Primeiras páginas - A Esfera dos Livros

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MITOS E LENDAS
DA
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
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James Hayward
MITOS E LENDAS
DA
SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
Tradução de
Marcelo Oliveira
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A Esfera dos Livros
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Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
Título da edição original: Myths and Legends of the Second World War
© James Hayward, 2003
© A Esfera dos Livros, 2007
1.a edição: Janeiro de 2007
Capa: Compañia
Imagem da capa: AKG – Images
Tradução: Marcelo Oliveira
Revisão: João Vidigal
Paginação: Segundo Capítulo
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos
Depósito legal n.° 251 544/06
ISBN 989-626-046-0
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ÍNDICE
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
9
Introdução: Mentiras Verdadeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
11
01. Vestidos como Freiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
19
02. O Royal Oak . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
49
03. O Milagre de Dunquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
67
04. O Massacre que Nunca Aconteceu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
96
05. Mitos do Blitz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
115
06. A Invasão que Nunca Aconteceu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
146
07. Mitos sobre Hitler . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
169
08. Hess e o Reino Unido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
192
09. O Homem que Nunca Existiu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
214
10. Canaris e a Abwehr . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
232
11. Mitos no Terreno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
245
12. Mitos sobre Acidentes Aéreos e Foo Fighters . . . . . . . . . . . . . . . .
270
Apêndice 1: A Quinta-Coluna em França . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
295
Apêndice 2: A Rede de Rumores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
298
Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
311
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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AGRADECIMENTOS
O autor tem uma dívida de gratidão particular para com Nigel
Bewley, Terence Burchell, Nicholas and Dawn Champion, Terry
Charman, David Collyer, Peter Dachert, Clive Dunn, Lowell Dyson,
Ian English, Julian Foynes, James Herbert, Robert Jackson, Richard
Knight, Chris Lewis, Bob Moore, Roger Morgan, Ian Munroe, Mick
Muttitt, Roy Nesbit, Robin Prior, Winston Ramsey, Neil Storey,
Richard Townsley, T. H. Waterhouse e Nigel West. Muitas outras
pessoas assistiram-me na pesquisa e preparação deste livro, embora
qualquer erro no texto seja da minha inteira responsabilidade.
Os meus sinceros agradecimentos estendem-se também às seguintes
bibliotecas e instituições: The Imperial War Museum, Cambridge University Library, The British (Newspaper) Library, PA News Library,
Norfolk County Libraries. Agradeço igualmente a todos na Sutton
Publishing, em particular a Jonathan Falconer, Elizabeth Stone e Nick
Reynolds.
Apesar de terem sido encetados todos os esforços para contactar
os detentores dos direitos de autor, nem sempre tal foi possível.
Apresento as minhas sinceras desculpas caso tenha omitido a atribuição dos devidos créditos a qualquer indivíduo ou instituição.
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INTRODUÇÃO
MENTIRAS VERDADEIRAS
Quando iniciei a pesquisa para este livro – uma espécie de sequela
do meu estudo anterior, Mitos e Lendas da Primeira Guerra Mundial – pensei, algo ingenuamente, que haveria menos material a analisar. Afinal de contas, em 1939 o mundo avançara vinte anos, as
populações eram mais instruídas e beneficiavam tanto da amarga
experiência da Primeira Guerra como da existência da rádio. Até
certo ponto isso é verdade, pois nestas páginas o conhecedor encontrará poucas histórias tão incríveis como a do Anjo de Mons, a da
fábrica de cadáveres do Kaiser, ou de planos demoníacos para minar
o moral das tropas britânicas através do uso de agentes homossexuais.
No entanto, como veremos no capítulo um, inúmeros rumores
nascidos durante a Primeira Guerra Mundial foram ressuscitados
nos primeiros dezoito meses da Segunda. Os mitos murcham como
flores, para logo desabrocharem num outro local assim que as condições e o clima sejam favoráveis. Os mesmos rebuçados envenenados fictícios distribuídos pelos soldados alemães na Bélgica em 1914
foram largados pela Luftwaffe1 sobre a Polónia em 1939 – e pela
Força Aérea americana na Alemanha em 1944. A ressurreição da maior
1
Força Aérea alemã. (N. do T.)
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parte destes mitos foi um subproduto do medo dos espiões que
caracterizou ambos os conflitos – com a «Ameaça Estrangeira» e a
«Mão Escondida» a serem substituídas pela igualmente quimérica
quinta-coluna. Em Inglaterra, durante ambas as guerras, este estado
de pânico foi incentivado de forma deliberada para manter a população em alerta e justificar detenções generalizadas, diferindo apenas em grau. Enquanto em 1914 cães da raça dachshund eram pontapeados e apedrejados nas ruas, em 1939 eram apenas denegridos
em cartoons, sendo representados com suásticas desenhadas nas costas. Apesar da xenofobia generalizada, o ódio era atenuado pelo
humor: Adolf Hitler tinha um testículo a menos e os pára-quedistas
alemães demonstravam uma certa tendência para descer dos céus
disfarçados de padres e freiras de pantomima.
Tal como com o meu livro anterior, fiquei surpreendido ao descobrir que nenhum outro escritor havia compilado um estudo verdadeiramente abrangente sobre o assunto. Existem, é claro, vários livros
conhecidos que abordam áreas específicas, tais como O Mito do Blitz
(1991), de Angus Calder, Testemunha Suspeita (1986) e Falsos
Espiões (1998), de Nigel West, e Critérios Duplos (2001), que cobre
grande parte dos aspectos do caso Rudolf Hess. Existe ainda um vasto
número de obras de grande formato que lidam com «segredos» e
«mistérios» diversos de forma superficial, enquanto que a dissecação
académica de John Keegan, A Batalha Pela História (1995), preocupa-se mais com a controvérsia que com o mito. Uma razão possível para esta ausência é o facto de a substância de muitas lendas e
mitos ser fundamentalmente banal, não fornecendo uma base sólida
para a construção de teses académicas abrangentes. Uma outra é que
algumas áreas nunca serão consideradas dignas de investigação pelos
historiadores militares. Sobretudo o oculto e os relatos fantásticos de
Foo Fighters entre 1944 e 1945. Mas um mito é um mito, uma lenda
uma lenda, e todos são dignos de análise nas páginas deste livro.
Apesar de a maior parte das ficções exploradas nos capítulos
seguintes terem pouco em comum – e não poderem ser facilmente
organizadas numa linha narrativa coerente – elas levantam, contudo, uma questão pertinente: como são criados os mitos e as lendas?
Respostas pormenorizadas serão forçosamente diferentes consoante
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os casos, como Lorde Arthur Ponsonby descobriu ao compilar o seu
histórico compêndio Falsidades em Tempo de Guerra, publicado
pela primeira vez em 1928 e recuperado em 1940. Dito isto, vários
padrões gerais podem ser discernidos. Uma causa indubitável é a
inexistência de factos concretos em tempo de guerra, muitas vezes
devido a dificuldades de comunicação com a Frente ou como resultado de uma censura deliberada. As «notícias caseiras», para utilizar um termo criado por Tom Harrison, fundador da organização
Mass Observation, são fabricadas para preencher o vazio, tal como
o eram as ficções baptizadas de «informação externa» pela escritora
Naomi Royde-Smith – sendo na grande maioria dos casos criadas
por pessoas que apenas desejavam parecer informadas junto do seu
círculo social imediato. Podemos desta forma isolar um desejo fundamental de obter certezas, onde nenhuma de facto existe – assim
como a mais pura gabarolice.
Uma outra causa é o apetite insaciável do homem da rua e do soldado na frente de combate por histórias mórbidas sobre morte, destruição e desgraças épicas sofridas por outrem – quer amigo, quer
inimigo. Pelo menos entre os Aliados o termo Schadenfreude1 seria
condenado por não ser patriótico. Esta síndrome é abordada com
algum detalhe na prelecção do exército dos Estados Unidos sobre a
Rede de Rumores, reproduzido no Apêndice II, e na seguinte passagem de Tom Driberg, extraída da sua colecção Colunata, relativa ao
desfecho de um raide aéreo a Londres em Outubro de 1940:
Olhei para as ruínas de uma casa na qual sabia ter morrido
um homem. Uma pessoa a meu lado disse: «Dizem que ainda
há dúzias de pessoas ali enterradas. Deviam chamar voluntários para ajudar. Porque não chamam voluntários?»
«Quem disse que havia dúzias de pessoas ali enterradas?»,
interrompi abruptamente.
Ele olhou-me de esguelha e resmungou: «Um tipo que estava
aqui ainda agora», e afastou-se. Passado um momento, ouvi-o
1
Palavra de origem alemã usada em relação a pessoas que se comprazem com
a desgraça alheia. (N. do T.)
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falar com uma mulher: «Dizem que ainda há dúzias de pessoas
ali enterradas. Deviam chamar voluntários...»
Outros mitos surgem graças a invenções desonestas de escritores
sem escrúpulos, quer por motivos financeiros, quer por ganância. Um
outro estímulo é a necessidade de sigilo: um caso particular foi o silêncio em redor da Enigma1 e da Ultra2, que persistiu até 1974 e deu azo
a mitos duradouros, incluindo o sacrifício deliberado de Coventry.
À lista de causas podemos ainda juntar as operações de decepção premeditadas e a própria propaganda – como no caso do sacrifício dos
lanceiros polacos em 1939, do mar em chamas no Canal da Mancha
em 1940, da maquilhagem dos aviadores alemães em 1941, e da dieta
de cenouras dos pilotos de caça nocturnos da RAF3.
