Paisagem e Memória

Transcrição

Paisagem e Memória
G£il/ E
Traduc.U);
HILDHGARD FEIST
( ' >^:Í . \ M i
\.
1.Í;K\
MEMÓRIA
INTRODUÇÃO
SÓ quando passei para a escola s e c u n d á r i a percebi que n ã o devia gostar de Rudyard K i p l i n g . F o i u m choque. N ã o que eu me importasse m u i t o
c o m K i m e M o w g l i . Já Pack of Pook-s hill [ O diabrete do monte Pook\a
outra história — na verdade, minha história favorita desde que ganhei o
livro ao completar o i t o anos dc idade. Para u m m e n i n o com a c a b e ça n o
passado, a fantasia de K i p l i n g era poderosamente m á g i c a . Exidentemente,
havia na Inglaterra certos lugares nos quais pessoas, que ali estiveram séculos atrás, dc repente se materializavam, de m o d o inexplicável, diante de
uma criança (neste caso, D a n o u U n a ) . C o m a ajuda d o diabrete podia-sc
viajar através d o t e m p o sem sair d o lugar. N o m o n t e Pot)k, os felizardos
D a n e U n a conversaram com guerreiros vikings, c c n t u r i ò c s romanos, cavaleiros normandos c. depois, foram para casa toniar cha.
Eu n ã o dispunha d c n e n h u m m o n t e , porem n n i i . i o Tam;s.\ N ã o era
o r i o a montante q u e . segundo os poetas de minha antologia Palgrave.
borbulha\ por entre margens cobertas de musgo. T a m p o u c o era a larga
estrada verdc-olixa que divide Londres. Eu tinha o e s t u á r i o baixo, visitado
pelas eaivor.is, o leito nupcial de sal e á g u a doce. estcndendo-se ate onde
conseguia a\ista-lo. de minha margem no N o r t e dc Essex. c dirigindo-se
para u m estreito h o r i z o n t e negro no o u t r o lado. La esiawi Kenr. o sinistro
i n i m i g o que sempre nos derrotava n o campeonato de cnqucte. Na maior
parte dos dias. o \ e n r o nos trazia uma lufada de aromas, mciis.ieen^ olfati\as da cidade e d o iiiar: trafego mtensi» e peixe fresco. K . entre elas. o
cheiro do p r ó p r i o \ e l l i o : penerrante e r a n ç o s o , eomo se o exalasse u m
vasto fungo subt1u\ial existente n o Iodo primcNo.
L'ns q u i n / e q u i l ó m e t r o s adiante, correnteza abaixo. esta\ a gloriosamente l ú g u b r e cidade l i t o r â n e a de Southend. aue. no final d o século passado despontou c o m o "os p u l m õ e s de L o n d r e s" Lar.ip.idas coK»ridas
enieit.n àir. o pie:'. <''vL- roea\ uni;; b.-.nda b/irullie:-.*;;.
nvjsi,.-.-; fanhosa
anvpníi^aiuio
p.
i;^-;.
..uu.v es>.nir.> (
;^.>'~.;<>^ cs;.i\,in; ..obcrtos
rc, cravar os dentes em cilindros de a ç ú c a r - c a n d e que exibiam u m cor-derosa fosforescente, as letras da marca sangrando a cada m o r d i d a . Mais
p e r t o dc casa, o pequeno p o r t o dc Leigh ainda abrigava barcos pesqueiros
dc c a m a r ã o e b a r r a c õ e s dc amêijoas. E m St. Clcments estavam enterrados
seus pais "peixes": n ã o s ó Richard H a d d o c k ( m o r t o em 145v^K mas tamb é m Robert Salmon ( m o r t o em 1 6 4 L ) , cujo epitáfio o proclamava "restaurador da n a v e g a ç ã o inglesa". Para além dos b a r r a c õ e s , areia tisnada,
coberta dc conchas dc moluscos e c o r d õ e s de algas marinhas empoladas e
negras, que se estendiam até a á g u a cinzenta. Q u a n d o a m a r é baixava,
e x p o n d o uma e x t e n s ã o de lama cor de ferrugem , eu caminhava q u i l ó m e tros a partir da praia, testando a profundeza da vasa, chapinhando entre
caranguejos e caramujos, que fugiam às pressas, e o l h a n d o fixamente para
o p o n t o exato onde imaginava que o rio encontrava o mar.
Pois era lá que meu diabrete m a r í t i m o , t a h ez u m descendente de
M e r c ú r i o , me encontraria. Ele enchia o h o r i z o n t e dc m i n ha i m a g i n a ç ã o
infanril c o m metros de lona e madeira estalante; corda e a l c a t r ã o e ancoras
c fumo de r o l o . Largas galeras entravam no rio c o m suas fileiras de remeiros r e s m u n g õ e s . Longos barcos, c o m cabeça de dragã(> na proa e escudos
de a ç o pregados nos flancos, deslizavam, a m e a ç a d o r e s , correnteza acima.
Galeotas e caravelas oscilavam sua\emente, ao sabor das ondas d o e s t u á r i o ,
e x i b i n d o em seus g u r u p é s querubins radiantes o u c o r s á r i o s dc turbante,
olhos esbugalhados e perigosas suiças. Grandes clíperes carregados de cha.
as velas enfunadas com(» os lençóis em nosso \ a r a l , dirigiam-se para as
docas de Londres. E m meus devaneios, a p r ó p r i a linha da costa misteriosamente dissolvia .seus bares d e c r é p i t o s e seus guindastes enferrujados n u m
bo.sque s o m b r i í ) à margem do rio. onde a copa das arvores emergia de u m
nevoeiro antigo e f u n é r e o . Q u a n do viajei de barco c o m meu pai. i n d o de
Gravesend a T o w e r Bridge, os portt)s de W a p p i n g e R o t i i e r h i t h e ainda t i nham grandes navios cargueiros, em lugar dos restaurantes grã-finos e das
sedes das c o r p o r a ç õ e s . N o e i i i a u i o . com os olhos da mente, eu via as geraç õ e s de ancoradouros crivados de mastros e gruas, c o m o numa grav ura dc
Hollar, as pontes instáveis apinhadas de casas de madeira caindo aos pedaç o s , tervilhando de vida com os grandes tormigueiro s da cidade imperial.
