CAMINHADAS - Observatório de Favelas
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CAMINHADAS - Observatório de Favelas
UFSCar Universidade Federal de São Carlos Caminhadas de universitários de origem popular UFSCar UFSCar Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UFSCAR / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 104 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-35-1 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal de São Carlos. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UFSCar Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ 2009 Rio de Janeiro - 2008 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Autores Aline Priscila Boni Amanda Roberta Corrado Amanda Rosinalia Rodrigues Anderson Thadeu Nunes Augusto Cesar Pedro Secretário Carlos Messias Ferreira de Jesus Armênio Bello Schmidt Carlos Ney Martins Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Cleide Helena Santos Cardoso Leonor Franco de Araújo Coordenação Geral de Diversidade – CGD Daiane Lanceni Edgar Heliodoro Vendradelli Dias Juliana Aparecida Ribeiro Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Coordenação Geral Sergio Donizetti Zorzo Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFSCar Marina Silveira Palhares Coordenação do Projeto Caminhadas André Luiz Faisting Coordenação Administrativa Carlos Augusto de Sousa Martins Filho Coordenação de Araras Lidiane Maria Maciel Lilian Cruz Mariana Gonçalves Luccas Michel Luiz de Moura Milton Dias de Freitas Jr. Mylena Mylândia Araújo Gomes Nelson Ponce Júnior Priscila Andrade Corrêa Rafael Vieira Roberta Alexandra Silva de Oliveira Paulo Rogério de Oliveira Sérgio Ricardo do Nascimento Neto Sinvaldo Martins de Souza Symone Mattos Cremonini Tiago Yamazaki Andrade Oswaldo Baptista Duarte Filho Reitor Maria Stella Coutinho de Alcântara Gil Vice-Reitora Maria Luísa Guillaumon. Emmel Pró-Reitora de Extensão Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação Maria Luísa Guillaumon Emmel ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 09 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 11 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 20 Introdução Caminhadas Marina Silveira Palhares Ana Elisa Marino Lara de Paula ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Os melhores momentos da minha vida... Aline Priscila Boni ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Reflexões do início de uma caminhada Amanda Roberta Corrado ○ ○ ○ História de minha vida Amanda Rosinalia Rodrigues Realizando sonhos Anderson Thadeu Nunes Um pouco de luta Augusto Cesar Pedro ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A história de minha vida Daiane Lanceni ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Memorial Lidiane Maria Maciel ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 25 29 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 18 ○ ○ ○ 14 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A vida dá voltas ! Edgar Heliodoro Vendradelli Dias Minha história Juliana Aparecida Ribeiro ○ ○ ○ ○ Uma caminhada marcada por desafios e conquistas Cleide Helena Santos Cardoso ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Alçando vôos mais altos Carlos Messias Ferreira de Jesus História de vida Carlos Ney Martins ○ ○ ○ ○ ○ 33 36 38 41 44 49 53 Caminhadas Lilian Cruz ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A história de uma vida Mariana Gonçalves Luccas Minha trajetória de vida Michel Luiz de Moura ○ ○ ○ Memorial Milton Dias de Freitas Jr. ○ ○ ○ ○ ○ ○ Eu Priscila Andrade Corrêa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Memorial Sérgio Ricardo do Nascimento Neto ○ ○ ○ Apenas mais um brasileiro Paulo Rogério de Oliveira Memorial Tiago Yamazaki Andrade ○ ○ ○ Minha história Roberta Alexandra Silva de Oliveira Uma senhora história Symone Mattos Cremonini ○ ○ ○ Driblando adversidades Sinvaldo Martins de Souza ○ ○ Caminhadas: trajetória de vida, como releitura da realidade Rafael Vieira ○ ○ ○ Pão-de-açúcar Mylena Mylândia Araújo Gomes Caminhadas Nelson Ponce Júnior ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 56 59 62 65 67 69 75 82 85 87 89 92 96 99 Apresentação Em 2006 a Universidade Federal de São Carlos iniciou sua participação no Programa Conexões de Saberes, promovido pela SECAD - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC. A proposta parecia muito interessante, uma vez que vinha ao encontro de um dos objetivos que a UFSCar tem buscado alcançar através de vários programas e projetos de extensão: o da inclusão de alunos provenientes de classes populares à universidade. Como propõe a própria SECAD, “os jovens de origem popular trazem para a vida universitária esperanças e experiências que precisam ser valorizadas e incorporadas ao saber crítico que a Universidade promove e a própria Universidade tem muito a aprender com a crescente participação de estudantes oriundos de comunidades populares na vida acadêmica”. Ao final deste primeiro período de interações, o Conexões possibilitou concretizar algumas aspirações, entre elas a criação de um curso pré-vestibular na periferia da cidade de São Carlos, onde a população não teria possibilidade de usufruir desta formação não fosse esta iniciativa. Outra satisfação é ver a evolução alcançada pelos alunos com sua participação no Programa Conexões de Saberes. Estamos certos da riqueza que foi e vem sendo esta experiência para todos os que dela participaram: alunos, professores, colaboradores. Apoiados pelo Ministério, pelos professores e colaboradores que a eles se dedicaram, os alunos tiveram condições de aprender mais sobre si mesmos e sobre a comunidade que os cerca, apoderando-se do saber construído coletivamente e criando capacidades de disseminá-lo em suas comunidades de origem. Este livro traz uma pequena amostra deste trajeto. As histórias de vida que aqui vemos são o resultado de um intenso trabalho que envolveu conscientização pessoal, trabalho de grupo, reflexões coletivas, auto-conhecimento, além de um duro trabalho de desenvolvimento de técnicas de redação. Transformar sentimentos em palavras e palavras em textos certamente não foi tarefa fácil. Em compensação, adquirir o poder de dividir o resultado de todo este esforço é sem dúvida, louvável. Agradecemos todo o apoio do MEC, através da SECAD e também dos coordenadores, professores, técnicos e alunos que tomaram para si a responsabilidade de acompanhar e seguir com esses jovens em busca de sua cidadania. MARIA LUÍSA GUILLAUMON EMMEL Pró-reitora de Extensão UFSCar Universidade Federal de São Carlos 9 Introdução Caminhadas O desenvolvimento da atividade Caminhadas: Trajetória do estudante de origem popular até a Universidade teve início em maio de 2006 e prolongou-se até dezembro do mesmo ano, sendo que alguns alunos terminaram a revisão do texto no início de fevereiro de 2007. Desenvolveu-se um trabalho específico com os alunos, que possibilitou a coesão do grupo, o sentimento de pertença, a desinibição em alguns alunos, uma maior solidariedade e disposição para o trabalho coletivo. Para a execução deste trabalho desenvolveu-se uma metodologia que será aqui relatada. OBJETIVOS • Levar o aluno a refletir sobre sua história de vida, reconhecendo fatores que influenciaram seu desempenho até o ingresso na UFSCar, ou até o semestre em curso; • Levar o aluno a conhecer a interface entre sua história pessoal e a história do Brasil; • Levar o aluno a refletir sobre semelhanças e diferenças entre sua história e a do grupo de alunos que cursam a disciplina com ele; • Como objetivos atitudinais, buscou-se promover o espírito de solidariedade, cooperação, desenvolver a capacidade de ouvir o grupo e sintetizar o pensamento coletivo, elaborar relatórios de discussão, desenvolver habilidade de coordenação de grupo. METODOLOGIA Foi proposta uma disciplina “ACIEPE1 Caminhadas” para que os alunos da UFSCar pudessem realizar estas atividades com pontuação na carga horária de seus cursos e contagem de créditos curriculares. A ProEX2 aprovou a disciplina, bem como concedeu recursos de R$ 900,00 reais e uma bolsa de monitoria para esta atividade. Foram planejados encontros com o grupo de alunos, com atividades específicas em cada encontro e com tarefas a serem realizadas em outros horários. Os encontros ocorreram aos sábados ou domingos, em horários compatíveis para todo o grupo, tendo em vista que os alunos eram oriundos de 1 ACIEPE A Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão (ACIEPE) é uma experiência educativa, cultural e científica que, articulando o Ensino, a Pesquisa e a Extensão e envolvendo professores, técnicos e alunos da UFSCar, procura viabilizar e estimular o seu relacionamento com diferentes segmentos da sociedade. Maiores informações http://www.ufscar.br/aciepe. 2 ProEX-A Pró-Reitoria de Extensão - ProEx - é o setor responsável pela gestão das atividades de extensão realizadas pela UFSCar. Para saber mais: http://www.proex.ufscar.br. Universidade Federal de São Carlos 11 diversos cursos, turnos e dois “campi”. Matricularam-se na disciplina outros alunos que não eram bolsistas do Conexões, que realizaram as atividades com os demais alunos, alunos estes que não tiveram seus textos finais inseridos no livro. Houve necessidade de ampliação do número de encontros, por solicitação dos alunos, para o encerramento. Relacionamos abaixo as atividades desenvolvidas. Nas atividades coletivas era solicitado que os grupos ou sub-grupos escolhessem um relator e um coordenador das discussões, objetivando treinar as habilidades de escuta, de coordenação, representação e liderança. 1. HISTÓRIA DE VIDA; primeira abordagem: Após assistirem ao vídeo sobre o Programa Conexões de Saberes3 foi solicitado aos alunos que fizessem uma redação com o tema Trajetória de vida até ao ingresso na UFSCar; 2. FALANDO DE SI PARA O GRUPO: Atividade de apresentação dos alunos para o grupo em duplas, organização da atividade: o aluno conversa com um colega e o apresenta posteriormente para o grupo; 3. TAREFA: O olhar do outro pousa sobre mim - Pesquisa com amigos e parentes - como sou visto, elaboração de um relato escrito sobre estas entrevistas; 4. PARTILHA: Apresentação do relato anterior ao grupo, em sub-grupos de 5 a 6 alunos, levantamento de pontos em comum, elaboração de síntese e posterior apresentação ao grupo completo; 5. TAREFA: Pesquisa de fotos – fatos que marcaram o Brasil e o Mundo e influência ram as vidas de cada aluno; recolher fotos ou figuras significativas da própria vida e fazer uma redação em linguagem jornalística; 6. LINHA DO TEMPO: Traçar marcos do tempo pessoal, do tempo- Brasil e do tempoMundo e do tempo- universidade, discutindo em sub-grupos estes temas e preparando para a apresentação no grupo completo; 7. TAREFA: Re-escrita da redação a partir das partilhas realizadas nos grupos e da síntese apresentada no grupo completo, complementando com pesquisas se necessário; 8. ÁLBUM DE FOTOS/FIGURAS: Produção dos painéis por sub-grupos, utilizando fotos e figuras trazidas pelos alunos e os dados das pesquisas e redações elaboradas até o momento; apresentação no grupo completo e discussão coletiva; 9. ALMOÇO DE LEMBRANÇAS: Confecção dos alimentos- motivadores de lembranças, busca de receitas, produção do almoço, apresentação para o grupo e discussão coletiva; 10. TAREFA: jogos e brincadeiras: Pesquisa e produção de relatório sobre brinquedos e brincadeiras de suas infâncias e adolescências; 11. JOGOS E BRINCADEIRAS: Apresentação de jogos e brincadeiras em sub-grupos, brincar junto, rodízio nos sub-grupos, experimentação das brincadeiras com diferentes regras; apresentação e partilha de relatórios no grupo completo; 12. TAREFA: Re-escrita do texto pessoal Caminhadas, história de vida; 13. PARTILHA: em duplas, leitura do texto de um colega, em voz alta. O autor deve ouvir o seu texto. Apresentação de sugestões para melhorar a compreensão ou estilo de redação; 3 Vídeo produzido pela Secretaria Nacional do Programa Conexões de Saberes em 2005. 12 Caminhadas de universitários de origem popular 14. TAREFA: Re-escrita do texto de história de vida; 15. PARTILHA: em pequenos grupos dos textos, leitura do texto de um colega, sugestões para melhorar a compreensão ou estilo de redação; 16. TAREFA: Revisão; 17. ALMOÇO de apresentação dos textos. O grupo se reúne para produção de um almoço comemorativo, com comidas típicas e significativas para cada um. Leitura individual para o grupo do texto completo. Não é obrigatória a leitura de todos os textos; 18. PORTUGUÊS: a língua e suas artimanhas. Leitura do texto junto a Professora Lara de Paula. Discussão das dificuldades linguísticas e de estilo, revisão. Esta tarefa estava prevista para cerca de 30 minutos a uma hora, individualmente, com cada aluno. Prolongou-se até fevereiro/2007 e alguns alunos demandaram mais de um horário para a revisão e finalização do texto. RESULTADOS Os bolsistas exercitaram sua capacidade de ouvir, e neste ouvir puderam sentir-se valorizados pelo outro e terem a sensação de fortalecimento pessoal, com aumento da autoestima. A atividade de ouvir o que o outro tinha a dizer dele fez com que se sentissem vistos e valorizados por pessoas a quem estão afetivamente ligados; a possibilidade de partilha com o grupo de alunos e de elaboração de relatório desta partilha possibilitou reforçar a capacidade de prestar atenção ao outro e de exercer uma fala representativa do coletivo. A sistemática de, a cada encontro, revezarem-se os grupos, revezarem-se os coordenadores e relatores deu oportunidade a todos de exercitarem papéis diferenciados dentro do grupo. Observou-se que o grupo tornou-se mais falante, mais propositivo do que no início dos encontros, com uma maior auto-confiança. Estas habilidades eram relatadas por alguns alunos como conquistas que se expandiam para outras atuações na Universidade, enquanto outros explicitavam que conseguiam falar ali, num ambiente em que se sentiam mais protegidos, mas não em suas salas de aula. Vinte e seis textos, com as histórias de vida dos bolsistas e de um voluntário do projeto Conexões de Saberes estão apresentados no livro. Nestes textos pode-se observar a presença de pessoas que os alunos reconhecem como importantes nesta Caminhada, sendo marcante a presença da família, notadamente da mãe, a presença de apoios intergeracionais, como avós e avôs, amigos e professores. O esforço pessoal é também um elemento de destaque, bem como se pode observar a influência de fatores externos, como emprego/ desemprego, planos econômicos, mudanças de sistemas na educação. A avaliação dos alunos, realizada em dezembro de 2006, ressalta a importância das atividades do Caminhadas no fortalecimento do grupo, tendo sido citado inclusive a permanência na UFSCar graças ao encontro de pessoas que puderam ouvir e valorizar a sua trajetória de vida. Coordenação: Profa. Dra. Marina Silveira Palhares Bolista Aciepe: Ana Elisa Marino Revisão dos textos: Alunos, coordenadora e Profa. Lara de Paula. Universidade Federal de São Carlos 13 Os melhores momentos da minha vida... Aline Priscila Boni* No dia dois de agosto de 1986, na Casa de Saúde e Maternidade São Carlos-SP, mais precisamente no quarto 204, nasce Aline, a terceira filha do casal Lourdes e Julio, irmã da Patrícia e da Marta Fernanda, ou Fer, que é como a maioria a chama. Seus pais moravam em Novo Horizonte e vieram para São Carlos logo após se casarem. Sempre lutaram, mesmo nas maiores dificuldades, para conseguir sustentar as três filhas e oferecer o melhor possível. Eu, Aline, escrevo com muita felicidade que moro numa casa construída por meus pais com janelas, portas e cerâmicas doadas por pessoas para as quais meu pai trabalhava de pedreiro, profissão que exerce há trinta anos, e que tem como alicerce a coragem, a humildade e a honestidade, as quais fazem parte da minha personalidade. Minha mãe trabalhou de doméstica uma época para ajudar na renda da família, porém atualmente cuida da própria casa e da preparação de maravilhosas refeições. Acredito que, comparando com as atividades das crianças de hoje, aproveitei bem a minha infância. Lembro-me de quando chegava da escola, almoçava, ajudava minha mãe, fazia as tarefas e, rapidamente, saía para brincar na rua com vários colegas. As brincadeiras de que me lembro são simples, mas tiveram muita importância para mim, para o que eu faço hoje, e para o que quero ser. Na minha infância, brinquei de pega-pega, esconde-esconde, pula-sela, gato-mia, queimada, pique-bandeira, jogos com bola e muitos outros que me ajudaram a desenvolver contato com várias pessoas. Os materiais que usávamos ou as improvisações que fazíamos para poder brincar e jogar, geralmente na rua, fizeram com que aprendêssemos a enfrentar a realidade e transformar objetos simples em grandes equipamentos de jogo, ou seja, fizeram com que valorizássemos o que tínhamos ao nosso redor. Para demarcar nossos gols, pegávamos pedaços de tijolos, garrafas plásticas ou chinelos; para montar uma rede de vôlei, usávamos linhas, cordas, barbantes e amarrávamos de um poste ou portão a outro, utilizávamos as lixeiras das casas como cestas de basquete, entre muitas outras façanhas. Porém, a vida não é feita só de brincadeira, embora brincar seja fundamental. Tinha que cumprir com meus deveres escolares para poder sair com os amigos, por isso sempre me esforcei para tirar boas notas, não só para garantir minhas horas de lazer, mas também porque sabia que o estudo era necessário. Hoje, estou cursando Educação Física e estou tendo a oportunidade de colocar em prática as experiências que tive na infância e ensiná-las para outras crianças e até para adultos e idosos. Mas para chegar até aqui, minha trajetória escolar foi muito decisiva. Fiz o pré-primário, durante um ano, numa EMEI1 próxima de casa, Monsenhor Alcindo Siqueira, de onde * Graduanda em Educação Física pela UFSCar. 1 Escola Municipal de Educação Infantil. 14 Caminhadas de universitários de origem popular me recordo da tia Sueli. Em 1992, entro na 1ª série na Escola Estadual Marilene Terezinha Longhin e conheço a professora Glamis, com quem ainda tenho contato. Nessa escola, estudei até a 4ª série, participei das Festas do Sorvete e também das Festas Juninas. Aliás, tenho como lembrança de uma dessas festas uma foto em que estou de mãos dadas com o Anderson, que hoje é meu namorado. Nosso reencontro foi em julho de 2005, numa Festa “Julina” na Igreja Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento. Sua mãe, Cleide, seu pai, Antonio, e seu irmão, Cleber, são pessoas das quais gosto muito, além do cachorro Valente, que também faz parte da família. Da 5ª à 8ª série, estudei na Escola Estadual Professor José Juliano Neto, onde comecei a treinar vôlei com a professora Mazé e a participar dos Jogos Interclasses e dos Jogos da Primavera2. Nesse período, eu e meus vizinhos saíamos todas as noites para a rua, desta vez não para brincar, mas para ficar conversando, passeando em volta dos quarteirões ou cantando, já que havia um amigo nosso, o Vitor, que levava seu violão e ficava até tarde da noite com a gente, tocando as músicas que pedíamos. Alguns meninos e meninas iam para festas, danceterias ou barzinhos, enquanto eu raramente os acompanhava, primeiramente por ser uma pessoa caseira e, depois, porque tinha compromissos com a Igreja que aos poucos me distanciavam da rotina dos meus colegas, como com o grupo de coroinhas, de jovens e da Fraternidade Eucarística, que era coordenada pela Irmã Dora, uma grande companheira que mesmo viajando para outros estados mantém-se em contato comigo. Nessa época, eu também ia passear no sítio São José da vovó Elidia e do vovô Armínio, na cidade em que meus pais nasceram. Os momentos em que lá passei não saem da minha memória, como as conversas na varanda com a família após o almoço, quase sempre aos domingos, os passeios de charrete com meu avô e seu cavalo Tarzan, quando íamos entregar o leite produzido pelas vacas do seu sítio na Cooperativa de Laticínios da cidade, as partidas de futebol com meus primos... também me lembro do balanço onde eu brincava, das vezes em que moía café a pedido da minha avó e das “bolachinhas de nata”, que eu ia sempre procurar numa lata em cima do armário da cozinha. Hoje minha avó não mora mais nesse sítio e também não tão freqüentemente prepara essas “bolachinhas”, mas minha mãe assume esse papel e as faz sempre que pode – elas fazem parte das minhas lembranças favoritas. Quando eu estava na 7ª série, Rose, que era professora de vôlei, me chamou para participar de seus treinos, que iam começar a acontecer aos domingos na quadra da EMEI onde estudei. Aceitei o convite e acompanhei seu trabalho durante três anos, o time recebeu o nome de “Semi-Voleibol Integração”, confeccionamos camisetas e realizamos alguns jogos. Saí desta equipe pouco depois que ela me levou para fazer um teste na equipe de São Carlos, cujos treinos ocorriam no Ginásio do Bairro Santa Felícia, longe da minha casa. Consegui entrar no time e representar a cidade durante quatro anos. Mesmo com as viagens, por causa dos campeonatos, continuava estudando, agora no ensino médio e na Escola Técnica Estadual Paulino Botelho, que promovia várias atividades, viagens e passeios culturais. Por meio dessa escola conheci a vida das pessoas que trabalham no lixão, visitei o Rio Monjolinho, a Fazenda Santa Maria e muito outros lugares. 2 Jogos da Primavera são Olimpíadas Escolares, promovidas em conjunto pelo Governo do Estado por meio da Secretaria de Estado da Educação (SEED) e pela Prefeitura Municipal de São Carlos, envolvendo toda a rede de escolas que se inscrevem, sejam elas públicas, estaduais ou municipais, ou particulares. Universidade Federal de São Carlos 15 Quando terminei o 3°ano, em 2003, não prestei vestibular, nem mesmo sabia como se realizava; o que eu realmente tinha certeza era do que eu gostaria de ser profissionalmente: professora de educação física. Como já mencionei, o esporte foi fundamental para realizar meus sonhos, pois um dos patrocinadores do time que eu representava, o Colégio Objetivo, fornecia bolsas de estudos para algumas atletas, e eu fui uma das privilegiadas, conseguindo uma bolsa para fazer o curso pré-vestibular, graças à ajuda do técnico Zé Sérgio e também do meu pai, que sempre me apoiou e me ajudou quando precisei. Abracei a oportunidade alegremente, por vários motivos: não teria dinheiro suficiente para pagar um cursinho privado e porque queria cursar uma faculdade pública, visto que, se não conseguisse a bolsa, teria que trabalhar e pagar uma faculdade privada, o que não era nem o meu sonho, nem o dos meus pais. Não foi nada fácil conciliar estudos, agora mais centralizados num objetivo, o vestibular, com esporte. Meus horários livres eram restritos. Estudava de manhã, de segunda a sábado, treinava na parte da tarde e da noite, para nos finais de semana participar dos jogos do campeonato da Associação Pró Voleibol. Minha prima Rosana, e a Camila, que conheci no cursinho, ajudaram muito emprestando livros e outros materiais. Infelizmente não consegui passar no vestibular, contudo não desisti e pedi outra bolsa. Agora, a situação financeira estava mais difícil para o time, mas após semanas do início das aulas comecei a freqüentar o cursinho no período da tarde, cujas últimas aulas coincidiam com o início dos treinos. Conheci o Erlon e a Carol, amigos que na hora em que mais precisei, nas horas do meu cansaço, não me deixaram desistir. Nesse segundo ano de estudo, tive que acrescentar a musculação à minha rotina para melhorar meu condicionamento físico. Então, três vezes por semana acordava cedo, ia para a academia, ia para a escola e seguia para os treinos. E assim foi até as férias. Depois, por decisão do técnico, a academia foi retirada e preenchi o horário com aulas extras do cursinho. Com um pouco mais de segurança, prestei três vestibulares, UFSCar3, UNESP4 e USP5, e com grande satisfação e felicidade, consegui ingressar na Universidade Federal de São Carlos... no tão sonhado curso de Educação Física. Fiquei na lista de espera, mas não perdi a esperança. Quando vi meu nome na lista, não acreditei! Eu havia conseguido! Fiz a matrícula e saí do prédio, pintada de tinta até as orelhas. Ao chegar em casa, recebi um abraço da minha mãe que estava na expectativa desde que meu pai tinha me levado até a Universidade. Foi um dia de muita felicidade para todos. Por continuar na minha cidade, estou aproveitando bastante. Estou trabalhando como voluntária num Projeto de Extensão de condicionamento físico para servidores da Universidade, o qual está sendo muito gratificante para mim, por aprender conteúdos sobre a profissão que quero exercer e estar me relacionando com várias pessoas. E finalmente, estou no Programa Conexões de Saberes, participando de vários eventos, reuniões e atividades desenvolvidas com a comunidade, com grupos de estudos e, principalmente, relacionadas 3 Universidade Federal de São Carlos, pública, fundada em 1968, com campus em São Carlos, Araras e Sorocaba [informações do site: http://www2.ufscar.br, em 26 dez 2006]. 4 Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, pública, criada em 1976, presente em 23 cidades do Estado de São Paulo [informações do site: http://www.unesp.br, em 26 dez 2006]. 5 Universidade de São Paulo, pública, criada em 1934, presente em 6 cidades do Estado de São Paulo [informações do site: http://www2.usp.br/portugues/index.usp, em 26 dez 2006]. 16 Caminhadas de universitários de origem popular com a trajetória da minha vida, através do Caminhadas, que estão contribuindo para meu crescimento pessoal. Estou tendo a oportunidade de me conhecer melhor, de relembrar a história da minha vida e valorizá-la. Sei que minha atuação no programa e em tudo que ele envolve é importante para mim e, principalmente para os outros. Temos de fazer o melhor que pudermos, pois essa é a nossa sagrada responsabilidade humana. Universidade Federal de São Carlos 17 Reflexões do início de uma caminhada Amanda Roberta Corrado* ...Bom mesmo é ir á luta com determinação, abraçar a vida e viver com paixão, perder com classe e vencer com ousadia! Porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é muito para ser insignificante. Charles Chaplin O processo educativo não se restringe ao âmbito da instituição escolar, considera Freire, mas acredita–se que possa desenvolver-se nas mais diferentes práticas sociais. Nessa perspectiva, a base dos meus saberes enquanto educanda foi povoado pelas experiências, práticas e vivências passadas por meus avós e também por meus pais. Durante nossas reuniões cotidianas, festas e diálogos. Alguns saberes foram tão marcantes que despertaram diferentes predileções passando a ser de grande valia na escolha da minha profissão, pois com eles compreendia a verdadeira essência da Agronomia. A força, coragem, justiça e poder de renovação diante das dificuldades, também foram ensinamentos essenciais para conseguir ultrapassar as barreiras da educação no país. A história de cada pessoa não é reservada e solitária, caminha sempre com os acontecimentos do mundo; com a crise da década de 80, nossas vidas sofreram grandes mudanças e passamos a morar em Rincão, cidadezinha localizada no interior do estado de São Paulo. Essas transformações foram seguidas de um período de muitas dificuldades e de muitas renúncias, contudo de repleto aprendizado de superação, renovação e de onde conseguimos tirar o melhor diante daquilo que a vida nos oferecia. Nesse cenário, meus pais, mesmo sendo pessoas com idéias diferentes e vindos de famílias com pouca tradição de estudo, sempre estiveram unidos e de comum acordo na minha permanência e de minha irmã Elis na escola, sempre prezaram a nossa educação para que pudéssemos construir uma história diferente e mesmo quando em alguns momentos a lógica dos fatos levasse a pausa dos estudos e início do trabalho para complementar o orçamento familiar. A pintura passou a fazer parte da minha vida primeiramente para trabalhar meu lado artístico, pois minha mãe sempre procurou incentivar atividades que proporcionassem diferentes sensações para que pudéssemos descobrir aquilo que realmente viéssemos a gostar. E com toda a vontade e insistência de uma mãe, convenceu a professora a me aceitar como aluna, embora as aulas fossem destinadas apenas para adultos e eu só tinha 8 anos. Depois * Graduanda em Agronomia pela UFSCar. 18 Caminhadas de universitários de origem popular de alguns anos, a pintura passa a ter importância como única fonte de nossa renda, sendo o artesanato feito por toda minha família sustentava nossas despesas e pequenos sonhos. Meu ensino médio foi cursado no Colégio Técnico Agropecuário José Bonifácio UNESP/Jaboticabal, e a minha vivência como estudante nas dependências do Colégio Técnico Agropecuário-CTA transformou minha concepção de mundo. A valorização da minha origem nessa nova construção do mundo foi bastante importante, pois redescobri que, quando você passa por situações de dificuldades começa a lutar por ideais diferentes, a batalhar por coisas que nem todo mundo está interessado em modificar e, principalmente, não sentir vergonha das suas diferenças, passando a fazer delas uma arma na batalha para a melhoria dessas desigualdades e mazelas. A convivência no Colégio Técnico Agropecuário-CTA valeu também por todas as amizades verdadeiras construídas, demonstrando que nem só os laços de sangue unem as pessoas, deixando as recordações das conversas em frente ao prédio central após o período letivo de cada ano, as noites de pizzas e a luta por mudanças do grêmio estudantil. A família de cada amigo que me acolheu como uma filha, assim como os meus pais acolhiam meus amigos, são jóias raras que carregarei por toda a vida e aos quais não poderia deixar esquecido. Com o término do ensino médio iniciei meus trabalhos junto ao Departamento de Produção Vegetal da UNESP Jaboticabal, o qual me deu condições para freqüentar um cursinho pré-vestibular. Esse período foi de muita correria, estresse devido ao vestibular e à diferença de ensino, entretanto, com o incentivo de todas as pessoas nunca pensei em desistir e caminhei passo a passo até minha entrada na universidade. A construção da minha história até a universidade, como a de outros estudantes, não é única, pois é o reflexo da desigualdade e das mudanças que precisamos transpor para a construção de um país justo. A caminhada diferentemente do que muitas vezes acreditei, não acaba com nosso ingresso na universidade... ledo engano. Nossa caminhada é longa, não pode ter chegada, nem ponto final enquanto existam ainda tantos outros jovens fora dos muros da universidade, enquanto tivermos um sistema de ensino superior baseado na meritocrácia, fazendo-se também necessário um repensar do papel da universidade e assim como Freire, reivindicar que esta esteja a serviço dos interesses populares e que busque a compreensão da leitura de mundo e chamar a atenção para a rica relação que pode estabelecer-se entre o conhecimento científico e o saber popular. Universidade Federal de São Carlos 19 História de minha vida Amanda Rosinalia Rodrigues* Nasci no dia 12 de maio de 1986, em uma cidade muito pequena do interior de São Paulo, Itajobi. Meus pais sempre moraram na zona rural deste município, em uma humilde propriedade de meus avós, onde toda a família, eles e seus filhos moravam e trabalhavam. Alguns, depois de casados, se mudaram dali, mas meus pais e mais três irmãos continuaram ali junto deles. Todos trabalham com o cultivo e a colheita de frutas, de onde retiram seu sustento. Minha infância pode ser considerada normal, simples, pois não tinha ótimas condições financeiras. Quando não estava na escola, que era muito próxima de minha casa, estava brincando pelos quintais de minha casa, com primas e vizinhas da mesma faixa etária que a minha. Eu não era uma criança que ficava muito tempo brincando sozinha dentro de casa, até porque não tinha muitos brinquedos para isso, nem passava horas assistindo televisão, preferia sempre brincadeiras com outras crianças e ao ar livre, brincava muito de “escolinha”, esconde-esconde, mas adorava mesmo era brincar na terra. Na escola, sempre procurei ser uma boa aluna, pois sabia que tudo o que estava aprendendo seria muito importante para mim, no futuro, na profissão que escolhesse. Desse período de minha vida guardo ótimas recordações de amigas maravilhosas que fiz, éramos primas e nos conhecíamos desde crianças, eram elas a Thaisa e Elisangela; tinha também a Janaina, a Marilda que conheci na escola. Nós aprontávamos muito juntas, brigávamos também, mas não nos separávamos, em quase todas as comemorações da escola, estávamos nós lá, apresentando alguma coreografia, era muito engraçado. E no Ensino Médio nos separamos, mas encontrei outras que também me marcaram muito, como esquecer a Valquíria, a Andressa e a Angélica, companheiras de muitas aventuras e trapalhadas, curtimos muito nesses três anos, passamos por vários momentos ruins através dos quais descobrimos o valor de uma amizade verdadeira, uma ajudava a outra a superar a perda do namorado, a briga com os pais, a má sorte e os desentendimentos que às vezes ocorriam até entre nós mesmas, mas que logo eram superados, confiávamos segredos que nunca poderiam ser contados a ninguém, tenho-os comigo até hoje e sinto muita falta dessa época, principalmente pelo fato de termos nos distanciado muito; é triste não as ter mais por perto ou mesmo distante não ter mais contato com elas, sinto muita falta dessas “loucas”. Dessa época também é impossível esquecer as festas de formaturas (8ª série e 3º colegial), foram dias inesquecíveis, marcados por muita ansiedade, nervosismo e felicidade. Outro fato que muito me marcou foi a perda de minha avó materna em 1997; ela era muito querida, era minha madrinha de batismo e adorava passar os finais de semana na sua casa, mas mais triste do que não a ter mais aqui é o fato de ter perdido totalmente o contato * Graduanda em Educação Física pela UFSCar. 