A persistência de Gandhi
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A persistência de Gandhi
Encontros Eduardo de Oliveira E A persistência de Gandhi SOCIEDADE Difusor dos ideais gandhianos no campo da política internacional e da educação, o diplomata indiano Pascal Alan Nazareth é o autor de “A Extraordinária liderança de Gandhi”, publicado pela editora Cidade Nova. Recentemente, ele esteve no Brasil para uma série de conferências sobre a vida e a obra do maior líder hindu do século XX Thiago Borges 24 Cidade Nova • Agosto 2012 • nº 8 mbaixador da Índia no Egito, ganhador do Prêmio da Paz U Thant, membro do Serviço de Relações Exteriores, diretor-geral do Indian Council of Cul tural Relations (ICCR) e fundador da rede de difusão dos ideais gandhianos Sarvodaya International Trust (SIT). Ao longo de 35 anos de uma carreira diplomática de excelência, Pascal Alan Nazareth presenciou mudanças significativas na política internacional, desde a bipolaridade que dividiu o mundo por décadas até a degeneração de ideologias antes consolidadas em nível internacional. Já aposentado, viu o surgimento da ameaça terrorista após o 11 de setembro e a agressiva reação do Ocidente. Tudo isso contribuiu somente para consolidar sua convicção da fragilidade da violência como método de ação política. Em entrevista à Cidade Nova, o diplomata destaca o quanto a figura do Mahatma Gandhi persistee, ao mesmo tempo, renova-se como paradigma de ação política. Gandhi viveu em um contexto fortemente marcado pelo colonialismo. Como fazer uma leitura de suas ideias no mundo de hoje? O sucesso da luta não violenta de Gandhi contra o colonialismo na Índia não só incentivou outros povos colonizados a usar este método, como também destruiu o mito de que o colonialismo era o “fardo do homem branco” para civilizar “os povos primitivos” da Ásia e da África. Além disso, desde que Gandhi declarou: “Através da libertação da Índia, eu busco libertar as chamadas raças mais fracas do mundo”, a Índia independente assumiu a liderança nas Nações Unidas e em outras instâncias no que se refere à luta pela descolonização ao redor do mundo. Como resultado de tudo isso, 50 anos após a morte de Gandhi mais de 130 países tinham se libertado do colonialismo e outros 20 haviam se emancipado da opressão de regimes racistas, fascistas e comunistas no sul dos Estados Unidos, no Leste Europeu, nas Filipinas, na África do Sul e no Chile. Em quase todos esses casos, de forma não violenta. Esta é a democratização mais abrangente da geopolítica internacional em toda a história. Como os ideais de Gandhi influenciaram a sua carreira de diplomata? Diplomatas são essencialmente promotores de paz. Há um velho ditado que diz: “Quando os diplomatas fracassam, os generais são cha mados”. Os primeiros embaixadores da Índia foram os monges budistas que o imperador Ashoka enviou a Sri Lanka, Birmânia, Khotan, Báctria, Damasco, Atenas e Alexandria mais de dois mil anos atrás. Todos eles levaram a mensagem de paz, não violência e de fraternidade universal. Na modernidade, a mesma mensagem foi propagada por Mahatma Gandhi. O programa adotado por ele é melhor descrito em suas próprias palavras: “A luta não violenta não é um plano de tomada do poder, mas um programa de transformação de relacionamentos que culmina em uma transferência pacífica do poder”. Isto é o que aconteceu na Índia. O respeitável historiador britânico Arnold Toynbee elogiou Gandhi por ter sido “tão benéfico para a Grã-Bretanha quanto o foi para seu próprio país. Ele tornou impossível para nós dominar a Índia, mas, ao mesmo tempo, ele tornou possível para nós abdicar desse domínio sem rancor e sem desonra”. A transformação do modo de abordar as relações é a melhor abordagem para todos os diplomatas. As ideias de Gandhi podem dar respostas convincentes para as questões