A questão da existência efectiva de um indómito «espírito de Dunquerque» ou do «Mito do Blitz» na Grã-Bretanha tem sido discutida
por vários historiadores de renome nos últimos anos, inclusive por
Angus Calder e Clive Ponting. Na realidade, o próprio Tom Harrison
criticou publicamente muitos mitos da Frente Interna sobre o heroísmo e a unidade nacional, apontando a natureza elitista do sistema, a
inadequação das medidas tomadas para enfrentar os raides aéreos, e o
desânimo – e até a derisão – dos que sofriam o impacto dos bombardeamentos. Este estudo, contudo, não pretende ser uma história social,
não aspirando a nenhum estatuto mais ambicioso que o de um registo
objectivo de mitos, lendas, falsidades e controvérsias. Com efeito, deve
ser um dos poucos livros não-ficcionais que transforma em virtude o
facto de nele nada ser verdade.
Os meses iniciais de qualquer guerra são invariavelmente os mais
férteis em mitos: desta forma, os capítulos um, dois, três, cinco e seis
deste livro formam um todo coeso, uma vez que tratam do medo
dos espiões, de Dunquerque, do medo da invasão e do Blitz. Grande
1
Máquina portátil de cifragem/decifragem usada pelos alemães na Segunda
Guerra Mundial, cujo código foi decifrado pelos Aliados. (N. do T.)
2
Nome dado pelos serviços secretos britânicos a informações proveniente de
comunicações alemãs decifradas graças à Enigma. (N. do T.)
3
Royal Air Force. A força aérea britânica. (N. do T.)
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parte deste período é observada do ponto de vista britânico, mas
nunca a sua totalidade. Capítulos isolados sobre alegados crimes de
guerra perpetrados por tropas britânicas em Arras em Maio de 1940
(capítulo quatro), bem como a sinuosa história do Homem Que
Nunca Existiu (capítulo nove), envolvem um maior detalhe e, respectivamente, revelam como uma pesquisa defeituosa ou o puro
interesse próprio podem contribuir para o mito. Dado que Adolf
Hitler provavelmente encabeçaria a maior parte das sondagens
sobre os piores malfeitores do século XX, não será de surpreender
que os mitos sobre o Führer tenham merecido um capítulo próprio,
embora seja interessante notar que o seu maior rival, Estaline, permanece livre de mitos – pelo menos no Ocidente. Os capítulos onze
e doze são essencialmente miscelâneas de lendas baseadas em operações aéreas e terrestres, das quais emergem dois pontos salientes:
sempre que uma grande operação militar tem um resultado desastroso, um mito nasce no seu encalço; e sempre que grandes figuras
ou celebridades são dadas como mortas – sejam elas Glenn Miller,
Gunter Prien ou Adolf Hitler – começam a circular histórias de que
elas afinal não morreram. Bem vistas as coisas, cinquenta anos mais
tarde o mesmo se aplicaria a Elvis Presley.
Embora não possa ter a pretensão de que o livro irá alterar a percepção de qualquer pessoa acerca da Segunda Guerra Mundial, alguns
factos que nele emergem têm por vezes sido ignorados. A matança
generalizada de alegados membros da quinta-coluna em França, na
Bélgica e na Holanda, invariavelmente com base em poucas ou nenhumas provas, não é motivo de orgulho para ninguém – incluindo a
Força Expedicionária Britânica. O facto de o número total de mortes e execuções sumárias rondar alguns milhares durante uma campanha que durou pouco mais de um mês é especialmente perturbador. Grande parte das histórias sobre a guerra negligenciam o facto
de o mito do mar em chamas de 1940 ter sido a primeira vitória significativa da propaganda britânica na Segunda Guerra Mundial,
tendo em muito contribuído para convencer os Estados Unidos de
que a Inglaterra ainda não estava vencida. Há fortes indícios de que
os serviços secretos britânicos levaram a cabo inúmeras operações
de decepção com a ajuda de cadáveres, mantendo mais vínculos com
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os seus homólogos da Abwehr do que anteriormente se suspeitava.
A história de que os polacos lançavam a sua cavalaria contra os tanques alemães por acreditarem que a blindagem era feita de madeira
e lona é muitas vezes escarnecida como pouco mais que uma anedota. Ainda assim, com base na informação contida no capítulo três,
é difícil escapar à conclusão de que o exército polaco foi a única força que se opôs de forma séria e determinada à Wehrmacht1 antes de
1941.
Este estudo define-se igualmente pelas áreas que decidi omitir.
Por razões de espaço e de coesão, vi-me obrigado a não examinar
alguns assuntos. Apesar do livro conter capítulos sobre mitos aéreos
e terrestres, a análise detalhada do desastre do Royal Oak no capítulo dois deixou pouco material adicional disponível sobre mitos
navais. As ficções sobre bases secretas de submarinos alemães na
costa de Donegal continuam a ser apenas isso – ficções – tendo sido
desvendadas por Nigel West em Falsos Espiões: enquanto que a
ideia de que os submarinos alemães eram lançados ao mar com um
carregamento de membros decepados para poderem simular o seu
próprio naufrágio é um produto óbvio da propaganda. Continuam
a existir muitos mitos ligados ao movimento de resistência na
Europa, mitos que certamente merecem um estudo próprio, ao passo que a questão da negação do Holocausto continua a ser um tema
delicado e litigioso. A principal razão que me levou a não explorar
este tópico foi o facto das enganadoras alegações de que o Holocausto nunca ocorreu, ou que terá ocorrido numa escala muito
menor, serem criações do pós-guerra, e o meu intuito ser apenas
abordar mitos e lendas que tivessem surgido entre 1939 e 1945.
Pelas mesmas razões, evitei vários assuntos que podem ser mais
apropriadamente apelidados de teorias da conspiração, tais como a
alegação de que Roosevelt, avisado por Churchill do ataque a Pearl
Harbor, permitiu que este acontecesse para forçar os Estados Unidos a entrar na guerra da Europa.
É evidente que a reconhecida ficção sobre a «fábrica de cadáveres» de 1917 teve um efeito prejudicial na forma como o Ministério
1
Forças armadas da Alemanha Nazi. (N. do T.)
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da Informação lidou com os relatórios britânicos sobre as atrocidades praticadas pelos Nazis contra os Judeus. Mas isso não é um
mito, e provavelmente teve poucos efeitos práticos. A ideia errónea
de que o incalculável sofrimento humano infligido em Auschwitz
poderia ter sido aliviado por bombardeamentos dos Aliados é desmontada de forma convincente por William Rubinstein em O Mito
da Salvação (1997). A questão dos bombardeamentos em tapete
sobre a Alemanha é outra controvérsia que escapa ao âmbito deste
livro, sendo os leitores remetidos para A Guerra dos Bombardeiros
(2001), de Robin Neillands, cujo estudo anterior sobre o generalato
britânico na frente ocidental entre 1914 e 1918 tanto contribuiu
para acabar com os velhos mitos sobre burros e leões1. Um outro
estudo que merece maior atenção – ainda que não faça parte do
âmbito deste livro – é Outras Perdas, escrito por James Bacque em
1989. Esta investigação detalhada sobre a morte em massa de prisioneiros de guerra alemães após Abril de 1945 revela uma estimativa verdadeiramente perturbadora (apesar de contestada): a de que
pelo menos 750 000 prisioneiros morreram de má nutrição e doenças enquanto mantidos de forma deliberadamente inadequada em
campos franceses e americanos. O facto de os Aliados terem a razão
do seu lado durante a Segunda Guerra Mundial é um dos poucos
dados absolutos do conflito. Contudo, o assassínio em massa de prisioneiros de guerra desarmados entre Abril de 1945 e 1948 é uma
lição desagradável que continua a ter de ser aprendida por muitos – e
nunca esquecida.
Mas nenhum destes assuntos pode ser considerado mito ou lenda.
Para estes, prossiga.
JAMES HAYWARD
Fevereiro de 2003
1
Donkeys and lions no original. Expressão popular que descreve os soldados
britânicos que lutaram na Primeira Guerra Mundial como corajosos e os generais
que os comandavam como incompetentes.
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CAPÍTULO UM
VESTIDOS COMO FREIRAS
No capítulo inicial do meu livro Mitos e Lendas da Primeira Guerra
Mundial, descrevi como a Grã-Bretanha foi tomada de assalto pelo
medo dos espiões nos primeiros meses do conflito, durante os quais
qualquer pessoa – ou coisa – com ar vagamente estrangeiro era
encarada com hostilidade ou desprezo. Cães dachshund eram apedrejados nas ruas, charcutarias e salsicharias eram atacadas e pilhadas, anúncios publicitários esmaltados eram examinados em busca
de instruções codificadas ali deixadas para os espiões. Courts de
ténis eram identificados como plataformas para armas e qualquer
fósforo aceso em Londres era considerado um sinal para submarinos ou bombardeiros alemães. Espiões e sabotadores eram reconhecidos em qualquer esquina, normalmente disfarçados de barbeiros ou empregados de mesa, enquanto outros serviam como criadas
e governantas, as suas malas de porão repletas de bombas. Dizia-se
que vários agentes hostis haviam sido capturados usando roupas de
mulher ou disfarçados de enfermeiras. Parecia que em toda a parte
havia sinais feitos a aeronaves, alguns deles invisíveis, aos quais
estas respondiam lançando rebuçados envenenados sobre as cidades
de modo a causar mortes entre as crianças. Nenhum rumor era
demasiado ridículo, nenhum exagero excessivo.
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De facto, este alarmismo era em grande medida infundado e,
após o armistício, houve um grande desencanto com a revelação das
falsidades relacionadas com o Canadiano Crucificado1, com a fábrica
de cadáveres e os relatos muitas vezes pornográficos das atrocidades brutais cometidas pelo exército do Kaiser durante a sua marcha
pela Bélgica em 1914. Não deixa de ser ainda mais fascinante, portanto, que tantos destes mitos da Primeira Guerra Mundial tenham
sido tirados da prateleira, retocados e vendidos como novos em
1939 e 1940 – enquanto a Polónia, a Dinamarca, a Noruega, a
Holanda, a Bélgica e finalmente a França eram conquistadas. Rebuçados envenenados, espiões assassinos, criadas desleais, sinais secretos e até mesmo o caso dos anúncios de esmalte – tal como Lázaro,
todos foram ressuscitados assim que se iniciaram as hostilidades.
