Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ

Transcrição

Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ
1
NO 5 - 2004/1
JORNAL LABORATÓRIO DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ
-
número 5 - 2004/1
2
NO 5 - 2004/1
O DIA-A-DIA NA BOCA DO POVO
Histórias que os grandes jornais não contam são pauta na imprensa comunitária
Além disso, o portal já conseguiu ter suas matérias
citadas em grandes veículos como a “Veja” e o “Globo
On Line”. O “Viva Favela” acaba se destacando também
Kombis ilegais, pequenos comerciantes, cultura são pelo fato de ter conteúdo de fácil acesso aos formadores
temas comuns nos grandes jornais e emissoras de tele- de opinião e reunir matérias sobre diversas localidades do
visão. Mas, ao contrário do que se espera, kombis ilegais Rio de Janeiro. Freqüentemente, os meios de comunicasão defendidas por prestarem serviços não oferecidos ção comunitários são restritos a uma área, não configuram
pelas empresas de ônibus, os pequenos comerciantes um panorama geral de diversas regiões, o que não dessão pessoas comuns de origem humilde e o conceito perta tanto interesse das pessoas de fora.
Assim acontece com a “TV Tagarela”, televisão de
de cultura é definido por um frentista, uma vendedora
e um transformista.
rua que tem sua produção e projeções na Rocinha. Há
Desta maneira são formadas as notícias das rádios, seis anos, jovens entre 13 e 20 anos geram vídeos sobre
TV’s e jornais comunitários, a partir de um olhar inter- temas da sua vida cotidiana ligados à cultura, saúde e
no e portanto diferente, sobre as comunidades educação. E também aprendem a ver a mídia de forpopulares. Além de acreditarem que “good news are news” ma mais crítica, compreendendo como os programas
(boas notícias são notícias), dão voz a uma parcela da de televisão afetam suas vidas. Quando o material está
população que não costuma ser
pronto, o grupo projeta em praças
público alvo da grande mídia. A
públicas da redondeza. “Eu adoro. É muito legal ver o pessoal
“TV Tagarela”, da Rocinha, e o
jornal “O Cidadão”, da Maré, são
daqui na TV. Sem dizer que é a
maior festa!”, conta Wagner
exemplos bem sucedidos de meios de comunicação comunitária.
Thimóteo, estudante da Rocinha.
Eles conquistaram a credibilidade
Com a preocupação de construir este novo olhar sobre a favela
da população local – até porque a
é que Viviane Couto trabalha em “
equipe é local e o foco também.
Dentro deste espírito, surgiu
O Cidadão”, jornal de bairro do
Complexo da Maré. Uma das funem 2001 o “Viva Favela”, portal
que se propõe a cobrir os fatos
dadoras do jornal, Viviane acredita
de diversas comunidades, unindo
que o ideal de retratar o lado simjornalistas profissionais a corresples dos moradores, o cotidiano da
pondentes comunitários. Os
comunidade com suas característicorrespondentes, moradores de
cas positivas e negativas, trouxe a
favelas, foram escolhidos a partir
identificação e a legitimidade por
de uma prova de conhecimentos
parte dos leitores.
gerais e redação, sem a exigência
O fato de ter nascido da necesCapa do Jornal “O Cidadão”, maio de 2004.
de qualquer experiência ou formasidade
de
fortalecer
os
ção na área jornalística, seja ela
relacionamentos internos e a autoescrita ou fotográfica. Em função disto, eles recebem estima dos moradores, que vêm seu bairro normalmente
periodicamente treinamento e orientação para aprimo- retratado na imprensa como lugar de pobreza e violência,
rar seu trabalho.
molda toda a conduta de concepção jornal, da estruturação
Segundo o “Viva Favela”, é importante a ponte da equipe até a preocupação com o perfil das matérias.
que estes profissionais fazem entre comunidades e ins- Os acontecimentos são apurados e descritos por pessoas
tituição, e a sua descrição dos fatos. Por outro lado, que presenciam e entendem a dinâmica da comunidade.
segundo Tetê Oliveira, editora do portal, a presença de Os leitores se sentem mais próximos e participantes, o
jornalistas profissionais é fundamental não somente para que gera maior diálogo entre mídia e público. “O jornal
a construção de algumas matérias, mas também para a se empenha em atingir a maior diversidade de público
correção e adaptação dos textos produzidos pelos cor- possível. Tem níveis diferentes de matérias, para atingir
respondentes.
universitário, pai de família e dona de casa... Tem gente
Para os moradores de comunidade, o portal ainda que não sabe ler, vê as figuras e acaba pedindo para alnão conseguiu conceber um discurso diferenciado. O guém ler a matéria para ela, porque se identificou com o
“Viva Favela” não faz muito diferente da grande tema”, conta Viviane Couto, repórter de jornal e moramídia”, critica Lidiane Ferreira, moradora da comuni- dora da Maré.
dade Mata Machado, no Alto da Boa Vista. “Eles
Os moradores do Complexo da Maré, que são leiglamourizam, trabalham a exceção. Na verdade, o cara tores de “O Cidadão”, sentem a importância de ter
que deu certo na favela parece um bandido em poten- um jornal produzido por eles. “A TV gera preconceicial que foi salvo. O que eles fazem de legal é abrir um tos porque só mostra o lado ruim. A primeira coisa
espaço maior para se falar de experiências pouco que dizem é que aqui é muito perigoso. Perigosos são
divulgadas.” De qualquer maneira, o “Viva Favela” é todos os lugares. O Leblon também é perigoso e viobastante conhecido, dele originaram-se a “Rádio Viva lento”, diz Arialdo de Paiva, morador da Maré. Na sua
Favela”, de transmissão on line, e a “Rádio Viva Rio”, opinião, “O Cidadão é importante para divulgar o que
que ocupa o dial da antiga “Rádio Mundial” e tem pro- tem de bom e também para discutir e tentar resolver
gramação eclética, produzida por pessoas de diferentes questões importantes. Hoje, eu acredito que ele precisa
até ser um pouco mais engajado do que vem sendo.”
lugares do Rio de Janeiro.
Cristiane Sardinha Chagas
Viver no Rio é viver cercado de clichês: o Cristo
empoleirado no morro em fim de tarde cor de rosa, a
praia lotada de gente bonita e abusada, braços erguidos
no Maracanã, samba no carnaval, samba de rua, roda
de samba...
Mas por trás destes símbolos tão conhecidos
existe uma forma de ser carioca que, se por vezes
respeita a visão idílica dos cartões postais e da
publicidade, por outras escapa completamente a uma
análise mais apressada.
Apesar disto, nos dias de hoje a única alternativa
de retrato que tem sido apresentada aos cariocas é a
de grande parte da mídia, que vê na violência latente
de cidade grande mal administrada um glamour
folhetinesco e espetacular.
Cidade linda, cidade suja, grande e colorida, feia
e mal-cheirosa. Braços de mar, línguas de óleo.
Prostituída, notívaga, dias claros de sol aberto, café
com pão no balcão da padaria. O Rio é um dos
maiores paradoxos do Brasil.
A proposta deste jornal foi não se curvar a
nenhuma destas duas imagens: nem só a cidade para
inglês – e americano, francês, alemão, etc. – ver;
nem apenas a dos noticiários de câmeras escondidas,
manchetes cuspindo “números alarmantes” e imagens
cheirando a celulóide.
Ainda assim, respeitemos em parte os clichês:
um pouco de sal, suor, sorriso, beleza e violência faz
parte do dia-a-dia de todo carioca.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Aloisio Teixeira
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Direção
José Amaral Argolo
Coordenação do Curso de Jornalismo
Beatriz Becker
Núcleo de Imprensa
Elizabete Cerqueira coordenação executiva
Cecília Castro programação visual
número 5 - 2004/1
Informativo produzido pelos alunos da
Escola de Comunicação da UFRJ
Orientação acadêmica
Maurício Schleder e
Paulo Roberto Pires
Coordenação editorial
André Motta Lima
Elizabete Cerqueira
Assessoria gráfica
Cecília Castro
Apoio
PR-1
SG-6
Divisão gráfica/UFRJ
Este número foi produzido com matérias elaboradas
pelos alunos da disciplina Jornal Laboratório.
As fotos e ilustrações são de responsabilidade
exclusiva dos alunos.
Término em 30/07/2004.
TIRAGEM: 1.000 exemplares
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
3
NO 5 - 2004/1
Cariocas por quem não é
O retrato idealizado do típico morador da cidade virou até letra de música
Flávia Cohen
Cariocas são sacanas, cariocas são modernos,
cariocas são diretos. São tão alegres, tão espertos e
tão sexy. Um retrato do típico morador do Rio de Janeiro está, curiosamente, nas palavras de uma gaúcha, Adriana Calcanhotto, que na letra de “Cariocas”
não só homenageia sua cidade de adoção como tenta
descrever o que é viver nela. Dos 16 versos que descrevem o cotidiano do carioca, um único parece ser
consenso para quem está nesta cidade: “cariocas não
gostam de dias nublados”.
Mais do que uma impressão, trata-se de uma estatística. Segundo pesquisa realizada no início deste ano
pelo Departamento de Turismo da UniverCidade e a
Secretaria Municipal de Turismo, o último verão, com
jeito de outono, irritou os cariocas - mas não só eles. De
mil turistas estrangeiros que vieram à cidade nesse período, o principal problema apontado por 25% deles foi a
chuva, considerado mais grave do que dificuldades no
transporte e problemas de segurança. Talvez por terem
entrado no espírito da cidade.
O curioso é entender por que as atitudes e maneiras de viver de um carioca são tão marcantes e
possíveis de influenciar pessoas que nem sequer nasceram nesta cidade. Um dado esclarecedor, segundo
a antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ilana Stronzenberg é a própria história do Rio.
Ter sido centro da política nacional muito tempo e passagem de pessoas e culturas diferentes, lhe deu um
caráter cosmopolita que marcou de maneira singular
um estilo carioca de viver. Ela comenta que a história
dessa cidade como portuária, capital federal e “caixa
de percussão de cultura” reforçou uma imagem do
“viver carioca”. No entanto, observa que esses aspectos não retiraram a informalidade da cidade. Essa
característica informal, para ela, pode ser constatada
na famosa imagem que se fez do carioca “que não
gosta de trabalhar”, construída sob aspectos geográficos bastante peculiares ao Rio:
– Esta imagem de uma cidade que consegue
juntar trabalho e lazer estão muito arraigada nisto que
chamamos de “imagem do carioca”. Afinal o Rio de
Janeiro é um grande centro urbano à beira do mar explica.
Mas ressalva que não existe uma opinião única, outras interpretações podem ser feitas com essa
imagem:
– Além de ter essa caracterização que
desqualifica do tipo “ carioca não trabalha”, há também aquele que vê como “carioca trabalha, mas nem
parece por que leva a vida numa boa”- complementa.
Andréa Frota, 23 anos, aluna do curso de teatro Martins Pena, veio de Fortaleza para estudar no
Rio de Janeiro e faz coro com os que duvidam do
gosto carioca pelo trabalho, juntando a este preconceito regional um outro muito difundido:
– Carioca é um pouco de baiano, tipo está tudo
bem assim, então deixa como está.
Guedes de Freitas, 54 anos, jornalista, trocou o
Mato Grosso do Sul pelo Rio de Janeiro há 34 anos,
também vê parentescos entre cariocas e baianos. Para
ele, o fato de Rio e Salvador terem sido capitais do
Brasil deixou nas cidades uma arraigada mentalidade
de funcionalismo público, aquele emprego que traz
estabilidade e tranqüilidade.