20 Caminhadas de universitários de origem popular com o meu avô, seu marido, que casou novamente e se desligou por completo de sua família; é muito triste para mim, hoje, encontrá-lo na rua e saber que ele não me conhece, não sabe que é a sua neta que tanto o adorava é aquela desconhecida que cruza na sua frente. Alguns dias atrás, fiquei sabendo que ele estava muito doente, imóvel em uma cama, mas a distância, a falta de tempo e até de vontade me impossibilitaram de fazer alguma coisa. Um pouco mais recente, acredito que em 2001, perdi meu avô paterno, uma figura também muito importante em minha vida; ele já estava doente, mas não era muito grave, foi um susto muito grande para todos; a família sofreu muito e sofre até hoje a sua falta, mas imagino que tenha sido o melhor, pois não queríamos vê-lo sofrendo mais. Um momento também muito importante foi o meu aniversário de 15 anos, meus pais não tinham boas condições financeiras para realizar a festa dos meus sonhos, mas não deixaram esse dia passar em branco; minha mãe organizou com o maior carinho do mundo a festa, que foi realizada na minha casa mesmo, todos os detalhes (enfeite de mesa, lembranças, roupas, comidas), teve até valsa com meu pai. Foi tudo muito lindo, meus amigos me prestigiando; o mais legal foi que no auge da festa, na hora das homenagens, minha mãe me deu de presente uma jóia que tinha sido da minha avó, sua mãe, algo muito precioso com um valor sentimental imensurável, que guardo comigo, e se no futuro tiver uma filha, será dela também. Recebi uma educação, não exageradamente, mas um pouco rígida, que muitas vezes questionei e à qual resisti, mas tenho comigo todos esses valores que meus pais me passaram, e agradeço muito por isso. Como toda adolescente, fui revoltada, queria sair com minhas amigas e meus pais não deixavam, comecei a namorar cedo, algumas vezes até me arrependo, mas tudo isso serviu para eu aprender muitas coisas sobre a vida. Eu era, e vejo que ainda sou, uma pessoa sonhadora, e o meu maior sonho sempre foi poder ter uma vida melhor, mais confortável, com melhores condições de saúde, de moradia, de alimentação etc. Quando criança, não sabia ao certo como conseguir isto, mas quando fui amadurecendo, e as responsabilidades começaram a recair sobre mim, percebi que somente através do trabalho poderia conseguir realizar esse sonho. Não sabia ainda o que queria fazer, onde trabalhar; muitas alternativas me passaram, mas nenhuma me prendeu completamente a atenção. Assim, continuei estudando, e em um momento do terceiro ano do Ensino Médio, notei que era chegada a hora de decidir, pois aquele seria o meu último ano na escola, e então surgiu a dúvida: o que fazer depois? Vou continuar estudando? Vou prestar vestibular? Para que área? Com o que quero trabalhar? Eram muitas perguntas e poucas repostas. Será que eu vou conseguir? Foi uma fase complicada, como tantas outras que surgiram após. Quando manifestei essa situação para meus familiares e amigos, recebi a aprovação e o apoio de todos e isso foi de fundamental importância para minhas decisões. Às vésperas do vestibular, a maior dúvida ainda permanecia: que curso prestar? Escolhi Educação Física por ser com o que mais me identifiquei dentre os outros, mas ainda não tinha muita certeza do que queria realmente. Ao concluir o Ensino Médio no ano de 2003, prestei vestibular em duas universidades públicas, UNESP e UFSCar, ambas para Educação Física. Terminadas as provas, eu já sabia que as minhas chances eram pequenas porque não havia me preparado totalmente para aquilo, e ainda pesava o fato de ter estudado sempre em escola pública, e não tinha me dedicado ao máximo aos estudos como poderia ter feito nos últimos anos. E como o esperado, não fui aprovada em nenhuma universidade. Universidade Federal de São Carlos 21 Decidi desistir, pois acreditava não ser capaz, apesar de todas as pessoas a minha volta não concordarem; na realidade não sabia muito bem o que queria e estava com muito medo de tentar e falhar novamente. Foi quando meu irmão resolveu me ajudar. Como já trabalhava, tinha um emprego e salário estável, era responsável pelo seu próprio sustento, não dependia mais dos nossos pais e se ofereceu para pagar um ano de cursinho para mim. Meu irmão é seis anos mais velho que eu, é uma pessoa muito importante em minha vida e sempre me ajudou em tudo, devo muito a ele por isso; é um irmão diferente, especial, importante, não sei explicar, ele é diferente. É interessante ressaltar aqui que, quando éramos crianças, brigávamos muito, mas muito mesmo, e hoje nos damos muito bem. Amo muito esse cara, que é um herói para mim, a pessoa em que me inspiro e penso antes de tudo o que vou fazer. Hesitei em aceitar, com medo de não conseguir e seu esforço ser em vão, mas ao fim aceitei e fiz um ano de cursinho pré-vestibular. Dediquei-me ao máximo, estudava uma média de cinco horas por dia, fora as horas de aula que eram no período noturno. Mas também de extrema importância para o meu sucesso foi a presença do meu irmão e do meu atual namorado, pessoas que sempre estiveram ali ao meu lado me apoiando, me ajudando em todos os momentos mais difíceis, devo muito a esses dois, os “homens da minha vida”, nunca vou cansar de agradecê-los. Neste um ano de cursinho, 2004, eu amadureci muito, percebi que o meu futuro, meu sucesso, e a possível realização de meus sonhos estavam em minhas mãos, e que se eu lutasse e me dedicasse muito poderia conseguir. Conheci várias pessoas que estavam na mesma situação que eu, outras até piores, mas que mesmo assim nem pensavam em desistir. Uma, em especial, foi muito importante neste um ano, uma amiga que eu já conhecia, mas de quem me aproximei muito nessa época, a Keli. Eu morava com meus pais na zona rural, como já disse, e fazia cursinho no período noturno, em uma cidade próxima dali, Catanduva, a mais ou menos uma meia hora de distância. A prefeitura de Itajobi disponibilizava um ônibus para levar-nos, pois muitas pessoas também faziam faculdades particulares nessa mesma cidade. Como chegávamos tarde da noite, não tinha mais como eu ir para minha casa, meu pai até queria ir me buscar todo dia, mas foi quando essa amiga ofereceu sua casa para eu ficar todas as noites, e assim foi, pois achei desnecessário fazer meu pai acordar no meio da noite para ir me buscar. Ficamos muito próximas nesse período, e até hoje nos falamos, com menos freqüência, mas acredito que a amizade continue a mesma. A sua família me tratava como parte dela, me sentia muito bem naquela casa e sinto muitas saudades de todos de lá. Foi um ano muito importante em minha vida. Hoje acredito que se ele não tivesse existido talvez minha adaptação tivesse sido diferente, mais difícil. Ao final deste ano prestei o vestibular novamente, agora melhor preparada, escolhi três universidades; UEL1, UNESP/campus Bauru e UFSCar, novamente todas para Educação Física. Passadas as provas, eu acreditava que pelo menos na UEL iria conseguir a aprovação, estava com uma sensação de dever cumprido, e a certeza de que tinha feito a minha parte. Mas mesmo assim 1 Universidade Estadual de Londrina/PR, pública, criada em 1970. Em 1987, foi implantado o ensino gratuito na Instituição e, em 1991, transformou-se em Autarquia Estadual. A partir do vestibular de 2005, a UEL adotou o sistema de cotas para alunos negros e para oriundos de escolas públicas [informações do site http://www.uel.br/uel/portal, em 26 dez 2006]. 22 Caminhadas de universitários de origem popular estava um pouco desanimada com os resultados, pois achei as outras duas provas difíceis, e quando saiu o primeiro, aqui da UFSCar, nem procurei saber, foi o meu namorado quem foi ver e me deu a notícia por telefone. Tamanha foi a minha felicidade: estava na lista de espera! E depois, o segundo foi meu irmão quem viu e também me passou, por telefone, a notícia de que havia passado, e por fim, saiu o resultado do terceiro, também fui aprovada; fiquei muito feliz por conseguir a aprovação nos três vestibulares. Escolhi a UFSCar, por vários motivos: proximidade de minha casa, tinha amigos que já estavam estudando aqui, maior disponibilidade de assistência estudantil, características do curso etc. Passada essa fase, veio outra tão complicada quanto: “sair de casa”, era muito difícil deixar meus pais e ir para um lugar estranho onde não conhecia ninguém praticamente, aprender a viver sozinha, sem depender mais de ninguém, foi muito difícil porque até então eu nunca havia saído de casa. Lembro do momento da despedida, meus pais na porta de casa chorando e eu indo embora, depois meu irmão na rodoviária chorando, acenando, e o ônibus saindo. Ainda hoje não acredito como consegui pegar aquele ônibus e vir embora sozinha, sem conhecer ninguém; hoje tenho orgulho de mim mesma. Foi muito difícil me acostumar sem minha mãe fazendo quase tudo para mim, meu pai para conversar e meu irmão para me ajudar, e meu namorado também. Para matar um pouco das saudades, eu falava com eles todos os dias, com algum deles pelo menos, e sempre que podia ia para casa nos finais de semana. Foram muitos os momentos em que me vi sozinha e chorei e tive vontade de voltar, mas a vontade de vencer era maior e me convencia a ficar; eles também sofreram, eu sei, mas foram fortes e sempre que podiam vinham aqui me visitar. Aprendi muito, novamente, amadureci mais ainda, me tornei uma pessoa independente e segura ao tomar minhas decisões. Minha vida mudou completamente, hoje convivo com pessoas muito diferentes de mim, que eu nunca imaginava nem conhecer. Há uma coisa que a gente aprende vivendo em um alojamento estudantil, que todas as pessoas são diferentes umas das outras e para se conviver bem é preciso aceitar e acima de tudo respeitar essas diferenças. Durante o meu primeiro ano, contei com a assistência que a universidade oferece: moradia no alojamento, alimentação no Restaurante Universitário e ainda uma ajuda de custo por meio da chamada Bolsa Atividade, através da qual eu trabalhava na Unidade de Assistência a Criança (UAC) e recebia o valor de 110 reais por mês. Com isso, meus pais pouco ou quase nada precisavam me ajudar financeiramente. A vida universitária é muito diferente, pelo menos da vida que eu tinha lá na casa dos meus pais, minha liberdade aumentou substancialmente, mas aumentou também a responsabilidade e nos primeiros tombos aprendi a controlar e a saber aproveitar essa nova liberdade. Eu aprendi a conviver com pessoas completamente diferentes de mim, adquiri uma disciplina para estudar que às vezes eu não acredito, é engraçado ver como que o dia parece ser muito pequeno para tanta coisa que temos que fazer, é normal agora eu ficar até a madrugada estudando, pois durante o dia não dá tempo. Ainda preciso aprender a lidar com a pressão e o estresse que existem nas vésperas das provas e trabalhos mais importantes, isso me desgasta muito, mas é tudo recompensado ao final do semestre quando o reconhecimento do meu esforço vem na forma de aprovação. Há muitas coisas boas também, na universidade, não poderia de forma alguma deixar de citar as pessoas maravilhosas que conheci aqui e com quem tenho prazer de conviver, amigas como a Cindia, a Juliana e a Neila que sempre me ajudam a superar as dificuldades, e eu nunca esquecerei principalmente muitos momentos “intrínsecos” que vivemos. Há o pessoal lá Universidade Federal de São Carlos 23 do alojamento em que moro, que passou a ser minha casa aqui, onde aprendi a conviver e passamos muitos bons momentos juntos. Agora, no segundo ano, conheci e tive a oportunidade de participar do Programa Conexões de Saberes que, além de ajuda financeira através da bolsa que recebemos, nos oferece um meio para nos aproximar daquelas pessoas mais desfavorecidas financeiramente, e que por esse motivo não tiveram acesso ou nem sabem da existência de universidades públicas. A galera do Conexões (os bolsistas) se tornou também como uma família, pois passamos por muitas coisas parecidas e estamos quase a todo momento juntos Tudo com o que estou tendo contato aqui na UFSCar está colaborando muito para o meu crescimento profissional, e este Programa Conexões de Saberes além disso, está me proporcionando um crescimento pessoal, pois estou fazendo algo prático para aquelas pessoas que, diferentemente do que aconteceu comigo, não tiveram uma oportunidade de estudar, de escolher uma profissão, estamos tentando dar essa oportunidade a essas pessoas, e isso faz-me sentir útil e me encoraja na luta para conseguir uma vida melhor, não só para mim, mas para minha família também, que é o que eu tenho de mais importante. Foram eles que me deram a vida e tudo o que tenho e sou até hoje, por isso quero retribuir tudo isso, fazendo com que a vida deles seja confortável e sossegada, da maneira como eles merecem por terem trabalhado a vida toda. Quero também poder ajudar todas as outras pessoas que precisam, pois pretendo me formar não só para ter um diploma, mas para compartilhar, com outros, tudo o que aprendi e estudei, buscando assim melhores condições de vida e de saúde. 24 Caminhadas de universitários de origem popular Realizando sonhos Anderson Thadeu Nunes* A culpada de eu existir é minha mãe. Reclamem com ela, o verdadeiro amor da minha vida. Minha mãe namorava um homem que, com o passar do tempo, aprendi que não era meu pai, já que pai é quem educa, quem cria, e não quem apenas fecunda. Este namoro terminou após ele saber da minha futura existência. Pediu para que minha mãe me abortasse, mas ela não quis. Por isso digo que é minha heroína, o verdadeiro amor da minha vida. Enquanto crescia, minha mãe trabalhava e não tive luxos, mas não posso dizer que algo faltou. Não lembro exatamente com que idade, mas logo eu tive que ficar numa creche. Chamava-se Creche Escola Estância Feliz. Passados três anos e oito meses do meu nascimento, minha mãe deu à luz o meu irmão, filho de outro pai que, infelizmente ou não, só Deus é quem sabe, faleceu quando meu irmão tinha apenas dois anos de idade. Assim, minha mãe passou a ser pai e mãe de duas crianças. Quando eu estava em idade escolar, minha mãe procurou a melhor escola pública que conhecia. Sempre fez assim. Como não podia pagar para que estudássemos em escolas particulares, fazia questão que estivéssemos nas melhores públicas, mesmo que estas fossem distantes de nossa casa como sempre aconteceu. Então, da primeira à quarta série, estudei na Escola Estadual Francisco Feliciano Ferreira da Silva, vulgo Verdinho. Depois, no ano de 1996, ocorreu uma mudança nas divisões de alunos, de acordo com as séries, e eu passei a estudar na Escola Estadual Coronel Carlos Porto a partir da quinta série e lá permaneci até terminar o terceiro colegial. Durante todos esses anos, minha mãe não cobrava que eu trabalhasse, ela esperava que eu o faria para ajudá-la quando terminasse o Ensino Médio. Entretanto, surpreendi minha mãe, negativamente, pois tomara gosto pelos estudos e queria prestar vestibular. No momento em que comecei a estudar, ou seja, nos primeiros anos escolares, uma pessoa influenciou decisivamente minha vida. Seu nome é Alziete, uma antiga amiga da minha mãe. Acostumei-me a chamá-la de “Vó”, já que via sua neta, que tinha aproximadamente a mesma idade que a minha, referia-se a ela assim, como não poderia ser diferente. Quando eu voltava da escola ia direto para a casa da “Vó”. Almoçava, assistia TV, estudava, tomava café. Acredito ter sido por causa dela que adquiri o gosto e o interesse pelo estudo. Todos os dias durante o ano em que estudava a segunda série, ela me perguntava as tabuadas. Aprendi todas neste ano, do dois ao dez, e nunca mais esqueci. Na quarta série, foi a vez de aprender conjugação verbal. Até hoje me lembro da gramática marrom com a qual eu gastava horas estudando os verbos que minha “vó” mandava. * Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 25 Quando estava na sétima série, comecei a treinar voleibol no SESI1 da minha cidade, Jacareí-SP. Tudo começou quando, numa aula de educação física, o hoje meu amigo, que chamo de irmão, convidou-me para treinar no SESI, pois ele achava que eu jogava bem. Ele acabara de mudar para aquela escola. Vim a saber, quando comecei efetivamente a treinar lá, que o técnico de voleibol também dava aulas na escola “Carlos Porto”, em que eu estudava. Esse professor foi outra pessoa que exerceu uma influência considerável na minha vida. Seu nome é Francisco, mas todos o chamamos de Chico. Com seu jeito de ser e de pensar e com suas atitudes, influenciou o meu caráter muito fortemente e agradeço muito a ele por isso. Foi a figura masculina que tive por referência na minha adolescência. Sua integridade e senso de justiça sempre me serviram de exemplo. De início, e por muito tempo, minha mãe não gostava da idéia de eu treinar voleibol. Ela sempre foi superprotetora e tentava nos manter em casa, mas sempre fui muito independente. Infelizmente, para ela, por muito tempo isso foi ruim. Ela detesta ser contrariada. Sou o filho errado para a mãe certa. Eu sempre fiz o que queria, podia ela fazer ou reclamar o que quisesse. Graças a Deus eu sou ajuizado. Modesto também... Durante os dois primeiros anos em que treinei, eu raramente entrava nos jogos. Isso levou a um fato que me marcou muito. Eu sou uma pessoa bastante tolerante, mas acho que amigos de verdade se apóiam nas horas difíceis e riem juntos nas outras. Um garoto que era meu amigo desde a sexta série juntou-se a outro amigo nosso e começaram a dizer: “Erva, erva, erva,... reserva dos reservas...”. Isso me irritou profundamente. Ou melhor, me magoou. Resultado: deixei de considerá-los como meus amigos e me aproximei dos que hoje verdadeiramente os são. No outro ano, em 2000, passei a ser titular absoluto. Não era o melhor do time. Nunca almejei isso, mas, enfim, era titular. E assim está sendo desde então em todos os times em que jogo. É claro que nem sempre estou nos meus melhores dias e às vezes fico “no banco”. Assim é o esporte! Até terminar o ensino médio, jogava vôlei de segunda a segunda. Era só no que pensava. Via jogos, sozinho ou com meus amigos. Ficava algumas madrugadas assistindo televisão à espera de grandes jogos, assistia gravações antigas... enfim, vivia voleibol, respirava voleibol. Chegava em minha casa sempre exausto devido aos bate-bolas. Porém, hoje lembro desses dias com muita saudade. Ainda bem que aproveitei com intensidade. Foi o tempo em que me encontrei como ser humano. Foi quando aprendi que não só vitórias como também as derrotas ensinam. Foi o período mais importante da minha vida. Foi o melhor! Conheci meus extremos, meus medos, Deus e o respeito por mim. Na metade de 2002, ano em que terminei o Ensino Médio, um professor substituto nos falou sobre os vestibulares para ingressar nas universidades públicas, até então desconhecidas por mim. Sempre quis ser formado em um curso superior. Primeiro, queria ser biólogo, depois, arquiteto, advogado, professor de matemática, estatístico e, finalmente, engenheiro. Mas que tipo de engenheiro? Isso foi difícil decidir até conhecer um pouco sobre a Engenharia de Materiais. Não sei se por acaso, mas após ter-me inscrito no vestibular da UNESP e no da USP, meu amigo me trouxe fichas de inscrições de um curso pré-vestibular popular. Este foi meu 1 Serviço Social da Indústria, instituição de direito privado fundada em 1946 pelo Conselho Nacional da Indústria, presente em 1.885 municípios no Brasil [informações do site: http://www.sesi.org.br, em 26 dez 2006]. 26 Caminhadas de universitários de origem popular primeiro contato com o Curso Alberto Santos Dumont (CASD2). Fizemos nossas inscrições e as provas. Porém, só eu passei, infelizmente. Fiquei neste cursinho dois anos. Paralelamente, não consegui convencer minha mãe da importância que era ter um curso superior. Para ela, até eu entrar na UFSCar no curso de Engenharia de Materiais em 2006, curso superior era coisa de “gente rica”. Demorou muito para que ela me apoiasse, mas eu fui teimoso. Mesmo assim, tinha que começar a trabalhar. No início de março de 2003, surgira a oportunidade de prestar um concurso para Soldado PM (Polícia Militar) Temporário. Eu passei em todas as provas e assinei um contrato. Recebia dois salários mínimos sem quaisquer descontos e mais um tíquete de alimentação no valor de oitenta reais, mais ou menos. Eu sempre odiei formalidades militares. Rezei para ser dispensado do exército e acabei virando um militar. Vale explicar que minhas funções eram exclusivamente administrativas. Não saía às ruas para prender pessoas nem multar ninguém. Nos dois anos que fiz CASD, trabalhei na PM. Passado esse tempo, eu já havia ficado “macaco velho” de vestibular. Não agüentava mais! Minha mãe me pressionava. As pessoas perguntavam e eu tinha que explicar a elas as dificuldades de passar no vestibular. Precisava tomar uma decisão. Tinha três opções: tentar mais uma vez conciliar estudo e trabalho; deixar o cursinho, continuar trabalhando e estudar em casa; ou, e foi essa a decisão tomada, deixar o trabalho e continuar a fazer cursinho enquanto minhas economias resistissem. O destino me ajudou. Na verdade, Deus me ajudou. Não acredito em destino. Antes do final do segundo ano de cursinho, os professores, que eram alunos do ITA3, passaram uma lista para os alunos interessados em participar de uma turma cujo enfoque das aulas eram as matérias que compunham o vestibular do ITA. Os escolhidos não foram os melhores alunos de exatas. Eu não era um desses! No meu caso, escolheram-me por eu ser um aluno dedicado. Os professores perceberam, ainda bem! E assim, no início de fevereiro, eu recebi uma ligação. Perguntaram-me se eu queria ser integrante da turma-ITA do curso pré-vestibular COC4, com 100% de bolsa e ainda com um excelente material didático. Eu aceitei. Muitos dos professores nessa nova turma eu já conhecia, afinal, essa turma-ITA começou com um convênio entre o CASD e o COC. Agora, sem trabalhar e estudando somente, eu tinha tudo para passar no vestibular. Entretanto, eu prometera a mim mesmo que não pediria ajuda de ninguém para me manter estudando. Meu dinheiro acabou e eu tive que procurar um trabalho para continuar tendo meios de pagar minhas passagens e lanchar. Mas não podia ser como nos dois anos anteriores. Então, o que fazer? Como aos finais de semana eu não tinha aulas e, geralmente, 2 O CASD Vestibulares (Curso Alberto Santos Dumont) é uma iniciativa dos alunos do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) que, em parceria com a Prefeitura Municipal de São José dos Campos e outros parceiros, tem o objetivo de oferecer uma oportunidade de preparação para os exames vestibulares àqueles que não tem condições financeiras de freqüentar um curso pré-vestibular convencional. Para fazer parte do CASD, o aluno precisa ser aprovado no processo de seleção, que constitui de uma prova e uma Entrevista de Renda. Foi fundado na década de 70 e, após alguns períodos de encerramento de atividades, foi reaberto em 1997. Atende, em 2006, 450 alunos [informações do site http://www.casdvest.org.br, em 26 dez 2006]. 3 Instituto Tecnológico de Aeronáutica, órgão de ensino superior do Comando da Aeronáutica, vinculado ao Ministério da Defesa, criado em 1950, com os cursos de Engenharia Aeronáutica, Eletrônica, MecânicaAstronáutica, Infra-Estrutura Aeronáutica e de Computação [informações do site http://www.ita.br, em 26 dez 2006]. 4 Curso pré-vestibular do Sistema COC de Ensino [informações do site http://www.coc.com.br, em 26 dez 2006]. Universidade Federal de São Carlos 27 estudava pouco, procurei um trabalho que me ocupasse apenas nesses dias. Comecei a trabalhar numa pizzaria que um amigo tinha indicado. Ganhei a simpatia dos donos e dos companheiros de trabalho. Às vezes, eu tinha que participar de simulados ou mesmo vestibulares nos finais de semana, mas nunca me incomodaram com reclamações. Aquele local não era um “mar de rosas”, porém não há como negar que foi importante ali ter trabalhado para hoje estar onde desejei. Fiz seis vestibulares para o ano de 2006. Do IME5, do ITA, da USP, da UNESP de Rio Claro, da UFSCar e da UNIFEI6. Passei nos três últimos, mas demorou um pouco para que me chamassem na UFSCar, que tinha o curso que eu realmente queria fazer e onde eu ainda tinha esperança de ser aprovado. Fui chamado praticamente na quarta lista. Minha mãe, que até há pouco tempo insistia que eu desistisse de tudo isso, estava muito orgulhosa de dizer a todos que seu filho havia passado no vestibular. Como foram emocionantes e carinhosos todos os momentos que passamos juntos quando ficou evidente que eu estava de partida. Algo que eu sempre desejei e cobrei, o carinho da minha mãe, agora jorrava fácil. Não que minha mãe não fosse carinhosa, mas eram tão raros esses momentos que às vezes parecia que ela tinha prazer em brigar conosco, meu irmão e eu. Mesmo quando fazíamos tudo certo, ela sempre achava algo para criticar. Tudo passou! Fui para a UNESP, pois era mais perto da UFSCar. Fiquei duas semanas na cidade de Rio Claro. Antes de ir, sabia que duas amigas já estavam estudando naquela universidade. Nessas duas semanas na UNESP fiz muitos amigos, fui a muitas festas e me diverti muito. Quando vi meu nome na lista da UFSCar, chorei. Liguei para minha mãe quando esperava pelo ônibus que me levaria para a rodoviária de Rio Claro onde pegaria outro ônibus para São Carlos. Depois de deixar família, amigos queridos e verdadeiros, meus confortos e rotina, agora eu ia de uma universidade a outra. Finalmente cheguei à UFSCar; estou fazendo o curso que eu quero; moro num lugar bom, com pessoas honestas; minha família e meus amigos estão bem. Hoje tenho a mãe que sempre sonhei, romantizei, idealizei. Minha mãe era perfeita. Agora ela é divina. Nem tenho palavras para dizer sobre o que ela representa para mim. Sempre corri atrás de meus sonhos e hoje vejo o quanto acertei nas minhas escolhas. Estou feliz, claro que eventualmente me chateio, mas só tenho a agradecer a Deus por todas as bênçãos que Ele dá a mim, seja na forma de amor materno, amor fraterno ou da minha força de vontade. 5 Instituto Militar de Engenharia, estabelecimento de ensino do Departamento de Ciência e Tecnologia (DCT) responsável, no âmbito do Exército Brasileiro, pelo ensino superior de Engenharia e pela pesquisa básica fundado em 1959. O IME ministra cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária para militares e civis [informações do site http://www.ime.eb.br, em 26 dez 2006]. 6 Universidade Federal de Itajubá/MG, fundada em 1913 [informações do site http://www.unifei.edu.br/, em 26 dez 2006]. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Um pouco de luta Augusto Cesar Pedro* Contar sobre mim: tarefa ao mesmo tempo tão diferente e difícil como gostosa e excitante. Por ser um trabalho envolvendo vários sentimentos bons, que quase sempre me pego relembrando, e ruins, que não consigo esquecer, ou acho que também não quero esquecer, a autobiografia envolve um labor indescritível. Talvez seja esse labor, ajudado pela minha timidez, que faz dessa tarefa algo inexplicavelmente excitante. Então, vamos a ela. Minha história começa no dia dez de março de 1986, às oito horas da manhã, quando cheguei ao mundo. Nessa época, meu pai era metalúrgico e minha mãe era dona de casa. Morávamos em uma casa cedida por minha avó, que ficava perto de duas escolas públicas. E foi em uma delas que, com seis anos de idade, comecei a cursar o ensino fundamental. Estudei quase o ensino fundamental inteiro nesta escola. Entretanto havia um grande problema, que também está presente na grande maioria das escolas públicas: a violência. Brigas eram espetáculos constantes durante os intervalos e também dentro da própria sala de aula. E quem acabava sendo prejudicado era o pessoal que queria verdadeiramente estudar. Dessa época tenho, porém, boas lembranças. Fiz amigos com os quais ainda mantenho contato, como André e Lucas, com quem passei vários momentos interessantes e diferentes, principalmente o Lucas. Como quando, incitado pelos outros meninos, quis brigar com ele. Quando dei o primeiro chute nele e a resposta que tive foi um sorriso, percebi que nada que eu fizesse o faria brigar comigo. Nesse dia, senti que tinha encontrado um grande amigo. Ou quando nós três fazíamos cartas de amor para as meninas da escola e mandávamos no nome dele. Pena que a maioria das cartas não dava resultado. Nessa escola, tive também professores que marcaram positivamente minha vida escolar como a que ensinava português, Marlene, e também Adriana, que foi minha professora quando estava na quarta série e, espero, como futuro professor, ser tão sensível e carinhoso como ela era e tem sido para os seus alunos. Foi, porém, nessa época que a relação entre minha mãe e meu pai começou a ficar ruim. As discussões deixaram de ser raras para se tornar cotidianas. E como, de discussões dos pais, é difícil se manter longe, meus irmãos e eu defendíamos sempre minha mãe. Meu pai, estranhamente, compreendia-nos. Porém, a situação estava se tornando insustentável. Essas brigas, aliadas com outros fatores, como o meu falso amadurecimento, fizeram com que eu me afastasse do meu pai. Comecei a me distanciar dele. Todo aquele amor esperado de se ter pelo pai, eu achava que não tinha mais pelo meu. Os nossos desentendimentos ganharam uma freqüência terrível e passamos a dialogar cada vez menos. * Graduando em Letras pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 29 Porém, quando estava no segundo ano do colegial, aconteceram fatos que marcaram a minha vida profundamente e me fizeram mudar drasticamente de conduta. Quando acabei o ensino fundamental, resolvi prestar uma prova para tentar entrar na Escola Técnica Estadual Profa. Anna de Oliveira Ferraz, conhecida como “Industrial” e considerada uma escola melhor que as outras do ensino público. Felizmente, consegui passar e então cursei meu ensino médio nessa escola. E essa escola, principalmente os amigos que fiz, trouxeram grandes transformações para minha vida Foi no ano de 2002, quando estava no segundo colegial, que meu pai foi internado no hospital, pois estava com a saúde debilitada devido à bebida e a o cigarro. Quando fui visitá-lo, num domingo, o mesmo dia em que fiz crisma, e o vi numa cama de hospital, senti uma dor tão forte e descobri que todas as palavras e sentimentos que achava que tinha com relação ao meu pai eram mentira. Percebi então que apesar das coisas erradas que fazia e sua atitude em relação à minha mãe, eu nuca tinha perdido o amor por ele. Percebi tudo isso, porém, não consegui dizer a ele. Somente segurava a sua mão e chorava percebendo os tempos perdidos em discussões que não tinham a menor importância. Quando meu irmão e eu saímos do quarto, eu queria falar para meu pai o quanto o amava e o quanto me arrependia pelas nossas brigas. Porém não consegui fazer isso, não tive a coragem, naquele dia, de assumir que sempre estivera errado. Mas, ao voltar para casa, ficava sonhando com a próxima visita, no próximo domingo, na qual falaria do meu imenso amor por ele. Contudo, essa visita nunca chegou. Dois dias depois, meu pai faleceu. Isso foi um momento horrível. Eu estava fazendo um curso e minha mãe ligou na escola falando que eu tinha que ir embora, sem dizer o que era, por medo de algum acidente, pois eu estava de bicicleta. Na hora eu senti que era algo com meu pai. Quando cheguei em casa, recebi a notícia. Não acreditava... sei lá, vi minha mãe ligar chorando para uma colega da família avisando do ocorrido, mas mesmo assim sabia que podia ser mentira ou que tinha como voltar. Não conseguia pensar em nada. Cheguei ao velório e foi nesse momento que percebi que o que estava acontecendo era real. Vi aquelas pessoas me abraçando, o meu vizinho que também tinha perdido seu pai no ano anterior me consolando, dizendo que sabia o que eu estava sentindo. Chorei. Queria falar pro meu pai do meu amor, mas não podia, nunca mais iria conversar com ele. Isso doeu e ainda dói muito em mim. Esse fato mudou totalmente minha vida. Passei a não discutir mais de bobeira, a não guardar mais mágoas das pessoas. E aprendi a assumir meus erros e pedir desculpas. No ano seguinte, recebi um convite de uma amiga do colegial, a Cilene, que fazia parte de um grupo da igreja, para fazer um retiro espiritual. Aceitei o convite. Foi uma das melhores coisas que fiz, pois me ajudou a me conhecer de fato. Percebi que estava cercado de boas pessoas e não tinha descoberto ainda. Aprendi a viver de verdade e a valorizar a vida e quem a gente gosta. E foi nessa época também que, graças aos amigos que fiz, como Lucas, Vacão, Zé, Douglas, Danilo, Thiago, Milen, Joaquim, Bruno, que comecei a preocupar-me com quem seria no futuro. Uma das medidas para tentar responder essa questão foi começar a fazer um curso profissionalizante na área de metal-mecânica quando estava no segundo ano. Porém, percebi que isso não era “minha praia”, mas não abandonei o curso de dois anos de duração devido a vários motivos, entre os quais, as amizades, como Douglas e Raphael (com quem 30 Caminhadas de