Dizia-se que Adolf Hitler, tal como anteriormente o Kaiser, estava
louco. Um rumor comum nos primeiros dias da guerra era o de que
o Führer tinha «saído de casa com uma arma e dado um tiro em si
próprio». Diz-se que a mentira tem pernas curtas, e esta falsidade
em breve desapareceu – sendo substituída pela lenda mais agradável
(e difícil de desmentir) de que o líder alemão possuía um único testículo. O assunto é discutido com mais pormenor no capítulo sete.
Embora em 1939 e 1940 o medo dos espiões não tivesse atingido
o pânico de 1914, os rumores da Primeira Guerra Mundial sobre as
figuras familiares ou «inimigos amigos» foram revistos e actualizados. A versão original envolvia uma jovem confrontada em Picadilly,
de forma súbita e inesperada, pelo seu noivo, um oficial da guarda
prussiana, que a decepou antes de se pôr em fuga num autocarro ou
táxi. Na versão actualizada, numa ou noutra cidade (Dover e Crewe eram algumas das localidades citadas) um vendedor visitara
uma casa recém-alugada para solicitar encomendas. Quando a porta
se abriu, o vendedor aterrorizado viu-se frente a frente com o mesmo
1
Relato que circulou durante a Primeira Guerra Mundial acerca da crucificação de um soldado canadiano com baionetas ou facas de combate perto do campo de batalha de Ypres, na Bélgica, em 1915. Nenhuma prova, contudo, viria a
confirmar a história, tendo esta vindo a ser considerada um produto da propaganda por um inquérito independente realizado no fim da guerra. (N. do T.)
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oficial prussiano que havia comandado de forma brutal o campo de
prisioneiros onde ele apodrecera durante dois anos. Nas suas memórias Amigo ou Inimigo, o auto-intitulado caçador de espiões Oreste
Pinto relata um alegado encontro acidental com um oficial nazi
holandês numa rua de Londres – embora Pinto seja uma testemunha
pouco credível e o incidente provavelmente uma invenção.
Uma outra característica comum aos primeiros dias de ambos os
conflitos foi a difusão generalizada – e quase jovial – de rumores
sobre destruições maciças. Tal como a Força Expedicionária Britânica em 1914 havia sofrido baixas que se diziam próximas da extinção imediatamente após a sua chegada a França, com a frota inglesa
a ser severamente fustigada no Mar do Norte, em inícios de Setembro de 1939 correu o boato de que várias cidades estavam a ser fortemente bombardeadas a partir do mar e do ar. Ao mesmo tempo,
qualquer aviso de raide aéreo era seguido de especulações delirantes sobre o horrível destino que se havia abatido sobre uma qualquer
parte longínqua do país. Embora não seja credível que qualquer pessoa desejasse ver repetida a devastação de Hartlepool, Scarborough
e Lowstoft, o apetite mórbido de alguns parece ter ultrapassado em
muito a mera resignação.
A partir de Setembro de 1939, começaram a chegar relatórios falsos sobre o uso de espiões no conflito da Polónia, muitos dos quais
apoiados por fontes oficiais. Dizia-se que pára-quedistas alemães
lutavam com uniformes polacos, sendo ajudados por habitantes
locais de ascendência alemã que envergavam roupas distintivas ou
excêntricas, e que a brutalidade das tropas alemães incluía o uso de
civis como escudos humanos e uma relutância em fazer prisioneiros.
Afirmava-se que aviões alemães lançavam chocolates e cigarros
envenenados, enquanto outros relatórios faziam referência a folhas
de tabaco semeadas em pastos para que o gado, afugentado pelo
odor a nicotina, sucumbisse à fome. Quando a Luftwaffe ficava sem
bombas, atirava pedaços de carris e ferro-velho das suas aeronaves.
Embora não se tivesse verificado uma repetição da propaganda de
atrocidades sustentada que os Aliados haviam forjado em 1914-15,
é evidente que as autoridades polacas tomaram a decisão consciente
de fabricar algumas histórias, a mais flagrante das quais envolvendo
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o uso de gases venenosos. Numa conferência de imprensa em Londres, a 3 de Setembro, o embaixador polaco anunciou que a Força
Aérea alemã havia começado a lançar bombas de gás, enquanto que,
no dia 5, um comunicado de Varsóvia afirmava que:
Bombardeiros alemães lançaram bombas asfixiantes e muitas pessoas ficaram feridas ou queimadas. Houve muitas vítimas, especialmente entre as crianças... Aviões inimigos lançaram pequenos balões com gás venenoso que foram apanhados
por crianças nas ruas. Análises posteriores demonstraram que
haviam sido enchidos com gás mostarda.
Com base neste relatório, o assunto foi discutido na Câmara dos
Comuns. No terreno dizia-se que agentes e sabotadores alemães
tinham envenenado reservatórios de água com gás mostarda, ao
passo que na Alemanha corria o rumor de que os britânicos forneciam bombas de gás aos polacos. Dado que ambos os lados estavam
empenhados em evitar a deflagração da guerra química, estas acusações foram rapidamente postas de lado. A 14 de Setembro, Lorde
Hallifax lembrou à Câmara dos Lordes que a Alemanha havia ratificado o protocolo de Genebra, que proibia o uso de gás como arma
de guerra. A contra-alegação alemã de que minas polacas com gás
venenoso tinham causado baixas perto de Jaslo teve um impacto
reduzido: e, apesar de denúncias de atrocidades em ambos os lados,
tornou-se claro que, pelo menos na Grã-Bretanha, o ambiente reinante era o cepticismo. Uma missiva prudente publicada em vários
jornais a 9 de Setembro, assinada com o pseudónimo «Homem
Comum», deplorava alguns dos relatos mais extravagantes publicados durante a primeira semana da guerra:
A verdade parece já ser a primeira vítima em alguns jornais.
As primeiras notícias da guerra na Polónia sugerem que as
mulheres e as crianças foram os alvos preferenciais... Um jornal trazia a história de chocolates envenenados lançados sobre
cidades polacas, resultando na morte de várias crianças... Será
que não podemos esperar que esta guerra seja travada sem
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mentiras como a da fábrica dos cadáveres? Uma causa justa
deveria ser defendida com base na verdade – e apenas com
base nela.
No entanto, a voz da razão (ou do desencanto) não foi ouvida. Tal
como as histórias sobre chocolates e rebuçados envenenados, também
os rumores generalizados de sinais para aviões inimigos eram antigas
relíquias da Primeira Guerra Mundial. Esta paranóia em particular foi
sem dúvida alimentada pelo bombardeamento de civis durante a Guerra Civil de Espanha, guerra que também originou um novo nome para
a ameaça de espiões e estrangeiros: a quinta-coluna. A expressão tem
sido atribuída ao general Emílio Mola, que, em Outubro de 1936,
gabava-se de ter quatro colunas de soldados aguardando ordens
para marchar sobre Madrid – e uma quinta dentro da cidade pronta
a sublevar-se e a lutar por Franco. Na realidade, não havia qualquer
organização nacionalista na cidade – e nenhuma prova sólida de que
tivesse sido o próprio general a exprimir a ameaça nesses termos.
A expressão, contudo, foi adoptada por vários jornais britânicos e
usada por Ernest Hemingway como título da sua peça de 1939
sobre a vida e o amor naquela cidade sitiada.
Tal como durante a Primeira Guerra Mundial, o uso de sinais fantasma por elementos da quinta-coluna na Polónia adquiriu formas
diversas. Transmissores em miniatura eram colocados em túmulos,
chaminés e árvores, enquanto outros pintavam sinais nos telhados,
caiavam as próprias chaminés ou amontoavam fardos de palha
segundo padrões bizarros. Dizia-se que as plantações e os pastos
haviam sido cultivados ou cortados segundo planos preestabelecidos, enquanto que à noite os sinais eram emitidos graças a lampiões,
fogos ou fósforos. Um espião chegou mesmo a ser identificado
«pelos seus sapatos alemães». Ainda que estas actividades fossem
ilusórias, o seu resultado era bem real. Na Polónia, um número
indeterminado de suspeitos foi detido ou morto com base em provas insuficientes ou mesmo inexistentes. Somente na cidade de
Thorn, trinta e quatro pessoas foram mortas por fazerem sinais com
espelhos ou bandeiras, enquanto que a alegada existência de atiradores furtivos em Bydgoszcz levou a uma represália no dia 3 de
23
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Setembro, dia esse que ficou apelidado de Domingo Sangrento.
Hans Roos, no seu livro História da Polónia Moderna, afirma que
cerca de 7000 alemães ou descendentes de alemães foram deportados, assassinados ou simplesmente executados durante a vaga de
ódio nacional que varreu o país – isto apesar de um número considerável de descendentes de alemães fazer parte do exército polaco.
Oito meses mais tarde, a mesma justiça sumária e os mesmos rumores viriam a repetir-se na Holanda, na Bélgica e em França.
Na verdade, a ajuda oferecida pelos descendentes de alemães na
Polónia parece ter sido acima de tudo descoordenada. Muitos ajudaram a limpar estradas, repararam veículos, deram de comer às
tropas e serviram de guias – mas isso não pode ser comparado aos
bandos de assassinos e sabotadores presentes nos mitos. É um facto que unidades dos serviços secretos alemães (inclusive do regimento Brandenburgo) operaram com roupas civis para garantir a
tomada de objectivos primários no início da campanha – mas não
disfarçados de padres ou monges, ou com qualquer dos disfarces
extravagantes normalmente atribuídos à quinta-coluna polaca. Visto
não terem sido utilizadas forças aerotransportadas na Polónia,
nenhuma destas forças lutou com uniformes polacos, como fora
sugerido por relatórios preliminares.