Eu ainda n ã o havia lido as primeiras paginas de Ht \ i r : c j ' Hnrk i . i } : '
j Coração Has triTas] e levei anos para descobrir que Joseph C.onrad se antecipara nessa visão da historia inglesa d o lado de ca d o Tamisa, oscilando no
ancoradouro ao sabor das mares. Q u a n d o , pt)r fim. encontrei (diarlie
.NLirlovv e seus sombrios colegas a b o r d o do escaler \r!!n\ : . - \ dn no
e s t u á r i o , a "venerável c o i r c n i c " banhada na " l u / augusta de l e m b r a n ç a ^
i m o r r e d o u r a s ". tranquili/ei-me e. na mesma medida, ficiuci dccepcuMiado
Pois j^areceu-me que a ideia do 1 amisa c o m o u m divisor de t c i n p o e espa
ç o ta/ia parte de uma tradição. Se tivesse recuado mais na literatura do^
grandes navios tluviais, teria des^.obeno (.uie a v.or!e;ut. m.ipenai dc
C o n r a d , a rota tle p e n e t r a ç ã o comercia' v.]ue l e r m m a em d e s n o i í e a m e m o .
loucura e m o r K . era uma o b s e s s ã o amiga. .-\mes ^ie o^ barcos Mionano^
do um lugar dc areia carregada pelos ventos, de pedra nua e poeira vermelha, n i i s p o r i era areia. Assim, o que mais I.irael poderia ser, s e n ã o uma floresta alta e arraigada no chão? Niuguem se deu ao trabalho de nos dizer
quais foram as arvores que patrocinamos. Mas a c h á v a m o s que eram cedro,
cedro s a l o m ò n i c o : a fragrância do templo de madeira.
T o d o ano o r i t m o da colagem das folhas se acelerava furiosamente na
medida em que se aproximava o T u bi-Shevat, o d é c i m o q u i n t o dia d o mes
de Shcvat: o ano-novo das á r v o r e s . A festa originou-se n u m a data estabelecida arbitrariamente, que marcava o t é r m i n o de u m ano de d í z i m o s sobre
os frutos e o c o m e ç o de o u t r o — uma forma curiosa e aprazível de comemorar o h m dc u m ano de impostos. Em Israel, c o n t u d o , a data foi totalmente reinventada c o m o o Dia Sionista da .Arvore, ao qual n ã o faltam
crianças, de pazinha em p u n h o , plantando o equivalente b o t â n i c o de si
mesmas em fileiras alegres e obedientes. É u m ritual inocente. N o entant o , por trás dele, esconde-se uma longa e rica t r a d i ç ã o p.igã t|iie \ i a as Horestas i-ogiti^ o ni<.-.>.^fMin-í diiiLJU';^^''*^'.'^ início da h a b i t a ç ã o . Paradoxalmente, c o m o veremos, essa foi uma tradição que floresceu nas mesmas
culturas que estigmatizaram os judeus como frutos estranhos e promoveram campanhas p e r i ó d i c a s de criminosa extirpação . C o n h e c í a m o s , c o n t u d o , ainda menos que o fatalismo conradiano, o Goldcn l/oiujh
[Ramo
dourado] de ] . G . Frazer, c o m suas relações míticas entre sacriticio e renoxação. T a m p o u c o nos o c o r r ia que os hebreus b í b l i c o s , c o m o todas as t r i bos de pastores d o antig o Oriente P r ó x i m o , c o m certeza c o n t r i b u í r a m
para despir as colinas d o Levante. E, mesmo que t i v é s s e m o s n o ç ã o disso,
n ã o nos i m p o r t a r í a m o s . T u d o que sabíamos era que criar uma floresta
judia significava \ o l t a r à o r i g e m de nosso lugar no m u n d o , ao b e r ç o da
nação.
U m a vez i m p l a n t a d o , o irresistível ciclo da x e g e t a ç ã o — onde a m o r te
simplesmente adubava o processo d o renascimento
pajxaj^2iT>meter a
ve;;^4wkic.i imorr.iiidade nacional. A t é os i n c ê n d i o s , que p ( x i i a m devastar as
encostas verdes Í c o m o h á alguns anos de\m no Sul d o monte
C a r m e l ) , p r o m o v i a m o ciclo natural de renovaçjio, c o n q u a n t o afetassem
apenas a superfície. N ã o admira que algumas das primeiras á r v o r e s plantadas nas p o v o a ç õ e s pioneiras d o litoral palestino fossem eucaliptos i m p o r tados, que n ã o s ó rtxaram as dunas, como ainda assentaram t u b é r c u l o s
lenhosos nas profundezas d o solo, os quais, por sua vez, n ã o s ó resistiam
ao fogo, c o m o ainda se tornavam mais robustos e vigorosos c o m as chamas da superfície. Sob a crosta de cinzas, s a b í a m o s , sempre haveria a abenç o a d a vitalidade.'
Assim, a g r a d e c í a m o s por nossa ár\ore_ij e papel c o m o se ela fosse
descendente da . \ r v o r e da V i d a , guardada no Jardim d o Eden p o r u m anjo
que empunha uma espada flamejante, segundo nos d i z e m as Escrituras.
Nossa arboricultura de seis pt-iict' estava recriando esse jardim no novo
Sion. E, se a visão que uma criança tem da natureza já pode c o m p o r t a r
l c m b r a n ç . \ s , mitos e significados complexos, m u i t o mais elaborada é a
16
I
moldura atra\cs da qual nossos olhos adultos contemplam a paisagem.
Pois, conquanto estejamos habitUvidos a situar a natureza e a percepÇvio
hiunana em dois campos distintos, na verdade elas são inseparáveis. Antes
de poder ser u m repouso para os sentidos, a paisagem é obra da rnsgite.
C^ompõe-sc tanto de camadas de l e m b r a n ç a s quanto de estratos de rochas,
l
Claro está que, objetivamente, a a t u a ç ã o dos vários ecossistemas que
sustentam a vida no planeta independe da interterència humana, pois eles
já estavam agindo antes da caótica a s c e n d ê n c i a do Homo sapiens. Mas t a m b é m é verdade que nos custa imaginar u m ú n i c o sistema natural que a cultura humana n ã o tgnha^modificado substancialmenny p i r i m'i-lh"r '^u p.irii
pior. E isso n ã o é obra apenas dos séculos industriais. Vem acontecendo
desde a antiga M e s o p o t â m i a . E c o n t e m p o r â n e o da escrita, de toda a nossa
existência social. E esse m u n d o irreversivelmente modificado, das calotas
polares às florestas equatoriais, é toda a natureza que temos.
Os fi.indadores d o moderno ambientalismo. H e n r y David T h o r e a u e
l o h n M u i r , garantiram que "nos ermos bravios se^''nrp'^''^i ^ preser\o
d o muneio". A ideia era que a natureza selvagem estava em algum lugar,
no c o r a ç ã o d o Oeste americano, esperando que a descobrissem, e que seria
o a n t í d o t o para os venenos da sociedade industrial. Os "ermos bravios'',
c o n t u d o , eram, naturalmente, p r o d u t o d o desejo da cultura e da elaboraç ã o da cultura tanto quanto qualquer o u t r o jardim imaginado. O^y^imciro
Eden americano, por e.xemplo, e t a m b é m o mais famosiii.Yosemite. E m bora o estacionamento seja quase t ã o grande quanto o parque e os ursos
estejam fiaçando entre embalagens d o McDonalcPs, ainda imaginamos
Yosemite c o m o .Albert Bierstadt o p i n t o u o u Carleton Watkins e Ansel
Adams o tbtogrataram: sem n e n h u m vestígio da presenç a humana. É evidente que o p r ó p r i o ato de identificar (para n ã o dizer fotografar) o local
p r e s s u p õ e nossa p r e s e n ç a e, conosco, toda a pesada bagagem cultural que
carregamos.