universitários de origem popular aprendi meus primeiros passos de samba) e os professores que tive no curso, entre eles, o instrutor Ivan, ótimo conselheiro, e um dos professores mais legais que tive. Quando comecei meu terceiro ano, época de toda a pressão do vestibular, eu não consegui dedicar-me suficientemente aos estudos para prestar os exames, pois estudava pela manhã na escola e à tarde no meu curso profissionalizante. Com isso, chegava do curso no final de tarde, não tinha ânimo para estudar mais nada. É, eu era um pouco preguiçoso também. Resultado foi que no final do ano prestei, mais como experiência, sem estar preparado e, como era de se esperar, não passei. Ao invés de me desestimular, o fato de não ter passado transformou-se em um desafio, e incentivou-me a estudar para entrar em uma faculdade pública. Então prestei uma prova para entrar num curso pré-vestibular popular. Passei e comecei a estudar no período da manhã. Lá, conheci um grande amigo, o Rafael, companheiro, junto com o Paulo César, para as mais loucas e engraçadas situações. Também tive um professor que me ajudou muito a entender física de um jeito legal. Ele buscava simplificar ao máximo os cálculos, explicando-os de uma maneira descolada e engraçada. Contudo, como acontece com grande parte das pessoas de classe economicamente menos favorecida, tive que começar a trabalhar. O meu primeiro emprego foi de garçom. E como saía do trabalho já de madrugada, cansado, aliando isto à já citada preguiça, não tive pique para continuar os estudos e abandonei o cursinho, entretanto não “desencanei” de entrar na universidade. No final do ano, prestei o vestibular já sabendo que não passaria, pois novamente não tinha me dedicado o bastante. E como diz o ditado “há males que vêm para o bem”: ainda nessa mesma época, além de não ter passado no vestibular, ainda fui mandado embora do serviço. Como tenho costume de sempre tirar uma lição das coisas que acontecem comigo, com a demissão e a frustração do vestibular eu percebi que o que desejava realmente era entrar numa universidade e resolvi me dedicar realmente para conseguir e, assim, não ter mais desculpas para não passar no vestibular. E foi o que fiz. Estudei em outro cursinho popular, esse feito pelos alunos da Unesp, de Araraquara. Logo no primeiro dia, o professor contou sua trajetória até a universidade e falou:– Se dedicando já é difícil a concorrência por uma vaga, imagina sem dedicação! Isso, para variar, me incentivou ainda mais. Comecei a estudar fora do horário de aula, tirar dúvidas com os professores, ir mais vezes à biblioteca. Estava com o firme propósito de passar no vestibular. Então, no final do ano, devido às isenções conseguidas, com a ajuda dos coordenadores do cursinho, e com o auxílio dos meus avós, prestei o vestibular em quatro universidades diferentes: para o curso de História, em três universidades, e Letras, na UFSCar. Fiquei na lista de espera em três universidades, entre elas a UFSCar, mas sem muita esperança nesta, pois fiquei muito longe dos primeiros colocados. Quando veio o resultado, me surpreendi. Tinha passado nas três universidades. Então veio o melhor momento, momento sonhado todos os dias: decidir em qual universidade estudar. Eu e minha família decidimos que seria melhor matricular-me na UFSCar pelo fato de ser uma boa universidade, ser perto da minha cidade e pela dificuldade que minha família teria para me auxiliar nas despesas caso resolvesse cursar as minhas outras opções. E essa escolha está sendo, felizmente, muito boa. Estou realmente gostando do curso, a universidade oferece uma razoável sustentação ao aluno oriundo de camada popular, como é o meu caso, e também, graças a ela, estou no Programa Conexões de Saberes, que Universidade Federal de São Carlos 31 está me ajudando a observar com uma outra visão as dificuldades que os alunos de origem popular têm para chegar à universidade e como essas dificuldades estão sendo tratadas. E o melhor jeito de acabar minha história é fazer igual aos filmes quando acabam: descrever as pessoas responsáveis pela minha história de vida e um pouco de suas atuações na minha vida. E foi essa forma que encontrei para agradecê-los pela suas atuações brilhantes. A personagem principal é, e não poderia deixar de ser, a minha mãe, Cecília de Oliveira Pedro, a batalhadora Cecília. Batalhadora, pois consegue muito mais do que sustentar três filhos, sendo pai e mãe. Ela consegue fazer a gente ter esperança e alegria, não deixando o desânimo chegar até seus filhos e todos que estão ao seu redor. Ela faz com que eu não tenha medo de nada. Minha mãe é minha coragem. Amiga, é a pessoa com quem falo dos meus sonhos e pesadelos, das minhas vitórias e as minhas derrotas. Sempre com a palavra ideal a me falar, seja puxando a orelha, seja me confortando. É por sua causa que tenho motivos pra sonhar e trabalhar em busca de uma vida melhor. Aos meus irmãos, agradeço pelo grande apoio, demonstrado em vários momentos, como por exemplo quando meu irmão me levava pro cursinho e me chamava a atenção todas as vezes em que eu desanimava, e quando deixa muitas vezes de realizar seus desejos em favor de ajudar minha mãe nas despesas de casa. Agradeço por tudo que fez e faz por mim. Agradeço a ele por estar presente sempre que precisava, como quando arrumava confusões e brigas na escola. Agradeço à minha irmã pela amizade, por seu amadurecimento verdadeiro. Pela sua sinceridade, por ter a paciência para ouvir meus problemas. Meus irmãos chamam-se Natalia e Saymon. Agradeço ao meu tio Ademilson, por ser um amigo, daqueles que é pra tudo o que vier. Com meus avós, José e Dalva, aprendi a viver. Aprendi a não abaixar a cabeça, aprendi a ser o que sou e ter orgulho disso. Agradeço aos meus avós que me ensinaram a sonhar, a ter a certeza de ter visto o Papai Noel saindo pela janela do quarto onde meu irmão e eu estávamos dormindo, depois de ter deixado o presente, pela força que sempre deram a mim e meus irmãos, seja auxiliando meus pais, seja nos educando. Meus avós foram meus pais, ajudando-nos sempre. Agradeço pelos vários momentos que ficaram na minha memória, como os domingos, os natais e tudo mais. Agradeço aos meus amigos. Por conseguir me agüentar, pela força que me deram sempre que precisei. Pelas coisas boas que fiz com eles, pelos conselhos que já recebi e ainda recebo que fazem a diferença no meu jeito de ser. Agradeço ao meu pai. Agradeço a ele por todos os momentos. Pelos momentos tristes que fizeram com que aprendesse que a vida é feita de detalhes e que é preciso fazer desses momentos os melhores, pois nunca se sabe quando esses momentos acabarão. Agradeço a Deus. Agradeço pela minha família, pelos meus amigos, pela minha esperança, pela minha fé. Agradeço pelas boas pessoas que Ele tem colocado na minha vida, pessoas essas que, apesar do pouco tempo de convivência, já sinto que serão muito importantes na minha vida. Agradeço a Deus pela minha vida. E essa foi um pouco da minha história. 32 Caminhadas de universitários de origem popular Alçando vôos mais altos Carlos Messias Ferreira de Jesus* Uma coisa é saber o caminho, outra é percorrer o caminho. Personagem Morpheus no filme Matrix Tive o privilégio de nascer no mês de novembro, primavera, às 6:20 da manhã. Enquanto o mundo abria os olhos para um novo dia, eu abria os olhos para um novo mundo, numa estação do ano que é extremamente majestosa, porque nela a natureza se desperta, enche-se de flores, animais e pássaros, anunciando o verão. Mombucano Minha família morava, na época, num pequeno sítio que pertencia aos meus tios e ao meu pai, que teve de trocá-lo, na ocasião da partilha dos bens da família, por uma casa simples em Mombuca-SP, período do qual, na verdade, não tenho muitas recordações. Esse acanhado município dista 30 km ao sul de Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, e atualmente possui cerca de 4000 habitantes vivendo, quase em sua totalidade, em torno da cultura da cana-de-açúcar, na qual é fortemente fundamentada sua economia. Peraltices Ao lado de meus irmãos, minha infância foi tão simples quanto divertida. Era muito agradável brincarmos juntos e todos nos deliciávamos em observar os caminhões, tratores e máquinas agrícolas que constantemente interrompiam a vida pacata da cidade, atribuindo-lhe certo ar de dinamismo e grandeza. Onde havia obras, lá estávamos nós, “xereteando”! Num aspecto “terrorista” de nossa infância, acontecia que de vez em quando jogávamos bombinha nos cachorros indefesos que se espalhavam pela cidade, os quais gostávamos de ver assustados com os pequenos estrondos. Além disso, divertia-me com o futebol, ainda que não jogasse muito bem, e me realizava ao brincar de caminhãozinho no quintal de terra batida, no qual sempre inventava alguma coisa diferente, inspirado no que via no dia-a-dia: usinas e toneladas de cana sendo levadas de um lado a outro. Na escola Quando minha mãe matriculou-me no pré-primário, não queria ir de jeito nenhum à escola e tinha sérios intentos de incendiá-la e destruí-la, planos que, após os primeiros dias * Graduando em Física pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 33 de aula, para benefício de todos, foram cessando e dando lugar a um grande desejo de aprender. No início, havia apenas um “tio” ou “tia”, sendo a quinta série a divisora de águas: diversos professores se apresentam, deixando mais clara a separação entre as disciplinas. Passado o susto decorrente disso, típico entre crianças de apenas 11 anos, desenvolvi um intenso interesse em relação a Ciências, matéria que considero empolgante por ajudar os alunos a perceberem melhor a realidade que os cerca. Uma segunda ocasião bem interessante na minha vida foi na oitava série, quando me integrei à Comissão de Formatura e passei a ter várias preocupações novas, tais como realizar rifas, festas e outras atividades para arrecadar dinheiro para a cerimônia de formatura. Esta época também marcou o início da minha apreensão com o futuro - O que fazer? Onde trabalhar? Que profissão seguir? Quase adulto No Ensino Médio, era um aluno dedicado, preocupava-me em estudar e manter boas notas, pois tinha consciência de que para passar no vestibular era necessário ter um bom desempenho na prova. No início, não sabia bem qual curso escolheria, mas fui pesquisando e amadurecendo minhas idéias. Simultaneamente ao Ensino Médio, meu primeiro emprego foi como auxiliar de costura, depois do que trabalhei em uma oficina mecânica e numa empresa onde eu era responsável por empacotar balas e chicletes. Alguns meses desempregado e novamente auxiliar de costura, até que o último emprego antes de ingressar na universidade foi como Agente de Saúde da Prefeitura, quando trabalhava durante o dia e fazia curso pré-vestibular à noite. Apesar de não ter tido muito tempo disponível para os estudos, pude prestar vestibular e receber, depois de algumas semanas, a feliz notícia de que havia sido aprovado. Religião Minha casa fica próxima da que, na época, era a única Igreja Católica da cidade. Após fazer a Primeira Comunhão, fui Coroinha e, ao auxiliar nas missas, desenvolvi bastante senso de organização e responsabilidade. Talvez tenha sido ali, também, que abandonei de vez minha vocação “terrorista” citada anteriormente. Gostos Eu sou literalmente o que se pode chamar de onívoro, pois como de tudo, gosto de legumes, frutas, pão de queijo, leite e carne. Trajo roupas que ofereçam discrição e simplicidade, com o objetivo de apenas mostrar-me de maneira apresentável e sóbria. Gosto ainda de realizar caminhadas, de observar a natureza – a mata, os animais, as aves, o céu, as estrelas, a Lua, o Sol – e de fazer leituras edificantes que me levem a refletir sobre a vida. Todo este contato com estas belas paisagens tem me dado uma ótima percepção do mundo e de Seu Criador, conduzindo-me, no ambiente em que vivo, a um equilíbrio pessoal, intelectual e espiritual. Hoje Faço graduação em Física e aprecio o fato de a cada dia realizar novas descobertas e adquirir mais conhecimentos nesse ramo da ciência. Sinto-me feliz por ser estudante e saber que no futuro poderei tornar-me um profissional qualificado a contribuir para o desenvolvimento social. Nesse sentido, o Programa Conexões de Saberes tem sido muito importante 34 Caminhadas de universitários de origem popular nos âmbitos pessoal e profissional, ao fornecer-me uma melhor capacidade de compreender os principais problemas sociais do país relacionados à universidade pública. A Universidade é um ambiente bem interessante, em que é possível fazer muitas amizades e conhecer os pontos positivos e negativos das pessoas. Há, ainda, a oportunidade de aprofundar e intensificar o convívio: no namoro. Foi aqui na UFSCar que conheci uma menina muito especial, a Priscila, que tem sido minha companheira e ajudou-me, por exemplo, na elaboração deste texto, pelo que tenho muito que lhe agradecer. Quando se olha para um caminho, pode-se até ter o mapa em mente, considerar difícil ou fácil a trajetória a ser realizada – isto depende de percepções pessoais. Porém, existe algo muito mais importante do que apenas conhecer o caminho, independente de seu grau de dificuldade: trilhá-lo, dar o primeiro passo, o pontapé inicial. Para alçar vôos mais altos e conquistar as estrelas, é preciso encontrar e compreender os meios corretos de atingir os objetivos, construir melhores percepções das possibilidades e oportunidades, sem permitir que circunstâncias ruins atrapalhem os planos e, deste modo, caminhar com coragem e determinação. É desta forma que caminho: buscando a Deus, vivendo um dia de cada vez, fazendo o melhor que posso, enfrentando, com a ajuda d’Ele, as dificuldades. Nasci numa família pobre (meus pais tinham uma Kombi 73 herdada do meu tio), passei a infância numa pequena localidade entre canaviais do interior paulista, tive que estudar e trabalhar para chegar até a universidade, o que não foi fácil, mas, como se nota, não foi impossível. Universidade Federal de São Carlos 35 História de vida Carlos Ney Martins* Eu sou Ney, nasci no ano de 1973, em uma pequena cidade da região sudoeste de Minas Gerais e do Parque Nacional da Serra da Canastra, onde é a nascente do Rio São Francisco. Assim que comecei a descobrir o mundo a minha volta, percebi que morávamos em uma pequena casa pouco acima de um rio (Rio São João) cercada por uma mata fechada, que tinha árvores enormes (Jequitibás, Jatobás...). Ao redor da casa, tinha também vários pés de mamão, laranjeiras, bananeiras, abacateiros e mangueiras. De manhã, eu acordava e corria para um pequeno curral, onde meu pai tirava um leitinho de umas quatro vacas, eu levava comigo uma caneca com farinha de milho e açúcar e um pedaço de bolo de fubá. Quando acabava de tomar café, eu sumia no mato com o Chumbinho (meu cachorrinho vira-lata); meu pai e minha mãe ficavam muito bravos quando eu demorava a aparecer, eles diziam para eu ficar longe do rio porque havia uma cobra gigante lá, que devorava as crianças, além de uma onça e lagartos gigantes. Bom, eu sossegava alguns dias e depois sumia de novo. Era muito bom espantar os macacos, os pássaros, os quais eram de vários tamanhos e cores, os tucanos eram os que mais me prendiam a atenção. Não cheguei a ver nenhuma onça, muito menos lagartos gigantes, mas um dia estávamos andando pela palhada (roça depois da colheita de milho), eu e o Chumbinho... de repente ele ficou bravo e não parava de latir, foi quando eu vi uma cobra enorme, era uma Sucuri: não pensei duas vezes e corri sem olhar pra trás. Mudamos para a cidade e fui estudar no jardim de infância da Dona Nenê, que ficava em sua própria casa, uma casa antiga e enorme. Eu estava um pouco atrasado em relação aos meus coleguinhas. Nos primeiros dias, chorei, fiz “birra”, não quis ficar de jeito nenhum, achava estranho eu lá no meio de tantas pessoas. Mas isso foi só nos primeiros dias, depois, fazia “birra” pra não ir embora. Cheguei a dormir uma semana lá. Eu sempre assaltava o forninho do fogão de lenha, sempre tinha pão, bolo e pão de queijo. A Dona Nenê sempre me punha de castigo... Depois, eu fui para a Escola Estadual Melo Viana onde cursei da 1ª à 4ª série. O que mais me apavorava na escola era o barulho do motorzinho do dentista, que atendia os alunos. Até que um dia, não teve como escapar, então fui levado pra sala do dentista pelos professores, mas vi que tratar dos dentes não era tão cruel assim. Na 5ª série, fui estudar na Escola Estadual São Gabriel onde concluí o ensino fundamental e o médio. Foi no colégio que conheci muitas pessoas, fiz muitos amigos e amigas * Graduando em Química pela UFSCar. 36 Caminhadas de universitários de origem popular que me que deram dicas sobre cursos pré-vestibulares e universidades, mas isso ainda era um mundo muito distante pra mim, não me via em uma universidade, e, se eu estivesse lá, iria estudar o quê? Bom... mesmo assim, continuei firme nos estudos e trabalhando na agricultura até terminar o ensino médio. Em 1994, já pensava em ir para outra cidade em busca de oportunidade de emprego, uma vez que a agricultura familiar (de subsistência) não ia lá muito bem. Comecei a ir atrás dos amigos e parentes que moravam em outras cidades. Fui para Franca, não consegui nada. Fui para Ribeirão Preto-SP, nada. Tentei Passos-MG, Varginha-MG, Uberlândia-MG e nada! Pensei em desanimar e ficar por lá mesmo. Mas só pensei! Fui para Campinas-SP, morar com meus tios e primos e, após algumas semanas, consegui emprego em uma usina química em Paulínia, que fica a 30 km de Campinas. Passados alguns meses, me mudei para lá. Trabalhei por alguns anos naquela usina e, depois, fui para outra indústria. Conquistei uma estabilidade financeira e voltei a estudar: fiz concurso de bolsas no curso Objetivo de Campinas e consegui um bom desconto na mensalidade por um ano. Prestei o vestibular da UNICAMP1, mas não passei. Fiz a prova de seleção para o Curso Técnico em Química da ETECAP2 e fui aprovado. Lá, estudei até 2004. Concluí o curso e logo após prestei vestibular na UNESP e UFSCar, e fui aprovado em ambas. Hoje, estudo licenciatura em química, no período noturno, na UFSCar e participo do Programa Conexões de Saberes, que tem possibilitado a minha permanência na universidade e a integração com a comunidade de origem popular, trazendo mais experiência de vida. Além disso, a abertura de novos cursos noturnos favorece muitas pessoas que precisam trabalhar durante o dia, possibilitando a eles o acesso à universidade pública. 1 Universidade Estadual de Campinas-SP. É uma autarquia, autônoma em política educacional, mas subordinada ao governo estadual no que se refere a subsídios para a sua operação. Assim, os recursos financeiros são obtidos principalmente do Governo do Estado de São Paulo e de instituições nacionais e internacionais de fomento. O local físico onde se situa a Universidade Estadual de Campinas foi ocupado, em outras épocas por cafezais e canaviais. O seu campus tem o nome do seu fundador, Zeferino Vaz, que foi quem a sonhou e a viu nascer, em 5 de outubro de 1966, data de sua instalação oficial. A Unicamp compõe-se de 20 unidades de ensino e pesquisa que são divididos em 10 Institutos e 10 Faculdades. Nelas são ministrados cursos de nível superior de graduação e pós-graduação. As instalações da Unicamp se estendem ainda às localidades de Piracicaba, onde fica a Faculdade de Odontologia (FOP), Limeira, onde está o Centro Superior de educação Tecnológica (Ceset), responsável por cursos tecnológicos de construção civil, tecnologia sanitária e tecnologia em informática e Paulínia, onde fica o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (Cpqba). A Unicamp também possui o Colégio Técnico de Limeira (Cotil) e Colégio Técnico de Campinas (Cotuca). A pós-graduação da Unicamp oferece 63 cursos em diferentes á reas de concentração. [informações do site http://www.unicamp.br, em 06 jan 2007] 2 Escola Técnica Estadual Conselheiro Antônio Prado, inaugurada em 1964, em Campinas-SP. Passou a integrar o Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza em 1981 [informações do site http://www.etecap.somee.com/www/default.asp, em 02 jan 2007] Universidade Federal de São Carlos 37 Uma caminhada marcada por desafios e conquistas Cleide Helena Santos Cardoso* Nasci em 1978, na cidade de Belém-PA, na região norte dos país, na qual as condições de vida são influenciadas intensamente por uma desigualdade social, marcada geograficamente. Sou filha de uma família de seis irmãos, em cuja trajetória de conquista estiveram sempre presentes o incentivo, a dedicação e a persistência de nossos pais. Apesar desta característica social, éramos muito felizes. Hoje lembro com saudade de cada uma das brincadeiras que os seis filhos fazíamos. Nossas brincadeiras eram as mais simples, porem não menos fortes para nos unir. Brincávamos bastante na rua em frente de casa. Nesta rua brincávamos junto com as outras crianças de cemitério (queimado), cair no poço (pega-pega), adorávamos subir nas árvores para pegar frutas. Principalmente no colégio de freiras que, insistência nossa, tinham sempre as melhores frutinhas, como goiaba, ameixa, fruta do conde (graviola) e o açaí. Neste contexto familiar não é difícil de imaginar como dávamos trabalhos para a mamãe. Parecia incrível que sempre um dos seis filhos estava de curativos. Por exemplo, até os doze anos eu já tinha quebrado o queixo, braço, torcido o pé, além de sempre furar o pé em algum prego que cruzava meu caminho. Além disso, minha caminhada na vida sempre foi marcada pela convivência e interdependência com minha família. E ao longo de minha trajetória várias personagens familiares são de absoluta importância. Duas personagens- heróis mostraram-se essenciais e por que não dizer, vitais. A primeira foi minha mãe: casada aos 15 anos, vinda de uma família sem histórico nenhum de conquistas acadêmicas, isto é, abriu mão de seus sonhos pessoais, para ser a dona de casa que sempre apoiou o acompanhamento escolar de cada filho. Apesar de não ter tido tal escolaridade – seja por falta de oportunidade ou por falta de empenho pessoal- soube desde cedo mostrar a importância dos estudos com mão incentivadora. Para provar isto, depois do sexto filho ainda teve garra e determinação para terminar o ensino fundamental. A segunda personagem: meu papai mostrou não menos empenho e força. Este se estabeleceu no mundo sempre vencendo as adversidades impostas pela vida. Nasceu na cidade de Breves, à margem do rio Amazonas, no interior rústico do estado do Pará, viuse sem pai ao nascer - pois o mesmo não assumiu sua paternidade. E, aos cincos anos, sua mãe veio a falecer. Em seguida foi criado até os quatorze anos por uma tia em Belém. * Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar. 38 Caminhadas de universitários de origem popular A história de conquista pessoal de meu pai coincide com os primeiros passos dados por seus filhos. Nos meus cincos anos, era comum vê-lo, vindo do trabalho árduo de pedreiro, deslocar-se a uma escola pública de curso noturno (supletivo) em busca de seus sonhos. No entanto, por razões econômicas, abriu mãos de um sonho de criança: cursar Engenharia Civil em uma universidade pública. Mais uma vez, é importante ressaltar o contexto social, familiar e econômico - os quais envolveram minha caminhada. Pois até hoje, sempre que o desânimo persiste em manter-se – aqueles dois heróis acima citados são trazidos à minha memória. Assim, sob este contexto geral, teve início, em 1983, a minha trajetória de vida acadêmica. Os primeiros passos do Ensino Fundamental em Belém foram em uma escola de ensino privado, cuja mensalidade cobrada aos alunos era baixa. Este ensino era fortemente marcado por um sistema religioso católico, no qual a maioria das professoras eram freiras. Nesta escola foram longos 10 anos – e nela estudamos todos os seis filhos. Nesta escola, o ensino mostrou-se bom para os padrões gerais em Belém. No entanto, talvez pelo caráter acentuadamente religioso, não tenha criado uma base firme e consistente para o ingresso no ensino médio. Para exemplificar tal contexto, ainda era comum a existência da chamada “palmatória”, a fim de ensinar a “cruel” tabuada. Já em 1993, ingressei no ensino médio em uma escola estadual, marcada pelo abandono e descaso físico. Não possuía, por exemplo, uma área conservada para a prática de esporte. Outro fator viria influenciar negativamente a aprendizagem - eram as freqüentes greves realizadas pelos professores da rede pública- em busca de suas reinvidicacões profissionais. E, ainda comum, era também a falta de professores em disciplinas essenciais. Em 1997, passando estes três anos de Ensino Médio, ocorreu o primeiro dos muitos momentos de decisão relacionados ao ensino. Este primeiro consistia nas persistentes e freqüentes perguntas- o que faria agora? Como iria fazer para entrar em uma universidade pública? Trabalhar ou estudar? A partir daí, logo percebi que minha caminhada estudantil seria mais árdua e naquele momento, mais do que nunca, apareceria o peso do ensino fundamental e médio deficiente. Para contextualizar, relato o rumo estudantil tomado pelos outros irmãos. Neste tempo, os outros quatro filhos já tinham terminado o ensino médio e começado a trabalhar. Uns adiando o sonho de cursar uma universidade, ou seja, “engavetando” o sonho de carreiras idealizadas na infância. Neste período, foram novamente essenciais para mim os conselhos de meus pais – aqui chamados carinhosamente de personagens-heróis desta caminhada. Sob o incentivo destes, ocorreu a possibilidade de trabalhar em Belém como vendedora e fazer um cursinho comunitário noturno. Em um período de um ano (1998) intensamente corrido, consegui entrar na Universidade Federal do Pará. Inicialmente, ao ingressar em uma universidade pública, parecia que tudo seria um “mar de rosas”, pois o bicho “vestibular” tinha sido domado. Pois não tardaram a aparecer os primeiros entraves. E, novas perguntas surgiam: Como eu iria me manter na universidade, como iria ser minha permanência com qualidade mínima? Passados dois anos na Universidade, novos entraves marcantes surgiriam: a falta intensa de renda, a minha mãe começou um longo período de enfermidade. E, os chamados “bicos” (trabalhos ocasionais de meu pai) diminuíram intensamente. Sob esta situação, não fui forte o bastante para manter-me na universidade. Universidade Federal de São Carlos 39 No ano de 2000, abandonei a universidade e viajei com uns amigos para trabalhar como vendedora em uma loja de informática – em um shopping no Rio de Janeiro. Com esforço e disciplina, consegui juntar recursos. E, juntamente com os meus outros irmãos, organizamos a vida e saúde de nossos pais. Neste período, a casa em que moravam meus pais fora reformada. No inicio de 2004, retornei a Belém para começar a planejar meus estudos .E, mais uma vez, a força e o incentivo de minha família foram fundamentais para mim. Neste ano de 2004, cada um dos seis filhos estava tocando sua vida. Uns casados, com suas famílias, outros solteiros. No entanto, a maioria tinha “largado” os estudos. Neste caso, com duas exceções: o primogênito terminou aos 33 anos a faculdade de História e o terceiro, que viera para São Paulo, concluía a graduação em Engenharia Civil - realizando assim o antigo sonho de meu pai. Em março de 2004, viajei para São Paulo – morei com uns tios com o firme propósito de trabalhar e estudar. Trabalhava o dia todo e estudava em cursinho pago a noite. Assim, consegui entrar na Universidade Federal de São Carlos, fazendo atualmente o curso que sempre quis – Engenharia Agronômica. Atualmente, esta conquista está sendo possível graças aos auxílios financeiros fornecidos pela universidade como: alojamento, alimentação e auxílio financeiro. Assim, tenho conseguido manter-me com dignidade e ainda ajudar meus queridos pais em Belém. 40 Caminhadas de universitários de origem popular A história de minha vida Daiane Lanceni* Tudo teve início com a chegada de meus bisavós paternos e maternos da Itália, dando assim um novo rumo à história dos Lanzenis, que mais tarde se tornaram Lanceni, por um erro, não corrigido, no registro de meu avô. Meus pais, por obra do acaso, se tornaram vizinhos, o que os aproximou. E o que parecia um namoro de criança, pois eles tinham 16 e 18 anos, acabou sendo confirmado perante a Igreja e o Estado, embora sem nenhum motivo que os forçasse. Mesmo sem casa, se baseando somente na cultura antiga e com o empurrão de meus avós que também se casaram cedo e sem planejamento. Com economia, meu pai construiu, sozinho, sua casa, pois ele não deixou que sua mulher trabalhasse. Mesmo com as dificuldades, depois de cinco anos o casal estava esperando o primeiro filho o qual recebeu o nome de Cristiano, desejo de meu pai. Passados sete anos, minha mãe estava grávida novamente, mas, para surpresa de todos, viriam ao mundo duas crianças, o Patrick e eu. Nascemos no dia 30 de setembro de 1985, às 17 horas, em São Carlos. Minha mãe conta que quando pequenos demos muito trabalho, pois como éramos dois, quando um estava dormindo o outro acordava chorando, acordando conseqüentemente o que dormia. Por conta do trabalho que demos, minha mãe chegava a se atrapalhar, uma vez, ela até guardou minha sandália na geladeira. Quando pequenos, também aconteceu um fato triste que fez com que minha mãe, mesmo com muitos afazeres, prestasse mais atenção em nós: ela descobriu que tinha um câncer no nariz, o que a deixou com muito medo de não poder acompanhar nosso crescimento. Mas, com a graça de Deus e com ajuda de ervas medicinais, em pouco tempo o câncer foi combatido. Tive uma infância feliz. Embora não pudesse ter tudo o que queria, eu entendia, pois sempre que pedíamos algo a meus pais e eles não podiam dar, minha mãe, mesmo tendo pouco estudo e pouca informação, sempre nos dizia: “Filhos: não posso comprar o que vocês desejam, porque eu não estudei”. E assim, desde que éramos crianças, ela ia nos incentivando a estudar para entrar na faculdade. Mas quando eu estava na primeira série, não gostava de estudar, principalmente de fazer as terríveis lições de casa, me mostrava sempre arredia e quase sempre chorava para efetuar meu dever. Minha mãe conta que ficava triste, pois não queria que eu fosse uma pessoa sem estudo como ela era e sem uma boa condição financeira. Então ela disse: “Filha, se você não quer estudar, eu vou ensinar a sua profissão...” e me levou ao banheiro e pediu que eu o lavasse o vaso sanitário, então, em prantos, exclamei que queria estudar e a partir daí nunca mais chorei para fazer minhas tarefas escolares. * Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 41 O meu irmão mais velho foi o primeiro a dar esta satisfação para minha mãe. Com sacrifício, ele fez curso pré-vestibular, entrou na Universidade Federal de São Carlos e hoje é formado em Engenharia Química. Cresci brincando com meus irmãos, por isso joguei até bola, brinquei também com meus primos na chácara de minha avó. Brincávamos de “casa na árvore”, de “fazendinha”, sendo que os animais eram feitos de batata, chuchu e laranja. Lá, brincávamos também de pega-pega e esconde-esconde. Com isso, só brincava na rua quando minha mãe estava vendo, pois ela alegava que era perigoso. Adorava quando era dia de festa! Todos os meus tios, tias e primos junto com minha família reuniam-se na chácara da minha avó. As festas eram sempre animadas e com vários pratos, e o principal, vários doces, pois cada tia minha trazia um doce diferente, mas o meu predileto era o brigadeirão. Outra comida que eu adoro é o pinhão; toda vez que é época minha mãe compra, pois ela sabe que vai me agradar. Tive uma infância normal, com a realidade da grande maioria da população, morei em um bairro popular, onde os habitantes eram relativamente unidos. Meu pai teve vários empregos e na maioria destes teve que passar períodos constantes fora de casa; com isso, a nossa educação é de mérito de minha mãe, que com amor e carinho sempre nos ensinou nossos direitos e deveres da melhor forma possível. Como meu irmão mais velho; eu e o Patrick estudamos e fizemos cursinho, que foi pago pelo meu pai e a ajuda do Cristiano, que fez questão de retribuir a meus pais o estudo que lhe foi oferecido. Tive que fazer três desgastantes anos de cursinho, pois havia muita coisa que não era vista na escola pública onde estudei. Algumas vezes, pensei em desistir, mas o apoio e a força de minha mãe, meus irmãos e outras pessoas importantes fizeram com que não desistisse. Obtive o resultado do meu esforço só no ano de 2006, mas tudo valeu a pena, foi com grande satisfação que vi o meu nome na lista de aprovados e, naquele dia, percebi o quão minha família esperava por isto. Entrei na Universidade Federal de São Carlos no campus de Araras no curso de Engenharia Agronômica. O meu irmão Patrick prestou ENEM1 no ano de 2005, e hoje está no segundo ano de faculdade particular com bolsa integral, pelo ProUni2. 1 Exame Nacional do Ensino Médio, instituído por Portaria Ministerial em 1998. A prova do ENEM visa avaliar as competências e as habilidades desenvolvidas pelos examinandos ao longo do ensino fundamental e médio, consideradas imprescindíveis à vida acadêmica, ao mundo do trabalho e ao exercício da cidadania. É realizada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP. A participação no ENEM é voluntária, circunscrita aos egressos do ensino médio, independentemente de quando o concluíram, e aos concluintes da última série do ensino médio, podendo o interessado participar dos exames quantas vezes considerar de sua conveniência. Os interessados em participar dos exames pagam uma taxa de inscrição, cujo valor é fixado anualmente pelo INEP, destinada ao custeio dos serviços pertinentes à elaboração e aplicação das provas, bem como ao processamento dos seus resultados [informações do site http://www.inep.gov.br/basica/enem/legislacao/legislacao.htm, em 02 jan 2007]. 