Após seis meses de guerra estagnada, a 9 de Abril de 1940 as forças alemãs invadiram a Dinamarca. O país foi tomado de surpresa
e dominado num único dia. Face a este acontecimento, torna-se fácil
compreender a rápida disseminação de rumores sobre tropas alemãs
escondidas nos porões de navios ancorados em Copenhaga alguns
dias antes, ou em vagões de mercadorias transportados pela linha
regular Warnemunde-Gjedser – tropas prontas a entrar em acção no
momento exacto, quais «gregos a sair do cavalo de Tróia». Na
região norte de Schleswig, os rumores de tácticas clandestinas também incluíram o envenenamento de reservatórios de água – embora
a imprensa estrangeira estivesse mais interessada nas abomináveis
actividades da nefasta quinta-coluna. Segundo o The Times:
Indubitavelmente, membros da grande comunidade alemã
desempenharam um papel preestabelecido, tal como um grande
24
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número de oficiais alemães na reserva que, trajados à civil,
obtiveram vistos de entrada fazendo-se passar por homens de
negócios.
Também a Noruega foi atacada no mesmo dia. E também aqui
surgiram rumores de que forças alemãs haviam sido introduzidas nos
portos através de navios de carga, enquanto uma alegada quinta-coluna armada e já disposta no terreno passava ordens falsas em
Oslo, cortava linhas telefónicas e sabotava uma barragem de minas.
Dizia-se que muitos haviam entrado no país como vendedores, turistas e até como crianças adoptadas. O governo britânico teve acesso
a esses relatórios no mesmo dia, sendo estes considerados factuais.
Um relato amplamente publicado, escrito por Leland Stowe do Chicago Daily News, deixava uma impressão sinistra e duradoura:
A capital da Noruega e os seus grandes portos marítimos
não foram capturados por forças armadas. Foram tomados
com uma rapidez sem paralelo graças a uma gigantesca conspiração que, indubitavelmente, deve ser qualificada como um
das tramas políticas mais audaciosas e mais bem oleadas do
último século. Através de subornos e de uma infiltração
extraordinária de agentes nazis – e graças à traição de alguns
civis e oficiais noruegueses bem colocados – a ditadura alemã
construiu na Noruega o seu próprio cavalo de Tróia.
Em toda a parte o retrato pintado era o de Aliados impotentes
lutando contra um inimigo invisível capaz de planos diabólicos. Um
sapador britânico, evacuado após um ataque abortado a Trondheim
em Maio, lamentava-se: «O lugar estava infestado de espiões. Os alemães sabiam das nossas movimentações quase no momento exacto
em que as púnhamos em prática.» A verdade é que a força expedicionária enviada para a Noruega fora organizada à pressa e era
composta essencialmente por elementos do Exército Territorial com
equipamento precário, tendo sido incapaz de organizar uma contra-ofensiva eficaz apesar do seu número em Trondheim ser seis vezes
superior ao das tropas alemãs. Apesar da marinha britânica ter sido
25
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capaz de infligir danos consideráveis à sua congénere alemã, em
terra a campanha norueguesa foi um desastre vergonhoso.
Uma vez mais, a realidade do «cavalo de Tróia» era bem diferente. Na Dinamarca os alemães étnicos pouco mais fizeram que
oferecer uma saudação entusiástica, uma vez que as operações
secretas realizadas ao longo da fronteira haviam sido levadas a
cabo por operacionais da Abwehr – os serviços secretos alemães
– e não por uma quinta-coluna dinamarquesa. Não havia tropas
alemãs escondidas em navios: em vez disso, elas atravessaram simplesmente o Báltico em barcos comerciais ou em vasos de guerra
no próprio dia do ataque, apanhando os dinamarqueses de surpresa. Logo a 6 de Maio, o ministro dos Negócios Estrangeiros
norueguês anunciou publicamente que ainda não tinha descoberto
qualquer caso confirmado de traição, mas o comunicado não teve
grande impacto. Apesar de na Noruega o nome do anterior ministro dos Negócios Estrangeiros – Vidkun Quisling – se tornar sinónimo de traição, ele não foi levado a sério pelos alemães, e os seus
seguidores do Nasjonal Samling1 não participaram de forma activa
na batalha. Embora Quisling tivesse conseguido capturar uma
estação de rádio para se proclamar primeiro-ministro, só em 1942
é que os seus senhores alemães lhe permitiram que usasse o título.
No estudo definitivo de 1953, A Quinta-Coluna Alemã na Segunda
Guerra Mundial, o historiador holandês Louis de Jong concluiu
que não foram utilizadas forças especiais na Dinamarca e na
Noruega, apenas tropas aerotransportadas regulares. Um inquérito oficial do governo da Noruega sobre a participação activa de
qualquer membro proeminente do Nasjonal Samling na invasão
alemã chegou exactamente à mesma conclusão. Hitler e os seus
generais queriam manter os seus planos em segredo, tendo os
estrategas alemães socorrido-se principalmente de guias turísticos
como o Baedeker.
Apesar do núcleo duro dos mitos sobre a quinta-coluna já estar
definitivamente posicionado em Maio de 1940, foi a invasão da
1
Partido fascista norueguês criado em 1933 por Vidkun Quisling e Johan Bernhard Hjort e activo durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
26
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Holanda a 10 de Maio que levou ao desabrochar do maior número
de falsidades. Na iconografia do mito, os pára-quedistas alemães
vieram substituir os temíveis Uhlans1 de 1914, em parte devido à
própria dimensão das forças utilizadas contra a Holanda: cerca de
4500 pára-quedistas e 430 aviões de transporte. A desmesurada histeria holandesa, contudo, talvez se tenha ficado a dever ao facto de
a Holanda ter permanecido neutral durante a Primeira Guerra Mundial, não estando assim recordada de que, na guerra, a verdade é
sempre a primeira vítima.
Os factos são os seguintes. Na Holanda o braço aerotransportado alemão realizou três operações principais. Pára-quedistas da
7.a Divisão Flieger capturaram três pontes estratégicas sobre o rio
Maas, enquanto que em Roterdão 120 homens transportados por
hidroaviões tomavam várias pontes principais. Menos sucesso
teve uma força aerotransportada que foi quase completamente
destruída ao desembarcar em Haia, tendo assim falhado o objectivo de capturar a rainha Guilhermina e o seu governo. Aliada à
espectacular conquista da fortaleza belga de Eban Emael por apenas 55 militares de Engenharia que ali aterraram usando planadores, o cômputo geral dos feitos das forças aerotransportadas
alemãs nos Países Baixos foi considerável. No entanto, a vitória
teve um preço elevado: perderam-se quase todos os pára-quedas
e 3900 dos quase 11 000 homens foram mortos, feridos ou capturados.
Na Holanda surgiram de imediato relatos fantásticos que depressa se alastraram à Grã-Bretanha. Na noite de 10 de Maio, o Ministério do Interior emitiu um comunicado alertando contra pára-quedistas inimigos «usando uniformes criados para confundir os
observadores», devendo os cidadãos denunciar qualquer salto suspeito à esquadra de polícia mais próxima. No mesmo dia uma circular do Ministério do Ar avisava que os pára-quedistas alemães
poderiam descer com as mãos levantadas sobre a cabeça em acto de
rendição mas ocultando granadas prontas a serem utilizadas. No dia
seguinte foi relatado que 200 pára-quedistas com uniformes britâ1
Regimentos da cavalaria alemã durante a Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)
27
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nicos haviam aterrado em Haia. A 13 de Maio o Daily Express
publicou este relatório ridiculamente alarmista:
No primeiro dia da invasão os pára-quedistas caíram dos
céus como um bando de abutres. A maioria estava disfarçada
com uniformes das forças aliadas ou holandesas, enquanto
outros, envergando uniformes da polícia holandesa, começaram a dar ordens nas ruas, fornecendo indicações falsas ao
exército. Um «polícia» disse a um grupo isolado de soldados
holandeses que os seus camaradas estavam ao virar da esquina.
Quando os soldados holandeses viraram a esquina, tropas
alemãs, barricadas na rua, limitaram-se a aniquilá-los...
Mas o mais fantástico foi o relato de um comissário de bordo de um navio inglês que afirmava que ele e a tripulação
tinham avistado pára-quedistas envergando roupas de mulher.
Usavam blusas e saias e carregavam espingardas semiautomáticas. O comissário de bordo não conseguiu perceber se eram
de facto mulheres ou homens disfarçados de mulheres. Várias
testemunhas oculares no navio confirmaram o relato, dizendo
que outros tinham aterrado disfarçados de padres, camponeses ou à civil...
Enquanto as espingardas desciam dos céus como luzes artificiais a salpicar as ruas, os membros da quinta-coluna saíram
dos seus esconderijos fortemente armados envergando uniformes alemães. Durante semanas a Holanda havia tentado identificar os elementos da quinta-coluna, mas quando as portas se
abriram às três da manhã, vários homens que haviam sido
declarados anti-nazis refugiados da Alemanha empunhavam
espingardas.
Num registo idêntico, o Daily Telegraph relatou a existência de
rapazes de entregas que carregavam granadas nos seus cestos, conluiados com espias que assinalavam a sua lealdade aplaudindo junto
das suas janelas. Continuando a ladainha de «todos os truques usados para minar a confiança e causar distúrbios», o Daily Express
apresentava uma lista com «chocolates e vinhos envenenados» e
28
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«espiões disfarçados de padres, carteiros e criadas». Um outro relato típico surgiu no mesmo dia no Eastern Daily Press:
A organização de defesa interna da Holanda iguala em
vigilância o valor dos seus soldados na frente, enquanto os
pára-quedistas inimigos e a quinta-coluna atingem o coração
do país. Pára-quedistas alemães disfarçados de clérigos e camponeses – e outros com uniformes das forças holandesas
– foram capturados em diversas cidades, ao mesmo tempo que
centenas de membros da quinta-coluna eram presos... O correspondente da Press Association viu um enorme prédio ser
cercado por polícias com baionetas fixas enquanto outros
polícias subiam ao telhado e, por fim, perseguiam e disparavam sobre um homem que tinha feito sinais a aeronaves inimigas.