diplomáticas atuais? Gandhi afirmou que “a paz virá quando a verdade for buscada, e a verdade implica justiça”. Ele também afirmou que “três quartos das misérias e mal-entendidos do mundo desapareceriam se nos colocássemos na pele de nossos adversários e entendêssemos o ponto de vista deles”. Ele sempre enfatizou a necessidade da verdade, da justiça e das negociações e acordos mutuamente aceitáveis. Por um lado, essa abordagem é descartada e potências mundiais pretendem impor a sua vontade sobre os mais fracos, dan- “ ” A luta não violenta não é um plano de tomada do poder, mas um programa de transformação de relacionamentos que culmina em uma transferência pacífica do poder do início a guerras baseadas em clamorosas mentiras (a invasão e ocupação do Iraque é o exemplo mais flagrante), o que gera tanta confusão e terrorismo no mundo. Por outro lado, temos bons exemplos dos grandes benefícios de uma postura não violenta da diplomacia, como a decisão, em 1977, do [então] presidente [do Egito, Muhammad Anwar Al] Sadat, de abandonar a guerra e empreender uma viagem de paz pe- rigosa a Jerusalém, obtendo como resultado não somente um acordo de paz para seu país, como também todos os seus territórios perdidos para Israel em 1967. O senhor fundou o Internacio nal Sarvodaya Trust, que é uma organização difusora dos princípios de Gandhi. Como esta organização trabalha especificamente? A Sarvodaya International Trust (SIT) foi fundada por nove pessoas, pertencentes a várias comunidades de hindus, muçulmanos, cristãos, sikhs, budistas, jainistas, parsis e bahá’ís. Eu sou um desses fundadores. Os objetivos do SIT são reviver, promover e difundir, nacional e internacionalmente, os ideais de Gandhi da verdade, da não violência, da harmonia comunal. Promovemos atividades humanitárias de paz buscando a forma mais adequada aos cenários contemporâneos. Tudo isso é feito por meio de livros e outras publicações, através da doação de livros sobre Gandhi a instituições de ensino médio e superior. A SIT atualmente tem dez unidades regionais na Índia e conta com uma base de apoio internacional. Os princípios gandhianos são capazes de fornecer soluções para as injustiças sociais? Por séculos a injustiça social mais profundamente enraizada na Índia foi a questão da “intocabilidade”. Para Gandhi, a eliminação dessa divisão era um componente intrínseco à luta pela independência nacional. Devido a isso, quando a Índia se libertou, a “intocabilidade” em todas as suas formas deveria ser banida. Os membros da casta anteriormente conhecida como dos “intocáveis” e posteriormente como “harijans” e “dalits”, surgem hoje como um grupo político importante, com seu Cidade Nova • Agosto 2012 • nº 8 c 25 Encontros próprio partido nacional, que existe desde o início dos anos 1980. Uma mulher dalit, Kumari Mayawati, foi por duas vezes ministra-chefe de Uttar Pradesh, o maior estado da Índia. Já Kocheril Raman Narayan, brilhante dalit, estudou na London School of Economics e tornou-se embaixador da Índia na Turquia, na China e nos EUA. Posteriormente, foi ministro da Ciência e Tecnologia, e presidente da Índia de 1997 a 2002. Os dalits tornaram-se ministros em outros estados e até Procuradores Gerais de Justiça e membros do Supremo Tribunal Federal e de Tribunais Superiores Estaduais. Trata-se de uma grande revolução social na Índia que se deve principalmente aos esforços de Gandhi. Após a independência, as ideias de Gandhi não foram imediatamente aplicadas na Índia. Quais foram os impactos dessa postura governamental? É verdade que muitas das ideias de Gandhi foram ignoradas pelos líderes indianos nos anos imediatamente anteriores e posteriores à independência. Ele se opôs, por exemplo, à cisão da Índia, à intervenção estatal na economia, bem como à urbanização e industrialização em larga escala. A Índia pagou um preço