2 Programa Universidade para Todos, do Governo Federal. Institucionalizado por lei em 2005, tem como finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda, em cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao Programa. Em 2007, são oferecidas 108.642 bolsas, divididas pelos estados do país, houve 517.748 inscritos. Segundo informações do site oficial, o ProUni, nos próximos quatro anos, deverá oferecer 400 mil novas bolsas de estudos, e faz parte das metas do Plano Nacional de Educação, que prevê a presença, até 2010, de pelo menos 30% da população na faixa etária de 18 a 24 anos na educação superior, hoje restrita a 10,4% [informações do site http://prouni-inscricao.mec.gov.br/prouni, em 02 jan 2007]. 42 Caminhadas de universitários de origem popular O ingresso na faculdade trouxe várias mudanças na minha vida sendo que a maior delas foi a experiência de morar fora de casa, pois tive que aprender a conviver com pessoas diferentes na faculdade e principalmente dentro do apartamento onde moro, junto com mais duas amigas, a Flavia e a Vanessa. Mas, apesar das diferenças, tive sorte de encontrar amigas como estas e outras como a Larissa e a Thais, no meu curso, que me ajudaram na adaptação . Por fim, só tenho que agradecer pelas oportunidades que tive e as pessoas que me incentivaram, e sei também que não é sempre que alguém de origem popular consegue alcançar um desejo como este, mas uma coisa é certa, quando se tem vontade e alguém para incentivar, o sucesso é inevitável. Universidade Federal de São Carlos 43 A vida dá voltas ! Edgar Heliodoro Vendradelli Dias* Minha vida é como a de milhares de pessoas, é lógico que com alguns detalhes bem particulares, mas é uma vida simples regada de algo que muitos procuram e que eu acredito que encontrei: felicidade. Nasci em São Paulo, no dia 8 de abril de 1982. Desde aquela época, as coisas não eram fáceis. Não é fácil ser primogênito, meus pais não possuíam condições de se manter bem, e eu não fui o filho mais planejado do mundo, nem tudo sai do jeito que a gente quer. Mesmo assim, meus pais se esforçaram demais, procurando fazer com que a vida tivesse sua boa continuidade. Trabalhavam muito e as contas, essas sempre estavam nos sufocando, pois morávamos numa cidade de alto custo de vida, mas era ali que o emprego estava, não havia outro jeito. Meus pais sempre foram muito honrados e apesar da dificuldade, nunca apelaram pra outras formas de se manterem, isso me deixa muito orgulhoso. Quando completei três anos de vida, eles tomaram uma decisão: mudar-se para a cidade de Tatuí, interior de São Paulo. Era a primeira vez que eles iam morar fora da capital paulista. Fomos morar no sítio dos padrinhos de minha mãe, mas essa ligação não significava nada, pois éramos tratados como empregados e não foram poucas as vezes que passamos por humilhações. Mas superamos. Mesmo eu sendo pequeno naquela época, essa é uma fase que não sai de minha cabeça – traumas são assim mesmo. Moramos lá uns dois anos, foi quando meu pai melhorou de serviço e assim fomos morar na zona urbana, não era nem de perto o lugar ideal, mas, enfim éramos uma família e tínhamos um teto só nosso. Quando eu tinha quatro anos, meus pais colocaram a máquina pra funcionar de novo, era minha irmã que nascia! A vida, naquele momento, pelo menos financeiramente, melhorava, meu pai entrava em uma empresa que seria uma parte muito importante em sua vida. Os anos iam passando e eu crescendo, começava a fase de ir à escola, uma das melhores fases de minha vida. Comecei a estudar, era um ótimo aluno: gostava demais de estudar e era considerado o melhor aluno de minha classe, um orgulho para meus pais, que desde essa época já “apostavam suas fichas” em mim. Mais uma vez a máquina do amor estava em funcionamento, nasce meu irmão, a família se completava, estava fechado o quinteto. Passam-se os anos e assim vai embora a infância e a vida já estava bem melhor, meu pai havia se firmado em sua empresa e estava começando a ser bem realizado. Em 1994, ano em que o Brasil se tornava tetra-campeão do mundo, meu pai é transferido de cidade e a família resolve o acompanhar. Fomos morar na Praia Grande, litoral de * Graduando em Matemática pela UFSCar. 44 Caminhadas de universitários de origem popular São Paulo; começava uma nova fase em minha vida, pois eram vários anos na mesma cidade e muitos amigos feitos que ficavam pra trás. Realmente essa fase não foi nada fácil, pois minha adaptação foi complicada demais, a cidade era muito diferente do que eu já havia conhecido e as pessoas também. Não vou negar que essa fase é uma das que eu mais guardo rancor, pois sofri demais, com todo o preconceito que rolava por eu ser do interior, mas sabia que tinha que agüentar: meu pai dependia desse emprego e não seria eu quem iria prejudicálo. Com tanta força de vontade de minha parte, as coisas começaram a melhorar, as amizades começaram a acontecer e tudo foi melhorando... fiz vários amigos, meus irmãos também começaram a se animar com o lugar, tudo melhorava, até meu rendimento escolar, que não estava tão bom, voltou a ficar ótimo, voltei a ser o melhor aluno de minha turma. Essa fase se torna a primeira vez na qual mostro meu poder de lutar nos momentos mais complicados, supero os problemas e consigo ganhar meu espaço, essa sim uma fase boa pra se guardar. Em 1997, meu pai novamente é transferido, voltamos a Tatuí. Ali conhecia muita gente, me sentia em casa, era a grande volta. Mas não foi bem assim. Três anos longe dessa cidade fizeram com que muitos de meus amigos se desligassem de mim, e a volta torna-se complicada, foi estranho, os contatos não eram mais os mesmos e todos em casa percebemos isso, mas quem mais se complicou com isso fui eu, pois sentia muita dificuldade em me adaptar. Entrei num início de depressão, agravada por uma síndrome, a síndrome do Pânico, sentia medo de morrer a todo instante e isso me deixou num estado muito ruim, meus pais tiveram que me ajudar muito e foi graças a essa força que superei essa síndrome, mais uma vez superava um grave problema, começava a me sentir um vencedor, foi muito bom, pois via que as dificuldades existiam, mas me sentia forte pra superar todas elas. Nessa fase, comecei a relaxar um pouco nos estudos, estava no alto da adolescência e não conseguia conter minhas vontades, queria sair e curtir a vida e não consegui conciliar isso tudo com os estudos, foi uma das fases que mais aprontei na escola, era muito arteiro, vivia sendo suspenso e tomando advertências. Lógico que minha mãe não descobria nada, se bem que lendo esse capítulo, com certeza ela vai tomar conhecimento... Chega 1999 e com ele o fim meu Ensino Médio, fase que vou guardar pra sempre na memória, pois foi a mais linda de minha vida, curti todos os momentos e não posso me queixar de nada, pelo menos do lado pessoal. Mas no familiar, as coisas já não iam bem. Me tornei o tipo de adolescente com idéia própria e muitas vezes as mesmas não batiam com as do meu pai, me tornando uma espécie de rebelde em casa, me sentia um pouco deslocado, pois não curtia fazer o que minha família gostava de fazer, incomodando a ambos os lados. Essa divergência ficou bem clara, quando, no final de 1999, veio a noticia, como em outras vezes, fui obrigado a me mudar pra Bebedouro-SP, uma cidade de que não gostava desde a primeira vez que a vi e onde não queria morar de forma alguma, mas minha família não pensou assim e não foi aceita minha vontade, tive que mudar e mais uma vez abandonar todos os meus amigos e ainda por cima, não havia sido aprovado na UNESP de Bauru e adiava um sonho de entrar numa universidade pública. Começa o ano 2000, e eu, mais uma vez, tinha que começar do zero, entrava na fase adulta e aí veio a pressão de cursar uma faculdade. Como a Unesp havia dado errado, tive que entrar numa universidade particular, não quis tentar cursinho. Entrei no curso de matemática, senti que estava no curso certo, mas não na universidade certa, não via bons prognósticos para aquele curso e vi que estaria apenas jogando dinheiro fora, não estava valen- Universidade Federal de São Carlos 45 do a pena. Também começava a trabalhar, o que me complicava ainda mais, pois meus horários não ajudavam. Decisão tomada, tranquei o curso e também causei mais um atrito com minha família, meu pai detestou saber disso e brigou demais comigo, não entendia que estava apenas procurando algo melhor, queria entrar em um curso pré-vestibular e realizar o sonho da universidade pública. Mas ele achava que eu deveria me formar em qualquer lugar, não entendia a diferença. No final deste mesmo ano, ocorre algo que vai mudar e muito nossa vida, meu pai é demitido da empresa, após muitos anos de dedicação, isso o deixa muito mal, mas por outro lado, volta a nos unir. Tentei fazer jus à minha idade e segurei a barra, ajudei meu pai, dei força a ele, isso o fez erguer a cabeça e correr atrás de uma vida diferente. Fica decidido então que minha família irá abrir um comércio; sendo assim, escolhemos o ramo, abrimos uma mercearia, muito modesta, mas que prometia se tornar grande, tínhamos muita vontade. Iniciamos a nossa empreitada, no início tudo é muito complicado, faltava um bom capital de giro, mas tentávamos levar assim mesmo, eu continuava a trabalhar no mesmo local, fazia jornada dupla, era puxado, mas estava com uma idade na qual a gente tem muita vontade, parece que nada cansa, e fui levando, mas as dificuldades nos levaram novamente a brigar, a relação com meu pai não estava boa, e ele não entendia que apenas estava ali pra ajudar a manter a casa, mas o orgulho dele não deixava que ele visse dessa forma, isso dificultou muito, não consegui voltar a estudar e adiava ainda mais meu sonho. Pelo menos nessa fase, mudei um pouco na vida pessoal, comecei a namorar, era a primeira namorada séria mesmo, e foi bem legal, pelo menos até começarem as crises, durou seis meses, mas minha falta de tempo, em virtude do trabalho e o ciúmes da parte dela, fizeram tudo afundar. O tempo foi passando e as coisas melhoravam devagar, nosso comércio estava crescendo e já era estudada uma ampliação, e assim foi, começamos a pensar em transformar aquele espaço em uma panificadora, mas para isso era necessário maquinário e alguém especializado. Quanto às máquinas, fiz um empréstimo e conseguimos comprar, mas ninguém em casa sabia trabalhar com panificação, foi assim que me tornei padeiro e confeiteiro e através de um curso oferecido pela prefeitura de minha cidade, comecei a exercer esse cargo, vários foram os quilos de farinha que perdi na tentativa de acertar, mas não desisti, e assim uma hora a gente alcança, consegui êxito, começava uma nova fase e super inusitada. Por uma obra do destino, meus pais adoeceram nesta mesma época, deixando o trabalho por um tempo e eu ficava numa situação complicada, pois tinha que levar o comércio sozinho. E assim foi, mesmo tendo que pagar uma parcela muito grande do maquinário, consegui controlar as contas, mas fiquei várias noites trabalhando e dormindo no chão, pois não conseguia ir pra casa, não dava tempo. Isso me fez valorizar demais a liberdade, pois a padaria tornava-se uma prisão de porta aberta, ali ficava o dia inteiro, não tinha mais vida social, mas era o sustento de minha família que estava em jogo. Aos poucos, meus pais foram se recuperando e eu voltava a descansar um pouco; mesmo assim, havia muito trabalho, cuidava de toda produção, não tinha nenhum dia de folga, mas me sentia realizado, pois era reconhecido na minha cidade por meu trabalho. No começo de 2003, recebi uma proposta de ir morar nos EUA, ia morar com uma amiga e tentar a vida trabalhando na construção civil por lá, era a oportunidade que poderia mudar a vida de minha família, mas isso nunca foi meu sonho, gostava demais de meu país e queria fazer minha vida aqui, mesmo assim topei, comecei a correr atrás de toda a documentação, e acertei a viagem, tinha apenas mais um mês de Brasil. 46 Caminhadas de universitários de origem popular Como uma obra do destino, conheci Adriana, uma garota da minha cidade, por quem me apaixonei, foi muito novo esse sentimento, algo que nunca havia sentido, isso me motivou a continuar a vida aqui no Brasil e assim desisti de tudo, algo que causaria um imenso transtorno em casa, pois meus pais viam essa chance como sendo a chance de minha vida. Mas eu não via dessa forma, preferia ser reconhecido aqui no meu país do que ser mais um ninguém na multidão e sofrer todo aquele preconceito. Os meses seguintes foram estranhos, pois com minha família eu estava em pé de guerra, mas com minha namorada, eu estava no paraíso, nos dávamos muito bem e o namoro fluía muito bem, ela começou a trabalhar comigo na padaria, pois a antiga funcionária havia saído e como meus irmãos não ajudavam, resolvi colocar lá uma pessoa de minha confiança, mesmo contra a vontade de meu pai. A minha situação não era boa, meu pai fazia de tudo pra atrapalhar meu namoro, ele não gostava de Adriana, sem mesmo conhece-la. Ficou insuportável a situação, até que tomamos uma decisão, íamos nos casar, pra que pudéssemos ter nossa vida em paz, e assim foi, ficamos noivos e começamos a guardar dinheiro e a fazer nossa vida a dois, fui morar sozinho e no final de 2003 já não suportando mais a relação com meu pai na padaria, resolvi comprar a parte dele no comércio e fui tocar minha vida sozinho. Não foi fácil, pois pagava mensalmente a meu pai, ele por sua vez, estava trabalhando em outro lugar, mesmo assim não abria mão de suas parcelas e assim foi, com muita batalha, vencemos, conseguimos pagar as contas e nos firmamos de vez. Estava tudo muito bom, mas sempre surge imprevistos, nessa caminhada, perdi um grande amigo, vítima de um aneurisma cerebral, uma pessoa que admirava demais, foi muito duro, perdia uma pessoa e sentia uma dor que nunca havia sentido. Logo depois, meu pai resolveu voltar à padaria, nós tínhamos um acordo que ele descumpria... era um acordo verbal, ele não entendeu assim e voltou, retirando o comando de minhas mãos e me fazendo voltar ao zero novamente. Para piorar, brigas com a Adriana, fizeram com que terminássemos nosso noivado e assim me manter em Bebedouro ficava sem sentido pra mim. Chegava a hora de mudar de verdade e desta vez para meu benefício, fui morar na Praia Grande-SP com um grande amigo de infância, era Helon, considerado um irmão, ele e seu pai me ajudaram, me deram uma força com moradia e um emprego no escritório de advocacia deles, começava tudo de novo. Desta vez, tudo era diferente, tinha mudado. Sem minha família, eu estava em busca de um velho sonho, queria muito passar na universidade pública, e assim foi. Passei a ser autodidata, trabalhava durante o dia e estudava em casa à noite e assim foram passando os meses e eu tendo dificuldades, pois estava havia quatro anos sem estudar, o que não diminuía meu ânimo, tinha um sonho e fui batalhar para realizar. Estava tudo indo bem, até descobrir que minha mãe estava com problemas em Bebedouro, não tive escolha, era a saúde dela em jogo, abandonei tudo e voltei, e sabia que tinha que voltar a trabalhar, mas isso não ia ocorrer com meu pai, não havia clima, por isso, peguei umas aulas em um colégio, dava aulas de xadrez e isso me ajudava a pagar um curso prévestibular do tipo semi-extensivo. Não foi fácil, pois meus pais estavam em processo de separação e como meu relacionamento com meu pai não estava bom, ele fazia de tudo pra descontar isso na pessoa mais importante de minha vida: minha mãe. Isso acabou me fazendo sofrer muito e não vou negar que pensei novamente em abandonar o sonho de universidade pública, mas minha mãe foi Universidade Federal de São Carlos 47 firme mais uma vez, me ajudou muito, me deu toda a força e foi testemunha de todo o meu sofrimento e batalha: eram horas de estudo e trabalho, e ela sempre me motivava a estudar mais. Graças a ela foi possível alcançar tudo o que alcancei, não tenho palavras pra descrever tamanha força, até mesmo pelas lágrimas já tomarem conta de mim, e só tenho a agradecer a essa mulher batalhadora e incentivadora. Obrigado mesmo mãe, te amo. Após seis meses de estudo, passei no vestibular da UNESP de Bauru e na UFSCar, era um sonho que se realizava, e devia tudo isso à minha mãe, que me ensinou, e continua a me ensinar, a batalhar pelo que quero e tenho certeza que é por isso que em apenas dois anos na universidade eu já tenha conquistado tantas coisas boas. Acho que agora vocês podem entender porque sou um cara tão feliz, como citei no início. O que gostaria de deixar claro nesse capítulo é que não considero minha história triste, mas sim, deixar bem claro que qualquer que seja o sonho, batalhe que você pode conseguir e nunca desista na primeira derrota, você nunca irá se arrepender de batalhar, mas com certeza vai se arrepender de ter desistido. Quero dedicar esse capítulo a todos os meus amigos, mas são todos os muito amigos mesmo. Especialmente à professora Marina, pelos conselhos e cuidados médicos, à minha mãe a quem tanto amo e que tanto me ajudou e em especial pra Dani (Lindinha) com quem estou construindo uma história muito legal, que eu espero que dure muito!!!!!!! 48 Caminhadas de universitários de origem popular Minha história Juliana Aparecida Ribeiro* O dia 5 de novembro de 1985, foi marcado por muita festa, ao menos para José Gonçalves Ribeiro e Genilda Batista Ribeiro; eu nascia em São Carlos, cidade do interior de São Paulo. Pouco tempo depois, eu já estaria enfrentando minha primeira aventura: é que em menos de um ano, meu pai decidiu que o melhor para a família seria voltar para Pernambuco, de onde tinham vindo havia cerca de cinco anos. O governo Sarney se deparou com um Brasil pós-ditadura, que ascendia economicamente, mas sofria com inflações. Foi implantada uma nova moeda, que fez com que o dinheiro nos bancos rendesse com juros consideráveis. Meu pai, então, decidiu ir embora para Pernambuco, pois lá o custo de vida era menor. Por motivos climáticos, eu não me adaptei à nova região e fomos obrigados a voltar para São Carlos, de onde não saí desde então. Ao voltarmos, a economia do Brasil estava em crise, e nós não tínhamos muito dinheiro para recomeçar, e dentro de nossa família fizemos cortes de gastos. Minha mãe até fala que para que a construção da casa do meu avô, lugar que prevalece na minha memória como lugar da minha infância, foi preciso comer muita batata, pois meu pai comprava um grande saco de batata e nós passávamos o mês comendo esse mesmo alimento como mistura. Quanto ao meu avô, seu Manoel Gonçalves, me contava suas travessuras de menino, o orgulho que sentia de seu falecido pai, que fez papel de pai e mãe porque esta os havia abandonado. Tudo bem que, com o passar do tempo, essas histórias foram mudando, e hoje, aos seus 92 anos, ele nos dá muita alegria com seus comentários e às vezes nos deixa preocupados e um pouco tristes com a fragilidade da sua memória. Sempre foi um homem muito trabalhador; lembro que chegava todos os dias no caminhão dos bóias-frias com sua marmitinha e ia ver como minha avó que, desde que eu me recordo, não tinha muita saúde, havia passado o dia. Meu avô teve que se aposentar para ajudar minha mãe a cuidar da minha avó, Dona Djanira, pessoa que eu respeitava, mas com cujas atitudes eu não concordava, por exemplo como fazia minha mãe sofrer, desfazendo das comidas, do serviço da casa; mas minha mãe disse que quando minha avó “tinha saúde” ela era uma pessoa muito boa e que possivelmente tenha ficado daquele jeito por se ver sobre uma cadeira de rodas após seis derrames. Ela se via sem possibilidade de cuidar da casa e trabalhar como sempre gostou. Em novembro de 1995, onze anos depois de seu primeiro derrame, três destes na cadeira de rodas e na cama, faleceu. Lembro-me perfeitamente que na semana de meu aniversário ela já estava na UTI1 . * Graduanda em Pedagogia pela UFSCar. 1 UTI - Unidade de Tratamento Intensivo Universidade Federal de São Carlos 49 Minha infância foi um período marcado por muitas brincadeiras criativas, brigas com outras crianças, principalmente a Cida e o Jesus, pais que, embora não me dessem ovos de chocolate na páscoa, ou fizessem promessas de presentes de Natal por um bom comportamento durante o ano, se esforçaram para viver em um lugar diferente para o bem dos seus filhos e me ensinaram a dar muito valor a tudo que eles conseguiam conquistar por mim e meus irmãos. Eles nos diziam para estudar e superá-los. Meus irmãos – Gilson, José e Gildete – apesar de me acharem a “chatinha” por ser a caçula, sempre cuidaram e ainda cuidam muito de mim. Ingressei na vida escolar aos 5 anos e não parei de estudar desde então, sempre em escolas públicas que, apesar do grande discurso sobre a crise do ensino brasileiro, possuíam excelentes professores. No Ensino Fundamental, estudei na Escola Municipal de Ensino Básico Carmine Botta, inaugurada um ano antes do meu ingresso, e que talvez por este e outros motivos políticos teve grande investimento e me permitiu oito anos de educação de qualidade. Lá, fiz amizades que permanecem até hoje; entre elas, não há como não destacar a Aline Patrícia, que era a CDF da sala, sempre me ajudava na hora de estudar, passava cola pra sala inteira só pra não ver ninguém de recuperação e mesmo assim, quando isso ocorria, dava um jeito de ajudar qualquer um da sala a recuperar a nota. Hoje, é minha “irmãzinha” e me mostra sempre o lado bom de tudo, batalha e estuda muito e, apesar de morarmos no mesmo bairro, o tempo tem sido nosso inimigo e há algum tempo já não nos falamos. Mas ela é a prova de que os amigos verdadeiros são como o sol, mesmo não aparecendo todos os dias, nós nunca esquecemos que eles existem. Fiz o primeiro ano do Ensino Médio na Escola Estadual Profa. Maria Ramos, que não é muito bem vista na cidade, porque as pessoas, sem conhecer a realidade dessa escola, responsabilizam seus alunos por todos os problemas que aquele setor da cidade possa apresentar. No entanto, posso dizer que vi naquela escola jovens que estão cansados de ser “pisados” e decidiram começar a lutar por seus direitos e vontades. Mesmo tendo aprendido muito naquela escola, no segundo ano do Ensino Médio, decidi ingressar no Magistério no CEFAM2 Deputado Miguel Petrilli, onde estudei e conclui o curso em três anos. No último ano de magistério, em 2004, minha vida era bem agitada, estudava pela manhã, fazia estágio à tarde e freqüentava o curso pré-vestibular à noite. Dentro desse tempo, conheci uma pessoa muito especial, um grande amigo que me mostrou que o lado bom de estar vivo é dividir a vida com alguém. Mesmo que hoje ele não esteja tão presente em minha vida e nossos contatos estejam pouco “antenados”, minhas atitudes têm muito do que minha vivência com ele me ensinou e muito do que ele significou pra mim. Ele é o Flávio Roberto Redondo Junior. Acabei percebendo que, se havia “caído” no Magistério por conta de uma bolsa que recebíamos, no valor de um salário mínimo, não foi por acaso que continuei. Vi muitas pessoas desistirem, e poderia ter feito o mesmo, mas os estágios e projetos que realizamos em bairros populares fizeram com que eu visse o verdadeiro valor de ser educador, ou de poder trabalhar em prol de crianças, e me davam a satisfação que a bolsa sozinha não me daria, foi isso que me levou a prestar vestibular para área da educação. 1 Centros Específicos de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério. 50 Caminhadas de universitários de origem popular Além da experiência que adquiri no Magistério, ganhei também três amigos que se tornaram parte da minha vida de um modo muito intenso, gostoso e saudável: Erlon (Ócrinho), Osvaldo (ou Juninho) e Kathelyn (mais conhecida por Ketão). Esses três me fizeram rir em três anos o que eu não ri durante dezessete anos. Nossa amizade é verdadeira, sempre falamos o que pensamos um do outro, criticamos e elogiamos sempre pensando em ajudar, temos nossa intimidade, mas sabemos nos respeitar. Marcamos um encontro com a turma que se formou em 2004 para o dia 1º de maio de 2010, acho que só nós três lembraremos. Infelizmente não é possível falar em um espaço tão curto sobre todas as histórias que passamos juntos. Em 2004, prestei vestibular, mas, por fazer cursinho popular e por ter tido poucas matérias exatas e biológicas no Magistério, que visava uma outra formação, acreditava que não passaria naquele ano, mas que valeria a pena prestar os vestibulares para os quais eu conseguisse isenção, o que ocorreu na UFSCar, por ser aluna do cursinho desta universidade, onde prestei Letras; na Unicamp, onde também prestei Letras e na Unesp, onde prestei Pedagogia. O terceiro dia do vestibular da Unesp foi o mesmo da minha formatura do Magistério. Peguei carona no ônibus de um cursinho de São Carlos e, naquele dia, quase não conseguimos sair de Araraquara: chovia bastante e, por ser o dia da escrita da redação, a maioria das pessoas ficaram até o último momento na sala de prova. Havia engarrafamento por causa da chuva e até o ônibus passar nas escolas para pegar os alunos, saímos de Araraquara-SP com mais de 40 minutos de atraso. Ao chegar em São Carlos, já eram 19:30, e eu precisava estar no teatro onde se realizou a colação também às 19:30, pois às 20 h estava marcado para começar a cerimônia. Cheguei em casa às 20 h, tomei banho e me arrumei chorando, arranquei literalmente meus cabelos de tanto nervoso, minha mãe, ao ver a cena, só conseguia ficar triste com a minha atitude, xinguei alguns meninos que estavam na rua e caçoaram ao me verem entrando no carro de beca. Sem maquiagem e chorando muito, cheguei na formatura atrasada, mas deu tudo certo e percebi que “quando não há remédio, remediado está” realmente, então, não adianta se preocupar, no meu caso, algo que eu fazia muito, me torturar tanto com algo que de certa forma não é minha culpa. Quando saíram os resultados da UFSCar e da UNICAMP, nas quais não passei, já estava prestando provas para obtenção de desconto em cursinhos que eu julgava mais fortes para o próximo ano. No mesmo dia em que ia fechar matrícula em um cursinho, vi meu nome na lista de espera da UNESP – Araraquara. Como não tinha computador, vi a divulgação na Biblioteca Municipal, e me lembro de ter saído dando risada como uma louca, descendo a Avenida São Carlos para dar a notícia pra minha irmã, que então trabalhava numa loja no centro da cidade. Na UNESP, estudei durante o ano de 2005 e, por motivos de gastos com transporte, no início de 2006 eu me transferi para a UFSCar, que sempre foi meu “sonho de consumo”, até eu conhecer a UNESP, onde deixei muitos amigos. Cheguei a me arrepender num primeiro momento da minha transferência. Aqui, eu posso dizer que só me encontrei de verdade quando passei a fazer parte do Programa Conexões de Saberes, e em oportunidades que tive, já disse isso a alguns dos membros desse grupo. Tive nesse programa e sobretudo na atividade Caminhadas, a oportunidade de rever minha história, e a tentativa de tentar aceitar a visão do outro sobre essa Universidade Federal de São Carlos 51 minha história. E percebi que sobretudo meus familiares dão a mim características e força de vontade que eu mesma não percebia possuir. Ao mesmo tempo, eles sabem que essa minha fraqueza de só ver o meu lado fraco me torna algumas vezes uma pessoa pouco otimista que acaba agindo de modo pouco racional. Percebi que coisas que muitas vezes parecem bobas, como brincadeiras e tipos de comida, guardam muito do que nós somos, da forma como nos socializamos e valoramos as coisas. Tenho na minha família, sobretudo em meus pais, a coragem de que preciso para enfrentar problemas, mesmo que sejam complicados, para continuar e tentar mostrar que eles estão errados quando dizem que eu devo estudar para superá-los, pois, se o estudo me der algo tão bom quanto almejam, talvez, no máximo, eu fique parecida com eles. 52 Caminhadas de universitários de origem popular Memorial Lidiane Maria Maciel* Na chuvosa madrugada de 28 de fevereiro de 1985 que anunciava as águas de março que fechariam o verão daquele ano, nasce, no Sítio de São Pedro, na cidade de São João do Ivaí/PR, um bebê um tanto quanto calmo e sereno, o que não significa também que não seria briguento quando adquirisse alguns anos de idade. E que, ano após ano, brigaria não só com o irmão; pois aquela recém formada família já tivera sido abençoada com um outro bebê havia exatamente um ano e meio antes; mas brigaria com várias circunstâncias da vida. E esse bebê que teve uma infância atribulada; pois o pai, como vários outros pais, era adepto a uma “branquinha”; cresceu, e hoje, com 21 anos, pode relembrar e considerar que tem uma verdadeira história de vida. Esta pessoa que aqui escreve sou eu, que atendo pelo nome de Lidiane Maria Maciel. Sim, Maria, como tantas outras, nome o qual para minha querida mãe denota perseverança e fé. Vim ao mundo. E o que isso implica? Penso que talvez meramente mais uma no meio da multidão, mas marcada pela insatisfação do que observava ao redor, a qual fez com que não me conformasse com o lugar que socialmente talvez me fosse determinado. E que Lugar é este? Para as classes menos abastadas de onde venho, é reservado o lugar das escassas oportunidades, principalmente aquelas relacionadas com o mercado de trabalho. Observo que, hoje, a maioria das pessoas se identifica pela função que exerce neste tortuoso mercado. O exercício de uma profissão acaba formando boa parte da identidade do indivíduo e, para as classes menos abastadas, restam as profissões de menor status social que, “volta e meia”, são desrespeitas pelos que se encontram em posições ditas melhores caracterizando, assim, a permanência e não ruptura da situação histórica da desigualdade em nossa sociedade. Geralmente, as profissões são marcadas pelo estigma da educação formal, por isso, vê-se a importância das instituições de ensino na sociedade em que vivemos. Quase sempre passar por estas instituições exige um mínimo de poder aquisitivo, passar pelas melhores exige um poder ainda maior e, ao considerar que vivemos em uma sociedade desigual, somente alguns conseguem ter êxito no que se refere ao ensino formal. Talvez eu, por ser um erro no percurso, possa considerar que tive algum êxito. Sucesso o qual fora cercado por contradições. Minha primeira escola foi o recentemente privatizado Cemitério Jardim da Paz de uma região periférica de São Carlos-SP. Em uma daquelas salas de velório adaptadas, aprendi a gostar do português, da ciência, da educação artística. Mas, aprendi também a odiar a matemática, afinal, naquele lugar existia uma professora que não se contentava meramente com a violência simbólica que exercia sobre nós e às vezes partia para a violência física. Recordo-me de ter levado vários tapas na cabeça por não saber somar os feijões que minha mãe carinhosamente colocava no meu estojo; aquela “amável” professora só sabia nos subtrair ou, como nós, crianças, dizíamos, “diminuir”. * Graduanda em Ciências Sociais pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 53 Quando dizem que a escola é uma instituição falida, insisto em não concordar, pois, mesmo com todas as desilusões que tive no ensino formal, ainda acredito na sua importância. Minha família, logo que nasci, mudou-se para a “Terra das oportunidades”, ou para a querida “Paulicéia desvairada” de Mário de Andrade, ou simplesmente “São Paulo - terra da garoa” que, dadas as mudanças climáticas contemporâneas, talvez não fosse mais chamada assim. A vida no campo era muito difícil. No tocante ao ensino, minha mãe sempre diz que não queria jamais que os filhos dela andassem 8 km para chegar à escola como ela um dia fez; para minha família, então, São Paulo, no ano de 1986, era realmente a terra das oportunidades. O Sítio São Pedro, no Paraná, ficou reservado somente para as férias. E que férias eram aquelas! O doce de banana de minha querida avó paterna! As magnólias da varanda da casa, o orvalho da manhã, e, sobretudo, o barulho do rio, combinado com a máquina de costurar da minha avó materna, formavam uma verdadeira sinfonia matinal. Realmente, em alguns aspectos, aquilo era o paraíso no meu olhar de criança. Logo no primeiro semestre em São Paulo, meu pai conseguiu um emprego em uma transnacional como auxiliar de produção. Sim! Isso era possível em 1986, coisa que passados vinte anos é inconcebível, já que meu pai tinha apenas a 4ª série do Ensino Fundamental e fora boa parte de sua vida trabalhador rural e não recebeu nenhuma “ajudinha”. Então, logo já estávamos alocados em uma casa alugada e a vida ia passando dia após dia, mês após mês, e ano após ano e assim as crianças foram crescendo e a família não quis crescer mais, seríamos uma verdadeira família nuclear.1. Mas, como dito no parágrafo anterior, a casa era alugada e não era muito engraçada; ao contrário da cantiga de infância, esta daí tinha teto. E, sendo a casa alugada, esse teto não era nosso, o que impulsionou meu pai a fazer um acordo na firma na qual trabalhava e vir para São Carlos. Afinal, a notícia que circulava por lá era que aqui estavam doando terrenos ou, por conta do loteamento ser novo, o terreno era bem barato e caberia no bolso até daquele pai de família que não queria passar a vida inteira pagando aluguel. E foi assim que viemos parar aqui, na “Cidade do Clima”. Compramos o terreno e construímos a casa. Foram anos difíceis, mas, mesmo com todos os problemas, conseguimos! Minha mãe, dona de uma grande visão de mundo, conseguido se realizar o sonho da casa própria, se empenhou incansavelmente na educação dos filhos. Fez de todo custo para que pegássemos gosto pelas “letras”. Foi ela, por exemplo, que ensinou a mim e a meu irmão a escrever. Nunca tivemos muitos livros em casa, pois é muito caro tê-los nesse país. Mas sempre dávamos um “jeitinho”, talvez seja para isso que existem bibliotecas... No entanto, jovens na faixa dos 16-20 anos procuram emprego. E foi assim comigo também, mas não adiantou o curso de informática que meus pais pagaram com tanto sacrifício para mim, afinal, o mercado exige a tal da experiência. Mas mais uma vez eu briguei, e dessa vez foi contra o comodismo e a desilusão, que fazem muitas pessoas meramente entregarem currículos e assistirem à novela da tarde, ou simplesmente desistirem de tudo. Percebi que me inscrever no processo seletivo do cursinho UFSCar seria algo interessante. Fiz a prova e o questionário socioeconômico e fui aprovada. Continuei mandando currículos e estudando. 