Afinal, a natureza selvagem n ã o demarca a si mesma, n ã o se nomeia.
Foi uma lei d o Congresso, em 1 S64^ que designou Yosemite \y c o m o
o lugar de significado sagrado para a n a ç ã o , durante a guerra que assinal o u o m o m e n t o da Queda no Jardim .Americano.- T a m p o u c o a natureza
selvagem venera a si mesm-.. Foian-i necessárias visitas santificantes de pregadores da N o v a Inglaterra c o m o T h o m a s Starr K i n g , fotógrafos c o m o
Leander VVeed, Eadwaerd M u y b r i d g e e Carleton Watkins, pintores que
usam dntas c o m o Bierstadt e Thomas M o r a n e pintores que usam palavras
c o m o John M u i r . para r e p r e s e n t á - l a c o m o o parque sagrado d o Oeste; o
local de u m n o v o nascimento; uma r e d e n ç ã o para a agonia nacional; uma
recriação americana. A topografia d o local, estranhamente sobrenatural,
com prados reluzentes atapetando o vale até as escarpas de C^uhedral
Rock, o rio Merced serpenteandt) pelo c a p i n / a l , presta-se m u i t í s s i m o b e m
a essa visão de u m paraíso terrestre d e m o c r á t i c o . E o lato de os visitantes
terem de iítscer para o fundo do vale s ó acentua a sensação religiosa de
estarem entrando n u m s a n t u á r i o .
C o m o rodos os jardins, Yosemite pressupunha barreiras eontra a bestialidade. N o c;Hant<i, seus protetores inverteram as f o n v e n ç õ e s . dei.\and(,>
os animais dentro e os humanos tora. AssinT, ranto as companhias de mineração que p e n e ' - i r a m nessa area da Sierra Nevada quanto os mdios
.\h\e róram meticulosa e energicamente expulsos do idílico
c e n á r i o . Foi fohn M u i r , o profeta da nature/a bravia, que caracterizou
Yosemite c o m o u m "parque vale" e celebrou sua s e m e l h a n ç a c o m u m
"grande jardim ardficial [ . . . ] com encantadores bosques e prados e arvoredos em rlor". As montanhas que se erguiam sobre o "parque" tinham a
base assentada em pinheirais e campos cor de esmeralda, o cume no céu; banhadas em luz, banhadas cm torrentes de água canora, enquanto com o passar dos anos nevascas se sucedem e os ventos [...] se avolumam c remoinham
sobre cias, como se dentro dessas mansões montesas a natureza tivesse a duras penas acumulado seus melhores tesouros a fim de atrair seus amantes para
uma c o m u n h ã o íntima c confiante com ela."
Mas, é claro, a natureza n ã o faz isso. N ó s tazemos. Ansel Adams, que
admirava e c i t ou M u i r e fez o possível para traduzir sua r e v e r ê n c i a em imagens espetaculares, explicou, em 1952, ao diretor d o N a n o n a l Park Service
que fotografou Yosemite daquela maneira a fim de santificar " u m a ideia
religiosa" e " i n q u i r i r de minha alma o que realmente signitica o c e n á r i o
p r i m i t i v o " . " F m última analise", escreveu, " H a l f D o m e é apenas uma
IS
Alba-r
Riciyriuir.
The Voscmitc
^-iH^^y^ ^•í^''^'^— ^
tava clc, significava manter pura a natureza bravia; "infelizmente, para
m a n t è - l a pura, temos de ocupá-la".*
Essa o c u p a ç ã o nada tem de inerentemente vergonhoso. Até mesmo vis
paisagens que parecem mais livres de nossa cultura, a um exame mais atent o , p o d e m revelar-se como seu p r o d u t o . E Paisacjem e memória afirma que
isso n ã o é m o d v o de culpa e tristeza e, sim, de c o m e m o r a ç ã o . Seria preferível que Yosemite, com toda a sua s u p e r p o p u l a ç ã o e s u p e r - r e p r e s e n t a ç ã o ,
nunca tivesse sido idendficado, mapeado, fechado? Os prados reluzentes,
que sugeriram a seus primeiros encomiastas u m É d e n i m p o l u t o , eram, na
verdade, resultado das freqiientes queimadas realiz-idi»; p^los <.'M>; M . - i i p i n ^
tes, os í n d i o s A h w a h n e e c h e e . Assim, embora r e c o n h e ç a m o s ( c o m o devemos) que o impacto da humanidade sobre a ecologia da terra n ã o foi
p u r o beneficio, a longa relação entre natureza e cultura tampouco t e m
c o n s d t u í d o uma calamidade irrerpediável e predeterminada.^^o m í n i m o ,
parece correto reconhecer que é nossa p e r c e p ç ã o transtormadora que estabelece a diferença entre matéria b r u t a e paisagem.
A p r ó p r i a palavra landscape [paisagem] nos diz muito. Ela e n t r o u na
l í n g u a inglesa j u n t o com herj-injj [arenque] e bleached lincn [ l i n h o alvejad o ] , no final d o século w i , procedente da Holanda. E landschap, c o m o
sua raiz g e r m â n i c a , Lajidschaft^ significava tanto uma unidade de ocupaç ã o humana — uma jurisdição, na \erdade — quanto qualquer coisa que
pudesse ser o aprazível objcto de uma p i n t u r a . ' Assim, certamente n ã o foi
por acaso que nos campos alagados dos Países Baixos, cenário de uma formidável engenharia humana, uma c o m u n i d a d e desenvolveu a ideia de uma
landschap, que, no inglês coloquial da é p o c a , se t o r n o u landskip. Seus
20
equivalentes italianos, o ambiente idilieo e pastonl de naehos e colinas
cobertas de dourados trigais, eram conhecidos como panrffa e c o n s t i t u í a m
os c e n á r i o s auxiliares dos temas comuns da mitologia clássica e das escrituras sagradas. Nos Países Baixos, c o n t u d o , o desenho e uso da paisagem
por parte do homem — sugerido pelos pescadores, vaqueiros, caminhantes e cavaleiros que povoam os quadros de F.saias van de Velde, por exemplo — era a história, espantosamente auto-suficiente.