- Por ser praticamente vitalício, o emprego público não gera competição, o que pode ter criado essa
atitude despreocupada com a vida.
Este “relaxamento” é, quase sempre, associado à mitológica malandragem do carioca. Um mito de
duas caras, do sujeito que tenta vencer uma dificuldade sem prejudicar ninguém ou daquele que é considerado mesmo um “abusado”. No que depender do mineiro Felipe Vasconcelos, 18 anos, malandragem é
qualidade, sinônimo de atitude, mas sua colega Aline
Chagas, 29 anos, gaúcha como Calcanhotto, não se
convence disso:
– Acho que os cariocas, com esse jeito malandro, na verdade se enganam, pois não sabem é viver.
Na lista de defeitos, só a impaciência rivaliza
com a malandragem. Bastam poucos minutos no trânsito para comprovar que o verso “cariocas não gostam de sinal fechado” é muito mais do que uma licen-
“Esta imagem de uma cidade
que consegue juntar trabalho e
lazer estão muito arraigada
nisto que chamamos de
‘imagem do carioca’.
Afinal, o Rio de Janeiro é um
grande centro urbano
à beira do mar”
Ilana Strozenberg, antropóloga
ça poética. Para a publicitária Helena Dias, de 41 anos,
que se diz “carioca da gema”, o carioca nem precisa
estar motorizado para demonstrar que a paciência é
palavra fora de seu dicionário:
– O carioca é aquele que sempre dá “um jeitinho” de furar ou encontrar um “velho amigo” no meio
da fila - comenta.
É certo que todos esses aspectos criam estereótipos da imagem do Rio e de seus habitantes. Ilana
analisa que é quase impossível eliminar os estereótipos da vida de uma população e que em certos casos
eles podem servir de forma positiva na orientação de
uma sociedade. O perigo, segundo ela, é quando os
estereótipos podem pautar determinados comportamentos que tem conseqüências no destino desta população.
– Se o estereótipo for levado a sério, pode vir a
ocasionar brigas de rua, denúncias, discriminação política. - explica.
Mas um estereótipo já virou quase lei na cidade: “cariocas têm sotaque”. É tema de muitas discussões, na maioria das vezes sem entendimento. A maior parte dos cariocas acha sua maneira de falar mais
despojada. Já não-cariocas pensam de outra forma.
Luciana Méier, de Campo Grande acha pura pretensão essa convicção do carioca de classificar seu sotaque como o melhor.
- Nós temos de aceitar todas as formas de se
expressar, e não desprezar alguns e exaltar outros,
como o carioca faz -comenta.
O lingüista Denis Russo Burgierman explica que
a língua falada, no início da colonização portuguesa no
Brasil, era mais próxima do modo paulista e só veio
mudar a partir do século XVII com a introdução do
trabalho escravo e a vinda de diversos sotaques de
imigrantes ao longo do tempo - Foram estas circunstâncias que criaram o chamado português
“abrasileirado”- ressalta. E esclarece qual foi a origem histórica do jeito de falar carioca:
– Quando a família real portuguesa mudou-se
para o Rio, em 1808, trouxe 16 mil lusitanos, numa
cidade que tinha 50 mil habitantes. Essa gente toda
mudou o jeito de falar carioca. Data daí o chiado no
“s”, como em “festa”, que fica parecendo “fieishta”.
Interessante é saber que existem muitas pessoas morando no Rio de Janeiro que nem sequer nasceram na cidade. Ou vieram desde pequenos, ou para
trabalhar, ou por opção mesmo. Mas ao chegar aqui,
adotam um único estado em comum: o de espírito.
– Essa imagem do carioca não tem muito a ver
com a origem, mas com uma determinada maneira de
ser, de comportamento, atitude diante da vida - comenta Ilana.
O grande compositor e poeta Vinícius de
Moraes, que mais do que, na certidão provou ser “carioca da gema” na vida, escreveu uma crônica,
publicada em 2001 pela Editora Abril, sobre esse espírito presente nos ares do Rio. Para ele “ser carioca
é mais do que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em meio à
sua adorável desorganização, é não gostar de levantar cedo, trabalhar com ar de ócio, com um olho no
ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir
um programa, tendo como o único programa o não têlo, é dar mais importância ao amor do que ao dinheiro,
ser carioca é ser Di Cavalcanti”. Como diria um bom
carioca: “falou e disse!”.
4
NO 5 - 2004/1
O malandro não é mais aquele...
Arquivo JB
Natalia Sahlit
Chico Buarque cantou
há mais de vinte anos que o
bom e velho malandro da Lapa
havia sido substituído por um
outro “com retrato na coluna
social”. Na década de 1990,
outro compositor nascido e
criado na cidade, Toni Garrido
descreveu os cariocas como
“corpos malhados” e “sorrisos
talhados” que perambulam pela
Zona Sul de bar em bar. Mas
como foi que o mulato dos
botequins da Zona Norte do Rio
Antigo, que entoava o samba e
dançava o maxixe, se
transformou no garotão
bronzeado, “parado em
qualquer praia” e “solto em
qualquer lugar”?
É fato que a cultura da
picardia, da molecagem e do
“jeitinho” foi sendo construída
junto com a cidade do Rio de
Janeiro. Capital no século XIX,
a cidade se tornou centro
econômico e cultural do país.
A elite carioca, acostumada às
modas que aportavam no cais,
pretendia fazer aqui uma cidade
cosmopolita como Paris,
ignorando a cultura popular que
começava a surgir da mistura
de ritmos e costumes europeus
com africanos. Antônio
Herculano Lopes, no livro
Entre Europa e África: a
invenção do carioca, cita José
Veríssimo para exemplificar
como o negro era mal visto:
O africano alegre,
descuidoso, afetivo, com sua
moralidade primitiva de
selvagem, invadiu tudo e
imiscuiu-se em tudo. Nunca
se notou bastante a
depravada influência deste
particular tipo de brasileiro,
a mulata, no amolecimento
do nosso caráter. “Esse
fenômeno de afrodisismo
pátrio”, como lhe chama o Sr.
Sílvio Romero, foi um
dissolvente da nossa
virilidade física e moral.
A audaciosa reforma
urbana de Pereira Passos
Retratos da malandragem na gravura de Álvaro Martins e na figura do sambista Noel Rosa: bebida, mulheres, cigarro e música
trouxe glamour e sofisticação
ao Centro da cidade,
desenhando ruas largas como
as das grandes metrópoles e
expulsando, para os subúrbios
e as favelas, moléstias, sujeiras
e povo. E é a região conhecida
como “Pequena África”, lá
para os lados da Cidade Nova,
que já nas primeiras décadas do
século XX vê nascer o maxixe,
o choro e o samba, além do
teatro de revista e outras tantas
manifestações geradas pela
interseção da cultura dos
escravos recém-libertos com os
brancos.
– A malandragem está
diretamente ligada ao fato de
sermos colonizados. O negro
teve que dar um “jeitinho” para
sobreviver a esta violência,
com astúcia, alegria e música.
E como o Rio foi capital durante
muito tempo, havia aquela idéia
de “tem alguém trabalhando
para mim” – diz o antropólogo
José Carlos Rodrigues.
A cidade representava
também uma espécie de sonho
de ascensão, já que era a corte.
Para cá vieram pessoas de
todo o Brasil e vários
estrangeiros, o que aumentou
esta mistura tipicamente
carioca. O fato de o Rio ser
quente, ter praias e belezas
naturais, além disso, contribuiu
para a idéia de que aqui não há
trabalho, só lazer.
Mas, e hoje, quem é o
carioca? Para a historiadora
Esther Kuperman, esta imagem
de um sujeito divertido, cheio de
ginga e galhofa atualmente não
passa de um mito. Só existe na
cabeça dos turistas, que
restringem o Rio aos hotéis de
luxo de Copacabana.
– Essa visão é algo que
interessa vender para o exterior.
Só que nos lugares de
convivência da cidade já não há
solidariedade. É só ver a cara
das pessoas no metrô, a forma
como caminham pelas ruas,
esbarrando, sem pedir licença,
xingando no trânsito. O
malandro bem-humorado virou
o malandro agressivo, o que
quer se dar bem às custas de
todo o mundo. O carioca, hoje,
é individualista; infelizmente,
está cada vez mais próximo do
paulista e de outros moradores
de grandes metrópoles – afirma
a historiadora, quase em um
desabafo.
Ela acredita que, como
o fim da ditadura militar, a
repressão às formas de união
e convívio passou a ser sutil e
eficiente. A competitividade
seria ensinada em escolas e
incentivada pelos meios de
comunicação de massa. Tudo
isto, de acordo com Esther,
modificou a identidade do
carioca.
José Carlos Rodrigues
acha que o individualismo é
conseqüência inevitável das
grandes metrópoles, mas vê no
aumento da violência – real e
imaginária – a principal razão
para esta mudança de
comportamento dos moradores
da cidade.
– Como é possível pegar
carona na rua, coisa típica do
improviso carioca, nos dias de
hoje? O malandro, para muita
gente, virou bandido. Esta
agressividade, esta violência são
fruto muito menos da pobreza,
que sempre existiu, do que de
esquemas internacionais. A mídia
também se acostumou a
alimentar este terror, que vende
muito bem. E a violência
imaginária e a real se retroalimentam – acredita ele.
O malandro de que fala
Toni Garrido, no entanto, não é
nenhum destes dois: nem o de
cuíca na mão, mito do passado;
nem o sujeito assustado,
agressivo e violento do cotidiano
da cidade. Ele é um cidadão
alegre, que vagueia pelos bares
da Zona Sul de copo na mão,
cantando samba, sem esquecer
5
NO 5 - 2004/1
Arquivo JB
No quadro
do músico e
pintor
Heitor dos
Prazeres, da
década de
60, um
pouco da
vida
noturna
carioca da
época.
Abaixo,
caricatura
do malandro
por
Claudão
que no dia seguinte tem que
chegar cedo ao escritório.
A publicidade e a mídia
parecem ter dado um charme
a mais ao malandro rejeitado
pela sociedade, que hoje
“chacoalha no trem da Central”,
como adiantou Chico Buarque.
O discurso desta antiga
personagem carioca ganhou
certo glamour e foi adaptado ao
dos moradores da Zona Sul.
– Não é só a cidade
que está partida, mas também
a identidade do carioca. E a
mídia só faz questão de
mostrar o lado do asfalto. Nos
jornais, você encontra
matérias e matérias sobre os
nobres freqüentadores do
Bracarense, no Leblon, mas
onde estão as biroscas da
Zona Norte, dos morros?
Quem freqüenta a Lapa,
hoje? Os “malandros-zonasul”. Pelo menos é só isso o
que se mostra – ressalta
Esther Kuperman.
Thiago Cesário Alvim,
43 anos, dono do Carioca da
Gema, na Lapa – um dos bares
mais citados por jornais e
revistas atualmente – garante
que o público da casa é bem
diversificado. Mas confirma
que o bairro e o samba viraram
modismo.
– Tem uma galera que
vem porque está todo o mundo
falando. A Lapa atrai gente
antenada, de vanguarda. E
também é uma nova opção para
este pessoal. Porque preferir ir
a uma boate nos chamados
bairros nobres para pagar caro,
ver briga? – explica Thiago,
nascido e criado na Gávea.
Para Paulo Celso
Pereira, estudante de 21 anos
da PUC, morador do Leblon e
freqüentador de bares na Lapa,
a repaginação do bairro pela
mídia parece por vezes “meio
fake”.
– O Carioca da Gema,
por exemplo, não é Lapa de
verdade. Aquela parede
raspada é para parecer antiga,
mas é nova. E a cerveja, que
custa R$ 4,00?
