psicologia perinata - Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal

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psicologia perinata - Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal
Para citar este trabalho: IACONELLI, V, O que é psicologia perinatal: definição de um campo de
estudo e atuação, Área de Estudos do Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal, 2012, disponível em
http://www.institutogerar.com.br/
O QUE É PSICOLOGIA PERINATAL:1
definição de um campo de estudo e atuação
Vera Iaconelli
O presente artigo trata da necessidade de se definir e problematizar o que vem se
convencionando chamar de psicologia perinatal. Visa estabelecer parâmetros que nos sirvam
de ponto de partida sobre o qual possamos travar diálogos, estabelecer diferenças.
Assumimos aqui uma posição teórica e ética com o intuito de trabalhar um termo que vem
sendo cada vez mais usado sem que, a nosso ver, esteja suficientemente problematizado.
Palavras-chave: psicologia perinatal, psicanálise, parentalidade, ciclo gravídico
puerperal, psicologia hospitalar.
Da área de trabalho e do profissional
O campo dos estudos sobre o psiquismo da gestante, da parturiente e da puérpera vem
se desenvolvendo ao longo dos últimos anos como uma disciplina dentro da
psicologia hospitalar. Entendemos, no entanto, que se, por um lado, o acolhimento da
questão pela área hospitalar seja louvável, por outro, revela o viés a que
contemporaneidade tem submetido o ciclo gravídico puerperal. Se o ciclo reprodutivo
encontra-se inserido na instituição hospitalar não podemos tomar este acontecimento
como casual uma vez que ele revela a própria condição de medicalização e controle a
que está submetido este evento na atualidade. Assim como a morte migra para o
hospital na contemporaneidade, na busca de uma assepsia do morrer, assim também o
parto2 se revela cena non grata3. Se o parto vem sendo feito em maternidades e da
1
2
Trabalho desenvolvido junto à Área de Estudos do Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal.
IACONELLI, V. , Maternidade e erotismo: assepsia da cena do parto,
forma intervencionista como vem sendo feito, não podemos tomar tal recorte cultural
e histórico como natural ou mesmo desejável.
Além disso, de todo o período que envolve a concepção, a gestação, o parto e o pósparto supõe-se que apenas três dias digam respeito à internação hospitalar, salvo as
consultas pré-natais, que não são necessariamente feitas neste âmbito, ou as
internações devido às patologias, por vezes, decorrentes destas mesmas excessivas
intervenções. Com isso queremos alertar para o fato de que o próprio âmbito na qual
se insere a disciplina, a nosso ver, traduz um recorte histórico cultural que não pode
ser ignorado sob pena do profissional da psicologia corroborar, por ação ou omissão,
práticas e protocolos conhecidamente nocivos à gestante, à parturiente e à puérpera,
bem como ao pai e à prole.
No outro extremo, temos os trabalhos realizados fora da maternidade na qual o
profissional de saúde de diferentes formações acaba por acolher as demandas da
mulher no período que antecede o parto na forma de grupos de gestantes e de
preparação para o parto, com finalidade profilática, ou em atendimentos
psicoterápicos de gestantes, mães e bebês. Este casos por vezes incorrem no mesma
problema. Mesmo não sendo funcionário contratado da maternidade, cujo exercício
da crítica está limitado ao vínculo empregatício, o profissional que atende o ciclo
gravídico puerperal fora da instituição se vê longe da paciente num momento crucial
da assistência psicológica à perinatalidade, muitas vezes rompendo um vínculo que
não volta a se estabelecer. Embora possa fazer críticas e alertar para armadilhas que
levam a cesarianas desnecessárias, por exemplo, sua ausência na parturição acaba por
limitar fortemente seu campo de ação. Isso se supomos que este profissional encontrase ele mesmo informado sobre estas questões, o que, infelizmente, nem sempre
ocorre. Grupos de gestantes e de preparação para o parto que não levem as questões
histórico culturais em consideração são profundamente limitados e ideológicos.