(^om a moda das paisagens holandesas estabelecida na Inglaterra, o
arrista erudito Henry Peacham incluiu em seu manual de desenho,
Graphice, o primeiro con,selho p r á t i c o dirigido a seus compatriotas sobre a
maneira de elaborar uma landskip. N o entanto, para que n i n g u é m pensasse que bastaria transpor para uma forma bidimensional os objetos de sua
c o n t e m p l a ç ã o , Peacham t r a t o u de desfazer possíveis e q u í v o c o s publicand o , no mesmo ano, o livro de emblemas Minerva Britannia." Colocado ao
lado de uma imagem da arcádia inglesa, o emblema Knra mihi et silentiiim
deixava claro que a vida campestre devia ser valorizada c o m o u m corretivo moral contra os males da corte e da cidade; pelas propriedades medicinais de suas plantas; pelas associações c n s t ã s de ervas e tlores; e,_SQbLetu^io, por sua p r o c l a m a ç ã o da estupenda b e n e v o l ê n c i a do Criador. O que seu
emblema dc\ia iiuocar era o c e n á r i o inglês por excelência: " U m bosque
u m b r o s o na bela margem do Tamisa/ De m o d o que quase podemos avistar a régia R i c h m o n d " . ' N o entanto, a xilogravura apresentada pelo mestre de desenho assemelha-se m u i t o mais à arcádia poética que ao vale do
Tamisa. Equivale a u m i n v e n t á r i o dos elementos convencionais d o vale
feliz dos humanistas: suaves colinas onde pastam tranquilamente lanudos
21
rebanhos c onde sopram d.oees /ehros refrescantes. Hia tórneceu a '.«nagem
p r o t o t í p i c a , presente cm incontáveis quadros, gravuras, cartòes-postais,
tótogratias de trens e carta/es de guerra, que bastava re p r o du/ ir para suscitar lealdade a a b e n ç o a d a ilha de clima ameno.
, \a da xilogravura de Peacham é incrivelmente elaborada,
c o m o em geral ocorria c o m esses emblemas impressos. Hles atuavam como
uma espécie de lembrete visual para os atentos, advertindo que a verdade
da imagem era mais poética que literal; que t o d o u m m u n d o de associaç õ e s e sentimentos envolvia a cena e lhe conteria significado. O exempUj
mais extremo dessas c o n s t r u ç õ e s era o chamado espelho de Cdaude, recomendado no século Wlll tanto para artistas q u a n t o para turistas d o c e n á no "pitoresco". Esse pequeno espelho p o r t á d l recebeu o nome do pinto r
francês [Claude L o r r a i n] que mais perfeitamente h a r m o n i z o u arquitetura
clássica, arvoredos frondosos e águas distantes. Se a vista que o espelho
retletia se aproximava do ideal Claudiano, o observador a considerava suficientemente "pitoresca" para apreciá-la o u a té mesmo d e s e n h á - l a .
Variações posteriores conferiram ao espelho a luz de u m radioso amanhecer o u de um r(')sco c r e p ú s c u l o . Mas era ^empre a tradição herdada que,
r e m o n t a n d o aos mitos da Arcádia — o reino fértil de Pã, povoado de n i n fas e sátiros — , criava a paisiun-m apenas c o m a geologia e a vegetação.
" E assim que vemos o m u n d o " , disse R e n é M a g n t t e numa c o n f e r ê n cia que p r o n u n c i o u cm IS)38, explicando sua versão de La cosiiiition
huniaine [A coudiçiio l)iimíi7ja\o colorida 2 ) , na qual s o b r e p ô s
u m quadro á paisagem retratada, de modo que ambos formam u m t o d o
c o n t í n u o e s ã o indistinguíveis. "Vemos o quadro c o m o exterior a n ó s ,
embora seja apenas uma representação do que experimentamos em nosso
interior."'' O que está além da vidraça de nossa a p r e e n s ã o , diz M a g r i t t e ,
requer u m desenho para que possamos discernir adequadamente sua
forma, sem falar no prazer proporcionado por sua p e r c e p ç ã o . E é a c u l t u ra, a c o n v e n ç ã o e a C(")gnição que formam esse desenho; que conferem a
uma impressãí) renniana a qualidade que experimentamos como beleza.
E cxatamente esse tipo de p r e s u n ç ã o que muitos paisagistas c o n t e m p o r â n e o s acham t ã o ofensivo. Assim, ao invés de fazer a tradição pictórica
ditar normas à natureza, eles se esforçaram para dissolver o ego artístico no
processo natural.'' Seu objetivo consiste em '^'••^•\\'z\'r uma antipaisagem na
e]ual a i n t e r v e n ç ã o dt) artista se reduz à marca m í n i m a e mais fiigaz sobre
a terra. Os artistas ingleses Andy Goldsvvorthy e David Nash, por exemp l o , criaram obrvts que invocam a natureza sem lhe i m p o r a forma já p r o n ta d o museu: escultur,is "encontradas", feitas c o m p e d a ç o s de madeira lanç a d o s à praia o u galhos de árvore carbonizados naturalmente; montes de
pedras da oda m a r í t i m a ; (ui bolas de folhas e neve guarnecidas de espinhos
e gravetos e posicionadas para decompor-se o u transformar-se em f u n ç ã o
dos processos naturais das estações ilustração colorida Ji). N o entanto ,
embora sempre tocante e em geral m u i t o bonita, essa paisagem minimalista raras \e/es escapa a condiçãt) que implicitamente critica. C'omo aconte-
cc com ( arlcron Warkins ou Ansel Adams, c necessário urili/ar a camera
para caprar o momenro natural. ( \ ) m isso, o gesto organizador d o artista
apenas se transt-ere da m ã o no pincel para o dedo no obturador. H, nesse
instante isolado de enquadramento, as velhas criaturas da cultura saem da
toca, arrastando atrás de si as l e m b r a n ç a s de g e r a ç õ e s anteriores.'"
N o mesmo espírito disciplinado, os hisn)riadoresido ambiente t a m b é m
tem lamentado a__aiie\\u;ã(.Lj,ia natureza pela cultura. C o n q u a n t o n ã o
neguem que a paisagem possa, realmente, ser u m texto em que as g e r a ç õ e s
escrevem suas obsessões recorrentes, eles n ã o exultam coni isso. .A idílica
paisagem arcadica, por exemplo, parece ser só mais uma bela mentira contada pelas aristocracias proprietárias (dos senhores de escravos atenienses
vios senhores de escravos virginianos) a h m de disfarçar as c o n s e q u ê n c i a s
ecológicas de sua cobiça. Para elas, era uma q u e s t ã o de honra restabelecer
uma disrinção entre paisagem natural e paisagem criada pelo h o m e m e estudar a possibilidade de escrever-se uma história que n ã o apresenta.sse a terra
e suas diversas espécies c o m o criações concebidas para o expresso e exclusivo prazer do que M u i r . arrasadoraniente, chamou de senhor h o m e m " .