1 Família nuclear: quando no domicílio reside somente um casal ligado por afinidades o qual detém um casal de filhos solteiros. 54 Caminhadas de universitários de origem popular Fiz dois anos de cursinho, e no meio do segundo ano, consegui o tão sonhado emprego, mas comecei a perceber que não dava para conciliar direito as duas coisas, aí tive que fazer uma difícil escolha, continuar o cursinho ou trabalhar? Eis a questão. Escolhi o cursinho e as responsabilidades aumentaram, afinal, eu tinha deixado meu tão sonhado primeiro emprego para tentar entrar no curso de Ciências Sociais na UFSCar, e assim foi. No início do ano de 2005, tive bons resultados: passei no vestibular! Mas não era na universidade na qual eu fazia planos de estudar. No entanto, ainda havia uma luz no fim do túnel e essa luz era a lista de espera do vestibular da UFSCar. Mas não quis esperar a tal lista de espera e como minha mãe me ensinou, não troquei o certo pelo duvidoso e acabei indo para a Universidade Estadual de Londrina. Foi um mês difícil naquela desconhecida cidade . Um belo dia, 20 de março, descobri via internet que a lista rodou, rodou, e parou no meu nome. Aquele foi um dos dias mais felizes da minha vida, mas como nem tudo é perfeito, o destino quis que eu sofresse um pouquinho. Pois ao lado do meu nome estava o aviso: Matrícula dia 20/03 até ás 17:00. Detalhe, eu estava a 500 km de distância da UFSCar e uma nuvem pairou sobre o meu dia ensolarado. Contudo, graças à tecnologia de comunicações e a amigos e familiares, reverti a situação e consegui fazer a tão sonhada matrícula. E voltei para casa. É engraçado mas, na minha vida, quando sou posta em situações difíceis, ao mesmo tempo em que me desespero por não acreditar que aquilo esteja acontecendo, paro e me pergunto: – O que ainda posso fazer para reverter tal situação? Penso que seríamos mais felizes se conseguíssemos, às vezes, acreditar que o impossível é possível, quando se trata desse mundo maluco “de meu Deus”. Hoje, sinto-me muito realizada por estar em um curso que me faz feliz, mas ainda preocupada quanto ao meu futuro, afinal, uma das coisas que aprendi ao longo desses anos foi que vivemos incansavelmente atrás de algo; acho que nunca desistimos de correr atrás do pote de ouro que dizem que existe no final do arco-íris. Passar no vestibular não me isentou de problemas, como às vezes achava; criaram-se novos que estão aí esperando que eu, com minha audácia, resolva. Acabo com um fragmento muito significativo para mim. Ele às vezes toma-me e fazme pensar o significado da vida e o que move o indivíduo a realizar ações nesse mundo hostil. Acredito que tudo começa com uma idéia fixa como a que provocou a morte da figura singular de Brás Cubas em Machado de Assis. Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.2 E é assim, ou pelo menos até agora, esta sendo. 2 ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas (1992, p. 37). Editora: Edições de Ouro. Rio de Janeiro. Universidade Federal de São Carlos 55 Caminhadas Lilian Cruz* Nasci na cidade de São Salvador-BA, no dia 18 de setembro de 1982. Meus pais chamamse Rute de Jesus Cruz e Reginaldo Tavares dos Santos. Tenho 6 irmãos, dois são do casamento do meu pai com minha mãe e os outros quatro são dos casamentos posteriores do meu pai. Vivi em Salvador durante 20 anos de minha vida. Fui criada em dois bairros da periferia de Salvador, Uruguai (que fica na cidade Baixa) e São Caetano (que fica na cidade Alta). Aos 6 anos de minha existência, meus pais se separaram. E eu fui morar com meu pai e minha avó, que foi quem me criou, no bairro Uruguai. Meu pai se casou de novo e minha mãe terminou o segundo grau e começou a trabalhar em hospitais como auxiliar de limpeza. Nesse período, dos sete aos doze anos eu fiquei doente, e por conta da doença e por ter tomado muitos remédios sendo ainda muito criança, tive mancha melânica em todo o corpo. Os médicos dizem que não tem cura porque afetou a minha derme. Foi um período muito triste e difícil, porque, além da doença, fui separada da minha mãe, e também do meu pai, já que ele casou de novo e foi viver a vida dele com outra família. Mas apesar de todas as dificuldades emocionais e físicas, eu pude estudar, porque fazia parte do sonho da minha mãe e do meu pai que seus filhos se formassem e tivessem uma vida melhor do que a que eles tiveram. Aos doze anos, eu voltei a morar com a minha mãe no bairro São Caetano, na casa dos meus avós maternos. Lá morávamos os meus tios, meus primos, meus irmãos e minha mãe. Chegamos à superlotação de 17 pessoas numa única casa. Nesse período, eu fiz o ginásio e o segundo grau. O ginásio, eu fiz num colégio particular chamado Império do Saber, minha mãe trabalhava num hospital que garantia bolsa de estudos integral para todos os filhos. Finalizado o meu ginásio, eu ingressei num colégio público chamado Anísio Teixeira, que fica no Barbalho, distante de casa. Foi a primeira vez que tive que pegar condução para ir à escola. Bom, eu odiei o colégio, entrei e saí sem aprender nada. Simultâneo ao meu primeiro ano de segundo grau, eu fiz um curso técnico de Panificação Industrial no SENAI, e um curso preparatório para prestar os exames do CEFET-Ba, escola pública federal, na qual ingressei em 1999. Por conta disso, tive que repetir o primeiro ano do segundo grau. No mesmo ano, eu comecei a trabalhar numa delicatèssen como aprendiz de padeiro, via SENAI. Em 2000, minha mãe me fez largar o trabalho, porque estava atrapalhando os meus estudos no CEFET-BA, que era muito puxado. Foi um dilema, meu pai e minha vó paterna queriam que eu continuasse no trabalho para que eu pudesse * Graduanda em Química pela UFSCar. 56 Caminhadas de universitários de origem popular ajudar nas despesas de casa (já que ele auxiliava financeiramente a mim e às famílias dos casamentos posteriores) e minha mãe queria que estudasse para ingressar numa universidade depois. O veredicto final de minha mãe foi que eu sairia do trabalho e que se meu pai e minha vó paterna necessitavam de ajuda em casa que me tomassem de volta, porque com ela eu iria estudar e entrar numa universidade. Com muitas dificuldades financeiras, eu terminei o segundo grau sem repetir nenhum ano no CEFET-Ba. Mas não passei no vestibular no mesmo ano de conclusão do meu Ensino Médio. No ano de 2002, eu propus à minha mãe que permitisse que eu ficasse mais um ano sem trabalhar para que eu pudesse me preparar para o vestibular da UNICAMP, que garantiria que eu tivesse um excelente curso superior, arcaria com minhas despesas através de bolsa trabalho e me isentaria dos transtornos que a UFBa me causaria por possuir cursos integrais e campi espalhados por toda a cidade, não me dando tempo para trabalhar. Fiquei mais um ano estudando. Prestei provas para um curso pré vestibular comunitário, passei, mas só estudei nele dois meses, porque o cursinho havia mudado de localização e por conta disso eu teria que pagar 4 conduções: duas pra ir e duas para voltar, e meus pais não tinham como arcar com estas despesas. Em frente disso, eu praticamente me internei na Biblioteca Central de Salvador, estudava todos os dias, 16h por dia, para garantir que eu não reprovaria no vestibular da UNICAMP. No final de 2002, prestei vestibular para UFBa, UNEB e UNICAMP, sendo aprovada em todas. Em 2003, me mudei para Campinas, “com a cara, a coragem” e um desejo enorme de alcançar todos os meus objetivos. Ingressei no Curso de Matemática Aplicada, mas para o meu descontentamento, eu não me identifiquei com o curso, com o Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica - IMECC, com os professores, passei a ter ojeriza à Matemática, uma grande pena, porque sempre foi o orgulho do meu pai o meu desempenho em Matemática. Diante disso, eu teria um grande desafio pela frente: me adaptar a viver longe de casa, a não voltar nas férias para casa, a sentir dolorosas saudades, a descobrir em qual curso eu gostaria de me formar e a me habituar a viver com estranhos. Para minha sorte, a UNICAMP tinha uma estrutura que permitia que os estudantes pudessem fazer disciplinas em outros cursos. Foi o que eu fiz, peguei disciplina em todas as áreas com as quais eu me identificava, até que eu me descobri na Química, pois ela reunia o prazer e a minha estabilidade financeira, já que possui um mercado de trabalho amplo, ao contrário de outras áreas de meu interesse, como Ciências Sociais e Artes Cênicas. Nesse meio tempo, eu trabalhei em dois projetos sociais na UNICAMP, um chamava-se Projeto Beija-Flor, tendo por objetivo discussões sócio-ambientais e como público-alvo adolescentes de comunidades populares. Neste projeto, eu aprendi muito sobre a sociedade, o ambiente, adolescentes e a interação sociedade-ambiente. O outro projeto chamava-se Projeto Educacional Cio da Terra, tendo por objetivo a formação educacional e cidadã de assentados rurais e como público-alvo assentados do Assentamento em Sumaré (cidade da região de Campinas). Neste projeto, eu dava aulas de Química e aprendi o quanto é difícil e valoroso o trabalho em grupo, ainda mais quando o projeto propõe a auto-gestão e uma nova forma de educação, valorizando o saber rural e o saber formal, colocando-os em pé de igualdade. Concomitante a todas as atividades de que fazia parte, eu comecei a estudar para prestar vestibular, tentei remanejamento interno, mas não fui feliz porque eu tinha reprova- Universidade Federal de São Carlos 57 ções. Prestei UNICAMP no ano de 2005 e, em 2006, UNESP, USP, UNICAMP e UFSCar, sendo aprovada apenas em 2006 na UFSCar, no curso de Química-Bacharelado. Felizmente, está tudo dando certo, embora eu esteja muito atarefada e sem muito tempo para descansar. Estou curtindo muito o meu novo curso, os professores, a casa onde estou morando, minhas atividades, enfim, estou muito feliz. 58 Caminhadas de universitários de origem popular A história de uma vida Mariana Gonçalves Luccas* No dia 18 de maio de 1987, na cidade paulista Vargem Grande do Sul, eu nasci. Do lado dessa cidade fica localizada a cidade de São João da Boa Vista, cidade natal de meus pais. As duas cidades vivem basicamente da agricultura, sendo São João da Boa Vista a mais desenvolvida entre as duas. Vargem Grande do Sul é uma grande produtora de batata assim como sua região. Meus pais, Sebastiana e Rubens, são primos por parte paterna e se mudaram para Vargem Grande do Sul quando se casaram. Tiveram dois filhos: eu e meu irmão, que é mais velho que eu e se chama Rubens, como o meu pai. Em Vargem Grande do Sul, meu pai trabalhou em vários lugares e chegou a ser sócio de uma pequena sorveteria que precisou ser fechada. Com essa instabilidade e sem opção de serviços na cidade, meus pais resolveram se mudar para São Carlos (também no estado de São Paulo), onde a irmã da minha mãe morava. Quando meus pais moravam em Vargem Grande do Sul, e mesmo depois que mudaram para aqui, eles passaram por necessidades. Minha mãe várias vezes já me contou sobre a época em que ela amamentava meu irmão e comia apenas arroz com molho de tomate. E de quando ainda os meus pais não tinham filhos e ela repartia um ovo com a Ula, uma cachorra que os dois tinham. Depois de alguns anos que meu irmão nasceu, minha mãe teve que dar a Ula. Um dos motivos é que ela não gostava do meu irmão; minha mãe e meu pai ficaram muito tristes por terem que se afastar dela. Eles mudaram de cidade para meu pai tentar arrumar um emprego. Essa minha tia que morava em São Carlos nos alugou uma pequena casa e meu pai conseguiu um emprego na Marmoraria da minha tia e do marido dela. Trabalhou lá até conseguir um emprego em uma fábrica de compressores onde trabalha até hoje. Meu pai também sempre fez “bicos” consertando geladeiras em uma pequena oficina que meu tio também nos alugou, pois este é um trabalho que realizava desde pequeno. Depois de alguns anos que nos mudamos para São Carlos, minha mãe começou a fazer bolos e salgados por encomenda. Ela aprendeu a fazê-los quando, aos nove anos de idade, foi trabalhar com uma boleira em São João da Boa Vista. Depois, trabalhou em várias casas de família. Ela sempre menciona o nome das pessoas para quem ela trabalhou e como essas gostavam dela. E não é para menos, tenho uma mãe muito gentil, inteligente, bonita e com tantas outras qualidades que eu teria que fazer um livro só para ela. * Graduanda em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 59 Essa casa que minha tia nos alugou ficava no mesmo terreno que a dela. Então eu, meu irmão e meus primos Andréa, Cristina e Luciano fomos criados juntos. Também morava ali minha avó materna, muito especial para mim. Hoje minha Avó está muito doente, ela tem Mal de Parkinson e para tudo ela necessita ajuda. E isso a incomoda bastante, pois trabalhou muito desde criança na colheita com seus pais. É uma pessoa que não merecia sofrer o que ela tem sofrido e espero que Deus a abençoe, de onde Ele estiver. Na minha infância, brinquei muito com meu irmão e com meu primo. Brincávamos de Gato-mia, jogávamos futebol, video-game e ficávamos horas no balanço brincando ou conversando. Era um bom tempo aquele, quando não tínhamos que nos preocupar com nada. Lembro-me bem dos meus aniversários em que eu pedia para minha mãe fazer uma torta doce chamada torta paulista. Minha tia Georgina sempre falava que a torta paulista que ela fazia era melhor que a da minha mãe. Porém eu sempre gostei da torta da minha mãe, porque ela faz com coco, e a tia Georgina, com amendoim. Meu primo faz aniversário um dia antes do meu. Então sempre era feito um bolo e acho que é por isso que eu pedia a torta paulista e não bolo. Morar perto da família da minha tia foi fundamental para decidir que um dia gostaria de entrar em uma universidade. Isso porque a família do meu tio era uma família que sempre motivou e valorizou a educação. Ao longo do tempo, fui vendo minhas primas e logo depois meu primo entrando em uma universidade pública, trazendo mais vontade e determinação para eu também ingressar no ensino superior. A única diferença é que eu não tinha recursos para estudar em uma escola particular e estar mais bem preparada para o vestibular como eles tiveram. Acabei estudando sempre em escolas públicas e nunca fui preparada para o vestibular nelas, já que, como sabemos, o ensino fundamental e médio públicos no Brasil é muito defasado. Minha trajetória escolar começa aos quatro anos de idade, quando entrei em um “parquinho” de uma escola pública de São Carlos, que ficava perto da minha casa, a EMEI1 Julien Fauvel. Minha mãe levava meu irmão e eu todos os dias a pé para a escola. Aos sete anos, entrei na escola do SESI2, onde consegui estudar graças ao emprego do meu pai na fábrica onde trabalha. Cursei aí o ensino fundamental inteiro com esforço sem repetir nenhuma série. Considero que tive um primeiro grau tranqüilo já que não precisei trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Meus pais conseguiram isso com muito empenho, meu pai fazendo várias horas-extras e minha mãe fazendo bolos e salgados ajudando na renda familiar. No final de 2001, quando eu estava na oitava série, meu pai conseguiu financiar, com seu FGTS e com economias do meu irmão e da minha mãe, uma casa própria. Felizmente, achamos uma casa barata cujos donos aceitavam financiamento. Nesse mesmo ano, nos mudamos e, ao longo do tempo, estamos fazendo pequenas reformas na casa. Fiz todos os anos do ensino médio em uma instituição pública, consegui vaga em uma escola pública tradicional localizada no centro de São Carlos, a escola EE Dr. Álvaro Guião. Durante os três anos do colegial, não tive grandes dificuldades, porém não tive professores de algumas disciplinas em alguns períodos do ano letivo, por causa da desorganização do sistema educacional, como acontece em vários lugares do Brasil, não sendo diferente no interior do estado de São Paulo, embora este seja considerado um estado tão desenvolvido. No meu 1 2 EMEI - Escola Municipal de Educação Infantil SESI - Serviço Social da Indústria 60 Caminhadas de universitários de origem popular segundo ano, tive uma alegria grande com meu irmão quando ele passou em um concurso do Departamento de Água e Esgoto de São Carlos, onde trabalhou por um tempo. Logo depois, ele foi aprovado em outro concurso da prefeitura municipal de São Carlos, onde trabalha até hoje. Minha família e eu ficamos super contentes e ele também. No meu colegial, de alguns professores recebíamos apoio para estudarmos para o vestibular. Outros não mencionavam e pareciam até ter medo de falar sobre o assunto. Acho isso muito triste. Acredito que várias pessoas são desmotivadas por esses professores. Quando estava no terceiro ano, alguns professores ofereceram monitorias fora do período das aulas para realizarmos exercícios de vestibular e tirarmos dúvidas. Eu participava de todas as atividades desse caráter, para aproveitar o máximo possível para prestar o vestibular no fim do ano. Nesse último ano, também fiz o curso pré-vestibular comunitário no Revolução, que me ajudou bastante. Nesse cursinho, tive ótimos professores, todos estudantes da USP e da UFSCar. No final do ano, pensei várias vezes para escolher o meu curso de graduação. Pesquisei sobre todos os oferecidos nas duas universidades públicas de São Carlos e escolhi Biblioteconomia e Ciência da Informação na UFSCar. Apesar de conseguir a isenção para o vestibular, infelizmente, nesse ano não consegui passar. No ano seguinte, fiz novamente um cursinho pré-vestibular, consegui uma bolsa em um curso pago de São Carlos e meu pai e meu irmão pagaram o resto da mensalidade. Nesse ano, não consegui isenção do vestibular da UFSCar, meus pais não tinham condições de pagar a taxa de inscrição e quase não prestei vestibular. Consegui fazer minha inscrição graças ao meu irmão que a pagou com uma economia que ele tinha. E então resolvi novamente prestar Biblioteconomia e Ciência da Informação, conseguindo passar no vestibular. Meu irmão prestou vestibular três vezes, porém não conseguiu realizar o sonho de entrar em uma universidade. Acho que depois que entrei, ele se motivou mais ainda. Agora ele não tem só o modelo dos meus primos mas o meu também, vendo assim que mesmo estudando em escolas públicas como ele, consegui o acesso à universidade pública, mostrando que tudo é possível, só temos que nos esforçar. Tenho certeza de que ele irá passar e torço para que isso ocorra. Estar estudando na UFSCar me abriu novos olhares para o nosso cotidiano e, participando do Programa Conexões de Saberes, esse olhar tem modificado a cada dia que passa. Através do Conexões, vejo que outros tiveram a mesma realidade e enfrentaram as mesmas dificuldades que eu. O Projeto de Extensão3 do qual participamos também me faz ver que muitos outros têm o mesmo sonho e que não devem desistir do sonho de ingressar em uma universidade pública jamais, pois isso é possível. 1 Na Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos, a atividade vinculada à comunidade do Programa Conexões de Saberes se dá através da participação dos bolsistas no Curso Pré-Vestibular da UFSCar/Núcleo de Extensão UFSCar-Escola, em bairro periférico e de baixo poder econômico da cidade, região conhecida como Cidade Aracy. Universidade Federal de São Carlos 61 Minha trajetória de vida Michel Luiz de Moura* Meu nome é Michel Luiz de Moura, sou filho de Isolda Alves da Silva e de Marcos de Moura, tenho dois irmãos: Rodnei Moura, de 17 anos, e Marcos F. de Moura, de 15 anos. Nasci em São Carlos, interior de São Paulo, no dia 3 de março de 1985, filho de pais jovens; quando nasci, minha mãe tinha apenas 16 anos e meu pai, 20 anos, com isso, muitos problemas foram surgindo, como falta de casa própria e falta de estrutura familiar. Vivi parte da minha primeira infância com meus pais na cidade e parte na zona rural de São Carlos, onde meus pais cuidavam de granjas (criação de aves), cursei a pré-escola no subdistrito de Água Vermelha. No final de 1990, minha família se mudou para cidade, onde passamos a morar na casa da minha querida avó paterna dona Joana (Vó Branca). No ano seguinte, comecei a estudar na primeira série do ensino fundamental; neste mesmo período, a convivência entre meus pais passou a ficar cada vez mais difícil; aliás, desde muito pequeno recordo que nunca foi pacífica. Neste mesmo ano, minha mãe se separou do meu pai e fui morar na casa da minha avó materna, dona Maria (Vó Preta), juntamente com minha mãe e meus irmãos. Nos anos seguintes, estudei de manhã e ajudava minha avó a olhar meus irmãos menores que já iniciavam a pré-escola, nos finais de semana ficávamos com o meu pai. Com treze anos, arrumei meu primeiro emprego como empacotador num supermercado próximo de casa; minha primeira experiência profissional foi frustrante, ainda me lembro de que estudava até as 12h e às 13h iniciava o expediente, que ultrapassava as 21h de segunda a segunda. Com um ordenado muito baixo, minha mãe e eu resolvemos que não compensava o esforço e a falta de tempo para os estudos e depois de quatro meses abandonei o emprego. Logo após, iniciei o que aqui em São Carlos é chamado de “patrulheiro”, um curso de capacitação profissional que visa formar adolescentes para o primeiro emprego, mas nunca trabalhei como patrulheiro, pois, concluindo o ensino fundamental, prestei o vestibulinho do SENAI1 para mecânica de usinagem. Já no primeiro ano do ensino médio, cursava o técnico de manhã e ensino médio no noturno, neste mesmo ano minha avó materna faleceu devido a um câncer. Em 2001, mudamos para nossa casa, uma casa financiada pela Caixa Econômica Federal. Neste mesmo ano, como me destaquei nas atividades no SENAI, fui convidado a estagiar numa importante empresa da cidade. Com isso preenchi o dia todo, comecei a sair de manhã e voltar por volta das 23:20; era uma rotina quase desumana, que durou dois anos. * Graduando em Ciência da Computação pela UFSCar. 1 Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. 62 Caminhadas de universitários de origem popular Ao concluir o SENAI, em 2002, fui efetivado na empresa onde estagiei e já participava efetivamente na vida econômica da família. Sempre pensei em prestar vestibular e fazer um curso superior, talvez por morar em uma cidade que possui dois campi universitários, e no final do ensino médio prestei meu primeiro vestibular na Unesp e na UFSCar. Foi uma tragédia; já convencido de que com meu preparo eu não chegaria a lugar nenhum, comecei a procurar um cursinho. Como não podia pagar muito, ou melhor, quase nada, procurei alternativas. Foi quando encontrei o cursinho da UFSCar e também o cursinho Comunitário Casa Aberta, onde acabei ficando devido à facilidade de acesso. Em 2003, continuei com a mesma rotina, trabalhando o dia todo e fazendo cursinho; as dificuldades eram imensas e o cansaço também. Mas, infelizmente no fim do ano, veio o temido vestibular, e mais uma vez, nada, mas desta vez “bateu na trave”. Resolvi cursar mais um ano, mas já estava muito desanimado, faltava às aulas, dormia nelas muitas vezes e como conseqüência não passei novamente. Na verdade, fui aprovado no curso de Estatística da Unesp em Presidente Prudente, mas, ao ir matricular-me, percebi que, pela distância da cidade, eu teria muitos gastos e, afinal, esse não era o curso que eu realmente queria fazer. Ainda em 2004 foi inaugurado o ProUni2; sem muito entusiasmo me inscrevi, fui bem nas provas do ENEM3, fui selecionado na minha primeira opção, Ciência da Computação, que era um curso reconhecido pelo MEC. Em 2005, iniciei minha graduação numa instituição privada, mas no fundo não me sentia bem em ter me esforçado tanto, de ter feito cursinho, e estar agora numa instituição privada enquanto tinha sonhado com uma pública. Neste ano, me arrependi de não ter abandonado o emprego e ter me dedicado exclusivamente ao cursinho como alguns amigos fizeram e obtiveram sucesso, mas no fundo eu sabia que minha família também precisava que eu trabalhasse. Mas, enfim durante este ano, dei tudo de mim, tirava as melhores notas, estudava muito, fui criticado muitas vezes no trabalho pelos atrasos ocasionais, virava as noites estudando. E, no final do ano, resolvi tentar mais uma vez. Li ocasionalmente no site da UFSCar que o processo de transferência estava aberto, pesquisei e vi que como meu curso era similar e reconhecido pelo MEC, eu poderia concorrer. Mesmo que em desvantagem, por ser oriundo de uma instituição privada, resolvi arriscar, mas tudo era apenas uma “brincadeira”, uma cartada que eu dei, pensando: “Não tenho nada a perder, só vou avaliar como estou em relação aos outros candidatos”. Para minha surpresa, fui selecionado. Sinceramente, não sabia se isto era bom ou ruim, neste momento fui tomado pelo medo e pela insegurança, primeiro, como eu iria abandonar meu emprego e me dedicar exclusivamente aos estudos? E em segundo lugar, eu seria capaz de dar continuidade ao curso? Comecei a me questionar e me inferiorizar por ter ingressado por transferência. Nesta decisão, minha mãe foi fundamental, me apoiou e me incentivou a ir à busca do meu sonho, dizendo que não faria sentido eu desperdiçar esta oportunidade e que mesmo enfrentando algumas dificuldades a mais, nossa família estaria unida e se ajudando finan- 2 3 ProUni - Programa Universidade para todos ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio Universidade Federal de São Carlos 63 ceiramente. Com isso, fiz minha matrícula e agora minha responsabilidade tinha aumentado; minha mãe confiou em mim e eu não poderia decepcioná-la. Em 2006, iniciei minha graduação em Ciência da Computação na UFSCar, e tomei um choque; tenho muitas dificuldades nas matérias, dificuldades de base em português, matemática etc. Muitas vezes pensei em desistir, pensei que esta realidade não era para mim, pensei muitas vezes se não deveria ter ficado onde eu estava mesmo, trabalhando e estudando. Paralelamente, entrei no Programa Conexões de Saberes. Quando fiz inscrição, imaginei que fosse apenas um projeto qualquer para o qual eu deveria dispor algumas horas de dedicação, mas não; além da segurança financeira, o Programa e suas atividades, especialmente o Caminhadas, vêm me ensinando a enxergar minha trajetória de vida de outra forma, me ensinou a valorizar cada passo que eu dei até agora mesmo que muitas vezes tivesse achado que este passo tinha sido em vão ou que não merecia nenhum mérito por isso. Juntamente com as oficinas, com a professora Marina, tenho resgatado minha história, minhas lutas, minhas vitórias e também reconhecido minhas derrotas e, com isso, estou agregando valores e conhecimentos que vão além da graduação e que não servirão apenas para escrever um livro, mas sim para resgatar uma história, para alimentar o ego, aumentar a autoconfiança, e com isso estarão me ajudando não apenas a resgatar minha história mas sim, ajudando a construí-la. 64 Caminhadas de universitários de origem popular Memorial Milton Dias de Freitas Jr* Olá! Muito prazer, meu nome é Milton Dias de Freitas Junior, mais conhecido como Djaú – apelido que remete à minha cidade de origem: Jaú, localizada no interior de São Paulo. Sou aluno do curso de Engenharia de Computação na Universidade Federal de São Carlos, tenho vinte anos e algumas histórias para contar. O meu cotidiano atual se resume à Universidade, pois nela: moro, estudo e trabalho. O Programa Conexões de Saberes, além de ser um instrumento de permanência qualificada na Universidade, é um meio que proporciona uma janela de troca de conhecimentos existenciais e culturais e ainda uma expansão no círculo de amizades. A Universidade oferece outros serviços mínimos para minha manutenção acadêmica: alojamento estudantil e alimentação, mas, para completar a renda, trabalho de garçom nos finais de semana. A hegemonia da classe média e média alta dentro da Universidade pública é fato. Contudo, a existência de pessoas como eu favorece uma paridade na educação brasileira. Apesar dessa heterogeneidade desproporcional em relação à situação sócio-econômica dos estudantes, particularmente tenho uma relação social muito boa com todos dentro desse ambiente. Agora, analisando o período que antecedeu o meu ingresso no ensino superior, não poderia deixar de relatar sobre uma pessoa que foi essencial na motivação para minha continuidade nos estudos: Alberto Pereira – alguém muito especial que me incentivou incessantemente a leitura e a curiosidade pela vida. Tive também o apoio de um curso pré-vestibular comunitário, organizado pelo projeto OPTE1, da ONG Práxis, em Jaú, que foi necessário para reparar anos de ensino médio e fundamental precários na escola pública. Na primeira vez que prestei vestibular tinha acabado de sair do colegial e ao obter os resultados fiquei arrasado. Só então percebi o quão fraca havia sido a minha formação até então. Com o apoio familiar, persisti e comecei a ultrapassar barreiras estudando por conta própria e no cursinho. * Graduando em Engenharia da Computação pela UFSCar. Oportunidade para Todos Estudarem. O projeto OPTE, implantado em parceria com o Instituto Camargo Correia, consiste em oferecer aos alunos oriundos da rede pública de ensino oportunidade para freqüentarem cursinho pré-vestibular gratuito a fim de que possam aprimorar seus estudos visando o ingresso em curso universitário. Oferece anualmente 60 vagas aos candidatos que lograremêxito em prova de seleção promovida pela própria ONG, e que possuam renda per capita de até dois salários mínimos. Os organizadores afirmam esperar contribuir para a diminuição das desigualdades sociais que dificultam o ingresso dos alunos menos favorecidos nas universidades. [informações do site http://www.praxis.org.br/opte.html, em 06 jan 2007] 1 Universidade Federal de São Carlos 65 No ano seguinte (2004), consegui a tão sonhada aprovação. Havia prestado vestibular para UNICAMP e FATEC2 e optei pela UNICAMP onde fiquei por um ano. Porém, estava desgostoso com o curso que tinha escolhido e decidi prestar o processo de transferência interinstitucional e novamente o vestibular. Para uma feliz surpresa, fui aprovado no vestibular da USP e UNICAMP e também no processo de transferência interinstitucional da UFSCar, onde escolhi vir estudar. Durante a época do meu ensino médio, tinha uma relação muito fraca como os estudos, não era incentivado pelo sistema educacional público a aprender, mas apenas assistir às aulas e conseguir um diploma de concluinte para fazer volume nas estatísticas de políticas-educacionais. Nesse tempo, meu horário era muito denso, pois tinha iniciado minha vida assalariada aos 13 anos, trabalhava em um mercado e era estagiário numa escola de informática – onde conheci algumas pessoas muito queridas até hoje: o Sr. Francisco Rosa e José Rosa. Era muito presente o contato com ideais Cristãos e isso ajudou a fortalecer meus princípios e crenças. A minha relação familiar sempre foi muito sólida e nessa fase comecei a entender e reconhecer a vencedora que minha mãe (Dona Sonia) havia se tornado, conseguindo criar e educar minha irmã (Paula) e eu com louvor, apesar de todas as dificuldades. Até os dias de hoje, sou considerado o “rapaz engraçadinho”, mas foi na minha infância que vivi o auge da minha carreira circense: era o gordinho bobo da turma e o terror das professoras. Lembro-me também de acordar cedinho aos domingos para ir à Igreja. Desde que eu era muito pequeno, minha mãe me conduzia por esse caminho, no qual aprendi ensinamentos muito preciosos e valiosos de amor e adquiri uma filosofia de vida. Decorrente disso, o meu grupo de amigos concentrava-se entre a Igreja e a escola dos quais tenho inúmeras boas lembranças... tinha até um grupo de amigos da igreja chamado M.D.R. (Manos da Rocha)... os amigos em geral são tantos que, por receio de me esquecer de alguém, não descreverei nenhum deles. Dentre todas essas lembranças, em absoluto, a que mais marcou a minha vida até hoje foi assistir a morte de meu pai. Eu tinha oito anos de idade e, como era de se esperar, ele era uma pessoa que tinha um papel extremamente relevante na minha vida, despertando em mim um amor, respeito e admiração inexplicáveis: o meu exemplo de vida. Esse fato foi um marco que trouxe uma responsabilidade familiar muito grande e precoce na minha vida, que explica porque eu me preocupo e amo tanto minha família: Dona Sonia, Paula, meus primos José Carlos e Luciana, meus tios Carlos e Terzinha (in memoriam) e meu avô José (in memoriam). E, por fim esse sou eu, nascido numa linda manhã, 13 de novembro de 1985, com 3 quilos e 800 gramas e muitas fraldas por trocar... 