Na ponta do ciclo temos toda a área de pesquisa e atuação junto às mães de bebês que
surge na terceira fase, o pós-parto, o que nos faz pensar o quão questionável pode ser,
em muitos casos, denominá-la profilática, uma vez que as mães e bebês que nos
chegam tem uma longa história de enganos e intervenções desnecessárias, que não
podem ser ignoradas.
Dito isso, pensamos que a psicologia perinatal apresenta um grande desafio na
formação e na atuação de seus profissionais, pois se pretende encontrar um espaço de
pesquisa isento de pressões institucionais por um lado, não pode prescindir de uma
atuação junto a parturiente e ao bebê, por outro. Nos encontramos talvez, desde esta
perspectiva, como os psicólogos que trabalham junto aos manicômios ao mesmo
tempo em que cerram fileiras na luta anti-manicomial. Com a diferença talvez de que
não se trata de prescindir dos avanços da medicina, muito bem vindos em situações
patológicas, mas de humanizá-los. A alternativa tem sido o trabalho interdisciplinar
em instituições e fora delas, pois o anseio por melhores condições na área não parte só
dos psicólogos mas de profissionais de várias áreas da saúde que passam a trabalhar
juntos.
Quanto ao uso do termo perinatal
Quanto ao termo perinatalidade, consta no Aurélio: “diz-se dos períodos
imediatamente anterior e posterior ao parto. peri: do grego perí; movimento entorno,
posição em torno natal: do latim natale; relativo ao nascimento”.
Propomos aqui o uso do termo perinatalidade ao invés de ciclo gravídico-puerperal,
pela sua concisão, ou ainda no lugar de (psicologia) obstétrica, por esta confundir-se
com o âmbito da medicina. Cabe
ressaltar que nos apropriamos do termo
perinatalidade numa acepção mais ampla, que não se restringe ao evento imediato do
parto, mas o inclui, assim como as etapas que o antecedem e o ultrapassam relativas à
gestação e ao puerpério. O termo refere-se à ordem do orgânico, não havendo menção
às questões sociais ou subjetivas, podendo ser usado para os demais mamíferos
superiores. Cabe à psicologia perinatal estabelecer sua relação com a subjetividade
com o que é da ordem do humano, para tanto utilizamos psicologia perinatal.
Perinatalidade e Parentalidade
Parenthood é um termo introduzido por Thomas Benedekt
(1959), psicanalista
americano, em fins dos anos 50 e retomado por parentalité pelo também psicanalista
Paul-Claude Racamier (1961) na França, em 1961. Termo oriundo da patologia das
relações entre bebês e mães, como a psicose puerperal e os distúrbios de vínculo, vai
adquirindo uma conotação mais abrangente a partir de Lebovici:
“A parentalidade vai além do fator biológico: para se tornar um pai ou
uma mãe é preciso ter feito um trabalho interior que começa pela
aceitação de que herdamos algo de nossos pais. Não me refiro ao que é
genético ou programado, como o apego, e sim aquilo que é relativo à
transmissão intergeracional. (SOLIS-PONTON & LEBOVICI, 2004,
p. 21)”
Nesta afirmação vemos que a parentalidade se insere no campo da construção
subjetiva. Trata-se de um papel social que tem por prerrogativa a relação que se
estabelece entre um adulto e uma criança ao longo de seu desenvolvimento e que
envolve, acima de tudo, sua formação psíquica, seu lugar de pertencimento social,
para além dos cuidados materiais.
Dito isso, é fácil constatar que parentalidade e perinatalidade independem, embora
possam e costumem coincidir. E o que nos interessa saber aqui, justamente, é de que
forma se relacionam e como abordá-las evitando nos apoiar em algum pressuposto de
que existiria um psiquismo inerente ao estado gestacional em humanos.
Pois se estas situações nem sempre são cronologicamente coincidentes e, até por
vezes, são totalmente independentes, de onde emergiria algo da ordem de uma
psicologia da gestação, ou seja, da ordem da construção do papel parental. Portanto,
trata-se de delimitar três campos com especificidades irredutíveis, a saber, da
perinatalidade, da parentalidade e da imbricação/separação de ambas.
