando empedernido na idéia. Como bem disse a esposa, era de toda a conveniência para a saúde mental do marido que se procurasse distrair com outras ocupações. Um casal sem filhos, e ainda Candota se ocupando apenas com aulas de física, possuía ele tempo de sobra para escarafunchar a cabeça. E isso era ruim. Tinha realmente que impor uma vontade vigorosa nos pensamentos para aliviar a carga emocional de tragédias. Mas estava com idéia fixa, quase paranóico. Procurando, por todos os modos, acompanhar os movimentos do governo que lhe fossem suspeitos, esse sofredor e obcecado não deixava de ler detidamente os jornais e de assistir aos principais noticiários da televisão. A rede internacional de informação era também objeto de suas bisbilhotices, e passava horas ante indicações o computador. sobre o Com tratamento que isso, o procurava governo seguir americano estaria dando ao grande problema. Pela raridade de pistas, concluiu que os veículos informativos estavam sendo censurados. Por intermédio da diretora do departamento de Física da universidade, Candota ficara conhecendo, no ano anterior, um repórter de importante jornal da capital. O jornalista – de nome Arnold Spinder – freqüentou o campo universitário por alguns dias, hospedando-se na casa de Candota, filmando e colhendo informações para uma e ficou reportagem encomendada pelo editor. Fizeram amizade na ocasião, e agora AGORA OU NUNCA MAIS 182 Candota, pretendendo obter notícias de bastidores, perguntoulhe: — Você viu esses dias a notícia que diversos cientistas foram convocados pra uma reunião em Washington? — Vi, sim. Qual a importância disso? — É que essa reunião era secreta. Isso está me cheirando mal. Você não tem indicação nenhuma sobre isso? — Ações secretas, aqui nos Estados Unidos, já é coisa de rotina. E geralmente se referem a assuntos militares. Por que essa preocupação? — Essa reunião secreta com cientistas mundiais não mexe com a sua curiosidade? Você sabe onde estão e o que que estão fazendo? A imprensa não falou mais no assunto e isso é sintomático. Sintomático, Spinder! Você não enxerga? — O que você acha? — Você, que circula no ambiente das informações, bem que podia assuntar essa guia que estou te dando. Tenho quase certeza que ela vai te levar até um assunto explosivo. E toma cuidado! — Em que você se baseia pra ciscar nesse terreno vazio? — Tenho perspicácia! E o assunto de certo modo está ligado à minha especialidade, a Física. Vai por mim que você acha o ninho da cobra. E depois me dá notícias. — Vê lá se não está me jogando no brejo! Vou apalpar algumas fontes e depois te digo. Dias mais tarde, Spinder telefonou para Candota. — Olha aqui. Eu consegui saber que os tais cientistas ficaram isolados em instalações militares secretas, próximas AGORA OU NUNCA MAIS de Washington, 183 e são visitados quase diariamente pelo Presidente e alguns secretários de Departamento. — Eles tratam do quê? — Só sei isso que te informei. Parece que ali existe uma confabulação muito importante. Se o Presidente participa das reuniões... já viu, não é? Parece que o seu faro é bom! — Não precisa elogiar. Continua investigando que você vai ser recompensado pelo seu jornal. Tenho certeza que o assunto é quente. Candota não se conteve. Comentou a notícia com Beatriz, que demonstrou estar começando a se preocupar. — O que você acha que eles vão fazer? – perguntou, ansiosa. — Ora, meu amor! Se eles estiverem examinando o meu programa – e eu tenho quase certeza disso –, as decisões lógicas só podem ser as que já previ. Afinal, eles deixaram passar o prazo. Agora, é esperar pra ver. Não podemos fazer nada. — O que que o Bento acha? — Vou falar com ele também. Não sei como esse problema até agora não caiu no conhecimento público. Mas no momento que o povo souber, não vai adiantar muito. — Por quê? — Porque o povo vai ser o primeiro alvo. Você vai ver! — Como as suspeitas ainda não se confirmaram, acho que, por questão de estratégia de vida, é melhor a gente esquecer o assunto, senão a gente vai ficar sofrendo antes da hora. Vamos esquecer esse assunto. Pra nosso próprio bem. Não adianta você se amargar. AGORA OU NUNCA MAIS 184 — Amargurado eu já estou há muito tempo! Trinta anos! Até já acostumei. Candota não precisou esperar por novas notícias de Spinder. O apresentador do noticiário noturno da televisão já abriu o programa, com postura circunspecta, informando: “O presidente Gerfield acaba de fazer um pronunciamento na Casa Branca, dirigido aos governos de todos os países, dizendo que os Estados Unidos, cônscios de suas responsabilidades, declara a soberania do governo americano sobre todos os territórios e mares do mundo e se proclama titular de poderes e mandatos para se legitimar como Governo Mundial. Adiantou que, de imediato, vai constituir grupos administrativos e militares com atuação em todas os países. Caso algum governo nacional se oponha a essas ações, o Presidente promete reagir com o maior rigor, inclusive com o emprego de meios militares.” — Está aí – comentou Candota para a esposa, que também assistia ao noticiário – o primeiro sinal concreto! O caos vai ser instalado mesmo, e não demora! Isso é apenas o preparativo pra ações mais fortes. Você vai ver daqui pra frente. Beatriz, assustada e trêmula, chegou-se ao marido, abraçando-o e falou, com pessimismo: — Estou achando que este nosso amor é fim de linha. A missão da vida vai ficar interrompida em nós. Não vai ter prosseguimento pelos filhos, aqueles que não teremos. Agora reconheço que você tinha razão em não querer filhos. AGORA OU NUNCA MAIS Candota, 185 achando-se confortado pelo apoio e compreensão da esposa deu-lhe um beijo e a estreitou nos braços, sem fazer comentários. Tocou o telefone. Era Bento, que foi logo dizendo: — Você viu o noticiário? — Vi, sim. A situação começou a se complicar. Depois você e a Miriam vêm pra cá pra gente trocar idéias sobre a melhor estratégia pra enfrentar essa rebordosa. — Está bem. Pode nos esperar amanhã à noite, que hoje vou ter visita. Estou conversando com um colega e vizinho sobre o assunto. Naquela noite, Candota passou o tempo procurando notícias complementares ou ouvir os comentaristas habituais. Ninguém falava sobre o anúncio oficial. Estranhou esse comportamento. Só podia ser por censura do governo. No dia seguinte, na universidade, alunos e professores só falavam sobre o pronunciamento do Presidente. Aludiam a todos os tipos de objetivos e conjecturavam sobre os motivos, menos o verdadeiro. Candota julgou necessário mostrar-se indiferente à novidade. Não podia se manifestar, a não ser com enigmáticas interjeições. Os jornais da manhã davam destaque ao anúncio oficial, mas não ofereciam qualquer comentário. Estava confirmada a censura. Candota estranhou não receber telefonema do amigo repórter. Teria ele sido preso por bisbilhotar nessa área? E se o seu telefone estivesse grampeado? À noite, Bento e a mulher já tinham chegado. Havia meia hora que conversavam os dois casais, expondo hipóteses e AGORA OU NUNCA MAIS suposições sobre 186 o andamento da situação, quando a campainha soou. Era Spinder, que chegava da capital. — Fica à vontade. Estes aqui são meus amigos. Você pode falar sem receio. E este é o meu amigo Spinder – fazendo Candota as apresentações. — Resolvi te visitar porque a situação está tão trancada que não estou podendo usar o telefone. — Eu já desconfiava! — Além disso, todos na redação estão avisados, por ordens superiores, que só vai ser publicado o que vier das autoridades do governo. É como você me alertou. Parece que está se aproximando um furacão político. Mas alguma coisa já transpareceu. Graças a antigas amizades que tenho no meio político, consegui alguns informes sigilosos. Boato é o que não falta. Você sabe, quanto mais segredo a gente pede, mais escorregadio ele fica. — Essa medida autoritária do presidente Gerfield encobre algum objetivo sombrio e traiçoeiro. Senão não ia ter tanto segredo – disse Candota. — Mas o que que você conseguiu saber? — Foi criado um Comitê Executivo Especial, com a participação de todos os secretários, presidido pelo secretário da Defesa, instalado na própria Casa Branca. E os representantes de todas as religiões foram chamados a esse Comitê, mas não dizem nada do que trataram. — Por quê? – perguntou Beatriz. — Estão amedrontados. Tentei entrevistar vários deles, mas não disseram nada. Um deles, um bispo, se esforçava pra AGORA OU NUNCA MAIS 187 mostrar tranqüilidade, mas estava é com os olhos arregalados e feições angustiadas. Fiquei com dó dele, coitado! — O que mais você soube? – indagou Candota com ansiedade — O secretário do Tesouro se suicidou. A informação oficial é que morreu de ataque cardíaco. — Isso pode ser coincidência. — Acho que não! O Congresso fez duas reuniões secretas, com a participação do Representante de Comércio dos Estados Unidos. Toda a cúpula do governo está envolvida nesse mistério. Mas de concreto mesmo, até agora, nada. Bento, oprimido, que até o momento se mantinha só escutando dirigiu-se a Beatriz e sugeriu: — Você tem alguma bebida na sua casa? Estamos precisando desarmar essas tensões. Por mim, esses assuntos de tragédia estão me esgotando. Não agüento mais. Chamando a atenção de todos, Bento se manifestou com ousadia: — Acho que precisamos de férias psicológicas. Eu convido todos pra mergulhar de cabeça na sombra da irresponsabilidade por algum tempo. É bom pra saúde e aumenta a nossa resistência. Precisamos enxergar, também, que lutar contra os fatos é asneira. Vamos deixar a coisa rolar. Todos se sentiram relaxar só de ouvir essas judiciosas palavras, enquanto Beatriz, fazendo ares de festa, servia a bebida. Trouxe mais garrafas. Todos beberam. Bebeu-se mais. Depois, mais e mais. Que bela noite aquela! Os cinco, bastante alegres e fazendo pândegas, num ambiente leve e risonho, conseguiram AGORA OU NUNCA MAIS esconder as 188 realidades irresponsabilidade. Pena da vida que não atrás se do possa espelho da ficar olhando na primeira sempre para as imagens da alegria. Dois dias depois, os jornais trouxeram, página, a seguinte declaração oficial: “O Governo Mundial, tendo em vista os fatos emergenciais surgidos em estudos científicos, e consciente de suas responsabilidades para a preservação da vida terrestre, vem fazer ao mundo as seguintes considerações: a – todas as ações do estágio atual da civilização vêm dilapidando os recursos naturais em um grau que não sustenta a sua capacidade de regeneração; b – essas ações são produzidas por pessoas como atos naturais de vivência, o que as tornam agentes de fatores danosos; c – a carga demográfica de dez bilhões de seres humanos é excessiva, e essa circunstância prejudica o direito à vida de quem a merece; d – os estudos científicos feitos estão indicando necessidade de medidas gerais imediatas e contundentes; e – é fato irrefutável que, sendo eliminadas as causas, eliminam-se os efeitos.” “Em decorrência, ficam estabelecidas as seguintes resoluções a ser implementadas de imediato por todos os países e sob a orientação e supervisão dos Grupos Administrativo-Militares (GAM), já instalados em todas as capitais nacionais: AGORA OU NUNCA MAIS 1 – 189 serão eliminadas todas as pessoas que se enquadrarem em qualquer das seguintes condições: I – que tenham mais de cinqüenta anos de idade, exceto cientistas de nomeada e militares até oitenta anos; II – que sejam portadoras, em qualquer idade, de alguma deformidade física ou deficiência mental, a critério das autoridades militares locais, que as impossibilite de exercer atividades normais; III – que estejam apenadas ou em processo criminal em qualquer forma ou condição. 2 – serão fechados os hospitais, farmácias, laboratórios, escolas de medicina e enfermagem, exceto os estabelecimentos de interesse do Exército; 3 – cada mulher somente poderá gerar um filho, desde que esteja entre dezoito e vinte e cinco anos; 4 – serão fechadas todas as indústrias de transformação que impliquem processamentos químicos em qualquer fase, inclusive as usinas termonucleares; 5 – serão plantadas árvores, nativas ou não, em quantidade correspondente a mil vezes o número de habitantes remanescentes de cada país; 6 – outras medidas complementares serão anunciadas posteriormente, em razão do acompanhamento que o Comitê Executivo estará fazendo de forma permanente; 7 – estas determinações se aplicam a todos os povos e nações.” “Contando com a compreensão e apoio da sociedade em geral e das autoridades de todos os países, o Governo Mundial esclarece que as decisões ora adotadas se impõem como AGORA OU NUNCA MAIS necessidade para 190 a salvação da espécie humana. Bem compreendidas e assimiladas, essas razões hão de servir de orientação nas ações dos governos nacionais.” “É oportuno alertar que, caso algum país fuja ao cumprimento dessas diretrizes, nossos recursos militares estão aptos a fazê-las cumprir, inclusive com o uso de armas nucleares. Não será pelo desvio de um país que os esforços administrativos deste governo ficarão fracassados.” No jornal que lhe foi entregue de manhã, Candota leu o comunicado diversas vezes, tanto para absorver o exato sentido daquelas palavras como para se convencer de situação tão trágica, já prevista havia trinta anos. Finalmente, chegou o dia de enfrentá-la. Pesquisou todo o jornal em busca de outras notícias alusivas, comentários ou entrevistas, mas, sobre isso, o jornal se calou. A censura era rígida. O governo, naturalmente, já teria dado instruções precisas aos outros países e presumia que, com o comando de informações, conseguiria abortar situações de pânico e o caos. Estava absorto em seus árduos pensamentos, sentado na poltrona da sala, quando Beatriz, que tinha dormido até mais tarde, veio por trás e o abraçou ternamente, causando-lhe sobressalto. — O que foi, amor! Levou susto comigo? — É que eu estava muito distraído. Você precisa ler esta notícia. Depois nós vamos conversar. Entregou o jornal à esposa e se retirou para o interior da casa. Quando voltou, encontrou Beatriz chorando, quase em AGORA OU NUNCA MAIS 191 desespero. Ao ver o marido, abraçando-o apertado, verteu ondas sucessivas de pranto. — Meu amor, o momento é de autocontrole. A gente tem que ser forte. Você viu pela notícia que os fracos são eliminados. — Estou pensando é nos meus pais. E a minha avó, coitadinha, tão boa! Você acha que os governos vão ter coragem de cometer esses assassinatos todos? E você acha que os padres vão deixar? — Meus pais também estão condenados. A situação é de calamidade pra todos. Temos que tomar alguma providência. Vamos até à casa do Bento. Quero ouvir as idéias dele. Antes, vou ligar a televisão pra ver se tem algum comentário. Mudando de canal, Candota ouvia em todos a mesma e enervante leitura do comunicado oficial. Nenhuma reportagem. Desligou o aparelho e, com a esposa, foram à casa do amigo. As residências ficavam no mesmo bairro, mas deu para perceber grande movimento de veículos e gente nas ruas. A notícia já estava provocando as primeiras reações. — O que que a gente pode fazer agora? – foi logo perguntando Candota ao entrar na casa. — Nada! Fugir? Pra onde? O esquema de execução é mundial. Esse roteiro é o que nós já conhecemos. É aceitar... e pronto! Miriam está lá no quarto com a Beth, chorando que dá dó! Beatriz, já refeita do estrago, disse para os dois: — Acho que nós devíamos ir ao supermercado e comprar o máximo possível de gêneros de primeira necessidade, que vão faltar. AGORA OU NUNCA MAIS 192 — É mesmo! Vamos – chamou Candota. Olhando pela janela, viram nas ruas intensa agitação de gente e veículos atravancando os caminhos. Não dava mais para passar. Se entrassem no trânsito, ficariam parados e não iriam a lugar algum. Além disso, tudo levava a crer que os supermercados, nessas alturas, já deviam ter sido saqueados. A turba continuava a aumentar. Candota ponderou: — É tarde demais pra isso. Vamos ficar quietos, que é melhor. É deixar as coisas como estão. Quem dirige agora a vida de todos é o caos. É o que é chamado cientificamente de ordem caótica. — Bela extravagância! – comentou Beatriz. Estavam ainda conversando quando ouviram intenso barulho vindo da rua. Chegaram à janela e viram diversos tanques de guerra passando por cima de carros, atropelando gente e disparando tiros em todas as direções. Um espetáculo sangrento e infernal. Tal ação era compatível com as diretrizes de governo. Quanto mais mortes, melhor. Se elas não podiam ser seletivas, que fossem indiscriminadas, pois os efeitos eram os mesmos. E a milícia, instruções por aquela para matar demonstração, devia com e eficiência ter sem recebido compaixão. Atiravam, parece que com prazer, em adultos e crianças; uma orgia de sangue e tragédias. Se algum infeliz ficasse apenas ferido, recebia um segundo tiro, dessa vez direto na cabeça. Era uma visão de extenso matadouro humano. Agiam com o mesmo insetos. ânimo com que se costuma combater pragas de AGORA OU NUNCA MAIS 193 Os furtivos expectadores deixaram a janela em repulsa àquelas cenas nojentas de sofrimento e morte. — De que adiantou os governos incentivarem o crescimento populacional? – ironizou Candota. — Gastaram rios de dinheiro pra aumentar e agora gastam pra diminuir. Isso se chama irracionalidade – concluiu Bento. Dentro de casa, no quarto de casal, as mulheres, desesperadas com aquela estrondosa sinfonia macabra no compasso de sons bélicos e de gritos, choravam com desespero. Miriam se agarrava à filhinha e secava as lágrimas com uma toalha. Os maridos, sob tensão de pavor, conseguiam com grande esforço manter o comando da mente e do corpo. Assim era necessário, naquela emergência, para que pudessem exercitar o raciocínio, tão útil naquele momento. Bento ligou a televisão para se inteirar de acontecimentos em outros lugares. Nenhuma notícia; a censura continuava. Tentou telefonar para a casa dos pais. O serviço não funcionava. Por sugestão de Beatriz, resolveram os dois casais tomar um aperitivo na cozinha, buscando uma fuga passageira. O fragor da violência, com tiros e gritarias continuava lá fora, agora menos intenso. Enquanto se confortavam na bebida, Beth acordou assustada com o barulho. Ouvindo a filha chorar, Miriam correu para acalentá-la, seguida de Beatriz. — Bento, vamos deixar a televisão ligada. Precisamos ficar de olho. Talvez o governo vá se comunicar com a população. A situação está seguindo curso indefinido e não podemos ficar na ignorância. AGORA OU NUNCA MAIS 194 — Boa idéia! Enquanto você fica vigiando, vou até o quarto consolar minha mulher. Quando Bento chegou ao quarto, Miriam tinha acabado de fazer a Beth retornar ao sono e a tinha colocado no berço. Não precisando mais da companhia, Beatriz retirou-se para a sala onde seu marido, olhos fixos na televisão, estava que nem piscava. O tiroteio tinha diminuído, e eram ouvidos poucos gritos. Estavam bateram à ambos porta. na expectativa Súbito medo de tomou notícias quando conta deles. Entreolharam-se, indagativamente, e não encontraram clareza para uma decisão. Só observavam a porta. Bateram outra vez e com mais força. — Chama o Bento, que pode ser alguém conhecido dele, mas estranho pra nós – disse Candota à esposa. — Corre! Anda depressa! Novas batidas insistentes. Correndo, vieram os três. Bento se pôs perto da porta e, com ares de destemor, perguntou: — Quem é? — Abre, que eu preciso te falar. — Quem é? – repetiu. — Eu preciso de socorro! Abre logo! Candota, que ouviu tudo, num lampejo de iniciativa arrastou uma poltrona até a porta, dando a entender que concordava em que não fosse aberta. Bento tratava de procurar outro móvel para reforçar a entrada quando foi ouvida uma rajada de metralhadora, perfurando o umbral da porta, ao AGORA OU NUNCA MAIS tempo em 195 que desesperado grito de dor partiu do desconhecido que tentava entrar. — Estou percebendo que na rua os soldados não estão poupando ninguém – comentou Bento. Não podemos acolher gente estranha, sob pena dos milicos nos acusarem de qualquer coisa. Afinal, não sabemos em que situação estamos. — Bento, convém reforçar também a porta dos fundos. — Bem lembrado! Temos que ficar alertas o tempo todo. Qualquer descuido é perigoso. Candota tornou à televisão e ficaram todos atentos e em silêncio. Era enervante a postura de regularidade com que os canais se apresentavam. ordem e os intercalavam Reprisavam com os espetáculos costumeiros de toda anúncios comerciais, já sem serventia, só para preencher o tempo. Notava-se que os tiros agora eram esporádicos. Aos poucos, retornava a calmaria. Bento chamou Candota e foram ambos para o sótão, de onde, por uma fresta na janela, fizeram observações da situação nas ruas. Viram que o povaréu vivo tinha sumido. Ficaram só os mortos e destroços, que coalhavam as vias públicas. Máquinas enormes se ocupavam em retirar das ruas os restos de recolhendo automóveis, os e cadáveres. caminhões Após basculantes duas horas de estavam serviço, caminhões-pipa começaram os trabalhos de lavação e limpeza. As autoridades estavam mostrando que trabalham com competência e em sintonia com as determinações do governo. Estavam nessa observação quando ouviram Beatriz gritando que viessem. Assustados, correram para a sala e AGORA OU NUNCA MAIS 196 viram que a televisão estava dando informes oficiais sobre a situação. Compenetrados, ficaram ouvindo com muita atenção. “O Comitê Executivo Especial, órgão encarregado de implementar as medidas emergenciais do Governo Mundial, ora em pleno exercício de suas prerrogativas, vem comunicar ao público que está executando com eficiência, em todo o planeta, as diretrizes traçadas. Observa que, em algumas cidades, houve inaceitável e injustificada reação às normas oficiais, mas que medidas efetivas já foram tomadas, normalizando a situação.” “Este governo aproveita a ocasião para realçar ao povo que as medidas excepcionais foram absolutamente necessárias conforme justificativas anteriormente feitas. Mas julga de seu dever instar pela compreensão e colaboração de todos. Apela, ainda, para que cada um se ajuste ao programa, concordando passivamente com a perda de parentes ou doando sua vida para o êxito da empreitada, que é feita no benefício dos que irão sobreviver.” “Àqueles que estão enquadrados para o sacrifício supremo, fazemos especial pedido para se conscientizarem e assumirem a heróica postura de desprendimento em favor de continuidade da espécie humana. Lembramos a esses que o sacrifício voluntário redundará em oportunidade de vida para seus filhos e netos. O amor que devotam a seus descendentes somente refulgirá em sua grandeza se for efetivamente convertido em holocausto.” “Reiteramos, finalmente, que nossa determinação é rígida e que não pouparemos esforços para alcançar os resultados AGORA OU NUNCA MAIS 197 estabelecidos, inclusive com a tomada de duros procedimentos militares.” Todos ouviram e sentiram que a situação era terminante, definitiva. Depois de certo tempo de completa mudez na sala, Candota arriscou um comentário: — É isso aí, gente! Não tem como fugir. É aceitar ou morrer. Estamos vendo que a morte é o objetivo. E o pior é que eles estão certos. Estamos vendo que é... — Candota! – exclamou Beatriz, horrorizada. Sem tê-la ouvido, continuou: — ...incrível, mas real: morrer pra poder viver! A que ponto chegamos! E isso, na circunstância atual, fica perfeitamente lógico. Tudo porque deixaram o tempo passar, sem medidas adequadas na hora certa. E eu já tinha previsto e alertado o mundo sobre esses riscos, mas de nada adiantou. Essas mesmas conseqüências foram claramente expostas no livro que escrevi faz trinta anos. — O que foi feito do seu livro? – perguntou Bento. — Na época as autoridades não leram ele? — Perdeu-se no meio desse turbilhão de livros editados sob a ótica de ficção. Alguns leram, mas o mundo não se tocou; permaneceu o mesmo. Não adiantou nada. Serviu apenas como mais um objeto de distração ou calço de algum móvel. — Eh! autoridades. Faltou visão lógica e espírito arguto das AGORA OU NUNCA MAIS 198 — Bem que despendi esforços. Mostrei, expliquei, gritei, clamei, agitei, alertei. De nada valeu! Meu único consolo é que cumpri o Ah! deixa isso pra lá! meu dever. Deixei um documento pra História. — Console-se, Candota. Você não está sozinho. Os cemitérios guardam não só os corpos, mas também os sonhos e idéias de muitos heróis. — Por falar em livro, está na hora de dar o meu plantão lá na caverna. Você não quer ir? Estamos precisando de mais gente pra trabalhar. O Guilherme já se apresentou como voluntário. Está lá. Você também podia ajudar. — Ajudar o quê? — Tem uma turma de intelectuais trabalhando em surdina pra construir um conjunto subterrâneo de salas enormes, em concreto, com passagem secreta. A polícia não pode saber, senão... — Essa bobagem é pra quê? Isso não vai salvar ninguém! — É pra salvar os livros da nossa biblioteca. Em todas as grandes cidades estão fazendo a mesma coisa. Aqui o serviço já está quase terminado. Você bem que podia ajudar; também é intelectual! Pega esta picareta, que eu levo a pá. Anima, que o serviço é nobre. Será recompensado pela sua consciência. — Deixa disso sô! Não vê que está perdendo tempo? Nós precisamos é achar um jeito pra salvar a nossa pele. — Pensei que você podia cooperar. Afinal, precisamos salvar pelo menos a memória da humanidade. — Francamente! Salvar livros!... AGORA OU NUNCA MAIS 199 — Bento, nós duramos no máximo cem anos. Os livros das bibliotecas duram uma eternidade. São o único tesouro tangível de nossa humanidade. — Bobagem! Não são mais que objetos! — Engano, meu chapa! Ainda não percebeu que o livro tem alma? — Alma!... Ora, ora! Com efeito!... — Até parece que você nunca leu um livro! Ele é um objeto enquanto está fechado e na prateleira, mas volta à vida quando está sendo lido. A alma de um livro é imortal. Só depende da gente preservar a integridade do seu corpo. Nunca percebeu esse milagre maravilhoso? — Você pretende mesmo perder o seu tempo com isso? — Não vê que esta civilização está condenada? A única coisa sábia que podemos fazer é salvar os livros. — E eles vão ficar escondidos, lacrados em subterrâneos? — Isso mesmo. — Então, pra quê? — Pra quê!? — Ora! Se não vai ter gente pra ler, por causa da extinção da humanidade, esses livros vão ficar sem vida – mortos – pra toda a eternidade! Ora, ora! Então, pra quê? — Eu te explico. — Não percebe que... — Calma, aí! Deixa eu explicar. — Então explica, vá! — Pois é... Pra quê? Pra que os futuros arqueólogos de uma futura nova humanidade... — Hum! AGORA OU NUNCA MAIS 200 — ...possam, nas suas escavações, descobrir o acervo de riquezas intelectuais de todo um período, o Período Intelectual, e não caiam no mesmo equívoco nosso. Precisamos defender esse patrimônio riquíssimo, o cabedal da mente humana, a verdadeira riqueza da criatividade. No dia seguinte, domingo, todos foram à missa na igreja católica. O templo estava completamente tomado pela multidão de crédulos. O vigário nunca havia visto a casa de Deus tão procurada. Candota e Beatriz chegaram cedo e se postaram no banco da frente. Nas imediações estavam, além de Bento e Miriam, também todos os seus familiares. Lá estavam ainda Alfredo, Dona Rosa e Terezinha num banco recuado quatro fileiras à direita. Ninguém se abraçou, mas todos se olhavam. Parece que os parentes estavam cônscios da situação e aguardavam de o seus destinos. início da Mostravam-se cerimônia tranqüilos religiosa. e Guilherme encontrava-se separado do grupo familiar, sentado dois bancos atrás, também sereno, imperturbável. Ao vê-lo, Candota chegou perto e exclamou, com sentimento de alívio: — Ô Guilherme! Que bom que você está vivo. Eu pensava que você tinha morrido... O irmão continuou impassível, olhando em frente; nem desviou o olhar para Candota. Os sinos no campanário tocavam languidamente, parece que dobrando de antemão pelas almas programadas para migrar. A imensa e imponente nave da igreja infundia ambiente majestático e de conforto espiritual. E os diversos círios ardentes nas laterais emitiam, com seu odor característico, mensagens de serenidade e paz nas almas daquela multidão. AGORA OU NUNCA MAIS 201 Nas laterais do altar, os coroinhas começaram a vibrar suas sinetas, anunciando o início da liturgia. Postados perto da escada do púlpito, trocando os últimos ajustes de procedimento, viam-se o padre, ricamente paramentado, e um presbítero protestante sobriamente vestido de preto. Estava preparado um solene e inusitado culto ecumênico. Depois dos ritos iniciais, valorizados pelos incensos espargidos e pelo murmúrio das preces, subiu ao púlpito o distinto padre. Ante o silêncio absoluto daquele imenso público, o sacerdote estendeu as mãos, como que abençoando seu rebanho, e pronunciou sua prédica: “Meus caros irmãos. Que todos sejam abençoados. Hoje, ante a situação única e excepcional que surgiu pelas medidas políticas e administrativas do recém-criado Governo Mundial, não podemos deixar de lhes trazer a palavra de Deus. Ela é necessária neste momento em que as almas estão agitadas e sem rumo. A palavra divina do Pai Eterno não poderia faltar aos seus filhos bem-amados, que passam por tão grande provação.” “Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a legitimidade e justeza das medidas governamentais. Elas se fazem necessárias ante uma situação em que os inconscientes descontroles dos homens tornaram perigosa a continuidade desta destrutiva civilização.” “Perante uma realidade que, numa visão serena, advém da vontade divina e da qual não temos como fugir, resta-nos aceitar com coragem, resignação, humildade e fé cristã o destino que nos foi traçado. Os caríssimos e abnegados fiéis aqui presentes deverão lembrar- se, como exemplo de uma AGORA OU NUNCA MAIS 202 época, dos nossos estóicos irmãos de fé que, nas arenas romanas, entregaram suas vidas nas mãos do Senhor.” “As trombetas celestes tocam neste momento os hosanas e divinos hinos de louvor aos que vão chegando à morada eterna e se sacrificando nesta epopéia de renúncia em benefício da própria espécie humana, legítima representante de Deus na terra. O sacrifício de muitos não será em vão. Terão a certeza da redenção de seus filhos e netos em nossa comunidade terrena.” “Dessa forma e em nome de Deus, fazemos apelo veemente a todos os que crêem na justiça divina para que não ofereçam resistência às normas corretas do governo. Que se entreguem de corpo e alma ao amor humanitário que se há de concretizar na segurança de seus descendentes.” “Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.” O povo, que a tudo ouviu em respeitoso silêncio, calado permaneceu. Parece que a prédica do padre se infiltrou nos espíritos dos ouvintes como eficiente lenitivo. Mal o padre desceu do púlpito, o presbítero ali assomou. Usando palavras inflamadas e com gestos largos, teceu loas às virtudes da humanidade e pôs em destaque a caridade e o espírito justificou os de renúncia atos das do verdadeiro autoridades e cristão. Também terminou fazendo eloqüente apelo para que os fiéis se submetessem àquela que era a vontade de Deus. Depois de terminada a cerimônia religiosa, as pessoas foram se retirando da igreja em passos muito lentos, guardando silêncio absoluto e com inteira tranqüilidade. No AGORA OU NUNCA MAIS 203 recinto ainda, Candota procurou pelos parentes, mas não os viu. Do lado de fora, no largo da igreja, existia imensa fila de pessoas idosas que desembocava num portão de quartel. À entrada, um soldado anotava os dados do apresentante e o mandava seguir adentro. Alguns transeuntes informavam que os voluntários eram executados com injeção letal de poder instantâneo. De outro portão, saíam caminhões carregados de cadáveres que os levavam para longe, onde grandes covas coletivas os aguardavam. Candota notou que os voluntários se mostravam serenos, resignados, com postura altiva e honrada. Não conversavam entre si, mas irradiavam uma mensagem de conformismo vitorioso e contagiante que atingia os passantes próximos. Afoito, procurou os pais em toda a extensão da fila, não os encontrando. Restava razoável multidão aglomerada defronte da igreja e talvez eles estivessem lá. Candota se embrenhou por entre as pessoas, mas elas eram tantas que a busca foi infrutífera. Beatriz, que permaneceu em observação perto da fila, correu para o marido e lhe disse: — Achei! Venha que eles estão na fila. Não demoram a entrar no quartel. É o meu pai e a mamãe. — Mas o que é isso? Eu já tinha percorrido a fila e não vi ninguém! Ali estavam Juarez e a esposa. Candota olhou mais à frente e atrás procurando achar os pais. Beatriz se mostrou feliz pelo encontro, mas não foi correspondida. Seus pais não lhe dirigiram a palavra. Estavam impassíveis. Parece que havia AGORA OU NUNCA MAIS 204 ordem dos militares para que se mantivessem insensíveis. Beatriz, surpresa e chorosa, ainda ficou observando os pais por algum tempo até que entrassem pelo portão. Candota e a esposa foram para casa. A contar da igreja, ela ficava no transeuntes. final de Veículos, oito apenas quarteirões. os Nas ruas, só No meio do militares. caminho, ao cruzarem uma praça, notaram outra longa fila de voluntários ao sacrifício heróico. Também caminhava para o interior de outro quartel. Tentando cruzá-la para alcançar o outro lado do caminho de casa, viram-se, com surpresa, diante de Alfredo, Dona Rosa e Guilherme. Olharam à frente e atrás e identificaram os parentes próximos conhecidos do Bento. idosos. Havia, Era uma também, grande diversos família, a amigos das e suas amizades. Todos, imperturbáveis em seus lugares, caminhando a passos lentos. Olhavam para Candota, mas não demonstravam qualquer emoção nem falavam. Mostravam-se entorpecidos ou sob rígida hipnose. Candota percebeu que também já estava ficando insensível, apático, só de olhar aqueles inexpressivos rostos. Estaria sendo atingido pela aragem funesta propagada pelas novas situações de normalidade? Parecia que a morte já não tinha qualquer ligação com sentimentos e afetos. Até o amor parecia ser apenas uma palavra assassinada. O que seria mesmo o amor? Beatriz, notando que o marido estava tomando ares de ausente, tomou-o pelos braços e o sacudiu com violência, ao mesmo tempo em que gritava desesperada: AGORA OU NUNCA MAIS 205 — Candota! Candota! Reaja! Você é jovem e eu te amo. Meu amor, veja e sinta a vida. Reaja, que você tem que ser forte! Valeu o ímpeto da dedicada esposa. Candota, retornando do torpor, se recompôs e ficou amedrontado ante aquele ambiente macabro, afastando-se rapidamente rumo a casa. Mais tarde, já refeitos daqueles estranhos acontecimentos e estando Candota na sala bisbilhotando os canais de televisão, Beatriz trouxe um prato coberto com guardanapo. Após colocá-lo sobre a mesinha, perto da poltrona em que estava o marido, chegou-se a ele, abraçando-o com ternura. — Lembra? — Hã-hã! – fez Candota afirmativamente, enquanto mantinha os olhos fixos na televisão. — São os biscoitinhos de coco com feitiço que eu te servia antigamente. Você ainda gosta deles? Surpreso com a lembrança, mirou a esposa nos olhos e, com amor e admiração, respondeu: — Então era esse o seu segredo? E eu, hem! Sempre pensei que os seus olhos é que me prendiam. Que feitiço sedutor e sublime! Que venha mais feitiço desse tipo! — Sabe que meu amor por você é imortal? Mesmo que eu não chegue à velhice, ele não morrerá nunca. Serei sempre sua, e o meu desejo é que essa tortura termine logo. — Vai terminar! – consolou Candota enquanto, carinhoso, enlaçava com os braços a amada. — Você é um anjo! Tem suportado comigo todas as minhas angústias. Eu não podia ter casado com outra. Pra mim, você é a única mulher que preenche meu coração. Você se lembra daquela vez quando... AGORA OU NUNCA MAIS 206 Interrompeu-se, súbito, pela notícia aparecida na televisão, dizendo que transmitiriam um comunicado oficial. Efetivamente, logo informaram: “O Governo Mundial, por seu Comitê Executivo Especial e no uso de suas atribuições, comunica ao povo que estão em pleno andamento as normativas do controle ambiental, já tendo alcançado trinta por cento dos objetivos iniciais. Para tanto, vem o Governo Mundial obtendo em todos os países a devida compreensão e colaboração das autoridades locais e do povo em geral. Algumas poucas resistências vêm sendo energicamente combatidas e não chegam a comprometer o esquema traçado.” “Informa ainda que, no intuito de assegurar a correta aplicação das medidas saneadoras, as pessoas componentes dos governos nacionais estão, sob qualquer condição, isentas de sofrer as ações restritivas capituladas anteriormente.” Mais tarde, o telefone tocou. Era Miriam, chorando e desesperada, perguntando se Bento estava ali. — Não. E não esteve aqui. — Candota, me ajuda! Eu... – e não conteve o choro. — Calma, Miriam! Pára de chorar e fala direito. O que que foi? Fala, Miriam! Miriam! Ô Miriam, você está me escutando? Vê se fala alguma coisa! — O William... — Fala! Pára de chorar! — O William... até agora... — O que foi? AGORA OU NUNCA MAIS 207 — ...ele não voltou. — Não disse aonde ia? — Ele... estava muito abatido com essa situação e... — Sim! E daí? — ...saiu de casa sem me dizer nada. — Estou te escutando. — Eu estava ocupada com a Beth... — Fala direito! Conseguindo dominar o choro, explicou: — Como demorava a chegar, fui até o jardim, e meu vizinho disse que ouviu o William resmungar que ia participar dos voluntários. Quase entrei em desespero! Já percorri diversas filas, mas não adiantou. Ninguém dá notícias dele. — Fica calma que eu vou dar uma solução. — O que que eu vou fazer sem ele? E minha filhinha? Não tenho mais meus pais. Não tenho ninguém! Me ajuda, Candota! — Calma, Miriam! Deve ter algum mal-entendido. Vou sair pra tentar notícias. Procure se controlar, que é o mais importante agora. Depois eu te ligo. Candota virou-se para Beatriz, que tinha ouvido a conversa, e disse que ia sair para procurar o amigo. — Não, Candota! Não sai, que eu fico apavorada! Não sei se você vai sumir também. Ninguém conhece o que os militares andam fazendo de secreto. Só sabemos o que o governo diz. Não vai, não! — Não vai ter problema! Eu não estou enquadrado naqueles dispositivos. Não demoro; vou só espiar algumas filas. AGORA OU NUNCA MAIS 208 — Então, olha de longe! Se chegar perto, você pode ficar contaminado pela letargia. E eu não posso ficar sozinha neste mundo. Seria o meu fim também! Não contendo a aflição, começou a chorar e disse: — Ai, meu Deus! Não vai não, amor! Estou prevendo o pior! Sem você eu não existo! — Preciso ir! O Bento está em perigo. — Então, me leva! — Mesmo com esse perigo?... Então vamos! Com muito receio, foram ambos inspecionando de longe, procurando localizar o amigo. As ruas estavam quase desertas e a passagem eventual de algum veículo militar os assustava. Percorreram poucos quarteirões e não viram nenhuma fila. Por medo e precaução, suspenderam a busca. Já em segurança dentro de casa, Candota ligou para Miriam. — Procurei o seu marido, mas também não encontrei. Deixa passar mais um tempo; ele ainda pode voltar. — Estou desesperada! Não agüento mais! — Fica firme aí! Ele é inteligente e não vai fazer nenhuma besteira. Você não quer vir pra cá? — Mas... — Espera ele aqui em casa. Você vai ficar mais confortada e te damos proteção. — Está bem. Vou deixar um recado escrito aqui, no caso do William aparecer, e sigo pra sua casa agorinha mesmo. Candota continuou de olho na televisão ligada. Após longo tempo de espera, a campainha soou com insistência. AGORA OU NUNCA MAIS 209 — Beatriz, atende lá por favor que deve ser a Miriam. Demorou muito! Dá assistência a ela, coitada, que deve estar precisando. Depois de abrir a porta da frente, que estava fechada à chave e com dois ferrolhos, Beatriz se admirou; era o Bento. Mal aberta a porta, este foi entrando e perguntando se Miriam estava ali. Mostrava-se apavorado, desesperado, com olhos arregalados e agitando sem controle os braços. Estava completamente transtornado. Falou coisas que não faziam sentido, balbuciou palavras misturadas com murmúrios