Pnncipalmente nos Estados Unidos i o n d e a i n t e r a ç ã o entre homens
e habitat há muito_Lem estado no centro d a l i i s t o n a nacional), as melhores historias d o ambiente concretizaram c o m brilhantismo essa a m b i ç ã o .
.\ escrever sobre o m u n d o gelado da A n t á r t i c a , o escaldante s e r t ã o australiano, a t r a n s f o r m a ç ã o e c o l ó g i c a da Nova Inglaterra o u as guerras pela
agua no Oeste americano, autores c o m o Stephen Pyne, W i l l i a m C r o n o n e
D o n a ld Worster realizaram a proeza_de transformar uma topografia inanimada e n w g s m x e ^ J i j s t ó r i c o s c o m vida~~progria.''- Devolvendo à terra e ao
clima o tipo de imprevisibilidade criativa convencionalmente reservada aos
atores humanos, esses escritores criaram histórias nas quais o h o r n e m _ n ã o
é tudo.
N o entanto, embora A historia do ambiente seja uma das mais o r i g i nais c mstigantes que estão sendo escritas noje, ela, inevitavelmente, e x p õ e
o mesnio quadro desanimador: terras tomadas, exploradas, exauridas; culturas tradicionais que sempre viveram numa relação de sagrada reverência
Cíõmo soTo e foram desalojadas pelo individualista displicente, pelo agressor capitalista. E, embora o t o m dessas histórias seja compreensivelmente
de p e n i t ê n c i a , elas divergem quanto à é p o c a em que o Ocidente caiu em
desgraça. Para alguns historiadores, foi o Renascimento e as r e v o l u ç õ e s
científicas dos séculos xvi e xvii que condenaram a terra a ser tratada pelo
Ocidente c o m o uma m á q u i n a que nunca c]uebraria, por mais que o
homem usas.se e abusasse.'- Para L y n n W h i t e Jr., foi a i n v e n ç ã o de u m
arado c o m arreios fixos, no século v u d . C!., que selou o destino d o planeta. . \" d o novo i m p l e m e n t í ) "atacava a terra"; a agricultura se transtormou em guerra ecológica, ".\ntes o h t ^ n e m fazia, par te da narure^AAtagora ele explor,iva a natureza."'"'
niz^se, p o r t a n t o , que a agricultura intensiva possibilitou t o d o tipo de
males modernos. Rasgou a terra para alimentar p o p u l a ç õ e s cujas deman-
Jas por ncLCssid.uic o u por luxo) provocaram mais iuovavõcs tccnológiv:as. que, por ^ua \ c / , ao exaurir os rccu'rsos naturai.: impuisioiiaram mais
c mais o ciclo exasperado dc exploração ao l o n g o de roda a historia do
Ocidente.
H talvez n ã o so do Ocidente. E possível, d i z e m os crincos mais severos, que toda a história da sociedade s e d e n t á r i a , dos chineses loucos por
irrigação aos s u m é r i o s loucos por irrigação, esteja contaminada pela brutal
m a n i p u l a ç ã o da_natureza. Só os paleolídcos habitantes das cavernas, cujas
pinturas rupestres comprovam que se integraram à natureza, ao invés de
d o m i n á - l a , são inocentes desse pecado original da civilização. Rompida a
cosmologia arcaica, na qual a terra inteira era tida c o m o sagrada e o homem como apenas u m elo na longa cadeia da c r i a ç ã o , t u d o t e r m i n o u , com
alguns milénios a mais o u a menos. A annga M e s o p o t â m i a , sem saber,
gerou calor global. Precisamos, diz J^TõTT^èlscFnãégèq, u m critico apaixoI nado, de novos "mitos da c r i a ç ã o " para reparar os danos causados por
nosso abuso despreocupado e m e c â n i c o da natureza e restaurar o equilíbrio entre o h o m e m e os demais organism(3S c o m os quais ele partilha o
planeta.^
Perguntar se u m novo conjunto de mitos é, realmente, o r e m é d i o que
o medico prescreveria para nossos males n ã o equivale a negar a seriedade
de nossa situação ecológica, nem a u r g ê n c i a dos reparos e retormas
necessários. \laSj_e_j4iunte--AQ^,.velhos miios? Pois, embora esses textos
geralmente ahrmem que a cultura ocidental evoluiu , abandonando seus
mitos da natureza, estes, na verdade, nunca desapareceram. Se, c o m o
. vimos, toda a nossa tradição da paisagem é o p r o d u t o de uma cultura
c o m u m , trata-se, ademais, de uma tradição c o n s t r u í d a a partir de u m rico
depSsiro de mitos, l e m b r a n ç a s e obsessões. Os cultos, que somos convidados a procurar em outras culturas nalívas — da floresta primidva do rio da
vida, da montanha sagrada — , na verdade e s t ã o a nossa volta, \ivos e passando bem; resta saber onde procurá-los .
O que Pciisiincui c memória procura ser é um naodo de olhar, de •
redescobrir o que já p o s s u í m o s , mas que, de alguma rbrma, escapa-nos ao
reconhecimento e a api^JTirrçrto. M e u objetivo é apresentar n ã o mais uma i
explicação d o que perdemos e, sim, uma e x p l o r a ç ã o d o que ainda podemos encontrar.
A o propor esse m o d o alternativo de olhar, t e n h o plena consciência de
que há mais coisas em jogo que sofismas a c a d é m i c o s . Pois, se toda a história da paisagem no Ocidente de fato n ã o passa de uma corrida insensata
r u m o a u m universo movido a m á q u i n a , sem a complexidade de mitos,
metáforas e alegorias, no qual o árbitro absoluto d o valor é a m e d i ç ã o e
no mecanismt)constitui
de nossanossa
a u t o dtragédia,
e s t r u i ç ã oe. n t ã o ^
\o realmente
a m e m ó r i a ,estamos
no qualpresos
nossa inventividade
N o Âmago di> presente livro, há uma obstinada c o n v i c ç ã o de que, na
verdade, essa n ã o e a historia inteira. Tal convicçãtí n ã o teve origem numa
visão idealizada de nosso passado ou de nossas perspectivas. T a m b é m estou
24
consternado com a i n c c s s a n t c . d c g r a d a ç ã o do planeta c acredito em muitas
das previsões sobre suas possibilidades >.k: cura. ( ) objetivo de Pinsiujem c
nicmúria n ã o é contestar a realiJade dessa crise. Antes, é revelar a riqueza, \
1 annguidade e a complexidade de nossa tr\KÍicão paisagisric.i para mostrar ;
o quanto podemos perder. A o invés de postular o caráter mutuamente \
exclusivo da cultura e da natureza ocidentais, quero mostrar a força dos \
elos que as unem.
Essa força geralmente se esconde sob camadas e camadas de lugarc o m u m . Assim, concebi Paisagem c manòria
c o m o uma escavação feita
abaixo de nosso nível de visão convencional com a finalidade de recuperar
os veios de m i t o e m e m ó r i a existentes sob a superficie.