No âmbito da perinatalidade, ou seja, quando se trata exclusivamente do evento
orgânico, podemos ter, a título de exemplo, abortos, infanticídios e entregas em
adoção, quando de caráter eletivo e a partir da formulação do desejo da mulher, pois
sabemos a que coerções sociais e impossibilidades sócio-econômicas estão
submetidas as mulheres. De forma que temos várias situações na qual a mulher ou o
casal é coagido pela miséria, falta de recursos, inviabilidade do feto ou de apoio social
a abdicar da parentalidade de um filho gerado, por vezes desejado.
Quanto à parentalidade, podemos pensar nas adoções formais ou informais de
crianças geradas por outrem4. Aqui é a ausência da perinatalidade que está em jogo e,
no entanto, aparecem questões identificatórias, narcísicas, recursos elaborativos, por
vezes, somatizações e regressões dos adultos que se incubem de exercer este papel,
também referidas às reações do entorno que qualificam ou desqualificam esta filiação.
Segundo Queiroz (2004):
“Estamos inclinados a relacionar a existência e a manutenção dos preconceitos
sobre a adoção, presentes no imaginário social, como algo de ordem mítica e
por isso tão presente nas fantasias dos pais. Os adotivos parecem viver, em ato
e na realidade, aquilo vivido pela maioria em sonhos, ou seja, a duplicidade
de casal parental presente na fantasia do romance familiar. Sabemos que toda
4
Adoções podem ser realizadas em qualquer etapa do desenvolvimento da criança, o que não se aplica,
obviamente, à construção parental dentro da perinatalidade, a qual se trata sempre de lidar com os
primórdios da existência. Portanto, nos referimos aqui sempre as adoções precoces, nas quais se espera
que a mãe adotiva estabeleça as condições para constituição de sujeito no bebê ou sua consolidação.
fantasia inconsciente, quando escancarada, é reconhecida como algo estranho
e provocador de angústia. Fenomenologicamente, pode-se dizer que a angústia
é também a sensação do estranho que habita em nós – o Outro. Esse filho
outro não gerado no corpo aponta justamente para o mito ainda não
simbolizado. É preciso desvendar o mito da origem, da origem do homem – o
Édipo na sua dupla filiação.” (QUEIROZ, 2004, p. 108-109, grifo nosso)
Nos casos em a gestação coincide com o processo elaborativo da parentalidade o
psiquismo se retroalimenta da experiência corporal. Aqui, como na adoções,
encontraremos a tendência regressiva daquela que espera um filho, seus processos
identificatórios com o bebê e com a própria mãe e remanejamentos edípicos, mas
teremos que levar em conta somatizações que buscam dar contorno a um corpo
submetido à transformação potencialmente traumáticas, acrescidas de repercussões
sociais histriônicas diante da evidência material da maternidade. Neste sentido a
experiência corporal repercuti na subjetividade e a subjetividade no corpo, assim
como no âmbito social. À figura da gestante estão associadas várias expectativas de
comportamento, como a título de mero exemplo, não beber e não fumar. Deste olhar,
a mãe que adota não se beneficia, pois, embora possa, por um lado, encerrar uma
situação de controle e julgamento, por outro, não podemos subestimar o efeito de
validação que ser reconhecida publicamente como futura mamãe costuma ter sobre o
psiquismo da mulher.
Fazendo estas diferenciações pretendemos evitar as generalizações que costumam
subentender que atrás de cada gestação haveria ou, pior, que deveria haver, uma mãe.
Cada mulher tem de falar de sua experiência gestacional em nome próprio, a
evidência corporal não nos garantindo nada. O que não quer dizer que não valha nada,
longe disso. O corpo aqui emerge diante do sujeito como poucas vezes se vê.
Como veremos, a maternidade é uma ideia construída socialmente e subjetivamente,
portanto, não há um a priori do maternal. Creditar à gestante algum saber sobre o filho
ou algum saber sobre o que é ser mãe é buscar um fiador onde nunca houve ou
haverá.
