Meu sonho (?) americano!

Transcrição

Meu sonho (?) americano!
Meu sonho (?) americano!
(adaptação livre de texto de Max Gheringer)
Rui Carvalho/2004
Estamos no dia 01 de Setembro de 2097, uma quarta feira, agora chamada oficialmente de
wednesday, depois que o projeto de anexação democrática mundial implementado pelo presidente
Thoma Busha, transformou o Brasil no 88° estado dos United States of World América, banindo a língua
portuguesa, e todas as demais, da face da terra!
Evidentemente houve gente que não gostou da reengenharia geográfica promovida por Mr.
Busha, principalmente depois que ele converteu a Torre Eiffel no mais novo elevador do pânico do
Universal Theme Park em que se transformou a antiga capital francesa! Fazer da Floresta Negra a
European Disney World Forest foi quase uma conseqüência natural do processo de aculturamento, e
construir no Coliseu de Roma o maior Mcdonald’s a céu aberto do novo mundo, é claro, foi uma idéia
considerada americanamente genial!!!
Mas tudo bem, nem tudo é tristeza, e afinal, aquelas ruínas romanas estavam mesmo caindo aos
pedaços desde que o maluco do Nero brincou de fogueirinha e tacou fogo na cidade inteira antes da
queda do Império! Já que uma reformazinha era inevitável, porque não aproveitar para dar um ar mais
colorido àquela sisuda construção de sabe-se lá quando? Pronto, convocar o Ronald Mcdonald para
enfeitar o histórico monumento, foi uma idéia que obedeceu inteiramente à lógica americana e ao seu
tradicional senso estético.
Mas vejam o lado bom da unificação mundial: agora todos os brasileiros têm passaporte
americano. Para viajar à matriz não precisa mais justificar até a cor das cuecas em entrevistas com clima
de inquisição! Além disso, o salário é pago em dólar e a carinha do Mickey aparece no holerite!!!
É verdade que muitos brasileiros, eu incluído, ainda conservam o gostinho xenófobo e brega de
escrever na antiga língua portuguesa! Mas isso só é tolerado porque, como nasci no longínquo ano de
1955, sou beneficiado pela lei de assistência aos membros da quinta idade!
Mas há coisas que não estão certas! Aos 142 anos, trabalhando há mais de 120, mesmo em
plena forma (é claro que tenho trocado alguns órgãos e membros do meu corpo, principalmente nos
grandes saldos dos hipermercados WalSmart) mas já sou obrigado a ouvir insinuações de que minha
permanência à frente do importante departamento de estudos aleatórios da companhia, está
comprometendo os resultados da corporação na bolsa de valores de Netuno! Falam até em
reengenharia, downsizing, traduzindo: demissão!!!
Que coisa mais antiquada! Isso não passa de discriminação e preconceito! Basta a gente passar
um pouco dos 100 anos e já começam as conversinhas nas nossas costas durante o cafezinho (sintético,
claro!), os cochichos nas reuniões (virtuais, evidentemente!), os olharzinhos marotos escorrendo pelos
cantos dos olhos postiços dessa juventude siliconada e acéfala que mal chegou aos 80 anos!....Pois é
meu amigo, parece que há coisas que nunca mudam!
Mas eu não me importo, o Presidente Busha V diz que todos somos iguais (uns mais iguais que
outros, claro!) e que temos os mesmos direitos enquanto a bandeira dos USWA tremular nas fachadas
das Kitchenettes dos cinco cantos do mundo! Se ele diz, quem sou eu para discordar? Afinal, o último
que discordou de um Busha, arrumou dor de cabeça por anos a fio e teve que abandonar o planeta!
Embora isso tenha sido há muito tempo, um Busha é sempre um Busha, é melhor não arriscar!
Mas às vezes tenho saudades dos tempos de antigamente, aliás, saudade foi a única palavra
portuguesa que entrou no MAD – Mega American Dictionary – por não existir nenhum vocábulo
americano original com o mesmo significado! Ainda assim, entrou como “SaintAge” numa tradução livre,
prática e por afinidade sonora, bem americana! Com a tradicional sutileza dos donos do mundo, o mais
próximo que se chegou de saudade foi isso: SaintAge, algo como “SãoIdade”...!!! Mas vá lá...pelo
menos emplacamos uma palavrinha no famoso MAD! Já antigos povos menos cultos como franceses,
italianos e ingleses, não foram nem lembrados!