e não ouvia as perguntas que Candota lhe tentava fazer. A situação era de pânico. Candota percebeu que o momento exigia uma providência urgente para acalmá-lo. Pediu que conseguiu Beatriz que preparasse seu amigo o chá calmante tomasse. bem Sentados forte na e sala, deixaram que ele ruminasse sozinho seus queixumes, mas ficaram em silêncio e atentos para ver se conseguiam deduzir alguma informação. Bento falava desconexamente de filas, registros, crianças. Depois de certo tempo, verificaram que o amigo estava lentamente voltando a um estado mais calmo. Agora, já ficava longo tempo em silêncio, sempre olhando para o chão. Em momento algum, encarou os donos da casa. Mais um interregno de espera silenciosa e Bento, muito sério, olhou para Candota e fez uma saraivada de perguntas sem esperar respostas: — Como é que vim parar aqui? O que que houve? Onde está a Miriam? E a Beth? Me explica tudo! AGORA OU NUNCA MAIS 210 — Primeira coisa é você ficar calmo e controlar a sua cabeça. Bento se assustou com essas palavras e insistiu: — O que que aconteceu com a Miriam? Conta logo! — Não aconteceu nada de anormal – tentou tranqüilizá-lo. — Então, ela está aqui? – insistiu Bento. — Não. Não está, mas primeiro vamos tentar saber o que aconteceu com você. Saiu de casa sem avisar, hem! E sumiu! O que que andou fazendo durante esse tempo todo? Miriam me telefonou mostrando preocupação. — Na verdade, eu não sei nada disso. Alguma coisa me perturbou. Só me lembro que estava numa fila de apresentação. Quando cheguei na mesinha de controle, o guarda não me deixou passar. Disse que no momento não estou enquadrado nas normas. Nessa hora, me deu uma coisa esquisita na cabeça. Fiquei apavorado e saí correndo pra casa, mas lá não tinha ninguém. Li o recado da Miriam. Dizia que tinha vindo pra cá e vim correndo. Por que ela não está aqui? O que vocês estão me escondendo? – perguntou, desconfiado. Percebendo a situação aflitiva, Beatriz insistiu que tomasse mais chá, no que foi atendida, e aconselhou: — Calma, calma! A Miriam está chegando. Enquanto esperamos, tome um banho com água bem quente, que é bom. Vá, enquanto ficamos vigiando a televisão. Até agora, não deram mais nenhuma notícia. Momentos depois, Bento retornou com aparência mais tranqüila, parece que meio envergonhado do descontrole demonstrado. Chegou de mansinho à sala, sentou-se em silêncio e assim permaneceu, atento também à tela da AGORA OU NUNCA MAIS 211 televisão. Vários minutos de expectativa se esgotaram, sem ninguém conversar. Soando a campainha, Bento deu um pulo ágil em direção à porta e, com avidez, a destrancou. Não era Miriam. Era o repórter Spinder, que foi logo entrando e indo ao encontro de Candota. Todo trêmulo e com expressão amarga, implorou: — Candota, quero te pedir um grande favor. Deixa eu ficar morando na sua casa por uns tempos. Estou sendo perseguido de todo jeito e foi só por milagre que ainda estou vivo. Você não imagina o que essa gente anda arrumando. — Hoje eu tenho que pedir calma a todo mundo. Só eu é que não tenho o direito de desesperar. Confio na minha força de vontade. Só espero que essa minha resistência dure. — Coisa horrorosa, Candota! Os postes... as bonecas... — Meu amigo Spinder, calma! Que diabo! Não consegue... — Você é porque... — Assim não dá! — Candota!... Frisando palavra por palavra e fazendo esforço para não perder a paciência, Candota franziu a testa e falou com energia: — Tenta ficar calmo, pelo amor de autocontrole, você não consegue nem pensar. Deus! Sem E ainda vai me desmontar. — Mas, Candota... — Spinder! Você não ouviu? Agora, você não tem que falar nada! Nada, nada! Virando-se para a esposa: AGORA OU NUNCA MAIS 212 — Beatriz, prepara pro Spinder um pouco daquele santo chá. Pode fazer mais quantidade, que eu também vou querer. Ainda bem que temos um bom estoque na despensa. Bento voltou para a poltrona e ali ficou curtindo sua decepção com a angustiosa demora da esposa. Não prestava atenção ao recém-chegado nem ao que se passava em volta. O ambiente estava carregado de medos e desesperanças. Beatriz preparou a bebida com abundância, de forma que bastasse a todos. Estimou que necessitavam de calmante, inclusive a Miriam que não demoraria a chegar. Servido o chá, com certa cerimônia e sorvido em bocadinhos, por efeito dele ou da sugestão do nome, as tensões foram cedendo aos poucos. Sentiam-se como recebendo do além um sopro de alívio mental. Ninguém falava. Parece que se concentravam no esforço de consolidar suas vontades. Até a vigília na tela da televisão ficou relaxada. Candota, percebendo a calmaria do ambiente, disse ao repórter: — Você pode ficar aqui em casa. É um prazer acudir um amigo e também poder contar com a sua companhia. Desculpe a minha rudeza, mas eu estava quase perdendo as estribeiras. — Eu é que tenho que pedir desculpas. Me desculpa, vai! Muito obrigado pela acolhida e espero não te pesar muito. — Deixa de bobagem! Tudo bem! Agora conta o que aconteceu com você. Eu te dou uns quarenta anos de idade; você não está incluído nas restrições à vida. Por que as perseguições? — A vida de repórter já é muito dura em tempos normais. Imagina agora, nessa situação excepcional. AGORA OU NUNCA MAIS 213 — Está dura pra todo mundo! — Você deve saber que nós repórteres não inventamos nada. Nossa ambição é a notícia. É quase uma doença. Mas quem não consegue informações não tem notícias. Por isso, temos que tecer uma estrutura de comunicação confidencial com o máximo de pessoas que são autores ou testemunhas dos fatos. E não podemos revelar as fontes. De jeito nenhum. — Vocês são mesmo que padres no confessionário. Morrem com os segredos – reforçou Beatriz. — Isso mesmo! Se não fosse assim, repórter nenhum ia receber informações. Essa regra é como juramento; tem de ser mantida a qualquer preço. — Você fugiu do seu jornal? – indagou Candota. — Fugi, mas não do jornal. Depois eu te conto. Agora, vou te dar umas informações que consegui das minhas fontes. Está havendo desentendimentos entre os membros do Comitê Executivo Especial. Alguns querem medidas mais drásticas e outros querem segurar um pouco. O que está pesando muito nas decisões do comitê são os relatórios do Conselho para Assuntos Emergenciais. — Deve ser tudo baseado em suposições. Esse conselho é formado com maioria de militares – opinou Candota. — Não é assim, exatamente! Os cientistas que vêm monitorando o processo insistem que são fracos os resultados observados até o momento. A prevalecer essas opiniões, podemos esperar mais aperto. — Acho que vem chumbo grosso por aí! – concluiu Candota. AGORA OU NUNCA MAIS 214 — Não é só isso, não! Vou te contar mais! Tive informação que o Governo Mundial incentivou e conseguiu que vários países da Ásia entrassem em guerra. Estimulando o ódio, os governos nacionais conseguem que o povo participe dessa insanidade patriótica. — E eles vão só matando e morrendo! — Do jeito que o governo quer. Não bastasse a desgraça da situação, eles arrumaram mais essas tragédias. — Já pensou!? Será pouco matar oitocentos milhões de idosos? – lastimou Bento, amargurado, entrando na conversa. E continuou, já mostrando certa recuperação do estado depressivo: — Candota, se você estivesse no comando desse comitê, ia tomar essas mesmas medidas? — Eu? É pra pensar mesmo! Deixa eu ver... Tendo em vista que a primeira oportunidade já foi perdida, só ficaram mesmo essas providências extremas. Faz parte do processo a gente ter que lamentar, chorar e padecer as dores dessas desgraças. Como sofredor dessas ações administrativas tão cruentas, só posso ficar é perturbado. — Mas se fosse você? – insistiu Bento. — Se fosse eu que decidisse no governo... pensando bem... Olha, só posso achar que eu ia ficar insensível, sereno e irracional. Tinha que me tornar um robô. Tomava providências muito mais radicais. Afinal, estamos numa emergência! Acho que o governo está sendo até bonzinho! — Não acredito! – exclamou Beatriz, apavorada. — Você é capaz de pensar assim? AGORA OU NUNCA MAIS 215 — Vamos reconhecer que, pra governar numa situação dessa, esse povo do governo teve que sufocar a alma e se transformar em autômato. Ali não existe emoção nenhuma nem podia existir. Ponha-se no lugar deles e vê se você não faria a mesma coisa! Pelo que eu percebo, a realidade mundial é quase de salve-se-quem-puder. — Então, estamos perdidos mesmo! E o pior é que meu marido está de acordo com essa barbaridade toda! Incrível! — Procure enxergar as coisas como elas são – contestou Candota. — E eu que pensava que você tinha coração! — Ora, Beatriz! Não leva suas idéias pra esse lado. Enxerga que estamos no limiar duma mudança histórica e somos personagens e testemunhas dela. — Eu sou é vítima! — Consola com isso que vou te falar: nos últimos milhões de anos, a Terra já passou por diversos cataclismos que destruíram os principais seres viventes, mas preservou a fonte da vida. Este é apenas o início de mais um cataclismo, um período cíclico, sistema universal que o cosmo usa pra se renovar. Nós vamos perecer, mas a Vida vai ser conservada nas bactérias. — Belo consolo! Então, vamos festejar! – ironizou Beatriz. — Eh! A Vida teima em viver – resmungou Bento. — E você, Spinder, soube de mais alguma coisa? – interveio Candota, procurando mudar o assunto que já estava começando a azedar. AGORA OU NUNCA MAIS 216 — Ah! Depois do caso do secretário do Tesouro, teve vários suicídios nos quadros do governo. E não é só lá, não. É pra todo lado. Suicídio agora passou a ser moda. — Não é pra menos! Numa situação sem qualquer perspectiva de vivência, a não ser sofrimento e desgraça total, até que o suicídio é uma solução sensata – observou Bento. — Sobreviverão os que forem fortes de espírito e os que não se deixarem abater pelo desespero – ponderou Candota, como a pregar. — Não tem tido revoltas populares? – perguntou Beatriz. — Tem sim, mas só em alguns países. Nos que não estão em guerra, as forças armadas intervêm imediatamente à base de reações violentas e mortais. Acredito que o governo acha até vantajosas essas irrupções. É um bom pretexto pra matar mais gente. — Você acha? – perguntou Beatriz. — Claro! Porque, dessa forma, melhora o índice de diminuição populacional, que é o principal objetivo deles. O pior é que, nas cidades grandes, estão sendo formados grupos de saqueadores que entram nas casas, roubam o que querem e ainda matam os donos. — Jesus! – espantou-se Beatriz. — Essa baderna não está sendo combatida pelas autoridades, e os grupos de assalto estão aumentando. É isso aí. Quanto mais morte, melhor pro governo. Não pude confirmar, mas circula à boca pequena que vários empresários e políticos conseguiram apoio de alguns generais conspiraram pra derrubar o governo. — Isso faz a situação piorar mais! – calculou Candota. e AGORA OU NUNCA MAIS 217 — Se faz! Mas não vai piorar, não! Foram descobertos e todos executados. O Governo Mundial está senhor da conjuntura e se mostra decidido nas ações de radicalização total. — De quem você está fugindo? – perguntou Candota, com curiosidade. — Deixa eu explicar. Na intenção de obter informações, consegui fazer contato com diversos elementos bem colocados nos órgãos do governo. Um deles, com cargo elevado no comitê, foi flagrado quando me passava informes confidenciais das últimas reuniões. Ele foi preso e executado, mas eu consegui me esconder. Mudava de pouso a cada dia pra despistar a polícia. Nem compareci mais ao jornal. Soube que vários jornalistas foram presos e interrogados sob tortura. Saí de Washington escondido num caminhão e vim parar aqui. E, embargado pela emoção, mal conseguiu acrescentar: — Nem notícias da minha família eu tenho! Meus filhos... Tentando reprimir as lágrimas, não agüentou o aperto no coração e se entregou ao choro, virando o rosto para o lado. À medida que ouviam o relato de Spinder, culminado pela triste cena, os três companheiros mostravam expressões de desalento, alternado com desespero. Era visível o esforço que faziam para manter a cabeça fria. Candota, procurando modificar aquele quadro de vexame, disse: — Spinder, uma coisa eu não entendi. Se o jornal não pode publicar nada sobre esses problemas, por que você tem de obter informações? — É minha função e eu sou pago pra isso. É norma da empresa ela se abastecer com todas as notícias diárias, AGORA OU NUNCA MAIS 218 mesmo que só pra figurar nos arquivos do jornal. Podem servir oportunamente quando a situação se normalizar. Ficam como registros históricos. Você sabe que, pra melhor ou pra pior, isso não vai continuar pra sempre. Algum dia a humanidade vai voltar a ter existência normal. Aí os arquivos vão falar. — Sei lá! Acho que esses arquivos vão ser lidos é pelas traças e baratas – resmungou Candota. Toca a campainha seguidamente. Bento, que tinha o pensamento ligado à esposa, adiantou-se esperançoso para abrir a porta. Só podia ser a Miriam, chegando finalmente a seu destino. E era. Foi reconhecida porque, no momento em que a porta foi aberta, exclamou, como se confortada pela visão do marido: — William! – jogando-se nos seus braços. — Miriam! – admirou-se Bento, enquanto a apertava com calor. A figura de Miriam, quando surgiu à porta, quase não foi reconhecida, tal sua aparência. Cabelos desgrenhados e cobrindo os olhos, roupas sujas e rasgadas, sem sapatos, rosto inchado e arranhado, além de marcas roxas e vermelhas. Não chorava; já não tinha lágrimas para verter. A expressão era como a de uma moribunda, a custo mantendo-se de pé. O marido a carregou para um quarto, deitando-a na cama. Beatriz a acompanhou e se dispôs a cuidar dos ferimentos. Trocou suas roupas, fez compressas de gelo e lhe deu alimentos e palavras de conforto. Manteve-se em guarda no quarto para acudir no que fosse preciso. Miriam percurso finalmente parte de sua tinha chegado, vida. Algo de mas muito deixara grave no teria AGORA OU NUNCA MAIS 219 acontecido. Bento não teve paciência para esperar melhora nas condições da esposa e lhe perguntou, quase em desespero: — Onde está nossa filha? Com dificuldade, por causa dos ferimentos internos na boca que lhe afetavam a clareza das palavras, Miriam foi desfilando as cenas do seu calvário. — Quando eu estava no meio do caminho pra cá, apareceu um grupo de soldados enfurecidos que tentaram tomar a Beth. Lutei, recebi muitas pancadas, mas levaram ela assim mesmo. Foi jogada de qualquer jeito na caçamba dum caminhão que já tinha outras crianças, todas chorando e chamando mamãe; uma tristeza! — Coitadinha! Ela é inocente! Bandidos! – bradou Bento. — Depois que me tiraram a Beth, ainda me bateram muito e me levaram pra um quartel. Diziam que era por causa da minha resistência. Me entregaram este papel, onde está escrito que a Beth pode depois ser retirada do Hospital Militar, um centro de triagem. Ali os médicos examinam as crianças pra verificar se possuem alguma deficiência física de nascença. Ela é sadia, mas se eles acharem que tem qualquer coisa, mesmo que de caráter subjetivo, nunca mais vamos ver nossa filhinha. — Mas por que você está tão machucada assim? — Lá no quartel, fui submetida a tortura por castigo e pra indicar onde parentes meus acima de cinqüenta anos estão escondidos. Não adiantava informar que eles já se apresentaram como voluntários pra morte. Demorou muito até que eles consultassem os registros. Pensei não sair viva de lá! — Agora procura se tranqüilizar e aceitar essa realidade, que não tem como a gente alterar. Vê se consegue dormir. Vou AGORA OU NUNCA MAIS 220 ficar aqui perto de você, naquela cama ali. Se precisar, é só me chamar. No dia seguinte, Miriam já se apresentava melhor, fisicamente, e se dispôs a levantar e andar um pouco, para domar as dores que ainda sentia nos ossos. Beatriz lhe apajeava com dedicação. Spinder, que estava de plantão ante a televisão, gritou para os amigos, dizendo que fossem à sala urgente, que estava sendo anunciado para breve um comunicado do governo. Mantendo-se em silêncio, na expectativa, ficaram os homens de olhos e ouvidos atentos às notícias. Efetivamente, com uma introdução musicada, o locutor começou a ler pausadamente o documento oficial que aparecia na tela: “O Comitê Executivo Especial, órgão do Governo Mundial, em aditamento às resoluções anteriores, vem comunicar ao povo as seguintes considerações e disposições: a – considerando as razões apresentadas pelo Conselho para Assuntos Emergenciais, composta de insignes cientistas, especialistas e sábios, de que as medidas adotadas até o momento são insuficientes para atingir o objetivo anteriormente divulgado; b – considerando que, apesar de nossos apelos, pessoas egoístas e oportunistas têm procurado dificultar as ações saneadoras; c – considerando a urgência de medidas efetivas que o problema ecológico exige; este órgão executivo dispõe que: AGORA OU NUNCA MAIS 221 1 – passam a ser alvo de eliminação todas as pessoas que tiverem mais de quarenta anos, mantendo-se as exceções anteriores; 2 – a geração de único filho fica restrita para mulheres entre dezoito e vinte anos; 3 – crianças que nasçam com qualquer deficiência, a critério das autoridades policiais, serão sacrificadas; 4 –as pessoas acima de dezoito anos deverão usar, permanentemente e bem à vista, um adesivo grande, na altura do peito e das costas, contendo os algarismos da idade sob pena de serem imediatamente executadas; 5 – não obstante estas resoluções, a quantidade de árvores a ser plantadas continua a mesma anteriormente definida; 6 – ficam proibidas viagens para fora do domicílio.” “Este comitê informa, finalmente, que está atento para que todas as suas decisões sejam cumpridas com disciplina e aceitação passiva pelo povo. Apela ainda para que, a exemplo dos idosos, os novos limites de idade sejam aceitos voluntariamente pelos que estejam neles enquadrados, o que será considerado ato de heroísmo que redundará em benefício da humanidade sobrevivente.” — Pronto! Mais matança! – lamentou Bento. — Eu já estava prevendo isso! – sentenciou Candota enquanto passava as mãos na cabeça, tentando reanimar seus neurônios. E continuou: AGORA OU NUNCA MAIS 222 — Agora, apesar de que estamos fora desses limites, temos de tomar muito cuidado com esses saqueadores que vagueiam por aí e os desmandos que esses militares cometem. Não viram o que fizeram com a Miriam? Vocês têm armas? — Tenho duas pistolas e uma carabina, mas contra o exército isso não vale nada. É temeridade usar armas nessas circunstâncias. Você está pensando nalguma bobagem? — Eu tenho uma pistola – disse Spinder. — Mas o que você está planejando? — Eu também tenho duas armas. Estou vendo que já formamos um exército. Eu não estou planejando nada, só pensando alto. — Então, pra que esse tal de exército particular? – insistiu Spinder. — Só quero frisar que não podemos ficar à mercê desses bandidos, que aproveitam o estado de exceção pra saquear e matar gratuitamente. O caso da Miriam tem que servir de exemplo. O nosso lema deve ser este: manter o autocontrole e não confiar em ninguém. Bento, onde estão as suas armas? — Tenho que buscar elas em casa. Vou de madrugada, por ser mais seguro. Beatriz, muito abatida à vista do que ocorrera com Miriam, chegou à sala e informou ao Bento que a mulher estava dormindo. Candota chegou-se perto da esposa e lhe contou as últimas decisões do governo. Já debilitada e muito tensa, a notícia foi como espoleta em seu sistema nervoso, provocando uma explosão de emoções contidas. Após um sumiço de expressão no olhar, pôs-se a chorar aos gritos, jogou-se no chão e ficou esperneando com desespero. Puxava AGORA OU NUNCA MAIS 223 os cabelos, arranhava-se e agredia o tapete do piso, ao tempo em que se lamentava: — Por que eu fui nascer? Meu Deus! Me acode! Bandidos e assassinos! Eu quero morrer! Não agüento mais! Com aquela visão de histerismo, Candota correu para a cozinha, dali trazendo uma vasilha grande com água fria. Despejou toda a água, de uma só vez, no rosto de Beatriz. Com aquele choque e ainda estendida no chão, a mulher parece que retomou o fôlego e se deixou ficar ali, imóvel, entorpecida. O marido só observava, sem dizer palavra. Passaram-se alguns minutos de expectativa. Abaixando-se, Candota cingiu a mulher por baixo dos braços e a ergueu diretamente para uma poltrona. Pacientemente, com palavras doces e esperançosas, conseguiu que ela sustentasse o frágil equilíbrio emocional. Durante certo tempo, enquanto lhe dava chá, prosseguiu numa preleção recheada de alvíssaras, de modo que mais tarde Beatriz já se tinha recomposto e chegou mesmo a trocar algumas palavras com o marido. — Amor, você está precisando de repouso prolongado. Faz um favor e vamos até o quarto que vou te acomodar na cama. Todos nós temos um limite de resistência e você precisa recuperar as energias. Beatriz, calada, balançou a cabeça concordando, e foram os dois para o aposento. Após alguns minutos, retornou Candota dizendo aos presentes que a esposa estava calma e conseguiu dormir. AGORA OU NUNCA MAIS 224 — Eh, coitadas! – resmungou Bento. — As mulheres, parece que sofrem mais e têm de despender mais esforços pra suportar os embates. — E os homens costumam ficar aí cantando de galo! É nessas horas que a gente vê que elas são as primeiras vítimas! — Você tem idéia do que nós podemos fazer pra conseguir alguma segurança? Porque aqui na sua casa, ou mesmo na minha, não tem garantia de nada. Esses bandidos podem vir de repente e não temos defesa, a não ser esses revólveres vagabundos. Não podemos confiar neles. — Tem razão. Eu até já estava pensando nisso desde ontem. No meu carro, que é maior e cabe mais bagagem, ainda tem certa reserva de combustível e dá pra ir até a fazenda do meu pai, que deve estar abandonada. Lá vai ser mais fácil a gente se esconder e arranjar alimentação. Quando você for buscar as armas, aproveita e traz o que puder de gasolina do seu carro. — Tá, pode deixar – respondeu Bento. Candota foi até o interior da casa, vasculhou alguns cômodos e se instalou à mesa da copa com papelões, roupas brancas, pincéis, linhas, agulhas, grampeador e tesoura. Chamou os companheiros para que o ajudassem na confecção dos indicadores de idade, exigidos pelo governo. As roupas foram recortadas de forma que satisfizesse as exigências. — Spinder, quantos anos você tem? – perguntou Candota. — Fiz trinta e oito no começo do ano. — E você, Bento, tem vinte e sete, não é? — Não. Fiz vinte e oito no mês passado. Anota aí que a Miriam tem vinte e quatro. AGORA OU NUNCA MAIS 225 — A mesma idade da Beatriz. Vocês têm documentos pra provar a idade? Eles vão exigir. E que ninguém se esqueça de usar esses indicadores, que são o nosso passaporte. Estavam quando a distraídos campainha com deu o a execução sinal. O desse visitante trabalho não teve paciência de esperar um pouco e ficou apertando o interruptor. Esse comportamento já era sinal de impertinência e arrogância. O medo se apossou dos companheiros. Spinder, num ato reflexo, puxou a pistola e se pôs em expectativa num canto da sala. Candota, procurando interpretar a situação, aconselhou que Spinder saísse dali e se escondesse em algum lugar nos fundos da casa. Na indecisão, Candota falou firme para o jornalista: — Corre! Se esconde! Eu mesmo vou enfrentar a porta. — Não! Deixa, que eu abro! Tenho que enxergar o meu destino é de frente! Esses bandidos! A campainha não parava. O repórter chegou perto da porta e perguntou, gritando: — Quem é? — Não interessa. Abre! — Quem é? – repetiu. — É a lei! Somos a patrulha da lei e temos que entrar de qualquer jeito. Por isso, é melhor abrir logo esta porta, senão ela será arrombada. Quem estiver aí dentro é considerado nosso prisioneiro até que seja sinal de liberado. Abre, senão eu arrebento. Spinder, ante o concordância do Candota, guardou a arma e começou a destrancar a porta. Percebeu pelos barulhos, que havia mais de duas pessoas. Preferia que AGORA OU NUNCA MAIS fossem soldados repente, de 226 a modo saqueadores. que pudesse, Escancarou num a porta primeiro de momento, enxergar a qualificação dos intrusos. Estacado em frente, impedindo a entrada, viu que eram três militares empunhando submetralhadoras. Tinham expressões rudes e, com extrema brutalidade, empurraram o repórter para dentro, apontando-lhe as armas. A essa altura, Candota e Bento se achavam em pé na sala, aguardando os acontecimentos. — Eu quero que todos os moradores se reúnam aqui – disse, apontando para a sala, aquele que parecia ser o comandante da patrulha. — Que não falte ninguém! Candota e Bento foram imediatamente aos quartos onde as esposas descansavam, e dois milicos ficaram bisbilhotando as áreas próximas da sala. Vendo que os moradores trabalhavam com suas identificações, o comandante comentou com ironia: — Estou vendo que eles são cumpridores das leis. São bons meninos! As mulheres, muito assustadas e desarranjadas, surgiram na sala, acompanhadas dos maridos. — Estão todos aqui? – perguntou o chefe. — Sim, somos cinco – respondeu Candota. — Pois bem. Agora quero ver os documentos de identidade de todos. Não tentem me enganar, hem! Depois de verificar a exatidão dos documentos, tirou do bolso um pequeno computador e o consultou demoradamente. Depois, chegou-se perto dos outros dois milicos, chamou-os AGORA OU NUNCA MAIS 227 para um lado e cochichou algo. Voltou para o centro da sala e, com arrogância, disse: — Tudo bem. Olhou para os dois auxiliares, como sinal para que se acercassem do jornalista, e arrematou: — Estão liberados. Menos este aqui! – apontando Spinder. Parece que o repórter já esperava essa possibilidade. Mal viu o dedo acusador, num movimento instantâneo jogou-se para um lado, ao mesmo tempo em que sacou a arma e disparou contra um dos policiais. Não houve tempo para segundo tiro. A submetralhadora do outro bordou no seu peito uma rede de furos vermelhos. Os dois casais, apavorados, permaneceram estáticos nessa seqüência toda, tanto pelo terror como pelo receio de que qualquer movimento se transformasse em pretexto para alguma ação irracional daqueles beleguins. Enquanto o chefe se certificava de que Spinder estava morto, o auxiliar que atirou ajudou o companheiro ferido a se levantar e o encaminhou para a porta de saída. Antes, o comandante se dirigiu aos moradores: — Esse indivíduo estava sendo procurado pelo crime de alta traição. Ele vai ficar aqui mesmo e vocês providenciem o enterro. E que vocês aprendam de uma vez por todas que não brincamos em serviço. A lei é pra ser observada mesmo! Saíram sem fechar a porta. Candota deixou passar alguns minutos e se aproximou da entrada. Tinham partido. Voltou o alívio geral, mas ficaram as imagens da tragédia na mente de todos. AGORA OU NUNCA MAIS 228 — Ainda bem que não nos implicaram no histórico de traição – suspirou Candota. — E agora? O que que nós vamos fazer com esse cadáver? – perguntou Bento, ainda assustado. — Não vamos enterrar ninguém. Não temos ferramenta pra isso. Você me ajuda a puxar o corpo pro quintal que vamos deixar ele num canto. Nós vamos abandonar a casa mesmo! — Logo tenho que pegar as armas e a gasolina lá em casa. Vou esta noite, e amanhã partimos pra fazenda. Agora, vou até o Hospital Militar pra trazer a Beth. Ela já deve estar liberada. — Põe a sua tabuleta de idade e não esquece da identidade – lembrou Candota. — E toma muito cuidado. Não vai deixar a gente com aflição, como da outra vez! As duas mulheres, que até este momento se conservavam em choque, ainda sob o impacto da brutalidade, aos poucos foram retomando arrumação das o fôlego bagagens. e começaram Candota, a combinar demonstrando a ânimo, também começou a organizar os petrechos essenciais para a viagem, não esquecendo de testar o carro, tanto tempo parado. Mais tarde, batendo na porta com os nós da mão e em ritmo previamente combinado, chegou Bento todo esbaforido. — Não adiantou! A querida da Beth ficou pra outro dia. Disseram que só podem dar solução depois de quinze dias. Não podemos esperar. Depois do prazo, eu dou um jeito e volto ao hospital. Onde está minha mulher? — Com a Beatriz, providenciando coisas de viagem. AGORA OU NUNCA MAIS 229 Dada a notícia à esposa, ela não se tocou nem chorou. O corpo e a alma de Miriam já não expressavam sentimentos, emoções, vida. Era um ser que agia segundo comandos verbais; era pouco mais que um autômato. De madrugada, Bento foi a casa e trouxe as armas e uma bombona de plástico com gasolina. Não encontrou patrulhas militares no malfeitores caminho, mas saqueando a viu de mansão longe de um um grupo de ex-reitor da universidade, de suas relações de amizade. Pela manhã, tudo arrumado e depois de acurado exame das redondezas, os quatro amigos se puseram a caminho para a fazenda que Alfredo possuía, retirada uns duzentos quilômetros da cidade. A viagem não começou bem. Depois de duas quadras, avistaram ao longe uma patrulha militar no caminho. Candota virou à esquerda, percorreu ruas diferentes e encontrou mais milicos. Desviou-se para uma via transversal e conseguiu retomar o rumo certo numa larga avenida. Adiante, outro grupo militar. Seguiu à direita, tentando contornar duas quadras. Alcançou uma praça, vertente de diversas ruas, e ficou em dúvida sobre em qual entrar. Arriscou seguir numa delas. Após duas horas de negaças, o veículo ainda se encontrava no perímetro da cidade, dando voltas e retornos. Parecia que estava dentro de um labirinto, tantos giros sem rumo certo. O marcador do carro acusava gasto crescente de combustível, e os fugitivos se deixavam tomar por nervosa impaciência. Logo já estavam tomados por sufocante angústia. AGORA OU NUNCA MAIS 230 Beatriz, percebendo a desorientação do marido, sugeriu que seguissem o rumo de saída da cidade, mesmo arriscando o inquisitório das patrulhas. Disse mais: que, fora dos limites da cidade, talvez não existissem barreiras. Candota aceitou a idéia, tendo em vista que não havia outro recurso. Tomando o caminho certo, entraram por uma ampla e conhecida avenida. Tinham-se adiantado bastante quando viram à frente uma barreira guarnecida por policiais. Candota diminuiu a marcha, parou ante o cavalete que barrava a rua e ficou alerta. Aproximou-se um guarda, olhou displicentemente para dentro do carro, reparou nos letreiros de idade e sacou do embornal seu computador de bolso. — Eu quero ver a documentação dos quatro – no que foi prontamente atendido. Pachorrento, ficou examinando os documentos e consultando o computador. A cada qualificação que examinava, chamava o nome e conferia o adesivo de idade. Chamou um auxiliar e lhe entregou os documentos que foram passados a um superior sentado perto de uma mesinha, e que anotou tudo. Mandou que Candota abrisse a traseira do veículo e revirou toda a bagagem. — E esta gasolina? Pra que que é? — É uma sobra que eu tinha, e serve como reserva. — Estou vendo que você pretende viajar pra fora da cidade. Não sabe que é proibido sair do domicílio? — Não vamos viajar. Estamos apenas indo pra visitar uns amigos que moram perto dos limites. — E essa bagagem? AGORA OU NUNCA MAIS 231 — Hum?... Ah!... coisas necessárias! Só pros dias que precisar. Recebendo de volta os documentos, o guarda os repassou para Candota, pregou um adesivo no pára-brisa do carro e acrescentou: — Está tudo bem. Pode ir, mas é bom você ficar sabendo que as estradas estão vigiadas pra não deixar ninguém fugir. Até nos campos tem patrulha com cachorros rastreando fugitivos. Retirado o cavalete, Candota, quase sem respirar e transpirando muito, pôs o carro em movimento e seguiu em frente até a próxima quadra, onde virou à direita e parou logo adiante. Foi a conta de parar e sentiu suas pernas começarem a tremer violentamente. No mesmo instante, viu-se invadido por uma onda de frio. Foi a descarga de toda aquela tensão, mantida sob controle por demasiado tempo, produto do medo contido. Ficou assim por uns dez minutos, tremendo de frio, sem responder às perguntas que lhe faziam os passageiros. Depois, já se refazendo lentamente, lamentou: — Pronto, gente! Parece que chegamos no fim da viagem Vocês ouviram o que o guarda disse? — Não podemos prosseguir, mas também não podemos voltar – concluiu Bento. — Ficar em casa é risco muito grande. — Como já passamos por essa barreira, acho que podemos arriscar a passar pelas outras – opinou Beatriz. — Caso existam outras! Sei lá! Estou é desnorteado na direção desse carro. Quer pegar, Beatriz? Sentindo-se insegura, respondeu: — Não vejo necessidade. Você mesmo toca. AGORA OU NUNCA MAIS 232 — E você, Bento? — Fica firme aí, meu chapa! Eu ainda tenho o complexo da trombada. — Eh! Vou ter que agüentar a barra! — Pode ser que aquele guarda só queria amedrontar a gente – observou Bento. — Quem é que sabe? — Além disso, agora temos esse adesivo pregado no párabrisa e que deve valer alguma coisa – lembrou Bento. — Eu também acho que a gente deve continuar – reforçou Beatriz. Perguntada, Miriam apenas abanou a cabeça, num significativo gesto de indiferença. — Está bem! Vamos em frente – decidiu-se Candota. Sentindo-se mais animado, ante a coragem dos companheiros, Candota retornou à avenida e seguiu adiante. Caminho livre. As áreas suburbanas já estavam aparecendo quando foi avistada nova barreira policial à frente. — O que que eu faço, Beatriz? — Segue! Vamos enfrentar. Eles vão ver o selo no párabrisa e deixar a gente seguir. Só pode! Na cancela, Candota parou o carro. O guarda veio e pediu os documentos. — Seu guarda, nós já fomos revistados lá atrás e está tudo certo. Olha o adesivo ai no vidro – apelou Candota com esperança. — Está querendo me dar ordem? Aqui é diferente. Ou você vai ganhar mais um adesivo ou vai levar chumbo. É bom obedecer e ficar calado. AGORA OU NUNCA MAIS 233 Candota entregou os pontos. Tinha que ter paciência. Para examinar a bagagem, o guarda a colocou no chão, perto da traseira do carro e chamou dois milicos para ajudar. Mandou que os passageiros saíssem do veículo e passaram a esquadrinhar todo o interior. Candota apertou os olhos num gesto de lástima, imaginando que encontrariam as armas que tinham escondido nos estofados dos bancos. — Estão carregando armas, hem! Muito bonito! – falou o guarda com ares de vitória. — E essa gasolina? É pra incendiar algum quartel? Por que vocês teimam em ficar contra o governo? Não sabem obedecer à lei? Mandou que os auxiliares recolhessem as armas e o combustível a uma guarita que ficava ao lado. Enquanto o guarda se distraía, surrupiando alguns objetos das malas, Candota cochichou para Bento e Beatriz que, a um sinal, entrassem rapidamente no carro. Bento, arrastando a esposa, entrou no banco de trás enquanto os demais tomavam seus lugares. Candota, em ações rápidas e destemidas, acelerou o motor ao máximo e derrubou a cancela, que era frágil. Ainda viu, pelo retrovisor, que o policial estendia os braços em sinal de ameaça. Conseguiram escapar de uma situação que prometia ser de morte. Logo adiante, Candota diminuiu a velocidade para não atrair a atenção de alguém. — Convém mudar de rumo. Aqueles milicos devem ter avisado por rádio, e alguma patrulha deve estar no nosso caminho – aconselhou Beatriz. — Tem razão! Vou mudar o itinerário AGORA OU NUNCA MAIS 234 Ficou dando voltas em rumo diverso, tentando escapar da provável perseguição. Olhando o marcador de combustível, surpreendeu-se: — Ih, agora é que estou vendo! Gasolina no fim! Estamos é perdidos! Rodamos demais! — Então, pára o carro nalguma rua mais escondida antes que a gasolina acabe de vez. Vamos descer e andar a pé pro nosso destino – sugeriu Bento. — Que destino? – perguntou Beatriz. — Sei lá! Vamos tentar chegar à fazenda a pé mesmo! Não tem escolha! Candota, acatando a sugestão, estacionou o veículo numa rua secundária. Quando estavam descendo, ouviram o barulho de um helicóptero. Devia estar esquadrinhando a região em busca do carro. Era a reação dos guardas. — Vamos correr – gritou Candota. — Vamos esconder longe do carro antes que vejam ele. Corre, gente! Apesar de estarem usando sapatos baixos, as mulheres, enfraquecidas e amedrontadas, não conseguiam correr depressa. Chegaram, no entanto, a cinco quadras de onde deixaram o carro. Ali, no desvão de um grande armazém, aparentemente abandonado, acomodaram-se os casais para se recuperarem da fadiga. Enquanto descansavam, ouviram mais perto o farfalhar das pás do helicóptero. Escondidos ali, não seriam vistos do alto, mas a insistência do ronco dos motores os assustava. Aproveitando um afastamento do aparelho, Candota saiu do esconderijo e fez uma sondagem do galpão. Tinha os portões fechados a cadeado. Descobriu uma abertura alta de AGORA OU NUNCA MAIS 235 ventilação, na lateral do prédio, perto do cimo de um muro. Dava, com alguma dificuldade, para penetrar no recinto. Com esforço, debruçou-se pelo buraco e viu que o depósito estava repleto de mercadorias empacotadas e encostadas na parede. Isso facilitaria a entrada no prédio. Entrementes, num momento de distração, Miriam saiu do abrigo e começou a andar pela rua abaixo. — Bento, a Miriam sumiu! Parece que saiu pra rua. Bem que eu estranhei a expressão dela. Parecia que estava ausente de tudo. Acho que ela perdeu a razão. Bento, de um salto, pegou a rua e viu a mulher andando meia quadra abaixo. Correu, alcançou a esposa e, passivamente, a trouxe para a segurança do abrigo. — Amor, não saia mais de perto de mim. É perigoso. A polícia está nos procurando. Promete que não vai mais se afastar? Impassível, alheia e sem expressão, apenas olhou para o esposo e não respondeu. Candota voltou e relatou sua descoberta. — Bento, primeiro eu vou ajudar a Beatriz a entrar. Depois eu volto aqui e levamos a Miriam pra dentro. Em seguida, você entra, e eu fico por último. Mas temos que ser rápidos; antes que localizem a gente. Venha Beatriz, vamos subir até aquele buraco. Com muito cuidado e conseguindo equilibrar-se no alto do muro, chegaram à bendita abertura. Os roncos do helicóptero mostravam estar mais perto. Já deviam ter localizado o carro. Agora alguma patrulha iria caçá-los por perto. Tinham que se esconder rápido. Candota instruiu Beatriz para que se apoiasse AGORA OU NUNCA MAIS 236 em seus ombros, alcançasse o vão e, aproveitando a boa largura da parede, se virasse com os pés para o interior, de forma a se apoiar nas caixas. Dali, devia descer até o chão e esperar. A manobra foi demorada, mas deu certo. Do alto, quando sua mulher acabava de entrar, Candota viu Miriam correndo pela rua e o marido tentando alcançá-la. “Que desgraça!”, pensou. Percorreu o muro até o limite da rua para melhor observá-los. Dali, viu o amigo lutando com a esposa, tentando arrastá-la de volta ao abrigo, enquanto gritava: — Candota! Candota! Candota! – como a clamar por ajuda. Neste exato momento, viu uma patrulha militar motorizada chegar e imobilizá-los em definitivo com abundante descarga de submetralhadora. Candota, tremendo de medo, se apressou para entrar no galpão, onde se juntou à esposa. Fez sinal de silêncio e, em voz sussurrante, contou o que havia acontecido. Com extremo cuidado, sondaram todo o interior do armazém para conhecê-lo e se acomodaram num canto, onde colocaram mantas encontradas numa das caixas. Até que os olhos estavam pesados, mas os cuidados de vigilância prevaleciam, pois tinham que ficar com os ouvidos afinados para qualquer barulho vindo de fora. No começo, o medo os fazia tremer. Depois se acalmaram, mas continuaram atentos. Tudo silencioso. Era um silêncio confortante. Beatriz, com tristeza na face, confidenciou: AGORA OU NUNCA MAIS 237 — Amor, eu queria tanto ter um filho! Eu troco a minha vida pela de um filho! — Psiu! — Amor!... — Psiu! De repente, ouviu-se um estouro. Arrombaram o portão da frente. Candota foi ágil e subiu numa pilha de caixas. De lá viu três ou quatro soldados, empunhando baionetas e entrando com cuidado no galpão. Desceu, juntou-se a Beatriz e foram se esconder atrás de uma imensa pilha de caixotes. À medida que os soldados iam examinando o corredor central do depósito, olhavam para os laterais. Foram até o fim e voltaram, fazendo o mesmo ritual. Quando retornaram à entrada, dando