Um destacamento de soldados holandeses foi ontem atacado perto de Haia por um grupo de «compatriotas» que afinal
eram, nada mais, nada menos, que soldados alemães. É conveniente recordar que já no passado mês de Agosto um morador de uma pequena aldeia alemã da Vestefália vira um carregamento com cerca de 2000 uniformes holandeses – de
carteiros, empregados de caminhos-de-ferro, polícias e soldados – empilhado numa repartição local. A razão para este
aprovisionamento foi agora revelada.
A quantidade e a semelhança destes relatos sugerem terem sido
criados deliberadamente por propagandistas oficiais, provavelmente
do departamento EH, uma pequena subsecção do MI61 encarregue
da criação de propaganda. A acusação de utilização de tácticas desonestas e desrespeito pelas leis da guerra substituiu em grande parte
a propaganda explícita de atrocidades cometidas entre 1914-18,
com livros como A Profanação da Holanda (1940) e Bélgica em
1
Serviços secretos de informação do Reino Unido, responsáveis pela espionagem no estrangeiro (ao contrário do MI5, serviços de segurança responsáveis pela
contra-espionagem e segurança interna). (N. do T.)
29
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Cativeiro (1943) a oferecerem bem menos que o prometido pelos
seus títulos sombrios. No entanto, o alegado uso de escudos humanos foi reavivado, como se comprova pela capa da revista The War,
reproduzida na secção de imagens, e por um comunicado oficial
holandês disponibilizado pela British United Press:
Alguns dos pára-quedistas tinham utilizado armas para forçar condutores de autocarros a levá-los a certos locais, protegidos pelos civis holandeses que nele se encontravam, mas
foram posteriormente aniquilados pelos nossos tanques. Aparentemente os soldados alemães não conseguem lutar sem usar
civis como escudos humanos.
De Bruxelas chegou a notícia de que os pára-quedistas alemães
saltavam dos seus aviões com bonecos usados para simular a sua
morte ao aterrar, permitindo assim a sua fuga. Em Ostend teriam
saltado usando uniformes azul-celeste e pára-quedas transparentes,
de modo a parecerem quase invisíveis enquanto desciam. Na realidade, nem um único pára-quedista foi utilizado na Bélgica, embora
uma outra história tenha surgido quando o Ministério do Ar anunciou a 14 de Maio que os pára-quedistas alemães eram lançados como
bombas a partir de um buraco no chão das aeronaves: «o piloto puxa
uma alavanca e lá vão eles».
Hoje em dia estas histórias podem parecer extravagantes mas, em
Maio de 1940, muitas foram levadas a sério pelo Comité Conjunto
dos Serviços de Informação e talvez pelo próprio Churchill, que a 18 de
Maio escreveu a Roosevelt dizendo que a Grã-Bretanha «deve contar ser atacada em breve segundo o modelo holandês». Muitos oficiais de alta patente sucumbiram ao medo, incluindo o almirante Sir
Bertram Ramsey, o comandante naval de Dover, que relatou:
Indicação de inúmeros actos de sabotagem e de actividades da quinta-coluna em Dover, por exemplo, fugas de informação, sabotagem de defesas fixas, compra de carros em
segunda mão a preços exorbitantes que são posteriormente
deixados em vários locais de estacionamento.
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A 31 de Maio o general Ironside, comandante das forças territoriais, registou no seu diário:
Relatos de actividades da quinta-coluna em toda a parte.
Um homem usando uma braçadeira com uma suástica estacionou junto a um importante aeródromo no Comando Sul.
Postes vitais das linhas de telégrafo marcados, homens suspeitos movendo-se à noite por todo o país...
Com efeito, a 2 de Julho, Ironside escreveu convictamente: «há
sinais por todo a parte» e «sem dúvida, pessoas a prepararem aeródromos» – ao mesmo tempo que lamentava (aparentemente sem ironia) o facto de ninguém conseguir obter qualquer tipo de provas.
Ainda em Setembro de 1940, unidades da Guarda Territorial em
Londres foram oficialmente incumbidas de detectar sinais feitos a
aviões inimigos. Em 1941, o Ministério da Informação recorreu à
falsificação de memórias de refugiados, como, por exemplo, Diário
de Um Rapaz Holandês Refugiado, da autoria do inteiramente fictício Dick van der Heide, enquanto que, em 1942, filmes como
O Capataz Foi Para a França e O Dia Correu Bem? continuaram a
alimentar os velhos estereótipos da quinta-coluna. De volta a 1940,
o MI5 chegou de facto a enviar oficiais para examinar os postes de
telégrafo no sul do país, enquanto aviões da força aérea britânica
patrulhavam os campos em busca de sinais suspeitos. Um relato em
primeira mão da investigação frustrada sobre um chefe de escuteiros alegadamente envolvido na sabotagem de uma estação de radares em West Beckham, Norfolk, é fornecido por R. V. Jones em
A Guerra Mais Secreta.
Os militares holandeses também não foram imunes aos rumores.
No seu relato A Prova do Batalhão da Frente, publicado em 1945,
E. P. Weber recorda:
É impossível nomear um único comandante do exército
holandês que, segundo os boatos, não tenha sido morto pelo
menos uma vez. Gases venenosos foram identificados nas
estradas por onde as nossas tropas devem passar. Sempre que
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se encontrar chocolates, estes devem ser destruídos, pois estarão sem dúvida envenenados. Dizia-se que as nossas granadas
tinham areia em vez de pólvora, e havia rumores de que as
casamatas cediam ao primeiro disparo porque o betão não era
de boa qualidade.
Pára-quedistas e sabotadores eram frequentemente vistos como
uma única ameaça vinda do ar, como no seguinte relato de 14 de
Maio. Nesse dia, um grande contingente britânico voltou da Holanda por mar: incluía diversos oficiais consulares, repórteres e todos
os elementos da companhia de ballet Sadlers Wells.
Todos os passageiros tinham algo a dizer sobre a quinta-coluna alemã na Holanda. Muitos apoiantes dos Nazis, e até
empregadas domésticas, socorriam os pára-quedistas que apareciam com os disfarces mais variados: varredores de ruas, clérigos, polícias e carteiros. Tocavam frequentemente à porta de
casas particulares e apontavam as armas exigindo roupas civis.
Muitos pára-quedistas capturados eram rapazes de 16 ou
17 anos. Não sabiam o que era lutar e contaram a um oficial
holandês que haviam sido empurrados dos aviões ao sobrevoarem os objectivos. Um ainda trazia a última carta da mãe
com a sua fotografia. Contou que, ao partir, se convencera de
que nunca mais voltaria a vê-la.
Pouco ou nada do que se dizia era verdade e, como veremos no
capítulo seis, a técnica de disseminação de desinformação útil através de viajantes e passageiros voltaria a ser utilizada em 1940,
quando o mito de uma invasão alemã falhada foi deliberadamente
promovido na América. Entre os evacuados que voltavam da Holanda encontrava-se Sir Neville Bland, o representante britânico junto
do governo holandês em Haia que se apressou a preparar um relatório sobre a «Ameaça da Quinta-Coluna». Esta fantasia em mil
palavras incluía a seguinte desinformação:
Eram todos rapazes de 16 a 18 anos, completamente cegos
com as ideias de Hitler, e com nenhum outro pensamento nas
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suas mentes que não fosse o de causar o maior número de mortes e estragos antes de serem eles mesmos mortos. Caíam nos
telhados, em espaços abertos – e até em jardins particulares...
Bland conta igualmente como um destacamento de tropas alemãs
foi conduzido a uma ponte estratégica por uma criada. E avisava que
quando o momento chegasse, a quinta-coluna na Grã-Bretanha iria:
Encetar de imediato uma campanha de sabotagem generalizada, com ataques indiscriminados a civis e militares. A mais
insignificante das criadas não somente pode ser como geralmente é uma ameaça para a segurança do país... e não podemos chegar à conclusão, partindo da nossa experiência da última guerra, de que «o inimigo no nosso seio» é agora menos
perigoso do que então. Não tenho a menor dúvida de que,
quando for dado o sinal – algo que acontecerá quando Hitler
o quiser – haverá tentáculos do monstro em todo o país prontos a encetar de imediato uma campanha de sabotagem generalizada, com ataques indiscriminados a civis e militares. Não
nos podemos dar ao luxo de correr esse risco. TODOS os alemães e austríacos, pelo menos, deveriam ser detidos de imediato.
Alguns atribuem a Bland a fama de ter importado para Inglaterra
o pior dos mitos sobre pára-quedistas e a quinta-coluna, mas a
maioria deles já tinha aparecido na imprensa. Ao mesmo tempo, o
departamento EH preparava um relatório intitulado «Operações na
Holanda», contendo a familiar ladainha de disfarces bizarros, cigarros envenenados e camponesas armadas com metralhadoras. Na
realidade, a principal função do relatório Bland foi ajudar a justificar a detenção em massa de estrangeiros ordenada pelo Ministro do
Interior a 13 de Maio.
Mito e realidade confundiram-se ainda mais quando, a 16 de
Maio, o ministro dos Negócios Estrangeiros holandês E. N. van
Kleffens afirmou pela primeira vez que pára-quedistas inimigos
haviam descido dos céus vestidos de freiras. Com o tempo esta ima-
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gem pitoresca transformar-se-ia num dos filões principais da mitologia da quinta-coluna. Van Kleffens comunicou inicialmente a falsidade à imprensa francesa, não tendo esta incendiado de imediato
a Inglaterra. Em fins de Maio os mitos sobre pára-quedistas
incluíam não só os uniformes azul-celeste, os bonecos e os trajes
femininos mas também a selvajaria brutal. Dizia-se que alguns pára-quedistas encontrados mortos na Holanda «tinham obviamente sido
mortos pelas costas – alegadamente pelos seus superiores no avião,
após terem demonstrado uma relutância indevida face ao salto que
tinham de enfrentar». Um relatório do final de Maio oriundo da
Noruega afirmava que alguns alemães estavam a ser empurrados
dos aviões de transporte sem pára-quedas: «Estes soldados recebem
ordens para saltar, ou são atirados, de aviões voando a baixa altitude de modo a caírem sobre a neve nas encostas das montanhas, na
esperança de que alguns consigam escapar sem membros partidos.»
