Britando
Transcrição
Britando
Andei refletindo sobre nosso glorioso Romero Brito e naturalmente sobre todos outros pintores próximos de sua "estética", tais Herve di Rosa, Robert Combas (franceses seus antecessores) e tantos outros jovens que cresceram assistindo desenhos animados. Di Rosa Robert Combas Toda essa molecada (poderíamos naturalmente acrescentar Basquiat, quase todos grafiteiros e muitos e muitos outros do fim do século passado e início deste) procede praticamente da mesma forma: um desenho simplificado , fortemente baseado no contorno externo das figuras, geralmente preto e preenchimento das áreas da tela assim sub-dividida com cores planas, a maior parte do tempo saturadas. Basquiat Essa forma de proceder, comum no desenho infantil, acaba nos remetendo de volta à alta idade média e principalmente, poderíamos dizer, ao vitral, pois o principal modelo desses jovens artistas é o desenho animado, o qual também funciona com aporte de luz. Tanto no desenho animado como no vitral o imperativo do pesado contorno externo é técnico; no primeiro para permitir a realização de um enorme número de imagens e no segundo servindo para sustentar as praias de vidro colorido. Como jamais cansava de repetir o grande Gombrich, em arte não existe evolução, pois o que se ganha de um lado sempre se perde do outro. Em arte existem mutações e transformações. Assim se os artistas da alta idade média tiveram que renunciar a representação "naturalista" greco-romana sob a ameaça de serem considerados idolatras, perdendo assim a maestria atingida pelos antigos em quesitos como a morfologia, o claro escuro, etc., ganharam, por outro lado, com a possibilidade de empregar seus pigmentos mais belos e preciosos sem quaisquer limitações. Por isso encontramos nos afrescos, nas iluminuras e nos mosaicos, praias de cores puras e intensas. Seria tentador, prosseguindo o paralelo com a atual geração, considerar a farta oferta de colas e pigmentos sintéticos bem como as tecnologias de fabricação e reprodução de imagens. Isso não deve entretanto nos iludir fazendo crer que tais recursos poderiam levar a arte a ganhos que não implicassem em perdas. As imagens produzidas em telas eletrônicas, sendo imagens produzidas com aporte de luz , só se podem comparar aos antigos vitrais. Suas materializações em objetos pigmentados decepcionam. Nenhuma tiragem impressa, nem aquelas que multiplicam as passagens e pigmentos, como certas edições de livros de arte ou plottagens em telas de linho conseguem competir com a verdadeira pintura, devendo ser na minha opinião consideradas no máximo como gravuras. Na pintura de fato, poderíamos comparar os grafites de hoje com os murais e afrescos de ontem. Aí ocorre um interessante deslocamento de enfoque: se os afrescos cantavam os grafites berram. Talvez por outras razões ainda além das fontes de inspiração (o desenho animado, a história em quadrinho, o cartaz publicitário) cujas técnicas de fabricação industrial, sobretudo a quadricrômia, conduzem à cores gritantes mas pobres, além de texturas e matérias praticamente nulas. Talvez por dirigirem-se à um olhar que tornou-se unicamente utilitário, perdendo sua faculdade de contemplar, o que é um condicionamento cultural contemporâneo resultante do bombardeio incessante de imagens de toda sorte a que estamos todos submetidos - a poluição visual. Assim, como no rock-end-roll, o importante para os grafiteiros é gritar mais alto que as buzinas e os motores: "não é a técnica refinada que importa mas a emoção" (como se em arte fosse possível separar uma coisa da outra). Aqui também se mistifica o auto-didatismo, apoiado numa utopia igualitarista, segundo a qual todos são artistas e podem fazer arte natural e espontaneamente sem precisar estudo algum, o que acaba simplesmente nivelando por baixo. Isso situa movimentos como o "bad peinting" ou a "figuration libre" e muito dessa pintura "jovem" e "rock-end-roll" Sem dúvidas a intensa produção de imagens fotográficas e video-gráficas também contribuiu para que os artistas procurassem refúgios distantes da representação de tipo "naturalista" e podemos remontar aos fauvistas e particularmente à Matisse, ao início do modernismo para encontrarmos esse retorno a uma pintura plana, feita de praias coloridas uniformes. Mas da mesma forma que o Rock foi perdendo sua verve e sua revolta e em muitos casos se foi edulcorando e se transformando em simples música de super-mercado ou de jingle, assim também vertentes do bed peinting de Basquiat e de seu homólogo francês, Robert Combas , (esses marginais viciados em heroína) acabaram gerando também sub-produtos bonzinhos e pictoricamente corretos. Até mesmo alguns de nossos bad boys d'antão, sob às pressões do mercado e a carestia das drogas se puseram a pintar florzinhas e bichinhos. É nesse registro que encontramos nosso querido Brito com seus gatinhos, seus vasinhos de flores, seus coraçõezinhos e beijinhos. Longe vão os tempos em que - decorativo - era o pior insulto que se podia fazer a um pintor... Aqui imergimos nas florestas disneyanas de açúcar cristal e de marzipan, na qual o jacaré é amiguinho do marreco e os mosquitos, se mosquitos houver, não mordem. Um mundo completamente esterilizado, no qual nenhuma tensão, nenhuma angustia, nenhuma dúvida vem perturbar o soninho do bebê. Esse mundo não é e nunca foi o mundo da arte; ele é o mundo da publicidade e da propaganda, com seu absoluto imediatismo e sua absoluta superficialidade. Aliás, mesmo sendo bem feita, bem harmonizada cromaticamente e bem composta plasticamente uma imagem publicitária não é obra de arte; ela não permite a profundidade e a liberdade de espírito da arte. Revejamos Di Rosa, por exemplo... para não falarmos em Combas ou Basquiat - "esses drogados". Existe a referencia ao desenho animado, mas como no próprio desenho animado, ali estão também os personagens malvados e assustadores...os vilões e os monstros, como na vida real. O mergulho no imaginário infantil não redunda numa obra infantilizada. Poderíamos ainda lembrar Jean Dubouffet e "l'art brut" ao vermos as "esculturas" do nosso homem. Se comparamos as de um com as do outro a única conclusão possível é que as de Jean Dubouffet são esculturas. Por isso eu diria que Romero Brito não é um predecessor de alguma coisa , mas sim um sucedâneo de várias coisas; um diluidor cujo mérito principal parece ser a faculdade de afagar o cachorro no sentido do pêlo e o tino comercial . Certamente qualidades admiráveis, mas de outra ordem que as qualidades artísticas (a extremo rigor podemos lhe creditar uma certa sensibilidade para as cores, o que também é indispensável para o ilustrador, o designer, o decorador). Arte mesmo é uma outra conversa. O que nos aponta seu extravagante sucesso é o grau de frivolidade, de superficialidade e de sugestibilidade atingido pela sociedade de consumo e o distanciamento da arte atingido. Pode não ser decadência...mas que parece, parece!