O "JTosçjut^-grt-dr.i 1 "* por exemplo, é u m cliché turí.suco c o m u m .
"Palavras de veneração descrevem esta terra de iihs'\z u m livro particularmente embasbacado c o m as velhas florestas a noroeste d o Pacífico.''
C o n t u d o , debai.xo d o lugar-comum, h á uma longa, rica e significativa história de associações entre o bosque p r i m i ti v o d o s p a g ã o s , sua idolatria da
á r v o r e e as formas caracterisdcas da arquitetura gótica. A e v o l u ç ã o desde a
a d o r a ç ã o da árvore pelos n ó r d i c o s , passando pela iconografia cristã da
Arv ore da \'id a e pela cruz de madeira e chegando a imagens c o m o a associação explícita de Caspar David Friedrich entre a faia sempre, verde e a
arquitetura da ressurreição (ilustração colorida l ) , pode parecer esotérica.
X a realidade, vem ao encontro de u m de nossos maiores anseios: o de
achar, na n a m r p y i nm rnn«^olr> p\r_a_jTossa^mortalidade. Por isso vemos os
bosques, c o m sua promessa anual de r e n o v a ç ã o na primavera,,_çonio,.LLm
c e n á r i o aclequad6~para receber n o ^ o s restos terrenos. Assim, o m i s t é r i o
existente atrás desse lugar-comum diz m u i t o das relações mais profiandas
entre a forma natural e o d e s í g n i o humano .
Deixarei que o leitor julgue se essas relações s ã o , de fato, habituais,
pelo menos t ã o habituais quanto a ânsia de dominar a natureza, tida c o m o
a marca registrada d o Ocidente. Jung acreditava que a universalidade dos
mitos da natureza atestava sua indispensabilidade _psiçi:iiágit-a no rrA£o-..los
medos e ^ s e i o s mteriores. E Mircea Eliade, o a n t r o p ó l o g o da religião,
acreilít,iva que eles sobreviveram, plenamente operacionais, tanto nas culturas modernas quanto nas tradicionais.
'
M i n h a posição é, necessariamente, mais histórica e, por isso mesmo,
m u i t o uT-nos universal. N e m todas as culturas a b r a ç a m natureza c paisagem c o m igual ardor^ e as que as aHraçani conhecem tases ae maior o u
m e n o r entusiasmo. O que os mitos da fioresta antiga significam para uma
cultura europeia nacional pode se traduzir em algo totalmente diverso em
outra cultura. Na Alemanha, por exemplo, a fioresta primitiva era o lugar
da a u t o - a f i r m a ç ã o tribal contra o I m p é r i o romano de pedras e leis. Na
Inglaterra, o bosque verde era o local onde o rei ostentava seu poder nas
caçadas reais e, c o n t u d o , corrigia ,ts injustiças de seus oficiais.
Fentei impedir que essas importantes diferenças em e s p a ç o e tempo
se perdes.sem na longa história das m e t á f o r a s paisagísticas, e s b o ç a d a no
prcscnrc '.'wm. \ \ K \ A \ U \ m e s m o Icwindo c m conra css.is variações, c claro
que US micos e l e m b r a n ç a s da paisagem partilham duas earaeteristicas
comuns: sna surpreendente p t ' r m . I N . ' - N . i - I y-, l o n n o dos séculos e sua eapaeiti:I(|<>JJT>JTI<)ldar i n s r i n I I . - Õ « - < mm
K ; . | H M > : - L I N J - I .-onvixemos. A ideutidade nacional, só para mencionar o exemplo mais ó b v i o , perderia m u i t o de
seu fascínio feroz sem a mísdca de uma t r a d i ç ã o paisagística particular: sua
topografia mapeada, elaborada e enriquecida c o m o terra n a t a l . ' . \o /
p o é n c a de la doiiLC Franct: — "doce F r a n ç a " — retrata tanto uma geograha quanto uma história, a d o ç u r a de u m lugar classicmiente bem ordenado, onde nos, campos cultivados, pomares, vinhedos e florestas convivem
em harmonioso equilíbrit). O famoso p a n e g í r i c o da " i l ha com o cetro",
que Shakespeare coloca na boca do m o n b u n d o í o h n de Gaunt, invoca a
insularidade encerrada entre penhascos c o m o a identidade patriótica,
enc|uanto o destino h e r ó i c o do N o v o M u n d o se idenntica como a extensão continental presente na letra de "America che Beautiful". H as paisa-N^
gens podem ^er conscientemente concebidas para cxprcssar_^i:i-vrpítírles de
uma determinada comunidade polínca o u social. A escala do m o n u m e n t o ^
do monte Rushmore, conforme veremos, foi crucial para a a m b i ç ã o de seu
escultor: proclamar a magnitude continental da A m é r i c a como o baluarte
da democracia. E , n u m nível muito mais indmista, os paladinos do bucolismo suburbano da .América no século xix, c o m o Frank Jesup Scott, prescreveram tapetes de grama em fardins sem cerca para expressar solidariedade
social e comunidade, o a n t í d o t o imaginário da alienaçã o metropolitana.
, \o d o jardim suburbano para curar as aflições da vida na
cidade designa o gramado c o m o remanescente de u m velho sonho idílico,
embora seus pastores de cabras e suas debulhadoras tenham sido s u b s t i t u í »ios por tane]ues de pesticida e ceifadeiras industriais. E c cxatamente porque se esta sempre c o b r i n d o lugares antigos ctnn o adubo da modernidade tr.uisf.irmando-sc a rioresta primitiva, p o r cxcir.pio, c m "parque da
natureza ^ehagem" que c difícil discernir a andiLUidaucdos mitos c m sua
essência. De qualquer m o d o , ela esta ali. C) motorista que \a a noite pela
Interestadual 8 4 , passando pelo que restou da antiga "capital americana do
l a t ã o " , Waterbury, em r o n n e c t i c u t , avista u m clarão que se irradia do
cume de uma colina sobranceira à estrada. U m a curva mais adiante, subitamente o faz ver que a fonte dessa luz é uma cruz de n é o n com nove metros de altura — virtualmente tudo que sobrou da " H o l y I.and, L S A " ,
c o n s t r u í d a por u m advogado local na d é c a d a de 1960. Para n ó s , que estamos familiari/,id(ís c o m parques de tema religioso, a H o l v Land, o u Terra
Saiua, parece classificar-se imediatamente c o n n ) u m a resposta dos católicos
a Disnevlan<.lia. Fntreranto, sua localização ct)mo colina <.le romaria, sua
missão religiosa e seus canhestros e s f o r ç o s para reproduzir , no Sul
Nova
Inglaterra a topografia da Paixão caracteri/am-na c o m o o u l t i m o yizc;v>
•.ui>}itL\s calvários artificiais cujas origens r e m o n t a m a,)s rfanciscanos «.la
Irali^quarrocentisra.