O estudante acha que a
imagem do carioca nos dias de
hoje é a do morador da Zona
Sul, que vai à praia no Posto 9
da Praia de Ipanema antes do
trabalho e gosta de sair à noite
para boates como o Oi Noites
Cariocas, na Urca, ouvir Jorge
Ben Jor e Farofa Carioca.
Mesmo assim, Paulo Celso
acredita que o malandro à moda
antiga ainda existe, talvez na
Zona Norte, que ele não
conhece bem.
José Carlos Rodrigues também afirma que a
“boa malandragem” não foi
completamente extinta. O
antropólogo diz que este
espírito carioca ainda está
presente em alguns lugares do
subúrbio, no carnaval e no
futebol – manifestação
cultural e esporte também
adaptados do exterior.
Mas quem é classi f i c a d o c o m o t í p i c o
malandro carioca recusa o
rótulo. Oswaldo Cavalo, 46
anos, ritimista de Zeca
Pagodinho, vive do samba,
adora beber e encontrar os
amigos em bares do Centro,
na Mangueira, na Portela e
até no Carioca da Gema.
Quando é apontado como
malandro, no entanto,
desconfia e acha engraçado.
– Talvez me chamem
assim pela maneira de falar,
pelas gírias antigas, porque
bebo bastante, normalmente à
noite. Mas malandro nunca foi
moda, nunca vai ser. O samba
também nunca esteve na moda,
sempre existiu. Tem que tocar
o samba como ele sempre foi
tocado, não ficar inventando.
Se não, perde a essência – diz
ele, fala mansa, copo de cerveja
na mão, em frente ao Teatro
Rival, no Centro.
E, como quem quer
nada, sintetiza de forma simples
e clara o espírito tão discutido
e mitificado:
– Carioca é quem
nasceu aqui, se identifica com
as coisas daqui, não tem que
dizer que é quem faz isso ou
aquilo. Tem aquele jeito, se tá
te incomodando, se você não
tem afinidade, deixa pra lá...
6
NO 5 - 2004/1
O outro lado da beleza carioca
Mulheres do Rio têm sido vulgarizadas pela mídia
Sâmea de Sá
A famosa moça do corpo dourado que
Tom Jobim e Vinícius de Moraes descreveram
em “Garota de Ipanema” paga hoje o preço de
sua beleza. A imagem sensível, doce, sensual e
alegre da mulher carioca tem estado cada vez
mais apagada na memória dos brasileiros. Em
seu lugar surge uma mulher fácil, “dadeira” e
“gostosa” que tem sido construída e mantida pela
mídia.
Ilana Strozemberg, professora de
Antropologia da UFRJ, afirma que o estereótipo
da mulher carioca tem a ver com o próprio relevo
da cidade. “Essa imagem de mulher sensual e
gostosa tem uma homologia com a imagem do
Rio por ser uma cidade de praias, lazer e belezas
naturais. As curvas das cariocas lembram os
morros e a Baía de Guanabara”, destaca. Por
outro lado, a imagem da carioca não se resume
ao aspecto sensual. Para Diego do Carmo,
carioca, 23 anos, a mulher da cidade do Rio é
também muito trabalhadora. “Penso em
sensualidade, mulher decidida e que corre atrás
de seu ideal” – diz ele.
A beleza suave e a doçura das cariocas
estão de fato entrando em extinção deixando,
assim, o espaço livre para o surgimento de uma
mulher fácil e “dadeira”. “Ela tem um estilo
funkeira que malha muito, é gostosa e vai à praia
direto. Além disso, é muito fácil e interesseira.
Um grande exemplo de mulher carioca pra mim
é a Darlene” , ressalta Frederico Machado,
carioca, 20 anos, numa comparação com a
personagem interpretada por Débora Secco na
telenovela Celebridade.
Segundo Ilana, essa imagem de mulher
gostosona e fácil está mais na cabeça do que no
cotidiano dos cariocas. “A mulher do Rio está
muito associada ao corpo e não a exercícios de
intelectualidade, nem de trabalho. Mas, isso é
apenas um estereótipo criado pela mídia, pois
as pessoas trabalham muito no Rio”, explica.
As cariocas também tiveram expressivas
participações nos movimentos sociais que
marcaram a história do Rio de Janeiro. “Existe
uma outra mulher carioca que tem também a
imagem do Rio: a vanguardista, que atua
fortemente nos movimentos sociais e feministas”,
ressalta a fotógrafa e feminista Cláudia Ferreira.
No entanto, o que predomina atualmente
no pensamento dos brasileiros é justamente o
estereótipo vulgarizado da carioca que tem sido
criado e divulgado pelos meios de comunicação
de massa. “O apelo da mídia em manter essa
imagem, que para mim é muito reducionista, tem
sido muito forte, pois é ela que vende e garante
a audiência. Por isso, fica difícil construir uma
outra imagem da carioca como mulher engajada,
empresária, artista e independente”, afirma
Cláudia.
Para Ilana Strozemberg, a mídia usa suas
produções audiovisuais para disseminar essa
imagem da carioca fácil, gostosa e interesseira.
“A indústria cultural é o grande motor de
manutenção desse estereótipo através de desfiles
de moda, telenovelas, comerciais e da própria
música popular brasileira. Ela cultiva isso, porque
tem grande público que consome”, diz ela.
A doce Garota de Ipanema dá lugar a uma
emergente mulher vulgar. “O aspecto brejeiro,
sensível, suave e receptivo da carioca não está mais
representado na mídia. O que a propaganda faz é
utilizar uma mulher caucasiana que, na minha
opinião, pouco tem haver com a carioca, mas sim
com uma mulher que circula e que vende por ser
atraente, gostosa e fácil”, afirma Sócrates Nolasco,
professor de História da Propaganda na UFRJ.
“Não só a propaganda ajudou a desconstruir essa
imagem brejeira, mas também as telenovelas
como, por exemplo, a personagem Darlene, que
ressalta esse aspecto da carioca interesseira e
gostosona. A menina cheia de graça foi
galvanizada pela grande pressão que a mídia faz
visando alcançar uma maior audiência e, acima de
tudo, vender, vender e vender”.
7
NO 5 - 2004/1
Tem um famoso aqui... E daí?
M ICHELLE P EREIRA
É só passear pela Cidade Maravilhosa
para comprovar. Tanto nos shoppings quanto
nas praias, os artistas podem andar tranqüilamente. Uma liberdade que poderia ser comparada à que tinham quando ainda estavam no
anonimato, não fosse uma e outra manifestação mais calorosa. Normalmente vinda de turistas, que ainda não estão acostumados com
o vaivém dos artistas pela cidade.
“Sempre que vou ao Rio sou surpreendida
com tantos famosos nos cinemas, lanchonetes
e shoppings. E faço questão de pagar alguns
micos. Se eu puder ir falar, abraçar, tirar foto,
conversar... Eu vou mesmo”, conta Melisa
Pedra, 20 anos, que mora em Campos-RJ, e
gosta de vir passar as férias no Rio. “Certa
vez estava no Barra Shopping e dei de cara com
o Fábio Assunção. Eu mal conseguia respirar.
Foi hilário. E todas as minhas amigas estavam
me impedindo de ir até ele, dizendo que eu
iria pagar o maior mico. Mas não resisti. Pedi
pra ele tirar uma foto com a gente. Foi o
máximo! Durante a viagem de volta,
gritávamos o tempo todo: ‘Tirei uma foto com
Fábio Assunção!’ Isso rendeu assunto aqui em
Campos”, relata. “Os cariocas encaram os
famosos como uma pessoa qualquer. Eu não.
Não moro no Rio. Não estou acostumada com
tantas celebridades juntas”, conclui Melisa.
Não há dúvidas: o Rio de Janeiro é a
Hollywood tupiniquim. Em todo o território
brasileiro nenhuma cidade tem aglomerado
tantos artistas por metro quadrado. E nenhuma
tem sido palco de uma relação tão peculiar
entre as celebridades e o público. Para o
músico e jornalista Celso Fonseca, isso
acontece porque, no Rio, a praia e o shopping
ajudam a desmistificar essa relação. “Não vejo
os artistas serem importunados aqui como se
fossem pessoas de outro mundo, diferente do
que ocorre em outros lugares”, atesta Fonseca.
A atriz global Rosamaria Murtinho
lembra da Lei 256/91, de Obrigatoriedade da
Produção Regional. “Se houvesse incentivo e
investimento de empresas e do governo para
a produção artística em outras cidades, os
artistas locais seriam valorizados e o público
desses lugares também se acostumaria a
conviver com eles”, afirma a atriz, com a
experiência de quem há mais de duas décadas
foi alçada ao posto de celebridade. “Apesar
de acreditar que a relação estabelecida entre
fãs e artistas seja, antes de qualquer coisa, uma
questão de educação, é evidente que no Rio é
diferente. Aqui os fãs são menos invasivos”,
conclui Rosamaria.
Até mesmo quem parece fugir a essa
regra, serve para reiterá-la. É o caso dos fãs
que durante horas ficam em frente à Central
Globo de Produção - PROJAC, em Jacarepaguá. São dezenas de jovens, na maioria
meninas, que não pertencem a nenhum fãclube e nem estão ali por causa de um artista
em especial. Eles só querem um autógrafo ou,
pelo menos, um aceno de qualquer uma das
celebridades que diariamente passam por ali.
E para isso protagonizam cenas de histeria e
escândalo.
Em unanimidade surpreendente, todos
os fãs garantem que não têm reações
escandalosas quando encontram-se com
famosos em outros lugares do Rio. Os gritos
são restritos à frente do PROJAC. Mayara
Ferreira, 13 anos, cercada por um grupo de
amigas da Escola Municipal Silveira Sampaio,
em Curicica, afirma que cenas de histeria em
shoppings é “pagar mico”. “Todo mundo que
vem pra cá, vem pra isso. Em outro lugar é
diferente, no máximo você cutuca a pessoa que
está do seu lado e comenta algo sobre o artista
que estiver passando”, conclui Mayara, com a
aprovação de todas as amigas.
Ana Gabrielle da Silva, 17 anos, está
pelo menos duas vezes por semana em frente
ao PROJAC, com a máquina fotográfica em
mãos. Com ar de vitória, mostra a todos os
que chegam um álbum de retratos repleto de
fotos dela com famosos. Como a maioria de
seus amigos, quer apenas um instante da
atenção deles. Muitas vezes consegue. E é por
isso que enfrenta mais de uma hora de viagem
para chegar de São João de Meriti, cidade em
que mora, até o PROJAC. “Aqui eu me sinto à
vontade para abordá-los e posso gritar à
vontade”, conta Ana Gabrielle.
Carioca da gema que se preze não
incomoda celebridade. Gabriela da Silva, 18
anos, precisou aprender isso com a irmã
Aletéia, 28 anos. Gabriela, então com 14 anos,
teve um ataque de histeria e fanatismo ao ver
o ator Rodrigo Santoro andando de skate no
calçadão, no Leblon. “Estávamos sentadas
conversando quando Gabriela viu Santoro. No
mesmo instante interrompeu nossa conversa.
E virou meu rosto com tanta força para que eu
o visse, que quase machucou meu pescoço.
Dizia repetidamente: - Olha, olha, é o Rodrigo
Santoro! E começou a gritar feito louca”, relata
Aletéia, que se hoje ri do episódio, lembra de
que no dia não foi nada agradável. “Gabriela
conseguiu ‘rachar minha cara’ de vergonha. E
ganhar um sorriso (amarelo) de Santoro. Mas
aprendeu. Nunca tantos olhares desaprovadores foram dirigidos pra ela como naquele
dia”, afirma Aletéia.
