Designer mineira se forma no mestrado da Central Saint Martin, em

Transcrição

Designer mineira se forma no mestrado da Central Saint Martin, em
E STA D O D E M I N A S
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D O M I N G O ,
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D E
O U T U B R O
D E
2 0 0 9
FEMININO&MASCULINO
GENTE
Designer mineira se forma no mestrado da Central Saint Martin, em Londres, com coleção
inspirada nas raízes brasileiras: índios, pedras nativas e memórias da cultura tupiniquim
JOALHERIA
CULTURAL
FOTOS: CASSIA TABATINI/DIVULGAÇÃO
LAURA VALENTE
Quando conheci Kika
Alvarenga, formada em artes
plásticas, estilismo e
ourivesaria, ela estava
cursando o primeiro ano de
mestrado em joalheria na
Central Saint Martin, em
Londres, escola referência
mundial em design e moda.
À época, pouco mais de um
ano, já produzia anéis, colares,
pulseiras e broches com
viés autoral e apelo
contemporâneo – peças
forjadas em metais nobres e
matérias-primas totalmente
alternativas, como fibras da
palmeira tucum, além das
pedras brasileiras quartzo rosa
e turmalina negra. Optou pela
especialização no intuito de
encontrar novos desafios e
sentidos para a carreira e não
deu outra. Finalizado, o
trabalho tomou o próprio
caminho, se transformando
num ponto de encontro entre
design, arte e moda. O projeto,
que já pretendia falar de
memórias, levou Kika a
abordar o resgate de raízes
culturais brasileiras e misturálas a fragmentos de realidade
atuais, como o jeitinho
brasileiro de resolver
problemas na base da
gambiarra. O resultado é uma
coleção com 40 modelos, que já
estão sendo comercializados
na descolada Feathers e no
Museu Tate Britain, em
Londres, e também no Brasil,
nas lojas que revendem a grife
(Sônia Pinto, Essencial e Ellus
Guest, em São Paulo; Dona
Coisa, no Rio de Janeiro, e Fata
Morgana, em Belo Horizonte).
A
DORNO É
COMUNICAÇÃO “Minha intenção
era desenvolver
um trabalho que
resgatasse memórias, mas a proposta era muito
ampla: de quem,
como, por quê? Aí,
entrei num processo de reconhecer o que é o adorno corporal para conseguir entender
o que é a joalheria e acabei chegando à mídia, numa forma de comunicação. Na pesquisa em livros, museus e internet, constatei que o adorno foi a primeira forma de expressão artística do homem. Antes de
pintar paredes (pintura rupestre) ele
pendurou um colar no pescoço.”
ESTRUTURA DE ENSINO - “O sistema de
ensino na Central Saint Martin é
muito diferente do nosso. Eles têm
uma estrutura gigantesca, muito
completa, mas cabe ao aluno saber
usufruí-la e isso inclui até o contato
com os orientadores. O meu mestrado não teve aula, não precisei cumprir créditos. Tive algumas reuniões
e orientações durante o curso, mas
coube a mim buscar mais.”
CULTURA BRASILEIRA - “O primeiro
ano foi muito difícil, tanto pelo choque cultural quanto pelo sistema de
ensino, além da língua. Porque já falava inglês, mas o acadêmico é mais
rebuscado, dei uma penada. Não
pensei em largar porque não faz
parte da minha personalidade, tenho um ego inflado nesse sentido,
acredito que vou conseguir e aí me
dá mais vontade de provar que posso. Até porque, no fim das contas, é
a terceira vez que moro fora do país,
que reafirmo minha nacionalidade,
meu patriotismo. E a experiência se
tornou um grande projeto falando
da cultura brasileira. Então, chegou
num ponto, no fim do primeiro ano,
em que eu não estava mais fazendo
um mestrado falando sobre o trabalho da Kika, mas passei a usar esse
trabalho para falar de uma cultura
que não é ainda reconhecida na sua
completude. Com ele, quero fazer
parte do movimento de artistas e
designers que falam do Brasil e suas
peculiaridades, como os Irmãos
Campana, os Irmãos Gêmeos, a grife
Auá. Sobre arestas, frestas e sutilezas dessa cultura.”