Esta história absurda talvez tenha sido inspirada pelo número considerável de pára-quedistas alemães mortos devido a pára-quedas
defeituosos que não abriram durante o salto.
Embora aceitando que pelo menos alguns desses «aventureiros
armados» tinham de facto saltado «disfarçados de mulheres e raparigas», a revista The War Illustrated parecia apostada em mostrar
algum respeito pelos Fallschirmjäger1:
O soldado pára-quedista é um invasor formidável. Pode
trazer consigo uma bicicleta articulada e até uma tenda portátil: com as suas rações de combate pode continuar com a sua
missão até obter comida; se conseguir entrar em contacto com
um elemento da quinta-coluna, a ajuda será garantida.
Tal como na Polónia e na Escandinávia, a actividade da quinta-coluna na Holanda foi insignificante. As histórias sobre carne,
água e cigarros envenenados eram infundadas, o mesmo se passando com os relatos de sinais inimigos – que incluíam luzes e «suásticas gigantescas» queimadas nos campos – ou ainda a história de um
1
Pára-quedistas, em alemão no original. (N. do T.)
34
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bando de homens armados que tentara capturar a esquadra central
da polícia em Haia. Unidades alemãs do regimento Brandenburgo
usando uniformes falsos tentaram de facto capturar vários postos
fronteiriços estratégicos – mas apenas tiveram sucesso em Gennep,
onde uma dessas unidades manteve o controlo da ponte até à chegada de um comboio blindado. Tal como noutros lugares, o mito
holandês do «Cavalo de Tróia» ganhou forma graças a uma relutância natural em atribuir o fracasso a um mau desempenho das tropas no terreno – ou em enfrentar o facto de, dois dias antes da invasão, o adido militar alemão em Haia ter inspeccionado as defesas
holandesas com o simples pretexto de desejar visitar os campos de
tulipas locais.
Esta ameaça fantasma espalhou-se rapidamente pela Bélgica e
pela França. Na Bélgica os serviços de segurança, que já tinham a
obrigação de estar bem informados, avisaram que pára-quedistas
alemães tinham aterrado em diversas zonas do país vestidos à civil
e equipados com transmissores em miniatura. Na realidade, nenhum
pára-quedista foi utilizado na Bélgica ou em França. Ainda assim, a
14 de Maio, foi oficialmente anunciado que agentes inimigos
«envergando uniformes castanho-claro com botões gravados com a
suástica» tinham atacado repetidamente a polícia. Uma outra história dizia que entre os refugiados holandeses havia membros das
SS1 com perucas aos caracóis e barbas falsas que se faziam passar
por judeus ortodoxos de Amesterdão. Foi inclusivamente emitida
uma ordem oficial para que todos os anúncios de chicória Pacha
fossem removidos:
A cumplicidade de algumas pessoas permitiu que os alemães colocassem na parte de trás indicações úteis para os
pára-quedistas que aterrassem nas imediações... Eles apenas
têm de encontrar o anúncio de chicória Pacha mais próximo,
que pode estar numa mercearia ou junto a uma estrada, e na
parte de trás encontrarão indicações codificadas fornecendo a
1
Organização militar e de segurança desenvolvida a partir da guarda pessoal
de Hitler para se tornar o principal braço armado do partido nacional-socialista.
(N. do T.)
35
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localização do agente alemão mais próximo e a melhor forma
de o encontrar... Isto foi confirmado por sucessivos avisos
radiofónicos.
Esta história não era mais verdadeira que a de 1914, quando
exactamente o mesmo mito ficou ligado a marcas específicas de
comida, sobretudo às sopas Maggi. De facto, a pobre raiz de chicória parece ter sido objecto de um enorme ódio na Bélgica em Maio
de 1940. Embora a rápida tomada da fortaleza de Eban Emael
tivesse sido atribuída a raios da morte e gases venenosos, no ano
seguinte uma revista americana afirmava que o forte fora mandado
pelos ares por sabotadores alemães que, antes da guerra, tinham cultivado chicória em cavernas das redondezas, enchendo-as sub-repticiamente de explosivos.
Vários livros publicados em 1940 e 1941 promulgavam estas invenções como fidedignas, sendo o mais popular Através da Noite Escura,
da autoria do prolífico James Lansdale Hodson, que estivera na Bélgica e em França como correspondente do jornal Sketch. Visto a esta
distância, torna-se evidente que Hodson (bem como outros autores)
considerava legítima a disseminação de mentiras verdadeiras em tempo de guerra – e alguns dos seus textos foram decerto fornecidos pelos
ministérios da Guerra e da Informação. A 13 de Maio ele relata:
Uma aristocrata belga com quem me encontrei hoje em Bruxelas disse-me: «Os alemães têm estado a lançar bombas disfarçadas de canetas, lápis e bugigangas. Quando alguém as apanha,
elas explodem; e o Maire acaba de emitir um aviso...» Perto de
Bruxelas foram capturados seis alemães disfarçados de freiras
– uma história familiar, mas neste caso bem documentada.
Além de lançar homens disfarçados de mulheres e adolescentes
com armas automáticas, a Luftwaffe aparentemente não se coibia de
empregar mulheres como tripulantes:
Ouvi falar de um avião abatido sobre a Flandres com raparigas que desempenhavam as funções de piloto, navegador e
36
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artilheiro, com um único sargento a bordo. Mas o oficial que
me informou ouvira a história em segunda mão, embora afirmasse que a pessoa que lhe tinha contado era de confiança e
que ele próprio as vira.
Hodson afirma igualmente que em Lovaina:
Um homem suspeito queimou a bandeira belga no mercado, protestando em alta voz que não queria que ela caísse
nas mãos dos alemães. Seria um sinal? Ninguém sabia.
Membros do Real Regimento de Infantaria da Irlanda do Norte,
estacionado junto à aldeia de Bossuyt, informaram que:
Nesta zona há imensas notícias e boatos de actividades da
quinta-coluna, incluindo espiões disfarçados de oficiais britânicos em visita ao quartel-general – histórias raramente confirmadas. Mas, em todo o caso, uma seta como as que o inimigo utiliza para localizar o QG foi descoberta num campo
lavrado – uma grande seta desenhada no solo, com três discos
de gramofone na cauda.
O mito da Primeira Guerra Mundial sobre sinistros oficiais
espiões, ressuscitado no famoso filme O Capataz Foi Para a França,
foi também usado por Hodson em relação à retirada do regimento
do duque de Wellington de Dyle:
Homens com uniformes britânicos agiam de forma suspeita,
podendo bem tratar-se de espiões. Primeiro um coronel da
guarda ordenou-lhes que ignorassem as ordens e que tomassem novas posições, depois um major-de-brigada afirmou que
a estrada estava bloqueada quando na realidade não estava, e
um brigadeiro ordenou a destruição de uma ponte em Tournai, apesar dos protestos de que ainda era extremamente
necessária.
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E segundo o regimento escocês Black Watch:
Um regimento que cedeu o lugar aos Black Watch avisou-os de que os alemães tinham atravessado o rio em grupos de
três, em fardas de combate e cantando Tipperary1... Alguns
dos soldados alemães abatidos usavam uniformes caqui – provavelmente pára-quedistas.
E os Royal Scots:
Um soldado escocês contou-me como haviam capturado
alguns pára-quedistas disfarçados de belgas e como tinham
perdido um camarada ao fazê-lo, dizendo que «os alemães
levantaram as mãos para se render, mas um escondia uma granada que atirou quando nos aproximámos».
Relatos igualmente propagandísticos de Douglas Williams
(Os Novos Ignóbeis, 1940) e Bernard Gray (Repórter de Guerra,
1941) alimentaram de igual modo os recorrentes mitos sobre sinais,
atiradores furtivos, agentes infiltrados e desenhos nas plantações.
No entanto, poucos são realmente contemporâneos dos acontecimentos e não suportam o escrutínio de forma a poderem ser considerados fontes históricas fidedignas.
O rumor de que agentes inimigos se haviam infiltrado em vários
países vestidos de freiras é uma das lendas mais coloridas e duradouras da Segunda Guerra Mundial – embora se trate seguramente
de uma invenção deliberada. Talvez tenha sido criada para retratar
o inimigo como infiel e perverso sem recorrer aos boatos sobre crucificações que circularam durante a Primeira Guerra Mundial. O mito
nasceu em Paris, a 16 de Maio, quando o ministro dos Negócios
Estrangeiros holandês, van Kleffens, encenou uma dramática conferência de imprensa durante a qual afirmou que pára-quedistas alemães tinham descido sobre a Holanda «aos milhares» vestidos com
1
Canção famosa do início do século XX que se tornou popular durante a Primeira Guerra Mundial, tendo sido adoptada pelos soldados do exército britânico.
(N. do T.)
38
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«sotainas de padres e roupas de freiras ou enfermeiras». Ainda em
1940, o seu livro, A Profanação da Holanda, repetiria descaradamente e até à exaustão todo e qualquer mito sobre a quinta-coluna.