Pode até parecer exagero, mas não é.
Os cariocas parecem sentir-se mais incomodados do que os próprios artistas ao verem as
pessoas terem reações exageradas ao abordar
algum famoso pelas ruas do Rio. Eles agem
sempre como se fossem indiferentes à presença dos artistas. Afinal, já perderam a conta
de quantas vezes encontraram-se com um deles por aí.
Mayara Ferreira
(terceira da
esquerda para
direita), com as
amigas, em frente a
Portaria 3 do
PROJAC, exibe sua
agenda repleta de
autógrafos. “Eu
grito e faço
escândalo mesmo.
Mas só aqui.
Abordar os
artistas em outros
lugares é pagar
mico.”
8
NO 5 - 2004/1
Profissão
Mula
Sinônimos de sensualidade e ginga, mulheres que ganham a
vida fazendo shows têm rotina menos glamourosa do que
sugerem suas fantasias luxuosas
Tiana Ellwanger
D
Baiana, com seus
inacreditáveis 42
anos, está no Plataforma há 12 e dança a noite
inteira para que seu filho,
com 20 anos possa cursar
a faculdade de Direito
o sonho de namorar um
príncipe à dura realidade de fazer
shows durante toda a madrugada
para sustentar a família. O universo
das mulatas por profissão, ou seja,
aquelas que ganham a vida fazendo
shows, pode ser definido por uma
palavra: contradição. Tanto é que as
próprias profissionais estão muito
longe de um consenso sobre
remuneração, rotina e glamour.
Com
relação
ao
imaginário da mulata, mais
polêmica. Enquanto alguns
acham que elas divulgam
como ninguém a cultura
brasileira dentro e fora do
país, outros vêem essas
imagens como estereótipos
disfarçados, que mais
denigrem do que constroem
o Brasil na sua imensidão
cultural.
As confusões e os
preconceitos com relação aos
shows são inevitáveis. Mas
existem regras claras que partem
dos próprios empresários. A
atriz Solange Couto diz que
quando trabalhava com
Oswaldo
Sargentelli,
empresário que fez história
como ‘mulatólogo’, as normas
eram
rigorosas.
“Se
ganhássemos
algum
presente dos turistas,
estávamos na rua”, lembra
a atriz, que alcançou o
auge com a personagem
Dona Jura em “O
Clone”. Sargentelli, convidado a
participar da trama, morreu após
passar mal durante as gravações.
Regras bem definidas
também guiam o empresário Luís
Fernando, da casa de shows
Plataforma, no Leblon, hoje o único
lugar com apresentações de mulatas
para turistas no Rio. “É
expressamente proibido ter qualquer
contato com os turistas aqui e nos
arredores. Se alguma menina for pega
conversando com alguém que tenha
assistido ao show, a demissão é
imediata”, garante Luis.
Mesmo assim, é difícil evitar
que as mulatas sejam confundidas
com prostitutas. Logicamente não é
à toa, já que o Rio virou sinônimo
de turismo sexual para muitos
gringos que vêm se divertir por aqui.
“As pessoas confundem muito
quando falo que sou dançarina em
uma casa de shows”, conta Delaine
Cristina, que também trabalha no
Plataforma. “Cabe a nós termos
postura e mudarmos essa imagem”,
conclui.
PRECONCEITOS E
RÓTULOS, UMA
CONSEQÜÊNCIA
Os preconceitos, no entanto,
vão além da “confusão” de
profissões. O preconceito racial
também existe, por mais que
disfarçado de sensualidade e
“brasilidade”. Adele Fátima, ainda
lembrada pelo lendário comercial das
Sardinhas 88, conta uma história que
mostra que o uso da imagem das
mulatas tinha limitações. “Quando
estava no auge fui convidada para
fazer um comercial de cigarros, pois
o pessoal viu que eu vendia”, lembra.
“Aí, quando já estava tudo preparado
para as gravações, eles falaram que
eu não poderia fazer, porque era um
anúncio voltado para a classe A”,
indigna-se a mulata, que deslanchou
na carreira de atriz nos anos 80,
contracenando inclusive com Roger
Moore em uma das aventuras de
007. Mas a fama não foi suficiente,
em 1992, quanto tentou eleger-se
vereadora, com plataforma de defesa
de prostitutas e travestis.
Mais disfarçado do que o
preconceito racial, no entanto, é o
estereótipo que se criou com a figura
da mulata, parte integrante do
imaginário social. “Carne, sexo,
sensualidade e ritmo. É isso que a
mulata representa. Por mais que
aparentemente seja uma imagem
positiva, essa imagem nega que a
mulata possa ser qualquer outra
coisa, como uma advogada ou uma
médica”, explica a professora de
Comunicação da UFRJ Ieda
Tucherman. “Isso fica bem claro
quando vemos as representações que
as mulatas e negras têm na mídia.
As novelas são um exemplo. A
mulata pode ser boa de cama, ótima
‘aleitadeira’ e dançar como nenhuma
outra, mas pode reparar que ela está
sempre em uma posição social
inferior com relação às outras
mulheres, como empregada
doméstica”, diz a doutora.
Essa imagem da mulata
sensual é tão forte que as brasileiras
passaram a ser um ponto turístico a
mais no Rio de Janeiro. “Os gringos
vêm para ver o Cristo, andar de
bondinho no Pão de Açúcar e sair
com uma mulata’”, enumera Ieda.
E não há como negar que, se
por um lado os shows de mulatas
mostram um pouco da cultura
brasileira para o mundo, por outro
alimentam um imaginário que
muitas vezes não corresponde à
realidade. Não é raro vermos
“desavisados” que chegam aqui
achando que todas as brasileiras são
mulatas e andam de biquíni
sambando nas ruas.
ROMANCES DE
CONTOS DE FADA
TAMBÉM FAZEM
PARTE DESSE
UNIVERSO
O g osto pelo exótico,
principalmente dos europeus, é
confirmado por quem viaja pelo
mundo fazendo shows. A portabandeira Selminha Sorriso, que já
fez mais de 20 viagens internacionais
como mulata, teve a prova em uma
viagem a Mônaco. “Estava dançando
em Monte Carlo, durante as
comemorações dos 700 anos do
Principado. Nisso, o príncipe
Albert, herdeiro do trono, parecia
me olhar fixamente. Não estava
acreditando naquilo, mas quando
acabou o show, ele veio falar
comigo e disse que que não
conseguia desviar o olhar de mim.
9
NO 5 - 2004/1
ata
Adele Fátima: a
primeira mulata
oficial do Braisl
O caricaturista Lan, à esquerda, imortalizou em seu traço o tipo feminino que é sinônimo da mulher brasileira e atrai
levas de turistas para shows como o do Plataforma (ao centro), uma invenção do “mulatólogo” Oswaldo Sargentelli (à direita)
Ficamos juntos durante todo o
tempo que fiquei lá”, conta.
É bem comum, no entanto,
que esse fascínio pelo diferente gere
ilusões. Baiana, do Plataforma, conta
que já pediu demissão quatro vezes
por causa de viagens. “A gente sonha,
acha que vai fazer uma vida de sucesso
lá fora, que não vai precisar mais
voltar, que vai ficar rica e casar com
um gringo. Mas não é bem assim”,
alerta a dançarina.
Quem acha que para ser
mulata profissional basta ter um
corpo bonito e a cor característica,
está muito enganado. O Plataforma
é um exemplo. Antes de subir no
palco, há um longo caminho a
percorrer. Tudo começa na escolinha,
com ensaios duas vezes por semana.
“É como no futebol. Para entrar na
escolinha de um time profissional,
o cara tem de ter o dom de jogar
bola. Aqui, a mulher tem de saber
dançar, além de ter altura mínima de
1,70 m”, compara Luís Fernando,
sócio da casa junto com seus irmãos.
A seleção é tão severa, que
barrou até Selminha Sorriso, portabandeira nota 10 da Beija Flor. “Eu
tenho 1,67 m. Eles falaram que eu
era linda, dançava bem, mas era muito
baixa. Além disso, sou magrinha. Não
tenho bundão e coxas muito grossas,
como era exigido”, lembra a campeã
do Carnaval 2004, hoje beirando os
30 anos.
CURVAS JÁ NÃO TÃO
IMPORTANTES
Não é à toa que Selminha
alcançou o sucesso. Junto com os
padrões de beleza internacionais, o
modelo de mulata ideal também
mudou dos anos 70 e 80 para cá. A
veterana Edna Souza Menezes,
conhecida como Baiana, que o diga.
“Me sinto fora de forma às vezes.
Hoje todas as meninas malham, não
têm barriga nenhuma. Queria ter mais
tempo e dinheiro para cuidar do meu
corpo”, diz a mulata, que apesar da
preocupação, está em plena forma para
os seus inacreditáveis 42 anos.
As curvas acentuadas, hoje
já não tão exigidas, inspiraram todo
um imaginário em torno das
mulatas brasileiras. Um dos
responsáveis por essa fantasia, que
já tirou o sono de muitos homens
por aqui e no mundo, foi o caricaturista
Lan, que exarcebou essas curvas em
caricaturas que fizeram história.
“Não saberia fazer uma caricatura de
uma modelo magrela. Meus
desenhos são todos em curvas e
ninguém se encaixa melhor neles
do que as mulatas, lindas,
sensualíssimas”, delira o italiano,
casado há 44 anos com Olívia, uma
das Irmãs Marinho, grupo que
rodou o mundo fazendo shows.
Quanto ao casamento, Lan afirma:
“Não sou contraditório”. A
fascinação vem desde a infância.
“Quando saí da Itália e vim morar
em São Paulo, com quatro anos de
idade, tive uma babá mulata,
maravilhosa. Aquela figura de beleza,
carinho e bondade ficou na minha
lembrança. E olha que naquela época,
nem era tarado como sou hoje”,
brinca.
Se o padrão estético mudou,
não há dúvida que a remuneração
também. A grande maioria busca
outra profissão e encara os shows
como uma fase passageira. É o caso
de Janaína Santana, de 30 anos,
dançarina do Plataforma. “Estou no
3º período da faculdade de Educação
Física, na Estácio de Sá da Barra.
Quero ser personal trainer”, sonha.
Sua colega Michele Ramos,
atualmente com 25 anos, também
quer ir longe: “Quero terminar o
ensino médio e fazer Medicina”.
FAMA NÃO É
SINÔNIMO DE
DINHEIRO
Isso é reflexo de uma série
de fatores, como a remuneração
reduzida, a forte concorrência, a crise
econômica e a efemeridade da
profissão. Selminha Sorriso, que
cursa o 9º período de Direito e
atualmente faz parte do Corpo de
Bombeiros, tem opinião formada
sobre o assunto: “Antes, não havia
a crise e o desemprego que vivemos
hoje. Atualmente, mulheres que
poderiam estar trabalhando como
secretárias ou em uma repartição
pública, preferem ser mulatas porque
isso pode ser mais rentável”, explica
com linguagem próxima a de um
economista. “Essa concorrência fez
com que os cachês fossem
achatados”, completa.
Fica difícil ser só
mulata. Baiana, que sustenta
o filho de 20 anos no curso de
Direito da faculdade Cândido
Mendes, dança há 12 anos no
Plataforma e ganha R$ 840 por
mês. Para complementar a renda,
depois do show na renomada casa
de espetáculos, ela corre para a boate
Barbarela, em Copacabana, onde fica
até as 5 h da manhã fazendo shows
de samba.