2 Faculdade de Tecnologia de São Paulo, fundada em 1973, tem cursos nas áreas de Construção Civil, Mecânica, Humanas, Informática e Tecnologia de Precisão [informações do site http://www.fatecsp.br, em 02 jan 2007]. 66 Caminhadas de universitários de origem popular Pão-de-açúcar Mylena Mylândia Araújo Gomes* Rosas dos ventos me levem Aos jardins à beira-mar Rosas do tempo me cubram Se eu nunca mais regressar. Paulo Bonfim1 Nasci em São Luís no Maranhão em uma manhã ensolarada; minha mãe era estudante de 16 anos e cursava a sexta série do ensino fundamental; já meu pai era um encanador da indústria petroquímica, tinha 23 anos e estudou até a quarta série. Nós fomos morar nos fundos da casa da minha tia Heloísa, pois minha mãe não sabia como cuidar de um bebê e minha tia ajudava, e também porque não tínhamos muito dinheiro e lá não precisávamos pagar nada. Moramos lá até o meu aniversário de dois anos; depois disso, meu pai quis voltar para sua cidade, Fronteiras, no Piauí. Então, fomos para o Piauí morar na casa da minha avó paterna e, nesse tempo, minha mãe já estava grávida de novo. Apesar da minha mãe ter tido certos problemas com a família do meu pai, quando meu irmão Mychel nasceu (fala-se Michel, e não “Maiquel”! Ele não gosta...), fomos morar em uma casa que a minha avó tinha. Por causa de seu trabalho, meu pai viajava para vários estados, e minha mãe cuidava de nós e da casa. Ainda nessa casa, minha mãe perdeu seu terceiro filho; ele nasceu com hidrocefalia e morreu. Minha mãe ficou doente também e quase morreu, mas ela sobreviveu e por algumas complicações não pôde mais ter filhos. Talvez, pelo costume daquela região, se não fosse este incidente, nossa família seria bem maior. Depois de alguns anos, compramos nossa casa própria e a vida ia correndo de um jeito lento e sem novidades naquela cidade pequena; meu pai aparecia de vez em quando e às vezes não conseguíamos reconhecê-lo. Entretanto, este fato era comum naquela cidade e, além disso, as relações familiares não eram tão íntimas, de modo que não sofríamos tanto com as despedidas. Tinha meu tempo absorvido pelos estudos e pelo auxílio que dava à minha mãe no cuidado da casa e do meu irmão. Gostava muito de brincar e assistir TV, sempre brincava na * 1 Graduanda em Enfermagem pela UFSCar. BOMFIM, Paulo. Poema sem título. In: Poemas Escolhidos, p. 42, Círculo do livro S.A, São Paulo-SP, 1973. Universidade Federal de São Carlos 67 rua de pega-pega, esconde-esconde, pular corda, “amarelinha” e muitas outras também. Gostava muito de subir em árvores e brincar de casinha, mas gostava mais era de brincar sozinha. Minha mãe me colocou na creche de minha tia quando eu tinha dois anos e meio, e lá fui me desenvolvendo mais rapidamente que as outras crianças, o que talvez as tenha levado a acreditar que eu poderia ter sucesso nos estudos, o que não era tão comum por lá naquela época. No ensino fundamental, a escola era para mim um lugar chato ao qual eu só ia por obrigação. Eu não tinha muitos amigos lá, mas minha mãe exigia que eu tivesse um bom desempenho, apesar de não poder me ajudar, já que ela mesma não havia estudado muito. Lembro-me das férias no sítio da minha vó, levantar antes do sol nascer e dormir às 7h da noite, nadar no rio, levar as vacas com meu pai na roça, ver meu vô tirar o leite (era esse meu vô que me chamava carinhosamente de Pão-de-açúcar, porque eu comia muito doce...), bagunça com todos os primos, pois era nas férias escolares que todos ficávamos juntos. Um dia, ao subir no muro da vizinha, quebrei o braço e precisei fazer uma cirurgia que foi mal sucedida. Tive que fazer tratamento durante anos e por isso escolhi minha profissão, queria trabalhar na área da saúde, vestir branco, ser útil para os outros e isso influenciou em toda minha vida. Nas minhas férias escolares da 8ª série, meu pai estava trabalhando em Paulínia, São Paulo, e em Cosmópolis, que ficava ao lado. Acabamos vindo passar as férias com ele. Por alguns motivos, acabamos ficando e morando com ele em Cosmópolis. Eu e meu irmão começamos a estudar em uma escola pública da cidade e meu pai se esforçava para nos sustentar, já que o custo de vida aqui era mais caro do que no Piauí. Meu pai sempre teve o sonho de ter os filhos formados para eles não terem que passar pelo que ele passou. Quando eu estava terminando o colegial, aos 16 anos, meu pai fez um enorme esforço e começou a pagar um curso pré-vestibular noturno para mim; fazia a escola de dia e o cursinho à noite. No final do ano, infelizmente não consegui passar no vestibular. Meu pai não desistiu e novamente pagou mais um ano de cursinho para mim, já que em Cosmópolis não existem cursinhos populares, somente os pagos. As matérias eram difíceis e o meu conhecimento era reduzido, tive muitas dificuldades em acompanhar os professores, mas, mesmo assim, continuei lutando. Infelizmente, naquele ano também não deu certo. Fiquei muito frustrada e cansada, meu pai também dava sinais de cansaço e minha mãe, vendo os apertos que passávamos para pagar o cursinho, ficava irritada e acabava me pondo mais para baixo ainda. Diante de todos esses problemas, sempre ia chorar na casa da minha amiga, Ellen, que sabe mais do que eu o quanto sofri nessa época com incompreensão dos familiares. No ano seguinte, resolvi dar um tempo e comecei a trabalhar em uma loja de flores. Trabalhei meio ano e guardei o dinheiro para pagar um cursinho de meio ano, mas meu pai, sempre insistente, apesar de tudo e principalmente da falta de confiança entre todos, pagou esse curso para mim, e finalmente, nesse ano, consegui passar em enfermagem na Universidade Federal de São Carlos. 68 Caminhadas de universitários de origem popular Caminhadas Nelson Ponce Júnior* Falar de tudo que vivi nesses 22 anos não é uma tarefa fácil. Existem momentos que não gosto de lembrar e outros que tenho orgulho em lembrar. Relato minha história na esperança de que algum dia as experiências que passei possam de certa forma ajudar outros jovens a não desistirem de seus sonhos! Meu nome é Nelson Ponce Júnior, nasci no dia 6 de abril de 1984 na cidade de Americana, interior de São Paulo. Assim que nasci, eu e meus pais fomos morar na casa que eles haviam acabado de construir no Jardim Santa Rosa, um bairro recém inaugurado na cidade de Santa Bárbara D’Oeste. Meu pai trabalhava como mestre de produção em uma empresa têxtil, ele tinha um bom salário, afinal, construiu nossa atual casa em pouco tempo e se livrou do aluguel. Era uma casa pequena, mas grande o bastante para abrigar nós quatro: eu, minha mãe Odete, meu pai Nelson e minha irmã Michele. Quando eu já havia completado um ano de idade, minha família recebeu a notícia de que receberia em breve um novo morador na casa, ou melhor, uma moradora, minha irmã, Daniela, que nasceria dentro de alguns meses. Com o passar dos anos, o quarto em que eu e minhas irmãs dormíamos já estava bem apertado e a casa teve que ser ampliada. As fotografias que tenho do meu início de infância me ajudam a lembrar de como foram bons aqueles tempos. Eram freqüentes as festinhas de aniversário, os presentes de Natal, os passeios com a família... Quando eu tinha cinco anos de idade, minha mãe me matriculou em uma escola infantil. Lembro o quanto eu e meus primos, Fábio e Thiago, que também estudavam lá, brincávamos. As Festas Juninas que a escola fazia eram sempre muito divertidas. As viagens que fazia, naquela época, até o sítio dos meus padrinhos, que ficava na cidade de Marcondésia, também eram muito divertidas. Gostava de andar de trator com meu pai e também de pescar. Tenho muitas lembranças do balanço que ficava no pé de manga, das minhas idas até o curral para ver meu padrinho tirar leite das vacas. Hoje, eles não possuem mais o sítio, venderam e se mudaram para a cidade de Olímpia. Até hoje, sempre que posso, vou visitá-los. Em 1989, meu pai pediu demissão da empresa em que trabalhava havia dezenove anos. Ele dizia que não agüentava mais o trabalho na madrugada e o barulho daquela fábrica, dizia que aquilo estava acabando com a sua saúde; e realmente estava. Tentou trabalhar como autônomo na venda de veículos em um estacionamento de carros em Americana, mas com o passar do tempo, isto não deu muito certo. Perdeu muito dinheiro * Graduando em Engenharia de Materiais pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 69 e a alternativa foi mudar de atividade. Resolveu continuar como vendedor autônomo, mas agora iria vender brinquedos por todo interior de São Paulo. Foram várias as viagens que fiz com meu pai para a cidade de São Paulo, pois era lá que ele comprava os brinquedos. Era muito bom entrar naquelas lojas “recheadas” de brinquedos; sempre acabava ganhando algum. Passados dois anos, eu iniciei o ensino fundamental em uma escola estadual que fica próxima de casa e, após algum tempo, meu pai adoeceu. Em poucos dias, estava em uma mesa de cirurgia na rede pública de saúde. Todas as noites, minha mãe e minha irmã mais nova rezavam para que meu pai melhorasse, mas sua situação não era nada boa. A primeira cirurgia de nada adiantou e logo teve que fazer outra para desviar seu intestino, pois havia uma grande infecção em parte do mesmo. Eu sempre ia ao hospital, mas nunca entrava, acho que no fundo eu não estava preparado para vê-lo naquela situação. As poucas vezes que o vi foi pela janela do quarto. Após um longo tempo, meu pai voltou para casa, mas ainda teria que fazer uma nova cirurgia para religar o intestino. Mas isso não o impediu de voltar a trabalhar com as vendas. Depois de alguns meses, fez a cirurgia de religamento. Sua recuperação foi bastante longa, mas estava curado. Sempre quando ele lembra dessa época, fala que trabalhou de fiscal de obras, pois viu o prédio que ficava na frente do hospital ser construído quase que inteiro. Depois de todo este tempo, voltou a trabalhar e as coisas voltaram ao normal. A vida no ensino fundamental foi muito boa, ir para a escola nunca foi um problema para mim, gostava de aprender e também de me divertir com os amigos. Chegava da escola, comia alguma coisa e corria para a rua, na maioria das vezes, nem o uniforme da escola tirava. Minha mãe não gostava muito disso! Minha inocência de criança não me deixava perceber quanto a situação financeira da minha família havia se deteriorado. Com o passar dos anos, o dinheiro do meu pai foi se tornando cada vez mais escasso para o sustendo da família, mas a esperança de que as coisas iriam melhorar sempre se manteve viva. Minha irmã, Michele, havia terminado o colegial e arrumado um emprego em uma loja de máquinas e ferramentas em Americana; minha mãe continuava com os afazeres do lar e meu pai com a venda de brinquedos. Aos 15 anos de idade, consegui passar no processo de seleção da escola SENAI1 de Americana no curso profissionalizante em mecânica de usinagem, e logo de início, arrumei um trabalho como aprendiz. Considerava meu primeiro salário bom e ele ajudava muito minha família. O curso era integral por isso tive que iniciar meu ensino médio no período noturno na mesma escola em que havia feito o ensino fundamental. O ensino médio à noite era péssimo, e meus pais não tinham a mínima condição de pagar um ensino particular. Para dizer a verdade, o dinheiro que meu pai ganhava não era mais suficiente nem para pagar as contas da família, e isto obrigou minha mãe a procurar um emprego. Minha irmã mais velha conseguiu uma vaga de faxineira para minha mãe na empresa em que trabalhava. O dinheiro que minha mãe ganhava era fundamental para o sustento da família. Foi também nessa época que meu avô, Regustiano Ponce, faleceu. Era uma boa pessoa, sempre perguntava sobre o meu trabalho como aprendiz e sobre o meu curso no SENAI. 1 SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial 70 Caminhadas de universitários de origem popular Sempre que eu ia à sua casa, estava fazendo alguma coisa na sua horta, que hoje, infelizmente está abandonada. Tenho muitas saudades do meu avô! Apesar de tudo, os problemas financeiros familiares da época não afetaram o meu aprendizado na escola SENAI. Acho que de certa forma acabaram me incentivando a não desperdiçar as oportunidades que apareciam. Minha dedicação resultou, ao final do curso, em um prêmio como melhor aluno do curso de mecânica de usinagem. Tinha esperanças em continuar na empresa em que trabalhava após o término do contrato, mas mesmo com a premiação, não consegui. A empresa já havia me comunicado que eu não seria efetivado por falta de vagas, e antes que terminasse o contrato, consegui um novo trabalho. Não era em uma grande empresa como a primeira, mas seria o meu primeiro emprego exercendo realmente a função que aprendi. Naquela época, meu pai havia novamente mudado de atividade. Iria tentar vender confecções em geral, mas seus ganhos já não sustentavam a família havia algum tempo, e conseguir um emprego seria quase impossível, pois já fazia algum tempo que não trabalhava com registro em carteira e sua escolaridade, ensino fundamental completo, nunca o ajudou na busca de um trabalho formal. Com quatro meses no meu novo emprego, tive uma ótima notícia: a escola SENAI, na qual havia estudado, estava me convidando para participar de uma competição de formação profissional, as Olimpíadas do Conhecimento, na modalidade Fresagem CNC2. Após algumas negociações da escola com a empresa, fui liberado para treinar durante dois meses às sextas-feiras e aos sábados. O tempo era curto, mas sabia que não poderia deixar escapar aquela oportunidade. Graças a Deus, consegui alcançar meu objetivo e fui campeão estadual na competição. Surgiu então a oportunidade de representar o estado de São Paulo na competição nacional. A empresa na qual eu trabalhava não pôde mais me liberar para os treinos, pois possuía poucos funcionários no meu setor e a preparação para a competição nacional exigiria tempo integral de dedicação. Consultando minha mãe, tomei a decisão de sair da empresa e continuar me dedicando aos torneios, mesmo que depois da competição corresse o risco de ficar desempregado. Após cinco meses de treinamentos e muitas viagens para São Paulo, em reuniões de preparação psicológica com toda a equipe, estava pronto para representar o estado em 8 de agosto de 2002, na competição nacional na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A viagem de ida foi um pouco tensa; nunca havia entrado em avião antes, e quando me soltei, já estava em Porto Alegre. Mais uma vez sabia que aquela oportunidade seria única e, após três dias de competições, tive a notícia de que havia ganhado o primeiro lugar. Esta vitória me abriu uma porta ainda maior: a oportunidade de representar o Brasil na competição mundial de profissões que seria realizada na Suíça no ano seguinte. Mesmo com a vitória na competição nacional, tive que passar por vários simulados e atingir as pontuações exigidas para representar o país no mundial. Não foi fácil, mas havia me dedicado muito nos treinamentos. Era comum ficar mais de treze horas na escola treinando. 2 Fresagem CNC (Comando Numérico Computadorizado) é um tipo de atividade cujo profissional é responsável por preparar, regular e operar máquinas CNC para fresar (cortar) peças de materiais metálicos, plásticos e compósitos, com uso de ferramentas rotativas. Universidade Federal de São Carlos 71 No dia 14 de junho de 2003, às 22h, embarquei no vôo para a Suíça que faria uma escala em Frankfurt – Alemanha, antes de chegar à cidade de Zurique. Após descermos no aeroporto, pegamos um ônibus para a cidade de Saint Gallen, onde seria realizada a competição. A cidade era muito bonita, e é quase impossível descrever tudo aquilo que vi em palavras. Parecia não haver desigualdade social; muito diferente da realidade do nosso país. Os dias de competição foram muito tensos. Não consegui ter o desempenho das outras competições, pois não conhecia muito bem o equipamento suíço. Mesmo sabendo que não conseguiria estar entre os primeiros colocados, fiz o melhor que pude para obter pontos durante a competição e, ao final, havia obtido a 13ª colocação e ficado à frente de países como a Inglaterra, França e Bélgica. Tudo isso para mim foi uma grande vitória, pois sei que dei o melhor de mim e não desisti de lutar mesmo sabendo que não ficaria entre os primeiros colocados. Depois de um mês da minha volta ao Brasil, consegui um emprego. Ainda não era uma empresa grande como havia imaginado, mas sabia que as oportunidades com o tempo apareceriam, e, apesar de meu pai continuar com dificuldades em sustentar a família, a situação tinha se estabilizado. Minha irmã mais nova também havia arrumado um emprego. Mas a situação de aparente estabilidade logo se quebrou. Meu pai havia feito muitas dívidas. Talvez a vergonha por ter que abandonar mais uma vez o trabalho fez com que ele continuasse trabalhando, mesmo que seus ganhos não ultrapassassem seus gastos, e a dívida só foi percebida pela família quando já estava enorme e ele não conseguiu mais escondê-la. Em meio a todos estes problemas, a oportunidade que tanto esperava realmente havia aparecido. Eu havia passado na seleção de uma empresa multinacional na cidade de Piracicaba, e, como estava trabalhando havia apenas quatro meses em uma empresa pequena, não pensei duas vezes em deixá-la. O novo trabalho era ótimo, tinha um bom salário e o ônibus fretado pela empresa passava a duas ruas de casa. Com o tempo, sabia que poderia crescer dentro da empresa. Em 12 de junho de 2004, Dia dos Namorados, conheci minha atual namorada, a Aline, em uma festa na cidade de São Pedro. Mesmo ela morando longe da minha cidade, cerca de 70 km, decidimos namorar. Muitos diziam que devido à distância, este namoro não iria durar muito, mas estamos juntos até hoje e muito felizes. As dívidas de meu pai era cada vez mais problemática, constantemente recebíamos cobranças. Minha mãe havia decidido vender a nossa casa, na qual havíamos morado minha vida toda, e com parte do dinheiro pagaria as dívidas. Com o tempo, tirou esta idéia da cabeça e como na época eu tinha um bom salário, resolvi pagar as dívidas parceladamente. Foi mais de um ano pagando parcelas, mas, ao final, estava tudo pago. O meu salário do primeiro ano de trabalho foi usado praticamente neste pagamento, e, assim que acabaram as dívidas, decidi estudar. Pensava em fazer uma faculdade particular, pois meu salário me dava esta condição. Antes, porém, decidi prestar o vestibular da FATEC-SP3, no campus de Americana. Não era tão concorrido, mas era muito mais do que as escolas particulares da região. Para minha alegria, fiquei na lista de espera e logo fui chamado. Aquilo me fez sonhar mais alto, acreditava que, se realmente me preparasse, 3 Faculdade de Tecnologia de São Paulo. 72 Caminhadas de universitários de origem popular poderia passar em uma universidade ainda melhor. Decidi não fazer o curso de tecnólogo em informática No final daquele ano, escolhi me matricular no cursinho do Colégio Objetivo de Americana, pois acreditava ser um dos melhores da cidade. Matriculei-me no extensivo no período da manhã, pois nos períodos da tarde e da noite trabalhava. Em fevereiro de 2005, minha irmã mais nova e dois amigos, sendo um deles o Marcelo, um dos meus melhores amigos, voltavam de uma festa em São Pedro quando perderam a direção do veículo, caíram em um pequeno barranco e colidiram de frente com uma árvore. O Marcelo, que para mim era como se fosse um irmão, faleceu na hora e minha irmã ficou gravemente ferida. Por sorte o meu outro amigo que estava dirigindo não sofreu praticamente nada e pôde pedir ajuda. Recebi a notícia na manhã seguinte, quando estava na casa da minha namorada. Ouvir que o Marcelo havia morrido e que minha irmã estava em coma foi sem dúvida a pior coisa que aconteceu na minha vida. Mesmo com tudo isso, tentava não me mostrar muito abatido na frente da minha mãe, sabia o quanto ela iria precisar da minha ajuda, pois, além da situação ruim da minha irmã, perder o Marcelo foi como perder um filho para ela. Mas se por um lado perdi um irmão, Deus havia me dado uma nova irmã; foi muito bonito ver sua recuperação. Em poucos meses, mesmo com a fratura na bacia, já estava andando, e nunca perdia seu senso de humor. Depois de todos estes acontecimentos, achava que não teria mais forças para conseguir estudar aquele ano, mas mesmo assim resolvi tentar. Acho que ter falado com a mãe de meu amigo Marcelo me ajudou a prosseguir nos estudos. Ela sempre falava que ele iria iniciar a faculdade aquele ano. Por que eu, estando vivo, deveria desistir ?!!! Os primeiros seis meses foram muito difíceis, não sabia quase nada e tinha dificuldades em acompanhar algumas matérias. Muitas vezes, chegava a dormir apenas quatro horas por noite. Dormir em aula se tornou uma coisa absolutamente normal, mas graças a uma mudança nos horários da empresa, consegui trabalhar em um horário um pouco melhor; isso ajudou muito no meu desempenho em aula. Foi um ano de grande aprendizado e boas amizades, tanto no cursinho, quanto na empresa. No final do ano, fiz os vestibulares das melhores universidades do estado em diferentes cursos, Engenharia Mecânica na UNICAMP e Unesp, Engenharia de Materiais na UFSCar e Química na USP, estava muito indeciso e não sabia bem o que queria fazer. Ao final desta estressante jornada, estava na lista de espera da USP e da UFSCar. Depois de alguns meses, fui até o campus de São Carlos da UFSCar para manifestar interesse pela vaga, e no mesmo dia, para a minha surpresa e alegria, já estava matriculado no curso de Engenharia de Materiais. Mas ainda havia um problema: estava trabalhando e teria que deixar a empresa para a qual tanto lutei para entrar. Não foi uma decisão fácil, mesmo sabendo que para o meu futuro certamente o curso de graduação seria a melhor escolha. Vejo aquelas pessoas com quem trabalhei como sendo uma segunda família, nunca esquecerei do apoio que tive nas decisões que tomei. Tenho muitas saudades de todos. O processo de desligamento da empresa foi um pouco complicado, não queria pedir demissão, pois não receberia o dinheiro do Fundo de Garantia, dinheiro este que seria fundamental para a minha permanência na universidade. Expliquei minha situação financeira a meu supervisor, e o mesmo enviou um e-mail para a gerência da empresa explicando Universidade Federal de São Carlos 73 os fatos. O gerente respondeu que a política da empresa não permite que funcionários com o desempenho bom sejam demitidos, exceto no caso de haver cortes por queda nas vendas, o que não era o caso. Como nunca fui de desistir tão fácil dos meus objetivos, resolvi subir até a sala do mesmo e explicar os fatos pessoalmente. Eu disse a ele que mesmo se a empresa não me demitisse eu “pediria a conta”, pois estava decidido a estudar. Ele compreendeu e disse que, se tivesse um filho na mesma situação que eu, o apoiaria a fazer o que eu estava fazendo, e assim, fui demitido. Ele ainda me disse que as portas da empresa estariam abertas para quando quisesse voltar. A alegria de estar realizando mais um sonho faz com que a tristeza de estar longe das pessoas de quem gosto quase que desapareça. E, até que eu tenha forças, continuarei lutando por um futuro melhor para mim e para as pessoas que amo! 74 Caminhadas de universitários de origem popular Eu Priscila Andrade Corrêa* Dizem que a felicidade é um momento Eeia ei....a Se encontra em um sorriso em um desejo Eeia ei......a É estar em uma festa É viver o que nos resta É dizer pro mundo inteiro que acer...ta É o amor Dizem que a felicidade é uma rosa Eeia ei......a Que é linda porque é tímida e dengosa Eeia ei......a É sambar com um bolero É viver tudo que eu quero É dizer pro mundo inteiro que te a...mo... te quero! Art Popular Pensar sobre mim e sobre a minha história nem sempre é algo legal. Lembrar de fatos que causam riso, dor, alegria, saudades e perguntas. Perguntas que deixei de fazer por não achar respostas tais como: Por que minha mãe ficou casada por 15 anos? Por que eu vi tudo o que vivemos de uma forma tão diferente dos outros? A minha braveza é genética ou uma auto-defesa? Eu nasci dia 28 de dezembro de 1979, sou a quarta filha dos meus pais. Lembro que morava na casa dos meus avós paternos e um dia, de madrugada, eu mudei para a casa da esquina e que, muito ou pouco tempo depois, meu segundo irmão nasceu. Eu não lembro da minha mãe grávida então acho que o que marcou foi ela ter sumido por um tempo e depois voltado com ele em uma manta azul clara. Aos seis anos eu fui para a pré-escola. Eu já reconhecia os números de 1 a 5, o nome da minha irmã mais velha e da minha mãe, estava tão ansiosa pelo primeiro dia de aula que assim que minha mãe entrou, de manhã, na sala onde dormíamos para chamar meus irmãos para a aula, eu acordei. Lembro da escola grande de muro branco e portão cinza e da tia Zênite que me ensinou as letras e os números no pré, e da tia Lúcia, que me ensinou a ler e * Graduanda em Pedagogia pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 75 a escrever, na primeira série. Eu estudava à tarde e ia para a Escola Estadual Prof. Paulo Mendes Silva, toda feliz, pois em Jundiaí, onde nasci e morava, estudar o pré em uma escola de estado era como um privilégio: considerava-se que as escolas da prefeitura eram para os filhos das pessoas pobres que moravam na periferia e trabalhavam fora. A questão que eu não sabia é que eu era tão pobre quanto todas as crianças da periferia de Jundiaí, só que minha mãe ficava em casa. O meu pai trabalhava como off-set; não sei bem explicar como era essa função ou se durante o trabalho ele fazia alguma outra coisa. Sei que ele era responsável por finalizar a impressão do Jornal de Jundiaí e depois do Jornal da Cidade, ele arrumava as máquinas quando apresentavam problemas e era responsável por fazer tudo caber em uma determinada página. Ele começou a trabalhar em um jornal em Caieiras e era responsável pelas mesmas coisas que já fazia em Jundiaí, além de produzir a página da coluna social. Em Jundiaí, brincávamos só eu e meus irmãos no quintal de casa. Nos feriados e nas férias, os meus primos iam para lá. Meu primo César, de Rincão-SP, por ser o mais velho, era sempre o líder de nossas travessuras. Um dia nós fomos passear, ele pôs muita pimenta no pastel e minha tia não deixou ninguém dar refrigerante para ele. Em outra ocasião, ele foi assustar minha irmã imitando o clip de terror do Michael Jackson e ela quebrou o dente, nunca ele apanhou tanto! Mas depois, pra variar, a gente riu. Dos primos de Rincão, eu me lembro desde que me entendo por gente, mas dos de São Carlos, não. Uma tarde, eu estava dormindo na casa da minha avó paterna, na cama da minha tia, que era também minha madrinha (um bom lugar no mundo). Quando acordei, conheci os meus parentes de São Carlos: avó materna, tia e primos. Tinha cerca de cinco anos e não lembro de tê-los visto antes. Então, em 1988, nós mudamos para Caieiras e tudo na minha vida mudou também. Deixa desaguar tempestade, inundar a cidade porque arde um sol dentro de nós. Queixas, sabe bem que não temos, e seremos serenos [...] Deixa a chuva cair que bom tempo há de vir Quando o amor decidir Mudar o visual trazendo a paz no sol Que importa se o tempo lá fora vai mal Que importa Se há tantas lamas nas ruas (...). Almir Guineto / Zeca Pagodinho Eu estava na metade da 2ª série e a matéria que as professoras davam estava em pontos diferentes, então eu iniciei uma dificuldade com a matemática que vem até hoje. Parei de conversar em sala de aula por me sentir deslocada de um grupo que se conhecia desde o jardim da infância e talvez porque inconscientemente não queria partilhar da minha situação com ninguém. Ao chegar a Caieiras-SP, eu percebi que minha família não era tão normal como eu sempre pensei: vi que não era certo o meu pai beber tanto, trair e bater na minha mãe. Eu me fechei de tal forma que até hoje tenho dificuldade de fazer amigos. 76 Caminhadas de universitários de origem popular Em Caieiras, as coisas eram bem diferentes de Jundiaí: eu ia para a escola com as minhas irmãs, pois a minha mãe começou a trabalhar. Nossa casa ficava no pé de um morro e a vizinha de cima convenceu meu pai a deixar a gente brincar na rua à noite. Meu pai não gostava muito que nós brincássemos com os meninos da rua, então eles tinham que ir em casa pedir permissão a ele, que às vezes não deixava. Nós brincávamos de queima, esconde-esconde, imitar cantores com mímica, pegávamos argila na bica que passava no pé do morro e fazíamos nossos brinquedos. Era divertido, em especial porque incluía mais gente além dos meus irmãos e nossas brincadeiras para poucas pessoas. O que deixamos de fazer e eu senti falta foi brincar de teatro: eu e minhas irmãs encenávamos os clássicos da Disney para minha mãe, tia e avó assistirem. O meu irmão mais velho sempre cortava o “palco” trocando as letras das músicas da Xuxa e nós brigávamos. Lá, eu desenvolvi alguns amores: a música. Meu pai puxava uma escola de samba em Jundiaí e em casa tinha uma caixa, um bumbo, um reco-reco e um violão. Ele tocava violão e a gente cantava. Quando ele não estava “bão” todos os vizinhos sabiam: ele ligava o rádio bem alto às 22 horas e tocava “Joga pedra na Geni” e Zeca Pagodinho com “se eu quiser fumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”. Outro amor foi a leitura. Por meu pai trabalhar em um jornal, nós o recebíamos de graça e líamos e, na terceira série, a escola abriu uma biblioteca que eu freqüentava sempre. Meu primeiro livro foi O cachorrinho Samba na fazenda. Falando em jornal, quando ocorreu o impeachment do Collor, eu estava passando uma temporada em São Carlos e não li e nem vi nada, pois a minha avó não deixava ver TV. O Muro de Berlim caiu e eu não vi e nem li também. Outra coisa boa era pescar. A minha mãe não gostava porque meu pai dizia que ia jogar a gente no rio e nós fazíamos muita sujeira, mas quando ele não estava muito bêbado, pescar era algo bem legal, a gente conversava, cantava, contava histórias. Depois da pesca nós limpávamos o peixe e a minha mãe fritava. No nosso quintal, tinha uma horta com couve, chuchu, almeirão e alface. Nós criávamos galinha, pomba, codorna e marreco. Quando o dinheiro acabou, nós soltamos as aves menores, os marrecos morreram e comemos as galinhas e seus ovos. Hoje, meu quintal não tem terra, tenho orquídeas que ganhei e falo com elas...o povo diz que eu sou louca, mas eu sou é feliz! Brasil Mostra tua cara Quero ver quem paga Pra gente ficar assim Brasil Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Confia em mim. Cazuza / Nilo Romero / George Israel. O dinheiro acabou porque, além da inflação da época do Sarney e do Plano Collor, o meu pai deixou o emprego: como era o chefe da seção, ele demitiu um homem que havia cometido um erro. Um dia, ao sair do jornal, ele estava no bar ao lado e o cidadão apareceu com uma arma querendo atirar nele, pois “Onde já se viu um preto mandar um branco Universidade Federal de São Carlos 77 embora?!” O sujeito conseguiu voltar ao jornal, mesmo estando duplamente errado, e meu pai pediu demissão. Em fevereiro de 1990, minha mãe falou que nós NÃO íamos estudar naquele ano. Como assim?!! Nós tínhamos que mudar de casa, mas não tínhamos para onde ir, pois ninguém queria ser fiador do meu pai. Todas as vezes que mudamos de casa foi pelo mesmo motivo: despejo. Ele falava que pagar aluguel, luz, água e comprar material e uniforme escolar era bobeira... voltamos a morar na casa dos pais dele, em Jundiaí, que na época tinham três filhos solteiros. Porém, na Páscoa, a irmã casada dele, de Rincão, iria para Jundiaí visitar minha avó. Como meu pai não queria que ela soubesse que tínhamos voltado para lá, fomos para a casa de um amigo dele chamado Henrique em Franco da Rocha. Meu pai já tinha um emprego em uma ótima empresa em Jaguaré-SP e passava a semana na casa desse amigo e ia de sexta feira para casa da minha avó. Ficamos na casa do Henrique cerca de um mês, até ele começar a namorar e voltamos de novo para a casa da minha avó. Em uma bela noite, já era tarde e meu pai tinha recebido o salário. “Alto”, teve a brilhante idéia de ficar na cozinha com minha irmã mais velha e minha mãe, se exibindo com o dinheiro. Meu tio passou e apagou a luz. Eu gelei. Meu pai era agressivo e se ofendia facilmente. Imaginei os dois se pegando e meu avô passando mal. Agradeci a Deus por meu pai já ter vendido as duas armas que teve. Graças a Deus, eles não brigaram assim e nós levantamos “pra ir embora daquela casa de traidores”. Fomos a pé para a estação de trem (cerca de uma hora de caminhada) e dormimos lá. Basta pensar em sentir / para sentir em pensar Meu coração faz sorrir / meu coração faz chorar Depois parar de andar / depois de ficar e ir Hei de ser quem vai chegar / para ser quem quer partir Viver é não conseguir. Fernando Pessoa No dia seguinte, voltamos para a casa da minha avó, pegamos nossas coisas e documentos e viemos passar um tempo em São Carlos. Minha mãe nos deixou na casa da minha avó materna, que eu tinha visto cerca de quatro vezes em toda vida. Minha mãe trabalhava durante o dia em Jundiaí, e meu pai, em Jaguaré. Ao fim do dia, eles se encontravam na Estação da Luz, em São Paulo, e eles alugavam o quarto mais barato e seguro que podiam encontrar para dormir. Nós não tínhamos como falar com ela, que vinha às vezes em