Perceber o c o n t o r n o fantasmagórico de ama paisagem antiga, sob a
capa superticial d o c o n t e m p o r â n e o , equivale a perceber, intensamente, a ^
p e r m a n ê n c i a dos mitos essenciais. Enquanto estou aqui escrevendo, TT/f
New Tork Limes m t o r m a que n u m velho frei.xo d o Escoriai, perto de
Madri, a V i r g e m aparece, no primeiro s á b a d o de cada m ê s , diante de uma
faxineira aposentada, para horror do prefeito socialista local.'' Atrás da
árvore encontra-se, evidentemente, o m o s t e i r o - p a l á c i o do catolicíssimo rei
da Espanha, Filipe i l . Mas, atrás de ambos, e s t ã o sécidos de associações,
caras especialmente aos franciscanos e jesuítas, de aparições da V i r g e m sen- \
tada N U M - . \r^.>r^
••'r^nd'" S C renova na é p o c a da Páscoa, simbolizando \
a Ressurreição. E, atrás dessa tradição, havia mitos p a g ã o s ainda mais anti\
gos que apresentavam velhas árvores ocas c o m o sendo o t ú m u l o de deuses mortos em seus galhos e encerrados em seu t r o n c o para esperarem u m
novo ciclo de \.
Paisajjejii e memória foi elaborado em t o r n o de instantes de reconhecimento c o m o esse, quando um lugar, de repente, e x p õ e suas relações c o m
uma Msão antiga e peculiar da floresta, da m o n t a n h a o u do r i o . U m escavador de t r a d i ç õ e s curioso esbarra numa saliência que se projeta sobre a
superfície dos lu.gares-comuns da vida c o n t e m p o r â n e a . Ele cava e descobre
fragmentos e p e ç a s de u m m o t i \ cultural que parece escapar a uma
r e c o n s n t u i ç ã o coerente, p o r é m o leva a aproRindar-se mais no passado.
Cada u m dos c a p í t u l o s que se seguem deve ser visto como uma e s c a v a ç ã o ,
c o m e ç a n d o pelo conhecido, pelas camadas de l e m b r a n ç a s e representações, até tocar a base da rocha, que se f o r m o u h á séculos o u até m i l é n i o s ,
e voltando á s u p e r f í c i e , á luz do reconhecimento c o n t e m p o r â n e o .
Naturalmente, os buracos que cavei no t e m p o apenas seguem a rota
de muitas outras toupeiras esforçadas que, e n q u a n t o penetravam na esc u r i d ã o , dei\,ivam pistas para o historiador. Muitas das historias contadas
neste livro celebram sua per^^ewrança e sua p a i x ã o , ao mesmo tempo que
relatam sua faina, .\lguns desses zelosos g u a r d i ã e s da l e m b r a n ç a da paisagem — c o m o Julius \<m Brincken, funcionário d o czar Nicolau l encarregado de velar pela floresta primitiva polonesa de Biaiowieza, o u Claude
François D e n e c o u r t , i n \ e n t o r do passeio r o m â n t i c o pela flores:.: dc
Fontainebleau — se arraigaram de tal m o d o n u m a determinada paisagem
que se tornaram seu^7t';//m- loci, o " e s p í r i t o d o local". O u t r o s se autodesignaram defensores de uma tradição antiga — c o m o o prolífico jesuíta
Athanasius Kircher, que se dedicou a decodificar os hieróglifos de obeliscos egípcios para os papas da Roma barroca, a f i m de que se pudesse \er,
no trasLido desses m o n u m e n t o s , o N i l o p a g ã o batizado pela Roma cristã;
ou, como sir í a m e s H a l l , que formou u m arco p r i m i t i v o com ramos de salgueiro para provar que o pontiagudo estilo g ó t i c o se iniciara c o m galhos
de árvore e n t r e L i ç a d o s .
Por mais pitorescos que possam parecer niuitos devotos dos mitos *.la
natureza, eles n ã o se resiuniam a u m g r u p o h e t e r o g é n e o de e x c ê n t r i c o s ,
perambulando pelas ruelas da m e m ó r i a . C\ida u m desses devotos ,icredita-
v j que, ontcndcndo-sc as t r i d i ç õ c s pãisagísdcas do passado, podia-sc lançar l u ' sobre o presente e o futuro. Essa eonvicvãt) tez deles menos antiq u á r i o s que historiadt)res e, até mesmo, profetas e p o l í t i c o s . Eles se estenderam sobre seus lugares favoritos porque acreditavam que podiam
remediar o vazio da vida c o n t e m p o r â n e a . E eu os segui pelas florestas,
pelos rios da vida e da m o r t e , pelas montanhas cheias de l u z, n ã o com a
disposição de u m campista cultural, mas porque muitas de nossas preocupações modernas — i m p é r i o , n a ç ã o , liberdade, empresa e ditadura — t ê m
invocado a topogratia para conferir uma forma natural a suas ideias.
O americano Joel Barlow, poeta, auditor, diplomata e m i t ó g r a f o , foi
apenas u m desses exploradores, que ligaram as paixões de nossa época a
antigas obsessões c o m a natureza. Ele procurou as origens da .\rvore da
Liberdade no antigo m i t o e g í p c i o da ressurreição de Osíris porque queria
enraizar, n u m c u l t o da natureza, o emblema mais i m p o r t a n t e de liberdade
das revoluções americana e francesa. Achava que, c o m isso, o anseio de
liberdade seria n ã o s ó uma n o ç ã o moderna, mas t a m b é m u m instinto antigo e irresistivel, u m direito realmente natural.
Barlow percorria o que, u m século depois, o grande historiador da
arte e i c o n ó g r a f o A b y W a r b u r g chamaria de o caminho da " m e m ó r i a
social" [soziaUn Gedãchtnisses).'*
C o m o seria de se esperar de u m erudito
formado nessa t r a d i ç ã o , W V b u r g estava interessado, sobretudo, na recorrência de motivos antigos e gestos expressivos na arte clássica d o Renascimento e do Barroco. Entendia, t a m b é m , de antropologia e psicologia
social t ã o protiindamente q u a n t o de história da arte. Assim, suas pesquisas
o levaram m u i t o alé m da q u e s t ã o puramente formal da s o b r e v i v ê n c ia de
determinados gestos e c o n v e n ç õ e s na pintura e na escultura. W a r b u r g os
via c o m o simples indi-ridorr^i de alguma coisa profundamente surpreendente, inquietante mesmo, na e v o l u ç ã o da sociedade o c i d e n t a í . Debai.xo
de suas p r e t e n s õ e s de ter c o n s t r u í d o uma cultura baseada na r a z ã o , acreditava ele, nossa sociedade guarda u m poderoso r e s í d u o de irracionalidade mítica. .Assim c o m o C l i o , a musa da História, originou-se de sua m ã e ,
M n e m ó s i n e , uma criatura mais instintiva e primaria, assim t a m b é m a cultura racional d o O c i d e n t e , c o m seus graciosos desenhos da natureza, de
algum m o d o era vulnerável aos demiurgos sombrios dos m i t o s irracionais
da m o r t e , sacriticio e fertilidade.