por terminada a batida, surgiu um oficial que mandou entrar mais soldados, ordenando que, aos pares, contornassem todas as pilhas. Eram dois ratos indefesos sendo caçados por uns oito gatos de coturno e baioneta. Durante a vistoria, os fugitivos davam corridinhas por trás das pilhas, entrando e saindo dos corredores, orientados pelo caminhar dos algozes, e procurando não serem vistos. Numa dessas escondidas, subitamente encontram-se frente a frente com um par de baionetas. Ante o susto, recuam e correm desesperadamente para lados diferentes. Candota, por instinto, sobe numa pirâmide de caixas e, lá do alto, vê a indefesa e amada esposa ser trespassada diversas vezes por aquelas lâminas de aço. Candota percebe que seu fim chegou. Não tem qualquer esperança de sair vivo dali. Dois milicos começam a galgar seu AGORA OU NUNCA MAIS 238 refúgio, com as baionetas caladas bem à vista. Atrás vêm mais dois. Trazem no rosto a certeza da decisão. Candota, acuado, sente as pernas dobrar e se deixa assentar no cume à espera da cena final. Não é covarde; decide enfrentar a chegada do destino com dignidade. As quatro pontas brancas e reluzentes vêm, em mãos firmes e determinadas, componente de um cumprir mais procedimento um mundial. ato de Com morte, esforço, respira e sente que, ante a morte, a coragem se fortalece. Está tenso, no entanto. O heróico sobrevivente recebe a primeira carga daquelas medonhas armas brancas, manejadas com fúria e crueldade. Mas os punhais de guerra não mais que corpo. roçam de leve seu Os algozes tentam novo embate, com mais fúria e força. Outra vez, ele só sente um roçar de folhas macias. Mais uma tentativa dos praças e Candota continua vivo. Nem sangue, nem ofensas. Desistindo da execução, os captores conduzem o prisioneiro para fora do depósito e explicam o ocorrido ao comandante da unidade. Este manda vir cicuta sublimada e diz que daquele veneno nunca ninguém escapou. — Nem Sócrates! – diz, confiante e sorridente. Amarrado a uma cadeira, Candota vê chegando uma caixa; ela é entregue ao oficial que a abre e retira dali um frasco contendo um líquido amarelo. Desarrolhado o vidro, o oficial de comando manda que um auxiliar segure firme a cabeça do condenado. Com ares de satisfação e vitória, o algoz coloca o pequeno gargalo ante as narinas da vítima que, AGORA OU NUNCA MAIS 239 apavorado e suando frio, tenta segurar a respiração e fecha os olhos. Impossível conter-se por muito tempo. Tentando o máximo de esforço para resistir, finalmente – por imposição da natureza – cede com uma forte e incontida inspiração. Aspira a mortal emanação enquanto um milico ajuda na tortura, cravando em suas narinas dois pontiagudos punhais. Começa a sentir estranha vertigem como se a vida o estivesse abandonando brandamente. Percebe que o corpo vai entrando em uma fase de doce anestesia. E o espírito, a consciência, pouco a pouco vai se apagando. Tudo sem dores e com estranho prazer. E vai indo... vai indo... bem devagar... lentamente... lentamente... AGORA OU NUNCA MAIS 240 Parte III REDENÇÃO AGORA OU NUNCA MAIS 241 7° CAPÍTULO Num arranco de desespero, Candota abre os olhos e tenta afastar com violência o maldito vidro que estava ante seu nariz. Atônito, olha para os lados e vê muitos vultos em expectativa. Pisca, esfrega os olhos várias vezes seguidas e começa a vislumbrar, bem à sua frente, uma pessoa com feições estranhas. Soando de um lado, uma voz conhecida o ajuda a completar o retorno. — Candota! Candota! Você está me ouvindo? Está me reconhecendo? – disse Bento, denotando preocupação. Ainda transtornado, Candota ouve, mas não encontra palavras para responder. Tenta falar e não consegue. Está completamente sem memória. — Korn, acho que agora o rapaz está reagindo bem. Não foi nada de grave; apenas um excesso de ação soporífera. Ele deve ter feito uso de bebida alcoólica e tomado algum sedativo – disse o médico que assistia Candota. Pondo as mãos nos ombros do paciente, procurou conferir sua consciência: AGORA OU NUNCA MAIS 242 — Ô moço, você está bem? Já acordou? Responda! – dando-lhe repetidas sacudidas. Candota, já desperto, procurou responder, mas não conseguia. Em resposta, apontou para o termômetro que estava na mão do médico. Este percebeu que a memória do enfermo tinha fugido e lhe disse pausadamente: ter-mô-metro. O paciente, como eco, balbuciou: — Ter... ter... — Ter-mô-me-tro – ajudou o médico. — Ter... môm... — Ter-mô-me-tro – repetiu. — Ter... môm... metro. — Isso! — Ter... mômetro. — Aí, moço! Procurando massagear a memória de Candota, o médico se pôs a mostrar objetos e nomeá-los, um a um, enquanto seu paciente ia repetindo os nomes. Depois pegou as pessoas presentes pelo braço e as chegava perto da cama, dizendo: — Benton. — Bento. — Korn. — Seu Korn. — Ruth. — Dona Ruth. Percebendo os acréscimos que Candota fazia aos nomes, concluiu que a memória estava se restabelecendo rapidamente. AGORA OU NUNCA MAIS 243 Daí a poucos minutos, o médico se retirou e Candota já estava dialogando sem grandes dificuldades com os que o cercavam. — Ô cara, você me passou um susto danado! – disse Bento. — O que que houve comigo? Precisou chamar médico? — Você deve ter tomado daquele seu comprimido, misturado com cerveja, e dormiu demais. Bem que notei que você estava dormindo muito. Quando já passava da conta, tentei te acordar. Primeiro, te chamei muitas vezes; depois, te espetei com os dedos. Não adiantava nada. Fiquei assustado. Avisei o meu pai pra tomar alguma providência, e ele chamou o vizinho do lado, que é médico. Você só acordou quando o doutor pôs o vidro de amoníaco no seu nariz. Estou vendo que agora você está bem. Mas que me passou um susto, passou! Está melhor agora? — Estou meio mole, mas estou bem. Quer dizer, agora estou bem. Mas tive um pesadelo terrível. Eu nem vou te contar. Deixa ficar! O que atrapalhou tudo foi que eu tomei um copo de cerveja à noitinha com vocês e me esqueci disso. Quando foi na hora de dormir tomei três comprimidos de tranqüilizante. — Três!? — Estava com muita ansiedade e não conseguia dormir. — Então, levanta e vai se arrumar que nós temos encontro marcado pras quinze horas com o administrador Devers. Acho bom você tomar um banho frio pra tirar um pouco dessa sua bambeza e ficar mais disposto. — Tá! AGORA OU NUNCA MAIS 244 Mais tarde, Korn repisou diversas recomendações sobre a natureza da entrevista que os amigos iam manter. Esclareceu que deviam ser claros na exposição e externar com segurança e convicção seus pontos de vista, de forma que o administrador percebesse a gravidade do assunto. Não deviam deixar de embasar as idéias com argumentos e documentos sólidos, pois seriam contraditados pelos assessores, competentes especialistas. Com certa antecedência, pegaram um táxi e se dirigiram ao prédio da Agência de Proteção Ambiental, tendo chegado 20 minutos antes da hora marcada. Ali, depois de identificados, foram acolhidos e convidados a aguardar numa confortável sala de espera. Candota, procurando instintivamente por um cismado calendário, percorreu com os olhos as portas próximas e contemplou as paredes, adornadas com discretos quadros alusivos à Natureza. O ambiente era distinto e nobre. Quando o secretário de gabinete os introduziu no salão de trabalho, foram recebidos por três amáveis e sorridentes senhores e uma senhora que se adiantaram à porta de entrada. Trocaram cumprimentos e se apresentaram: — Eu sou Devers, o administrador da agência, e estes são meus auxiliares, Dorothy, Joshua e Walderez. — Muito prazer. Eu sou William – repetiu a todos. — Satisfação. Sou Candota. Demonstrando tranqüilidade, o administrador e presidente da reunião apontou uma mesa oval, que se encontrava na sala ao lado, e indicou a todos que se assentassem. Imediatamente um copeiro serviu café. Devers foi o primeiro a falar. Dirigindo- AGORA OU NUNCA MAIS 245 se aos convidados, começou demonstrando ser homem prático e inteligente: — Meus amigos, o senador Brighton esteve comigo e demonstrou muito conhecimento interesse de uma em que revolucionária o teoria governo tome elaborada por Candota. O senador apenas fez menção das conclusões desses estudos, dizendo que se trata de tema extraordinário. Não entrou em detalhes, mas enfatizou que o assunto é sério, grave, importante, e que deve ser analisado por esta agência. Fez uma pausa longa, correu os olhos em cada um dos participantes e, com expressão séria, prosseguiu: — Como se trata de teoria que busca preservar o ecossistema, eu me dispus a ouvir o que têm a argumentar. Tenho interesse governamental e pessoal nessa questão. Haja vista que marcamos esta reunião sem tempo certo de duração. Queremos nos inteirar de todos os aspectos do problema. Pra evitar dúvidas e mal-entendidos, peço que se sintam à vontade e exponham suas razões com clareza e objetividade. Animado com essa demonstração de receptividade e franqueza, Candota se sentiu libertado para exibir, sem rodeios e com toda a crueza, a problemática das projeções. E foi direto ao assunto: — Há duas questões fundamentais que me permito apresentar antes de expor o problema central. Primeiro, por ser questão abrangente a todo o planeta, as tomadas de decisão vão requerer que se crie imediatamente um governo mundial, com soberania sobre todos os países. Deverá ele ser sustentado por forças armadas poderosas que, naturalmente, serão compostas pelos exércitos dos principais países, o que AGORA OU NUNCA MAIS 246 garantirá a execução das medidas administrativas. É evidente pra todos que somente o governo americano tem condições políticas, econômicas e militares pra liderar a formação do governo mundial. Isso é revolucionário, mas básico. Segundo, está em causa a sobrevivência da humanidade, o tempo urge e não há a mínima condição pra prática da democracia. O governo mundial, que deverá ser representativo de todos os países, terá que agir de forma autoritária. O sucesso na solução desta grande questão dependerá de decisões corajosas, inteligentes e rápidas. — Assim, você me assusta! – exclamou Devers. — Estou sendo objetivo, honesto e franco, como você pediu. Pra assunto tão sério, só podemos pensar e falar com sinceridade. Não pretendo dourar a pílula! Entendo que estou falando pra pessoas inteligentes, que não querem ser enganadas pela retórica. — Apóio sua franqueza e gosto que assim seja, mas entendo que você está apenas sugerindo, porque medidas tão duras só podem ser tomadas depois de longo estudo governamental. Percebo também que, pra melhor apreciação do assunto, tenho de ouvir a exposição do problema central. — Claro! Comecei apontando aquelas premissas pra perceberem que vamos tratar de gravíssimo e abrangente problema vital. É pra que vocês fiquem de olhos arregalados, pois o assunto é muito sério mesmo. Devo reconhecer também que todo o meu estudo, pra merecer a relevância emergencial, deverá ser exaustivamente examinado por uma renomada comissão, a ser designada pelo seu governo. Isso vai qualificar ou não o meu estudo. AGORA OU NUNCA MAIS 247 — Estamos prestando atenção. Pode prosseguir. Durante três horas, Candota expôs sua projeção estatística e ofereceu a documentação concernente. Concluiu ressaltando que o assunto merecia ser tratado com urgência e sob sigilo para evitar conseqüências insolúveis. Foi ouvido atentamente e não foi interrompido. Durante a exposição, notou que, à medida que ia desenvolvendo o raciocínio, os assistentes iam ficando mais tensos até que, ao ouvirem a data de 2036, mostraram-se pálidos e assustados. Dando profundo suspiro, o presidente da reunião se manifestou: — Ouvimos suas razões e nada podemos declarar no momento. Nossas responsabilidades no governo impõem que assuntos extraordinários como este sejam meticulosamente examinados e ponderados, antes que sejam apresentados perante a Chefia de Gabinete da Presidência. Deixe aqui todos os documentos. Vou estudar isso e discutir com meus assessores. Depois, se for o caso, vou convocar uma reunião conjunta com os membros do Conselho de Qualidade Ambiental. Por hoje, está encerrada a reunião. Deixem com o meu secretário os telefones de contato e aguardem notícias minhas. Bento, ao tempo em que se despedia, dirigiu-se ao administrador, esclarecendo: — Foi tudo bem exposto pelo meu amigo, mas desejo apenas repisar que este assunto pede urgência no encaminhamento. Cada dia de atraso, maior a dificuldade na solução. AGORA OU NUNCA MAIS 248 — Esteja tranqüilo. Também estou preocupado. E como! Eu te dou notícias em breve. Já em casa, Bento fez à esposa breve relato do encontro e acrescentou: — Ufa! Acho que foi um sucesso nossa missão. Essa é também a opinião do meu pai. — Que bom! Então conseguiram passar o problema pro governo? — Ainda não podemos concluir isso, mas já foi um bom começo. Agora ficamos aliviados e com a consciência leve. Até que enfim, cumprimos nosso dever. — Nesse caso, eu também fico feliz. Tomara que no fim dê tudo certo! Parabéns pra vocês! Depois de relatar para a esposa os pormenores da reunião, lembra-se do sogro e sugere: — Telefona pro seu pai e, sem entrar em detalhes, diga que a Agência de Proteção Ambiental está estudando o problema. Sem entrar em detalhes! – repetiu. — Pode deixar. Sei como dizer. Ele vai ficar satisfeito. Vocês lavaram as mãos, e a questão agora está na área de quem pode tomar decisões. Não é isso? — Isso mesmo! Não esquece de dizer que estamos tranqüilos. E, demonstrando sua satisfação, acrescentou: — Vamos até comemorar! — Viva! — Vou chamar o Candota também. Vamos nós três jantar fora hoje e assistir a algum espetáculo alegre. — Beleza! Que bom! AGORA OU NUNCA MAIS 249 — Escolhe aonde você quer ir. — Você escolhe. Mulher gosta é de surpresa. E assim, passaram os três amigos a noite toda festejando aquela situação em que tiraram dos ombros tão pesada carga. Até exageraram um pouco na manifestação das alegrias, não esquecendo de registrar essas manifestações em fotografias, tiradas em cada lugar a que foram. Sabedor dos passos iniciais de Candota e da breve reunião que haveria entre a APA e o CQA, Klintok não perdeu tempo. Sentiu-se na obrigação de conscientizar seus amigos do Conselho de Qualidade Ambiental sobre o absurdo daquela teoria que afirmava o fim do mundo. Procurou também alguns deputados e senadores de suas relações e perfilou tais aberrações, destacando sempre a premissa de que o autor de tão espúria teoria era um estrangeiro, visionário, psicopata e perigoso para as instituições básicas dos Estados Unidos. Não deixou de insinuar aos amigos que o administrador Devers seria incompetente e psicologicamente frágil, deixandose influenciar com facilidade por idéias extravagantes. Klintok procurava, assim, solapar previamente os pilares políticos em que se apoiariam os esforços de Candota. Tinha convicção de que exercia influência patriótica e esperava que sua atuação abortasse tão descabida e perigosa teoria. Quatro dias mais tarde, sob a presidência do administrador Charles Devers, reuniram-se os dois órgãos federais, pertencentes à cúpula do governo americano. Os membros participantes receberam, com antecedência de dois dias, cópias dos estudos e documentos deixados por AGORA OU NUNCA MAIS Candota, 250 acompanhadas de relatório elaborado pelo administrador. Devers abriu a sessão, proferindo pequeno comentário sobre o documento, no qual fazia sucinta exposição do problema ambiental. Abordando o objetivo do encontro, disse: — Esclareço que esta reunião é apenas preliminar. O principal objetivo é tomar conhecimento de um problema que ainda se encontra na fase de hipótese. — Quer dizer que vamos ter outras reuniões pra tratar do mesmo assunto? – perguntou o presidente do CQA. — Exatamente. Como todos devem ter percebido, os documentos entregues mostram que temos em mãos, em princípio, um teórico monstro ambiental. É de nossa responsabilidade o aconselhamento ao nosso governo de um rumo administrativo. Essa é nossa função e temos que trabalhar com o máximo de competência, porque estaremos tratando da hipótese de um desvio da civilização que pode mudar a história mundial e conduzir a humanidade pra uma hecatombe. Gostaria de ouvir a opinião dos participantes desta reunião. Peço que se manifestem, começando pelo primeiro à minha direita. — Examinei o programa, mas não tenho conhecimento técnico suficiente pra fazer uma crítica profunda. Se os dados apresentados estiverem corretos, o alinhamento do programa segue uma lógica irrefutável. Mas é evidente que deverá ser submetido a rigorosa análise por categorizada comissão científica, antes que se possa apreciar melhor o assunto. — Penso que alguns pontos precisam ser esclarecidos pelo autor do programa. Tenho dúvidas sobre certos aspectos AGORA OU NUNCA MAIS 251 estatísticos. Seria bom que o autor fosse questionado numa reunião especial com cientistas. — Pelo visto nos estudos apresentados, as decisões aventadas pelo autor abarcam tal complexidade de interesses que as medidas avocadas pra um governo global só podem ser teorizadas, sem qualquer possibilidade de efetivação. Na teoria, tudo bem. Até pode proceder. Mas na prática, nada é aplicável, visto que equivaleria à destruição total da nossa civilização. E isso é impossível. — Infelizmente, estamos diante duma realidade projetada com dados científicos. As evidências impõem decisões compatíveis com a gravidade do estudo. Não podemos fugir do problema. O destino da humanidade está em nossas mãos, e não temos como postergar a questão. Somos pelo aprofundamento do estudo do problema mediante parecer duma assembléia de cientistas. — O assunto é muito pesado pra ficar apenas no nosso ajuizamento. Precisamos ter o apoio de destacada comissão de cientistas. Em cima das conclusões deles é que vamos debater as opções políticas e administrativas. Só, então, teremos condições de levar este caso ao Presidente. — Eu me considero incompetente pra opinar nessa questão. Sou favorável a que se convoque o trabalho de cientistas. — Acredito que estamos discutindo a respeito de vento. A hipótese sob exame nada mais é que o resultado de divagações doentias de um espírito vazio. A pujança de nossa civilização está aí à mostra, confirmando a justeza dos AGORA OU NUNCA MAIS 252 caminhos traçados pelos nossos governantes. Opino que essa papelada seja arquivada. — Estamos vendo que, ante opiniões tão desencontradas, o bom senso nos aconselha a obter o parecer de renomados cientistas. Como podemos definir rumos se não temos uma sólida base de apoio? — O autor aponta, como pilastra da fase executiva, o abandono de nossa tradicional democracia. Como pode ser possível? Ele é visionário e inconseqüente. O autor dessa teoria está possuído de obsessão ecológica. Os idéias, demais também componentes com da reunião manifestações expuseram divergentes, suas ficando patente a disparidade de opiniões. Dava para se perceber que a atuação ardilosa de Klintok conseguiu erguer alguns preconceitos. O presidente do Conselho de Qualidade Ambiental (CQA) também se manifestou: — Ouvi com atenção a opinião de todos. Seja pelo arquivamento ou pela sustentação do documento, por um lado, antevejo uma situação que, mais dia menos dia, terá de ser enfrentada pelo bem da humanidade. Enxergo que o destino nos colocou na posição apropriada pro exercício do heroísmo. Sim, parece que desprendimento. fomos Por outro escolhidos lado, é pra esse perigoso ato de ficarmos influenciados por uma simples hipótese produzida por um insinuante estrangeiro. Tanto pode ter consistência como não passar de ilusão. Não podemos brincar com fogo, mas também não podemos querer pôr fogo na água. Segundo a opinião de muitos e o bom senso, o primeiro passo a adotar será a AGORA OU NUNCA MAIS 253 convocação de um colégio de sábios. Eles é que nos guiarão pra caminhada seguinte. O administrador fez breve comentário sobre as palavras ouvidas e assinalou que a opinião prevalecente foi a da convocação de cientistas. Sobre tal tema, ficaram discutindo as maneiras de implementá-lo. Tomando conhecimento do resultado da reunião, por meio de seus amigos, Klintok não gostou nada do resultado. Conversando com a esposa, comentou: — Esses idiotas resolveram acolher a tal teoria e vão convocar cientistas pra examinar ela. Estão dando força e prestígio pra essa teoria doida. Não enxergam que estão lidando com um visionário? — Mas isso foi bom! – retornou Dona Helen. — Bom, como? — Eles ficaram livres do problema, que agora está nas mãos do governo. Nossa filha está satisfeita e tranqüila. Falei com ela ontem. Isso é que importa. O marido ficou pensativo. Depois, disse: — Eh! Foi bom mesmo. Agora a comissão de cientistas americanos, que são competentes, vão demonstrar a insanidade dessa tal de teoria e aquele estrangeiro vai receber o diploma de louco e ter que voltar pra terra dele. Esfregando as mãos, acrescentou: — Ah, vai ser isso mesmo! Klintok, contudo, não deixou de externar aos amigos suas malevolentes ponderações a respeito do problema. O relaxamento que se instalou na casa de Bento foi transitório. À medida que o tempo se escoava, sem notícias, os AGORA OU NUNCA MAIS primeiros sinais 254 de ansiedade foram retornando, o que impunha propósitos e buscas de atitudes de equilíbrio e serenidade. Aguardar notícia importante exige o exercício da paciência, e todos se continham. Passados uns dias, prevendo que o tempo se dilatava e que não podia abandonar a empreitada, Candota mandou um correio eletrônico para os pais, dizendo que resolvera, por insistência do Bento, prolongar as férias por tempo indeterminado e que iria providenciar a renovação do visto de permanência no passaporte antes que vencesse. Apesar do sigilo que sempre pedia, Candota não deixava de ficar atento às notícias de jornais para filtrar alguma indicação sobre os movimentos do governo. Nada transpirava, contudo. Entrementes, na APA, Devers se reuniu com os assessores para acertar os entendimentos e passos necessários ao que tinha sido combinado na reunião com o CQA. — Devers, preocupado com eu quero essa te confessar possibilidade de que fiquei tragédia – muito disse Walderez. — Fiquei desorientado e não tenho dormido direito. Fico pensando no que será do nosso futuro. — Deixa disso! Fica mais calmo! Até parece que você não está acostumado com problemas ambientais. Nós temos que ser profissionais do ramo, e você já mexe com isso tem tanto tempo! Problemas ambientais a gente tem todos os dias, ora! — Eh, mas sempre foram probleminhas! Agora, parece que estamos chegando é no problemão! AGORA OU NUNCA MAIS 255 — Procura se controlar. As coisas têm que ser o que são. Nós vamos fazer a nossa parte com esforço e dedicação. Se der, bem! Se não der, azar! Afinal, não somos deuses! Devers ficou olhando para o auxiliar que, de pé frente à janela, mostrando-se pensativo e com olhos fixos no infinito, murmurou: — Hã! A coisa não é tão simples assim! — Wal, pede à secretária ligar pro presidente da União de Cientistas Ativos (UCA). Quero falar com ele. — Sabe o nome dele? — Não. Na hora, eu fico sabendo. Alguns minutos depois, completa-se a ligação. — Bom dia, senhor. Sou Charles Devers, administrador da Agência de Proteção Ambiental. Com quem estou falando? — Bom dia. Meu nome é Kurt Hasfield. Sou o presidente da UCA. Em que posso ser útil? — Eu tenho um assunto importante pra tratar na área científica e fico grato se puder marcar um encontro comigo aqui. — Vai ser com satisfação. Estou às ordens. Pode marcar em sua agenda. — Não repara, mas pode ser pra amanhã, às nove horas? — Perfeitamente. Posso levar um secretário? — Pode, sim. Então, fica marcado. Até amanhã. Walderez tinha voltado à janela, fazendo perguntas silenciosas ao futuro. Saiu do seu mundo interior quando foi interpelado pelo chefe: — Você já ouviu falar em Kurt Hasfield? AGORA OU NUNCA MAIS 256 — Não. Mas deve ser um cientista importante. É o presidente dessa associação? — É, sim. E vai trazer um secretário. — Secretário nada! Isso é só um modo de dizer. Vai trazer é uma testemunha. Ele se protege, porque sabe que não pode confiar em órgão do governo. — Bem, o encontro é amanhã, às nove, e quero que todos os assessores estejam aqui. Não esquece de avisar os outros. No dia seguinte, Devers chegou mais cedo ao escritório, preparou os documentos que devia apresentar e ficou aguardando a vinda dos três auxiliares que chegaram logo depois com certa antecedência. Na hora combinada, o auxiliar de gabinete da ante-sala comunicou a presença dos cientistas. Mandados entrar, Devers e auxiliares se adiantaram para cumprimentá-los e fazer as apresentações. Sentaram-se à mesa grande ao lado e se dispuseram a iniciar as conversações. — Meu caro Hasfield, eu pedi esta reunião porque a agencia está necessitando da colaboração da sua entidade pra elaborar um informe científico sobre uma hipótese que nos foi apresentada e que prevê pra breve o colapso das condições de vida do planeta. Hasfield demonstrou surpresa. Conteve-se e, laconicamente, disse: — Prossiga. — Eu tenho aqui um dossiê, expondo e demonstrando todo o assunto e, se puder contar com sua colaboração, peço que estude com seus encaminhamento urgente. pares esse problema, que pede AGORA OU NUNCA MAIS 257 — Qual é o resumo do problema? — Um estudo feito por um cientista brasileiro, chamado Candota, dando conta de que a degradação ambiental está perto de atingir um ponto crítico, sem retorno. — Isso não é possível! – exclamou Hasfield, exaltado e demonstrando contrariedade. — Vocês já têm essa conclusão? — Você não me entendeu. Me perdoa, mas tenho que ser franco. O seu pedido é impertinente e me coloca numa situação embaraçosa. — Perdão, mas quem não entendeu agora fui eu. Precisamos nós dois de esclarecer isso. — Precisamos mesmo! – disse Hasfield, mostrando-se agitado e embaraçado. — Em que ponto eu não fui claro? O que eu peço é apenas uma colaboração. — Você foi claro, sem dúvida. Mas o que me pede é impertinente. — Por quê? — Pelo que estou percebendo, estou conversando com um inocente. — Inocente, eu! O que que houve? Você tem toda liberdade pra falar o que quiser. E é um favor ser franco. Os assessores se entreolhavam, espantados, sem compreender nada do que ouviam. Alguma coisa devia estar errada naquele roteiro. Ou seria o próprio assunto? Hasfield, procurando se conter, fez uma pausa de silêncio, como a pensar o que dizer, e pacientemente falou: AGORA OU NUNCA MAIS — Meu 258 caro Devers, pelo que estou notando, está havendo uma falta de entrosamento entre os diversos órgãos do governo. Ou, então, alguma outra coisa que não sei. Aqui, estou falando com o departamento que cuida dos assuntos ambientais ligados à concepção da defesa do país. Não é? — Isso mesmo. — Pois é. Não conheço essa teoria de que você falou, mas o assunto é o mesmo — a degradação ambiental e a previsão das conseqüências caóticas. Isso, nos meios científicos, é assunto real, comporta palpável, mais evidente. qualquer Já discussão. tão Mas batido as que não sociedades governamentais, civis, empresariais, religiosas, teimam em não tomar conhecimento. — Sim, mas porque o assunto é impertinente? — Desculpe, eu me desviei do que ia falar. Você me pede o que já foi feito pro Pentágono. Não vejo motivo pra executar o mesmo estudo. Você tem aí no governo cópia de tudo o que nós fizemos. Onde está eu não sei. Isso deve ser segredo de estado. Tudo de sério é segredo de estado neste país! Devers ficou desorientado e surpreso pelo que ouviu. Nunca poderia supor aquela situação. O Pentágono, sorrateiramente, tomava a frente das atribuições da agência. E o pior é que o Pentágono não estava errado. Como departamento responsável pela segurança do país, estava cumprindo com competência suas funções. Devers, muito embaraçado, levantou-se, dando a entender que a reunião estava encerrada, e lamentou: — Senhor Hasfield, peço desculpas pelo incômodo. Agradeço muito a sua presença. Futuramente, ainda vamos ter AGORA OU NUNCA MAIS 259 oportunidade de conversar. Muito obrigado e me desculpe mais uma vez. Após a retirada dos visitantes, Devers voltou à cadeira que ocupava e, com a mão no queixo e boca aberta, comentou com os assustados assessores: — Vocês viram só? O Pentágono, hem! O Pentágono! E nós aqui fazendo papel de bobos. — É uma situação esquisita. Agora, precisamos pensar bastante – comentou o assessor Joshua. — Precisamos mesmo! Meu primeiro ímpeto é pedir demissão. Alguém me traiu. Isso não pode ficar assim; foi sacanagem. — Espera aí! A situação não é assim como parece – ponderou Dorothy, outra zelosa assessora. — Primeiro, você tem que pôr a cabeça no lugar; esfriar a idéia. Você sabe que o Pentágono é órgão executivo, mas extremamente especializado. Na estrutura de poder, está sob o comando do secretário da Defesa, mas tem poder próprio também. — É, preciso esfriar mesmo. Esse é um assunto muito complexo. Com calma, vamos ficar sabendo desses movimentos cavernosos. Preciso é de tempo. — Devers, a conversa com Hasfield foi muito rápida. Não deu pra gente saber o que o Pentágono fez com o estudo da UCA – observou Joshua. — Disse, sim. Que não sabe o que fizeram com o estudo. Também não ficamos sabendo das conclusões dos cientistas. Mas, pelo que ele disse, elas são sombrias. Eu vou pensar sobre esse problema e depois a gente conversa. AGORA OU NUNCA MAIS 260 Klintok, que não estava satisfeito com o andamento do caso, e enxergando a possibilidade de os cientistas reforçarem as idéias de Candota, imaginou agir de maneira mais profunda e eficaz. Procurou todos os amigos políticos e empresários capazes de se interessar pelo assunto. Pessoal e reservadamente, expunha a questão como perigosa, acenando com destaque para a possibilidade, ainda que remota, de o governo subverter a estrutura econômica da nação. Falou com diversos congressistas, tendo levado alguns a se disporem a ingressar na campanha de convencimento de outras figuras da elite, formando um encadeamento de interesses comuns. Não deixou de visitar os donos das empresas de informação, inclusive Roberts Sertting, proprietário de diversos veículos de comunicação e presidente da poderosa Associação de Empresas Formadoras de Opinião. — Sertting, eu não te conhecia pessoalmente. Por meio do belo trabalho que vem realizando na condução das suas empresas, avaliei como positiva a sua capacidade empreendedora e o descortino político. — Cada um, no seu ramo, faz o que pode. Eu tenho apenas trabalhado. Mais nada! O procurador Horten, nosso amigo comum, me recomendou que te recebesse. Disse que você tem um assunto importante. — Realmente é importante. E expôs as preocupações com a Agência de Proteção Ambiental que acolheu para exame de cientistas “uma idéia estapafúrdia e altamente perigosa pra segurança das nossas AGORA OU NUNCA MAIS 261 instituições”. Apresentou argumentos e pediu o apoio da mídia para a contenção daquela idéia. — Foi bom você me alertar. Estou de pleno acordo em combater qualquer fato que venha desequilibrar a estrutura e normalidade econômica do nosso país. Nesse aspecto, nós, responsáveis pela formação da opinião pública, estamos sempre vigilantes. A receita pra esses casos é simples e eficiente: não falaremos nem contra nem a favor. — Você vai ficar neutro, numa emergência dessa? — Não. A nossa ação se faz justamente por ausência de ação. É não tratando de um fato que esse fato passa a não existir. Se a mídia desconhece algo, o mundo também desconhece. É mais fácil do que virar a opinião pública. Se for preciso virar a cabeça do povo, a gente vira também. Já viramos várias vezes. — Temos que ficar alertas. Peço que informe os seus colegas desse perigo. Já contamos com apoio de expressivas figuras das elites empresariais, representantes legislativos e alguns elementos de órgãos do próprio poder executivo. Temos que abafar essa idéia maldita e virulenta. — Pode contar comigo. Alguns poderão saber, mas a massa nunca saberá. O único perigo é algum repórter independente bisbilhoteiro. Mas esse tipo de imprensa não repercute. — Obrigado. Tive prazer em te conhecer e estou às suas ordens. Devers, na agência, depois de dois dias tentando definir seu rumo, tomou uma decisão e disse ao assessor Walderez: AGORA OU NUNCA MAIS 262 — Pensei muito naquele caso. Já vi que, se não tiver uma explicação, eu vou ficar louco. — O que que você vai fazer? — Vou direto na caixa de marimbondo. — Vai falar com o Presidente? — Vou é no Pentágono. Comigo não tem disso, não! Vou esclarecer isso de vez. Não tenho nem dormido! Liga pra lá e pede uma audiência com o general Stanfordson, chefe do Estado-Maior. Já somos conhecidos, e acho que a conversa não vai ser difícil. No Pentágono, à hora marcada, o general Stanfordson recebeu o visitante com palavras acolhedoras: — Senta e fica à vontade. Vou mandar vir um café. — Não repara de vir aqui te incomodar. Eu sei que já tem problemas demais. Mas estou precisando de você. — O Pentágono é um depósito de problemas, você sabe. Aqui a gente tem que resolver tudo. Um probleminha a mais não faz diferença. Pode falar. Devers, procurando se mostrar calmo, fixou-se nos olhos do general, sondando suas reações, e disse: — Fiquei sabendo pelo Hasfield que o Pentágono recebeu um estudo científico da UCA sobre o problema ambiental. A agência que eu represento pode receber cópia desse documento que está em seu poder? É assunto da nossa alçada e é do nosso interesse também. Sem se alterar, o general respondeu: — Você deve saber que a agência não tem alçada exclusiva. O Pentágono tem autonomia de ação dentro das AGORA OU NUNCA MAIS 263 suas atribuições. Não posso te fornecer documento nenhum. Você vai entender isso. — Está bem. Eu entendo. E vou ser claro com você. Estou com um problema sério pendente de estudo lá na minha agência e vou pro... — Eu sei. — Sabe o quê? — Você está falando duma simulação computadorizada feita por um brasileiro. Isso talvez vá nos interessar também. — Mas como você soube!? — Bom, Devers. Faz parte do nosso serviço. É nossa obrigação. Temos que saber de tudo que se refere à segurança do país. — Você pode me dizer pelo menos o que fizeram com o documento da UCA? — Lamento, amigo, mas esse assunto deve ser tratado lá no Departamento de Defesa. Não posso passar por cima do secretário. — Nada, nada? — Só posso dizer que realmente a UCA produziu um estudo que nós encomendamos. Nada mais. Eu sei que você vai compreender minha posição. Devers se despediu e voltou para o seu gabinete, onde deu conta aos auxiliares do encontro surpreendente e frustrante. O administrador da APA foi infeliz na visita ao Pentágono. Não sabia, mas o ambiente entre o general Stanfordson e o próprio secretário da Defesa não estava nada bom. Anteriormente, tinha havido um desentendimento entre eles. AGORA OU NUNCA MAIS 264 Havia uns quarenta dias, o secretário da Defesa tinha recebido em audiência o general Stanfordson que lhe levou um importante e secreto relatório produzido pelo Pentágono, que versava sobre o risco climático do planeta. Na ocasião, o diálogo foi o seguinte: — Secretário O’Connor, hoje venho cumprir uma missão que não me agrada nada. Nunca pensei que chegaria a este ponto. Sou mensageiro de más notícias. Mas dever é dever. — Não me assusta assim! Você já começa o despacho com pessimismo. Você sabe que pro verdadeiro militar não existe missão difícil. E eu sei da sua competência. Ora, fica firme! Tirando da maleta um volumoso maço de papéis e pondoo sobre a mesa, bem à frente do secretário, o general prosseguiu: — Está aí o relatório do Pentágono sobre as condições climáticas da Terra. É assunto sério. — Eu não vou ler isso agora. Você faz um relato sucinto, pra eu ter uma noção do assunto. Depois, eu leio. Enquanto o general se preparava para expor o assunto, selecionando alguns papéis, o secretário acrescentou: — Estou estranhando... o que tem a ver o Pentágono com a ecologia? Já tem órgãos no governo, até demais, só pra tratar disso. — É simples! Como eu sou o chefe do Estado-Maior, tenho as minhas responsabilidades. E a principal, como é do seu conhecimento, é prever problemas de segurança e planejar as soluções. — Mas na área militar. AGORA OU NUNCA MAIS 265 — Me desculpe, mas não. Não é só na área militar. É na área ampla e geral da segurança do nosso país. Qualquer assunto que diga respeito à nossa segurança, deve ser objeto de estudo do Estado-Maior. Eu fui colocado lá pra isso. E cumpro o meu dever. — Vá lá! Do que se trata, afinal? — Em cima de informes da UCA, constituída pelos mais renomados cientistas, fizemos uma profunda análise das condições climáticas do planeta e concluímos que estamos próximos de atingir o ponto crítico de desequilíbrio ambiental. Calculamos o colapso pros próximos quinze ou vinte anos. — Quinze anos! Você não fala sério! E você me traz esse incômodo logo agora! Como se não bastassem os problemas com a intervenção militar que estamos fazendo em diversos paises! Você tem alguma sustentação? — Temos todos os dados possíveis. Estão aí nesse calhamaço. — Não estou satisfeito. Explica melhor essa questão. E o general desfiou minuciosa exposição dos estudos efetuados, arrematando: — Com a leitura do relatório, o assunto fica mais claro. Se for preciso algum adendo, o Estado-Maior providencia. — Está bem! A obrigação do meu departamento é estudar o seu relatório, dar um parecer e encaminhar tudo pra Presidência. Mas eu acho que o seu trabalho é inconsistente. Você recomenda coisas absurdas. Não vê que é impossível? Onde é que já se viu propor essas medidas drásticas? AGORA OU NUNCA MAIS — Acho 266 que todos estamos preocupados com esse problema. Desejo ressaltar que o documento pede medidas urgentes e as estratégias pra solução estão ali detalhadas. — Ainda vem você pedir urgência. Não vê que temos outros assuntos mais importantes na frente? Francamente, não sei o que o Presidente vai pensar de você. Sentindo-se ofendido, o general arrematou a conversa: — Cumpri o meu dever. Dá-me licença? – e se retirou. O secretário não quis se comprometer com esse documento secreto. Mandou fazer sucinta análise e o mandou para a Presidência. O chefe de gabinete da Presidência, Abraham Michels, leu a súmula e foi pessoalmente ao Presidente. — Recebi um importante relatório confidencial do Pentágono e me apressei em trazê-lo pro seu conhecimento. É sério. — Do que se trata? Explicado em linhas gerais, o Presidente ouviu e orientou: — Manda esses papéis pro meu conselheiro científico, pedindo parecer. Esse general deve estar precisando aposentar. Eu sou é otimista. E sempre deu certo na minha vida, senão não teria sido eleito. O assessor científico, de confiança do Presidente e por ele nomeado, margem produziu um longo e tortuoso parecer, dando a interpretações diversas e insinuando pouca seriedade no trabalho do Pentágono. Para tanto, baseou-se em estudos ditos científicos mandados fazer por empresas ligadas à indústria bélica. O trabalho dos cientistas da UCA, entidade em que figuram mais de 20 laureados, inclusive dois Prêmios AGORA OU NUNCA MAIS 267 Nobel, não mereceram mais que uma ligeira citação. Encerrou o parecer, propondo arquivamento. Em seu despacho, o Presidente considerou que as informações do relatório não são conclusivas e se baseiam em suposições erradas, frisando que as alterações climáticas provêm de um processo natural e cíclico, nada indicando que se origina de atividades humanas. Mandou arquivar. O grupo que participou do estudo ambiental no Pentágono ficou duplamente desesperado; pelo conhecimento da provável desgraça ambiental e pelo desprezo do governo ao alarme dado. O único que continuava sereno era justamente o general Stanfordson. Dizia, quando interrogado pelos colegas sobre a situação: “Cumpri o meu dever; a minha parte foi feita”. “Mas... e nossos filhos!”, clamavam os outros oficiais. AGORA OU NUNCA MAIS 268 8° CAPÍTULO O general Mac Flinger, integrante do Estado-Maior, não se continha. Comentava abertamente, no círculo militar, o desagrado pelo desdém dos executivos do governo. Fazia reuniões informais com outros oficiais, discutia as conseqüências do