Por incrível que pareça, ainda sou do tempo em que se fazia uma coisa muito interessante
chamada sexo (quem tem mais de 120 anos vai se lembrar com SaintAge dessa maravilhosa prática!)
servia, entre outras coisas para constatar o quanto as mulheres são superiores a nós, e também para
reprodução da espécie, além de motivos menos nobres. Hoje as coisas são muito mais práticas, basta ir a
qualquer wallgreen e adquirir um kit de óvulo e espermatozóide (o número 3 é o preferido da
população, pois vem com a opção de escolher a cor dos olhos e ainda acompanhado de um chocalho do
mickey de brinde!)
De posse do kit escolhido, basta ir a um terminal público de embriões, plugar o kit ao tubo
inseminador (popularmente chamado “easysex”) e digitar a configuração desejada do genoma no
painel de operação, não esquecendo os comandos das cargas de proteínas e das quantidades de
progesterona e testosterona que determinarão o jeitinho do pimpolho.
Tudo muito simples, em duas semanas a gente recebe em casa (pelo sistema Fodex) a ficha
fitogestoergométrica da criança, contendo o manual de instruções do rebento com informações sobre
os custos de manutenção, alimentação, e educação, e a simpática mensagem “are you sure you want to
be father?” (algo como: tem certeza que tu quer entrar nessa memo?) Apertando a opção “yes” o
processo é iniciado, já a opção “no” aborta todo o sistema e você pagará apenas a taxa de
administração, enquanto a opção “I guess So” (acho que num sei!) obrigará você a participar de uma
série de seminários sobre sexualidade, palestras de aconselhamento com psicólogos, cartomantes,
numerólogos e terapeutas alternativos, curso de noivo, de biogenética e de puericultura! O livro antigo,
de 2002, “Criando Meninos” de Steve Biddulph, vem de brinde e pode ser trocado por uma lata de
marshmellow em qualquer WalSmart!
É um luxo só este meu mundo novo e globalizado, ou melhor, unificado!!! Meu filho mais novo, o
132769WC169, vulgo "69", agora resolveu dar uma de curioso e fica me fazendo perguntas sobre o
método arcaico de reprodução por ato sexual! Quando eu tento explicar que o ato ia muito além da
simples reprodução, pois significava prazer, carinho, amor, volúpia e gozo, ele faz aquela carinha de nojo
que só os jovens recém saídos da universidade sabem fazer, e me pergunta por que no meu tempo as
coisas eram tão complicadas!!!
Tudo bem, eu tenho que perdoá-lo, pois tem apenas 5 anos e ainda nem terminou o mestrado
em estudo da técnica digital de entortar bananas tropicais!!! Enfim, um semi-analfabeto que talvez um
dia entenda melhor as coisas, quando estudar as relações humanas no chamado PJS - Período Jurássico
Sentimental (1955-2021) quem sabe?.
Mas não posso dizer que este mundinho automático, exalando ciência e tecnologia pelos quatro
cantos, não seja divertido e, sobretudo, muito prático! Até para dormir as coisas estão mais fáceis, basta
conectar o capacete sonoterápico, escolher a memória virtual que mais lhe agrade, e relaxar com os
sonhos que você sempre sonhou sonhar!!! O máximo da sofisticação é quando algum dos eletrodos da
conexão digital entra em pane e interfere no enredo escolhido. Nessa hora, pasmem, até nessa hora, é
que percebemos o verdadeiro valor da tecnologia! Apenas uma fração de segundo depois de constatada
a pane no sistema, um dispositivo automático acionado pelo sensor ligado à memória seletiva original
(humana), dá um duplo clique no ícone exit, e permite que a gente volte imediatamente para a nossa
realidade!
Foi o que aconteceu esta noite! Só então eu percebi que ainda estamos em 2003, que os USWA
são apenas uma alucinação de mau gosto, os meus velhos livros em português ainda estão empoeirados
na minha estante enquanto eu me esforço para aprender inglês em oito semanas, e o dicionário mais
conhecido ainda atende por Aurélio, embora eu nunca o use!
O mais importante, porém, foi perceber que apesar de toda a tecnologia, as crianças ainda são
geradas pelo velho e bom método da relação sexual!
Ufa!...Que bom que tudo não passou de um sonho pouco provável!... até quando é coisa que não
me atrevo nem a perguntar!
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