Mas se hoje os salários não
são dos mais altos, a época áurea das
mulatas gera contradições com
relação à remuneração. Solange
Couto, hoje global, diz que ganhava
muito bem com Oswaldo
Sargentelli. “Era o equivalente a R$
10.000 hoje, isso sem contar os
extras”, afirma a atriz. Já Adele
Fátima, considerada a primeira
“mulata profissional” do Brasil,
conta que, apesar da fama, não
acumulou riquezas e ganhava no
máximo o equivalente a três mil reais
quando dançava com Sargentelli, nos
anos 70.
Solange também conta que,
apesar dos salários mais altos, muitas
das mulatas tinham outras
profissões: “A Etienete era
professora, a Gisele Márcia
telefonista e a Mara Brum tinha um
salão de cabeleireiros”, lembra das
colegas. E, saudosa, fala do amigo
Oswaldo Sargentelli: “Ele era
extremamente paternalista. Sabia de
toda a nossa vida, nossos
namorados, o cabeleireiro e até a
butique onde comprávamos roupas.
Preocupava-se muito com a nossa
imagem. Tinha até uma condução
que levava as meninas em casa para
evitar problemas”.
10
NO 5 - 2004/1
Céu e inferno da vida num cartão-postal
Turistas, equipes de cinema e fiscais do Patrimônio Histórico tumultuam
o cotidiano dos moradores do Largo do Boticário
Adriana Calderoni
Domingo de manhã, bem cedo. A
campainha da casa 1 começa a tocar.
Antes das 8 horas o movimento já é
grande. Taxistas e guias de turismo
contam histórias – nem sempre
verdadeiras – enquanto famílias, amigos,
brasileiros e estrangeiros tiram
fotografias. Com atenção pode-se ouvir
três ou quatro línguas diferentes. Essa
é a rotina das manhãs dominicais no
Largo do Boticário, o beco residencial
mais conhecido do Rio de Janeiro.
Ivanise Fontes, moradora do número
1, costumava se incomodar ao ser
acordada pela campainha aos domingos. “Os visitantes querem obter informações e muitas vezes não sabem
que tem gente morando ali. Às vezes
incomoda, mas no geral eu gosto do
movimento”, diz a psicanalista. “Gosto também quando os estudantes da
Escola de Belas Artes fazem os exames de desenho”. Ivanise nasceu no
Boticário e tem uma relação afetiva
com a casa que foi construída no início do século XIX. “Meus avós compraram essa casa em um leilão na
década de 40”, lembra a moradora.
Ela conta também que sua família muitas
vezes para nas janelas para ouvir as
histórias contadas pelos guias de turismo
profissionais e improvisados. “Os taxistas
têm uma imaginação tão fértil, eu gostaria
de gravar um dia as explicações que eles
dão para os turistas. Mas mesmo os guias
não têm muita informação sobre a história
do largo”, observa. “Algumas semanas
atrás uma professora estava com vários
alunos sentada aqui na beira do rio. Ela
falava coisas muito pertinentes, até o
momento em que afirmou categoricamente que as casas da frente eram
mais recentes por que haviam sido
construídas quando o rio já estava poluído
e só usavam a água para lavar roupa!”
Das casas do largo, apenas as que dão
para a Rua Cosme Velho são originais.
As demais, que tornaram o lugar um
ponto turístico, são reconstituições feitas na época de Getúlio Vargas a partir
de materiais de demolição do Centro da
cidade– o piso pé-de-moleque vem da
Rua da Constituição e muitos elementos das casas vêm das demolições feitas para a abertura da Avenida Presidente Vargas, na década de 1940.
Outra moradora que se diverte com os
guias e suas histórias sobre o Boticário
é a figurinista teatral Patrícia Bueno que
mora no porão da casa número 4. No
seu caso as histórias são ainda mais interessantes pois falam de sua família.
Patrícia é filha da crítica teatral Bárbara Heliodora – que mora no andar de
cima da mesma casa - e neta do historiador e goleiro do Fluminense Marcos
Carneiro de Mendonça e da poetisa Ana
Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, que moraram na Casa dos Abacaxis, número 857 da Rua Cosme Velho, praticamente em frente ao Largo
do Boticário. “Você não imagina quantas
derrubá-la e construir no local um posto
de gasolina. Hoje, a casa, cujo projeto é
assinado por José Maria Jacinto Rebello
- mesmo arquiteto do Palácio Itamaraty
-, é patrimônio tombado. Em tempo, os
abacaxis foram comprados por Ana
Amélia, que colecionava antiguidades.
Segundo Patrícia, as informações
equivocadas sobre sua família não são os
maiores
absurdos
históricos
testemunhados pelas paredes e pedras do
largo. “A República foi proclamada no
Boticário e, de acordo com um taxista,
até Tiradentes foi enforcado aqui!”
Os turistas também se sentem um pouco perdidos. O estudante de arquitetura Fábio Ferraz veio de São Paulo com
a namorada para conhecer um pouco
mais sobre os prédios históricos do Rio.
guém, nenhum guarda ou morador.”
Mas nem só de anedotas vive esse pedacinho histórico da cidade. O Largo do
Boticário enfrenta os mais variados problemas por ser tombado e por ser um
ponto turístico.
As casas têm que ser pintadas constantemente - e a tinta deve ser da cor
original, especificada pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. “Você não imagina a trabalheira que
dá para encontrar essa tinta rosa, fora
o preço. Todos os encargos são responsabilidade dos moradores, o IPHAN
apenas nos isenta de pagar o IPTU”,
desabafa Ivanise. Patrícia faz coro ao
contar a novela que foi quando teve que
fazer uma reforma no telhado, “Fomos
informados de que as telhas eram especiais, feitas em coxa de escravos! Rodamos o Rio de Janeiro inteiro atrás de
telhas parecidas.”
Nada é simples em casas com mais de
150 anos. Os moradores pagam um alto
preço para preservar o clima original das
residências e se adequar às regras de
tombamento. As fiações são todas
externas, pois as paredes feitas com
óleo de baleia não podem ser furadas.
Ar-condicionado, então, é uma
verdadeira ginástica para instalar.
Ninguém imagina os malabarismos que
a gente faz para o aparelho não alterar
a fachada. – brinca outra moradora, que
não quis se identificar.
histórias eu já ouvi sobre os meus avós!
A última era sobre a linda história de
amor que eles viveram, e de como os
abacaxis simbolizavam a fertilidade desse amor que deu origem a grande crítica Bárbara Heliodora”, conta Patrícia
bem-humorada.
A Casa dos Abacaxis foi erguida em
1846 e, desde que foi posta à venda, já
houve propostas até mesmo para
Ele conta que ficou com gostinho de
quero mais quando visitou o Boticário:
“O lugar é lindo e foi bom descobrir que
ainda é habitado, mais sentimos falta de
um centro de informações, um lugar
para sentar, tomar uma água, um café.”
Fábio reclama também da falta de segurança: “Passamos um certo apuro no
trajeto, pois as calçadas são estreitas e
não se vê nenhum outro turista. E quando chegamos ao largo não tinha nin-
Os moradores do Largo do Boticário
acham que a qualidade de vida compensa as dores de cabeça com o IPHAN.
O que incomoda mesmo são as gravações de filmes e comerciais que chegam a bloquear a entrada do Largo por
dias, impedindo os moradores de estacionarem os seus carros. “Aqui vem
todo o tipo de gente fazer gravação.
Tem equipes muito educadas que avisam com antecedência, passam uma
circular entre os moradores, enfim
procuram incomodar o mínimo. Mas
de vez em quando o pessoal chega a
pedir para usar as nossas instalações
elétricas! E não hesita em tocar a
campainha de madrugada para pedir
para algum morador tirar o carro que
está atrapalhando a filmagem”, desabafam em coro .
11
NO 5 - 2004/1
O bom negócio carioca
Turismo ganha destaque como uma das principais
oportunidades de investimento na cidade
ALESSANDRA LEMOS
Na décima edição do prêmio World Travel
Awards, em novembro de 2003, a cidade do Rio de
Janeiro foi eleita o melhor destino turístico da América
do Sul. E o setor de turismo tem tido crescimento
significativo, se tornando uma das principais
oportunidades de investimento. Segundo a Empresa
Brasileira de Turismo - Embratur, o Rio é a região
mais visitada do país, recebendo anualmente mais de
2 milhões de turistas estrangeiros, o que significa
participação próxima de 33% do total nacional.
Somente no período de dezembro/2003 a março/2004
a cidade recebeu 2 milhões e 700 mil turistas, que
deixaram uma receita de US$ 950 milhões.
Como em todo local turístico, o sucesso
do setor depende da imagem que é construída
nacional e internacionalmente desse lugar. A cidade
tem sido classificada como violenta e palco de
barbaridades, mas, segundo a assessora de
comunicação da Riotur, Gracie Croce, isso não
afetou o turismo na região.
– A Associação de Hotéis do Rio não
registrou nenhum cancelamento em função dos
conflitos na Rocinha. Em relação aos turistas
estrangeiros, nossa imagem é melhor que a de
muitos países vitimados pelo terrorismo e guerras.
O medo de americanos e europeus é de terrorismo.
O que não temos aqui e que nos coloca como um
destino seguro. A violência que enfrentamos é
semelhante à que acontece nas grandes cidades de
todo o mundo – afirmou.
O sucesso econômico não resulta apenas
dos indiscutíveis atrativos naturais da cidade, mas
principalmente da ampla infra-estrutura de serviços
turísticos. O Rio, além de estar classificado como
um dos maiores destinos do mundo também na
recepção de eventos culturais, comerciais, técnicos
e científicos, possui vasta rede hoteleira com mais
de 22.000 quartos.
Segundo pesquisa do Instituto Fecomércio,
em convênio com a Associação Brasileira de
Indústria e Hotéis do Estado do Rio de Janeiro
(ABIH-RJ), a ocupação hoteleira da cidade ficou
em 70,61% no mês de fevereiro, 2,46 pontos
percentuais acima da registrada no mesmo período
de 2003. O faturamento do setor cresceu 12,93%
acima do registrado no ano anterior.
O turismo é responsável pelo crescimento
de outros setores da economia, incrementando o
mercado de trabalho. Com a atividade se torna
necessário absorver mão-de-obra em setores como
hotelaria, comércio, bares e restaurantes, transportes,
serviços de guia e outros. De acordo com o Sebrae, o
turismo gera cerca de 500 mil empregos, entre os
ligados direta e indiretamente à atividade.
Apesar do grande sucesso e desenvolvimento do setor, o turismo ainda apresenta proble-
Beleza natural do Rio ajuda a gerar negócios de US$ 950 milhões
mas. Grande parte dos turistas reclama da falta de
informação específica ao visitante, da falta de mãode-obra específica para a atividade e da disparidade
entre preços e serviços oferecidos. Mas, segundo
Gracie, a prefeitura tem reunido esforços das mais
variadas secretarias para resolver essas questões.
Em relação à informações, são oferecidos
seis Postos de Atendimento ao Turista, além de uma
linha direta de telefone. Já em relação a mão-deobra, em setembro de 2003 a prefeitura da cidade
deu início ao projeto “Rio Hospitaleiro”, cujo objetivo
é instruir os profissionais que direta e indiretamente
têm contato com os turistas. O programa já ofereceu
500 vagas para cursos e treinamentos para a
capacitação de taxistas, mas a expectativa é de
oferecer cursos para garçons, vendedores de
quiosques da orla carioca, comerciante, motoristas,
entre outros profissionais vinculados ao
atendimento turístico.
O objetivo da prefeitura é fomentar ainda
mais o turismo na região, e para isso a Rio Tur
participa de eventos no Brasil e no exterior
divulgando a cidade. Para 2004, 20 eventos
internacionais já fazem parte do roteiro de
divulgação e entre os nacionais, apenas no primeiro
semestre, o Rio acolhe 11. Além da participação
em congressos e feiras e das campanhas
institucionais e publicitárias, está sendo
incrementado o marketing de relacionamento.