O que nos deixa eternamente desamparados por nos defrontarmos com a queda da
onipotência materna. Segundo Pereira (1999), ao falar da questão do desamparo em
Lacan:
“Para Lacan, a onipotência da criança deve ser situada antes de
mais nada do lado do adulto _ a mãe no caso_ ante quem a
criança vê-se em relação de total dependência. É a ela, enquanto
suporte do Outro, que pertence tal ‘poder’.” (PEREIRA, 1999,
p. 230)
Se este outro que nos engendra não sabe de nós, o que nos resta saber?
Optamos, então, por definir psicologia perinatal como campo de estudo dos
fenômenos psíquicos ligados ao ciclo gravídico-puerperal em sua relação com as
determinações biológicas, culturais e históricas, usando o termo perinatalidade numa
acepção mais ampla, que não se restringe ao evento imediato do parto, mas inclui as
etapas que o antecedem e o ultrapassam relativas à gestação e ao puerpério _ como a
infertilidade, entrega do recém-nascido, abortos e óbitos de bebê _ e seus efeitos
sobre a relação entre os pais e sua prole. Desta forma, buscamos contemplar a
confluência entre perinatalidade e parentalidade, suas fronteiras e desencontros
dentro e fora da patologia e, ao fazê-lo, pretendemos contribuir para o entendimento
de suas disjunções para além do diagnóstico psicopatológico.
Entendemos que a perinatalidade pode convocar, mas não garante a adesão do sujeito
para lidar com as questões da parentalidade. A experiência corporal pode intensificar
e antecipar um processo que eventualmente poderia ocorrer por outras vias, como nas
adoções, por exemplo. Aqui cabe a comparação entre puberdade e adolescência, na
qual as transformações hormonais da primeira não são garantia de desencadear o
processo psíquico da segunda (MATHEUS, 2008). Embora se espere que todo sujeito
saudável passe por um processo equivalente ao adolescer, entendido como passagem
da infância para a vida adulta física e psiquicamente, tornar-se mãe não é um processo
pela qual passarão todas as mulheres, saudáveis ou não. A adolescência não é um
processo passível de interrupção5 fora da patologia, enquanto que a interrupção da
gravidez não pode ser considerada patológica em si. Desta forma temos que a
perinatalidade é uma experiência corporal que, uma vez investida eroticamente pela
mulher, pode vir a se tornar suporte da construção parental. Dito de outra forma, é a
possibilidade de antecipação da parentalidade, vivida como investimento libidinal na
gestação, que faz de uma gestante uma mãe, ou melhor dizendo, é uma mãe potencial
que faz de uma gestação a gestação de um filho e não uma gestação que faz de uma
mulher mãe.
Encontramos uma correlação com a suposição que a mãe faz de sujeito em seu bebê: é
supondo sujeito onde ainda não há de fato, que a mãe vem a fazer com que o bebê se
torne sujeito. E é porque a parentalidade antecipa a perinatalidade que, no caso de
perda do bebê (seja por aborto espontâneo, anomalias ou óbito), a mulher corre risco
psíquico de viver um luto impossível6. A materialidade da gestação e do bebê permite
que a mulher sustente esta ilusão antecipatória, caso contrário, ela terá que se haver
com uma sensação de irrealidade.
Se a gestação, o parto e o aleitamento não são condições nem necessárias, nem
suficientes para a construção parental, cabe ainda estabelecer estas condições. Para
tanto, nos movem nossos estudos.
5
Podemos pensar em alguns quadros de anorexia nos quais o jovem busca pela privação de alimento,
justamente, interromper as transformações hormonais decorrentes da puberdade.
6
Sobre as peculiaridades do luto perinatal ver: IACONELLI, V. “Luto insólito, desmentido e trauma
clínica psicanalítica com mães de bebês”, In Revista Latino Americana de Psicopatologia
Fundamental, São Paulo, v. 10, nº 4, p. 614-623, dez/2007.