alheamento do governo e reclamava da posição de Stanfordson. Imaginou que, se o relatório vazasse, o governo seria obrigado a voltar atrás e mudar sua atitude. Pensando, executou. Sem se comprometer diretamente, entregou a um ativo repórter autônomo cópia de partes do relatório secreto e aguardou os reflexos que a notícia poderia causar. Dois dias depois da visita de Devers ao Pentágono, foi publicada na revista Grostane, de Boston, extensa reportagem em que é revelado, com palavras sombrias, o pesadelo que paira sobre o planeta. A revista revela toda a seqüência do estudo maldito. Cita, com detalhes, a impressionante massa de informações científicas contidas no documento da UCA e os fundamentos em que se baseou a nata da inteligência militar. Publica, sem retoque e abertamente, a linha de raciocínio seguida pelos técnicos militares do Estado-Maior. Mostra a conclusão definitiva: colapso climático da Terra para o fim da próxima década. Só não menciona os aspectos estratégicos de tomada de decisão sugeridas ao Presidente, delicada, não fornecida por Mac Flinger. parte extremamente AGORA OU NUNCA MAIS 269 A publicação não se reporta apenas ao documento, por si só altamente alarmante. Revela que o governo arquivou não só o relatório como todo o potencial explosivo nele contido, demonstrando absurda e completa ausência de responsabilidade. Antes de a revista sair para venda, o governo já tinha tomado conhecimento da reportagem e agiu de imediato para neutralizar os seus efeitos. Os telefones dos principais comandantes da mídia, inclusive de Sertting, receberam comunicado de executivos da Presidência. Davam conta de que os informes atinentes ao relatório do Pentágono, que estavam sendo publicados por uma revista inexpressiva e sem compromisso com a verdade, se referiam a matéria sensacionalista, inconsistente e desprovida de um enfoque realista. Acrescentavam, ainda, que o governo daria conhecimento público da opinião científica do assunto. De fato, o governo liberou uma nota em que diz, baseando-se em informes ditos científicos, “que as condições climáticas estão em boas condições, diversas pesquisas ainda estão em discussão nos meios acadêmicos e que o relatório do Pentágono não passa de uma peça de ficção científica. Que o povo pode Presidente ficar tem tranqüilo a e necessária confiar no capacidade governo, de pois o discernir a realidade da fantasia”. Ante as iniciativas do governo e a pouca expressividade da revista Grostane, a grande mídia mundial, comandada por poucos proprietários, ignorou o assunto. Em conseqüência, o mundo também ignorou. AGORA OU NUNCA MAIS 270 Dessa forma, Devers tomou conhecimento do que estava escondido e ficou desesperado. Comentou com seus assessores: — O estudo do Pentágono chegou à mesma conclusão do Candota, com apenas alguma diferença de data. Não precisamos mais de qualquer informação científica, porque isso o Pentágono já fez. Quer dizer, a previsão é verdadeira. Em cima disso é que temos que trabalhar. Mas como? Tenho que pensar. — Eu tenho uma idéia – arriscou Joshua. — A mídia e os empresários sabotam os fatos, e o governo não enxerga a situação. Pra render as... — O governo enxerga – atalhou Walderez. — Ele não quer é tomar uma decisão porque já viu que o problema é muito grande e tem medo de enfrentar os poderosos. — Você vê que o Candota tem boa percepção. Ele disse que a solução só vem com um regime de força e tem razão – reconheceu Devers. — Mas você disse que tem uma boa idéia. Qual é, Joshua? — É nessa lógica da força que eu ia falar. E quem tem força? A corporação militar. — Nessa área, nós não temos condições de entrar e nem devemos – opinou Devers. — Temos que trabalhar é só com as nossas próprias forças, que são fracas. Nossas armas são os argumentos. Enquanto isso, os tentáculos do poder estavam mexendo. Em seu escritório, Klintok atendeu ao telefone: — Aqui é o Sertting. — Fala, amigo. Tudo bem? se AGORA OU NUNCA MAIS 271 — Bem, nada! A situação piorou. — Me explica isso direito. — O Pentágono entregou ao Presidente um relatório secreto, prevendo a mesma desgraça que o seu amigo Candota. — Então esse louco conseguiu ser recebido até pelo Pentágono? — Acho que não. Um não sabe do outro. O estudo do Pentágono é independente e baseado em estudos científicos. O governo está tentando abafar o assunto e nós da mídia temos cooperado. Acho que a coisa vai morrer por aí. — Pois eu penso que não teve coincidência, não! Pra mim, esse brasileiro maluco conseguiu iludir até o Pentágono. Vai ver que tem dedo dele nessa história. — Pelas informações que eu tenho, foi coincidência mesmo! — Não é possível! Seria coincidência demais! Vai por mim. Eu conheço esse moço e sei do que ele é capaz. Ele tentou convencer até a minha mulher! Pode acreditar que tudo é obra dele. — Pode ser que você tenha razão. Mas é bom continuar com seu trabalho junto aos congressistas, a parte política mais delicada do nosso sistema. E pode contar comigo. — Está bem. Obrigado pelo telefonema. Sabedores da atitude governamental, os componentes da UCA se sentiram amargurados e desprestigiados. Deram conhecimento do que ocorria a todas as associações científicas do mundo, pediram que protestassem contra as falsas e AGORA OU NUNCA MAIS 272 tendenciosas alegações do governo americano e que fizessem representações de esclarecimento aos governos nacionais. Todos os congressistas dos Estados Unidos foram visitados por comissões de cientistas com a finalidade de expor a grave posição adotada pelo executivo americano. Entrementes, americano governo, os passaram mediante mesmos a membros receber razões pressão partidárias, do tanto como congresso do das próprio grandes corporações que sustentam as campanhas eleitorais. Estas apresentavam um quadro social sombrio se prevalecesse, nas decisões de governo, a aceitação do relatório do Pentágono. Klintok e seus amigos, à surdina, continuavam a influenciar importantes defensores da tradição econômica e social do país, inclusive com ações restritas na área de cada poder e contavam com o beneplácito do governo. O grande perigo agora – pensavam – já não era a hipótese de Candota, mas o documento real, contundente, produzido pela instituição mais respeitada do país. Contudo, Klintok já tinha anteriormente conseguido convencer o senador Brent a patrocinar uma denúncia ao FBI, na qual recomendava que fossem investigadas as atividades do estrangeiro Candota, sob suspeita de exercer atividades contrárias à segurança do país. Foi por intermédio do FBI que o general Stanfordson ficou sabendo, desde o princípio, dos passos de Candota na APA. No momento em que esses esforços contrários eram encetados no ambiente das sombras, a grande mídia defendia seus interesses econômicos e os de seus pares, simplesmente desconhecendo o assunto. AGORA OU NUNCA MAIS 273 Enquanto isso, Candota já tinha tido conhecimento da reportagem entusiasmo, da revista notícias de Grostane Devers. e ainda Estava aguardava, desanimado sem e já pensava em abandonar tudo e voltar para casa, onde pretendia esquecer o passado e renovar sua vida. Não perderia tudo; pelo menos ganharia Beatriz. Falou com Bento sobre suas intenções. — Se o Pentágono já alertou o governo sobre o perigo ambiental e não valeu de nada, o que é que eu vou ficar fazendo aqui? Devers, nesta altura, já nem se lembra do meu nome. Eu vou ficar esperando o quê? — Não desanima, não. De certa forma, você tem razão, mas convém a gente esperar um pouco, pra ver o que vai acontecer. Você não vê que surgiu um fato novo e muito poderoso? E a gente ainda não sabe tudo do que está acontecendo. Eu acho que o Pentágono se baseou no seu trabalho. O Devers deve ter mostrado pra eles. E se eles precisarem de você? — Se precisarem, é só me buscar lá no Brasil. — Já que você está aqui, acho que pode esperar mais um pouco. — Está bem. Enquanto o passaporte valer, eu fico. Depois, nada me segura. Na manhã do dia seguinte, Candota tinha acabado de fazer uma longa caminhada pelo condomínio. Mal entrou em casa, a campainha tocou. — Desejo falar com o senhor Luiz Cândido – disse o homem à porta. — Sou eu mesmo. O que deseja? AGORA OU NUNCA MAIS 274 — Posso entrar? Sou funcionário do Departamento de Imigração – enquanto apresentava suas credenciais. Conduzido à sala, explicou: — Estou aqui em serviço de fiscalização. Pelos nossos registros, o seu visto de permanência está vencido. — Não. Ainda vai vencer e talvez eu requeira a prorrogação. — Posso ver o passaporte? Candota foi ao quarto e trouxe o documento. Entregou-o ao homem e ficou na expectativa. — Eh, parece que ainda não venceu mesmo! Mas tenho ordens de retê-lo. — Não posso ficar ilegal no país. Sem passaporte! Mas, afinal, qual o motivo dessa atitude? — Você está sob suspeita de ameaça à segurança nacional. — O que que eu fiz? — Não sei. Só cumpro ordens. — Então, você me dá um recibo do passaporte. — Vou lavrar o auto de apreensão. Você fica com uma cópia, que agora é o seu documento. Ele só vale dentro do estado de Nova Jersey. Não pode viajar pra fora do Estado. — Qual é o recurso que me cabe? — Não sei. Consulte o seu advogado – respondeu secamente o funcionário enquanto se retirava. Entrementes, na Agência de Proteção Ambiental, o administrador Devers recebia, com surpresa, um telefonema do general Stanfordson, pedindo audiência. — Venha na hora que você quiser. Pode marcar. AGORA OU NUNCA MAIS 275 — Em trinta minutos, chego aí. — Estou te esperando. Devers mandou que o secretário desmarcasse todos os compromissos do dia. A visita do general tinha prioridade. — Devers, desculpe atrapalhar sua agenda, mas eu tinha que te ver logo. Não estou agüentando mais a pressão lá no Pentágono; até em casa! – foi dizendo o general logo que chegou. — Não se preocupe. Pode ficar à vontade. Temos muito tempo. — Você esteve lá naquele dia, e eu não pude adiantar nada. Você sabe, sou um soldado e tenho que respeitar a disciplina. Além disso, o relatório era secreto e ainda não tinha sido arquivado pelo Presidente. Eu tinha que... — Tranqüilo! Tudo bem! Entendo perfeitamente a sua posição. — Como você já deve saber, o documento vazou dos canais de governo. E vazou justamente porque foi rejeitado pelo Presidente. — Deve ter sido! — Mas não ficou só nisso, não. Como você deve estar vendo, o executivo vem conduzindo uma campanha de descrédito do nosso trabalho científico, movido unicamente por interesses políticos imediatistas, o que considero um crime. — O problema ambiental, que é real e contundente, se sobrepõe a todas as questões políticas, que passam a ser, no caso, menores e subalternas. AGORA OU NUNCA MAIS 276 — Também acho! Depois do arquivamento do relatório, decidi ignorar o fato e me manter neutro, por imposição da disciplina. — Desculpe, mas posso arriscar uma opinião sobre isso? — Fique à vontade. Pode dizer o que você quiser. — Você falou em disciplina. Examinando melhor, não seria um condicionamento militar? — É a mesma coisa! — Desculpe, mas acho que não. Posso? — Pode! — Então, lá vai! Na educação militar, vocês ficam com a mente aprisionada; não têm autonomia pra pensar. Isso é que leva à observância da disciplina que se resume em obedecer às ordens; só obedecer, sem pensar. Acostumando-se nesse cativeiro, vocês passam a reprimir suas emoções — Mas a gente sente! — Claro que sentem porque são humanos! Mas ao sentir, adquirem o complexo de culpa. — Devers, vamos deixar esse papo pra outra ocasião. Eu vim aqui pra falar de coisas mais concretas. De certo modo, até que elas têm relação com essa sua observação. — Não quis te aborrecer! Fala. — Como te disse, eu fiquei neutro na questão, mas os meus colegas do Pentágono e generais de comando começaram a comentar e se indignar com o assunto, que acabou transbordando pras esposas. E as mulheres, agora apavoradas, além de exagerarem nas conseqüências, ficam atormentando os maridos, reclamando: “O que vai ser dos nossos filhos?”. AGORA OU NUNCA MAIS 277 Até lá em casa, minha mulher fica repetindo esse refrão. Não agüento mais! — E elas têm toda razão. — Acontece que os nossos oficiais, apoquentados em casa pelas mulheres e no serviço pela consciência, começaram a realizar reuniões informais e alguns estão se manifestando com indignação, já sem controle. — Isso é perigoso! — Se é! Eu, como chefe do Estado-Maior, não posso tomar partido, mas também não posso ignorar esse início de agitação. Foi algum deles que entregou cópia do relatório pra um repórter. Foi um ato de rebeldia. Com isso decai o fator confiança, justamente o que cimenta nossa mais importante corporação. — O secretário da Defesa não fala nada? — Ele não é militar. É político nomeado pelo Presidente e não vai querer perder o emprego. Ele foi só o intermediário do relatório. Não apoiou o documento e procurou me ridicularizar. — Quem sabe, ele ainda não entendeu a gravidade do problema? — Pode ser! — A gente tem que procurar entender a cabeça dele. De certo modo, ele tem razão. — Razão!? — É! Pensa bem! Tão factível e medonha é essa reação ambiental, que a tendência das pessoas é considerá-la inverossímil – nem mesmo admissível –, só porque é trágica. A tecnologia e os confortos materiais desta civilização condicionaram as mentes dessa gente a tal ponto que elas não AGORA OU NUNCA MAIS estão mais 278 acreditando no que é verdadeiro, evidente, dedutível. A fantasia, o sonho e o inconsistente, que são desejáveis, promissores e extasiantes, têm mais facilidade de ser aceitos. Isso é muito importante para entender as razões aflitivas de quem pede socorro. Com seu testemunho, caro leitor, é a terceira vez que ouvimos aqui tão importante argumento. Em diálogos anteriores, Candota fez a mesma observação. É oportuno repeti-la: — Eh! sempre foi assim! Faz parte da índole humana! A verdade trágica é inverossímil; a bondosa, crível. Ninguém quer acreditar nas más notícias, mas crêem piamente nos benefícios das promessas vãs e enganosas. E prosseguiu o general: — O assunto é sério, Devers. Isso não é conto da Carochinha! — Eu sei! Nós aqui temos noção do quanto a vida depende do ambiente. Até mais do que vocês, militares. — Acredito. Mas vocês aqui olham o assunto mais como idealistas. Nós militares, em princípio, nem ligamos pro assunto, mas quando surgem dados concretos de catástrofe, como agora, passamos a sentir o problema na pele. — Percebemos isso claramente. Mas nossos governantes não têm capacidade de perceber! — A questão agora passa a ser assunto de segurança! O nosso relatório não foi feito assim, assim! Foi produzido depois de debates e acurado estudo dos nossos mais categorizados cérebros. Está muito bem fundamentado. Hoje temos uma visão clara da realidade. Ela está aí na nossa cara! AGORA OU NUNCA MAIS 279 — Eh! Nós idealistas e vocês práticos... Esse casamento, acho que pode dar certo. Acho que combina. Nesse momento, os olhos do general brilharam. Notou ele que havia uma harmonia de entendimento com o interlocutor. Curtindo por um momento essa satisfação pela identidade de idéias, abriu um largo sorriso e se revelou: — Ô Devers, você parece que adivinhou! É justamente sobre isso que eu vim te falar. Sei que um brasileiro te apresentou um estudo da mesma natureza, prevendo início do colapso pros próximos anos. O FBI recebeu denúncia contra ele e deve estar investigando. — Eu devia ter previsto isso! Você me dá licença um pouco. Chamando o assessor pelo telefone, disse: — Wal, o Candota foi denunciado no FBI. Não tenho notícias dele. Eu quero que você fique só por conta disso e cuide da segurança dele. Com urgência, por favor. Faz tudo que precisar. Me dá notícias logo que puder. — Desculpe, Stanfordson. Tenho que agir rápido. — Você está certo. Eu também tenho interesse na segurança dele. Ele pode ser útil. — Veja você! Ele já está incomodando certas pessoas. Pois é... você falava que eu adivinhei. Adivinhei o quê? — Sobre o casamento dos nossos interesses. — Ah, sim! — Eu vim aqui justamente pra conversar sobre o estudo desse moço. Não conheço os detalhes. Você podia me fornecer os elementos desse trabalho pra comparar com o nosso. AGORA OU NUNCA MAIS 280 — Vou providenciar com urgência. Enquanto isso, você vai segurando a sua tropa. Temos que trabalhar com a cabeça fria. Depois das despedidas, Devers se apressou na elaboração de um parecer, juntou cópia dos documentos que Candota havia deixado e mandou um portador entregar tudo pessoalmente ao general Stanfordson. Naquele dia em que perdeu o passaporte, Candota estava amargurado com a sua nova situação. Sua posição de cientista estava discriminada. Sentia-se abatido e pensando em desistir da luta. À tarde, com a chegada de Bento, contou-lhe o ocorrido e não escondeu o esmorecimento. — Candota, isso é reflexo dessa luta surda entre a realidade dos fatos, exposta pelo Pentágono, e a atitude insana e egoística dos interesses econômicos. Tem gente grossa atrás disso. Eles querem é que você desista mesmo. — Mas, e daí? Aqui, não sou cientista; sou simplesmente estrangeiro e subversivo. Sou perigoso. Não posso falar nada. — Estrangeiro, sob enfoque discriminatório, todo mundo é. Isso não desqualifica ninguém. Só na visão estreita de alguns. Esses americanos!... Não vêem que, no fundo, nos Estados Unidos todos são estrangeiros? Os índios são os únicos que não são. — Já pensou!? Eu é que sou ameaça à segurança do país! Quem ameaça é a Lógica e a Natureza, não eu. — Fica tranqüilo. Eu vou tomar alguma providência. Agora eles mexeram foi comigo. Passados dois dias, Candota, muito assustado, recebe nova visita Imigração. do mesmo funcionário do Departamento de AGORA OU NUNCA MAIS 281 — Mandaram te devolver o seu passaporte. E já está prorrogado. — O que que aconteceu? — Não sei. Só obedeço a ordens, mas parece que você tem algum padrinho forte lá em cima. Deu resultado o empenho da APA diretamente com o diretor do FBI, ocasião em que Devers lhe assegurou que a denúncia tinha caráter político e que Candota estava prestando relevantes serviços à agência. Alguns dias mais tarde, Devers recebe nova visita do general Stanfordson que disse: — Estudamos o trabalho do Candota. Os apanhados e o embasamento científico se ajustam aos informes que temos. A metodologia dele é diferente e original, mas as conclusões se convergem. — Também pudera! Ciência é ciência em qualquer lugar. — Há uma pequena discrepância de data, mas isso é relativo. O fato é que as condições negativas existem e pedem urgência na solução. Na parte das estratégicas, há também um enfoque diferente. Enquanto nós defendemos leis urgentes e medidas enérgicas, com convencimento dos outros países, ele sugere a criação de um governo mundial e medidas mais radicais. A solução desse moço é mais racional, efetiva e profunda. — Ele propõe um período de hibernação da democracia. — E está correto. Nós tivemos escrúpulo nessa parte, naturalmente por influência do respeito à democracia. Nesse aspecto, devido à nossa situação profissional, ficamos pisando AGORA OU NUNCA MAIS 282 em ovos. Mas reconheço que nisso nós erramos. Pra falar a verdade, o Candota foi mais honesto e corajoso. — Você respeitou a democracia, mas a Natureza não respeita nem direitos, nem ética, nem leis, nem democracia. Se você examinar bem, vai ver que essa nossa democracia é distorcida, não bate com os objetivos naturais. — Agora, presta atenção! Lá no Estado-Maior, fizemos esboço de um plano pra convencer o governo a enfrentar a realidade. Quanto mais demorar, pior. Chegamos à conclusão que o Presidente sabe da seriedade do nosso estudo, mas prefere deixar a bomba estourar nas mãos do próximo que vai ocupar o cargo. É um comportamento egoístico e irresponsável. Mas o caso é que ele tem medo. E quem tem medo ante o perigo o que que faz? — Enterra a cabeça na areia, como o avestruz. — É isso mesmo! É uma solução animal, mas irracional pra nós. — Qual é o seu plano? — Aí é que você vai entrar. Raciocinamos assim: a recomendação do Pentágono foi arquivada, morreu. Agora, entrando outro relatório, independente do nosso, o Presidente vai ficar com duas denúncias praticamente iguais nas mãos. Ele vai se sentir pressionado. Como você não tem secretário intermediário pra atrapalhar, pode falar diretamente com o Presidente. E falar cruamente, sem rodeios. — Essa é minha função, e não posso pôr panos quentes. — Nossa esperança é você. E quanto mais cedo essa reunião, melhor. AGORA OU NUNCA MAIS 283 — Deve ser uma reunião conjunta com os secretários, e não vou nem tocar no assunto do relatório do Pentágono. Pra todos os efeitos, eu não sei de nada. — De acordo! — Conforme ficou decidido com o Conselho de Qualidade Ambiental, tenho que dar andamento no processo daqui com a convocação de diversos cientistas, já selecionados. Não precisava, porque já existe o estudo da UCA, mas como não posso conhecer nada desse documento, vou ter que ir em frente. O pessoal do CQA está vacilante, mas eu dobro eles antes de pedir despacho com o Presidente. — Sucesso pra você! Me dá notícias depois, viu? Conforme planejado, Devers convocou os cientistas e os membros do CQA. Telefonando para Candota, disse: — Preciso de você aqui, pra participar de uma importante reunião sobre o seu programa. — Pensei que você não ia mexer mais com isso. Você ficou sabendo do fiasco do Pentágono? — Aquilo é outra história. Agora é assunto mais sério. Você pode vir? Ah! você recebeu o seu passaporte de volta? — Recebi, sim. Como é que você sabe? — Não preocupa, não. Depois a gente conversa. Preciso de você aqui com certa urgência. A reunião é depois de amanhã cedo. Pode ser? — Combinado. Pode esperar. Candota ficou muito satisfeito com o telefonema e readquiriu o ânimo. Bento, também alegre com a notícia, teceu um comentário: AGORA OU NUNCA MAIS 284 — Doravante você vai ter que tomar muito cuidado! Eles te devolveram o passaporte, mas vão continuar te vigiando. É governo de lá e de cá te puxando. Ora te machucam, ora te assopram. Não sei, não! Estou percebendo que tem desentendimento grosso lá em cima. Não toma partido; fica só na posição de cientista. A gente não sabe pra onde a situação está caminhando! Na APA, à hora marcada, Candota foi recebido pelo administrador. Dessa vez, havia em torno da mesa de discussões mais de 15 senhores. — Sente-se à mesa, por favor – convidou Devers. — Estes senhores são componentes de uma primeira comissão de cientistas e membros do CQA, destinada a examinar as questões que você descreveu e, se for o caso, encaminhar elas ao Presidente. Respeitosamente, apresentaram-se todos. Ali estavam os principais assessores, alguns cientistas e técnicos do CQA. Os semblantes comunicava se atmosfera apresentavam de austeridade. sérios, e Candota o recinto estranhou aquele ambiente sombrio e depressor, nada amigável. Nem café foi servido. O administrador confabulou algo com o assessor ao lado e finalmente se pronunciou: — Amigos, todos já sabem sobre o que vamos tratar. Estão presentes as melhores cabeças de que dispõe o país. Temos, evidentemente, um problema muito grande em nossos ombros e estamos decididos a encontrar o melhor caminho pra equacionar a solução. A comissão de cientistas, aqui presente, já nos ofereceu relatório prévio decisão de realizar esta reunião. que fundamentou nossa AGORA OU NUNCA MAIS 285 O presidente da sessão fez longa pausa e olhou em volta. Era firme o silêncio na sala. Os ouvintes se mantinham imóveis na concentração e nenhum movia sequer as mãos. Naquele grave ambiente, Devers prosseguiu: — O relatório científico prévio atesta que a teoria de Candota, em todos os seus componentes, tem procedência científica. Aliás, no aspecto geral, o estudo confirma o que os luminares da ciência já vêm denunciando há muito tempo nos congressos mundiais. Mas agora temos em mãos um trabalho consistente que nos aponta a certeza de um futuro sinistro. Ante tal situação, entendemos que nosso governo deve tomar as providências cabíveis. Foi dada a palavra aos componentes. Convictos da pungente realidade, todos fizeram diversas abordagens do assunto, concluindo sempre pela necessidade de criação do governo mundial. Alguns, mais exaltados e pessimistas, mostraram-se acabrunhados e previram a implantação de medidas brutais e radicais. Dada a palavra a Candota, ele assim se pronunciou: — Por tudo aqui exposto, está evidente que estamos diante de um momento histórico que requer decisões corajosas pra evitar o desaparecimento da humanidade. Mas, se as autoridades do governo mundial tiverem tato, habilidade e rapidez de ações, os remédios não precisam ser tão amargos como alguns aqui estão prevendo. O administrador, que presidia a reunião, julgou oportuno encerrá-la, comunicando que ia tomar todas as providências necessárias e que, posteriormente, pretendia entrar em AGORA OU NUNCA MAIS 286 contato com Michels para confirmar uma audiência com o Presidente. No dia seguinte, feito o relatório final com a colaboração de Candota, Devers mandou entregar, extra-oficialmente, uma cópia ao general Stanfordson e aguardou sua manifestação. 9º CAPÍTULO Entrementes, os fatos se precipitaram. Foi intensa a atuação dos cientistas dos outros países, por recomendação da UCA, mas não chegaram a demover seus governantes, exceto o do Japão, que considerou o assunto relevante e o primeiro-ministro pediu uma audiência com o presidente Nash. Na conversa, este foi duramente pressionado pelo mandatário japonês, dizendo que os acordos ecológicos anteriores tinham fracassado e que já eram inadequados, tendo em vista o agravamento da situação ambiental. Se os Estados Unidos não assumissem a responsabilidade numa atitude conveniente, o Japão tomaria a iniciativa de convocar uma conferência internacional para abordar o problema, o que seria desgastante para a posição de liderança do país acovardado. A mulher de um coronel do exército foi presa por tentativa de afogamento num rio de seus dois filhos menores, alegando que já não suportava mais as perspectivas sombrias AGORA OU NUNCA MAIS do futuro e 287 se mostrava insana. Mas finalizava seu depoimento, citando o relatório do Pentágono, no qual acusava o Presidente de ser o responsável pelo seu descontrole emocional. O tenente-coronel Sullivam, professor de Lógica na Academia Militar de West Point, que havia participado da comissão que elaborou o relatório do Pentágono, postou-se com arma automática numa janela da instituição e matou e feriu onze cadetes, aleatoriamente, antes de ser abatido pela guarda de segurança. Na véspera, tinha-se divorciado da mulher que o acusava de covarde e de lhe ter mentido ao negar que tivesse participado da comissão de estudos para o relatório do Pentágono. Ante esses fatos, as pessoas de governo envolvidas começaram a se sentir incomodadas, providenciando reuniões e consultas. No Pentágono, depois de examinado o documento enviado pela Agência de Proteção Ambiental, o general Stanfordson ligou para Devers: — Seu trabalho foi examinado por uma comissão daqui e recebeu muitos elogios. A apresentação do Candota foi acolhida por todos e é em cima dos dois documentos que vamos trabalhar. Afinal, o perigo apontado é o mesmo que já tínhamos percebido. Você está sabendo das tragédias que estão ocorrendo, ligadas ao nosso relatório? Aqui a situação também não está boa. Sofro pressão todos os dias. A causa é uma só, a lamúria das esposas: “e o que será dos nossos filhos?”. AGORA OU NUNCA MAIS 288 — Fiquei sabendo. Eh, alguma coisa tem que ser feita mesmo! — Como é que está o andamento por aí? — Minha audiência com o Presidente já foi marcada, mas sem data definida. Reza aí pra eu conseguir virar a situação. — Vou rezar bastante! — Depois te dou notícias. Devers não sabia, mas o general Stanfordson tinha planejado ações paralelas destinadas a facilitar sua missão. Conforme estava previamente combinado com os oficiais insatisfeitos, foi dado sinal para que estes pressionassem seus superiores. O passo seguinte e culminante foi uma audiência de Stanfordson com o secretário da Defesa. Outras ações estavam programadas para depois, de acordo com a repercussão no governo do trabalho da APA. No Departamento da Defesa, o secretário recebeu o general. — Meu caro O’Connor, não vim aqui falar daquele relatório, porque ele já está arquivado. Pro governo, o assunto está encerrado. — E está mesmo! Então, qual é o assunto? — Vim tratar de um outro relatório sobre problema ambiental, produzido pela APA, que nosso serviço secreto conseguiu captar. — Que tem de especial esse documento? — Ele é parecido com o que o Pentágono te entregou há dois meses. Pondo a mão na testa e fazendo careta de aborrecimento, o secretário exclamou: AGORA OU NUNCA MAIS 289 — Outra vez! Mais uma porretada! Assim, o Presidente não agüenta! — Não tenho culpa. Isso é assunto da APA. Ela... Mostrando contrariedade, O’Connor interrompeu: — Mas parecido como? Se é parecido, é reprodução. Só pode ser! — Não, secretário! Acon... — Você quer que eu engula isso? Pra seu conhecimento, sou maior de idade e vacinado, está bem? — Desculpe, meu chefe. Não tive a menor intenção nesse sentido. — É, mas pareceu! Explica isso direito. — Foi produzido de forma independente, usando outra metodologia e o autor é um físico brasileiro. Pelo que fiquei sabendo, o trabalho dele é anterior ao nosso. — Você insiste em dizer que foi uma coincidência!? — Não falo de coincidência. Trata-se de abordagem e estudo de um mesmo fato, real, evidente, que todo cientista percebe. As leis da Natureza são universais, e o conhecimento científico também é. Eu vim te trazer a oportunidade de alertar o Presidente sobre esse relatório que o Devers vai apresentar. — Esse assunto não é comigo! — É, sim. Assunto de segurança nacional. — Mas não é assunto científico, ambiental? — Não. O conseqüência... miolo a do grande assunto é científico, conseqüência, mas O’Connor, a é desgraçadamente explosiva. Nós temos que lidar é com a conseqüência. — Bobagem! AGORA OU NUNCA MAIS — Você 290 precisa tomar consciência da gravidade do momento. Uma oportunidade já foi perdida, mas agora surge outra. Talvez mais adiante, outra. Mas, aí, será tarde demais. — Você fica querendo apressar soluções. Tudo tem o seu tempo! — Não sou eu! É a Natureza! Com essa bomba, ninguém pode ficar indiferente. Você é o responsável pela defesa do país, e o problema é tão envolvente que é mundial! — Mundial!... – resmungou com desprezo e incredulidade. — Você não sabe que o nosso país está no mundo? Enxerga, Q’Connor! Você só tem que enxergar o que está na frente dos seus olhos. E depois tem que convencer o Presidente. Fazer ele enxergar também. Sua missão é a de um herói. — Me jogando confete, hem! Já falei que sou vacinado. — Com esse preconceito, não dá pra gente dialogar! — Não, não é isso! Pode falar. — Eu estava te apelando pra enxergar a gravidade do assunto. Olhando sério diretamente nos olhos do secretário, acrescentou: — Senão vamos ter que arrumar outro Presidente. Assustado com a ousadia, o secretário, que estava amuado, retornou com veemência: — Acho que você está abalado com essa história e perdendo a razão! Por isso não pensou direito, falando em arrumar outro dizendo? — Sei, sim! Presidente. Ora!...Você sabe o que está AGORA OU NUNCA MAIS 291 — Então, se contenha que não vou admitir insolência. — Você não pode confundir insolência com lealdade. É meu dever ser leal e honesto ao meu superior. Por isso, tenho que te manter informado de tudo o que diz respeito à segurança do país. — Pelo que eu sei, a segurança do país está assegurada. Ante o silêncio do general, indagou com olhar desconfiado: — Ou não está? — Pelo critério que você deve estar pensando, acho que não. Estupefato e levantando as mãos perto da cabeça, como se estivesse a ponto de explodir, exclamou com ênfase: — O que que é isso! O que que é isso! Onde estamos! — O’Connor, me escuta com calma. Diversos oficiais no Pentágono e alguns com comando estão à beira do desespero por ver o governo ignorar o perigo ambiental. — Esse assunto está alastrando? — É o que estou tentando dizer. Quando... — E você não fez nada!? — Eles estão recebendo pressão da família, que também está sofrendo. — Vocês são soldados! E a disciplina? — Você sabe, o soldado, antes de ser soldado, é um homem comum. Agüentam tudo sem queixar. Mas quando a coisa mexe com os filhos... — Ninguém está mexendo com a família! — Como todo mundo, eles também anseiam pelo futuro dos filhos. AGORA OU NUNCA MAIS 292 — E daí? A responsabilidade da disciplina é sua. — Numa visão do caos, ninguém garante disciplina militar. Temos potencialidade emocional nos quartéis suficiente pra desagregar a estrutura de governo e levar a definição pra rua. — Você está fazendo ameaça de sedição? Seja claro! — Não relatando faço a ameaça situação nenhuma. na Estou corporação é sendo fiel, Ela está militar. ameaçadora. Se este Presidente não tomar comando efetivo da situação, vai ser preciso arranjar outro Presidente. Estou te fazendo um relato franco e honesto. — Isso é muito sério! Você passou da conta! — É sério, sim! Muito sério... – repetiu. Notando que o secretário se deixou ficar em silêncio, pensativo, fixando o olhar no vazio, acrescentou: — Olha, O’Connor, escuta bem. A Presidência é perene; o Presidente, não. Dura só quatro anos. O presidente Nash tem só mais dois conseguirem anos segurar de a mandato. situação Se por as forças esses dois armadas anos, é garantido que o próximo Presidente vai ser um militar... e sem eleição. O secretário, angustiado e com a boca seca de emoção, se entregou: — Eu vou te contar. Alguns congressistas também já se manifestaram demonstrando preocupação. Depois que o seu relatório foi vazado, apesar das medidas tranqüilizantes do governo, as esposas dos políticos estão pressionando maridos. O ambiente no Congresso não está ficando bom. — Estou sabendo. — Eh!... Eh!... Não sei... os AGORA OU NUNCA MAIS 293 — Com o surgimento desse novo documento, acho que a situação vai ficar insuportável, e alguém vai ter que manter controle da situação. É preciso que o Presidente assuma as suas responsabilidades – e agora – pro país continuar confiando nele. Faltando confiança num governante... já viu, não é? — Eh!... O Presidente não ignora a situação. Sabe mais do que nós dois, e ele não é imbecil. — Então por que rema contra as evidências? — A coisa não é fácil, não. Ele está entre dois fogos. Você não enxerga isso? — Francamente, não enxergo, não. É favor você me explicar. — Vou te contar a outra parte. Os representantes da estrutura econômica, que é o que sustenta nossa existência, já estão se organizando, inclusive com apoio de alguns congressistas, pra combater essas idéias dos ambientalistas. — Então, eles estão pretendendo combater o que não existe. — Não existe, como? — Idéias ambientalistas não existem. O que existe é o ambiente, que é dinâmico e está sendo rapidamente degradado. Existe é um fato real, já anunciado pela Natureza, comprovado pelos cientistas e finalmente confirmado pelos estudos de projeção lógica. É preciso ficar bem claro: existe um fator contrário à vida, caminhando no rumo do caos. É contra essa esforços. ocorrência ameaça Você de não que temos sabe que ciclones, todos os erupções de juntar cientistas vulcânicas nossos prevêem e a alguns AGORA OU NUNCA MAIS 294 terremotos? Agora estão prevendo a tragédia ambiental, só que ainda evitável. — Sim, também eu com te razão, compreendo. que se o Mas eles problema argumentam, ambiental for enfrentado como indicam os cientistas, com violação das leis de mercado e das normas internacionais, o caos será implantado da mesma forma. E, dentre eles, eu sou um que pensa assim, porque tenho meus interesses econômicos na indústria petrolífera. O Presidente também tem seus próprios interesses econômicos. Afinal, você sabe: antes de sermos democratas, somos capitalistas. — Obrigado pela sinceridade. Eu te admiro! Você tem muito valor, reconheço. — Você me obrigou a abrir o coração. É isso! — Estou vendo que você ainda não percebeu que o desarranjo economia ecológico mundial e trará o conseqüências esfacelamento de destrutivas todo o na sistema financeiro vigente. — Não acredito! — O’Connor, eu e outros altos oficiais também temos interesses econômicos agregados a essa estrutura. Mas, ante a fúria do futuro macabro, nós entregamos tudo o que for preciso pra preservar a vida dos nossos filhos. Será que você e o Presidente não amam os seus filhos? — Você está me fazendo sofrer! — Isso não é justo. Não sou eu. Entenda que são as evidências que fazem todo mundo sofrer. — Como eu te falei, o Presidente está espremido entre duas situações, ambas trágicas. AGORA OU NUNCA MAIS 295 — Entendo, mas ainda tem uma saída: acolher o plano da APA com a tomada dessas decisões duras, mas necessárias. Além disso, chegamos a um ponto em que a posição do Presidente está na resolução de enfrentar a revolta popular, comandada pelos militares, ou enfrentar a revolta da Natureza. — Isso agora já é uma ameaça explícita! — Não me entenda assim. Estou apenas transmitindo a real intranqüilidade militar. — Mas, afinal, você disse que não ia tocar no assunto do relatório do Pentágono e só falou nele. — Engano seu! O que eu prometi, cumpri. Estou me referindo ao documento que a APA vai encaminhar ao Presidente, que contém o mesmo explosivo. Ficaram em silêncio, pensativos, durante certo tempo. De vez em quando um olhava para o outro e não diziam nada. Pensavam; sob tensão. Tocou o telefone na mesa do secretário. — Agora não posso! – foi a resposta brusca, desligando o aparelho. Virando-se para o general: — E agora? O que que eu faço? — Tudo o que nós conversamos aqui, você leva ao conhecimento do Presidente. Isso é lealdade. Aproveita e diz a ele que este é o momento exato de ele se tornar um herói nacional e mundial. Que não perca a oportunidade. — E você? — Eu? Estou jogando minha carreira. Meus subordinados confiam em mim, o que é uma honra. Isso tudo são ações em AGORA OU NUNCA MAIS 296 defesa da vida. De que vale o mundo, a tecnologia, a riqueza material e a democracia, sem a vida? Terminado aquele tenso diálogo, Stanfordson notou que o secretário ficou muito abatido, denotando profunda amargura. O general, contudo, sentia-se mais leve, consciência serena. Tinha assumido uma postura desassombrada, mas necessária. Acreditava que tinha preparado o caminho para acolhida favorável do documento que Devers iria entregar diretamente ao Presidente. Depois que Stanfordson se retirou, o secretário da Defesa apressou-se em marcar audiência com o Presidente. Ressoava em sua cabeça, involuntariamente, aquela síntese: “e o futuro dos nossos filhos?”