– Enquanto as outras ações visam atrair
os turistas que não conhecem nosso destino, o
marketing de relacionamento procura fidelizar os
que já conhecem. Assim, todos os visitantes que se
cadastram em nossos postos de atendimento
recebem periodicamente uma newsletters com o
que está programado para acontecer na cidade e
informações gerais sobre o Rio – diz Gracie.
O próximo evento que irá movimentar
o turismo no Rio de Janeiro será o PanAmericano de 2007. A prefeitura já está se
preparando, através do desenvolvimento de
diversas obras, para melhorar a infra-estrutura
da cidade. Na Barra da Tijuca, onde deverão
acontecer cerca de 85% de todas as modalidades
esportivas, diversos hotéis encontram-se em fase
de construção. Ao total serão mais 8 novos
hotéis, elevando a capacidade do bairro para
quase três mil apartamentos.
RIO DE JANEIRO RUMO AO PAN - 2007
Segundo informações da Riotur, estão previstas 350 intervenções na cidade do Rio de Janeiro em
preparação para o Pan Americano de 2007. O projeto, desenvolvido pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB)
para o Pan, está orçado em mais de US$ 180 milhões.
Entre as principais obras previstas destacam-se:
· Construção da Vila Olímpica na Barra da Tijuca
· Construção de um Estádio Olímpico no Engenho de Dentro com capacidade para 45 mil pessoas
· Desenvolvimento do Veneza Carioca, que vai promover a intercomunicação hidroviária de vários
pontos da Barra, Vargem Grande, Vargem Pequena e Recreio
· Desenvolvimento de um projeto de ligação hidroviária entre o Centro (Praça Quinze) e a Barra
(Quebra-Mar)
· Construção de uma avenida ligando a Zona Portuária ao Centro do Rio e uma nova linha, Transpan,
que ligará o Terminal Alvorada, na Barra, aos aeroportos Santos Dumont e Internacional do Galeão.
12
NO 5 - 2004/1
Botequim ‘carioca’ vira negócio de paulista
Donos de bar de São Paulo descobrem novo e lucrativo filão em cenário, petisco e chope inspirados na tradição do Rio
Divulgação
Moema de Barros
O Rio seduz, São Paulo suborna. Assim
terminam muitas discussões em que o tema é a
diferença entre as duas cidades. Bairrismos à parte,
o fato é que São Paulo está utilizando seu dinheiro
para deixar a cidade mais atraente – importando um
pouco do charme carioca. Não se trata de construções
de estátuas que imitem o Cristo Redentor, morros
artificiais com teleféricos ou piscinas com ondas e
bordas copiando o calçadão de Copacabana. O Rio
que invade São Paulo é o do botequim carioca.
Para citar alguns, Posto 6, Espírito Santo, São
Cristóvão, Mercearia São Pedro e o grande precursor
dessa história: o Pirajá. Aberto em 1998, a esquina carioca
em Sampa, como é conhecido na cidade, pertence ao
grupo Companhia Tradicional de Comércio, sociedade
formada por cinco jovens executivos que, cansados da
trabalhar em multinacionais, resolveram unir forças em
prol da realização profissional.
Ironicamente, a história do grupo se confunde com os estereótipos que envolvem as duas cidades:
labuta x ócio, shopping x praia, formalismo x
descontração. Mais que isso, eles associaram as imagens que se tem das duas metrópoles brasileiras e criaram
um grupo que administra bares informais com o
profissionalismo das grandes corporações. Embora o
primeiro bar da CTC, fundado em 1996, o Original, não
seja um bar com temática carioca, ele já trazia os embriões do que estava por vir.
Aberto e com mesas na calçada, coisa não
muito comum em Sampa, o Original foi logo comparado
aos bares cariocas justamente por seus visitantes do
Rio. Disso nasceu o desejo de seus donos de conhecer
a cultura de bar carioca e, posteriormente, a inauguração
do Pirajá. Nas palavras de um dos idealizados e sócios
da companhia, Ricardo Garrido, “a intenção era fazer
uma declaração de amor ao comportamento carioca”.
Mas o que é o comportamento carioca na visão
de um paulista?
No que se refere a bares e botequins, além da
preferência pelo chope há um despojamento e
informalidade desconhecidos do paulistas no convívio
social. Ainda, nas palavras do próprio Garrido,
“simplicidade e mistura democrática são características
do botequim carioca”.
O negócio se mostrou lucrativo, tanto que
agora o grupo possui mais um bar, o Astor, e uma cadeia
de pizzarias. Além disso, outros seguiram seu exemplo
e abriram bares que se inspiram no Rio. “Nós quebramos
a barreira de dizer que São Paulo não gosta do Rio”,
finaliza Garrido.
Dono do Posto 6, aberto em 2002, Wanderley
Romano afirma que não conhecia os botequins cariocas
antes de criar o seu próprio bar. Seu objetivo na realidade
era abrir uma choperia e a idéia de usar o Rio como
tema veio da força que o chope tem na capital
fluminense. Mas, para ele, o chope em São Paulo é
melhor pelo tratamento especial recebido.
De fato, o chope paulista possui colarinho
mais cremoso do que aquele servido na maioria dos bares
cariocas. Isso se deve, em última instância, aos donos
do Pirajá. Sabendo que o grande diferencial de clássicos
Diferentes exemplos de botequins: acima, o
carioca-paulista Pirajá; ao lado, acima, um
clássico pé-sujo no Leblon e embaixo uma das
filiais do Botequim Informal
como o Bar Luiz e o Jobi é o tirador do chope, e que
não seria viável contratá-los para trabalhar em São Paulo,
os rapazes da CTC encomendaram da Brahma um novo
sistema de dupla serpentina: uma para tirar o chope e
outra para a espuma do colarinho. Desse modo, a medida
estará sempre certa.
Essa industrialização da cultura de botequim
se vê por todos os lados nas réplicas paulistas. Onde
originalmente seria um balcão de mármore, uma fórmica
branca; nas paredes, fotos acomodadas seguindo um
lógica estética ao invés de recortes de jornal dispostos à
época de sua publicação; garçons vestidos com
uniformes que imitam tempos passados no lugar de uma
roupa clássica e simples e, para completar a figura,
banheiros limpos e garçons treinados que nada lembram
um autêntico carioca. Toda essa informalidade
metodicamente adquirida é sentida pelos olhares atentos.
No local, ninguém de bermuda ou havaianas.
Autor do Rio Botequim, guia da prefeitura do
Rio de Janeiro que cataloga e elege os melhores bares e
botequnins da cidade, Paulo Thiago de Mello define a
situação: “a maior diferença entre as duas cidades é o
uso social do local”. Enquanto o carioca tem no botequim
uma extensão de casa, no boteco paulista privilegia-se o
consumo: é fundamental comida de primeira e
atendimento cordial. Em vez de local para encontros
informais, em São Paulo é mais um programa com hora
marcada.
Os novos freqüentadores de botequins do Rio
possivelmente se identificam com essa postura paulista.
Já os mais antigos, refutam-na. Originalmente o
botequim funcionava como um espaço público com
dono, local para encontros espontâneos e palco para
conversas sobre a vizinhança. Não sem motivos, Thiago
lembra o que diz o povo: “o melhor botequim é o da
esquina [porque é o mais perto]”. Nesse ambiente,
privilegia-se a relação de amizade entre o dono do bar e
a sua freguesia, pela qual até beber fiado é possível.
“Atualmente houve uma valorização do
botequim”, continua Paulo Thiago, “e o Guia Rio
Botequim ajudou isso”. Ele conta que em 1997, quando
a pesquisa para o guia começou, muitos dos
entrevistados se recusavam a rotular seu estabalecimento
desse modo. Naquela época, era preferível qualificar o
local como bar-restaurante; hoje, o termo botequim é
Fotos Moema de Barros
motivo de orgulho. Isso porque sua representação no
imaginário popular mudou. Antes repleta de
ambivalência (por um lado, lugar do submundo e da
malandragem; por outro, palco da boemia e de encontro
entre artistas), agora é visto como local para beber com
tradição.
É possível que seja justamente a busca por
essa tradição que atraia os novos empresários
paulistanos. Bar é um tipo de negócio muito
vulnerável aos modismos, e são justamente aqueles
considerados tradicionais os que conseguem
sobreviver às oscilações comportamentais. Ao optar
por abrir um “botequim carioca”, o empresário
espera agregar à imagem do seu novo negócio o
tradicionalismo dos pés-sujos do Rio de Janeiro.
Para o Rio, as conseqüências são sensíveis.
Além da exploração de uma imagem idealizada da cidade
e de seus habitantes, esses bares paulistas com temática
carioca estão servindo de inspiração para a abertura
de botequins cariocas na sua própria cidade de origem.
Para muitos, se trata de uma “paulistinização” da cidade
e de seus hábitos. Ricardo Garrido diz que isso não
existe: “o que acontece é que o público carioca está
ficando mais exigente e isso impulsiona uma melhor
infraestrutura dos bares”. Exemplos concretos podem
ser citados para os que defendem a teoria: reforma de
bares clássicos como Garota do Leblon, Jobi e
Bracarense; utilização do sistema de dupla serpentina
pelo Jobi e abertura de bares como o Devassa e o
Botequim Informal.
O último, inclusive, pode ser utilizado para
sintetizar a questão dos botequins cariocas e a sua
representação em São Paulo. Aberto em 2000 por
paulistas donos do Espírito Santo, o bar atrai grande
número de jovens em busca de um chope com
temperatura e colarinho perfeitos. Apesar do nome, o
bar não entrou no Guia Rio Botequim. A busca por
uma informalidade, que mais parece paulista a carioca,
saiu pela culatra.
13
NO 5 - 2004/1
O bonde dos baianos e gaúchos,
menos dos cariocas
Pesquisa revela que a cada dez passageiros do Bondinho seis são turistas
Carlos Eduardo Cayres
No dia 21 de maio de 2004 foi feita uma
pesquisa para averiguar a quantidade de cariocas que
visitam o Pão de Açúcar. Essa pesquisa teve como
objetivo saber se os nativos do Rio de Janeiro estão
indo visitar seus pontos turísticos ou se eles continuam
sendo locais de diversão apenas para turistas. Todo
esse trabalho se desenvolveu na bilheteria do
Bondinho e demorou cerca de duas horas. Logo
após o término, as respostas foram contabilizadas e
o resultado comprovou que a cada dez passageiros
do Bondinho, seis são turistas.
O que estará espantando os cariocas dos
pontos turísticos? A falta de tempo e de dinheiro ou
o comodismo? Em entrevista nas ruas, conversamos
com algumas pessoas e procuramos saber delas qual
desses fatores faz os cariocas agirem desta maneira.
Segundo Viviane Abrahão Salim, estudante de
Pedagogia, a ausência pode ser explicada pelo
comodismo de seus conterrâneos e pelo dinheiro que
se gasta visitando esses locais:
– Tenho a maior vontade de visitar todos os
lugares bonitos do Rio. Quase toda semana marco
com o meu namorado uma visita a um deles. Mas
quando chega na hora, fico com preguiça ou estou
sem dinheiro e acabo transferindo o passeio para
outro dia.
Já a professora de espanhol Marcella Sanches
dos Reis, acredita que a falta de tempo e de dinheiro
ajuda muito a espantar os cariocas.
– Acho que o carioca não tem tempo nem
dinheiro. Isso eu tiro por mim que sou louca para
conhecer todas as maravilhas da cidade, mas,
infelizmente, trabalho muito e, como toda professora,
não tenho dinheiro.