A coleção de Kika traz 40 modelos, forjados
de um tudo: turmalina, tucum, textura
pele humana e banho de ouro negro
DESCOBERTA - “Quando comecei a entender o que era joia, voltei para o
meu trabalho, busquei seu significado e percebi que definia muito a peça
pelo material. Identifiquei pedras mineiras e muita matéria-prima de origem indígena (pena, algodão, fibra de
tucum, cocos, ossos, miçangas). Vi
que a fibra de tucum, por exemplo, é
uma das possibilidades da palmeira
de mesmo nome, explorada pelos
crahôs, do Tocantins, e pude entender
que o índio tem um comportamento
de usufruir ao máximo de uma mesma fonte. Conectei isso com o design
ecológico, autossustentável, entrei
nessa consciência.”
INSIGHT - “Mergulhei no meu próprio
trabalho e percebi que já falava das
memórias da cultura brasileira.
Quem é o brasileiro? Temos uma história que fala dos portugueses, dos
africanos, mas não do índio como referência cultural. O país tem muito
minério, pedras e rochas, mas também não falamos disso como construção cultural. Acredito que precisa-
mos de assumir todas as nossas referências e aceitá-las. Só assim construiremos o Brasil com a força que ele
tem. Vamos parar de olhar nosso colonizador, parar de olhar para fora como referência em comportamento,
em tudo. Que independência é essa?”
RESULTADO - “Fiquei felicíssima. Disse
pronto, é isso, agora ninguém me segura. E aí passei a defender essa ideia
muito forte, tive que peitar muitos
orientadores. Porque eles questionavam o fato de eu querer falar da minha cultura com uma coleção toda
preta (em turmalina negra). E eu dizia, isso também é Brasil. E tive que
trazer um monte de elementos para
mostrar esse lado: a Serra Pelada, as
favelas, o catador de papel, toda a violência do país e sustentar esse argumento nas apresentações visuais, ao
lado de imagens do nosso carnaval.
Aí entrei na questão dos contrastes,
porque somos um país de contrastes.
Meu trabalho tem isso: peças enormes, porém leves, P e B, fios finíssimos de seda com a pedra, pesada e
dura. Também fiz uma paralelo da
gambiarra com esse comportamento
indígena, que é aproveitar tudo o que
tem, do jeito que tem, e transformar
em algo para uso próprio. O que é a
gambiarra? Um comportamento
contemporâneo das classes mais baixas, que conseguem resolver necessidades de forma criativa.”
COLEÇÃO - “A coleção tem a textura
da turmalina, do tucum, da pele humana (que imitei em prata, porque o
homem é a razão de a joia existir). Algumas levam banho de ouro negro,
que vai saindo da peça ao longo do
tempo com o uso, o que representa a
memória. Em outras, fiz movimentos com caquinhos de turmalina,
mudei os veios da pedra de direção.
Ao todo são 40 modelos, entre colares, pulseiras, anéis, brincos e broches, que passaram com louvor pela
banca examinadora da Saint Martin.
Todo mundo ficou impressionado.
No fim das contas, consegui me comunicar com tanta força que alguns
professores me pediram para usar
imagens do trabalho em palestras.”
REPERCUSSÃO - “Estou felicíssima, porque saí daqui meio angustiada e o
mestrado me formou como profissional. Hoje, tenho certeza do que quero
– usar a joia como meio de comunicação – e confiança o suficiente para
chegar lá. Usei investimento próprio,
mas parte da coleção já está sendo
vendida. Poucas peças são únicas e
tem com público-alvo colecionadores. Para outras já havia pedidos. Uma
parte está em exposição e à venda no
Museu Tate Britain, em Londres, na
loja Feathers, também de lá, e no Brasil. Não faço mais de 50 peças de cada
modelo, porque é um trabalho extremamente artesanal. O preço para o
consumidor varia de R$ 240 – um fio
de tucum com turmalina a R$ 5,2mil –
peças mais elaboradas.”
PROJETOS - “Pretendo ficar na ponte
área Londres/BH/São Paulo, porque
preciso abrir um mercado internacional. Tenho um trabalho muito específico e dois caminhos: um é vender para lojas especiais. O outro é
me enveredar no nicho das artes.
Nesse sentido, já tenho algumas portas abertas. Afinal, esse trabalho tomou o próprio caminho. É ponto de
encontro entre design, arte e moda,
se construiu e se destina a agradar a
um público pequeno, agrada a um
nicho específico. Por isso tenho que
mostrá-lo ao mundo.”
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