um fim de tarde, lavava a roupa deles e voltava no dia seguinte. Minha tia e minha avó ficavam bravas se eu chorava, mas é que eu queria minha mãe. Sei que é por isso que hoje eu só choro se realmente perco o controle sobre mim. Acho que ficamos lá cerca de seis meses. Naquele ano, teve uma greve de professores então a companhia dos meus primos fez o tempo passar mais rápido. Meu pai conseguiu alugar uma casa em Botazar Fidelis, um subdistrito de Franco da Rocha, e perto do Natal, nós voltamos a morar juntos. Era um lugar muito pobre e nossa casa era uma das poucas de tijolos por ali. Tinha no quintal um pé de figo e vários de banana. Em 1991, eu voltei para a escola, fazendo a quarta série, e passei a odiar as férias, sou muito mais um feriado prolongado. Um de nós sempre faltava à aula para ajudar minha mãe 78 Caminhadas de universitários de origem popular a vender panos de prato de porta em porta em Jundiaí. Em alguma época do ano, o meu pai parou de trabalhar por já estar completamente alcoólatra e essa era nossa única fonte de renda e mudamos para um barraco rosa do lado da casa em que estávamos. Ele falava que, se minha mãe tivesse vontade de trabalhar, nós ficaríamos ricos. Um absurdo. Mesmo com toda a situação, ou dentro dela, em dezembro de 1991 minha mãe estava grávida de 4 meses. Na primeira semana de dezembro, meu pai teve uma briga horrível com minhas irmãs mais velhas e as mandou embora de casa. Foi com certeza o pior dia da minha vida. Minha mãe percebeu que ou nós vínhamos embora ou meu pai iria matar todos nós, então, em 17 de dezembro de 1991, nós fugimos de casa literalmente com a roupa do corpo, pois já tínhamos encontrado as minhas irmãs. Minha mãe foi à Delegacia da Mulher explicar o ocorrido, pois disseram que meu pai podia alegar que ela nos roubou e conseguir a nossa guarda, mas ninguém fez nada por nós. Nós vendemos nossos panos de prato, pedimos dinheiro aos conhecidos da minha mãe e, depois de rodar a cidade de Jundiaí toda com medo de parar em um só lugar, fomos para a estação esperar o trem que nos traria para São Carlos e saía exatamente às 00:01! Nenhum minuto a mais ou a menos. Quando chegamos aqui, faltavam 10 dias pra eu completar 12 anos e saímos de casa no dia do aniversário do meu irmão mais velho. Presente. Às vezes sinto o vento passar E só de ouvir o vento passar Vale a pena ter nascido. Fernando Pessoa No sétimo parto normal da minha mãe, apesar da correria da gravidez e dos 41 anos de idade dela, o Jander nasceu saudável em uma tarde morna de abril. Quando ele tinha três meses, eu deixei o meu primeiro emprego de babá para cuidar dele, pois a minha mãe começou a trabalhar. Eu não sabia, mas isso me prendeu para sempre aos meus irmãos, eu não podia ir à aula de educação física e nem fazer trabalhos e pesquisas fora da sala de aula. Aos 13 anos, pelo convite de uma importante amiga, a Mirna, comecei a freqüentar a Primeira Igreja Batista em São Carlos. Aos 14 anos, comecei a trabalhar o dia todo de babá e a estudar à noite; os primeiros meses foram os piores por eu estar cansada demais e sem ritmo pra tal correria. Aos 15 anos, eu me formei na oitava série e me batizei na mesma Igreja, que freqüento até hoje. Foi sem dúvida uma das melhores coisas que eu já fiz na vida. Nela encontrei pessoas de todos os níveis sociais, de analfabeto a doutor, de faxineiro a fazendeiro e isto ajudou muito na formação de meu caráter. Ao acabar o ensino fundamental, fui fazer o médio em uma escola um pouco longe de casa por não gostar da que tinha perto de casa; ao terminar, já tinha ouvido falar da FUVEST6, mas não sabia direito o que era, então, comentaram que a Igreja Evangélica Projeto Raízes perto de casa estava oferecendo um curso pré-vestibular comunitário e eu me matriculei. Não levei o ano a sério mais decidi estudar e entrar na universidade pública. O meu Deus é um Deus de milagre, Não há limites para o seu poder agir Realiza o impossível, para Ele nada é tão difícil Universidade Federal de São Carlos 79 O maior milagre já operou em mim, E o maior milagre quer operar em ti. Ana Paula Valadão Nos dois anos seguintes, fiz cursinho particular. Eu trabalhava fazendo faxinas e com esse dinheiro pagava as mensalidades com desconto. Não passei, então fui estudar administração em uma escola técnica estadual em um curso que durou um ano e meio, e, ao terminar, decidi tentar de novo o vestibular, pela última vez, fazendo o cursinho popular da UFSCar. Eu ia com uma amiga até o centro pegar ônibus para casa e na época em que nós vimos o cartaz de inscrição para o cursinho no ônibus eu não tinha como pagar. Ela se dispôs a usar o próprio horário de almoço para, emprestando-me o dinheiro, fazer a inscrição. Quando eu passei no vestibular, liguei para contar e ela chorou feliz por mim. A Lu também é negra e paga uma universidade particular, ela e o marido sabem o quanto é difícil e o quanto vale uma universidade pública. Durante o ano passado eu mais orei do que estudei, tínhamos aulas também nos fins de semana, conheci o Podrão, um cachorro bonito e fedido que mora na universidade e “assiste” às aulas. Estudei história mais que as outras matérias para passar em Ciências Sociais na Unesp de Araraquara, que era minha primeira opção, e mesmo assim fiquei mal colocada e arrasada. Também prestei Pedagogia na UFSCar mas quando me perguntavam do vestibular daqui, eu dizia que só passaria por milagre. No dia que o resultado da Federal saiu, eu tinha mais medo que esperança e fui direto ver: Classificação Geral: 80 Situação: Consta na lista de espera Eu comecei a chorar e a moça do meu lado na Biblioteca Municipal pensou que eu passava mal, eu só chorava e dizia: EU PASSEI NA FEDERAL! Fui de lá pra casa da minha irmã mais velha chorando e agradecendo a Deus. Mesmo que eu não conseguisse entrar servia pra recuperar a auto-estima depois da reprovação na Unesp. Minha irmã mais velha casou, a segunda tem um filho de 10 anos, a mais nova é uma missionária. O meu irmão mais velho fez SENAI e trabalha com iluminação pública na Prefeitura; o segundo acabou de perder o emprego, parece ser o que mais sofreu com tudo o que houve e também ser o mais frustrado com as injustiças sofridas por um jovem negro no Brasil; o mais novo está iludido com a idéia de ser jogador de futebol (ou não, ele realmente é bom), mas não é fácil ele entender que mesmo tentando isso ele precisa ter uma outra opção, pois nem todo garoto “bom de bola” vai pra Liga dos Campeões. E a minha mãe fica no meio de tudo isso, tentando ou conseguindo ser feliz, trabalha demais pro meu gosto e pra idade que tem. Do meu pai, eu só tenho notícias quando ele passa na casa da minha avó em Jundiaí, e por medo dele ela não deixa a gente ir lá. É triste porque meu avô morreu há nove anos e eu ainda não vi o túmulo, minha tia casou, teve uma filha e eu ainda não conheço nenhum dos dois. Eu não sei como vão ser esses quatro anos aqui, mas o que eu sei é que não posso esquecer de onde eu vim e o que Deus fez por mim, sei que não seria quem sou se não fosse a graça d’Ele na minha vida, apesar de tudo o que já vi e vivi. 6 Fundação Universitária para o Vestibular, que na época era responsável pela elaboração da prova da Universidade de São Paulo – USP e Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. 80 Caminhadas de universitários de origem popular Que eu possa sempre Te louvar, que eu possa sempre Te agradar Ó Senhor, não deixe que eu volte atrás, Que eu possa Te amar Que eu não tenha outro Deus além de Ti, que eu possa sempre cantar o Teu louvor Sempre e pra sempre me mantendo em Seus caminhos Que eu nunca perca a direção, Vem, Senhor, e guia meu caminhos a cada dia, Que eu possa cantar o Teu louvor. Cristina Mel Não posso deixar de agradecer a Deus por algumas pessoas especiais que Ele colocou na minha vida e que são, de alguma forma, responsáveis pelo que sou: Tia Lucy e Pastor Jarbas, Tia Mi e Carlão, Myriam e Mirna, Débora e Lucélio, Irmão Edson, exemplo de homem e de servo de Deus Durante a realização do nosso Seminário Local, percebi que precisava explicar por que a minha vida não é contada de maneira superficial. É porque há tanta lama na rua, e eu me importo. Escrevi tanto pensando em incentivar a seguir em frente quem, como eu, ouve o tempo todo que não vai ser nada na vida e que terá irmãos tão beberrões e imprestáveis quanto o pai. Trabalhei dos doze aos vinte e seis anos como doméstica em uma cidade extremamente preconceituosa, e faço parte de um pequeno grupo de pessoas que o Conexões quer fazer maior: um grupo de pessoas que confiam, lutam e vencem. Que Deus me e nos ajude nisso. Universidade Federal de São Carlos 81 Caminhadas: trajetória de vida, como releitura da realidade Rafael Vieira * Meu nome é Rafael Vieira, tenho 20 anos, nasci no dia 27 de junho de 1986 em Matão, cidade do interior do Estado de São Paulo. Sou filho de Marlene Coimbra de Oliveira e Luís Vieira. Tenho mais dois irmãos: Rodrigo, de 24 anos, e Bruno, de 7 anos. Felizmente, costumo dizer que tenho uma outra família, uma família de coração, meus outros pais: Maria de Lurdes e Benito e meus outros irmãos: Paulo, Carla, Carlos e Mara. Digo que tenho duas famílias porque na época éramos vizinhos, e quando eu era pequeno, Carla, a filha caçula de Lurdes e Benito, cuidava de mim praticamente o dia todo, e dessa forma, cresci e acabei virando membro da família deles, sou sempre bem vindo em suas casas e tenho todo respeito e admiração por cada um de lá. Agradeço enormemente a eles por terem contribuído para minha formação, educação, cultura e me servirem quase sempre como exemplo. Na minha infância, pude compartilhar grandes momentos com os outros meninos da rua, tínhamos quase todos a mesma idade, e isso contribuiu para que toda a noite fosse fundamental brincar; a imaginação fluía e brincadeiras eram feitas sem grandes complicações. Nossas mães geralmente ficavam sentadas nas calçadas nos observando, típica vida noturna do interior. Estudei sempre em escolas públicas, e mesmo sabendo que o ensino básico em rede estadual está comprometido e deficiente, consegui, para minha felicidade, encontrar professores excelentes e com motivação, eu fazia o possível para ser sempre o melhor aluno da turma. Logo no segundo colegial, comecei a trabalhar em uma metalúrgica, trabalho árduo e pesado; sabia que ali não era o melhor trabalho do mundo, precisava ter algum dinheiro para poder ajudar com os gastos de casa, e ali seria para mim a melhor maneira de fazer isso, e assim conclui meu ensino médio no período noturno. Mesmo não tendo uma idéia bastante concreta sobre o vestibular, resolvi que me empenharia na preparação para prestá-lo. No final do terceiro colegial, eu prestei pela primeira vez um vestibular, o da Unesp, acabei me candidatando ao curso de Ciências Econômicas só por achar o nome bonito, obviamente eu não passei. Hoje, eu acredito que se por um acaso eu tivesse entrado nesse curso, eu teria desistido logo no primeiro semestre. Achei o vestibular a coisa mais difícil do mundo, praticamente tudo aquilo que caiu na prova eu jamais tinha visto na minha vida, principalmente os conteúdos de química, física e matemática. Como eu acabei praticamente zerando na prova de química, decidi participar da seleção para um curso técnico em Química em uma escola municipal em Matão, e assim, depois * Graduando em Química pela UFSCar. 82 Caminhadas de universitários de origem popular de um tempo só estudando química, eu voltaria e prestaria vestibular novamente. Mas a vida nos prega uma peça! Acabei me apaixonando pela matéria que eu mais odiava! Fiz um ano inteiro de curso técnico, consegui estágio em um laboratório de análises especiais em uma empresa de sucos e ali descobri o que eu realmente queria ser: químico. Não terminei o curso técnico até hoje. Isso aconteceu porque uma amiga de colegial praticamente me obrigou a prestar uma prova seletiva de um curso pré-vestibular popular em Araraquara-SP, no CUCA1. Para minha surpresa, eu acabei passando nessa prova, fui classificado e tranquei minha matrícula no curso técnico para poder iniciar o cursinho preparatório para os longos e difíceis vestibulares que eu prestaria. O ano de 2005 foi o ano em que cresci muito como pessoa. Levantava todo dia às 5:30 da manhã, pois trabalhava ainda na mesma metalúrgica, e voltava às 17:30. Quando chegava, apenas tinha tempo de tomar banho e pegar o ônibus para Araraquara, pois viajava todo dia pro cursinho, já que Matão fica a 30 quilômetros de Araraquara. Ali conheci pessoas grandiosas, cuja amizade guardo e mantenho até hoje, muitos eram meus próprios professores, estudantes da própria UNESP dos mais variados cursos de graduação, e também meus outros amigos e amigas que faziam o cursinho foram os grandes responsáveis por eu ter continuado a estudar; havia dias que eu chegava do trabalho e não tinha condições de ir assistir as aulas, precisava dormir para poder estar bem e sem sono nos outros dias da semana, no tempo livre que tinha – horário de almoço e em especial os finais de semana – me empenhava em estudar e resolver exercícios o dia todo, deixando de lado algumas coisas de que eu realmente gostava, como sair para conversar com amigos, cinema, vôlei, descontrair e sair daquela rotina tão desgastante da semana e que eu na realidade odiava, trabalhava em um local que não me dava satisfação alguma, ia por necessidade e não por vontade. No cursinho, fui, na realidade, obrigado a fazer novamente o ensino médio em um ano. Para mim não foi um cursinho para rever matérias e sim para aprendê-las. Como eu trabalhava, pude reservar certa quantidade de dinheiro para os vestibulares e tive oportunidade de me candidatar a vários deles nas universidades mais concorridas do país, como USP, UNICAMP, UNESP, UFLA2 e UFSCar. 1 Curso Unificado do Campus de Araraquara. O projeto CUCA é um curso preparatório pré-vestibular, sem fins lucrativos, oferecido no Campus da Unesp de Araraquara com vagas para alunos egressos do ensino médio de carência sócio-econômica comprovada. Concebido em 1993 com a projeção social de melhorar a qualidade de vida do cidadão oferecendo-lhe as condições de formação superior para competir com o mercado de trabalho qualificado. Os objetivos do projeto CUCA são: complementar os conhecimentos gerais e específicos, em nível do ensino médio, visando-se preparar os alunos para ingresso no ensino superior, preferencialmente em Universidades Públicas; proporcionar aos alunos da Unesp, a oportunidade de promover e desenvolver a Extensão Universitária através da prática de ensino no exercício de cidadania; favorecer o aprimoramento profissional em docência dos alunos da Unesp; conscientizar os graduandos sobre a Mentalidade Solidária e Voluntária para a cidadania, despertar o espírito de cooperatividade e associativismo social e compartilhar experiências; estimular a educação superior para o desenvolvimento social nas camadas menos favorecidas e contribuir para o desenvolvimento econômico com recursos qualificados de educação superior. [informações do site http://www.iq.unesp.br/cuca/quemsomos.php em 05 jan 2007]. 2 Universidade Federal de Lavras/MG. Fundada em 1908, sob o lema do Instituto Gammon: “Dedicado a glória de Deus e ao Progresso Humano”, a Escola Agrícola de Lavras, depois Escola Superior de Agricultura de Lavras (ESAL) e, hoje, Universidade Federal de Lavras (UFLA). Oferece 10 cursos de graduação, 49 cursos de especialização a distância e 12 de mestrado e doutorado. [informações do site http://www.ufla.br/ em 05 jan 2007]. Universidade Federal de São Carlos 83 Felizmente, fui bem na maioria deles, mesmo não alcançando as notas de corte, eu me senti feliz por ter um desempenho razoável, somente na UFLA e UFSCar é que consegui realmente passar, na realidade indo para a lista de espera, pela qual fui chamado logo na seqüência. Eu me lembro do dia em que assinei a minha matrícula na UFSCar; foi um dia de enorme felicidade. Pena que eu só pude comemorar essa tal euforia e felicidade com meus amigos do cursinho, porque em casa, meus pais não esboçaram reação alguma, ou melhor, a única reação que tiveram foi de susto ao me ver todo sujo de tinta e com a cabeça raspada e também quando eu disse que eu estava indo morar em São Carlos. Mas enfim, não fiquei triste por não receber os parabéns de meus pais, eles tinham uma visão muito simplista do que era uma universidade, e muito menos sabiam o que era Química. Hoje em dia, a visão deles mudou, acredito que eles estejam orgulhosos de mim; meu irmão mais velho parece ter visto em mim alguma motivação e ele diz que está pensando em começar uma faculdade, mesmo que particular. E assim, em 2006, matriculado no curso de Química da UFSCar e morando em São Carlos, vivo uma outra vida, uma vida universitária, participo de um projeto de extensão, o Programa Conexões de Saberes, que é o motivo principal por eu estar escrevendo o Caminhadas. Sei que tenho muito que aprender, estou ainda no meu primeiro ano de graduação, tenho mais quatro anos pela frente, e, com certeza, no futuro terei mais histórias pra contar... Sei que a partir do momento que o empenho, a garra e a força de vontade são lideradas por uma palavra mágica chamada perseverança, conseguimos transpor barreiras e criar uma força (inexplicável) capaz de romper aquilo que tememos tanto e ver o produto dessa nossa longa jornada. Olhar para trás e ver o resultado da difícil caminhada até a universidade depois de tanta luta é realmente algo que fica praticamente impossível descrever usando apenas palavras. Consegui concretizar um grande sonho, ou pelo menos boa parte dele; os nossos sonhos tornam-se reais se nos empenharmos a buscá-los, não importa o quão longe aparentam estar, é possível obtê-los se subirmos degrau por degrau. 84 Caminhadas de universitários de origem popular Minha história Roberta Alexandra Silva de Oliveira* Meu “corpo” nasceu em 1981, digo isso pois acho que eu senti que nasci em 1996, quando tinha 16 anos, já que foi com essa idade que descobri a felicidade, porque até então fazia tudo que os “outros” queriam. Tive uma infância, se é que tive, muito perturbada; fui criada em um colégio interno, convivia com muitas crianças que estavam nas mesmas condições que eu, só com uma diferença: nem nos fins de semana eu via a minha mãe ou sequer algum parente ia me visitar. A minha mãe só ía me buscar nos feriados, pelo que me lembro. Se eu ficar contando muitos detalhes, talvez o leitor fique cansado da mesma forma como eu fico quando estou lendo um livro que fica enrolado para terminar, então, vou contar como foi minha fase na escola e alguns fatos que marcaram a minha vida. Lembro-me de um fato muito importante: eu tinha mais ou menos 7 anos quando minha mãe me tirou do colégio. Já tinha me acostumado e com o tempo senti muita falta, pois lá estudava e tinha muitos amigos. Bem, naquele momento fiquei muito feliz, porém não era para ela cuidar de mim, mas para eu cuidar do meu irmão que havia nascido. Foi nesse momento que descobri que tinha um irmão. Como tive que cuidar do meu irmão, só comecei a estudar aos 8 anos, graças aos vizinhos que falavam para a minha mãe que eu precisava. Então, entrei na Escola Estadual Aprígio de Oliveira. Dos 8 anos aos 16, tive tempos difíceis. Vivíamos mudando de casa, pois, em 1990, ocorreu a “crise econômica no governo Collor” e o pouco que tínhamos, a poupança que minha mãe tinha guardado para comprar um lote, foi confiscada. Comecei a trabalhar cedo; isso foi uma das coisas boas que me aconteceu, pois comecei a conhecer pessoas que davam bons conselhos. Em 1997, recebi a notícia que considero umas das mais importantes: tinha passado no vestibulinho para a Escola Técnica Estadual Presidente Vargas, do Centro Paula Souza. Para mim, esse resultado foi uma expectativa de mudança de vida: “Até que enfim vou ter uma profissão que me ajudará a crescer”. Por isso digo que nasci em 1996: (aproximadamente em dezembro): foi quando prestei o vestibulinho. Em 2000, passados quatro anos, me formei técnica em edificações, porém sem serviço fixo. “Doce ilusão! Pensei que ia conseguir progredir financeiramente e no entanto continuava na mesma”. Trabalhava de desenhista de dia e a noite de babá. * Graduando em Matemática pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 85 Grandes pessoas que conheci me influenciaram a fazer um cursinho e prestar vestibular em universidade pública, pois jamais havia pensado em fazer faculdade, já que nunca teria condições de pagar uma faculdade privada e me achava incapaz de passar em uma pública. Fiz três anos de curso pré-vestibular no Cursinho da Poli1, sendo que no primeiro ano pagava as mensalidades com meu salário e, no segundo e terceiro, consegui uma bolsa integral, pois trabalhava lá. Passei em matemática na Unesp, campus de Presidente Prudente. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Porém, estudei somente dois anos. Neste período, morei em uma república de estudantes e meu irmão enviava dinheiro para me ajudar. Tínhamos combinado que eu me formaria primeiro, com sua ajuda, e, depois de formada, eu o ajudaria a estudar também. No entanto, ele decidiu entrar na universidade em 2005. Como a Unesp não oferecia auxílio suficiente para alunos, eu não teria mais como me manter lá. Houve um período de greve dos professores e alunos; no retorno, reprovei em três disciplinas. Graças a Deus, sempre tive pessoas que iluminavam meus caminhos, pois, sempre que estava chegando no “fundo do poço”, me ajudavam. Muitas vezes pensei até em me matar, pois eram tantas as dificuldades e cobranças que pensava que seria melhor morrer. Não posso esquecer de dizer que as amizades que fiz em Prudente são até hoje muito especiais para mim, pois são amizades para toda vida. Até que, quando ia largar tudo, uma amiga me falou que a UFSCar ia abrir vagas remanescentes para transferência e daria para eu tentar. Interessei-me, pois a UFSCar é mais próxima da minha casa e oferece auxílio para os estudantes de origem popular. Em 2006, começo a estudar na UFSCar... daqui pra frente, não sei como as coisas irão ser, a única coisa que sei é que Deus me deu e está me dando a oportunidade de lutar e correr atrás dos meus objetivos, por isso, espero terminar o curso e prosseguir meus estudos e ajudar as pessoas que estão passando pelas mesmas dificuldades que passei e mostrar que é possível alcançar seu objetivos quando se luta e se faz o possível e o impossível para conseguir. 1 Escola Politécnica da USP. O Cursinho da Poli-USP, do Grêmio Politécnico, é um curso pré-universitário popular com sede na Cidade Universitária – Capital. O Cursinho da Poli nasceu em 1987 por iniciativa do então diretor da Escola Politécnica, Prof. Décio Leal de Zagótis, e do Grêmio Politécnico com o intuito de ser um cursinho diferenciado, gratuito, voltado para a inclusão social, formação crítica dos estudantes e democratização do acesso à universidade pública. Desde 2005, o Grêmio Politécnico e o Movimento pelo Resgate do Cursinho da Poli vêm travando uma batalha jurídica para retomarem o Cursinho da Poli, que, segundo informado no site, fora expropriado do Grêmio Politécnico por um grupo de ex-diretores da entidade. Estes, ao invés de darem continuidade ao caráter social do Cursinho da Poli, teriam o transformado num projeto lucrativo, mais preocupado com as demandas do mercado do que com a inclusão social. Em 2007, o cursinho da Poli abriu inscrições para o preenchimento de 100 vagas. Não há cobrança mensalidade dos alunos. [informações do site http://gremio.poli.usp.br, em 05 jan 2007]. 86 Caminhadas de universitários de origem popular Apenas mais um brasileiro Paulo Rogério de Oliveira* Vou contar a história de Severino. Talvez porque a história de Severino seja bonita. Talvez porque a história seja semelhante e ao mesmo tempo diferente da de muitos de nós. Severino nasceu em 1980 e, como a maioria dos brasileiros, nasceu em berço pobre. Era filho de pai aposentado por ter perdido as pernas após ser atropelado por um trem. O pai não desanimou e virou alfaiate para sustentar a família. A mãe era doméstica e batalhadora, assim como o pai. Severino era o penúltimo de nove filhos. A cama era dividida com outro irmão. Aliás, cada cama era dividida por dois irmãos. Na escola, morria de vergonha de dizer que não tinha dinheiro para material escolar, de dizer que não tomava leite, que não comia carne. Contudo, sonhar era característica marcante da família. O pai tinha feito até a quarta série do fundamental, porém a vida lhe ensinou muitas coisas. Entre elas que deveria fazer de tudo para que seus filhos estudassem. Com esta visão do pai, o irmão mais velho se destacou na escola e a mudança de destino parecia próxima. Após se dedicar aos estudos, entrou na UNICAMP, universidade pública de renome. Severino não tinha nem idéia do que era universidade. Só sabia que era bom, mas, para que servia, não. Como toda criança, Severino fazia da vida uma brincadeira. Brincava de futebol, bolinhas-de-gude, pega-pega. O irmão de Severino se formou na universidade e junto com outro irmão, que tinha ido para a “cidade grande” havia pouco tempo, levou a família para a cidade de Campinas propiciando uma nova vida para todos. Este irmão, pelo qual Severino tem grande admiração, apoiou a todos que queriam estudar, trabalhar, enfim, fazer mudar sua realidade. Com a ajuda desse irmão, nosso personagem estudou. Terminou o colegial e ao mesmo tempo fez curso técnico. Passou a trabalhar, a crescer... Problemas na estrutura familiar, drogas na família, amigos que seguiram caminhos considerados errados. Tudo isso contribuiu para a formação do homem Severino. Como uma novela, a história de Severino sempre tem uma emoção nova. Aos 18 anos, ele leva o pai para ao hospital. O pai tinha febre. Mal sabiam Severino e seu pai que aquilo era o resultado de um princípio de pneumonia, que, contando com a fragilidade que a idade * Graduando em Terapia Ocupacional pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 87 conferia ao pai, foi implacável. Aos dezoito anos, pela primeira vez sentiu a perda de alguém de quem gostava. Alguém próximo e querido. A vida continua. Trabalhando como técnico em telecomunicações, descobriu que queria fazer o curso de Terapia Ocupacional. Era o ano de 2000. Novamente o destino parece jogar contra. Desistiu da idéia de fazer curso pré-vestibular e prestar o vestibular por um tempo, pois agora era a mãe que estava doente. Alterações de comportamento, feridas no corpo, inchaço. Passou-se um ano e não se descobria o que causava este transtorno. A irmã do meio, que era a acompanhante fiel da mãe, precisou brigar com os médicos para que estes parassem simplesmente de dar remédios para dor e sim, buscassem o motivo da mãe estar com dor. Finalmente, após quase um ano de idas e vindas e de brigar no hospital, saiu o diagnóstico: Hepatite C. O estágio da doença era avançado e o fígado da mãe de Severino estava em mau estado. Começou agora um luta contra um mal que não dependia só da família de nosso personagem. Era necessário um transplante de fígado e a tentativa, agora, era de manter a saúde da mãe de Severino estável até que aparecesse um doador. A família de Severino decidiu aproveitar a companhia da mãe. Após fazer valer a pena todos os momentos que passaram juntos. Após quase um ano de guerra contra a doença e de espera por doador de fígado. Após várias noites vendo sua mãe chorar. Após quase um ano de medos e incertezas a mãe também se foi. Era setembro de 2002, mesmo mês em que o pai morreu, três anos antes. A família perde seu segundo pilar fundamental e agora todos esperam quem vai ser o primeiro a sair de casa. Não tinha mais os dois pilares que reúnem a família e a mantêm unida sob o mesmo teto. Tentando se adaptar à nova realidade, todos procuram agora uma nova motivação para continuar tocando suas vidas. Um dos irmãos de Severino passa a incentivá-lo a fazer curso pré-vestibular e, enfim, tentar o curso de Terapia Ocupacional. Com o apoio dos irmãos, mesmo dormindo em meio às aulas no cursinho, Severino vai em frente e presta o vestibular para entrar na universidade. O que você, que está lendo esta história agora, imagina que aconteceu? Severino estudou em escola pública, tem uma história de vida nada fácil, trabalhava e estudava... Quais chances ele teria? Ele teria alguma chance? Provavelmente você pense que deu tudo errado, que ele não teria chances. Como disse, a desesperança não fazia parte da vida da família de Severino. Hoje, Severino, no terceiro ano de Terapia Ocupacional, em uma universidade pública e gratuita, de renome, escreve esta história. O objetivo não é fazer o leitor sentir dó e sim mostrar que as coisas são possíveis se quisermos. Podemos ficar lamentando nossa vida ou usar nossa história em nosso favor. Depende da gente. Por mais difícil que pareça é possível. O Severino que aqui escreve é prova disso... 