Após ouvir pessoas, a idéia que se tem é de
que o carioca está trabalhando muito, ganhando
pouco e ficando cansado. Obvio que isso não vale
para todos, pois, se valesse, os pontos turísticos já
teriam sido entregues aos turistas. Um bom exemplo
para comprovar que nem todo carioca está
apresentando esses sintomas é o estudante de
Psicologia e operador de telemarketing Rodrigo
Freitas Chagas. Rodrigo ganha cerca de quatro salários
mínimos por mês, paga 450 reais de faculdade e,
mesmo assim, sempre que pode pega sua namorada
e vai passear no Bondinho do Pão de Açúcar. Já
perdeu a conta das vezes que foi, mas garante que
foram mais de 20.
– A vista de lá em cima é maravilhosa. Faz
você ficar com “cara de paisagem”, só
contemplando, não pensando em nada. É muito
bom. Estou quase todo final de semana lá,
principalmente agora que está “rolando” um
desconto para carioca.
O desconto a que Rodrigo se refere é o de
50% no valor do ingresso do Bondinho. Ele é
oferecido pela Companhia Caminho Aéreo Pão de
Açúcar através da campanha Carioca Maravilha a
cariocas e moradores do Rio. O sucesso desse projeto
é absoluto. Mais da metade dos nativos entrevistados
na pesquisa afirmaram estarem ali só por causa dele.
PROJETOS QUE OFERECEM
DESCONTO A CARIOCAS
À direita, Carine Renha, supervisora do projeto
Graças ao projeto Carioquinha Cidade,
cariocas e moradores do Rio passarão a ter
desconto de 50% no ingresso para alguns
pontos turísticos da cidade. Essa promoção
entrou em vigor no dia 29 de maio de 2004,
logo após o término da campanha Carioca
Maravilha, que oferecia o mesmo desconto. A
supervisora do projeto, Carine Renha, afirmou
que o surgimento da campanha está intimamente
ligado ao sucesso das anteriores e que seu
objetivo é atrair, cada vez mais, os cariocas a
esses locais.
– Parte dos cariocas não conhece os
pontos turísticos da cidade. Alguns estão vindo
pela primeira vez, graças à campanha. Acredito
que o preço alto do ingresso contribuia para
isso. Mas a campanha está ai e vai reverter essa
situação.
O Bondinho, os Bondes de Santa
Teresa, o Maracanã, a Fundação Casa-FrançaBrasil, a Fundação Riozoo, o Planetário da
Gávea e o Jardim Botânico são alguns lugares
onde a promoção está sendo aceita. Os
interessados devem comparecer a esses locais
munidos de identidade ou do comprovante de
residência.
14
NO 5 - 2004/1
O Turismo da pobreza
Nem praia nem Carnaval. O roteiro agora é nas favelas
Luciana Ramos
Q
uantas vezes você já foi surpreendido
por um jipe cheio de turistas circulando
pela cidade do Rio de Janeiro? Com
máquinas fotográficas em punho e
roupas que parecem saídas de um
documentário sobre safári do Discovery Channel,
essas pessoas vem ao Brasil em busca de algo muito
mais impressionante do que belas paisagens e
Carnaval. Esperam tentar entender e ver a pobreza
bem de perto.
Há mais de dez anos Marcelo Armstrong teve
a idéia de organizar turismo em favelas. Para isso
precisou fazer levantamento de opiniões nas
comunidades, que sempre o receberam bem,
ganhando o aval de pessoas que têm voz dentro da
comunidade, entre eles líderes comunitários. E
quando se fala em aval dentro de uma favela,
entende-se, segundo ele, que a permissão foi dada
também pelos traficantes.
Mas que tipo de turistas vai em busca da pobreza
ao invés de conhecer lugares bonitos? A resposta para
Marcelo é simples: “Depende de turista para turista.
Existe um público específico de profissionais, como
arquitetos interessados nas construções, professores e
sociólogos, mas de maneira geral são pessoas muito
viajadas, que conhecem o mundo inteiro e querem sair
do lugar comum, conhecer a fundo a sociedade em
que estão visitando. Não só ver mas também entender
o Rio de Janeiro”.
Praticamente todos colaboram com os projetos
sociais que conhecem durante a visita - e algumas
doações são bem expressivas, podendo chegar a cinco
mil dólares.
Uma das coisas que mais chamam a atenção dos
turistas ao visitarem a Rocinha é a vista que a favela
oferece do Pão de Açúcar e do Corcovado juntos.
Mas o que os deixam realmente impressionados é a
forma como as pessoas vivem. Conseguem ver até
sob um aspecto positivo, já que no exterior são
constantemente bombardeados por uma imagem
apenas negativa, um gueto miserável completamente
dominado por traficantes. “Alguns comentam que
pensavam que iriam encontrar uma nova África,
pessoas extremamente infelizes e morrendo, mas
encontram um povo pobre, sofrido, mas acima de
tudo transmitindo alegria e vontade de viver”.
Mas e o medo, onde fica? Pensando antes de
tudo na segurança dos seus clientes, Marcelo toma
cuidado para não expô-los a riscos desnecessários.
Por isso, mudou seu roteiro e trocou a visita à
Rocinha, atualmente em clima de guerra por conta
de disputas no tráfico, por um passeio na Vila Canoas,
uma favela menor, também em São Conrado. “ Eu
também não aponto traficantes, eles não podem ser
colocados como foco, como se fossem o objetivo
como o melhor programa social dos países em
desenvolvimento, apresentando o menor índice de criminalidade infantil e o maior índice
de escolaridade entre as
comunidades de baixa
renda.
A idéia original era
tirar as crianças da rua,
mas hoje o projeto reúne cerca de dez mil moradores da Mangueira
entre crianças, jovens,
adultos e idosos. Na Vila
Olímpica e nas outras
sedes recebem orientação
educacional, esportiva e
profissionalizante gratuita, além de reforço alimentar. Muitas crianças
Favela da Rocinha: o novo ponto turístico da Cidade Maravilhosa
com potencial esportivo
e na dança são vistos por
‘olheiros’, uma espécie de
turístico. Falo do tráfico, explico, pois é pertinente à caça-talentos, do Brasil e principalmente do exterior.
realidade local. Não há como fugir da influência que
Essa iniciativa, que conseguiu zerar a
ele exerce”.
mortalidade infantil e estabelecer uma medicina
Cada vez mais popular, o turismo em favelas preventiva de excelente atuação, atraiu personalidades
já consta até mesmo em alguns dos mais tradicionais internacionais ilustres como os ex -presidentes dos
guias de turismo. “É seguro, diferente e muito Estados Unidos, Bill Clinton, e da África do Sul,
interessante“, recomenda o Handbooks, publicado Nelson Mandela, além de ganhar um grande apoio e
na Inglaterra. “Realmente informativo, não é um divulgação da ONU.
voyeurismo da pobreza, mas uma visita educada ao
Segundo a coordenadora da Vila Olímpica e
coração de um universo diferente, podemos ter um responsável por receber os turistas, Ana Lúcia Bertholini,
melhor entendimento das contradições do Rio”, diz muitos destes estrangeiros são engajados em trabalhos
o Routard, conceituado guia francês.
sociais, alguns são jornalistas, educadores e médicos,
Ainda que com interesses sociais, muitos se interessados nos projetos. Em sua maioria são
rendem ao samba e gostam de conhecer as raízes americanos, franceses, japoneses, alemães e belgas. Mas
populares do Carnaval – que para muitos não não são meros espectadores, gostam de interagir,
começa e acaba no Sambódromo, estendendo-se a principalmente os mais jovens, fazendo uma espécie
visitas às quadras das escolas de samba, muitas delas de intercâmbio cultural.
em favelas. Tentam sambar, brincam, deslumbramEles jogam futebol, aprendem português, ensinam
se com a beleza e irreverência das mulatas e, mais beisebol e inglês. Poucos têm o interesse de conhecer o
do que isso, parecem gostar do contato e da calorosa local de moradia da comunidade, e os que têm e não
receptividade brasileira.
vão é pelo medo da violência, tão divulgada pela
Por ser uma das mais tradicionais escolas de imprensa. Aqueles que vão ficam impressionados como
samba, a Estação Primeira de Mangueira é parada as casas são construídas, já que acreditam que são todas
obrigatória para muitos destes turistas. Muitos de- padronizadas.
les, no entanto, nem passam perto do samba, prefeA experiência é única. Conhecimentos são
rindo conhecer o bem sucedido projeto social da adquiridos e pré-conceitos quebrados. Uma realidade
comunidade. O “Mangueira não é só samba” foi completamente diferente, uma vida desconhecida, mas
criado por Francisco Carvalho, o Chiquinho da que eles resolveram conhecer. Feia, mas que às vezes
Mangueira, há dezessete anos e é referência em todo consegue ser bonita. Uma vida que precisa tanto ser
o mundo. Já foi inclusive premiado pela Unesco ajudada, é a que mais ajuda.
15
NO 5 - 2004/1
Retrato da (in)Segurança Pública
Os policiais do Estado do Rio estão despreparados para combater o crime
Lucas Bonates
O Rio sofre com a crescente
sensação de insegurança. As polícias
Civil e Militar mostram-se
despreparadas para prevenir e
solucionar crimes. São desprovidas de
equipamentos (armas, viaturas,
computadores), treinamento e pessoal.
O policiamento ostensivo na Zona
Oeste e na Zona Norte está ainda mais
deficiente, pois houve, em abril, o
deslocamento de policiais militares
para as favelas da Rocinha e do Vidigal,
na Zona Sul da cidade, na tentativa de
controlar a violência na região.
Para comprovar o empenho da
Polícia no combate à violência, o
Instituto de Segurança Pública (ISP)
divulgou recentemente os índices de
criminalidade no Rio que, em maio,
registraram queda em alguns crimes
hediondos como extorsão mediante
seqüestro e latrocínio (roubo seguido
de morte). Não houve nenhum caso de
seqüestro registrado, e apenas 18 casos
de latrocínio, dois a menos do que em
maio de 2003.
São estatísticas que se baseiam nos
boletins de ocorrência das delegacias.
Mas casos como tentativas de roubo
com arma de fogo, assalto a pedestres
e pequenos furtos, por exemplo, não
são registrados, na maioria dos casos.
Prova de que a população não acredita
na Polícia.
No dia 13 de maio, uma quintafeira, Márcio Galindo, cabo do Corpo
de Bombeiros, foi vítima de tentativa
de assalto. Ele pretende ser pastor
metodista e, por isso, faz o curso de
Teologia do Instituto Bennett, no
Flamengo, durante o turno da noite. Por
volta das 23h, voltava para casa pela
pista direita da Avenida Brasil, quando
dois homens em um Gol escuro
apontaram um revólver calibre 38 em
sua direção. Estavam próximos à Vila
Militar, em Deodoro, Zona Oeste do
Rio. Os bandidos queriam sua moto,
uma Honda Twister, cor preta,
chamada pelo dono de “minha preta”.
Num ato de reflexo, Márcio freou e
tentou mudar de pista. “O golzinho
brecou na minha frente, eu bati no carro
e caí. Levantei rapidinho e corri
desesperado para o outro lado. Foi
quando ouvi o carro arrancando. Olhei
e vi ‘minha preta’ no chão, toda torta”,
conta. Segundo ele, não prestou queixa
à polícia pois de nada adiantaria.
Desde então, Márcio volta pela
Barra da Tijuca, onde vê muitas
viaturas da Polícia Militar e sente maior
segurança. Para evitar novas tentativas
de assalto, ele tirou alguns acessórios
que embelezam sua moto.