alto por isso. A dominação do Estado por meio da economia planificada entre 1950 e 1991 resultou no mamute do Licence Raj [sistema de controle e regulação da produção privada implantado no país], o que desencadeou uma extensa corrupção para garantir licenças industriais e de importação. Este fenômeno se espalhou como câncer em todos os setores da economia e em todos os departamentos do governo. Enormes investimentos foram feitos na agricultura, indústria, educação, saúde e habitação. Apesar disso, a pobreza, a desnutrição, doenças, de- 26 Cidade Nova • Agosto 2012 • nº 8 semprego, analfabetismo, falta de habitação, falta de instalações médicas e de infra-estrutura continuam a afligir mais de 40% da população da Índia. Embora as produções agrícola e industrial tenham aumentado, o crescimento econômico até 1990 girava em torno de 3% e foi ridicularizado internacionalmente, recebendo a alcunha de “taxa hindu de crescimento econômico”. Até mesmo os admiradores ferrenhos do [ex-primeiro ministro indiano] Jawaharlal Nehru e [de sua filha e também ex-primeira ministra] Indira Gandhi agora admitem que essas medidas adotadas foram mais prejudiciais do que benéficas para a economia da Índia. do trabalho e do crescimento no número de crianças que passaram a trabalhar. O trabalho infantil atingia 10,2 milhões em 2000 e subiu para 60 milhões, em 2010. A Índia de hoje tem a maior classe média do mundo, a sua mão de obra tecnicamente especializada é a segunda maior, temos alguns bilionários, muitos milionários e, infelizmente, muitos agricultores endividados, muitas favelas, analfabetos, sem-teto, alto índice de soropositivos, milícias rurais e tribais. Mas hoje a economia da Índia se torna cada vez mais importante no cenário mundial… A essência dos ensinamentos de Gandhi ao longo de sua vida sobre a verdade e a não violência se encontra no amor incondicional pela humanidade e no esforço constante em vista de seu bem-estar, por meio do serviço humanitário. Portanto, quando ele estava na África do Sul e eclodiu a Segunda Guerrados Boêres (que opôs o Império Britânico às Repúblicas Boêres), em 1899, Gandhi prontamente organizou uma unidade ambulatóriavoluntária e convenceu 1,1 mil companheiros indianos a se juntar à causa. Em 1906, durante a Guerra Anglo-Zulu, Gandhi organizou um contingente de 20 maqueiros indianos para prestar socorros aos feridos. Seus homens chegavam a andar muitas vezes de 30 a 40 quilômetros por dia carregando soldados feridos para os hospitais localizados nos campos. Tudo isso indica que as intenções de Gandhi não eram belicistas ou de apoio à violência e à execução, mas profundamente humanitárias e nobres. Se ele não podia impedir a eclosão de guerras, ele ao menos fazia o melhor que podia para prestar auxílio médico aos feridos. A liberalização econômica e as “reformas” iniciadas em 1991 deram grande vigor ao empreendedorismo na Índia. Em 2000, o crescimento econômico alcançou a marca de 8%. Em 2007, chegou a 10%. Infelizmente, no entanto, as políticas do governo entre os anos de 1998 e 2010 se direcionaram fortemente em favor dos setores urbanos e empresariais e do investidor estrangeiro. No processo de “reforma”, o comércio e as políticas de investimento foram liberalizadas, assim como os direitos de importação. Foram derrubadas também muitas barreiras não tarifárias. Até mesmo a importação de bens de capital de segunda mão foi permitida, apesar de isto ter causado um efeito adverso às fabricantes de bens de capital de primeira linha. Uma série de empresas públicas foi privatizada. O efeito mais prejudicial da liberalização, no entanto, tem sido sobre o trabalho e o emprego. Não somente pelo aumento substancial da taxa de desemprego, mas também pelo aumento da precarização Gandhi é acusado de incoerência com seus próprios princípios por ter participado de conflitos