O mito das freiras levou algum tempo a ganhar fama, aparecendo
em poucos diários da época – embora o capitão do corpo de médicos
do exército britânico J. H. Patterson tenha descrito um incidente caricato junto a Tournai, a 19 de Maio. Após ordenar ao seu sargento-chefe que inspeccionasse uma coluna de freiras suspeita, Patterson reparou que fora dada especial atenção às mãos, pés e queixos, tendo daí
resultado o veredicto de que as irmãs eram de facto mulheres. Os relatos posteriores de veteranos da Força Expedicionária Britânica sobre
encontros com freiras com pêlos nas mãos e botas de combate são tão
duvidosos quanto os alegados encontros imediatos com o Anjo de
Mons relatados em 1915, vários meses após a ocorrência. Por exemplo, esta história mencionada por Williams em Os Novos Ignóbeis:
Num dado local, um oficial britânico deparou-se com
vários alemães despindo-se num bosque e disfarçando-se de
freiras. Perto dali esperava-os uma carroça, com a qual seguramente pretendiam atravessar as linhas britânicas. Escusado
será dizer que não conseguiram concluir a viagem.
Mesmo em 1961 o historiador Richard Collier estava disposto a
aceitar como verdadeiro um relato idêntico:
O artilheiro William Brewer e quatro companheiros, durante a retirada de Dunquerque, estavam a beber chá junto a uma
casa quando o cabo «Geordie» Allen chegou a correr branco
como a cal: «Já alguma vez viram um raio de uma freira a fazer
a barba?» Atravessando rapidamente o pasto, os cinco homens
depararam-se com o que julgavam ser o mais ridículo dos boatos: dois pára-quedistas alemães, com coifas brancas e crucifixos ao pescoço, barbeando-se atrás de um fardo de palha.
Segundos mais tarde as «freiras» sucumbiram, trespassadas
pelo fogo de calibre .303, o sangue escuro espalhando a sua
mancha sobre os negros hábitos.
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O mito das freiras foi especialmente popular em França e incluiu
a história de um assassino nazi desmascarado e morto no mesmo
instante por uma multidão enraivecida. Na verdade, consta que o
poeta Jean Cocteau terá afirmado que «ao longo das estradas francesas só se avistavam freiras a apertar as grevas».
Na Grã-Bretanha o mito das freiras parece ter ganho popularidade somente em fins de Maio. No dia 24, um resumo dos serviços de informação interna do Ministério da Informação mencionava «o habitual acervo de rumores sobre “freiras com pêlos nas
mãos” e pára-quedistas», e uma «casa com refugiados cegos que
teriam alegadamente várias metralhadoras em sua posse». No
mesmo dia o Eastern Daily Press publicava um artigo com o título
«Freira Apanhada a Barbear-se»:
Elsie Seddon, uma das seis assistentes sociais do Exército de
Salvação que ontem chegaram a Inglaterra... contou como
numa das várias ocasiões em que teve de abandonar o carro
para procurar abrigo nos bosques junto à estrada ao avistar
bombardeiros inimigos, soldados franceses se haviam lançado
sobre ela. Aparentemente pensavam que ela seria uma espia ou
um pára-quedista. Quando comprovou a sua identidade, eles
pediram desculpa e explicaram que alguns dias antes tinham
encontrado uma «freira» barbeando-se à pressa naquele mesmo bosque. «Ela» era um pára-quedista alemão.
Freiras suspeitas tornaram-se rapidamente um popular assunto
de conversas, facto reflectido nos relatórios da organização Mass
Observation. A entrada de 30 de Maio do diário de Naomi Mitchison ilustra-o bem:
Falámos de agentes alemães disfarçados. Archie mencionou
que as freiras tinham muitas vezes pés grandes, e que provavelmente muitas delas seriam homens. A conversa tornou-se
então mais prosaica, como sempre acontece com os presbiterianos escoceses.
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Que na Grã-Bretanha a história nunca foi levada a sério é algo
evidente na biografia de Leonard e Virginia Woolf escrita por John
Lehmann:
Um medo absurdo de espiões andava à solta e, alguns dias
após a queda de Paris, Leonard, após recuperar a compostura,
contou-nos a maravilhosa história de como, durante uma viagem de comboio para Londres, Virginia havia sussurrado
insistentemente em tom teatral que uma freira perfeitamente
inocente que entrara na carruagem era um pára-quedista nazi
disfarçado.
Uma variação inusitada do mito das freiras masculinas foi registada pela escritora Margery Allingham no seu diário Coração de
Carvalho:
Os semanários humoristas não traziam nada de novo sobre
os alemães em termos de invenções. Soldados atónitos contavam histórias extraordinárias de impostores, nomeadamente
de destemidas mulheres de cabelos compridos trabalhando em
quintas na Bélgica que, afinal, não passavam de nazis corpulentos, levando o seu disfarce a um extremo tal que tudo acabava em farsa.
O tema das freiras postiças tomou conta da imaginação popular
como nenhum outro. Foi inclusivamente salientado de forma especial numa transmissão de Harold Nicolson, secretário parlamentar
do Ministério da Informação. Ao referir-se aos disseminadores de
boatos, avisou:
Ele dirá que o cunhado – os disseminadores de boatos têm
sempre inúmeros cunhados – vinha no comboio de Derby
quando uma freira entrou e começou a ler um livro de orações. O livro entretanto caiu do seu colo e, ao debruçar-se
para apanhá-lo, ela revelou um pulso masculino com uma
tatuagem de Adolf Hitler.
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Embora o estudo aprofundado de De Jong sobre a quinta-coluna tivesse sido traduzido para inglês em 1956, as caricatas histórias
de freiras usando botas de combate permaneceram vivas durante
décadas. Em 1976, uma história americana ainda afirmava:
No Heugot’s, um café junto à Place du Palais Bourbon,
uma espantosa transformação teve lugar quando uma freira
que durante meses a fio havia feito colectas regulares junto dos
políticos que frequentavam o café subitamente revelou ser...
um alemão. Tal como Cocteau antes referira, havia «freiras»
em toda a parte, já que ultrapassar o disfarce era um assunto
delicado.
Exceptuando os mitos sobre freiras, é possível que o rumor mais
ridículo sobre a quinta-coluna tenha sido exportado do Luxemburgo. Descrevia um falso circo ambulante que atravessara a fronteira alemã e cujos artistas eram, na sua totalidade, militares. Por
toda a França afirmava-se que vários chefes de estação tinham sido
desmascarados como espiões, histórias que ombreavam com os costumeiros relatos de sabotadores aerotransportados, luzes suspeitas,
ordens falsas, rebuçados envenenados e escudos humanos. Julgava-se que Arras fora tomada por pára-quedistas que efectuavam os
seus saltos à noite usando tochas, e em Paris ouviam-se relatos diários de tropas a aterrar em parques públicos. A ideia de que elementos da quinta-coluna desenvolviam planos para atrair os refugiados para as estradas, posicionando-os de modo a dificultar o
movimento das tropas, parece também ter tido origem em França.
Um outro mito francês afirmava que as unidades motorizadas alemãs possuíam a fantástica capacidade de abastecer os seus veículos
com água, à qual adicionavam uma pastilha pequena mas, evidentemente, milagrosa.
O mito da quinta-coluna em França recebeu um grande impulso
quando, a 21 de Maio, o primeiro-ministro Paul Reynaud declarou
que as pontes sobre o rio Meuse haviam sido traídas – quando, na
realidade, a sua perda ficara a dever-se a pura incompetência militar. Agentes suspeitos de pertencerem à quinta-coluna receberam o
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mesmo tratamento brutal que o registado na Polónia, com as unidades francesas a receberem ordens para disparar sobre qualquer
elemento estranho que não fosse capaz de justificar a sua presença
num dado distrito. Num único incidente em Abbeville, pelo menos
22 pessoas foram fuziladas – enquanto vários milhares terão sido
provavelmente mortas em bosques ou junto a bermas de estrada.
A execução sumária de tripulantes de aviões abatidos era uma rotina.
O diário de um capitão da cavalaria francesa, Daniel Barlone, revela
o grau de credulidade subjacente à orgia de violência que se apoderou do país:
A quinta-coluna existe realmente; todas as noites vemos
luzes azuis, verdes e vermelhas por toda a parte. Um regimento
não pode permanecer mais de duas horas numa dada posição
sem ser bombardeado, com bombas enormes... O despenseiro
Charbonnier, no nosso hospital, ordenou o fuzilamento de
cinco pessoas, uma das quais uma linda rapariga; ao fazerem
sinais com luzes e cortinas de cores diferentes, tinham guiado
aviões inimigos que acabaram por incendiar uma fábrica de
produtos químicos nas imediações.
Seis meses após a capitulação da França, André Morize, que trabalhara no Ministério da Informação antes de deixar o país, contribuiu de forma significativa para a disseminação do mito da quinta-coluna na América. Num artigo frequentemente citado, publicado
no jornal Sunday Star, Morize descreveu «regimentos completos» de
agentes alemães infiltrados na Holanda – afirmando igualmente que
espiões tinham subornado comunistas franceses para sabotarem o
esforço de guerra. Alguns militares americanos levaram essas afirmações a sério, tendo o major-general Robert Richardson avisado o
Departamento da Guerra que soubera de «fontes fidedignas» que
«a indústria de máquinas de escrever estava infestada de membros
da quinta-coluna». Com efeito, em Fevereiro de 1942, pelo menos
trinta cidadãos de ascendência japonesa foram presos por fazerem
sinais durante o famoso raide aéreo fantasma de Los Angeles, examinado no capítulo doze.
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Quais eram os motivos subjacentes a estas estranhas falsidades?