. Entrementes, Candota, depois do seu trabalho na APA, tinha voltado para a casa de Bento bem mais aliviado. Tudo indicava que a História ia mudar de rumo. Contou à Miriam o andamento do assunto na agência, de modo reduzido e róseo, para estimular positivamente seu espírito, o que foi mais tarde informado a Klintok, para seu exaspero. Na Casa Branca, o Presidente recebeu em audiência o administrador Devers manifestou, mas preocupado. Ouvido conforme deixou o a relato estava impressão do agendado. de conteúdo estar do Não se bastante documento entregue, o Presidente recomendou a seu chefe de gabinete que entregasse a todos os secretários cópia integral do relatório da APA e convocou reunião especial do ministério para os próximos dias. Acertada a assembléia, com grande expectativa participantes, Devers compareceu sob intensa emoção. dos AGORA OU NUNCA MAIS 297 Abrindo a sessão, o Presidente deu boas-vindas aos presentes e entrou logo na pauta: — Convido Devers pra fazer a exposição do assunto que vai entrar em discussão. — Senhores, todos receberam dossiê completo sobre um problema ecológico que se mostrou, por meio de estudos científicos, tão real quanto perigoso pra sustentação da vida no planeta. Ademais, fiz ao Presidente relato pessoal das diversas implicações administrativas e políticas que recaem em seus ombros. O momento é grave e exige medidas condizentes com esses perigos. O Presidente fez sinal com o braço e disse: — Quero esclarecer que os estudos ecológicos e científicos foram efetuados sob a responsabilidade da Agência de Proteção Ambiental e que confirmaram estudos anteriores. Antes, aconselhado pelos meus assessores científicos, confesso que não estava bem orientado e tinha dúvidas. Acho que agora não há motivos pra incertezas. Estamos diante de indicações precisas. Ante esse perigo evidente, cabe aqui discutir os aspectos políticos no encaminhamento de soluções. Antes havia um problema ecológico, agora temos sério problema político. Que se manifeste o secretário de Segurança Interna. — Segundo o autor do estudo, qualquer providência deve ser iniciada por duas decisões: a proclamação, sob a tutela dos Estados Unidos, democracia, como do governo norma mundial social e a abolição da de administração. Isso é verdadeira aberração! É uma insanidade! Teria repercussões negativas e caóticas nas áreas interna e externa. Essas medidas são inteiramente visionárias e distorcidas da realidade AGORA OU NUNCA MAIS 298 de nossa civilização. Sugiro que o problema seja apresentado no foro adequado, a Organização das Nações Unidas, onde serão encontradas soluções representativas dos interesses das principais nações. Se sair alguma resolução esdrúxula, assinarão as nações que estiverem de acordo. Aí o problema seria de âmbito nacional de cada uma delas. Devers percebeu que a gravidade do problema não tinha ainda entrado arrazoados na razão oferecidos no daquele secretário, relatório, o que apesar dos poderia ter acontecido também com alguns outros, e se sentiu movido a apresentar sua contestação. Pediu a palavra e disse: — Parece que o nobre secretário não conseguiu enxergar, sentir, perceber o espírito do problema nem os excessos desta civilização. — Que excessos? – inquiriu o secretário. — Excesso de ócio, de espetáculo, de conforto, de poluição, de irresponsabilidade, de alimentação, de vaidade, de bens, de poder... — São excessos de apenas alguns poucos – voltou a contestar. — ...excesso de miséria, de ignorância, de destruição, de sofrimento e excesso de gente também. Principalmente de gente. Nesta civilização, enquanto as pessoas fazem festas e se divertem, a Natureza é dilacerada e chora. É preciso ter ouvidos capazes de ouvir esse choro e olhos pra enxergar essa tragédia. — Estou vendo é excesso de pessimismo – insistiu mais. — Por favor, senhor secretário, não interrompa Devers – interferiu o Presidente. E Devers prosseguiu: AGORA OU NUNCA MAIS 299 — Que eu não seja mal interpretado. A situação é grave e requer solução urgente, conforme os cientistas já comprovaram. Não há condições pra se perder tempo com discussões acadêmicas, seja na ONU, seja em qualquer outro organismo internacional. Trata-se de salvar a humanidade e com urgência. Algum país tem que tomar a liderança e conduzir o processo. No meu entender, somente os Estados Unidos têm os mecanismos pra aglutinar os interesses esparsos das outras nações num único objetivo estratégico, à base de cooperação para a sobrevivência. Entendo que este é um problema mundial e, portanto, deve ser resolvido por um governo de âmbito global, que ainda não existe, mas que deveria existir. A Terra é muito pequena, atualmente, em face da grande massa populacional. Por isso, requer um governo de alcance mundial. Se temos governo pra administrar até pequenas comunidades de cinco mil habitantes, por que não administrar, nessa emergência, o conjunto global? — Seria o mesmo que declarar guerra aos principais países desenvolvidos – aparteou o secretário de Estado. — Não exatamente – retrucou Devers –, desde que haja representatividade relativa dos principais países. O secretário de Estado, que tem em mãos a condução da política externa americana, teria a importante missão de, em curto prazo, convencer os demais países da coerência dessas medidas. O problema não é só nosso; é do mundo. Se um meteoro grande estivesse aproximando-se do nosso planeta, todos os países não colaborariam pra tentar afastar o perigo de extinção da humanidade? E, nesse caso, não teria que haver uma liderança pra coordenar a defesa? E que função teria a democracia, AGORA OU NUNCA MAIS 300 nessa emergência, a não ser a de atrapalhar? Um incêndio que está começando não pede água urgente, sem qualquer consideração às formalidades sociais? Uma bomba armada pra explodir com hora marcada não exige o desarme urgente, com democracia ou sem democracia? Pois bem. Temos uma bomba ambiental pronta pra explodir. Entendo que, numa emergência como a de que tratamos, democracia é condição contraproducente e descartável. Ela será chamada de volta quando estivermos numa situação futura promissora. — Reconheço que são argumentos a ser considerados – ponderou o Presidente. — Mas não há, Devers, um modo de providências administrativas globais serem implementadas sem se lançar mão de tais excepcionalidades? — Infelizmente, não. Essas duas condições básicas vão dar suporte pras decisões posteriores; e serão muito duras. O governo mundial deve se legitimar e se aparelhar com todos os recursos possíveis, porque os problemas conseqüentes surgirão a todo o momento. Por exemplo: ao decidir diminuir a população mundial – o que será indispensável –, terá de lutar contra uma série de reações políticas, econômicas e religiosas dos povos insatisfeitos. Com democracia e sem suporte militar vigoroso, os objetivos não serão alcançados. — Palavras desagradáveis, mas realistas – murmurou o Presidente. — O que acha disso o secretário de Estado? — Pra convencer os governos estrangeiros, preciso no mínimo de dez meses. Eles vão querer tomar conhecimento antecipado dos termos da constituição do governo mundial. E vão exigir alterações, por certo. Como lembrei a esta assembléia, o trabalho de convencimento dos demais países é AGORA OU NUNCA MAIS demorado. Eles 301 não aceitarão que os Estados Unidos se proclamem mandatários do planeta. Esse processo deve ser construído com paciência e tempo. Em caso contrário, teríamos de afrontá-los armadas e já com proclamações temos problemas amparadas demais com nas forças as nossas intervenções militares em curso. Mas, como consta do dossiê, o governo mundial deve contar também com o apoio dos exércitos estrangeiros, e eu não sei como conciliar essas situações antagônicas. — Quero ouvir as idéias do secretário da Defesa. — Estudei bem o dossiê e ouvi a opinião de diversos oficiais militares. Concluí que estamos perante situação emergencial e de sacrifícios. Sendo assim, todas as ações devem ter o mesmo caráter. Estou de pleno acordo com as premissas sugeridas pelo autor do projeto. Urgência é circunstância que entra com vigor na estratégia da solução. É claro que não vamos tomar decisões unilaterais em seco. Creio que nossa diplomacia terá êxito no convencimento e cooperação dos demais países, desde que lhes apresentemos cruamente o problema. Ademais, o governo mundial poderá ser gerido pelos Estados Unidos com a participação representativa de um conselho estrangeiro, o que é pertinente. Mas isso é trabalho pro secretário de Estado. Na área de defesa, desde que eliminada a norma democrática, estamos preparados pra executar as tarefas que forem estabelecidas. Quero reiterar que o governo conta com o decisivo apoio das forças militares. — Muito bem, mas entendo que temos de zelar pela nossa posição moral também. Antes de tudo, determino ao secretário AGORA OU NUNCA MAIS 302 da Defesa que providencie urgente acordo com todos os adversários nesses países em que estamos atuando, a fim de cessar imediatamente nossas ações. — Mas, Presidente, nossa posição é muito delicada nessas regiões! — Você não me entendeu. Essa é uma medida preliminar pra fortalecer nossas qualificações morais. Faça qualquer acordo. O resto não interessa. Não vê que o futuro Governo Mundial vai precisar ter o caminho livre pra se impor ao mundo? E, nesse caso, com apoio legal e moral. — Vou providenciar com urgência. Depois que os demais ministros se manifestaram, o Presidente disse: — As opiniões dos meus secretários não convergem pra um ponto comum nem são harmônicas. Isso é natural e assim deve ser, pra que se possa chegar ao encaminhamento de tão espinhoso e difícil assunto. Ainda não concluí nada, por precaução, mas percebo que caberá a este Presidente tomar decisões difíceis e contundentes. Pelo que ouvimos nesta reunião, uma coisa é certa: estamos diante de um fato que exige medidas urgentes. Preliminarmente, decido que cada departamento de governo elabore um anteprojeto de medidas institucionais. Depois, os senhores se reúnam e me apresentem anteprojeto único contendo sugestões efetivas. Marco nova reunião pra daqui a sete dias. Encerrando a reunião, arrematou: — Agora vamos trabalhar, que a Teoria de Candota exige urgência. AGORA OU NUNCA MAIS 303 Ficou, dessa forma, oficialmente batizado o estudo do Candota. Sua pesquisa adquiriu formalmente o status de teoria consensual, que engloba o programa computacional, as equações matemático-ecológicas, os referenciais estatísticos e a força de mudar os rumos da atual civilização. Após a reunião, Devers ligou para o general Stanfordson: — Tenho transformou boas notícias pra te dar. O Presidente se num combativo ambientalista. Fiquei até surpreso; não esperava. Parece que o clima lá está favorável ao acolhimento do nosso relatório. Acho que tudo vai caminhar bem. — Meus parabéns pelo êxito! Pra mim, foi um alívio! — Parece que a sua reza valeu. Ô reza forte! No dia seguinte, Candota recebeu telefonema de Devers, comunicando a boa acolhida do relatório pelo Presidente e alguns secretários. Conforme previsto, na semana seguinte instalou-se a reunião ministerial. O Presidente abriu os trabalhos: — Senhores, não preciso dizer da importância desta reunião. Daqui, hoje, deverão sair decisões que revolucionarão o mundo. Espero que todos estejam cientes dessa gravidade e contribuam com o melhor de sua inteligência, porque não podemos errar e porque nossa missão é de especial nobreza. Peço que o secretário de Estado resuma o resultado da reunião decisória sobre os estudos elaborados pelos departamentos de governo. — Enquanto me empenhei na elaboração do anteprojeto de ação, despachei funcionários de primeiro escalão pra contatar os governos dos principais países, já com a missão de AGORA OU NUNCA MAIS 304 trazerem concordância à criação do governo mundial. Na reunião preliminar pra discussão dos diversos anteprojetos dos demais secretários, chegamos à conclusão de que, apesar dos grandes inconvenientes, não há outra estratégia senão a sugerida pelo autor da teoria. — Então, devemos pleitear o direito de liderar o governo do mundo? – perguntou o Presidente — Pra atingir os objetivos de defesa desse mesmo mundo, isso é legítimo e necessário. Mas, conforme já sentimos nos contatos diplomáticos, é altamente conveniente que haja participação dos principais países. É pra dar representatividade a esse novo governo. — Seus mensageiros trouxeram notícias favoráveis? — Orientei meus ajudantes pra que informassem os governos estrangeiros sobre o perigo iminente e que o apoio internacional é indispensável. Que não há tempo a perder e que desejamos sejam colocadas sob jurisdição do governo mundial toda a estrutura administrativa desses países e as suas próprias forças armadas. Recebemos do governo japonês apoio incondicional. Os outros, em princípio, repudiaram nossas sugestões, mas se dispuseram a examinar com atenção e com urgência a Teoria de Candota, dispondo-se a indicar mais tarde as suas próprias sugestões. Nossos representantes encareceram a urgência de um pronunciamento. Não fizemos qualquer ameaça velada, por enquanto. Preferimos a adesão e participação voluntária deles. — Muito bem! Está aí a primeira pedra no caminho. Mas tenho confiança no seu departamento. Sei que conseguirá remover os obstáculos. AGORA OU NUNCA MAIS 305 — A esse respeito, sugiro que se marque urgente reunião de chefes de governo dos dez principais países, o que seria muito útil e apressaria a formação do governo mundial. Pelo menos ficaria definida uma posição de princípios. Essa reunião fortalecerá a compreensão e confiança entre os países e o entendimento dos riscos da não-solidariedade. — De pleno acordo! Marque essa reunião com urgência. — Quanto ao anteprojeto unificado, redigido após as discussões dos secretários de governo, estabelecemos apenas os pontos principais, ficando pra depois os pormenores e a monitoração segundo o andamento das nossas ações administrativas. — Quais foram esses quesitos? Num ambiente tenso e silencioso, o secretário de Estado remexeu os seus papéis e, colocando os óculos, passou a ler: “Primeiro: A avocação aos Estados Unidos do direito de presidir e constituir um governo mundial, com participação e assessoria dos representantes dos principais países e apoio da ONU, o qual terá soberania sobre os povos, nos termos de uma constituição a ser elaborada pela ONU, mas sob nossa supervisão. Como conseqüência, os governos nacionais passam a ser mandatários do governo central; Segundo: O desmonte universal da representatividade político-democrática administrações e nacionais das se estruturas imporão por judiciárias. decretos As e se apoiarão nas forças militares; Terceiro: Os interesses do governo mundial se sobrepõem aos interesses nacionais; AGORA OU NUNCA MAIS 306 Quarto: Se as determinações do governo mundial não forem cumpridas pelas autoridades nacionais, as forças armadas delegadas do poder central as farão cumprir; Quinto: As medidas iniciais serão de caráter emergencial, mas, segundo critério do governo central e à vista da monitoração e avaliações positivas, poderão ser abrandadas.” — Perfeito! Já temos quase uma constituição. Quero manifestar ao providências meu ministério preparatórias. As que podem ir tomando as reuniões de internacionais, cunho diplomático, deverão apresentar esses preâmbulos como já definidos pelo meu governo. Esse tema será o foco da minha reunião com os chefes de estado. Não é possível que eles não se alinhem! Alguém quer se manifestar? – convidou o Presidente. Diversos secretários de governo se pronunciaram, cada um expondo suas dúvidas e sugestões, finalizando, no entanto, com o apoio à súmula lida pelo secretário de Estado. Fez algumas considerações também o vice-presidente, de modo geral dando respaldo às sugestões do ministro. Quem destoou um pouco foi a secretária de Comércio, última a falar: — Pelo que discutimos na reunião preliminar, essas medidas concretas vão acarretar desequilíbrio profundo nas relações comerciais internacionais. Isso abalará, de certa forma, as estruturas econômicas estabelecidas e trará revolta à nata dos empresários, que são o suporte da nossa economia. Na reunião prévia eu me bati por medidas iniciais leves, de forma que a nova linha administrativa não desarrumasse a harmonia econômica mundial. Estou repisando o meu ponto de AGORA OU NUNCA MAIS 307 vista porque o julgo mais prudente e compatível com o bom senso. — O que acha, Devers, do que ouviu? – perguntou o Presidente. — Pro momento em que nos encontramos, é certo que não podemos nos precipitar. Devemos levar em conta que a solução do problema autoridade, porém central com tem de ser inteligência. conduzida Entendo que com as ponderações da secretária de Comércio traduzem um princípio básico, cautela. Entretanto, é inegável que o programa executivo a ser elaborado oportunamente perturbará, direta ou indiretamente, todas as áreas da atividade humana. É o preço dos nossos pecados. Em compensação, como objetivo final, é benéfico. Afinal, quanto mais cedo iniciarmos o processo inverso de desenvolvimento, menos dolorido será ele. Pra iniciar, os cinco princípios básicos enunciados pelo secretário de Estado são satisfatórios e não requerem reparo da minha parte. — Por hoje – manifestou-se o Presidente –, têm a minha aprovação os quesitos enumerados, a realização da reunião de cúpula e o seguimento de entendimentos diplomáticos. Recomendo que a reunião de cúpula seja bem preparada. Virando-se para Devers, disse: — Após a reunião com chefes de estado, além das diversas providências burocráticas, vou nomear um conselho de gerenciamento das nossas decisões. Você convoca Candota pra participar desse grupo, o que nos será muito útil. Depois de ter recebido telefonema de Devers, dando-lhe notícias e transmitindo o convite para compor o futuro AGORA OU NUNCA MAIS conselho, 308 Candota ficou radiante. Disse aos amigos hospedeiros que estava satisfeito, pois tudo indicava que o governo enfrentaria com coragem e decisão aquele lúgubre problema ecológico. Contou que foi convocado para participar do gerenciamento dos atos de governo, o que aumentaria sua responsabilidade para com o êxito do processo. — E agora? Depois de tudo isso que nos contou, o que acha que vai acontecer? – perguntou Miriam, demonstrando preocupação. — Enquanto estávamos nas conjecturas teóricas, as soluções eram mais fáceis. Agora, quando as nuvens escuras da realidade estão se aproximando, estou sentindo é um certo medo – confessou Candota. — Estou preocupado é com o nosso emprego. Eu sou matemático, só sei dar aulas e lidar com abstrações. Não sei fazer outra coisa. Como fica a situação da Miriam, que é diretora da biblioteca e tem paixão pela profissão? As escolas vão ser fechadas? Como ficam as bibliotecas? A situação vai ficar muito complicada! Também estou sentindo medo. Procurando animar o marido, Miriam disse: — Bobagem, gente! Bobagem a gente ficar se preocupando com essas coisas. Pode ter a revolução que for, que na Cultura eles não vão mexer. Cultura não tem nada a ver com ecologia! Nesse ponto, eu não tenho medo nenhum. — Tem razão, Miriam – reforçou Candota. — Enquanto não começar a revolução, não vamos saber das conseqüências. Ainda é muito cedo pra ficar preocupado. O certo é que o governo tomou uma decisão importante. Agora é aguardar os resultados diplomáticos pra medir o tamanho das dificuldades AGORA OU NUNCA MAIS 309 que o governo global vai ter pela frente. Mas posso te adiantar que as atividades humanas vão caminhar no sentido inverso do descrito no período recente da História. — Eh!... A Matemática vai criar teia de aranha! É uma pena! – resmungou Bento. — No final, vamos retornar às atividades primárias de subsistência, como você já sabe. O objetivo principal é diminuir a população e ir pra atividades não poluentes. Só trabalho rural é o ideal. Você já pode ir comprando uma enxada pra praticar – brincou Candota, tentando tranqüilizar o amigo. — Vou ter que estudar assuntos de agricultura. Pensando bem, vai ser até divertido. Já viu? Eu capinando, e Miriam cuidando das galinhas... – troçou Bento. Depois de apoiar a brincadeira com um discreto sorriso, Candota se deixou levar pela seriedade do assunto, revelando suas preocupações com o futuro: — O que eu penso agora é que, pra começar a tomar atitudes concretas, o governo vai ter que conseguir a concordância dos outros países. Vai ser um problema! — Isso tem que ser obtido de qualquer jeito! – sentenciou Miriam. — Eh!... Mas o Presidente quer formar o governo mundial com aparência de consenso e legitimidade. Depois, tudo fica mais fácil. Eles estão trabalhando com afinco. Por esses dias, vai ter reunião de chefes de governo pra esclarecer essa posição. — Mas foi delineada alguma norma de procedimento? – perguntou Bento. AGORA OU NUNCA MAIS — Foi. 310 São as estruturais que nós já conhecemos. Lembra? — Vai ser na cacetada ou com habilidade? – voltou Bento. — Isso não está resolvido, mas vou me bater por medidas suaves com caráter progressivo. Afinal, ninguém quer transformar o perigo futuro em caos presente. — O assunto ainda está sendo tratado sob sigilo? – interessou-se Miriam, naturalmente pensando nas perguntas que o pai lhe faria. — Claro! Mas acho que, aos poucos, o governo vai se soltar e justificar os fatos. Criaram um departamento com profissionais só pra cuidar das informações. Elas têm que ser dosadas pra evitar o pânico. E a grande imprensa vai ser convidada a cooperar. — Convidada!... Hum, estou vendo! – exclamou Bento, com desdém. — E ela vai cooperar, é claro! Os donos não são bobos! Mudando de lado, eles não têm nada a perder. Se ficarem contra, não têm futuro – expôs Miriam, demonstrando seu raciocínio. — Candota, vai lá no meu escritório e consulta o computador. Está cheio de mensagens pra você – convidou Bento. Com o envolvimento de Candota nos assuntos de Washington, a família no Brasil tinha ficado esquecida. O tempo tinha passado rápido, e a prorrogação indeterminada das férias não podia ficar sem que o filho desse qualquer notícia para os pais. AGORA OU NUNCA MAIS No escritório, 311 ligou o computador. Na tela, diversos recados. Leu mensagens de aflição, de saudade, de vida. Contavam que Terezinha tinha abortado. Intimamente, o irmão sentiu certo tipo de satisfação misturada com lástima. Dona Rosa, transmitindo lamúria, reclamava falta de notícias e – agulhada no coração de Candota – manifestava pressentimento de que não voltaria a ver o filho. Alfredo, mais formal, insistia em notícias e confessava sentir saudade. Tecia diversas hipóteses, inclusive a de que o filho poderia estar necessitando de dinheiro e se oferecia para enviar o que fosse preciso. Candota se acusou de negligente e ficou com remorso. Mandaria de imediato um correio eletrônico para se desculpar e fazer voltar à mãe a esperança que estava perdendo. E redigiu: “Somente hoje pude voltar à casa do Bento e ler as mensagens. Fiquei vários dias em Washington, dando assessoria ao governo. Lamento a perda do filho da Tê. Digam a ela que o destino sabe o que faz. Quanto a dinheiro, no momento não preciso. Aqui, tudo bem. Não se preocupem. Minhas férias continuam prorrogadas por tempo indeterminado, porque fui convocado pelo governo americano pra participar duma pesquisa muito importante, relacionada com um programa de computação que fiz. A mamãe pode ficar tranqüila, que na primeira oportunidade voltarei pra casa. Um abraço saudoso do filho Candota.” Como de costume, Candota lia com atenção os jornais e não perdia os noticiários de televisão. Em poucos dias, entre as notícias comuns e sem qualquer destaque, o apresentador AGORA OU NUNCA MAIS 312 de televisão do horário noturno noticiou: “A Casa Branca informa que o presidente Nash, no próximo sábado em Antuérpia, se reunirá com dez chefes de governo para tratar de assuntos ecológicos que afetam o planeta. A Agência de Proteção Ambiental não adiantou melhores esclarecimentos”. — Bento, o governo está sendo dinâmico. Se convenceram que a situação é de urgência. Domingo vamos ter notícia dessa conferência. Vai ver! — Também acho. Ante a radical alteração de atitude do governo, as evidências ambientais e o intento agora de colaborar, a mídia começou a divulgar as informações atinentes, porém de forma comedida, quase como de rotina, na forma estabelecida pelo recém-criado Departamento de Informações. Na televisão, alguns comentaristas analisaram a iniciativa do Presidente considerações e teceram genéricas, elogios ao ressaltando seu o gesto. cunho Foram patriótico. Notava-se que não tinham conhecimento dos pormenores. Se tinham, mostravam-se precavidos. Já os jornais de domingo deram destaque à conferência e fizeram especulações a respeito. Alguns se referiram à possibilidade de a ONU se transformar em governo mundial. Percebia-se que alguma coisa tinha vazado do encontro. Por outro lado, noticiava-se que alguns países aprovavam medidas enérgicas para a contenção da poluição mundial, principalmente o Japão. Passados poucos dias, os jornais trouxeram na primeira página notícias concretas que proclamavam: “ONU outorga aos Estados Unidos, com participação e assessoria de um conselho AGORA OU NUNCA MAIS 313 multinacional e em caráter emergencial e provisório, poderes para administrar o planeta”. Diziam que o organismo internacional fez assembléia de urgência e tomou a decisão por maioria de votos. Liam-se diversos comentários de jornalistas especializados, sempre favoráveis demonstrando desconhecerem àquela os resolução, pormenores mas ou as implicações. Os governantes dos principais países deram declarações oficiais de apoio ao novo governo mundial, e a imprensa em geral derramou elogios à nova instituição. Líderes de Organizações Não Governamentais, de sociedades alternativas e ambientalistas deram entrevistas, enaltecendo a definição de posição do Presidente e louvando a colaboração de diversos países. Aduziam que doravante haveria maior controle sobre as fontes poluidoras como a indústria, o lixo, a ganância econômica, o consumismo e a educação do povo. Alardeavam uma nova era; a era de reordenação de rumos. As bolsas de valores operaram em acentuada baixa, refletindo as expectativas pessimistas do sistema econômico. Os noticiários de rádio e televisão anunciavam fartamente que, naquela mesma noite, o Presidente faria importante pronunciamento. Efetivamente, na hora marcada, o presidente Nash iniciou o discurso que, em síntese, dizia o seguinte: “Na qualidade de primeiro mandatário do novo Governo Mundial, criado por exigência dos momentos históricos em que vivemos, dirijo-me aos povos para informar que estou possuído de toda a coragem necessária ao cumprimento das exigências AGORA OU NUNCA MAIS 314 de preservação das condições vitais da humanidade. Cientistas de nomeada têm feito alertas continuados, e estamos encampando suas recomendações.” “As medidas serão duras, mas necessárias. Para que haja êxito na empreitada, é preciso que toda a população do globo se conscientize dos perigos pelos quais passa esta civilização e compreenda a gravidade do problema que nos aflige, dando de si a mais efetiva colaboração.” “Não preciso descrever em detalhes os problemas ambientais. Todos sabem quais são. A Terra está esquentando, os rios estão secando, o clima está revolto, os alimentos estão escasseando, o solo caminha para a esterilidade, a miséria humana cresce e não se escuta mais a linguagem do silêncio. Sim, até o silêncio o homem está poluindo.” “O governo nacional dos Estados Unidos da América passa a ser formado pelos atuais substitutos de todos os cargos constitucionais. E o Governo Mundial terá a mesma estrutura e organização da sua origem, com a participação efetiva de representantes de diversos países e os acréscimos necessários ao bom desempenho de suas funções.” “Além dos outros órgãos e departamentos aludidos, estou constituindo um conselho de gerenciamento, composto das mais representativas autoridades científicas do mundo, que vai programar as medidas necessárias ao alívio das tensões negativas do nosso futuro.” “Esclareço que as decisões finais deste governo são irrecorríveis e que devem ser satisfeitas por todos os responsáveis pela execução, sob pena de as fazermos cumprir com o recurso da força, se necessário. Para isso, estamos AGORA OU NUNCA MAIS 315 unificando os exércitos nacionais sob um comando rotativo com supervisão de um colegiado transnacional.” “A medidas população a ser mundial adotadas pode serão ficar tranqüila, apenas as que as necessárias, compatíveis com a gravidade do momento.” Entusiasmado com a fala do Presidente, Candota avaliou para o amigo: — Pela rapidez com que o governo está agindo, acho que vão me chamar logo. Estive pensando que minha presença em Washington vai ser prolongada. Sendo assim, vou ficar alojado num hotel da Capital pra evitar essas viagens pra cá. — E com isso você vai deixando a gente, não é? – lamentou Bento. Logo agora que já estava quase fazendo parte da família. Até a Beth, quando você pegava ela, fazia carinha boa pra você. — Não vou fugir daqui, não! — Você tem dinheiro pra pagar hotel? — Com essa nomeação, o governo vai me fazer um ordenado, é claro! E acho que vou ter ajuda de custo pra manutenção. Além disso... Miriam, aparecendo na sala e se mostrando muita aflita, interrompeu: — William, papai está no telefone. Quer falar com você! Bento, prevendo aborrecimentos, fez expressão de preocupação e atendeu no ramal da sala. Klintok foi logo ao assunto, demonstrando que estava furioso. — William, o que você e aquele maluco andam fazendo? Eu estava sossegado porque vocês tinham entregado a tal AGORA OU NUNCA MAIS 316 teoria pra Agência de Proteção Ambiental. Mas agora estou vendo que vocês foram muito longe. Até no Pentágono! — Não é verdade! Nós... — O que vocês arrumaram? — Não fizemos nada! — Como, nada! O pronunciamento do Presidente está me mostrando que tem dedo seu e daquele irresponsável no governo. Primeiro, foi a criação do Governo Mundial, com a liderança dos Estados Unidos, no que estou de pleno acordo, porque afinal nós somos o único país do mundo que tem capacidade pra governar esse povo ignorante dos outros países. Mas agora parece que o governo exagerou com essa brincadeira que vocês chamam de ecologia. — Calma, Seu Klintok! Eu e o Candota não temos nada com o Pentágono. Nós não temos nada a ver com isso. Essas providências, agora, são apenas conseqüência duma situação real que o governo enxergou. Nós não mandamos no governo! — Ora, ora! Eu cansei de me oferecer pra ajudar, mas vocês me enganaram. O CQA tem muito mais capacidade pra avaliar essas loucuras do que a agência daquele idiota do Devers. — Seu Klintok, por favor, não fique nervoso. Procure se acalmar e confiar nas nossas autoridades. — Não estou nervoso, não! Essa bobagem que vocês aprontaram não vai ficar assim. Você viu as bolsas de valores caindo? Já perdi dinheiro! Eu vou confabular com os amigos que tenho na cúpula, reunindo outras pessoas inteligentes, e vamos interferir com rigor no andamento dessa situação. Chama a Miriam que eu quero falar com ela. AGORA OU NUNCA MAIS 317 —Vou chamar. Miriam, que permaneceu na sala e tinha ouvido o tom da conversa, recusou o fone que o marido lhe ofereceu e disse: — Vou atender lá do quarto – e se retirou. Candota, preocupado, se manifestou: — Algum problema? Você está meio desconcertado. — Nada de importante. Meu sogro é que está irritado com a situação e diz que vai interferir. Bobagem! No pé em que estão as coisas, ninguém vai fazer o Presidente voltar atrás. — Depois dessa criação do Governo Mundial, a História dobrou a esquina. Não tem mais retorno. No dia seguinte, Candota é chamado a Washington para se integrar ao Conselho Gerencial Ecológico (CGE), órgão criado para funcionar provisoriamente em ala reservada na Casa Branca. Feitas as malas e se despedindo dos amigos, Candota disse: — Fico muito grato a vocês pelo apoio que me deram. Saibam que o maior mérito que demonstraram foi o da solidariedade. Não vou esquecer nunca disso. Lá na capital, vou ficar no Main’s Hotel e espero receber notícias de vocês. Da minha parte, estou à disposição pra trocar idéias e oferecer meu apoio. Não deixem de falar comigo. No mesmo dia, os jornais publicaram diversos atos do Governo Mundial: executivas no criando exterior, secretarias-adjuntas compondo o conselho e agências gerencial; fazendo remanejamento de comandos militares; nomeando os integrantes dos novos cargos, inclusive Candota. Ali estava: Luiz Cândido Van Koorten. AGORA OU NUNCA MAIS 318 Na primeira reunião do CGE, sob a presidência de Devers, houve apresentação dos componentes, cientistas de diversas áreas, convocados em vários países. Um conjunto representativo de acordo e em harmonia com o caráter da problemática. Devers fez a abertura dos trabalhos, lendo pequena preleção: “Senhores, conforme já lhes dei conhecimento dos objetivos e atribuições deste Conselho, pelo dossiê entregue a cada um, estamos aqui para equacionar os diversos problemas que vão surgir em conseqüência das medidas excepcionais que o Governo Mundial vai tomar. Tais medidas serão aconselhadas por este organismo, ao mesmo tempo em que serão rigorosamente monitoradas pelos senhores. Para isso, conta este Conselho com um serviço especial internacional de informações, a ser geradas pelos nossos representantes em todas as áreas e em todos os países. Fui nomeado presidente e coordenador deste órgão, que considero o mais importante de todo o esquema de defesa ecológica no Governo Mundial. Estou à disposição para ouvi-los a qualquer hora e tempo. Não faço questão de sacrifícios em beneficio do êxito de nossa missão, porque a considero extremamente heróica e digna. Quero, também, deixá-los muito à vontade para se desligarem deste organismo no momento em que lhes pareça a atuação aqui acima de suas forças. Todos receberam as questões da ordem do dia, que serão discutidas, ainda hoje, após intervalo de duas horas.” Os conselheiros se puseram a estudar o primeiro documento a ser posto em discussão. Apontava ele mais ou AGORA OU NUNCA MAIS 319 menos aquelas considerações que já haviam sido apresentadas pelo secretário de Estado: a) formação do governo mundial – já efetivada; b) desmonte da democracia; c) aspectos dos interesses mundiais; d) intervenção militar; e) critérios de rigidez de medidas; f) primeiras medidas emergenciais. No final do tempo marcado, Devers comunicou que, conforme todos já deviam saber, o primeiro item estava superado. Iniciou-se, em seguida, a discussão da abolição mundial da representação democrática. Alguns se opuseram a essa medida, alegando a legitimidade da representação política. Outros alvitraram a possibilidade de intervenção do poder executivo nas casas legislativas. Foi preciso que o presidente interviesse na discussão para esclarecer: — Quero pedir que os conselheiros releiam com profunda atenção as diretrizes constantes da Teoria de Candota. Ali consta claramente que o encaminhamento de soluções não comporta considerações de constrangimento à cultura. O Governo Mundial tem como justificativa ações revolucionárias pra salvar a humanidade, e esse deve ser o objetivo; sem melindres, sem hesitação, sem delongas. Falando mais claro: tudo vale pra atingir o objetivo, que é a salvação da humanidade. Foi produtivo o pronunciamento do presidente porquanto vários dos participantes reviram suas posições. Sentiram que o AGORA OU NUNCA MAIS 320 momento era histórico e devia ser delineado com serenidade e objetivo prático. No final, ficou decidido recomendar a extinção de todas as práticas de representação popular e seus efeitos no judiciário. Discutidas as duas propostas seguintes, foi reconhecida a soberania do Governo Mundial sobre os demais governos, incluído o território dos Estados Unidos, e a legitimidade de uso de forças militares. Quanto aos critérios de rigidez, houve desacordo no tocante aos métodos a ser adotados. Uns defendiam medidas profundas e peremptórias, outros propunham que as determinações deveriam ser mais leves, aumentando segundo avaliação dos respectivos relatórios. Candota se manifestou da seguinte forma: — Estamos às vésperas de tomar medidas importantes e inovadoras. Podemos calcular as repercussões matemáticas e sociais, mas não temos certeza das conseqüências estruturais. Uma ação mal calculada pode produzir efeitos mais danosos que a causa. Adiante, quando formos tratar especificamente das providências escolhas quanto excepcionais, a métodos e podemos sistemas, fazer algumas dependendo das características regionais de cada país. Pra alguns, devemos ser mais severos, mas pra outros o bom senso vai aconselhar medidas mais brandas. Tudo vai depender da espécie de cada decisão. Por isso, sugiro que seja considerado, como princípio, o critério da precaução. Devers se manifestou favorável à ponderação de Candota, e apoiou a resolução para que fossem implementadas ações cautelosas, segundo a natureza de cada objetivo, e a AGORA OU NUNCA MAIS 321 elaboração de um cronograma mais flexível. Encerrada a sessão neste ponto, as primeiras medidas emergenciais, que demandariam longos estudos e debates, entrariam em pauta na próxima reunião, marcada para o segundo dia seguinte. As propostas básicas sugeridas na reunião ministerial foram aprovadas pelo Conselho e encaminhadas ao Ministério para apreciação. No dia seguinte, após reunião ministerial, o presidente Nash assinou os decretos alusivos a essas normas e fez um pronunciamento pela televisão: “Cumpre-me anunciar ao mundo que estamos no limiar de uma mudança profunda na história da nossa civilização. Ela foi iniciada com a implantação necessária deste Governo Mundial e segue com as normas básicas definidas hoje. Com essas primeiras medidas, visamos interromper um processo materialista altamente prejudicial à humanidade. Não mais teremos desenvolvimento, crescimento e progresso ilimitados. Devemos parar de crescer e manter esta civilização no tamanho que a Natureza nos impõe. Doravante, seremos guiados por Perseguiremos ideais os menos gananciosos caminhos que nos e egoísticos. conduzirão, gradativamente e com cautela, ao recuo civilizacional.” “Conforme ampla divulgação, estabeleci de início 4 normas básicas que pautarão a conduta e orientação dos governos nacionais, com vistas à implementação posterior de medidas defensivas da Natureza. Devo esclarecer que não abjuro as práticas político-democráticas, mas elas somente são saudáveis e justas quando aplicadas numa normal ambientação ecológica e social. Sua abolição é temporária, prevalecendo AGORA OU NUNCA MAIS 322 essa excepcionalidade até que sejam alcançados os objetivos de regularidade ambiental.” “Esclareço que todas as decisões do nosso governo objetivam atender aos interesses do planeta como um todo, aí incluída a própria humanidade. Isso visa a benefícios de vida tanto para as gerações atuais como para as que se sucederem. Tais resoluções são de âmbito global, sem distinção de povos, raça, religião, pobreza ou riqueza.” “Está sendo legitimado o uso da força militar exclusivamente para os casos de resistência às deliberações deste governo. Ela é necessária porque não posso fugir de minhas responsabilidades nem vacilar na condução dessa emergencial fase de salvação da espécie humana.” “Para salvaguardar a justeza dos atos de governo, conta o povo com o respaldo do instituto de representação, perante o Departamento Político Especial do Governo Mundial, sempre que se julgar prejudicado.” “Infelizmente, temos de nos privar de diversos confortos propiciados por esta civilização materialista e tecnológica, porque foi ela, sob a fúria da ganância e do enriquecimento pessoal, construída às custas da espoliação alucinada e irracional dos recursos naturais do planeta. Quero, enfim, conclamar a todos os povos para que me ajudem nessa difícil missão redentora, procurando seguir as resoluções com disciplina e senso ecológico.” Esse pronunciamento varreu o mundo como um vendaval, transportado pelas ondas do rádio e da televisão. As entidades mundiais representativas dos poderes políticos, bem como as dos empresários, dos sindicalistas e dos religiosos convocaram AGORA OU NUNCA MAIS 323 assembléias para discutir a situação. Receosos de verem seus interesses prejudicados, constituíram uma comissão mista para dialogar com o secretário do Departamento Político Especial, DPE. Na reunião previamente agendada, expuseram suas preocupações e argumentos, mas só ouviram notícias que não queriam. Em resposta, disse o secretário do DPE: — Ante o perigo ecológico, percebido e confirmado pelos cientistas – justificou o secretário –, a constituição do governo global foi imposição do momento. Foi um fato histórico e não existe outro caminho pra enfrentar a tragédia que já se anunciou. — Era mesmo insensatez não haver governo global pra cuidar da saúde do planeta. Nisso estamos de acordo. Mas o mundo!... ser administrado por atos discricionários, com abolição da representatividade democrática, foge às nossas tradições mais cultivadas e sagradas – rebateu o porta-voz da comissão. — O exercício democrático implica demora na resolução e aplicação de medidas que devem ser tomadas com urgência. E o culto à tradição deve ser abolido em benefício da razão. — Absurdo! — Os senhores precisam entender que estamos numa posição histórica que nos aponta apenas dois rumos: um leva a humanidade à sua própria extinção; o