armados. O que o senhor pensa sobre isso? Líder do nosso tempo Divulgação A China seguiu Sun Yat-sen, empunhou a espada e caiu nos braços do Japão. A Índia, sem armas, aceitou como líder uma das mais estranhas figuras da história e deu ao mundo o fenômeno sem precedentes de uma revolução liderada por um santo, travada sem armas. […] Ele não proferia o nome de Cristo, mas agia como se tivesse aceitado cada palavra do Sermão da Montanha. Desde são Francisco de Assis, nenhuma vida conhecida da história foi tão marcada pela gentileza, pelo desinteresse, pela simplicidade e pelo perdão aos inimigos. Will Durant Após expor 11 competências da liderança moderna, o autor apresenta como Gandhi as exerceu, com inúmeras realizações, das quais a mais conhecida é a independência da Índia. O livro ainda mostra a influência do ensinamento de Gandhi em vários acontecimentos da história do século XX e em líderes contemporâneos. Por fim, a figura do revolucionário indiano é apresentada como um possível modelo ideal de liderança Título: A extraordinária liderança de Gandhi Autor: Pascal Alan Nazareth Tradução: Marcos Fávero F. de Barros Editora: Cidade Nova, São Paulo, 2011 Páginas: 226; formato: 14x21 cm Um líder de seu povo, sem o apoio de nenhuma autoridade externa, um lutador e vencedor que sempre desprezou o uso da força, um homem de sabedoria e humildade, que enfrentou a brutalidade da Europa com a dignidade do simples ser humano e em todos os momentos esteve em superioridade. […] Às gerações vindouras talvez custe crer que um homem como este tenha pisado na terra em carne e osso. Albert Einstein A maioria das revoluções cria enormes aspirações, mas nunca chega realmente a realizá-las; algumas as traem completamente. A Revolução Americana logo impôs limites às noções de liberdade que foram sua própria inspiração, ao excluir afro-americanos, americanos nativos e, em considerável medida, as mulheres. A Revolução Francesa produziu um frenesi de ira assassina, seguido de quase outro século de monarquias. As Revoluções Russa e Chinesa criaram tirania, opressão e estagnação. Gandhi foi tão mitificado, desde seu assassinato em 1948, que o homem real quase desapareceu. Mas merece sua posição de símbolo ressonante de um dos fenômenos mais importantes da história moderna: o ataque simultâneo ao colonialismo e à opressão individual, que transformou grande parte do mundo do século xx. Alan Brinkley A fragilidade da civilização moderna é mostrada pela forma terrivelmente ineficiente com que nosso mundo trata da resolução de conflitos. Nas relações internacionais, nem a diplomacia convencional nem os vários usos de dissuasão militar melhoraram a estreita margem em que o mundo existe. Essa leitura um tanto pessimista da história é contestada por apenas uma exceção principal, a aplicação de políticas e técnicas de não violência na Índia por Mahatma Gandhi. O sucesso de Gandhi redime a natureza humana da inevitabilidade de sua experiência histórica e também sugere a viabilidade da não violência em situações modernas. Ralph Bultjens Gandhi tem futuro em todo o mundo. […] Esse futuro não deveria ser visto apenas em termos do que acontece ou poderia acontecer em países e no mundo. Mais importante é a transformação social local e a autonomia local. O vilarejo de Gandhi é conhecido como município em muitas partes do mundo. Seu panchayat também é conhecido como “governo local” e poderá ser a pedra fundamental de uma futura ordem mundial que se aproxime do satyagraha e sarvodaya. A comunicação eletrônica pessoa a pessoa também poderá trazer o mundo para mais perto dos círculos oceânicos de Gandhi. […] O mundo é um só oikos, um só lar. […] Gandhi apontou o caminho, e esse caminho é, ele próprio, uma meta. Johan Galtung Cidade Nova • Agosto 2012 • nº 8 27
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