Xada disso significa que, uma vez percorrendo a trilha da " m e m ó r i a
social", n ó s t a m b é m chegaremos, inevitavelmente, a lugares aos quais n ã o
iríamos n u m século de h o r r o r , lugares que representam u m r e f o r ç o da tragédia pública e n ã o uma higa. Reconhecer, entretanto, o legado a m b í g u o
I . dos mitos da natureza pelo menos nos faz admitir que a paisagem nem
\^T) " l o c ^ de prazer" — o cenário c o m f u n ç ã o de sedativo, a
^topogratia arranjada de tal m o d o que regala os olhos. Pois esses olhos,
c o m o veremos, raramente se clarificam das s u g e s t õ e s da m e m ó r i a . E a
^ memoria n ã o registra apenas b u c ó l i c o s piqueniques.
Na verdade, muitos dos mais ehipenhados in\s dos mitos
da natureza, como Nietzsche e Jung, não estavam entre os mais c n t u s i á s ricos deíensore s da democracia pluralista. E, mesmo hoje, os mais '•'.-rvorosos amigos da terra compreensivelmente se irritam c o m os ardis e as ri.xas,
os acordos e as barganhas, de que os políticos l a n ç a m m ã o q u a n d o o u v e m
falar na iminente " m o r t e da natureza'^, e com as alternativas apresentadas
c o m o uma escolha sombria entre salvação e e x n n ç ã o . Neste p o n t o , quand o os imperativos d o ambiente se revestem de uma aura sagrada e mítica
e, segundo se d i z , passam a exigir uma d e d i c a ç ã o maior e mais firme que
aquela que os h á b i t o s da humanidade em geral p r o p o r c i o n a m , é que a
m e m ó r i a pode ajudar a restabelecer o equilíbrio. Os h á b i t o s culturais da
humanidade sempre deixaram e s p a ç o para o caráter sagj:ado da nirfureza —
é isso que tentei mostrar em Paisagem e memória. Todas as nossas paisagens, do parque urbano às trilhas na montanha, t è m a marca de nossas persistentes e inelutáveis o b s e s s õ e s . N ã o precisamos negociar nosso legado
cultural o u sua posteridade, penso eu, para levar a s é r i o os muitos e variados males do ambiente. S ó temos de entender tal atitude pelo que ela de
fato é: a veneração , P ^ Q Q n - p i j ; . ^ J j natureza.
Paisagem e memória n ã o foi concebido c o m o u m consolo fácil para o
desastre e c o l ó g i c o . T a m p o u c o c o m o uma solução para os profiandos problemas que ainda a t o r m e n t a m qualquer democracia desejosa de reparar o
abuso contra o a m b i e n t e e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade. C o m o
todas as histórias, esta e menos uma receita para a a ç ã o que u m convite à
reflexão e pretende mais c o n t r i b u i r para o autoconheciment o que sugerir
uma estratégia de r e d e n ç ã o e c o l ó g i c a . N o entanto, se demonstrar que, ao
longo dos s é c u l o s , se formaram h á b i t o s culturais que nos levaram a estabelecer com a natureza uma relação outra que n ã o a de simplesmente
esgotá-l a até a m o r t e , que o r e m é d i o para nossos males pode vir de dent r o de nosso universo mental c o m u m , e n t ã o este l i v r o talvez n ã o tenha
sido u m completo d e s p e r d í c i o de boa polpa de madeira.
Guarde-o na prateleira entre o t i m i s m o e pessimismo — casualmente
representado por dois outros tipos de livros de madeira. Os volumes da
xylothèqiie, "biblioteca de madeira", são produtos de u m a é p o c a em que a
investigação científica e a sensibilidade poética pareciam unir-se sem esforç o e com graça; o I l u m i n i s m o d o século .xviii ( i l u s t r a ç ã o colorida 4 ) . N a
cultura a l e m ã , onde se i n i c i o u a moderna silvicultura, alguns entusiastas
resolveram ir a l é m dos volumes de b o t â n i c a que apenas ilustra\m a taxionomia das á r v o r e s . D e c i d i r am p r o d u z i r os livros c o m o p r ó p r i o material
que constituí a seu tema. .\ssim, por exemplo, o v o l u m e sobre Faffiis, a faia
europeia c o m u m , seria encadernado c o m a cortiça dessa á r v o r e ; n o interior, conteria amostras de nozes e sementes de faia, cujas folhas formariam
suas páginas. Mas os livros de madeira n ã o eram u m mero capricht>, u m
belo trocadilho sobre o significado d o cultivo. A o homenagear a m a t é r i a
vegetal da qual se c o m p u n h a , c o m o toda a literatura, a biblioteca de
madeira arirmou admiravelmente a necessidade da união entre cultura e
natureza.
Dois séculos e meio mais tarde, depois que a alegre s e g u r a n ç a d o
Iluminismo desapareceu em meio à catástrofe, depois que as paisagens
pitorescas e sublimes foram destruídas pela guerra e fertilizadas pelos ossos
e pelo sangue de i n u m e r á v e i s mortos, o u t r o a l e m ã o criou u m tipo diferente de livro de madeira (ilustração colorida 5 ) . Nas páginas d o livro de
Anselm Iviefer, c o n t u d o , a história está escrita c o m letras de fogo e o o t i mismo da cultura setecentista da natureza se consome em fumaça. .As folhas desse livro, que o artista i n t i t u l o u Cantcvizaçãn
do distrito rural dc
Buchcn l e m a l e m ã o Biichc signirica faia, donde o nome do distrito), e s t ã o
queimadas pelas chamas de uma guerra total, da d e s t r u i ç ã o da natureza em
meio ã atrocidade.
\.
;
i
^
N ã o podemos dei.\ar de pensar no fogo como o elemento da aniquiTodavia, tanto os m i t ó g r a f o s quanto os historiadores da natureza
sabem que da pira surge a fénix, que a vida r e c o n s t i t u í d a pode lançar u m
rebento por entre uma densa camada de cinzas. Assim, se este e u m liv ro
de l e m b r a n ç a s , n ã o foi concebido c o m o u m lamento pela c r e m a ç ã o de
nossa esperança. Antes, é uma viagem por espaços e lugares, c o m os olhos
bem abertos, que pode nos ajudar a acreditar n u m futuro para esse forte,
adorável e velho planeta.

Documentos relacionados