outro, à redenção. — Mas estamos percebendo que o presidente Nash, pelo pronunciamento aspirações feito, econômicas tem mãos livres das elites e, por pra contrariar conseqüência, as o equilíbrio social de todas as categorias. Achamos que, pela AGORA OU NUNCA MAIS vinculação de 324 interesses entre todas as classes, ficará perturbada toda essa ordem social e econômica, construída com sacrifícios durante séculos. — A classe dos pobres e miseráveis, que é a maioria, nada perderá porque nada possuem. Essa ordem a que você se refere corresponde a desordem e desarmonia ecológicas. Nosso objetivo é restaurar o equilíbrio da Natureza, e é bom lembrar que o homem é parte dela. — O perigo é que o presidente Nash se tornou ditador, sem controle institucional. — Não. O Presidente está aconselhado e assessorado por diversos órgãos competentes, inclusive por um conselho especial representativo das Nações Unidas, que o legitimam. — Que não foram eleitos pelo povo! — Ora, o povo! O que o povo entende de assuntos sérios como esses? Vocês mesmos sabem que eleição política sempre foi uma enganação, sempre foi um faz-de-conta! — Queremos manifestar o nosso desejo de participar das decisões do Governo Mundial, pra oferecer representatividade e sobrestar alguma decisão equivocada. — Prometo levar suas preocupações à próxima reunião ministerial. Mas posso lembrar que seus interesses já estão representados no governo por intermédio do Departamento de Comércio, cujo secretário participa de todas as reuniões de governo. Encerrada a audiência, a comissão mista resolveu manterse em contato compatíveis com permanente, as novas a fim ações de que tomar posições prometiam vir. AGORA OU NUNCA MAIS Resolveram 325 também ampliar a representação, procurando obter a adesão de mais órgãos de classe. Enquanto isso, no Conselho Gerencial Ecológico (CGE), durante uma semana, os conselheiros se reuniram e debateram as primeiras disposições concretas a ser encaminhadas para decisão da cúpula do governo. Dali saíram, em resumo, as seguintes disposições: 1) a mulher só poderá gerar um filho, admitida a gestação de gêmeos. Fica proibida a inseminação artificial ou antinatural. O aborto passa a ser livre; 2) os países têm o prazo de seis meses para encerrar as atividades de todas as usinas termonucleares; 3) ficam proibidos: o corte ou derrubada de árvores de qualquer espécie; o transporte e comércio de madeira; a queima proposital de qualquer vegetal vivo; 4) os veículos civis de qualquer espécie, movidos a combustível de petróleo, terão restrição de trânsito de forma que a cada ano seja ele reduzido de dez por cento, até o máximo de sessenta por cento; 5) as indústrias automobilísticas de uso civil reduzirão a produção para quarenta por cento, dentro do prazo de cinco anos; 6) passa a ser proibida a criação ou ampliação de qualquer indústria que se ocupe, direta ou indiretamente, de transformações químicas; 7) ficam canceladas todas as pesquisas científicas que não digam respeito à ecologia; AGORA OU NUNCA MAIS 8) estas incluídos os 326 decisões pigmeus, não os se aplicam aos silvícolas, aí os nativos da acima, Devers foi bosquímanos e Austrália. Encaminhadas as recomendações convocado para defendê-las na reunião ministerial. Depois de longos e trabalhosos debates, foram aperfeiçoados alguns dispositivos, mas a essência ficou mantida. Prevaleceu o espírito, já absorvido pelo governo, de que a cultura vigente pode e deve ser alterada segundo os interesses ecológicos. Ficou consagrada a estratégia de conduzir as alterações por meios suaves e cautelosos, evitando-se medidas rudes, mas sob vigilância dos órgãos de segurança e monitoração a ser feita pelo CGE. Os órgãos informativos no mundo deram farta divulgação a essas primeiras medidas. Em diversos países, formaram-se organizações de apoio ao Governo Mundial. Membros dessas associações se apresentaram como voluntários para colaborar na fiscalização do cumprimento daquelas determinações. A par da tristeza de grande parte da sociedade, era entusiástica a manifestação das entidades ecológicas. Paralelamente, desenvolviam-se em todos os países debates, conferências, estudos e seminários de esclarecimento versando sobre os problemas ambientais e as medidas governamentais. Especificamente, os órgãos representativos das indústrias de veículos e do petróleo redigiram violento manifesto contra o Governo Mundial. Constituíram uma comissão e solicitaram audiência com o secretário político especial. AGORA OU NUNCA MAIS 327 — Senhor secretário – manifestou-se o porta-voz dos industriais –, entendemos que houve exagero muito grande na tomada de decisão a respeito de transportes. Cremos que não foi levada em conta a enorme quantidade de pessoas que ficarão desempregadas. — Vocês têm o prazo de cinco anos. É muito tempo! — Que representa curtíssimo prazo. Com a redução da indústria automobilística, atividades-meios. Há uma serão diminuídas cadeia enorme também de as empresas empregatícias que se finaliza na montagem de veículos. Como ficarão as mineradoras, as siderúrgicas, a indústria do petróleo e as demais atividades paralelas? — É o preço da nossa redenção. É o custo da espoliação ambiental feita por vários séculos. — Preço e custo de nossa bancarrota, isso sim! — Não estamos tirando nada de ninguém; apenas iniciando um processo de recomposição. Vocês tiraram demais. Agora terão de devolver. Pelo menos uma parte e que é muito pequena. — Mas temos estudos que demonstram a viabilidade de utilização do nitrogênio nos motores de explosão. É uma prática que não polui o ar. — Como você mesmo explicou, o veículo automotivo é apenas produto final. Não se vão contar a poluição e degradação ambiental propiciadas pelas atividades-meios? A mineração não deixa chagas abertas no planeta e não destrói as nascentes? A siderurgia não envenena o ar e as águas? A indústria petroquímica não desqualifica altamente o ambiente? Como construir automóveis sem degradar nosso ambiente? AGORA OU NUNCA MAIS — Dessa 328 forma, sabendo de antemão que estamos condenados a sofrer prejuízos, muitas indústrias do ramo vão encerrar as atividades e cessar os investimentos na área. — É isso mesmo que queremos. No momento, estamos apenas dando os primeiros passos no retorno às nossas origens naturais. — Vocês são loucos! Vão aniquilar nossa civilização! — Não, meu amigo! Não é assim que você deve enxergar a conjuntura; vamos é construir a nova civilização. E sob a égide do respeito à Natureza. — O mesmo respeito que os silvícolas votam à Natureza! Silvícolas!... — Você está ironizando, mas é isso mesmo! Respeitar o ambiente que nos dá vida é imperativo do bom senso. As entidades religiosas também se agruparam para defender seus privilégios e suas razões. Os dignitários das diversas religiões constituíram comissão composta de bispos, presbíteros, muftis e rabinos. Redigiram uma petição e foram entregá-la pessoalmente ao secretário político. O porta-voz da comissão, dirigindo-se à autoridade, assim se expressou: — Vimos trazer ao Governo Mundial a palavra da sociedade religiosa, que representa mais de noventa por cento de toda a humanidade. Consideramos que nossa voz deve ser ouvida e considerada na tomada de decisões da cúpula administrativa. — Pode deixar aqui sua petição, que será encaminhada e estudada. — Não só vamos deixar nosso arrazoado por escrito, mas cremos ser importante transmitir de viva voz a esse AGORA OU NUNCA MAIS 329 departamento governamental o sentimento da coletividade quanto às decisões sancionadas pelo novo governo. — Estou atento às suas ponderações. — Queremos manifestar claramente que damos apoio e fazemos elogio aos quesitos divulgados, exceto quanto ao primeiro, que nega à natureza humana o direito à livre procriação e que libera o crime do aborto. Essa decisão fere o direito à vida de inocentes criaturas e se posiciona contrária aos mandamentos divinos. Por isso, solicitamos seja ela reconsiderada e afinal revogada. — É fato aceito pela Matemática e pela Filosofia que todo problema tem solução. Mas é também verdade que todo problema tem causa. A questão de que tratamos já está identificada pelos estudos científicos. Nela está evidenciada a sua causa, que é o chamado desenvolvimento, também conhecido por progresso e crescimento econômico. — Não estamos percebendo o que têm os inocentes a ver com o progresso, fator evidentemente benéfico pra toda a humanidade. — Parece, semântica! meu santo homem! Parece! Questão de Ao contrário do que é aceito em geral, aqueles fatores, em vez de serem benéficos, são altamente prejudiciais e contraproducentes. — Então, tudo se resume a uma questão de ponto de vista. — Não. Não é. Quem constrói o desenvolvimento? Evidente que é o homem. Logo, se quisermos combater essa grave enfermidade ecológica, teremos que combater o seu agente, o homem. Como? Pelo controle do crescimento AGORA OU NUNCA MAIS 330 demográfico tanto no aspecto percentual como no de número absoluto. — Vejo que o governo está determinado, mas clamo para que nossa petição seja examinada com desvelo. De outras áreas, houve também movimento muito grande de reclamações, mas as autoridades do Governo Mundial não se deixaram abalar. Haviam estabelecido um objetivo racional e nobre. Suas atitudes não poderiam ceder a injunções de corporações, sob risco de fracassarem. Também não se descuidou o governo de todos os aspectos de segurança. Foram criados órgãos especiais de acompanhamento das ações adversas, a fim de, com apoio militar, sufocar no início qualquer reação. Ficaram sob observação também os procedimentos dos governos nacionais no intento de ser mantida a colaboração desejada. Enquanto a sociedade mundial fervia e os governos nacionais se acautelavam, o Conselho Gerencial Ecológico trabalhava com afinco para dar conta do exame das informações vindas dos diversos países. Ajustes eram feitos, de acordo com as situações específicas de cada região. Foram muitas as recomendações aos governos nacionais para que procedessem com urgência à reforma agrária, com o fim de constituir comunidades auto-sustentáveis onde assentariam a população desempregada. Essa medida, além de guiar a sociedade para o objetivofoco da revolução ecológica – volta às origens –, aliviou as grandes cidades da pressão social e fixou expressiva parcela de pessoas subsistência, em terrenos rompendo próprios, em com conseqüência atividades a de estrutura AGORA OU NUNCA MAIS consumista. 331 Paralelamente, diminuiu o cultivo agrícola extensivo, liberando mais áreas para assentamentos. Candota se comunicava sempre com o amigo Bento, ocasião em que trocavam idéias sobre o andamento da revolução ecológica. Numa dessas conversas, ficou sabendo da prisão de Klintok, que estava agitando os meios políticos e militares ao assumir posição radical contrária e rebelde aos princípios do governo. Ele e diversos cúmplices foram enviados a campos especiais, destinados à tentativa de conscientizá-los da justeza das providências do governo. No exercício das funções de conselheiro, Candota ficou conhecendo todos os colegas e se envolveu com eles em debates e diálogos produtivos dentro e fora dos trabalhos. Por ser o autor da Teoria de Candota, era muito procurado e ouvido. Entre eles, Candota se encantou, já nos primeiros dias, com as idéias e atuação de um francês chamado François De Lembert. Formulava ele conceitos bem próximos aos que Candota expunha. Certo dia, no café da manhã do hotel, De Lembert tocou o ombro de Candota e exclamou: — Olá, colega! Você aqui! Estamos hospedados no mesmo hotel, e eu ainda não tinha te visto. — Senta aqui! Vamos tomar o café juntos. — É bom saber que somos companheiros lá e cá. — Essa epopéia vai demorar muito tempo; pode se preparar. Na história da vida, somos heróis. Já pensou!? Heróis! — Mais herói é o presidente Nash. Eu soube que ele mudou o modo de enxergar o mundo. Parece que foi um AGORA OU NUNCA MAIS 332 milagre. Sem a decisão dele e o espírito combativo que tem demonstrado, não ia ter essa revolução. — Eh! Todo herói é herói enquanto estiver praticando atos heróicos. Temo por ele. As forças contrariadas andam muito ativas. — Bobagem! Agora não tem volta! Ele já se mostrou decidido, e o sistema de segurança é eficiente. O vicepresidente do Governo Mundial reafirmou lealdade e apoio. O Governo Mundial já é um fato, e tem o apoio geral dos governos nacionais. — Me diga uma coisa. Como você veio parar aqui? Qual é a sua especialidade? — Minha especialidade é apenas pensar; sou pensador. — É uma nobre atividade; e rara! — Você está ironizando. — Nada disso! Falei sério! Hoje em dia, o povo em geral tem preguiça de usar a cabeça. Eles deixam que a mídia pense por eles. Só poucas pessoas conhecem a verdadeira liberdade, adquirida com o exercício da plenitude do pensamento. — Tem razão! O intelecto é a maior dádiva da Natureza ao homem, e muita gente a despreza; simplesmente não a utiliza. Incrível, mas milhões de humanos passam pela vida e morrem sem jamais terem pensado. — A não ser pra engendrar a maldade. — É mesmo! — Você ouviu falar alguma vez sobre a Associação contra o Progresso? — Não! Nunca ouvi falar! AGORA OU NUNCA MAIS 333 — Pois é! Eu sou o presidente dessa associação, fundada na França há mais de 20 anos. Somos poucos e temos sido sabotados pela mídia. Somos considerados loucos. — Os sábios sempre foram vistos como loucos pelos que não são sábios. — Se a nossa associação fosse Associação pelo Lucro, ia ser bajulada e conhecida no mundo todo. Nossa ação está restrita a fazer conferências e promover manifestações ecológicas na França. — Francamente, eu não sabia nada disso! — O embaixador americano em Paris conhecia nossa atuação e me indicou ao governo francês pra participar do Conselho. Foi uma grande oportunidade pra pôr em prática nossas idéias. Fiquei satisfeito por reunirem, num órgão de cúpula, defensores da Natureza e cientistas de várias partes do mundo. E isso, eu reconheço, devemos a você. Sabemos dos seus esforços. — Os cientistas são neutros em assuntos ecológicos, mas muito úteis porque fornecem as informações que nos guiam. São nossa base de sustentação. Sem o aval deles, minha teoria não teria sobrepujado a vaidade dos governantes. — Você não acha que as medidas adotadas até o momento têm sido muito superficiais? Que devemos enfrentar a situação de degeneração ecológica com atitudes mais fortes, mais radicais? Sob ótica filosófica, temos que reconhecer que estamos num mundo natural e que o homem é, em si, também natural. Tudo o que é artificialismo devia ser abolido. Esta é a minha receita. O que que você acha? AGORA OU NUNCA MAIS 334 — Nem tanto! Você está certo no que diz respeito à visão heurística, mas temos que manter os pés no chão. Você tem que considerar que o homem é também um ser político, isto é, se insere num ambiente de poder que ele próprio cria. — Aí é que está o erro, essa estrutura de poder que ele criou. — Nesse caso – pensa bem! – a falha não seria do homem, mas da própria Natureza. — Como? — Lógico! A Natureza é que criou o homem. Sendo assim... — Está bem, mas não vamos entrar nessa área filosófica, que isso não vai ter fim. — Também acho! — O homem, por ser racional e pensante... — Nem todos, como você mesmo reconhece! — Sim, mas ele deve procurar solução pra qualquer problema, nem que seja pelo instinto. Essa civilização materialista avançou demais. Devia ter começado a reversão há 60 anos, pelo menos! — Nesse período o mundo não cresceu, fermentou. — Enquanto isso, milhares de espécies de seres vivos estão em extinção em nome do progresso. — Já passamos de seis bilhões de humanos! Absurdo! — Hoje, temos quantidade em detrimento da qualidade. De que adianta existirem dois bilhões de miseráveis, sofredores, em processo lento de morte desde o dia em que nascem? AGORA OU NUNCA MAIS 335 Nos dias seguintes, Candota passou a manter com o francês conversas proveitosas e interessantes. Analisavam as questões prováveis que surgiriam e, no Conselho, se manifestavam com idéias harmônicas. De Lembert também se afeiçoou a Candota e se tornaram amigos. Numa oportunidade, Bento e Miriam foram apresentados ao francês. Acontecia algumas vezes de os dois conselheiros passarem o fim de semana em Nova Jersey, em casa de Bento. Como o andamento dos trabalhos no CGE estava se conformando às normas decretadas, e a aferição dos resultados ainda demoraria algum tempo, Candota pediu e obteve licença para se ausentar dos trabalhos por 30 dias a fim de visitar a família. Antes, pediu ao amigo francês que o mantivesse informado das principais questões que surgissem no Conselho. Não poderia ficar sem acompanhar o desenvolvimento das atividades desse órgão estatal, para que se mantivesse atualizado com os acontecimentos. Caso surgisse algum evento relevante, que exigisse sua presença, até que estaria disposto a retornar antes do prazo. Estava ausente do Brasil havia mais de um ano. A saudade de casa apertava, e a imagem de Beatriz não lhe saía do pensamento. Pelas circunstâncias anteriores, tinha sufocado seus sentimentos e sofreu muito. Quem sabe agora... Enfim, a situação ecológica que o atormentava já se tinha definido, e o entendimento com Beatriz talvez fosse mais fácil. Só de pensar no retorno, seu coração pulsava mais forte como a dizer: “Beatriz está me chamando”. AGORA OU NUNCA MAIS 336 Comunicou ao pai essa decisão e preparou a viagem. Houve demora, porquanto havia fila de espera de dois dias no embarque de avião, efeito das medidas de contenção nos transportes. Finalmente, chegou o momento do embarque, o dia em que reveria sua família e, talvez, a mulher que teimava em permanecer em seu pensamento. AGORA OU NUNCA MAIS 337 10° CAPÍTULO Ao chegar, Candota foi recebido no aeroporto apenas pelo pai. — Oh, meu filho! Até que enfim você voltou! – choramingou Alfredo ao tempo em que apertava o filho num forte abraço. Contendo a emoção, Candota se justificou: — Eu também estava com saudade. Ué! A mamãe não veio? — Ela ficou em casa preparando alguma coisa pra você. Deve estar numa expectativa danada! Vamos sair por aqui pra pegar o ônibus. Candota ia perguntar pelo carro do pai, quando se lembrou de que a restrição ao transporte já podia estar mostrando seus efeitos. Mas o pai se adiantou e justificou: — Hoje não é o meu dia pra usar o carro. Você sabe que tem limitação de uso? AGORA OU NUNCA MAIS 338 — Sei, sim. Não faz mal, vamos de ônibus. — Já sabia que me aposentei? — Ah! que bom! Você não me falou! Agora vai ter tempo pras outras coisas boas. A vida não é só lecionar. Tem outras ocupações que podem dar prazer. Você é que me disse isso, lembra? Alfredo deu um sorriso e deixou a pergunta no ar. No percurso, fez muitas perguntas, mas Candota se limitou a comentar aspectos não relevantes da viagem. Prometeu, no entanto, que iria contar tudo quando chegassem em casa. Queria que a mãe estivesse presente, pois esperava fazer o relato com minúcias apenas uma vez. Para as outras pessoas que o abordassem, daria informação sucinta. Não queria rememorar todos os momentos de angústia por que tinha passado. Em casa, tudo era alegria. À frente da mansão, esperando, estavam Dona Rosa e Terezinha com a família. Foram muitos os abraços e beijos. Dona Rosa deixou que as lágrimas lhe perguntas maternas molhassem sem de o esperar permeio. rosto. resposta Candota, Não e parava murmurava sentindo-se de fazer zangas satisfeito e integrado às origens, procurava dar atenção a todos, inclusive ao Zeninho, tomando-o nos braços. Depois que Candota se recolheu ao quarto para desarrumar a mala, sem que deixasse de dar ligeira olhada nas fotografias que tinha deixado na caixa de guardados, retornou à sala onde todos o esperavam, menos Zeninho que foi posto para dormir. Após um período de perguntas, Candota esperou que fizessem silêncio. Nesse momento, disse: AGORA OU NUNCA MAIS 339 — Vocês estão fazendo muitas perguntas que eu ainda não respondi. Mas hoje vou contar tudo, direitinho, porque vocês têm o direito e a necessidade de saber. — Espera aí – disse Alfredo enquanto se dirigia aos telefones da casa e os desligava. — Não quero ser incomodado. Zenon acompanhou o exemplo e desligou o seu telefone celular. Candota se posicionou na poltrona. Com a boca meio aberta, colocou a mão em torno do queixo, pensando como começar. — Anda! Conta logo! – instou Terezinha, demonstrando ansiedade. — Pois é. Eu tinha um segredo e agora vou contar. Enquanto todos se punham na maior concentração, mantendo um silêncio profundo, Candota revelou toda a sua epopéia, desde o início de suas sofridas descobertas do segredo de Guilherme. Não tendo sido interrompido nenhuma vez, finalmente arrematou: — Agora vocês já sabem de tudo. É isso aí! Dona Rosa estava chorando baixinho, pensando no amado filho, “sacrificado afinal por uma civilização de ganância e irracionalidade. Criou um programa de alerta para a humanidade e foi ele a primeira vítima do holocausto previsto”. — Então, foi você que andou fazendo essa confusão toda! – admirou-se Zenon, acrescentando que tinha sorte porque a fábrica em que trabalhava não é poluidora. AGORA OU NUNCA MAIS 340 — Eu sempre explico que não fiz nada; só mostrei às autoridades americanas o perigo do futuro. O resto é conseqüência. — Pelo que sei agora, foi até bom Deus ter me tirado o segundo filho – interveio Terezinha. — Não ia ter futuro mesmo! — Eu não vou deixar você voltar pros Estados Unidos – sentenciou Dona Rosa. Ah! mas não vou deixar mesmo! — Eh! Nós precisamos de você aqui – reforçou Alfredo. — Pelo seu relato, acho que essas medidas não vão valer de nada. Pelo que estou vendo, o problema é tão abrangente que essas medidas vão trazer é mais confusão pra todo mundo. — Isso vai depender da avaliação que vamos fazer quando chegarem as informações que estão sendo colhidas no mundo. — Não tem graça nenhuma essa história! – arrematou Dona Rosa, fazendo-se de zangada. — Venham pra mesa, que vou servir um lanche especial que preparei pra nós todos. Hoje é aniversário do Candota! — Não é não, mãe! – objetou Terezinha. — Eu sei! Mas fica sendo. Eu decreto, uai! – enfatizou, toda orgulhosa e feliz. Sobre a mesa, guarnecida com toalha e jogo de porcelana novos, Dona Rosa, mantendo seu sorriso de felicidade, foi arrumando os quitutes mais variados, deixando o centro vazio. No final, trouxe um caprichado bolo encimado por delicada vela azul em formato de C e o colocou no centro da mesa. Alfredo champanhe festejo. fez a geladas, sua parte. Trouxe completando duas aqueles garrafas de preparativos de AGORA OU NUNCA MAIS 341 Pelo simbolismo da mesa guarnecida e das manifestações de alegria, não foi preciso discursos. Havia ali um elo espiritual que os unia pelo amor e afeto. O homenageado, sentindo o calor daqueles gestos, se extravasava em sorrisos, não mostrando preocupação em se conter. Era aquele um momento culminante. Ali permaneceram em conversa risonha por longo tempo, mesmo depois que se fartaram com as generosas iguarias. Acercando-se da irmã, Candota lhe perguntou em voz baixa: — Tê, você, por acaso, tem alguma notícia da Beatriz? — Notícia mesmo, não. Mas eu a vi numa exposição de quadros, acompanhada de um rapaz. Você ainda pensa nela? — Não sei explicar, mas ela não sai da minha cabeça. Parece que no mundo só existe a Beatriz. — Ah, meu irmão, se você está apaixonado por ela, não sei o que você está fazendo aqui, parado. Telefona pra ela e tira as suas dúvidas. Se gostar de você, ela vai te dar uma entrada. Caso contrário, você pode dizer adeus. — Você podia ligar pra ela e sondar a situação... — Nada disso! Eu não entro em campo minado. Isso é assunto pra você mesmo resolver. Pelo menos esclarece o destino de vocês dois. Candota achou melhor deixar para depois, até criar coragem. À noite resolveria o que fazer. Primeiro precisava encontrar motivo forte para justificar o telefonema. Tinha de engendrar um roteiro da conversa inicial, pelo menos até que sentisse a reação da moça. AGORA OU NUNCA MAIS 342 Não esperou fechar-se a noite por completo. Na ânsia pela aventura da iniciativa e sob o fogo do amor agora redobrado, foi tomado pelo destemor e ousou. Discou o número do telefone, que ainda sabia de cor, e esperou. Coração, saltitante. Atenderam. Era a voz do pai. — É o Seu Juarez? — Sim. Quem fala? — Boa noite. Aqui é o Candota – respondeu com humildade. — Olá, Candota! Que surpresa! Pensei que ainda estivesse fora. Candota se animou. Juarez o recebeu com brandura. — Eu gostaria de falar com a Beatriz. — Vou chamar. Aguardando. Coração pulsando mais forte, pernas bambas. Expectativa. Finalmente a voz de Beatriz se mostrou: — Oi! — Beatriz, como vai? É o Candota – disse com voz destoada e quase sumida. — Vou bem, obrigada. E você? — Agora parece que está tudo bem! – respondeu, procurando plantar uma curiosidade na mente da moça. Silêncio de Beatriz. Ficou na espera. Não mordeu a isca. Candota se desconcertou e não sabia o que dizer. Por isso, apelou: — Beatriz, se não for problema pra você, eu queria conversar pessoalmente. Tenho coisas pra te contar. — Estou pensando... Você me pegou de surpresa. Eu nem esperava. Mas o que você tem pra me dizer? AGORA OU NUNCA MAIS 343 — Não leve a mal, mas a conversa é longa. Pelo telefone não dá. — Faz isso: amanhã ou depois eu te ligo e nós marcamos encontro aqui em casa. —Está bem. Eu te aguardo. Candota não se animou com esse primeiro contato. Beatriz demonstrou indiferença e, de certo modo, o humilhou. Brandamente, mas humilhou. Ficou pensando: “Beatriz teria conservado algum sentimento de amor em relação à minha pessoa? Parece que não. Ainda mais que eu a machuquei com a nossa última conversa. Também, depois de tanto tempo ausente, sem notícias, é natural que se tenha deixado envolver por algum rapaz”. No segundo dia de espera, Beatriz ligou. — Você disse que tem um assunto pra me contar. Você me desculpe, mas eu não tenho nada pra te dizer. Candota gelou. Como um eco, ficou ouvindo as últimas palavras. “Nada pra te dizer... nada pra te dizer...” — Entendi, Beatriz! Entendi... Sentindo a esperança sumir de repente, conformou-se com a situação e acrescentou fracamente, como encerramento da conversa: — Então, a gente deixa a conversa pra lá. Obrigado e desculpa! Antes de desligar, ouviu a voz de Beatriz: — Vou apenas te ouvir. Você pode vir aqui hoje à noite, que vou te ouvir. — Então, às oito – mal balbuciou Candota, desligando o aparelho. AGORA OU NUNCA MAIS 344 Candota colocou o fone na base sem saber o que fazia, tão desorientado enrubesceu. Suas estava. Sentiu-se esperanças criaram humilhado. asas e O se rosto foram. Suspirou fundo, buscando retomar a normalidade. Aos poucos, sua alma foi tentando emergir das profundezas escuras daquele choque. Transtornado, impôs-se retomar o controle das emoções. Procurou o refúgio do escritório para meditar, buscando um meio de se situar naquela realidade. Procurando separar a razão e os sentimentos, decidiu aclarar o raciocínio, pensando: “Eu preciso enxergar as coisas como elas são e não como desejo. A reação da Beatriz tem lógica. Ela ficou muito ferida pelas minhas atitudes anteriores e deve ter encontrado quem corresponda aos seus anseios. Isso é natural e compreensível. Mas o tratamento que me deu é de quem guardou mágoa e perdeu amor por mim. Ah, não tem importância! Não posso me insurgir contra realidades. Eu fui culpado e devo pagar por isso. Aceito e me conformo. Mas eu me justifico, porque fiquei devendo explicações. E é esse reparo que vou fazer. Exclusivamente. Será um ato apenas de satisfazer uma obrigação de consciência. Ela não vai poder me censurar por cumprir apenas um ato de cortesia.” Alterando completamente seus objetivos quanto à Beatriz, Candota sentiu-se justificado e coerente. Iria à casa dela, mas deixaria o coração acorrentado. Daria o recado sem entrar em detalhes, pediria desculpas pelo segredo que tinha sustentado e pronto. Ficaria em paz com sua consciência e iria cuidar da vida. AGORA OU NUNCA MAIS Candota fez 345 questão de ser pontual. Às 8 horas, esforçando-se para conter a ansiedade, apertou a campainha. A própria Beatriz atendeu. Resplandecia de beleza. Era de transtornar aquele coração apaixonado, se Candota antes não o tivesse trancado. Parece que, de caso pensado – para pisar mesmo –, se esforçou para aprimorar a aparência. Apresentou-se com um vestido justo, decote caprichado e sem agressividade, rosto suavemente maquiado, emoldurado por belos cabelos bem arranjados e o costumeiro par de brincos pendentes. Aqueles olhos grandes, que tanto o atraíam, pareciam agora mais expressivos na composição daquele rosto. Candota, no entanto, contido em suas emoções, estava decidido a cumprir a atitude estabelecida em sua mente. — Boa noite, Beatriz – fez cerimonioso. — Boa noite, Candota. Faz o favor de entrar. Beatriz, à frente, dirigiu-se à sala. Mostrou uma poltrona, onde Candota se assentou. Acomodou-se numa cadeira ao lado e ficou em expectativa. Não fez nenhum comentário, nem a respeito assunto. do próprio Candota, visitante, previamente nem sobre qualquer condicionado pela outro razão, iniciou a execução do que se propusera: — Acho que me compete dar uma explicação, a mais satisfatória possível, sobre alguns assuntos que deixei pendentes por ocasião do nosso relacionamento. É questão que pesa na minha consciência e não tenho outra intenção, ao te procurar, do que cumprir uma obrigação. Beatriz, sob uma condição adrede estabelecida, não se deu por tocada. Continuou em silêncio e atenta. AGORA OU NUNCA MAIS — Como 346 você deve saber, estive por longo período ausente do país. Só agora me surgiu a oportunidade de voltar e, por isso, estou aqui. Por extrema necessidade, mantive um segredo durante muito tempo, mas hoje eu posso te contar. Nesse ponto, Candota observou que Beatriz continuava impassível, não demonstrando a mínima curiosidade. Parecia que a mágoa, ou o ódio, ou o orgulho, estava impondo aquela atitude. Sem ser interrompido, relatou resumidamente a história que escondeu e não foi perguntado sobre nada. Dando-se por satisfeito e sentindo aquele ambiente gelado, arrematou suas explicações: — Era isso que eu precisava dizer. Agradeço por me ter dado a oportunidade de contar meu segredo e lavar minha consciência. Levantando-se, como a indicar a intenção de partir, estendeu a mão para Beatriz e se despediu com um simples boa-noite. Beatriz apenas retribuiu a despedida e abriu a porta de saída. Candota decidiu não pensar mais naquele amor. Deveria distrair-se com alguma atividade. Seria insanidade ocupar a alma com emoções descabidas. Aquela ferida por certo seria curada. Procurou se ocupar, visitando os amigos e fazendo preleções sobre a situação anômala por que estava passando o mundo. Essas palestras e conferências eram feitas com dupla satisfação. Sentia-se útil em prestar esclarecimentos ao povo e esquecia as inquietudes do coração. Estava satisfeito com essa ocupação, mas começou a encontrar alguns atritos. As paixões e os egoísmos de alguns não cediam facilmente. Passou por alguns momentos AGORA OU NUNCA MAIS 347 desagradáveis. Teve, no entanto, algumas boas reuniões com componentes de sociedades ecológicas. Nelas, passava horas discorrendo sobre sua teoria e isso era bom. Pelo menos enquanto estava ocupado nessas atividades. Na quietude da meditação, no entanto, o apaixonado personagem se esforçava para seguir a razão e desprezar o coração. Quanto mais tentava se libertar da lembrança da amada, mais teimava ela em permanecer no pensamento. Ruminava auto-argumentos para afastá-la da mente; tudo em vão. Usando a imaginação, formulou uma solução para esse insistente capricho compensação. do Colocaria sentimento. a imagem Uma inerte estratégia de de Beatriz enclausurada num relicário especial, guardado no fundo do coração. Dali não sairia e ali permaneceria como eterna e ideal amante. Seria ali conservada por todo o tempo que vivesse, sempre a mesma, sempre viva e só para si. Com isso, satisfez figurativamente os clamores da alma, único recurso julgado possível. Quatro dias após a visita de Candota à Beatriz, Dona Rosa, que prestava serviço voluntário em uma creche, chega da jornada e se apressa em dar notícia ao filho. — Eu soube, lá na creche, que o pai da Beatriz foi atropelado por uma ambulância e que está passando mal. Parece que o acidente foi grave! — Como foi? Explica mais! — Dizem que ele saiu meio afobado da loja pra pegar o Banco ainda aberto e, numa esquina, parece que ele não viu a ambulância. AGORA OU NUNCA MAIS 348 — Uai! Mas quem faz o serviço de Banco é a Beatriz. Sempre foi ela! O que que houve? — Ah, esses detalhes eu não sei! Só sei disso que te falei. — Coitado! Ele é um homem bom. Tomara que consiga se recuperar. A família deve estar sofrendo. Dois dias depois, Candota leu no jornal o convite para o enterro de Juarez. — Mãe, o Seu Juarez morreu! Deu no jornal de hoje. — Que pena! Lamentável! Baque medonho pra família. Você vai no enterro? — Acho que não. Não tenho mais vínculo nenhum com a Beatriz. O nosso namoro é coisa do passado. Já acabou mesmo! E parece que ela já tem outro namorado. Acho que vou mandar um telegrama. — Você deve ir! É o cumprimento duma obrigação social. Sua presença é conforto pra família enlutada; não tem nada a ver com namoro. Afinal, você sempre recebeu consideração lá. — É que eu vou ficar deslocado, sem graça!... — Compareça e dê presença de apoio. Que não seja pela Beatriz, mas pelo respeito à viúva pelo menos. — Como separar as duas coisas? — Não tem que separar nem juntar. A homenagem, no comparecimento, sempre é dirigida ao falecido. Os familiares são apenas as testemunhas desse preito. — Como é que eu faço? Você não sabe, mas fui maltratado pela Beatriz! — É fácil! Seja formal. Cumpra as normas pra esses casos. Sua ausência pode ser reparada pela família, mas a presença nunca vai ser censurada. AGORA OU NUNCA MAIS 349 — Talvez você tenha razão. Vou pensar. Entrando no cemitério, Candota observou três conjuntos de velório. Um mostrava-se vazio e dois apresentavam-se movimentados, denotando que ali penavam duas famílias enlutadas. Ainda de longe, tentou identificar onde estaria o féretro de Juarez. Parecia ser o que mostrava maior aglomeração. Juarez era muito relacionado e estimado no círculo do comércio miúdo, onde atuava no balcão de sua própria loja e nas atividades corporativas da classe. Chegou a ocupar, por dois períodos, a presidência da Associação dos Lojistas de Varejo. Efetivamente, ao se aproximar, leu a placa postada à entrada do recinto, indicando o nome do pranteado. Com jeito e cuidados, foi se introduzindo no ajuntamento, olhando rumo ao centro onde estava o caixão. Enquanto se aproximava, tentava localizar a viúva e as duas filhas. Intentava cumprir o protocolo e se retirar logo. Ficou parado por alguns instantes no centro do velório e notou a viúva, transfigurada e sofrida, sentada à cabeceira do caixão, ao tempo em que era consolada por parentes. Parecia alheia aos circundantes. A pequena distância, sem choro, mas muito abatidas, estavam as filhas, recebendo as expressões de solidariedade e pesar. Resolutamente, Candota se dirigiu à viúva, pondo a mão em seu ombro e murmurou as condolências. Em seguida, voltando-se até onde se encontravam as irmãs, apresentou os pêsames a Jandira. Dirigindo-se a Beatriz, estendeu-lhe a mão enquanto se preparava para pronunciar os pêsames. Nesse AGORA OU NUNCA MAIS 350 momento Beatriz, num estouro incontido de lágrimas, abraçouse firmemente a Candota e implorou com insistência: — Me perdoa! Me perdoa, Candota! Candota se viu atônito. Não esperava por isso. Beatriz continuava abraçada a ele enquanto se compungia em lágrimas sentidas, quase em desespero, e repetindo: — Me perdoa! Me perdoa! Aquela recepção fria do último encontro tinha alcance mínimo ante tal demonstração de remorso. Mas, conforme Candota atinou, Beatriz estava muito ferida na consciência e, por isso, implorava perdão. Não parecia manifestação de amor, mas agudo arrependimento. Isso pedia comiseração e ternura. O sofrimento de Beatriz tocou fundo na alma de Candota, que cuidou de confortá-la: — Está perdoada. — Você me perdoa mesmo? — Eu te perdôo de coração. Fique tranqüila. Não tem nada a temer. Console-se e pode ficar em paz. — Obrigada, Candota! Depois eu vou te agradecer – disse Beatriz, mais conformada, enquanto soltava o abraço e enxugava as lágrimas. Candota aproveitou que alguém estava à espera para oferecer condolências e se retirou, esquivando-se no meio da multidão. Foi para casa com a consciência leve, pois cumprira sua obrigação social e ainda tinha confortado Beatriz, praticando uma boa ação. Em casa, ficou pensando: “Devido aos sofrimentos causados pelo atropelamento e morte do pai, Beatriz ficou com fragilidade emocional. Me vendo, sentiu remorso pela conduta AGORA OU NUNCA MAIS 351 que teve comigo e não suportou a manifestação da alma. É isso; só pode ser!” Candota não se preocupou em dar maior importância ao caso e tentou esquecê-lo. Aquilo, por certo, não tinha passado de pequeno acidente, e Beatriz também o esqueceria logo. Dois dias depois, à noitinha, estando os pais na sala assistindo ao noticiário da televisão, Candota chegou e se acomodou numa poltrona, a tempo de assistir às últimas notícias. Terminado o programa, Alfredo comentou: — Agora, com a diminuição do consumo de petróleo, os países produtores, que vivem quase que exclusivamente da venda do óleo, estão em reunião. Discutem a melhor maneira de enfrentar a situação. Uns dizem que está tudo bem, porque podia ser pior; outros, que o futuro vai ser sombrio pela possibilidade do governo apertar mais as medidas de consumo. O que você acha disso, Candota? — É isso aí! Não tem outro caminho. Queiram ou não, os produtores de petróleo vão ter que aceitar a realidade. A tendência é o petróleo perder importância econômica pela contínua diminuição do consumo. Esses países vão ter de retomar as atividades anteriores. É questão de adaptação. Cada país vai ter a sua própria solução. — E quanto a essa revolução ecológica? O que que você acha? — Tudo indica que as medidas tomadas até o momento são tímidas. Isso é só o começo. Muitos lá no CGE defendem correções mais duras. Tem prevalecido a opinião de esperar a avaliação das indicações científicas e depois decidir. Tenho recebido notícias do meu amigo francês, de quem já te falei. AGORA OU NUNCA MAIS 352 Até o momento, não tem novidade, mas esperamos algumas definições. Nos próximos dois meses, já vamos ter os primeiros dados. Na ocasião, eu te comunico. — Então, as perspectivas são de piorar! – exclamou Dona Rosa, preocupada. — O que as pessoas precisam entender é que estamos iniciando outra era. São os primeiros passos pra construir uma nova civilização. — A era de desgraças! – resmungou Alfredo, aborrecido. — Não, papai! Tudo é questão só de adaptação. Temos é que amoldar nossa existência à realidade do meio e, também, ajustar nossa mente pra aceitar pacificamente esse retorno. Eu defendo que esse ajuste deve ser lento. Pra humanidade não sofrer muito. — Isso tudo você já tinha explicado. Vá lá, eu aceito! E daí? O que que podemos fazer pra sofrer menos? – perguntou Alfredo, demonstrando contrariedade. — Se ajustar à realidade e se harmonizar com a Natureza. Pra tornar as coisas mais fáceis, devemos enxergar bem claro que o objetivo do arranjo mundial é tornar as pessoas autosuficientes. — Como? — Seguindo diversos princípios. — Princípios? — Um deles: cada pessoa deve morar onde exerce sua atividade. Segundo: a ocupação individual deve ter o objetivo de auto-suficiência da microcomunidade em que vive. Conseqüência: com isso, fica eliminada a necessidade de AGORA OU NUNCA MAIS 353 transporte de pessoas e mercadorias. As coisas vão sempre ficando mais fáceis. — Isso é impossível! – ponderou Dona Rosa. — Impossível por quê? — Porque os que trabalham numa fábrica não têm condições de morar perto. Não vê o caso do Zenon? — A tendência dessa fábrica é ser extinta. Em última análise, essa