“Procurei uma viatura
da polícia, mas não
achei nenhuma. Se
não existe socorro
imediato, duvido que
eles (a polícia)
investigariam”
Segundo o professor de
Sociologia da UFRJ Michel Misse, a
maior parte dos casos não é registrada.
“Na Inglaterra, apenas 30% das vítimas
dão queixa. Não é um fenômeno
exclusivo do Brasil. Pesquisas de
vitimização mostram que as pessoas
acham que o crime não será
solucionado, portanto é inútil prestar
queixa. Além disso, muitos não
acreditam na eficiência policial.”
Michel Misse é coordenador do
Núcleo de Estudos da Cidadania,
Conflito e Violência Urbana (NECVU)
e mantém uma base de dados e
estatísticas sobre a violência no Estado
do Rio. Segundo o sociólogo, o tráfico
de drogas é o inimigo número um da
polícia. Primeiro, porque o comércio de
entorpecentes é uma atividade que
movimenta milhões de dólares e, por
isso, tem condições de comprar armas
e subornar autoridades, o que permite
estender sua rede de influências. Além
disso, o acesso da polícia aos “centros
nervosos” do tráfico é prejudicado por
sua localização. “Os traficantes ficam
dentro da favela, criam uma espécie de
fortaleza. Se a polícia entra, eles
atiram”, disse o professor. Segundo ele,
os confrontos mais freqüentes são entre
facções do tráfico, e não entre policiais
e bandidos.
Para prender bandidos nas favelas
é preciso planejamento e objetividade
na ação. “Todo morador de favela diz
que o problema começa quando a
polícia chega. A polícia já chega
atirando. Não sabe que casa invadir.
Não tem investigação”, disse o
professor.
Mas a polícia não é só
incompetência. Consegue acertar em
alguns casos e prevenir outros tantos.
Segundo o Instituto de Segurança
Pública (ISP), os índices de
ocorrências de crimes como
latrocínio e roubos e furtos de
veículos diminuíram em maio deste
ano. Outras modalidades apresentam
melhorias: foram 293 roubos em
coletivos, uma redução de 47,5% em
relação a maio de 2003 ou de 17,4%
se comparado a abril deste ano, 562
roubos a estabelecimentos comerciais
e 147 a residências.
Das dez modalidades pesquisadas, apenas três tipos de crime
registraram aumento no número de
casos. Foram 605 homicídios dolosos,
uma taxa 17,6% superior ao último mês
de abril, cinco assaltos a banco — em
abril, foram três — e 1.692 registros
de roubo a transeuntes, uma taxa 6,7%
superior a maio de 2003.
O governo do Estado do Rio
precisa investir nas corporações
policiais. Falta infra-estrutura,
equipamentos e profissionais bem
treinados e bem pagos. “É preciso
melhorar a polícia, investir na formação
desses profissionais”, sugere o
sociólogo da UFRJ. O Rio é uma
metrópole violenta como outra
qualquer, mas aqui não oferecem
drogas nas esquinas como em Lisboa
ou Paris.
Cinco sugestões para que você não se torne vítima da violência
Não existe nenhuma fórmula
capaz de acabar com o problema da
violência. Mas a vida na Região Metropolitana permite ao cidadão desenvolver estratégias de sobrevivência. Aqui
estão as cinco dicas para que você
leitor, carioca ou não, não seja mais
uma vítima da violência:
1) Se precisar atender o celular em lugares
como a Central do Brasil, Uruguaiana ou
Cinelândia, segure o aparelho com firmeza, nunca com a ponta dos dedos.
2) Aviso aos turistas: não é preciso ir à
praia com cordão de ouro, relógio e máquina
digital pendurada no pescoço.
3) Caso esteja passando por uma rua desconhecida, repleta de gente mal-encarada, seja
como um deles, aja com a mesma naturalidade.
Não demonstre medo.
4) Quando estiver no ponto de ônibus,
não fique com o dinheiro ou vale-transporte
na mão. Os pivetes são ágeis.
5) Se você estiver na Avenida Brasil, cuidado com os retornos. Você pode acabar entrando numa favela perigosa. Entrar é mole,
agora sair...
Sociólogo diz que a mídia produz a circulação da violência
A imagem de Cidade Maravilhosa tem
sido substituída pela de “Cidade do Crime” pela mídia carioca. Episódios como a
disputa dos traficantes “Dudu” e “Lulu”
pelo domínio do tráfico nos morros da
Rocinha e Vidigal, rebeliões em presídios
de segurança máxima, a constatação da incapacidade do governo estadual de se responsabilizar pela custódia do traficante
Fernandinho Beira-Mar e a fuga de 100 presos da casa de detenção, no bairro de Benfica,
no início de junho, aumentam a sensação
de insegurança da população fluminense.
Segundo Michel Misse, professor de
sociologia da UFRJ, “o Rio é tão violento
quanto qualquer outra metrópole. São
cometidos muitos crimes violentos:
arrombamentos, assaltos a mão armada,
furto de veículos, etc. Mas o seqüestro, por
exemplo, praticamente não existe mais. Já
em São Paulo, os índices chegam a 100
seqüestros por ano. O problema é que a
imprensa carioca é muito sensacionalista,
produz a circulação da insegurança”.
No primeiro trimestre de 2004, São
Paulo já registrou 22 casos de extorsão
mediante seqüestro. O Rio de Janeiro
registrou
aproximadamente
600
homicídios
dolosos
(praticados
intencionalmente) no mês de janeiro,
enquanto São Paulo tem uma média de 760
casos desse tipo a cada mês.
São números que desagradam e preocupam o cidadão carioca. As autoridades não
podem mais brincar de fazer política partidária com a questão da segurança pública. É
preciso reformular a polícia, aparelhá-la e
treiná-la para agir com presteza e agilidade.
Por sua vez, os veículos de comunicação
devem ser mais responsáveis no tratamento dessa questão. O carioca está cansado de
sentir medo.
16
NO 5 - 2004/1
O.RIO.FICA.BEM.NA.FITA!
Contrariando a crença geral, produtoras cariocas comprovam com bons
números a supremacia da cidade na produção cinematográfica
Divulgação
IMMANUELA D’OLIVEIRA
Apesar da crença difundida pelo mercado
de produção de que a cidade do Rio de Janeiro
vinha perdendo nos últimos anos seu título de pólo
de cinema nacional, os números mostram o
contrário, restringindo a baixa apenas aos filmes
publicitários. Segundo dados da Ancine (Agência
Nacional de Cinema), dos 35 filmes realizados no
Brasil em 2003, nada menos do que 27 foram feitos
por produtoras cariocas, atraindo mais de 70% do
público total alcançado pelas produções nacionais.
Um ranking divulgado pelo órgão no ano passado
mostra que das 10 produtoras brasileiras que
atingiram os maiores números de espectadores, 7
são cariocas. Isto confirma o fato de que o Rio de
Janeiro adotou a produção cinematográfica para si
e se firma, a cada ano, como o grande pólo de
produção audiovisual do Brasil.
Encabeçando o ranking da Ancine está a
Diler & Associados, do produtor Diler Trindade,
que produziu cinco filmes em 2003, alcançando um
público de 10 milhões de pessoas. Dos filmes que
Trindade já produziu (18 longas metragens que
alcançaram o recorde de público de 21 milhões de
espectadores, entre eles os da apresentadora infantil
Xuxa e os últimos sucessos de bilheteria “Dom” e
“Um Show de Verão”), todos foram feitos no Rio
de Janeiro. Ele afirma que a cidade tem potencial
para continuar crescendo na área do cinema e que
há uma constante tentativa de desenvolvimento
desta indústria na cidade. Segundo ele, o que falta
para a produção nacional crescer é vencer o
preconceito dos brasileiros em relação ao cinema
nacional, além de uma mudança no comportamento
das produtoras, que arrecadam dinheiro público sem
fazer uma previsão concreta do orçamento que irão
OS NÚMEROS DO
CINEMA CARIOCA EM 2003
- Dos 35 filmes feitos em 2003 no país, 27
foram no Rio
- Das 10 produtoras que mais alcançaram público espectador, 7 são cariocas
- As produtoras cariocas foram responsáveis
por 70% do público alcançado pelos filmes
nacionais
O produtor Diler Trindade e o cantor Jorge Ben Jor durante a gravação do filme “Zico”, no Rio de Janeiro
utilizar. Assim, gasta-se muito e a produção não se
paga. A indústria precisa tornar-se mais atrativa para
os investidores, e, para isso, precisa mostrar-se
lucrativa, com orçamentos mais conscientes. O ideal
seria se as produções aumentassem dos 40 filmes
feitos por ano, atualmente, para 200 filmes anuais.
Aumentando a produção, aumentará o número de
salas de exibição (reduzido pela metade nos últimos
15 anos) e o cinema se tornará mais rentável. “Só
assim o cinema nacional deixará de depender do
dinheiro público e passará a caminhar com suas
próprias pernas”, afirma Trindade.
A Diler & Associados está localizada no
Pólo Rio de Cine, Vídeo e Comunicação,
conglomerado industrial instalado no bairro de
Jacarepaguá há aproximadamente 17 anos, com
auxílio da Prefeitura. Em uma área de 25.000 m²
este pólo abriga hoje mais de 60 empresas
associadas, dos ramos cinematográfico, audiovisual
e de comunicação, com 6 estúdios coletivos
utilizados pelos associados em suas produções.
Próximo ao Pólo Rio está o PROJAC,
maior centro de produção de TV da América
Latina, com participação no mercado internacional.
Em uma área de 1.300.000 m², concentram-se
grandes estúdios, módulos de produção e galpões
de acervo. E como no Brasil é a televisão que
influencia o cinema, este depende dos grandes
nomes da TV para consiguir atrair público para os
filmes que produz. Por conta desta g rande
aglomeração de talentos, o Rio de Janeiro é
considerado a Hollywood brasileira.
Apenas nesta região em torno do Pólo Rio
e do PROJAC (que engloba os bairros do Recreio,
Barra, Jacarepaguá, Vargem Grande e Vargem
Pequena) estima-se que, atualmente, cerca de 30 mil
pessoas trabalhem direta e indiretamente com a
indústria do audiovisual. Não é à toa que, em
termos de prestígio mundial, esta é a segunda maior
indústria do estado, perdendo somente para a
petrolífera.
Assim como as demais for mas de
expressão cultural e artística, o cinema entrou no
país pelo Rio de Janeiro, porque a cidade era a
capital federal e, por isso, grande centro cultural do
país, situação que tende a se confirmar com a ajuda
da produção artísitica. Ainda hoje praticamente
todas as etapas da produção cinematográfica se
concentram no Rio. Apenas a captação de
investimentos necessita ser feita em São Paulo, onde
se concentram os maiores patrocinadores. Assim
como a mixagem sonora e a finalização de efeitos
especiais, técnicas desenvolvidas por lá pelas grandes
agências de publicidade.
Enquanto isso, o cinema nacional começa
a se tornar mais significativo em outras cidades. Há
pólos emergentes em Fortaleza, Salvador, Porto
Alegre e Curitiba. Porém, com o potencial carioca
de produzir e desenvolver a sétima arte, dificilmente
o Rio perderá seu posto de pólo central da indústria
audiovisual nacional. Até porque, “o Rio de Janeiro
é o centro cultural do país, e, como na música de
Caetano Veloso, ‘vivemos na melhor cidade da
América do Sul...’”, afirma Diler Trindade, único
brasileiro indicado pela revista Variety entre os 10
produtores de cinema mais promissores no mundo
e um carioca eternamente apaixonado pela sua
cidade natal.