88 Caminhadas de universitários de origem popular Memorial Sérgio Ricardo do Nascimento Neto* Aquela pernambucana veio ainda recém-nascida, já que com a morte da mãe durante o parto e a falta de recursos do pai para criá-la, fora entregue a uma amiga da família que viria para São Paulo. Sua infância foi extremamente sofrida, trabalhando desde os cinco anos de idade, foi privada da oportunidade de estudar e por muitas vezes vitimada pelo preconceito e violência física daquela que a adotou. Aquele pernambucano veio de uma família tipicamente nordestina na década de 1960, com índice de natalidade elevado e pobreza. Como um dos irmãos mais velhos, teve que trabalhar desde pequeno para ajudar no sustento dos demais. Como outras milhares de famílias flageladas pela pobreza, a sua veio buscar uma vida mais digna no Sudeste, quando ele tinha dezoito anos. O encontro deles não demorou a acontecer; e daquela amizade brotou um relacionamento. A vinda daquelas famílias para São Paulo, mesmo objetivando uma vida com condições mais dignas, não teve os resultados esperados. O casamento já começou com sérios problemas financeiros e uma casa muito humilde, reflexo da crise social da época e do baixo índice de escolaridade. Algum tempo depois, em 1983, nascia o ser que vos fala. Com mais uma pessoa em casa, de certo a situação econômica não melhorou a curto prazo. Quando, ele pedreiro e ela doméstica, já não conseguiam mais arcar com o aluguel e com as contas do mês, surgiu a “Vó Teresa”. Ela ofereceu sua casa de praia para que fôssemos caseiros em longínquos 1988. Essa senhora fora a avó que me havia faltado até então. Carinho, segurança, afeto e comidinhas gostosas foram coisas que não imaginava que uma avó seria capaz de nos dar. Foi ela também quem conscientizou minha mãe sobre a importância da educação para o futuro do seu mais novo neto. Essa pessoa maravilhosa não demorou muito a nos deixar, falecendo em 1991. Certamente, um dos momentos mais tristes da minha vida. Porém, sua lição foi seguida religiosamente, e por mais difíceis que fossem as situações financeira e social da família, minha mãe nunca me privou do direito de estudar, além de não permitir que eu trabalhasse. Com o passar do tempo, os problemas de alcoolismo do meu pai foram se agravando. Não foi nada fácil ver aquele habilidoso mestre de obras caindo em desgraça por causa do álcool, e sua saída de casa acabou encerrando um ciclo na minha vida, quando forçadamente teria que amadurecer. * Graduando em Engenharia Civil pela UFSCar. Universidade Federal de São Carlos 89 A superação desse trauma levou um bom tempo, e aos 15 anos de idade eu já me via com obrigações de um chefe de família; gerir rendimentos e contas, manutenção de casa, planejar um futuro melhor e sustentar psicologicamente aquela mãe maravilhosa eram meus deveres. Para um garoto nessa idade, não é nada fácil ver os amigos se divertindo e muitas vezes não acompanhá-los. Até então não havia nada mais importante que o futebol no “campinho”, as brincadeiras de “esconder”, que por infinitas vezes invadiram as madrugadas, os campeonatos de videogame e o “bets” (você sabe o que é isso?). Aos poucos, as responsabilidades foram chegando e fui virando um mero expectador da melhor época de nossas vidas. Dói saber que aquele campinho já deu lugar a um prédio, que já não é mais seguro brincar à noite e que a maioria dos nossos “sucessores no paraíso” já não sabe o que é “bets”... O sonho de fazer faculdade, que estava adormecido pelas dificuldades, foi reavivado pelo professor Ênio, que lecionava História, um grande amigo do Ensino Médio. Este grande sujeito mudou a mentalidade dos alunos daquela escola, mostrando-nos que a má qualidade do ensino público não era desculpa para que não lutássemos por uma vaga numa universidade de qualidade. E assim foi, vários dos seus alunos formandos de 2001 conseguiram ingressar em boas faculdades. Mais do que essa conscientização relativa ao vestibular, o Ênio trouxe cultura à escola... visitas a museus, exposições e feiras culturais eram eventos que não constavam no calendário acadêmico, e com os quais começávamos a descobrir um novo mundo... mais do que um mestre, foi, e é, um grande amigo que certamente estará na minha formatura! Escolhido o destino (a paixão pela engenharia), faltava agora o caminho a percorrer. E para um aluno da escola pública paulista esse não seria nada curto e tranqüilo. A Escola Estadual Benedito Calixto foi minha segunda casa do Ensino Fundamental ao Médio. Fomos a última turma que cumpriu todos os ciclos lá, e acabamos sendo vítimas e testemunhas oculares da decadência daquela que fora a melhor escola da cidade por quarenta anos. O fim do Ensino Médio e o início da odisséia rumo à universidade coincidiram com o nascimento da pequena Vitória, em 2002. Com isso, o dinheiro que estava reservado para o curso pré-vestibular fora gasto com a saúde da minha irmã. Naquele ano, estudei por conta própria, com livros retirados da escola, na ilusão de que aquilo seria suficiente para passar no vestibular. Triste engano... reprovação no vestibular da UFSCar, único cuja inscrição tive recursos para pagar, e o que mais desejava. Reconhecendo o meu esforço, em 2003 os filhos de “Vovó Teresa” financiaram um cursinho particular. Não os decepcionei e fui aprovado na UNIFEI e UFRGS1, em Engenharia Elétrica. Mas o grande sonho era a UFSCar, e mais uma vez não conseguira. Conforma- 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul/RS. A história da UFRGS começa com a fundação da Escola de Farmácia e Química, em 1895 e, em seguida, da Escola de Engenharia. Assim iniciava, também, a educação superior no Rio Grande do Sul. Ainda no século XIX, foram fundadas a Faculdade de Medicina de Porto Alegre e a Faculdade de Direito em 1900. Mas somente em 28 de novembro de 1934, foi criada a Universidade de Porto Alegre. O terceiro grande momento de transformação dessa Universidade foi em 1947, quando passou a ser denominada Universidade do Rio Grande do Sul, a URGS, incorporando as Faculdades de Direito e de Odontologia de Pelotas e a Faculdade de Farmácia de Santa Maria. Posteriormente, essas unidades foram desincorporadas da URGS, com a criação, da Universidade de Pelotas e da Universidade Federal de Santa Maria. Em dezembro de 1950, a Universidade foi federalizada, passando à esfera administrativa da União. [informações do site http://www.ufrgs.br, em 06 jan 2007] 90 Caminhadas de universitários de origem popular do, fui para Itajubá. Por bem ou por mal, não me contentei com um sonho pela metade e a decepção pelo fracasso em São Carlos me causou depressão, e, no fim do primeiro semestre de 2004, voltei para casa sem uma decisão sobre o que faria da vida a partir de então. Minha mãe, como sempre, não me deixou desistir... e mais uma vez de volta ao cursinho, só que agora com recursos próprios e mensalidade subsidiada pelo proprietário em troca de aulas de reforço aos demais alunos. Não havia tempo a perder, afinal já era junho de 2004, portanto, chegava a estudar 18 horas por dia. Eu e mais três amigos da época do colégio formávamos um grupo de estudos diariamente. A ajuda e o companheirismo destes foram tão importantes quanto as aulas do cursinho. E a nossa vitória só seria completa se todos alcançassem seus objetivos, e de fato foi o que aconteceu. Enfim, consegui passar no vestibular da UFSCar e nas outras três públicas do Estado... junto com a alegria veio um sentimento de dever cumprido, afinal foram inúmeras as dificuldades e coisas de que tive que abrir mão para poder alcançar esse sonho... certamente poucas são as pessoas que cruzam aquela portaria todos os dias e sentem o que sinto... Os três anos que separam o fim do Ensino Médio do ingresso na UFSCar não representam um hiato na minha vida. Pelo contrário, com uma família estabilizada, pude pela primeira vez pensar em mim, na minha evolução pessoal, concretizei certos valores e ganhei uma irmã. Esta é a pessoa mais importante da minha vida, que vi nascer e por quem o coração fica apertado quando diz: “– Di, estou com saudades...” ...nossos encontros sempre são regados com salada de morango, uma outra paixão desses dois irmãos. Ah, a “Tia Lúcia”... um outro anjo na minha vida... há pessoas que vêm ao mundo para cuidar de outras... e com certeza essa pessoa tão especial veio proteger minha família. Tenho orgulho em dizer que ela representa para minha irmã o que “Vovó Teresa” fora para mim. Ela é uma das pessoas “culpadas” por hoje eu estar aqui, não só financeiramente, mas também afetivamente, pois esteve ao nosso lado nos momentos mais difíceis. O caminho foi árduo até aqui, e certamente será mais ainda a cada dia... cansaço, saudade, escassez de recursos são tão pequenos frente ao que aquela Maria passou na vida, que se não fosse por desejo, eu teria que continuar por gratidão a ela nessa peleja. E por que Engenharia Civil? Por culpa do Sérgio pai... sim, desde garoto o acompanhava em seus trabalhos e via extasiado o que aquele homem, sem nenhum diploma, era capaz de fazer. Uma das melhores sensações deste período da vida são as “visitas” àquela casa de “Vovó Teresa”, onde minha família ainda mora... imagino que ela esteja feliz, afinal a semente que plantou já está dando frutos. Voltar para casa também traz tristezas ao ver que aqueles velhos amigos pararam no tempo e alguns, infelizmente, foram parados pelo mesmo... Este sonho não acaba aqui e, de fato, talvez nunca acabe... no mínimo, ainda preciso pendurar meu Diploma na sala da casa que eu vou construir para a Dona Maria e fazer por alguém o que “Vovó Teresa” fez por mim... Universidade Federal de São Carlos 91 Driblando adversidades Sinvaldo Martins de Souza* Três meses se passaram desde o início das atividades no Conexões de Saberes. Tão pouco tempo nessa caminhada e bastantes frutos já colhidos, outros ainda por colher. Responsabilidade, respeito, liderança e reconhecimento são alguns desses frutos. Dentro deste programa de dimensões nacionais, no nosso Conexões existem duas vertentes que guiam os trabalhos, uma mais formal: reuniões para decisões administrativas, por exemplo, aquelas em que debatemos o que foi feito; como, quando e onde serão os próximos trabalhos, etc.. A outra, menos formal, mas de igual importância e valor para o bom desenvolvimento do programa como um todo, se intitula: Caminhadas, A história da vida como releitura da realidade, ou simplesmente “Caminhadas”. Dia de “Caminhadas” é dia de alegrias, de risos, de histórias e reflexões; não que os outros não sejam, mas no “Caminhadas” é diferente, o clima, a energia que circula é outra. Já entrevistamos, pesquisamos, confeccionamos cartazes e brincamos, isso! Brincadeira de criança mesmo! Pular corda, “amarelinha”, “queimada”, pique-bandeira e outras mais. Agora a tarefa é: Contar um pouco da nossa trajetória de vida, utilizando para tanto fotografias como recurso principal. É 1985, este é o ano, momento importante da história brasileira. Neste ano começam a surgir os primeiros resultados do Movimento Diretas Já. O povo está eufórico, o Brasil está prestes a sair de um dos episódios mais escuros da sua história. Enquanto isso, no interior mineiro, na região do Vale do Jequitinhonha, numa cidadezinha inexistente nos mapas da época nasciam os dois últimos integrantes da prole de um casal de lavradores, Cecílio e Valdina, que agora passaria a somar nove pessoas no total. Nasci numa cidade, mas durante sete anos o meu lar foi na zona rural. Foram tempos difíceis, porém muito felizes. Fazenda Santa Rosa, esse era o nome do lugar onde eu morava. Distante de tudo e de todos, um lugar encantador com seus córregos de água cristalina e boqueirões de densa mata, um lugar de muitas estórias e mistérios, habitada por gente simples e encantadora. Hoje, infelizmente a fazenda está desmembrada e cercada de arames por todos os lados, mas aquela é a Santa Rosa que guardo no fundo de minha memória, os parentes todos reunidos e felizes por fazerem parte daquele lugar, as brincadeiras, enfim, momentos de plena felicidade e contentamento. Por época de minha estréia neste mundo, minha mãe apresentava cerca de quarenta e dois anos e o meu pai já havia presenciado aproximadamente cinco décadas de intensos verões. Não sei se foi por causa da idade avançada de meus genitores ou algo do gênero, eu e o Silvano, meu irmão gêmeo, tínhamos uma saúde um tanto debilitada. Devido à falta de * Graduando em Matemática pela UFSCar. 92 Caminhadas de universitários de origem popular médicos e um sistema de saúde ineficaz, inúmeras vezes meus pais tiveram de sair conosco às pressas para a cidade em busca de tratamento e medicamentos. Como diz a minha mãe, graças a Deus, muitas promessas, e mingau de puba (uma espécie de polvilho, de mandioca, mais grosso e com mais fibras), escapamos. Como havia de ser, a vida continuou. Meus pais e irmãos trabalhavam na roça; eu, meu irmão e alguns amigos aproveitávamos a fase de infância; brincar de fazer bichinhos de barro e tomar banho no córrego era a melhor parte. Enquanto os outros trabalhavam, alguém ficava em casa para cuidar da comida, geralmente minha avó Maurícia ou “Mãezinha”, como carinhosamente a chamávamos, e minhas irmãs mais novas. Naquele tempo, mistura e arroz eram coisas pouco presentes em casa, no entanto isso não deixava a comida menos gostosa, pois na roça sempre se dá um jeitinho; outra coisa é que, quando se está com vontade de comer mesmo, uma simples farofa de feijão e um cortado de mamão verde é o melhor prato do mundo. Neuza e Idalice, apesar de muito novas, já eram responsáveis por preparar o almoço para aqueles que viriam comer e levar a comida para o restante que estava trabalhando. O momento do almoço era sempre bom, na hora de machucar o feijão (depois de cozido, bate-se com um pilão pequeno, no caldeirão, quebrando os grãos), eu e Silvano ficávamos por perto, espiando, esperando o bolinho (de feijão machucado) que elas sempre nos davam. Como em toda família, na minha havia uma pessoa responsável por zelar por todos. Minha avó era a matriarca, já de idade avançada era a responsável por nos cuidar, na verdade era uma coisa mútua, ela dava carinho, atenção e alguns sermões também; ela cuidava da gente e nós dela. Grande chefe foi essa vó, por longos anos ela substituiu meu avô, que, segundo ela contava, quando minha mãe ainda era criança saiu de casa e não se sabe o porquê, nunca mais voltou. Mesmo assim ela permaneceu forte, criou sozinha minha mãe e com a pequena aposentadoria que recebia ajudou a criar e educar nove netos. Com o passar do tempo, meus irmãos cresceram, e mesmo com pouca ou nenhuma instrução saíram para o mundo, em busca de trabalho; a casa ia ficando cada vez mais vazia, a última a sair tinha apenas quinze anos. Como era bom ver a casa cheia, como eram boas as brincadeiras, as brigas e as histórias de meter medo que eles contavam para ficarmos quietos ou irmos dormir. Irmos à cidade era coisa rara, incontáveis vezes chorei por causa disso. Sexta-feira era o dia em que se começavam os preparos para ir à feira: procurar os animais de carga e prendê-los durante o dia e de noite arrumar a carga de goma, milho, feijão ou farinha de mandioca feita durante a semana, para, no sábado de madrugada, antes do sol aparecer, partir rumo à cidade para vender as coisas e trazer óleo, açúcar, arroz, sal e, caso sobrasse algum dinheiro, chinelo ou camisa. Sábado à tarde era sempre um momento de grande expectativa, será que teria algum brinquedo ou presente? Quais as novidades da cidade? Se algum de nós (crianças) fosse, era obrigação contar para os outros os mínimos detalhes da viagem. Se após o retorno notássemos algum embrulho diferente, a curiosidade e a expectativa aumentavam mais ainda. Quando havia alguma coisa, era uma alegria tremenda, caso contrário, ficávamos emburrados, fazíamos pirraça e íamos dormir mais cedo. No outro dia, já havíamos esquecido tudo e retornávamos à arte de brincar. O tempo estava passando, a cada dia as preocupações aumentavam, não as minhas, mesmo porque isso ainda não era da minha alçada; mas era dos meus pais, especialmente da minha mãe. Universidade Federal de São Carlos 93 Em 1992, completaríamos em junho sete anos. Era chegada a hora de ir para a escola, contudo esse não era o único problema que atormentava os adultos. Naquela época, não existia nenhuma instituição de ensino onde morávamos. Talvez por sermos os últimos, minha mãe se preocupava mais e tinha consciência de que, diferentemente dos outros, teríamos de estudar. Uma grande ruptura estava por acontecer, precisaríamos ir para a cidade, enquanto as questões iam e voltavam: Onde morar? Como conseguir o sustento, o dinheiro do material escolar? Então, inevitavelmente, mais uma vez a família foi dividida, eu, meu irmão, e nossa mãe fomos para a zona urbana, enquanto meu pai e minha avó ficaram no campo. A princípio íamos e voltávamos todos os dias. Conforme nos acostumávamos, essa jornada se tornava menos freqüente. Mãe começou a trabalhar, na meia (divisão da colheita, metade para o proprietário da terra, metade para o trabalhador), numa fazenda em torno da cidade. Nesse meio tempo, meus irmãos se juntaram e compraram uma casinha para ela e meu pai, o qual ia sempre aos finais de semana levar algumas coisas para vender na feira. Meu primeiro dia de aula foi um misto de vergonha, ansiedade e medo, sempre dava aquele friozinho na barriga, coisas típicas que precedem qualquer experiência nova. Uma fronha de travesseiro amarelo-mostarda funcionou como nossa primeira bolsa para levar o material, eu segurava numa ponta, meu irmão na outra e lá íamos para a escola. Morríamos de vergonha. Tudo era diferente, havia muito barulho, a professora falava alto, não via a hora de ir pra casa. Nessa fase, conheci aqueles que viriam a ser os meus melhores amigos, amigos de infância. Com eles, aprendi a jogar futebol, andar de bicicleta, bastão e tantas outras coisas. Mas também tive minhas primeiras brigas fora de casa. Cada série que se iniciava era um friozinho na barriga, o maior deles ocorreu quando me disseram que na quinta série teríamos no mínimo cinco professores diferentes. Muita coisa se transformou nesses cinco anos que se passaram, minha avó veio morar conosco e um outro irmão voltara de São Paulo para morar conosco também. Mãezinha teve um derrame cerebral e ficou paralítica, e meu irmão que voltara de São Paulo estava tendo problemas relacionados ao álcool. Para piorar, meus pais que bebiam um pouco começaram a exagerar nas doses. Em alguns dias, a situação ficava insuportável, minha vontade era a de ficar mais na rua e com os amigos que em casa. A falta de paciência de minha mãe para com a minha avó e a de meu pai para com o meu irmão e a pouca comida em casa tornavam o clima pesado, tudo isso me incomodava muito. Apesar de tudo, em nenhum instante eles deixaram de cumprir as obrigações como pais de família. Aos poucos, as coisas voltaram ao normal, reconheciam que essa situação não era nada saudável para uma boa convivência familiar, minha mãe conseguiu reconhecer a sua responsabilidade e novo desafio de cuidar da minha avó. Pai ainda não chegou a esse nível, mas está tentando. Passadas essas turbulências, as coisas corriam bem até que, em junho de 1998, numa manhã após festas juninas, acordo com minha mãe chorando muito e várias pessoas em casa, logo fiquei sabendo que Mãezinha amanhecera muito mal. Entre uma conversa e outra, ouço meu pai dizendo que desta, provavelmente, ela não passaria. Na manhã do dia seguinte, veio a notícia: ela havia falecido. Considero esta como uma das situações mais tristes já vivenciadas em toda a minha história, um vazio inefável tomou conta de meu ser e, mais tarde, da casa por inteiro. Um ano depois a dor continuava, hoje ainda existe uma lacuna causada por esta imensa perda que o tempo tornou suportável. 94 Caminhadas de universitários de origem popular Entre altos e baixos a vida continuou. Em 2001, iniciei o ensino médio, em questão de três anos terminaria os estudos. Nesse intervalo de tempo, a preocupação de minha mãe já era visível, ela previa e temia este momento, pois sabia que um lugar com poucas oportunidades como era Fronteira dos Vales não nos seguraria por muito tempo. Eu também me preocupava bastante, no último ano levava horas para dormir, pensando em que fazer após o término dos estudos, ir ou não embora, deixar meus pais sozinhos. A parte emocional falava alto, mas obedeci à razão, ela me dizia que, apesar de todas as variáveis, o melhor seria partir. Acabados os estudos, surgiu uma oportunidade. Meu pai precisaria fazer alguns tratamentos em São Paulo, eu logo me ofereci pra ser o seu acompanhante. Foi fácil convencê-los, pois ele não sabe ler nem escrever. Ficou combinado assim; aliás, eu combinei comigo mesmo, se surgisse alguma coisa, ou seja, um emprego, eu ficaria, caso contrário, não. Acabei quebrando este contrato. Em 2004, chegamos a São Paulo. Um mês depois, pai estava voltando sem a minha presença. Instalei-me na casa de uma irmã e imediatamente comecei a procurar por emprego. Saía pelo menos duas vezes por semana nessa busca, com uma pasta debaixo do braço e a esperança de conseguir ao menos uma entrevista, o que dificilmente ocorria. Caminhava o dia todo. No final da tarde, voltava para casa exaurido, o pouco dinheiro que eu conseguia no trabalho informal guardava para necessidades urgentes, por este motivo não gastava com transporte. Eu me sentia super desconfortável por depender de outros ainda que fosse de parentes. Então tomei uma sábia decisão; voltar a estudar. Sem condições de pagar um curso prévestibular, comecei a estudar por conta própria com o pouco material que eu trouxe e outros emprestados. Minha rotina era procurar trabalho durante o dia e à noite estudar. Meses se passaram até eu conseguir me inscrever para participar de um curso pré-vestibular popular, do MSU, Movimento dos Sem Universidade. No cursinho, as aulas funcionavam sábado o dia todo e domingo de manhã. Final de 2005 foi um período de atividade intensa, finalmente consegui emprego em uma lanchonete. Estava feliz da vida, a remuneração era pouca, mas, com as latinhas de refrigerante que eu levava e vendia, dava pra tirar um dinheirinho. Ia para o serviço, chegava meia-noite, estudava até as 3h da manhã, acordava às 8h, estudava até as 3h da tarde, depois ia trabalhar novamente. Uma rotina inalterada de segunda a segunda. Os vestibulares chegaram, como havia prometido pra mim mesmo, prestei somente para as universidades onde consegui isenção da taxa, ainda que sem muita confiança. Dos quatro vestibulares, consegui passar em um, justamente naquele que mais desejava, o vestibular da Universidade Federal de São Carlos. Vi o resultado na Internet, num telecentro de São Paulo. Mesmo sendo uma sexta-feira chuvosa, não hesitei, subi um escadão correndo e cantando. Cheguei em casa ofegante e todo molhado. Dei a boa notícia, mas não acreditaram muito. Imediatamente, comecei a arrumar as malas e a montar os planos, só assim a “ficha caiu”, a minha e deles, assim, todos se convenceram do que eu disse. No dia da matrícula, vim “de mala e cuia”, dessa maneira cheguei à Universidade e no Conexões. Ano de 2006, há dois anos e meio estou longe de casa, mal posso esperar para voltar e rever todo mundo. Mãe, Pai e os amigos, sentir como é bom estar novamente em minha pequena, maravilhosa e aconchegante Fronteira dos Vales-MG. Universidade Federal de São Carlos 95 Uma senhora história Symone Mattos Cremonini* Bom, vou contar a história de Symone, uma garota que desde pequena, sempre teve que ser muito independente pela ausência dos pais. Eles nem eram casados e ela nasceu em São Paulo, Capital, onde moravam na época. Depois de três anos, pela primeira vez, foi madrinha de honra, mas foi de seus pais, que haviam resolvido se casar. Seus pais sempre trabalhavam muito, e como não tinha quem tomasse conta dela, ficava todas as tardes sozinha no apartamento com apenas 5 anos. Quando ela tinha 6 anos, sua mãe engravidou de seu irmão e logo houve a morte de seu avô. Seu pai, inconformado, resolveu se mudar com a família para a cidade de Santa Cruz do Rio PardoSP, para a revolta de Symone, que nunca concordou, pois achava que ele deveria se preocupar com o futuro de seus filhos, mas ele queria ficar mais perto da avó, que agora estava sozinha. Nada mudou para Symone, pois sua mãe teve que correr atrás do tempo perdido, estudar, trabalhar, e seu pai, exercendo a função de militar e açougueiro, e ambos ficando fora o dia todo. Como ainda tinha irmãozinho (Ricardo), era ela própria que cuidava da casa, com apenas 7 anos. Mas sempre Symone e o irmão ficavam na casa de sua avó, que os deixava livres para brincar o dia todo na rua, de pega-pega, esconde-esconde, vôlei etc.; e como toda avó adora fazer todos os gostos dos netos, ela fazia muito bolo de chocolate, brigadeiro, lasanha, nhoque para que eles não sentissem tanto a falta dos pais. E assim foram crescendo, vendo cada dia mais seus pais se endividarem, cada vez mais contas para pagar, menos comida dentro de casa e muito menos lazer. No dia primeiro de janeiro de 1997, o pai de Symone enfartou, mesmo problema pelo qual havia perdido o avô. Foi um ano inteiro de muita luta, correria pela sobrevivência de seu pai. Depois de quatro pontes de safena e pai curado, devagar suas vidas foram retornando ao que era antes, mas com cuidados especiais para com ele. Symone sempre teve excelentes amigos que marcaram sua vida em Santa Cruz como Paulinha, Viviane, Rosilene e Eder, que estão presentes até hoje em sua vida. Symone estudou toda sua vida em escola pública, terminando o Ensino Médio e tendo a certeza de que teria que trabalhar para pagar um curso pré-vestibular para si, pois seus pais deviam para Bancos e para quase toda a cidade. Pois bem, ela trabalhou muito, foi explorada ganhando um salário baixo, mas fazendo de tudo para pagar o cursinho, e sua mãe sempre que podia a ajudava, enquanto seu pai nunca se importava e falava que Symone estava era perdendo tempo e que nunca conseguiria. Com a negatividade do pai, ela se sentiu muito * Graduanda em Matemática pela UFSCar. 96 Caminhadas de universitários de origem popular forte para mostrar que podia conseguir tudo o que ela queria, sem depender de ninguém a não ser dela mesma. Passou na FAFIJA1 em 2002 em Jacarezinho-PR, e lá foi começar a se envolver na matemática, ainda trabalhando para pagar as despesas de sua casa e ônibus que a levava todos os dias para a faculdade. Passados dois anos, seu pai começou a brigar demais dentro de casa, e era irritante sua presença. Por ele ter se aposentado por invalidez, devido ao infarto, ele estorvava a todos com sua intromissão, sempre querendo colocar todos para baixo e dizendo que seus filhos jamais seriam melhores que ele. Até que um dia, Symone saiu com seu namorado e amigos, e ela viu seu pai com outra mulher, com outra família, enquanto isso, sua mãe trabalhando para ajudá-lo a pagar as infinitas dívidas feitas. Foi aí que entenderam o porquê nada dentro da casa ia para frente, nunca conseguiram trocar o carro, nunca havia dinheiro, nunca havia muita fartura de comida. Foi uma imensa revolta e desencanto que sentiam todos da família de Symone pelo seu pai, enquanto que sua mãe quase entrou em depressão de tanto que chorava se sentindo culpada por tudo que havia ocorrido. Symone não agüentava mais, a faculdade fraca, o curso sendo oferecido somente como licenciatura e ela querendo se formar no bacharelado também; era explorada demais no trabalho, não sendo registrada em quatro anos de serviço; dentro de sua casa, tudo acontecendo e ela aconselhando sua mãe, e a própria nunca a escutando, achando que era culpada por todas as safadezas de seu marido. Symone não agüentava mais a falta de oportunidade e resolveu correr atrás de um futuro melhor, onde pudesse ser mais independente e cuidar de verdade de sua vida. Resolveu então correr atrás da transferência para a Universidade Federal de São Carlos no mesmo curso que já fazia e pelo qual havia se apaixonado, que é Matemática, e aquela era a única universidade dentro do Estado de São Paulo que oferecia a opção de bacharelado. Foi para São Carlos escondida de todos, pois em Santa Cruz todos eram contra, achando que Symone estaria perdendo tempo. Ela, muito confiante, foi do mesmo jeito levar documentos para participar do processo de seleção que ocorreria somente em dois dias. O único que apoiou foi seu amigo de infância, Eder, que sempre ajudou muito. Ele havia se mudado para lá e já estava fazendo o curso de Engenharia da Computação. Ela, tentando fazer tudo escondido, perdeu diversos ônibus, teve que ficar na rodoviária de Bauru a noite toda e pegar ônibus para Santa Cruz só no outro dia. Houve algumas brigas, quase um fim de namoro, mas logo os mal-entendidos foram esclarecidos, e tudo voltou ao normal, e agora era esperar três meses para o grande sonho se realizar. Até que um dia, na Internet, saiu o primeiro resultado e Symone não havia conseguido entrar, havendo somente uma pessoa à sua frente na lista, mas ainda haveria segunda chamada. Mas ela, sem esperança nenhuma, começou a chorar e ficar muito deprimida, pois todos seus sonhos, toda sua vida mudaria a partir do momento que mudasse de cidade e a situação dentro de sua casa cada vez mais insustentável, seu pai jogando em sua cara tudo o que ele havia dado, querendo que ela saísse de casa, querendo se livrar dela de qualquer forma, sendo que era seu pai o que menos contribuía dentro da casa deles, e Symone cada vez mais se endividando, pois se sentia na obrigação de ajudar sua mãe, que era quem mais sofria com tudo. 1 Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho-PR. Universidade Federal de São Carlos 97 Logo chegou o dia da segunda chamada e a “sem-esperança” olha na Internet e vê seu nome classificado na lista, ela havia passado, agora iria mudar para São Carlos; tudo seria como ela havia sonhado, programado; seriam novos problemas, mas que dependeriam dela e de mais ninguém. E agora, não haveria mais ninguém jogando nada em sua cara, agora, ela não iria mais morar em Santa Cruz, seria simplesmente uma visita. Hoje, Symone mora no alojamento da UFSCar, é bolsista no restaurante universitário e participa de um excelente programa chamado Conexões de Saberes, e, além de aprender muito dando aulas em cursinho, fazendo projetos de extensão e ganhando uma bolsa por seu trabalho, tornou-se totalmente independente, morando fora, tendo sua vida como sempre quis, cuidando de seus próprios problemas e da sua vida. E, tomando esse rumo, arrumou diversos amigos que sempre a ajudam muito: Edgar, Deizieli, Daniel (Véio) sempre foram excelentes amigos, motivadores e lutadores, e ela pode sempre contar com eles para tudo que precisa. O pai de Symone fica muito orgulhoso de ver seus filhos bem, pois Ricardo (irmão de Symone), hoje com 18 anos, faz o Curso de Farmácia em Curitiba no qual ele conseguiu ingressar pelo ProUni e está sendo independente como ela. Não que o pai tivesse contribuído estimulando-os, dando força e apoio, mas com a revolta que ele colocou em seus filhos para que fossem melhores que ele e dessem a vida que sua mãe sempre mereceu, melhor do que a que ele dava a ela. A mãe de Symone ficou feliz com o rumo que seus filhos tomaram, mas ao mesmo tempo se sente muito sozinha. Mesmo assim, ela continua sendo uma das mais incentivadoras e sonhadoras, sempre querendo o melhor para seus filhos e sempre ajudando muito. Essa história mostra que tudo é possível quando se quer alguma coisa e que tudo depende da gente; se não estamos felizes com algo, somente nós podemos mudar. Eu, Symone, sou muito feliz por tudo o que ocorreu, dou muito valor à minha vida e a tudo que conquistei e não vou desistir de lutar mesmo sabendo que haverá diversas dificuldades ainda por vir. E essa, para mim, é uma senhora história... 98 Caminhadas de universitários de origem popular Memorial Tiago Yamazaki Andrade* É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se a derrota, do que formar fila com os pobres de espírito que nem gozam muito nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota. Theodore Roosevelt1 Nasci em Jaboticabal, no dia 22 de março de 1984. Cresci junto aos meus pais, e avós que, muitas vezes, fizeram o papel de pai e mãe, cuidando de mim e de meus três irmãos enquanto meus pais trabalhavam. Aos dois anos de idade comecei ir à escola, acompanhando meus irmãos mais velhos, não queria ficar sozinho em casa. Naquela época não tinha maternal, então fiz o jardim e o pré precocemente. Quando terminamos o “prézinho” meus irmãos tiveram que mudar de escola, mas eu não pude, pois só tinha três anos. Depois não quis ir sozinho à escola, só com cinco anos eu voltei a estudar, fazendo novamente o jardim e a pré-escola. Durante minha infância tive vários amigos, brincava a tarde toda na rua com eles. Várias brincadeiras que dificilmente se vê as crianças de hoje em dia brincando. Não tive muitas regalias, mas meus pais sempre trabalharam para nos criar da melhor forma possível, abdicando muitas vezes dos seus sonhos em prol dos nossos. Eu os admiro eternamente. O ensino fundamental fiz inteiramente no SESI2, conheci outros amigos, mas hoje só mantenho contato com um, Breno, que já conhecia praticamente desde que nasci, pois nossos pais são amigos de longos tempos. Aos catorze anos comecei a trabalhar de cobrador de Tele-mensagens. Ia à escola de manhã e trabalhava a tarde toda. Em 1999 tive que mudar de escola para fazer o ensino médio. Foi o pior ano da minha vida. Não conhecia ninguém da sala e eles não fizeram questão de me conhecer também. Sentei na primeira carteira e quase não falava com ninguém, me julgaram como o CDF da turma, até os mais “nerds” não me curtiam. A maioria já estudava junto desde a primeira série, eu era um intruso na turma. No segundo colegial as coisas mudaram, sentei no meio da sala e comecei a trocar idéias com o pessoal, e eles viram que eu era uma pessoa simples, legal e amiga; foi nessa * Graduando em Ciências Biológicas pela UFSCar. http://www.fraseseternas.com.br/frases.asp?Theodore-Roosevelt 2 SESI - Serviço Social da Indústria 1 Universidade Federal de São Carlos 99 época que fiz minhas grandes amizades que tenho até hoje. Fizemos a melhor viajem da minha vida. Juntamos dinheiro durante o ano, vendemos rifa, e em outubro fomos pra Piúma - ES, ficamos uma semana na praia, curtindo o máximo. Hoje todos esses amigos estão estudando em cidades distantes. Em 2001 perdemos um grande amigo, Vinicius, que morreu num acidente de carro, com apenas dezoito anos de idade: foi chocante e marcou a vida de todos nós. Quando estava no terceiro colegial comecei a fazer o cursinho comunitário da UNESP, conheci meus grandes amigos, Vitor, Luiz, ambos atualmente em Londrina fazendo faculdade, também conheci grandes amigas como a Lú e Silvar, que me apoiaram em vários momentos da minha vida. Embora tenha pouco contato com meus amigos atualmente, tenho um carinho imenso por eles. Em 2002, consegui uma bolsa de estudo e fiz cursinho no Anglo, foi nessa época que conheci minha atual namorada, Fernanda, que já estudava veterinária numa universidade pública, o que fez aumentar ainda mais a vontade de entrar numa universidade. No meio do ano de 2003 passei em Ciências Biológicas nas Universidades Federais de Lavras e de Ouro Preto-MG. Fui para Ouro Preto, onde fique por um ano e meio. Foram os melhores anos da minha vida, aprendi muito na república estudantil. Morávamos em 17 na Republica Federal Unidos Por Acaso (UPA). Aprendi obedecer regras, hierarquia, consertar-me e mais um monte de coisas. Os trotes foram pesados, mas tinha toda uma tradição por traz disso. Tomei vários ventos (roupas jogadas por toda a parte) na minha batalha por uma vaga na UPA, muitas pingas, e além disso encontrei muitas vezes minha cama em cima da árvore ou sobre o ponto de ônibus. Eram mais três que batalhavam vagas comigo, Maguila, K-tinga, Beiçola e eu (Seborréia – esse era meu nome lá). Éramos uma família, cada um ajudava o outro. Embora morássemos com muitos, dificilmente acontecia algum rolo. Também tinha nossa mãe de Ouro Preto, a velha Dona Tereza, que trabalha na república há 20 anos, uma mãezonha mesmo. Em 2005 transferi-me para a Universidade Federal de São Carlos. De inicio fui morar numa república, foi uma droga, não me adaptei. Depois fui para o alojamento estudantil da Federal, daí as coisas mudaram. Encontrei o Bloco 36, depois de um período conturbado, as coisas foram ficando melhores e agente foi se dando super bem. Hoje somos como irmãos. Principalmente meus irmãos do “quarto C”, Corvo e Mineiro, que considero demais. Nos damos super bem. Meu prato preferido é panqueca. Não sei o por quê, mas é uma paixão incondicional! Lembro que desde criança ficava insistindo para minha mãe fazer essa maravilha quase todos os dias, porém, ela só fazia de vez em quando pois nem todo mundo em casa era fã de panqueca. Outra coisa que comia todos os dias era pastel. Meu café da manhã era “super saudável” pastel com leite e café todos os dias, não era à toa que fui uma criança obesa. Até que chegou uma época que minha mãe impediu o dono do bar, que era meu tio, de venderme pastel. Foi uma tristeza, mas foi bom para minha saúde. Com catorze anos eu mudei meus hábitos alimentares e comecei a emagrecer, até chegar nesse “corpinho” que tenho hoje. Aprendi muito sobre culinária com minha mãe, hoje faço vários pratos e gosto de cozinhar, gosto tanto que se não tivesse fazendo biologia, que é minha paixão, faria gastronomia. Estou aprendendo muito com o Programa Conexões de Saberes, mudei várias concepções e pré-julgamentos que tinha por alguns assuntos. Espero que consigamos realizar os 100 Caminhadas de universitários de origem popular objetivos do programa que são aprimorar a formação dos estudantes como pesquisadores, democratizar o acesso ao ensino superior e garantir a permanência dos universitários de origem popular e implementar projetos junto a grupos socialmente vulneráveis. Palavras sozinhas não mudam nada, atitudes podem mover montanhas. Universidade Federal de São Carlos 101