É evidente que muitos aliados tinham um interesse óbvio em atribuir
as vitórias alemãs a uma arma secreta clandestina e não à sua fraca
liderança ou incompetência militar. No entanto, vimos como muitos militares e políticos britânicos, incluindo Churchill, Ramsay e
Ironside, encararam estes mitos como verdadeiros, chegando Churchill a sugerir que haveria cerca de 20 000 nazis organizados na
Grã-Bretanha. Com efeito, o afundamento do Royal Oak em Scapa
Flow em Outubro de 1939, bem como uma série de misteriosas
explosões na fábrica de pólvora de Waltham Abbey, dois meses mais
tarde, convenceram muitos da existência de uma perigosa quinta-coluna na Grã-Bretanha. Segundo R. V. Jones, tanto os serviços
secretos como a força aérea britânica continuaram a perseguir sombras durante toda a Batalha de Inglaterra:
Os oficiais de segurança demonstravam um grande zelo na
investigação de relatos de fogos de artifício utilizados quando
aviões alemães sobrevoavam o espaço aéreo. Aviões da RAF
esquadrinhavam os campos ingleses à procura de padrões suspeitos no terreno que pudessem servir de pontos de referência
para ajudar a navegação dos bombardeiros inimigos. Vários
agricultores foram surpreendidos pela visita de oficiais de
segurança para que explicassem porque haviam cortado o
feno de modo a criar um padrão distinto que podia ser visto
do ar. Uma capela cujo jardineiro tinha inconscientemente
aberto trilhos que, vistos do ar, formavam uma seta gigante
– que de facto apontava aproximadamente para um armazém
de munições a quinze quilómetros dali – foi atacada como
sendo um quartel-general da quinta-coluna.
Um depoimento semelhante foi prestado por um oficial do 21.o Esquadrão estacionado na base da RAF de Watton, em Norfolk. Segundo
o tenente-coronel P. Meston:
O meu melhor amigo, o capitão David Watson, perguntou-me um dia se eu notara algo de estranho nos campos. Auto-
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rizei um voo e partimos para investigar. Após cerca de vinte
minutos, o David perguntou-me se eu via algo de anormal.
Respondi que não. Ainda me lembro da sua resposta: «Olha
para aqueles montes de limos». E então consegui perceber.
Os montes desenhavam linhas direitas através dos campos,
formando setas. Seguimos as linhas, mas não conseguimos
perceber o seu sentido. Relatamos o facto ao nosso superior e
o assunto acabou por chegar aos ouvidos do comandante da
unidade, o coronel Vincent, que repreendeu o nosso comandante por dar ouvidos a dois jovens pilotos que se tinham deixado levar pela imaginação. Mesmo assim, decidiu ver com os
seus próprios olhos e notificou os seus superiores. No dia
seguinte o local estava infestado com elementos do MI5 que
nos avisaram para ficarmos calados e não mencionarmos o
assunto a ninguém. Cerca de um ano mais tarde ficámos a
saber, por mero acidente, que os montes de limos eram pontos de referência para a invasão aerotransportada da Grã-Bretanha e que, além disso, tinham sido descobertas pistas de
aterragem com trincheiras cobertas e cercas retrácteis.
Como se poderia esperar, as acusações formais resultantes de
actividades da quinta-coluna foram pouco numerosas e espaçadas
no tempo. Um antigo apoiante de Oswald Mosley1 chamado Saxon-Steer foi condenado a sete anos de cadeia por colar um panfleto do
New British Broadcasting Service2 numa cabine telefónica; em
Dezembro de 1940, Dorothy O’Grady, dona de uma pensão na Ilha
de Wight, foi condenada à morte por cortar cabos de telefone,
embora mais tarde se viesse a saber que a confissão era falsa. O único
caso remotamente sério foi o de Marie Ingram, uma mulher nascida
na Alemanha e casada com um sargento da RAF que conspirou com
vários membros da União Fascista Britânica na área de Southsea de
1
Oswald Ernald Mosley, fundador, em 1932, da União Fascista Britânica.
(N. do T.)
2
Estação radiofónica que, durante a Segunda Guerra Mundial, transmitia propaganda alemã. (N. do T.)
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forma a extrair informações de soldados em serviço e infiltrar-se na
guarda territorial para obter armas e munições. Aquando da sua
sentença, em Julho de 1940, Ingram foi condenada a dez anos de
prisão, e um cúmplice de nome Swift a catorze.
Apesar do caso Ingram ter servido para convencer algumas pessoas da realidade da quinta-coluna, a crença no mito era bem mais
profunda. Alguns historiadores concluíram que a ameaça da quinta-coluna foi deliberadamente concebida para justificar as detenções
em massa na Grã-Bretanha – e aqui reside uma grande parte de verdade. Entre Janeiro e Abril de 1940, vários jornais britânicos,
incluindo o Sunday Dispatch e o Daily Mail, tentaram criar uma
tempestade em torno da «ameaça estrangeira», a qual incluía «fascistas, comunistas, pacifistas e refugiados estrangeiros em conluio
com Berlim e Moscovo» – e também o Exército Republicano Irlandês. Em Fevereiro, o Evening Standard chegou a afirmar que a Gestapo andava ocupada a «empregar judeus para servirem como
espiões em Inglaterra». Tais relatos, contudo, não tiveram grande
impacto, sendo os demais jornais mais cautelosos. O The Times
alertou para a «histeria» vivida na guerra anterior, salientando que
a maioria dos estrangeiros que tinham chegado a Inglaterra eram
refugiados genuínos que fugiam à perseguição nazi, tendo já passado por vários processos de verificação. O Daily Express seguiu
uma linha semelhante, concluindo que «todas as pessoas com um
pensamento liberal, todos aqueles que dão valor a uma vida livre,
devem opor-se a qualquer tipo de recrudescimento da caça às bruxas, independentemente da forma que esta assumir».
Mesmo após a invasão da Noruega e da Dinamarca, parece que
grande parte do público britânico se recusava a levar a quinta-coluna
a sério. Naomi Royde-Smith, autora de Informação Externa (1941),
um livro que se apresenta como «um diário de rumores» ouvidos na
zona de Winchester, regista o seguinte:
Após a retirada da Noruega, rumores como os de Quisling
espalharam-se como fogo. Num certo domingo o meu chá da
manhã foi servido com o anúncio de que o responsável pelo
município havia sido preso por espionagem. Mesmo enso-
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nada, recusei-me a acreditar na notícia – que acabou por se
revelar falsa. Temos ainda, contudo, a história pormenorizada
da filha de um clérigo local que foi capaz de denunciar como
espião um oficial britânico alojado no vicariato. Sentiu-o ir à
casa de banho durante a noite – e ele não puxou o autoclismo!
Este comportamento pouco inglês ateou as suas suspeitas,
referiu ela, e veio a descobrir-se que o convidado fazia sinais
com uma lanterna na janela do retiro.
Durante a última semana de Abril, a organização Mass Observation conduziu uma sondagem exaustiva sobre as atitudes em relação à quinta-coluna. Os resultados foram reveladores:
Descobrimos que a maioria das pessoas mal sabia o que a
expressão significava. Também descobrimos que o nível dos
sentimentos do cidadão comum era muito menos intenso que
o revelado pelos jornais. Entrevistas detalhadas em várias partes de Londres e no oeste da Escócia revelaram que menos de
uma pessoa em cem sugeria espontaneamente que os refugiados deveriam ser alvo de detenção em massa.
Existem poucas dúvidas de que os relatórios fantásticos engendrados por Bland e pelo departamento EH foram preparados com
esse intuito, sendo posteriormente passados para o Ministério da
Informação como base para os artigos que seriam oferecidos aos jornais britânicos. O mesmo tipo de desinformação também circulou
na América, nomeadamente numa série de quatro artigos escritos
pelo coronel William Donovan e publicados em Agosto no New
York Times. Os artigos baseavam-se claramente na informação fornecida durante a sua famosa missão de recolha de dados em Inglaterra, que ocorreu entre 14 de Julho e 4 de Agosto. Em Dezembro
de 1941, e após o ataque japonês a Pearl Harbor, os mitos já costumeiros sobre estrangeiros e sinais suspeitos eram relatados na América como factos, como veremos no capítulo doze. É duvidoso que
esta campanha concertada para convencer o público britânico da
realidade da quinta-coluna tenha dado frutos, já que, em Julho, uma
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sondagem do Instituto Gallup revelava que apenas 43% do público
desejava que todos os estrangeiros fossem detidos. E pelo menos
numa dada ocasião os magistrados arquivaram um caso contra uma
mulher nascida na Alemanha que fora acusada de fazer sinais a
aeronaves inimigas com uma tocha.
Havia ainda uma outra razão premente para inquietar a população com a fantasia da quinta-coluna. A 10 de Maio, o dia em que a
Holanda, a Bélgica e a França foram atacadas, Churchill substituiu
Chamberlain como primeiro-ministro e um enorme receio da invasão começou de facto a sentir-se. O diário do seu secretário pessoal,
John Colville, regista uma conversa reveladora com Churchill em
Chequers1 a 12 de Julho:
Ele salientou que o grande medo da invasão (que apenas
deixámos de ridicularizar seis semanas atrás) está a servir um
propósito extremamente útil: está a conseguir fornecer-nos o
melhor exército ofensivo que alguma vez tivemos, mantendo
ao mesmo tempo todos os homens e mulheres num elevado
grau de prontidão. Ele não deseja, portanto, que o medo diminua e, apesar de pessoalmente duvidar que a invasão seja uma
ameaça séria, pretende dar essa impressão, falando de vigílias
longas e perigosas, etc., na sua transmissão de domingo.
Os itálicos são meus e servem para enfatizar um método com
provas dadas que foi recorrentemente utilizado durante a Segunda
Guerra Mundial. Em Maio de 1941, quando as tropas aerotransportadas alemãs capturaram a ilha de Creta, espalhou-se a notícia
de que os pára-quedistas alemães tinham saltado disfarçados de soldados gregos e neozelandeses. E a 2 de Março de 1942, ao anunciar
que tropas japonesas estavam a atacar Java, a BBC noticiou que o
inimigo tinha tomado um posto de controlo Aliado usando uniformes britânicos. Na realidade, a mera etnia dos soldados teria sido
suficiente para desmascarar esse ardil. Mas a realidade quase nunca
consegue extinguir o mito.
1
Residência de campo do primeiro-ministro britânico. (N. do T.)
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