indústria, ou é poluidora, ou vai se tornar desnecessária pelo avanço dos critérios da nova civilização. — E o que será do Zenon? E a família dele? Como é que fica? — O Zenon terá de se adaptar também. Pra explicar bem explicado: o ideal é que todos voltem às origens. Cada família, agrupada numa unidade social, vai ter o seu pedaço de terra e ali vai cultivar os alimentos, trabalhar e morar. Pronto! — Eh, você acha fácil! — É fácil, pensou!? Esta sim! Vida simples, civilização moderna sem atribulações. Já é que construiu essas complicações todas. Antes, elas não existiam, e as pessoas viviam muito bem. Até o computador não vai fazer falta nenhuma, pra meu próprio desencanto. — Isso realmente seria o ideal! – concordou Alfredo. Mas onde encontrar tanta terra pra tanta gente? — Teoricamente, é fácil resolver essa equação: diminuindo tanta gente. — Eh! Ainda bem que é teoricamente! Candota achou melhor parar por aí. Sentiu aperto no peito com assunto tão triste. Antevia uma solução radical que poderia demorar a ser implantada e não justificava, portanto, AGORA OU NUNCA MAIS 354 trazer para os pais sofrimentos antecipados. Achou oportuno, no entanto, recomendar: — Papai, acho que a melhor coisa que vocês devem fazer é reunir uns parentes e amigos escolhidos, mais a Tê com a família, formando uma cooperativa ou comunidade, e comprarem um imóvel rural, mudando-se todos pra lá. — Deixar isso tudo aqui? A nossa casa foi feita com sacrifícios que você nem imagina. Você era criança então. — Nada é eterno! Você sabe! — Bom, você deve saber o que está falando. Está no miolo das decisões do governo global. — Não conte com os proventos da aposentadoria; eles podem faltar no futuro. — Também!? — Não esqueça que estamos num processo de modificação, e tudo é possível. Mais cedo ou mais tarde, todos vão ter de abandonar as cidades e morar no campo. Isso vai ser imposição dos governos, como recurso lógico pra sobrevivência. Seguindo a minha orientação, você pode ir providenciando essa mudança desde hoje, evitando atropelos quando ela for obrigatória. — Pra você tudo é muito fácil! — Eu dou a receita! A união faz a força. Juntem seus recursos e comprem um bom terreno rural. Não adquiram mais terra do que a necessária, porque o excesso pode ser tomado pelo governo. — E o que vamos fazer na roça? AGORA OU NUNCA MAIS 355 — Ah, papai! Exercitar a função primária e natural de sobrevivência. Produzir alimentos de subsistência e algum excesso que vai servir pro escambo com os vizinhos. — Isso é volta ao primitivismo! — Não, papai! A cultura intelectual vai ser preservada, mas vai ficar contida dentro de um limite comunal restrito, suficiente pra uma vivência digna, tranqüila, sem ganância, com justiça, e contemplação direta da Natureza. Se pensar bem, isso é enriquecimento espiritual e processo de sabedoria. Pra que possuir mais do que a gente precisa? Esta civilização progressista é enganadora e autodestrutiva. — Se todos agirem assim, como vão ficar as cidades? — No final, esse vai ser o caminho de todos, como já expliquei. As cidades, vazias no futuro, vão ser testemunhas históricas duma civilização desnaturada. — Isso é horrível, Candota! É o fim do mundo! — Não, papai! É o fim da atual civilização, justamente pra preservar o mundo. — Nunca aconteceu isso antes! — Já, sim. Você sabe que isso não é novidade. Diversas civilizações florescidas no nosso planeta se imolaram nas próprias contradições e deixaram seus monumentos como marco de existência e demonstração de que as incúrias humanas sempre pagam o preço da insensatez. Alfredo ficou pensativo por algum tempo e deixou morrer o assunto. Dona Rosa, apreensiva, interrompeu a pausa e perguntou: — Meu filho, me diga uma coisa. Você vai realmente voltar pros Estados Unidos? AGORA OU NUNCA MAIS 356 — Eu tive trinta dias de licença, e o Conselho precisa da minha volta pra tomar algumas decisões importantes. Nosso trabalho está só no começo. Ainda tem muita coisa pra ser feita. — Você não pode voltar! Nós precisamos de você aqui. Com essa situação anormal e sem visão de futuro... sei lá! — Ô mãe, pode ficar tranqüila! Tudo vai ficar bem! Você está preocupada à toa. Eu já deixei o papai orientado. — Mas você não tem necessidade de ficar lá. Além disso, nós precisamos de você é aqui! – e começou a chorar. — Deixa disso, mãe! Não precisa chorar! Você está preocupada com o futuro, mas diz a sabedoria popular que devemos sempre viver o dia de hoje. — Mas amanhã vai ser dia de hoje também! A gente precisa pensar no amanhã! — Em qualquer circunstância, todo futuro é trágico. Não viu o caso do Seu Juarez? Um dia todos nós vamos ter que morrer mesmo! Por isso, o melhor é não pensar nessas coisas. — Eh, meu filho! Você tem razão, mas desconhece o que é coração de mãe! O Guilherme está vivo no meu coração até hoje! — Não conheço, mas imagino. Deixa de sofrer, vai! Aproveita enquanto estou aqui e feliz. Alfredo ouviu tudo e não se manifestou. Ficou nos seus pensamentos. Dona Rosa, pretextando ver algum serviço na cozinha, saiu da sala como se estivesse Candota achou correspondência melhor ir eletrônica. dias; devia estar acumulada. até o fugindo da situação. escritório Descuidara-se consultar dela por sua alguns AGORA OU NUNCA MAIS 357 Entre algumas mensagens depositadas no computador, havia notícias de Bento e de De Lembert. Aquele informava que não conseguiram retirar Klintok da prisão e que novo complô, com participação de alguns políticos importantes, tinha sido debelado. Dava notícia de significativo aumento de suicídios na classe empresarial. O francês comunicava que alguns dados climáticos mundiais tinham chegado ao CGE, mas que Devers não lhes dava importância. Aguardaria os registros científicos totais e definitivos antes de apresentá-los em plenário. Pelo visto, a ausência de Candota não impedia as reuniões. O telefone interno tocou, e Candota atendeu. — É a Terezinha que quer falar com você – disse Dona Rosa. — Está no ramal quatro. — Oi, Tê! — Eu soube que você compareceu no enterro do Seu Juarez. Fez bem. Eu não pude ir, mas hoje telefonei pra Beatriz, apresentando meus pêsames. — Ela está bem? — Parece que já está conformada. Ela é que me contou que você esteve no velório. Disse que pretendia te procurar no fim do mês pra te agradecer. Aí eu contei que você vai voltar pros Estados Unidos por estes dias, e ela parece que levou susto. Disse que não sabia disso e que vai aí hoje mesmo pra te visitar. Eu fiquei sem entender. Vocês não terminaram o namoro? — Terminamos, sim! Tenho impressão que ela vai me procurar pra agradecer minhas condolências. É só isso! — Bem, eu achei que era conveniente você saber. AGORA OU NUNCA MAIS 358 — Claro! Fez bem em me ligar. Foi até um grande favor. Candota se despediu da irmã e percebeu que estava com as mãos frias e sentiu o coração bater mais rápido. Estava perturbado com a súbita notícia. Não tinha dado importância àquela conversa de Beatriz, lá no cemitério. Acreditou serem palavras de momento e não levou a sério a visita prometida. Percebendo que Beatriz podia cumprir a intenção logo, apressou-se a melhorar a aparência. Foi ao quarto e ali se demorou nesses cuidados. Deu uma lustrada nos sapatos e arrumou o cabelo ao espelho. Na sala, com o coração batendo mais forte, porque na expectativa de visita anunciada, ficou lendo, ou fingindo ler, uma revista. Não precisou esperar muito. A campainha tocou, e Candota sentiu o prazer de abrir a porta. Era Beatriz, como esperado. Vestia-se com simplicidade e sem pintura. Assim, para Candota, que a olhava com olhos da paixão, mais bonita Beatriz lhe parecia. — Fico satisfeito que tenha vindo. Vamos entrar – disse Candota, sério, após os cumprimentos. Dirigiram-se à sala, onde se assentaram. Curiosa por ter ouvido a campainha, surgiu Dona Rosa que, após algumas palavras de consolo à visitante, se retirou. — Como vão passando sua mãe e sua irmã? Mais resignadas? — De certo modo, estão bem. Foi um golpe duro!... — Faço uma idéia! Também não é pra menos! Seu pai era muito estimado. — E foi muito repentino. Deu pra desorientar a gente. AGORA OU NUNCA MAIS 359 — Vão continuar com a loja? — Eh, estamos estudando! Acho que eu é que vou tocar o negócio, porque já conheço o serviço. Mas a minha irmã deve me ajudar. Ainda não tratamos disso. Você sabe, fica tudo tão confuso! — De fato! Candota sentia-se constrangido, sem iniciativa de assunto, por tudo o que lhe tinha acontecido em relação à Beatriz e que o tinha levado agora a uma posição passiva. Contudo, ficaram por algum tempo mantendo conversa polida e formal. Num momento mais prolongado de silêncio recíproco, Candota encontrou a saída de se levantar e dizer que ia pedir à mãe que trouxesse algum quitute. De certo modo, isso aborreceu Beatriz, que franziu a testa e pediu que não trouxesse nada, alegando que estava indisposta. Candota notou que a amada se mostrava um tanto aflita. — Senta, Candota! Não leva a mal, mas eu não vou aceitar nada mesmo. — Está bem! Não vou te contrariar. — Eu preciso te dizer umas coisas – disse Beatriz, modulando a voz de modo amigável e acolhedor. Candota, surpreso e curioso com essa mudança de rumo da conversa, empalideceu e se esforçou para se dominar. Ficou na expectativa. — Quando foi lá em casa, você me revelou o segredo que guardava por tanto tempo. Mas você não me disse que ia voltar pros Estados Unidos! — Achei que isso não era importante, apenas detalhe. Naquele dia, a minha obrigação, como te disse, era explicar os AGORA OU NUNCA MAIS 360 motivos das minhas atitudes anteriores. Penso que dei total esclarecimento — Você está certo, mas não levou em conta os meus antigos sentimentos... que... apesar de tudo... – fitando o rapaz com aqueles belos e sedutores olhos – ainda não morreram e fazem parte da sua história. — Mas eu não sabia disso! Não tinha como adivinhar! Você não me deixou nenhum sinal de interesse. Até pelo contrário. Você... — Que isso! — ...ficou insensível com minha justificativa e me deixou envergonhado. — Quanto esperando que a isso, você eu me tenho dissesse que esclarecer. alguma palavra Fiquei que confirmasse aquele amor que antigamente me confessava. Mas... “Aquele amor” – repetiu Candota mentalmente. — ...você apenas me fez um... como é que chama isso?... um... relatório e foi embora. — Mas, meu amor – deixou escapar – você já tinha me prevenido antes que ia só me ouvir. — Ora, Candota! — Eu te confesso que naquela noite parecia que eu falava pra uma mulher de cera. — Quanto a isso, reconheço que fui egoísta e agi mal. Foi erro meu. Mas eu me penitenciei; pedi seu perdão e você me perdoou. — Te perdoei com o melhor dos meus sentimentos. AGORA OU NUNCA MAIS Beatriz, levantando-se 361 da poltrona, chegou perto de Candota e disse: — Você não percebeu? Eu estava magoada com você, que passou tanto tempo no exterior sem me mandar qualquer bilhetinho; nem no meu aniversário! — Pensei que nosso namoro tivesse terminado no ano passado. Eu não podia te iludir. Você lembra que te liberei? Eu estava numa... Foi interrompido por Beatriz que, com delicadeza, lhe pôs a mão aberta na boca e abriu a alma: — O certo é que, com sua volta, eu mantinha alguma esperança de retomar nosso namoro. Antes de você voltar, terminei o relacionamento que mantinha com um rapaz. Era um modo de tentar te esquecer. Mas não adiantava nada. Candota se sentiu nas nuvens. Foi incapaz de dizer qualquer coisa. Parecia hipnotizado. Beatriz pegou as mãos de Candota e, olhando-o nos olhos com o amor expresso no rosto e doçura na voz, confessou: — Não vai me dizer nada? Você duvida que eu te ame ainda? Eu só penso em você. Esse tempo todo! Nesse ponto, Candota entrou em delírio. Estava refeito aquele grande amor da sua vida. Sentiu-se renascer. Perdendo qualquer escrúpulo que ainda pudesse ter e, hipnotizado por aqueles dois belos olhos, deixou a alma se manifestar com total liberdade e recuperou a fala, dizendo: — Você quer que eu diga, vou dizer. Depois não se arrependa! Beatriz, em silêncio e expectativa, ficou apenas olhando com candura o amado, enquanto lhe apertava as mãos. AGORA OU NUNCA MAIS 362 — Nesse tempo todo, lá nos Estados Unidos, fiquei conhecendo milhões de moças, mas nenhuma parecida com Beatriz, brasileira, bonita, solteira, prestes a se casar com Candota. Beatriz não esperava tão imprevista e bela declaração de amor. Abraçou-se a Candota, apertou-o e lhe deu um beijo de concordância. Ficaram por algum momento trocando carícias e se beijando mais. Estavam entendidos. E selados os destinos. Foram sentar-se no sofá, juntinhos. — Meu amor, precisamos conversar sobre nosso casamento – disse Candota, ainda pálido de emoção, mas bastante animado e feliz. — Temos mesmo muita coisa pra ajustar. Você não vai voltar pros Estados Unidos, vai? — Eu não tinha te explicado os pormenores da minha situação, mas vou contar agora. — Fica aqui, amor! Não vai, não! — Uma das questões é que tenho um cargo importante em órgão do Governo Mundial. Tirei trinta dias de licença e tenho que retornar. Afinal, esse governo está executando o meu programa e sou uma peça na engrenagem mundial. — Tem vários embaraços na nossa situação. Primeiro, o pouco tempo que temos. Segundo, eu aqui e você lá? Não é isso que a gente quer, não acha? — Beatriz, o principal é que nós nos amamos e vamos casar. Por mim, a gente podia ir agora mesmo pros Estados Unidos e casar lá. Mas e o passaporte e a reserva de passagem? Como é que fica? Lá nos... — Lá o quê? AGORA OU NUNCA MAIS 363 — Nada! — Também não é só isso! Além da demora desses papéis, toda moça sonha com aquele ritual de casamento. Esse é o dia mais marcante na vida de uma mulher. Acho que o nosso casamento é muito importante pra ser feito de qualquer jeito. — Você me desculpe. Eu não queria falar o que falei. É que estou meio afobado. Eu estava era sonhando. Bobagem minha! — Eu também penso que não podemos ficar sonhando. Temos que enxergar é a realidade. Gasta algum tempo arranjar os papéis e tomar as providências. E você com essa viagem em cima da hora! Não dá pra adiar? — Amor, você precisa compreender a minha situação. Não tem jeito! — Tá! Pra quem esperou tanto tempo, esperar mais uns dias não vai fazer diferença. — Depois você marca a data do casamento. Eu ainda tenho dois dias de licença. Dá tempo pra algumas providências, mas o resto fica aí por sua conta. Pede logo o passaporte, que é demorado! — Quanto tempo você vai ficar lá? — Vai depender só da sua definição pra data do casamento. — Você vai mesmo? — Não tem outro jeito, amor! Isso é imperioso, mas estarei aqui alguns dias antes da data que você marcar. Em seguida, vamos pros Estados Unidos e vai ficar tudo bem. — Vamos ter que morar lá? AGORA OU NUNCA MAIS 364 — Não tem escolha. É lá que trabalho e recebo o meu ordenado. É lá que preciso permanecer pra corresponder ao meu compromisso. E lá vamos ser felizes. Eu te garanto! — Você está vendo as coisas muito fáceis. — E são fáceis! Basta a gente simplificar os protocolos da vida. As providências todas pro casamento vão ficar a seu cargo. O que você fizer, estou de acordo. Depois a gente acerta os detalhes. Entendendo que doravante sua vida estava ligada ao destino do futuro marido, Beatriz expressou belo sorriso de felicidade, mostrando sua concordância. Pegando Beatriz pela mão, Candota disse: — Vem! Vamos contar pra minha mãe. Nos dias seguintes, Candota se apressou nas providências para o matrimônio, inclusive com a protocolar visita à Dona Berta que o recebeu muito bem e concordou com o casamento rápido. Apenas lamentou, chorosa: — Acabei de perder meu marido e agora vou perder minha filha! Vocês vão embora pra longe e talvez eu não veja mais a Beatriz. Foi triste a missão, mas os amantes não se abalaram em seus propósitos. Desmancha-se uma família, forma-se outra. É o ciclo imperioso da vida. Antes do retorno de Candota, ficaram as providências encaminhadas e os planos combinados. AGORA OU NUNCA MAIS 365 11° CAPÍTULO Já em Washington, no fim da licença, Candota se hospedou no mesmo hotel, onde encontrou De Lembert. — Como foi lá? – perguntou o amigo. — Tudo bem. E aí? Como está o andamento? — Muito trabalho! Tem tido rebelião em alguns países mais atrasados, mas o exército tem colaborado dentro do possível. A culpa é de alguns governos nacionais que têm mostrado indolência ou incompetência. O pior é que alguns governos não vêm cumprindo as normas. Acho que o Devers vai pôr isso em discussão. — Chegaram mais informes? — Têm chegado, mas Devers não está satisfeito ainda. — Amanhã, na reunião, vou tomar conhecimento da situação. Candota, feliz e entusiasmado com a conquista de Beatriz, apressou-se em telefonar para Bento, dando a boa nova. Foi uma conversa demorada, e os amigos puseram em dia seus assuntos. No dia seguinte, Candota se apresentou ao presidente do CGE, agradecendo a licença concedida e comunicando seu breve casamento, em data a ser marcada. — Conto com a sua benevolência, Devers. Vou precisar de 15 dias de ausência, mas voltarei casado e meu coração não AGORA OU NUNCA MAIS 366 mais ficará partido em dois pedaços, separados por quarenta mil quilômetros. — O que que é isso! A distância é grande, mas nem tanto! Não chega a dez mil. — Não, Devers. Em assuntos de coração, as distâncias aumentam muito. Você talvez nem saiba disso. — Não precisa dizer mais nada! Já vi que você está apaixonado sem retorno. Talvez essa separação até atrapalhe sua atuação no Conselho. — Não tem perigo. Tenho consciência dos meus deveres. E aí? Vai poder? — Vá lá! Pode contar com meu apoio, mas 15 dias é muito. Quando marcar a data, você me avisa, e aí vamos ver. — Obrigado. Como estão os informes científicos? — São insuficientes ainda. Temos que aguardar mais tempo. Diversos relatórios de fiscalização vão dar muito trabalho. Hoje vou pôr em pauta um desses problemas. Reunida a assembléia, e apoiado em boletins de fiscalização, o presidente abriu a sessão: — Consoante relatório já em poder dos conselheiros, as normas decretadas pelo Governo Mundial não vêm sendo observadas com a devida responsabilidade por parte de alguns governos regionais. Quero ouvir a opinião de todos. — Entendo que, além da correção rigorosa, as normas devem ser mais rígidas pra esses países. É uma forma de impor castigo e seriedade – disse um dos conselheiros. — Concordo com a opinião do colega porque, já que tais governos cumprem as determinações pela metade, que se dê obrigações em dobro. AGORA OU NUNCA MAIS 367 — Se perdurarem essas negligências sem uma resposta enérgica da nossa parte, isso pode se alastrar. Também concordo com o colega. — Como os países listados são culturalmente mais atrasados, penso que somente a linguagem mais dura será compreendida. O entendimento e opiniões dos demais conselheiros tomaram um rumo quase que de unanimidade. Depois de bem discutida a questão, ficou decidido encaminhar o assunto ao Departamento Político Especial, com a recomendação de ser empregada a intervenção militar, posto que o plano mundial não poderia ficar à mercê da negligência de alguns. Foi medida firme, mas indispensável. Não era fácil a labuta diária no Conselho. Conflitos de interesses e desajustes sociais surgiam com freqüência em todas as partes do mundo. Contudo, com acertos e desacertos, o plano governamental estava avançando no rumo pretendido. As reuniões do CGE já tinham caído na rotina, mas os participantes estavam prevendo dias tumultuados e difíceis quando tivessem que avaliar os informes científicos. Candota sabia disso e torcia para que o casamento fosse realizado antes. Quase diariamente, Candota se comunicava com Beatriz, informando-se dos preparativos para o enlace e trocando mensagens de carinho e expressões de amor. Numa dessas ocasiões, acordaram a data para a cerimônia, que seria em 14 de maio, quase dois meses depois daquele dia feliz. Devers foi logo informado daquela decisão a fim de que ficasse assegurada, com boa antecedência, a certeza da AGORA OU NUNCA MAIS 368 concessão da licença pedida. Mas o presidente do Conselho não se mostrou muito liberal. — Vou te conceder dez dias pro casamento. Temo que você possa fazer falta nos nossos trabalhos, porque as coletas de indicações estão chegando e não demoram a se completar. Nessa ocasião, não quero que você esteja ausente. — Mas a licença de 15 dias é o mínimo. Eu soube que tem tido atraso nos embarques aéreos. Tenho que jogar com fatores imprevisíveis pra não chegar lá depois do prazo. Já pensou!? Um casamento sem o noivo? Vão pensar que eu fugi! — Você está exagerando. Dez dias é suficiente. Mais não posso te dar. Se tiver algum imprevisto, você me avisa. Candota se conformou. Tratou de fazer os cálculos e programar os passos. Previu a chegada ao Brasil com antecedência de dois dias e avisou a noiva. Tinha que reservar cinco dias para a lua de mel. Tratou de marcar logo a passagem aérea e ficou na esperança de que tudo desse certo. Depois daqueles primeiros dias de tumulto, o tráfego aéreo tinha diminuído, e estava mais organizado, e Candota embarcou na data prevista. Chegou ao Brasil, como programado. Foi recebido no aeroporto com muitos beijos e abraços de Beatriz. Estavam felizes e, segundo informou a noiva, tudo arranjado na forma do seu desejo. O casamento foi singelo e restrito, em decorrência das contenções sociais em vigor. A recepção, moderada e reservada para os parentes mais próximos, foi realizada na residência de Alfredo. Ali, com a parcimônia exigida pela realidade do momento, mas com emocionadas manifestações AGORA OU NUNCA MAIS de alegria, 369 foram festejados os recém-casados com as atenções, os salgadinhos e brindes de praxe. À noite, depois de longa espera no aeroporto, devido ao atraso do vôo, embarcaram para Nova York. Descansaram por dois dias num hotel da cidade e viajaram para a Região dos Lagos, roteiro escolhido por Beatriz. Os recém-casados, alheios aos amargores da ocasião, sentiam-se felizes e realizados. Situavam-se num universo diferente, de encantamento e otimismo; um mundo só deles, construído sobre sonhos de esperança. Um mundo que, na realidade, caminhava para outras dimensões e perspectivas. Foram dias vividos na plenitude do presente, sem preocupações de futuro. Festejaram as auroras dos dias, as primaveras dos anos e a sobrevivência do amor. Prestes a esgotar o prazo da licença, viajaram para a capital, onde Beatriz se maravilhou com a bela casa mobiliada que Candota tinha alugado em um bairro sossegado. — Você caprichou na escolha da nossa casa – elogiou Beatriz. — Tudo aqui me agrada e me sinto muito leve, sobre nuvens. Só vou sentir falta duma coisa. — Não consigo adivinhar. Do que é, meu amor? — Vou sentir a sua ausência quando estiver trabalhando. O dia vai custar a passar, mas vou ficar te esperando. Tira um ano de férias e fica aqui comigo. — Quem dera! Se dependesse de mim, pra ficar com você eu tiraria férias eternas. Mas a realidade é outra. Amanhã começa o meu trabalho duro! AGORA OU NUNCA MAIS 370 Enquanto isso, no CGE, Devers estava catalogando os últimos dados de avaliação que haviam chegado e redigindo a súmula que seria entregue aos conselheiros. Ao chegar ao serviço, Candota se apresentou ao presidente do Conselho, que lhe disse: — Antes de qualquer coisa, meus votos de felicidades pelo seu casamento. — Obrigado. — Gostei de ver! Você cumpriu os dez dias! Meus parabéns por isso também. Não podia mesmo te dar mais tempo. As informações se completaram, e hoje mesmo vamos tratar disso. Estava apenas te esperando. Iniciada a sessão, Devers fez a apresentação dos informes: — Vocês estão recebendo uma coleção de informações científicas que se completaram nos últimos dias. Peço que façam um estudo delas e dêem parecer na reunião de depois de amanhã. Estão dispensados por hoje e amanhã. Quando chegou cedo em casa, Beatriz ficou surpresa. — O que houve! Tirou as férias de um ano? — Antes fosse! Trouxe é um relatório que deve ser examinado em dois dias. Na próxima reunião, temos que oferecer nossa opinião. É muita responsabilidade! Candota passou diversas horas na sala, examinando o documento e meditando. Após algumas anotações feitas num caderno, deu por encerrada a tarefa do dia e voltou sua atenção para a esposa que, paciente, não tinha interrompido o estudo que o marido fazia. AGORA OU NUNCA MAIS 371 No dia seguinte, Candota foi ao escritório e ligou o computador. Chamou o seu programa, que estava atualizado com as últimas medidas do governo, e fez alguns ajustes. Cuidadosamente, foi introduzindo alguns informes codificados por índices e outros apurados em suas anotações. Ao fim do dia, concluiu a análise e redigiu o parecer. À noite, saiu com Beatriz para se divertirem. Na reunião programada, após a introdução da pauta, feita pelo presidente, Candota foi o primeiro a ser chamado para ler o relatório de análise: “Examinei todos os aspectos dos informes apresentados. De modo geral, como supunha, não há alterações significativas nos índices apreciados. Isso era esperado porque, como já expusemos na teoria, a Natureza é demorada em suas reações. Por outro lado, focalizando isoladamente as indicações por objetivos, notamos o seguinte: a) o índice de reprodução humana continua inalterado, o que é natural devido ao fato de que somente daqui a dois anos terá expressividade; b) oitenta por cento das usinas termonucleares já foram desativadas, o que é um bom índice, mas ainda não produz reflexo favorável em apanhados concretos. Contudo o objetivo inicial está sendo alcançado em conseqüência da não-produção de lixo nuclear; c) as estatísticas relativas à preservação de árvores são favoráveis e com índices expressivos, mas insuficientes para melhor apreciação à vista do pequeno período de vigência; d) a circulação de veículos civis, nesse pequeno período, já alcançou a meta estipulada para o primeiro ano. As AGORA OU NUNCA MAIS 372 medições do ar acusam melhoria nas grandes cidades, mas não influem beneficamente, no entanto, nos apanhados globais daquele item. e) as indústrias de veículos, por força da diminuição da procura, automaticamente já reduziram a produção em dez por cento. Indiretamente, sabemos dos benefícios que essa redução traz para a Natureza; f) as restrições sobre as indústrias químicas estão sendo observadas, e os índices apontam estabilidade. Só de não crescer já é uma boa indicação; g) as pesquisas científicas cessaram, mas isso, em curto prazo, não implica alterações do processo ecológico.” — Eu peço aparte pra fazer uma observação – solicitou um conselheiro. — Recomendo que o colega se contenha até que Candota possa terminar sua exposição – interveio o presidente. Olhando para Candota e fazendo sinal, disse: — Prossiga. Candota continuou lendo o arrazoado: “Fiz projeções, apontadas pelos tendência, quase segundo nossos as pequenas observadores, desprezível, de e alterações identifiquei melhora das uma condições ecológicas. Isso, contudo, não me influencia na racional análise da situação atual. Entendo que devemos continuar estimulando os governos nacionais a proporcionar as condições de transferência dos habitantes citadinos para as comunidades rurais. Essas medidas produzem, pelas conseqüências sociais, muito mais benefícios ecológicos do que as demais normas AGORA OU NUNCA MAIS 373 restritivas. Concluo que, por medida de precaução, se reduza em dez por cento as atividades industriais de transformações químicas, pois são elas altamente prejudiciais. Além disso, esse critério condiz com os objetivos de saneamento do projeto governamental. Quanto às demais normas, entendo que ainda é cedo para ser feita melhor avaliação.” Todos os conselheiros se manifestaram a respeito. Alguns, mais rigorosos, entenderam que, por mostrarem os índices uma estabilização ecológica, deveriam ser tomadas medidas gerais mais severas. Outros teceram comentários mais ou menos consentâneos com a exposição apresentada. De Lembert concordou com as conclusões de Candota, mas argumentou que a redução das indústrias químicas deveria ser menor para evitar súbito desequilíbrio social. Concluiu dizendo: — Está em transformações. nossas Temos mãos poder o pra gerenciamento alterá-las a dessas qualquer momento. Nossa idéia se firma no princípio do parafuso: ir apertando sempre, mas devagarzinho. A lentidão no arrocho é compatível com a lentidão da Natureza e da acomodação do povo em novos sistemas de vivência, principalmente a migração pro campo, em assentamentos oficiais ou não. O presidente Devers também interveio, no final, lembrando: — Conforme conhecimento dos conselheiros, é preceito do Governo Mundial que o programa ecológico seja conduzido de forma cautelosa e gradativa, a fim de evitar movimento bruscos na reação da sociedade. AGORA OU NUNCA MAIS 374 Depois de demorados debates, quando todos puderam expor pontos de vista divergentes, prevaleceu a cautela recomendada e a redução de apenas cinco por cento das atividades de indústrias químicas. A súmula dos debates e resoluções foi enviada à cúpula do governo para decisão final. Na reunião ali realizada, Devers defendeu a proposta e obteve aprovação. Circular foi expedida a todos os governos regionais e aos órgãos de fiscalização. Chegando em casa, depois de um dia penosamente extenuante, Candota procura se confortar. Depois de beijar Beatriz, na sala mesmo tira os sapatos e se joga deitado no sofá, onde fica imóvel por algum tempo e com os olhos fechados, recompondo as energias. — Estou vendo que te puseram pra dançar hoje! – fala a esposa, com bom humor. Retribuindo o jogo: — Eu agora estou dormindo. Não escuto nem vejo nada. Estou no mundo da ausência, o mundo da não-existência. Só eu e duas almas! — Uai! Você tem duas almas? — E você não sabe disso? — Está me intrigando! Que história é essa? — Eu tinha só uma alma, mas a partir de 14 de maio... – e recebeu uma almofada na cabeça, jogada por Beatriz, ao tempo em que esta o abraçava e o cobria de beijos, ainda no sofá. Candota começou a rir contagiosamente da situação e ficaram os dois fazendo jogos com a almofada e seguidamente com as almas soltas como duas crianças. rindo AGORA OU NUNCA MAIS 375 Mais tarde, para prolongar aquela felicidade, foram a um clube de dança, onde festejaram a vida. Retornando a casa e já acomodados para dormir, Candota falou sério: — Tenho que te confessar uma coisa que estou sentindo. Assustada e pega de surpresa, Beatriz perguntou: — O que foi? — Naquela hora eu falei brincando em duas almas, mas agora estou pensando sério sobre isso. Estou percebendo que a sua alma me completa. Pensando bem, não tenho duas almas, mas apenas uma completada. Essa unidade de dois é a energia misteriosa que se chama amor. Assumindo ares românticos e beijando delicadamente a esposa, acrescentou: — É isso que vale na vida. O amor é a única mensagem palpável do Além. Quase cantando e abraçando a esposa, prosseguiu: — Amor é vida! Sem amor, pra que vida, pra que mundo!? Depois de prolongado silêncio, Beatriz murmura no ouvido do marido: — Um biscoitinho de coco se você souber o que estou pensando. Sem perceber, Candota exclamou, surpreso: — Se for com aquele feitiço, vou adivinhar! — Que feitiço!? Dando-se conta de que tinha sido traído pela lembrança do pesadelo, consertou: — O feitiço dos seus olhos! — Acho que feitiço é outro nome do destino. Parece que ele já tinha traçado os arranjos das nossas vidas. E quase que AGORA OU NUNCA MAIS 376 eu te perco, por causa dessa maluquice toda de querer salvar a humanidade. — Às vezes, eu me pergunto se a humanidade merece todo o sacrifício que os abnegados suportam. — A humanidade, em si, não. Mas o amor que os pais devotam aos filhos é o mesmo amor que, sem a gente perceber, se estende pra toda a humanidade. Afinal, essa tal de humanidade nada mais é do que o conjunto de filhos. Todos nós somos filhos. — Tem razão. O povo não enxerga, mas somos todos filhos... Filhos da mesma mãe Natureza, e existe um vínculo espiritual que envolve e dirige os nossos atos. E esses amores todos dos seres vivos, reunidos, devem ser o Grande Amor. — Candota, eu te amo muito! — No próximo fim de semana, vamos sair à noite pra festejar de novo? — Festejar o quê? — Qualquer coisa! Nosso amor, por exemplo! No dia seguinte, depois da volta do trabalho, Candota se lembrou dos pais e perguntou: — Você recebeu alguma notícia do Brasil? Consultou o computador hoje? — Nada! Nada, nada! — Estou estranhando! Vou telefonar pro meu pai. Me passa o aparelho, por favor. Depois de alguns instantes com o fone no ouvido, Candota fez um gesto de frustração com a boca e acrescentou: — Ninguém atende. Devem ter saído. Amanhã eu ligo. — Me dá aqui, vou ligar pra minha mãe. AGORA OU NUNCA MAIS 377 Depois de certo tempo tentando, Beatriz também desistiu e disse: — Não é possível! Deve ter algum problema na linha! Efetivamente, Alfredo e Dona Rosa tinham comparecido a uma reunião na casa de um amigo, o médico Dr. Adalcindo. Ali estavam Dona Berta e Jandira, alguns parentes próximos e amigos mais chegados. Davam andamento nas providências para formar uma sociedade, nos moldes da recomendação de Candota. Tendo em vista os desajustes sociais, cada vez mais evidentes, tinham chegado à conclusão de que não havia outra saída, a não ser o regresso à vida natural, e estavam pretendendo construir um clã moderno. Discutiam e estudavam a estrutura e funcionamento de cooperativas, kibutz, ecovilas e sociedades alternativas. Unidos por ideais convergentes e motivados pelas agravadas em alterações breve, sociais, notaram que previstas a cada para ser reunião se fortaleciam os sentimentos de companheirismo e solidariedade. Na noite seguinte, Candota tentou nova ligação. Ninguém em casa. Ligou para Terezinha e não responderam. Estavam também reunidos na casa do amigo, o que faziam todas as noites. Preocupado, Candota resolveu passar um correio eletrônico, pedindo notícias. Recebeu resposta dias depois. Explicava Alfredo, demonstrando entusiasmo, as providências e andamento do projeto de mudança de vida. Elogiava o filho e realçava que nunca antes havia percebido o verdadeiro sentido da solidariedade. Dizia-se feliz por antever a vida de nobreza AGORA OU NUNCA MAIS 378 espiritual que teria no meio campestre. Já estavam escolhendo um imóvel rural e, oportunamente, daria mais notícias. Candota se sentiu satisfeito com a iniciativa dos pais e previa que o projeto daria certo. Apressou-se em informar a esposa, acrescentando que Dona Berta e a filha também participavam da associação. Zenon e Terezinha compareciam às reuniões, mas não pretendiam abandonar a cidade, tendo em vista que Zenon estava com emprego seguro na fábrica – decisão errada, na opinião de Candota. Alfredo, duas vezes ao mês, mandava notícias para o filho, contando o andamento do projeto comunitário. Finalmente, após quatro meses de labutas, estabeleceu-se em imóvel rural, integrado a uma sociedade alternativa formada por umas quarenta pessoas, parentes e amigos. Manifestavase satisfeito e entusiasmado. Tinha nova visão de vida e dizia estar integrado a Deus. Nessa mesma ocasião, Candota comunicou que Beatriz esperava um filho, o único que poderia conceber, e que estavam muito felizes com a novidade. Numa última comunicação, Alfredo informava que não mais contaria com telefone ou computador; havia apenas correio nas vizinhanças de sua nova morada. Que o filho se comunicasse doravante com o Zenon, que ainda permanecia na cidade. No CGE, Candota e seus pares também tentavam alcançar o melhor rumo para a sociedade, só que em escala mundial, o que tornava as tarefas cada vez mais difíceis. As soluções para os problemas que surgiam, no entanto, não deixavam de ser encontradas. AGORA OU NUNCA MAIS Seguindo 379 instruções de Devers, os analisadores científicos, distribuídos pelo mundo, somente começariam a colher e enviar resultados após doze meses da última alteração das normas restritivas. O prazo já se tinha esgotado, e os primeiros informes estavam chegando. Para evitar visão distorcida, o presidente do Conselho não dava conhecimento desses dados aos membros. Aguardaria até que tivesse em mãos a totalidade das observações. Entrementes, Candota tinha seus cuidados redobrados em casa, cercando Beatriz de atenções e desvelo com vistas ao seu estado de gestação, período tão delicado na vida de um casal. Quando os informes científicos se completaram, com atraso de dois meses, os conselheiros receberam o relatório e tiveram três dias de folga para que estudassem o documento em casa. Ali, os informantes desvelam um dado novo. Acusam em alguns países pequena, mas significativa alteração na corrente migratória interna. Notam que as pessoas estão se locomovendo das grandes cidades para o ambiente rural e em escala progressiva. Identificam que tal comportamento advém da reforma agrária procedida por recomendação do CGE e por iniciativas próprias na formação de comunidades rurais. Na reunião dos conselheiros, ficou evidenciada a satisfação geral com a melhora dos índices apurados. Todas as usinas nucleares já estavam desativadas, as áreas de reflorestamento tinham aumentado, as indústrias de veículos se ajustaram às restrições, o consumo de petróleo diminuiu AGORA OU NUNCA MAIS muito e 380 indicadores apontavam significativa migração no sentido cidade – campo. Somente na área demográfica é que restou uma dúvida. As estatísticas globais apontavam alterações pouco significativas nos nascimentos, influenciadas principalmente pela elevada natalidade nos países mais pobres. Isso ia requerer uma especial atenção do conselho. O conjunto dos informes foi amplamente discutido, e as opiniões divergiram bastante. — É evidente que todos os índices são favoráveis – manifestou-se um dos conselheiros. — Entendo que estamos no caminho certo e que nada justifica que as normas sejam modificadas. O retorno à vida no campo é fator estimulante. Significa que o objetivo ecológico iniciou seu principal movimento. No próximo período de coleta, teremos informes mais condizentes com a realidade, e serão feitas novas e atualizadas análises. — Se em doze meses houve melhora – pronunciou-se outro participante –, só podemos esperar boas notícias no próximo apanhado. A única indicação fraca é a da demografia, mas ela não deixa de mostrar a tendência de comportamento. Estou otimista quanto à situação atual e antevejo melhores resultados no próximo relatório, desde que sejam tomadas medidas adequadas quanto aos países mais prolíferos. Na sua vez de falar, De Lembert assim se manifestou: — O que me preocupa é que o motor de toda essa situação continua funcionando. — Que motor? – atalhou Devers. AGORA OU NUNCA MAIS 381 — Que motor? Ora, que motor pode ser que não a própria humanidade? A população mundial devia estar diminuindo com mais rapidez. Creio que esse é o ponto principal de toda a problemática. Temos de encontrar um meio pra acelerar o decréscimo humano, fonte e causa de todos os demais males que combatemos. Obtido êxito nesse eixo, o definhamento das outras atividades prejudiciais conseqüentes será automático. — O fato é que a diminuição já começou. Lentamente, mas começou. Com as restrições na procriação, creio que vamos ter melhores resultados nas próximas avaliações – rebateu o presidente. — Não concordo com o otimismo de alguns colegas – interveio Candota. — As melhoras observadas são produto de coação governamental. Os procedimentos sociais devem ser conscientes, voluntários e harmonizados com a estratégia do Governo Mundial. Os povos, como os rebanhos, devem ser conduzidos não só por coação, mas por estímulos de sobrevivência e de conservação do ambiente. Entendo que as migrações internas devam ser encorajadas, mas monitoradas pelas autoridades locais, seguindo critérios a ser definidos por este Conselho. Assim, evitaremos que se disseminem as ações de poluição urbana pra área rural. A migração em si não melhora a ecologia, a não ser que as pessoas se voltem pra comportamentos e atitudes de preservação ambiental. Esses cuidados cabem aos governos regionais, conduzidos por prescrições emanadas deste órgão. — Quero alertar o companheiro – interveio um colega – pro perigo que constitui o esvaziamento das cidades. AGORA OU NUNCA MAIS 382 — Não há perigo nenhum! – retrucou Candota. — A substituição da atual civilização implica destruir as grandes cidades. Isso é evidente. — Destruir? Isso equivale a desequilibrar a relação social. — A sociedade urbana, hoje, se fundamenta em atividades que têm relações tecnológicas. Cessando essas ligações, substituídas por tratos saudáveis com a Natureza, não haverá necessidade nenhuma dessas metrópoles. Elas perderão a função. — O que será feito das nossas regiões urbanas? — Elas permanecerão como monumentos, marcos duma era, como existem as pirâmides, as estelas, os templos e demais construções megalíticas que testemunham antigas culturas sociais equivocadas. Esta não seria a primeira vez que a civilização seria destruída. Pelos registros da História, sabemos que cada uma delas teve seu período de permanência e apogeu; e elas foram muitas. No momento, estamos tratando apenas de mais uma, a atual. O perigo nessa metamorfose, como referido, é a transferência da mentalidade urbana pro campo. E isso, precisamos impedir. — O espaço rural não comporta tão grande população! — Talvez! E aí reside o nosso principal problema, como bem disse o colega De Lembert, o do excesso populacional, já evidenciado nos meus diversos pronunciamentos. Pelos dados apurados, está evidente que em alguns países a procriação não vem sendo contida, principalmente nos econômica e culturalmente mais atrasados. Proponho que sejam discutidas neste plenário medidas concretas pra acelerar a diminuição populacional. AGORA OU NUNCA MAIS 383 Depois que outros se manifestaram, o presidente pôs em votação diversos itens que formulou. Ficou assentado não mexer com as atividades nocivas, que seriam automaticamente reduzidas pelas migrações e pelo simples decréscimo demográfico; vale dizer, diminuição de consumidores. No debate sobre pontos divergentes, ainda a serem votados, De Lembert lembrou: — Reforçando minha intervenção anterior, quero lembrar que, por comando genético, a Natureza trabalha imperiosa a favor da concepção humana e conta com ajuda de vários suportes, tais como o amor materno e a solidariedade social. A restrição nesse ponto é de difícil êxito e deve ser objeto de cuidados especiais. Trabalha ela também – ainda por imposição dos genes – pela eliminação daqueles que já não procriam. Nesse mister, a Natureza é dificultada pela tecnologia médica. Vejam o contra-senso: com os esforços da medicina, ajudamos a Natureza numa ponta e a estorvamos na outra, o que contribui pro acentuado desequilíbrio demográfico. Proponho, portanto – com o maior aperto no coração, infelizmente –, que este Conselho acrescente aos princípios já instituídos instruções pra cessação de qualquer assistência médica às pessoas com mais de sessenta anos. Assim procedendo, a Natureza se encarregará dos resultados segundo suas próprias leis. Pedindo a palavra, Candota se manifestou: — Estou de pleno acordo com os argumentos do colega. Quero ressaltar que, com as cautelas mencionadas anteriormente, a redução populacional é objetivo essencial, tanto por motivos ecológicos como por conveniência social. AGORA OU NUNCA MAIS 384 — Não entendo – interveio o presidente – a vinculação das restrições com fatores sociais! — Explico. Hoje já está desequilibrada a ideal pirâmide etária, causada pelos avanços da tecnologia médica. Se dermos atenção apenas à contenção de nascimentos, maior desestabilidade haverá na relação etária, com sérios reflexos na capacidade de trabalho das microcomunidades. O único modo de contornar essa discrepância é adotarmos com rigor normas restritivas ao prolongamento da vida além dos sessenta anos conforme argumentos aqui ouvidos. — É preciso ressaltar – interveio outro conselheiro – que essa pirâmide etária tem que ser mantida em sua forma, diminuindo apenas nascimentos, estaremos o seu mantendo entrando tamanho. assistência numa estrutura Se contivermos médica social aos os idosos, perigosa. Já podemos enxergar esse desequilíbrio, nos dias atuais, em alguns países mais adiantados da Europa, onde as próprias mulheres estão restringindo sua reprodução para apenas um filho ou nenhum. Ali, as bases demográficas estão sendo supridas pela imigração, o que é solução localizada, mas que não existe no âmbito mundial. — Bem lembrado! – reforçou Devers Quanto à migração interna, um conselheiro alvitrou: — Devemos instruir os governos regionais pra adotarem medidas progressivas no estímulo a esses deslocamentos. Proponho ainda que seja elaborado um manual de conscientização e vivência ecológicas que servirá de orientação pra esses casos. Sugiro que os indicadores desses movimentos devam ser mensais e submetidos ao nosso acompanhamento. AGORA OU NUNCA MAIS 385 Esses quesitos difíceis foram debatidos demoradamente e com ardor, mas afinal aprovados. A propósito, Devers se manifestou: — As análises e decisões deste órgão são coerentes e cautelosas. Têm minha aprovação. Contudo creio que a cúpula governamental terá dificuldades em absorver a essência das nossas razões quanto à negação de assistência médica aos idosos. — Essa medida é dolorosa, mas essencial – ponderou De Lembert. — Já pensaram na minha situação? Lá vou ficar na função de carrasco, de homem mau e sem sentimentos. Aqui tenho quem me defenda, mas lá quem vai defender o homem mau? — Devers, a Morte é o custo da Vida – confortou De Lembert. — Quem vai te defender lá é a soma de argumentos seus e o bom senso deles. — Vou colocar o máximo empenho nas recomendações deste Conselho e espero que convença. Na reunião ministerial, todas as indicações foram aprovadas como propostas. Não obstante, decidiu o Presidente que, por causa de opiniões desencontradas no ministério e de consciência ética, a recusa de amparo médico ficasse restrita às pessoas acima de setenta anos. Mesmo assim, não foi fácil a aprovação final desse quesito. Mas foi imenso esse avanço. Naturalmente que a “covardia com os velhinhos”, como ficou jocosamente chamada a cláusula respectiva, provocou diversas manifestações de entidades empresariais e religiosas. No entanto, o Governo Mundial, que já esperava pressões contrárias, contou com preciosa ajuda das organizações AGORA OU NUNCA MAIS 386 ecológicas, que foram muito ágeis nas preleções sobre a correção dessa resolução. A fiscalização foi ativada para ficar especialmente alerta nos hospitais, farmácias e congêneres. Logo que essas medidas mais severas foram sancionadas – e que teriam reflexos trágicos nos ascendentes de todas as famílias –, Candota achou de sua obrigação conversar com a esposa. Não era boa notícia, à vista do seu estado adiantado de gravidez, mas deveria saber antes que os jornais a divulgassem. Ficou relutante e indeciso. Na dúvida, resolveu deixar para o dia seguinte. Naquela madrugada, Beatriz, muito aflita, virou-se para o marido: — Candota! Ô Candota! Acorda que a festa está começando. Ainda mal acordado e assustado: — Que festa? — Ora! Acorda! Depressa, que chegou a hora. Enquanto você toma providências, eu me visto. Já desperto e consciente da situação: — Fica calma que daqui a pouco chegamos à maternidade. Ao amanhecer, nasceu um sadio garoto com potente garganta. Seu forte choro de protesto era distinguido do de outros bebês no berçário. Trouxe consigo um peso adicional de responsabilidade, que foi direto para a consciência dos pais. Beatriz já em casa, três dias depois, pediu que o marido comprasse umas revistas na banca da esquina. Numa delas veio grampeado contendo um algumas envelope sementes de de plástico, cedro como alusivas brinde, a uma AGORA OU NUNCA MAIS reportagem interna 387 sobre estímulos ao reflorestamento. Preocupado com a possibilidade de alguma revista conter reportagem sobre as medidas de restrição aos idosos, Candota se preparou para dar à esposa a triste informação. — Meu amor, antes de você ir pra maternidade, o governo aprovou algumas sugestões do Conselho. A mais importante e revolucionária é a que nega assistência médica a idosos acima de setenta anos. Foi uma decisão difícil, porque mexe com o sentimento de todos. Aí ficam incluídos os familiares dos componentes do próprio governo. E nós temos a nossa parte dolorida também. Beatriz começou a chorar, pensando nas aflições de sua avó. Candota procurou consolá-la. — Ora, não precisa chorar, amor. O mundo é dinâmico; nada permanece. A única coisa efetivamente real na vida é a morte. Hoje somos jovens, amanhã seremos velhos. O importante na nossa luta é que o mundo agora passa a ter futuro. — Futuro adubado com lágrimas e sofrimentos! — Nada se constrói sem luta. Esse mundo agora vai ter lugar garantido pro nosso filho que acaba de nascer. A decisão extrema foi necessária; você pode compreender. — Eu entendo, mas que é sofrido, é! Enxugando as lágrimas, lembrou: — Você já participou o nascimento do Danilo – assim foi chamado o menino – pro nosso pessoal? — Ontem passei um correio eletrônico pro Zenon, único elo rápido com a nossa gente. Ele se encarrega de dar a notícia. Onde nossos pais estão morando não tem os confortos AGORA OU NUNCA MAIS 388 da cidade. Comunicação, só por carta demorada. Isso é ruim em curto prazo, mas é bom em longo prazo. Afinal, temos que acostumar com a separação. Faz parte!... — Como estão as perspectivas lá no CGE? Fico preocupada! Vai ter mais decisões radicais desse tipo? — Ainda é cedo pra uma definição. Os índices têm mostrado tendências apenas. Mas uma coisa é certa: se conseguirmos diminuir a população, o resto se arranja por si. Vamos esperar as indicações que nossos analistas estão coletando no mundo. Mas eu creio que tudo vai dar certo! Pode ficar sossegada! Com as restrições de transporte, Candota e Bento pararam de se visitar, mas mantinham conversações pelo computador ou telefone. Certo dia, Bento telefonou e marcou visita. Chegou com Miriam e a garotinha Beth. — Tem tempo que a gente não se vê, hem! – lembrou o amigo. — Viajar é um vício que vai acabar. — Aproveitei que vim ver minha avó, que está doente, pra também te visitar. Hoje, isso é luxo! — Não sabia que sua avó estava doente! Depois vou passar lá. — Coitada. Está se tratando com chá. Ela é bem idosa, e a fiscalização vem atuando com rigor. — Eh!... Vamos ter que aprender tudo que os índios sabem sobre tratamento com plantas. Temos que preparar a nossa velhice com antecedência. — Este deve ser nosso último contato. — O que foi!? AGORA OU NUNCA MAIS 389 — Estive pensando sobre seus conselhos e tenho visto algumas pessoas se retirando das cidades e implantando comunidades alternativas no campo. Já estou formando um grupo com identidade de propósitos e pretendo ir pra longe. — Faz bem! Mas pra longe por quê? — A região de Nova Jersey tem densidade populacional muito alta. Miriam já perdeu o emprego mesmo, e eu percebi que a universidade não vai demorar a fechar. Vou renunciar à profissão e aos confortos. O elo de família vai acabar mesmo! Agora, temos que cultivar é a ligação dentro do clã. — É o preço! Não existe nada de graça! — Mas, no futuro, a família vai permanecer unida. Porque vamos viver num núcleo social pequeno. Entendo que isso é a construção de uma nova cultura. — É sacrifício hoje, mas depois a vida comunitária vai ser um bem. Se todos descobrissem essa verdade, nosso trabalho ia ser bem mais fácil. — E como estão indo as coisas lá no Conselho? — A revolução está indo bem. A minha preocupação, agora, é com algum problema de gerenciamento que possa surgir. — O Conselho não está prevendo tudo? — Está, mas existe o imponderável! Ele costuma ficar escondido nas sombras do acaso e aparecer de repente, sem dar qualquer aviso. Esse é o perigo! — Confio no trabalho de vocês. Por confiar é que tomei essa decisão. Estou no caminho certo? — O rumo é esse mesmo! Ainda bem que você está enxergando e conseguindo identificar o futuro e a esperança. AGORA OU NUNCA MAIS 390 Pior seria viver sem eles. Quem vive só o presente vive bem, mas vai acabar ficando angustiado quando o futuro chegar. — Eu quero me despedir de você e dizer que aquilo tudo que passamos juntos, valeu! Eu considero um privilégio ter sido escolhido pelo destino pra te dar uma mãozinha! Fico orgulhoso disso! — Valeu mesmo! Nunca vou esquecer de vocês. Também... se não fosse a sua ajuda... babau!... Bento, abrindo uma sacola, retirou um pequeno embrulho e o entregou ao amigo, dizendo: — Fica com essa lembrança. É parte da minha coleção de fotos celestes. Elas ajudam na meditação. Candota, emocionado e pego de surpresa, pensou em retribuir aquele gesto tão significativo. Não se lembrando de algo distinto, viu sobre a mesa a revista que continha as sementes de cedro, ainda grampeadas na capa. Balançando o saquinho com sementes frente ao amigo, disse: — Estas sementes estão vivas e são Vida. Leva elas como lembrança da nossa luta e planta lá no seu paraíso. As árvores vão ser as testemunhas da nossa existência e da nossa luta! As despedidas foram comovidas de parte a parte. As mulheres pareciam sob melhor controle que os maridos. De tempos em tempos, Candota atualizava o primitivo programa de projeção, acrescentando todos os dados confiáveis que chegavam ao seu conhecimento, inclusive os provindos do deslocamentos CGE. que Vigiava o com computador muita atenção apontava. Já os havia AGORA OU NUNCA MAIS 391 substituído o ano de 2036 pelo de 2054 o que representava perigo ainda. Mas já era uma boa indicação. Candota, nessas ocasiões, punha-se a meditar: “O ideal seria o aparelho apontar o infinito, mas não espero que isso aconteça antes das oito gerações seguintes. Nessa futura provável situação, a humanidade, reduzida então a trezentos milhões de pessoas, teria retornado ao Éden e seria feliz. Seria mesmo feliz? Ou, a meio de caminho e seduzida pela ganância, teria esquecido a lição e reiniciado o progresso? Hum!...”. No Conselho, decorridos quinze meses do último relatório geral de dados, Devers colecionou e organizou os informes gerais coligidos pelos observadores. Examinados e estudados pelos componentes, ficou evidenciado que tudo caminhava a contento no rumo dos planos traçados. Os nascimentos tinham recuado, indicando efetiva diminuição futura da população. Satisfatória, mas insuficiente por enquanto. Ideal seria que a fertilidade não ultrapassasse o taxa de um filho por mulher. O melhor resultado foi a revelação de que o índice de mortalidade dos idosos acima de setenta anos tinha sido elevado ao dobro em relação ao apurado na última coleta. Ficou evidente que a população global começava a diminuir. O programa de migração para o campo acusava indicadores satisfatórios, e as cidades grandes já estavam mostrando os sinais de abandono, com o conseqüente desmonte das engrenagens progressistas. O decréscimo de consumidores também apresentava algumas conseqüências favoráveis. Várias indústrias poluidoras já tinham cerrado as portas, poucos veículos civis estavam em AGORA OU NUNCA MAIS 392 uso, e o consumo de petróleo atingia níveis baixos. Também as ocupações educacionais diminuíram, e as atividades paralelas em geral decaíram. Havia começado o retrocesso do crescimento. Após a apresentação do relatório à cúpula governamental, que lhe deu seu aval, o CGE recebeu a visita do presidente Nash que se manifestou entusiasmado com o trabalho ali desenvolvido. Todos os conselheiros, em solenidade especial, foram agraciados com uma medalha de honra ao mérito, o que lhes aguçou o orgulho e a responsabilidade. Candota, em casa, adicionou os novos dados ao seu programa e ficou radiante com as indicações. A data da meiavida do planeta pulou para 2090. Era para ser comemorado. Mas não foi. entusiasmo, Quando Beatriz, se preparava demonstrando para tristeza externar e que seu havia chorado, deu-lhe más notícias. — Olha a carta que chegou hoje! Vinha de parte de Dona Berta, escrita havia trinta dias. Candota a leu e ficou compassivo. — Eu sinto muito a morte de sua avó. Sua mãe não precisava entrar em detalhes; te fez sofrer mais! — Você viu? Entrou em processo lento de agonia, sem qualquer assistência. Coitadinha! Era tão boa! — Beatriz, pense nos milhares de pessoas que estão passando pela mesma situação. Isso faz parte da renovação da vida. É a vida dela pela do Danilo. Num desabafo, provocado pela emoção do momento, Beatriz olhou firme para o marido e se queixou: — Vocês aprovaram essa idéia covarde! AGORA OU NUNCA MAIS 393 — Não me considero culpado. Você é capaz de imaginar o quanto o caos é pior? Pelo menos a transição segue sob controle! — Amor, eu ando com muita saudade da minha mãe. Quando é que vamos poder ir lá? — As viagens, atualmente, andam muito difíceis. Não tem mais linhas aéreas pra América do Sul. Pra lá, agora, só se viaja de navio. — A gente vai de navio mesmo! Demora mais, mas chega! — Não quero contrariar os seus desejos, mas não posso é te acompanhar, me ausentando agora do Conselho, porque a situação está exigindo atuação permanente. Estamos passando por um momento de intensa atividade. Tem anarquia em diversos países, e nós precisamos ficar atentos pra não deixar as coisas piorarem. — Sem você eu não viajo. — Vai com o Danilo que depois eu vou! — Quando? — Isso é impossível prever. Como eu te disse, a situação em vários países não está boa! — Não, Candota! Sem você, não vou mesmo! — Então vamos esperar mais um pouco, até que haja condições mais favoráveis e que o Danilo esteja crescidinho. Ainda não tem quatro anos! — Está bem! Vamos esperar! Candota abandonou a idéia de se manifestar em casa a respeito do andamento da revolução, que quase sempre implicava sofrimentos, porque isso trazia aborrecimento à esposa. Ficou preocupado e pensativo com novas notícias AGORA OU NUNCA MAIS tristes que pudessem 394 chegar de repente e decidiu que, oportunamente, fariam a única e última visita aos familiares. AGORA OU NUNCA MAIS 395 12° CAPÍTULO Dois anos se passaram, e o Conselho não parava de examinar, avaliar e dar soluções de problemas regionais. Além dos informes semanais, havia os apanhados de mês, mas os principais eram os elaborados em períodos médios de quinze meses. Os indicadores já apontavam redução demográfica significativa, estimando a população mundial em cinco bilhões de almas. O programa revolucionário estava indo a contento, mas o Conselho não podia dormir sobre os louros. Por isso, mantinha fiscalização constante e renovada sobre todos os aspectos dos objetivos estabelecidos. O grande perigo seria afrouxar as exigências de execução. Quando Danilo atingiu seis anos, Candota percebeu que, tendo em vista o projeto governamental estar seguindo firme o curso previsto, podia pedir férias robustas ao Devers. — Meu caro presidente, as coisas estão caminhando bem, e os resultados que temos obtido são positivos. Por isso, peço férias por um período mais longo. Pretendo rever meus familiares no Brasil. A viagem é demorada pra ir e pra voltar. Tem grandes dificuldades de transporte, você sabe. — Você está pensando em férias longas? AGORA OU NUNCA MAIS 396 — Pelas informações que tenho, pra América do Sul só estão trafegando navios a vela. A viagem pelo mar é demorada. Em terra, não sei como vai ser. Preciso de quatro meses pelo menos. — Você vai ter que reservar passagem com antecedência. Depois que tiver a data do embarque, me fala. Eu te dou os quatro meses. Pode providenciar. Em casa e satisfeito, Candota disse à esposa: — Meu amor, você se lembra daquela viagem que te prometi? — Claro! — Agora as coisas estão favoráveis e consegui quatro meses de férias. Vamos rever o nosso pessoal. Vai ser uma festa! Beatriz se mostrou radiante e deu um demorado abraço no marido. Ficou agitada de tanta felicidade. Tão alegre que até brincou: — Você não vai fazer falta lá no Conselho? — Ora! Vê lá! — E como está o andamento do seu serviço? — As últimas análises gerais apontaram situações excepcionais. Nosso objetivo promete ser alcançado. Todos os responsáveis pelo governo estão satisfeitos. Pelas projeções do meu programa, a data-limite de perigo passou pra 2180. Isso equivale a duas gerações. Danilo e nosso neto têm futuro sadio assegurado. — Já marcou as passagens? Preciso de tempo pra arrumar as coisas. AGORA OU NUNCA MAIS — Não 397 precisa providências. Vai afobar. demorar Ainda um vou tomar pouco, mas você dias até que algumas pode ir preparando. Decorreram uns quarenta fossem conseguidas as reservas das passagens marítimas. Com tudo ajustado, Candota e família, em ônibus, deixaram Washington rumo a Norfolk, onde aguardaram por dois dias a confirmação de lugar no navio. Danilo novidades se entusiasmava antigas novamente e se divertia em uso. com todas Fora de casa, as os confortos, facilidades e tecnologias de outrora não lhe faziam qualquer falta, simplesmente porque não conhecia nada disso. Aportado construção em recente, Norfolk via-se equipado com elegante bons veleiro, instrumentos de de navegação e alguns pequenos motores a diesel, destinados a uso em caso de emergência. Depois de embarcados, Candota e Beatriz acomodaram as bagagens no camarote e se sentiram eufóricos e quase realizados. Danilo, curioso, perguntava por tudo. Era o início de uma viagem de volta às raízes, depois de tão longo tempo, que lhes renovaria os amores e amizades, as lembranças e emoções. O navio era de uso misto; transporte de mercadorias e passageiros. As cabinas eram simples, bem cuidadas, contendo apenas o necessário. As velas, quando estendidas, davam ao conjunto majestática harmonia e elegância, transmitindo aos passageiros uma sensação de liberdade, prazer e confiança. Sim, confiança na força da Natureza, que os impulsionava por sobre o mar rumo à terra natal. AGORA OU NUNCA MAIS 398 A viagem, tranqüila e silenciosa, com algumas escalas demoradas, proporcionou aos viajantes momentos de encantamento, reflexão e paz. Durou 35 dias; menos que o previsto. Chegados ao porto brasileiro, apressaram-se a procurar uma condução que os levasse ao destino. A viagem por terra, devido à nova situação, deveria ser feita em diversas etapas, sendo usado o transporte coletivo que estivesse disponível. Depois de espera de alguns dias, passados numa pensão ordinária, conseguiram condução para a grande cidade onde outrora moraram e que se encontrava bastante despovoada. Ali, tudo era marasmo. Pouca gente nas ruas, quase sem automóveis, e as carroças ressurgiram. Via-se embriaguez generalizada, algum policiamento e sujeira nas ruas e prédios. Dava aperto no coração aquela visão. Produto de uma era de esplendor e paroxismo consumista, mostrava agora a artificialidade de uma concepção de vida. Onde ficaram aquelas festas, aqueles luxos e esbanjamentos, aquela abundância de furtos ecológicos? Estava ali, em amostra, a previsão de que as grandes cidades permaneceriam apenas como sinais de irracional e contraditória civilização. Estava ali, em agonia, o corpo em chagas de uma cultura materialista e antinatural. Era o prelúdio de um destino já determinado. O itinerário seguinte seria vencido por uma viagem semanal em trem misto, puxado a locomotiva elétrica, que trafegava passando por uma cidade interiorana onde deveriam descer. Ali, arranjariam um meio de se locomover até a comunidade dos familiares. AGORA OU NUNCA MAIS 399 Com grandes esperas e sacrifícios, mas com paciência e compreensão, espremeram-se por horas no vagão imundo do trem. Foram deixados na plataforma de uma estaçãozinha quase deserta. Tiveram sorte, porque algumas carroças pequenas haviam trazido mercadorias para embarcar no trem e voltariam vazias. Indagando, encontraram quem os transportasse numa delas, mas só até uma vila próxima à comunidade que procurava. O carroceiro alegava que tinha de preparar um cabrito para o sacrifício. Candota maquinou que, durante o percurso, conseguiria convencer o condutor a levá-los até o destino. Bastaria acrescentar mais algum dinheiro ao valor tratado da viagem. Deu certo. O cabrito ganhou mais um dia de vida, e o abençoado carroceiro, uma gratificação. A estradinha desníveis. Na era muito condução, as irregular, malas esburacada se moviam e com sempre. Roçavam-se e resvalavam nos passageiros. Beatriz, extenuada e com corpo doído pelos balanços e solavancos, mostrava-se ansiosa e perguntava a todo o momento se faltava muito para chegar. Tinha receio de que a noite viesse antes que chegassem ao destino. — Pode ficar calma, dona! Vamos chegar antes da noitinha – tranqüilizava o carroceiro. Danilo, que no início da viagem se mostrava satisfeito e extasiado com a novidade da carroça e do cavalo, passou a se queixar da canseira e da monotonia. O dia quente e a poeira contribuíam para o desânimo e desconforto. AGORA OU NUNCA MAIS 400 Quando estava em Washington, Candota tinha mandado com antecedência uma carta para os pais, informando a viagem. Adiantava que, devido às irregularidades no trânsito, não podia prever a data certa da chegada. Se a carta já tivesse vindo àqueles confins, alguém estaria na expectativa da visita e teria preparado as acomodações. Enquanto Candota se ralava na carroça, ficou meditando sobre a situação: “As gerações atuais estão sofrendo muito com essas separações, por imposição da revolução ecológica. É o caso do Bento, do De Lembert e de tantos outros por esse mundo afora. Isso é outra conseqüência danosa da civilização, que facilitou muito o deslocamento das pessoas. No futuro, não vai ter esse problema, porque as famílias não se vão separar. Em cada torrão, ali a gente vai nascer, viver e morrer. Agora, viagem é mais um castigo de ajustamento que temos de passar.” Depois de bamboleando, vadear uma um ravina córrego que espraiado atravessava o e romper, caminho, a carroça contornou um morro chato e abriu vistas para o lugar onde existia uma aldeia. Era, enfim, a comunidade Sarabem. Esse nome e o itinerário já tinham sido descritos em carta que Alfredo tinha enviado ao filho havia tempos. Agora passavam por terreno plano, e a estrada seguia ladeada por culturas diversificadas. Ninguém nas lavouras. Pela hora adiantada do dia, todos já deviam ter ido para casa. À medida que se aproximavam, crescia a ansiedade do casal. Procuraram se conter. Nada podiam fazer ante a marcha cadenciada e pachorrenta do cavalo, que não se alterava desde o início da viagem. Danilo até tinha dormido de tão cansado. AGORA OU NUNCA MAIS 401 Dava para ver que aquela comunidade ainda se estava formando. O casario situava-se numa clareira que dava entrada a uma robusta mata. O conjunto, descoberto para o nascente, recebia todo o sol da manhã. À tarde, protegia-se com a sombra das altas árvores da floresta.Viam-se ali algumas casas de tijolo, outras de adobe e as demais, simples tendas de palha de palmeira. Todas em torno de uma construção grande, à moda de aldeia indígena. Com os olhos fixos nas moradas, Candota pôde perceber que algumas pessoas reunidas conversavam e apontavam no rumo da carroça. — Já nos viram! – exclamou Candota, não se preocupando em esconder a emoção. Beatriz, animada e feliz, procurou despertar Danilo para que presenciasse os últimos lances daquela histórica viagem. — Acorda, meu filho! Estamos chegando! Você vai conhecer os seus avós. Danilo, nos seus seis anos, tinha noção idealística do que seria um avô e uma avó. Tinha visto algumas fotografias, mas a presença física, imaginava ser um encanto. Tinha sido instruído pelos pais a respeito. O que seria isso exatamente, de real, mexia com sua ambiciosa curiosidade infantil. Já conhecia os avós de outros meninos, mas os seus era a grande expectativa. O chamamento da mãe o pôs em estado desperto e ansioso. À medida que se foram aproximando, juntaram-se mais moradores na entrada da clareira. Notava-se que o fato aguçava a curiosidade deles. Parecia, pela expressão AGORA OU NUNCA MAIS comportamental 402 de conjunto, que tentavam adivinhar a identidade do forasteiro. Não acenavam. A carroça já estava perto da chegada quando um homem saiu dentre os curiosos e correu ao encontro dos visitantes. Foi chegando perto e o carroceiro, puxando a rédea, fez o cavalo estacar. Era Alfredo, expondo uma alegria tão intensa que lavava e desfigurava seu rosto. Nos últimos passos, já vinha com os braços abertos. Quando a carroça parou, Candota desceu e correu ao encontro do pai. Abraçaram-se longamente. Não trocaram palavras. Não era preciso. Em seguida, Alfredo subiu na carroça e abraçou a nora e o neto. Danilo não mostrou entusiasmo, ficando meio espantado com a visão do avô. Não era o que pensava. Tinha barba grande, que já estava embranquecendo. E o chapéu de palha cobria os cabelos. A figura não se parecia com a das fotografias. Acabaram de chegar, e Dona Rosa foi logo distinguida no aglomerado e recebeu prolongado abraço do filho. Chorou muito. As mulheres, era um choro só; tudo emoções. Os abraços foram gerais. Todos os moradores se mostravam felizes e deram as boas-vindas àquela família que chegava. Uma festa de palavras e gestos. Foi surpresa para Candota encontrar a irmã ali. Já dispersados alguns moradores, Alfredo chamou os visitantes, os parentes e alguns amigos para sua morada, uma das poucas de boa alvenaria no local. Com a juntada desse povo, a casa de quatro cômodos pequenos ficou cheia. Uns se assentaram de qualquer jeito; outros ficaram de pé. Todos matando saudade ou curiosidade. AGORA OU NUNCA MAIS 403 Desconfiando que ninguém esperava a visita, Candota chegou perto do pai e perguntou: — Vocês receberam a carta, avisando minha vinda? — Que carta, que nada! Correspondência aqui só chega por engano. Não sabia da sua viagem. Foi surpresa. Mas foi bom, bom demais! Vocês me trouxeram uns cinco anos de vida a mais. Olha pra sua mãe. Ela até remoçou! Dona Rosa não parava de sorrir, num orgulho que só. Era pura felicidade. E logo foi à cozinha preparar um lanche reforçado, que a hora se aproximava. — Mas que neto bonito vocês me deram! – elogiou Dona Berta, enquanto mantinha Danilo no colo. — Eu pensei que ele não falava português. — Desde que ele nasceu, combinei com a Beatriz que eu só ia falar inglês com ele; e Beatriz, português. Deu certo. Ele agora entende duas línguas. E você, Tê, resolveu sair da cidade, e eu não sabia! Onde está o Zenon? — Ele e o marido da Jandira foram pescar. Tem um rio que passa aqui perto. Tentamos permanecer na capital, mas as fábricas fecharam. Aí, o recurso foi vir pra cá. Jandira também veio com o marido; ela é a dentista da comunidade. A família toda está reunida aqui. Isso é muito bom! — Vem cá, Zeninho! Quero te ver de perto. Lembra de mim? Virou um rapazinho, hem, Tê! — Meu filho – não se conteve Dona Rosa, quase implorando, vindo da cozinha –, você não vai voltar mais pros Estados Unidos, vai? AGORA OU NUNCA MAIS Candota 404 não tinha pensado nessa hipótese. Estava despreparado para uma resposta. Mas não podia fazer sua mãe sofrer. — Acho que não. Mas não vamos falar nisso agora. Acabo de chegar e vamos ter muito tempo pra pensar. Depois a gente se fala, tá? Dona Rosa, pensativa, achou melhor não insistir no assunto e concordou, fazendo sinal com a cabeça e voltando a cuidar do fogão. Beatriz, que estava perto, chegou-se ao marido e cochichou: — Minha mãe perguntou a mesma coisa. Eu disse que não sabia dos seus planos! — Amor, vamos deixar esse assunto pra depois! Estou muito cansado. Meu corpo está é pedindo cama! — Eu também. Nunca fiz viagem tão sacrificante! Hoje vamos ter que deitar mais cedo. Zenon chegou da pescaria, ficou sabendo da notícia e foi à casa do sogro, juntando-se aos demais, e o marido da Jandira foi apresentado aos visitantes. As conversas e notícias renderam muito tempo. Aos poucos alguns foram se retirando para suas casas. Beatriz, sentada a um canto, satisfazia a mãe e a irmã que não paravam de fazer perguntas. Terezinha, depois de confabular com o pai, também se retirou com a família. Naquele ambiente mais calmo, Alfredo achou que agora podia se comunicar melhor com o filho e falou: — É bom você saber que aqui em Sarabem tudo é diferente. Já te contei sobre o projeto e alguma coisa sobre o AGORA OU NUNCA MAIS funcionamento. 405 Mas outras novidades, você mesmo vai presenciar e aprender. — Parece que vocês copiaram alguma coisa da cultura dos índios. A disposição das casas e... — Não foi só isso. Juntamos a experiência milenar dos indígenas com os conhecimentos da nossa própria cultura e racionalizamos o modo de viver. — Vi que algumas moradas são muito rústicas. Faltou dinheiro? — Não, a coisa não pode ser vista desse modo. No período da organização, conseguimos arrebanhar pro nosso projeto pessoas mais maduras. Os jovens – sabe como é – só pensam em usufruir e em geral repeliram nossas idéias. Na verdade, precisamos deles do mesmo modo como eles precisam de nós. Uma sociedade equilibrada é feita com gente de todas as idades e numa proporção adequada. — É esse o critério que adotamos lá no CGE. — Nós fizemos a sociedade com maioria de pessoas maduras. Isso, no início, sobrecarregou muito. Aqui prevalece o trabalho físico, e a gente contava na época com pouca força muscular pra implantação. Foi preciso contratar mão de obra de fora. Depois é que a situação foi melhorando. À medida que a vivência foi piorando na cidade, os jovens foram chegando. É o caso do Zenon, por exemplo. Mas esses novos moradores têm que se ajustar aos nossos códigos, sob pena de serem expulsos. Não podemos condescender de forma alguma. Até o Zeninho já absorveu os costumes e normas daqui. AGORA OU NUNCA MAIS 406 — É a lei da Natureza que impõe. Esse desequilíbrio existe agora porque está em curso uma revolução de conceitos também. — É isso! E todos devem se adaptar, sob pena de perecer. Desde o início, fizemos por escrito uma constituição pra comunidade Sarabem. Tem uma diretoria zelando pelo nosso êxito. Tudo aqui tem normas que devem ser obedecidas. Existe elasticidade de comando pra facilitar o estudo e ponderação de cada caso. — Como fica a educação e instrução das crianças? — Por enquanto, os pais ficam responsáveis por isso. Mais tarde, quando as condições permitirem, vamos ter uma escola. Está tudo previsto, mas fazemos freqüentemente alterações na nossa constituição de acordo com os fatos que vão surgindo. Temos a sabedoria de saber que não somos perfeitos. — Parece que vocês estão satisfeitos. — Isso aprendendo sentimos a em aqui é ler as um paraíso! mensagens comunhão com Diariamente da a Natureza. verdadeira estamos Aqui nos divindade. Ganhamos a consciência que somos parte do todo. Isso é muito difícil as pessoas entenderem. Na cidade, a gente não tem condições de perceber, mas no campo isso vem à alma naturalmente. A gente sente! — Eu sabia que ia dar certo! O Governo Mundial está trabalhando com esse mesmo objetivo. Sei que em breve a humanidade, depois de depurada dos vícios dessa civilização irracional, vai encontrar aquele paraíso que habita a cabeça de todo mundo. AGORA OU NUNCA MAIS 407 — Meu filho, você vai entender. A norma sobre visita diz que, nos primeiros dois dias, qualquer visitante está livre de obrigações. Mas, do terceiro dia em diante, sob responsabilidade do visitado, vai ficar sujeito aos mesmos trabalhos que os outros moradores. No terceiro dia, a diretoria vai atribuir a você e à Beatriz afazeres comunitários. — Acho medida justa. Comunidade é isso mesmo! De pleno acordo! E esses dois dias livres também são muito justos. Dá tempo da gente observar e aprender a rotina do trabalho da sociedade. — Você não vai dormir aqui em casa. Temos um rancho meio sem conforto, destinado a hóspedes. É lá que você e sua família vão morar enquanto não se definirem. É a lei daqui. Dona Rosa começou a arrumar a mesa para o lanche, dando o melhor de seu capricho. Enquanto terminava a tarefa, chamou: — Venham todos pra mesa! Venha, Berta... Beatriz... Venham! Vem, meu filho, e traz o Danilo! Danilo, faminto, enfiou a colher no bolo de fubá ainda morno e não fez cerimônia. Foi acarinhado pela avó e se fartou com as delícias. Para ele, aquilo era festa. Candota e Beatriz, que não se tinham alimentado desde o almoço, também se recompensaram à larga. Terminada a refeição, Alfredo anunciou: — Rosa, o pessoal deve estar cansado da viagem. Vou levar eles pro rancho das visitas. Pega umas roupas de cama e toalhas. Amanhã nós vamos dar uma arrumada melhor na cabana. Virando-se para o filho, disse: AGORA OU NUNCA MAIS 408 — Aqui todos deitam e levantam cedo. — Está certo! A noite foi feita pra repousar e sonhar. — Por esta noite vocês se acomodam lá de qualquer jeito; amanhã a gente vai dar uma ajeitada. Se precisarem de alguma coisa, é só me avisar. Lá tem lamparina e fósforos. O rancho fica perto da casa da Berta. Cada um ajuda a carregar uma coisa. Eu levo estas duas malas aqui. Feitas as despedidas à Dona Rosa, foram todos rumo ao abrigo. A noite estava sem lua, mas clareada pelas estrelas. Dava para ver o rasto do caminho. Com Alfredo na frente, seguiram os demais em fila. Chegados à choupana, Dona Berta e Alfredo acenderam as candeias e deram varrição nas camas e prateleiras. Arrumaram as cobertas e deixaram a casa em ponto de uso. Ministraram algumas recomendações e se despediram com um “até amanhã”. Vendo-se sozinhos, Candota logo se estirou no leito. Beatriz ajeitou Danilo na cama e, lembrando-se da resposta que o marido tinha dado à mãe, e que a preocupava, perguntou: — Você está pensando em não voltar? — Amor! Você está cansada, e eu também! Depois a gente conversa sobre isso. Amanhã a gente se fala! Beatriz se conformou e procurou se acomodar na cama. Com barriga forrada, corpo doído e cansados, os três visitantes não tiveram dificuldade em achar jeito e dormir, principalmente pelo acalento vindo do silêncio da amplidão e da longínqua orquestração dos grilos e sapos. AGORA OU NUNCA MAIS 409 As primeiras claridades já entravam pelas frestas da janela quando Danilo acordou, resmungando: — Mamãe, quero fazer xixi! Não tendo resposta, insistiu: — Mamãe, quero fazer xixiii! Beatriz, mal acordada e ouvindo o filho, levantou-se e o retirou da cama. Abriu a porta, colocando Danilo do lado de fora. — Vai até ali, faz xixi no chão e volta pra cama, que ainda é muito cedo! Enquanto se desapertava, Danilo, meio sonolento, ficou olhando o chão sendo regado. Depois, erguendo a cabeça no rumo leste, sentiu-se maravilhado ante o lindo espetáculo que nunca tinha visto. Embevecido, gritou: — Papai! Mamãe! Vem ver! Candota acordou assustado. Beatriz já estava se levantando para acudir o filho. Ambos chegaram à porta do casebre quase ao mesmo tempo. — O que foi, Danilo? – perguntou Candota enquanto se acercavam do filho. Danilo, com expressão de encantamento, estendeu o dedinho para aquela calota dourada e grande no horizonte, dizendo: — Olha! O sol está nascendo! AGORA OU NUNCA MAIS 410 POSFÁCIO Em geral, livros são classificados como, ou de ficção, ou de não ficção. Muitos dirão que os personagens e fatos da história aqui relatada são fictícios. Podem até sê-los em seus detalhes, mas o foco da história, constituído pelo tema e pela tese, é tão real e evidente como o é a inteligência humana. Este romance é, portanto, ficção e não ficção. Cabe ao leitor distinguir, realidade. com os olhos da inteligência, a pintura e a AGORA OU NUNCA MAIS 411 Como podemos dizer, sendo hoje terça-feira, que a sextafeira é ficção? Sendo hoje abril, dizer que setembro é ficção? Estando nós em 2006, o raciocínio impõe que 2036 seja ficção? Se estivéssemos em 1927, como poderíamos dizer que 2006 seria ficção? Se um homem está, com um conta-gotas, colocando água num garrafão ou num tonel, como podemos dizer que nunca esses continentes estarão cheios? Como podemos afirmar que algo crescerá infinitamente, se até o amor tem limite? Aqui, a imaginação e a realidade estão ligadas pelo inexorável Tempo, principal personagem em todo o desenrolar da história deste livro. Tempo, esse artífice que move todo o cosmo, seria porventura uma ficção? Que a humanidade possa perceber nestes escritos os alertas que eles carregam. Porque depois... Nunca mais...