Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ
Transcrição
Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ
1 NO 5 - 2004/1 JORNAL LABORATÓRIO DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ - número 5 - 2004/1 2 NO 5 - 2004/1 O DIA-A-DIA NA BOCA DO POVO Histórias que os grandes jornais não contam são pauta na imprensa comunitária Além disso, o portal já conseguiu ter suas matérias citadas em grandes veículos como a “Veja” e o “Globo On Line”. O “Viva Favela” acaba se destacando também Kombis ilegais, pequenos comerciantes, cultura são pelo fato de ter conteúdo de fácil acesso aos formadores temas comuns nos grandes jornais e emissoras de tele- de opinião e reunir matérias sobre diversas localidades do visão. Mas, ao contrário do que se espera, kombis ilegais Rio de Janeiro. Freqüentemente, os meios de comunicasão defendidas por prestarem serviços não oferecidos ção comunitários são restritos a uma área, não configuram pelas empresas de ônibus, os pequenos comerciantes um panorama geral de diversas regiões, o que não dessão pessoas comuns de origem humilde e o conceito perta tanto interesse das pessoas de fora. Assim acontece com a “TV Tagarela”, televisão de de cultura é definido por um frentista, uma vendedora e um transformista. rua que tem sua produção e projeções na Rocinha. Há Desta maneira são formadas as notícias das rádios, seis anos, jovens entre 13 e 20 anos geram vídeos sobre TV’s e jornais comunitários, a partir de um olhar inter- temas da sua vida cotidiana ligados à cultura, saúde e no e portanto diferente, sobre as comunidades educação. E também aprendem a ver a mídia de forpopulares. Além de acreditarem que “good news are news” ma mais crítica, compreendendo como os programas (boas notícias são notícias), dão voz a uma parcela da de televisão afetam suas vidas. Quando o material está população que não costuma ser pronto, o grupo projeta em praças público alvo da grande mídia. A públicas da redondeza. “Eu adoro. É muito legal ver o pessoal “TV Tagarela”, da Rocinha, e o jornal “O Cidadão”, da Maré, são daqui na TV. Sem dizer que é a maior festa!”, conta Wagner exemplos bem sucedidos de meios de comunicação comunitária. Thimóteo, estudante da Rocinha. Eles conquistaram a credibilidade Com a preocupação de construir este novo olhar sobre a favela da população local – até porque a é que Viviane Couto trabalha em “ equipe é local e o foco também. Dentro deste espírito, surgiu O Cidadão”, jornal de bairro do Complexo da Maré. Uma das funem 2001 o “Viva Favela”, portal que se propõe a cobrir os fatos dadoras do jornal, Viviane acredita de diversas comunidades, unindo que o ideal de retratar o lado simjornalistas profissionais a corresples dos moradores, o cotidiano da pondentes comunitários. Os comunidade com suas característicorrespondentes, moradores de cas positivas e negativas, trouxe a favelas, foram escolhidos a partir identificação e a legitimidade por de uma prova de conhecimentos parte dos leitores. gerais e redação, sem a exigência O fato de ter nascido da necesCapa do Jornal “O Cidadão”, maio de 2004. de qualquer experiência ou formasidade de fortalecer os ção na área jornalística, seja ela relacionamentos internos e a autoescrita ou fotográfica. Em função disto, eles recebem estima dos moradores, que vêm seu bairro normalmente periodicamente treinamento e orientação para aprimo- retratado na imprensa como lugar de pobreza e violência, rar seu trabalho. molda toda a conduta de concepção jornal, da estruturação Segundo o “Viva Favela”, é importante a ponte da equipe até a preocupação com o perfil das matérias. que estes profissionais fazem entre comunidades e ins- Os acontecimentos são apurados e descritos por pessoas tituição, e a sua descrição dos fatos. Por outro lado, que presenciam e entendem a dinâmica da comunidade. segundo Tetê Oliveira, editora do portal, a presença de Os leitores se sentem mais próximos e participantes, o jornalistas profissionais é fundamental não somente para que gera maior diálogo entre mídia e público. “O jornal a construção de algumas matérias, mas também para a se empenha em atingir a maior diversidade de público correção e adaptação dos textos produzidos pelos cor- possível. Tem níveis diferentes de matérias, para atingir respondentes. universitário, pai de família e dona de casa... Tem gente Para os moradores de comunidade, o portal ainda que não sabe ler, vê as figuras e acaba pedindo para alnão conseguiu conceber um discurso diferenciado. O guém ler a matéria para ela, porque se identificou com o “Viva Favela” não faz muito diferente da grande tema”, conta Viviane Couto, repórter de jornal e moramídia”, critica Lidiane Ferreira, moradora da comuni- dora da Maré. dade Mata Machado, no Alto da Boa Vista. “Eles Os moradores do Complexo da Maré, que são leiglamourizam, trabalham a exceção. Na verdade, o cara tores de “O Cidadão”, sentem a importância de ter que deu certo na favela parece um bandido em poten- um jornal produzido por eles. “A TV gera preconceicial que foi salvo. O que eles fazem de legal é abrir um tos porque só mostra o lado ruim. A primeira coisa espaço maior para se falar de experiências pouco que dizem é que aqui é muito perigoso. Perigosos são divulgadas.” De qualquer maneira, o “Viva Favela” é todos os lugares. O Leblon também é perigoso e viobastante conhecido, dele originaram-se a “Rádio Viva lento”, diz Arialdo de Paiva, morador da Maré. Na sua Favela”, de transmissão on line, e a “Rádio Viva Rio”, opinião, “O Cidadão é importante para divulgar o que que ocupa o dial da antiga “Rádio Mundial” e tem pro- tem de bom e também para discutir e tentar resolver gramação eclética, produzida por pessoas de diferentes questões importantes. Hoje, eu acredito que ele precisa até ser um pouco mais engajado do que vem sendo.” lugares do Rio de Janeiro. Cristiane Sardinha Chagas Viver no Rio é viver cercado de clichês: o Cristo empoleirado no morro em fim de tarde cor de rosa, a praia lotada de gente bonita e abusada, braços erguidos no Maracanã, samba no carnaval, samba de rua, roda de samba... Mas por trás destes símbolos tão conhecidos existe uma forma de ser carioca que, se por vezes respeita a visão idílica dos cartões postais e da publicidade, por outras escapa completamente a uma análise mais apressada. Apesar disto, nos dias de hoje a única alternativa de retrato que tem sido apresentada aos cariocas é a de grande parte da mídia, que vê na violência latente de cidade grande mal administrada um glamour folhetinesco e espetacular. Cidade linda, cidade suja, grande e colorida, feia e mal-cheirosa. Braços de mar, línguas de óleo. Prostituída, notívaga, dias claros de sol aberto, café com pão no balcão da padaria. O Rio é um dos maiores paradoxos do Brasil. A proposta deste jornal foi não se curvar a nenhuma destas duas imagens: nem só a cidade para inglês – e americano, francês, alemão, etc. – ver; nem apenas a dos noticiários de câmeras escondidas, manchetes cuspindo “números alarmantes” e imagens cheirando a celulóide. Ainda assim, respeitemos em parte os clichês: um pouco de sal, suor, sorriso, beleza e violência faz parte do dia-a-dia de todo carioca. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Aloisio Teixeira ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Direção José Amaral Argolo Coordenação do Curso de Jornalismo Beatriz Becker Núcleo de Imprensa Elizabete Cerqueira coordenação executiva Cecília Castro programação visual número 5 - 2004/1 Informativo produzido pelos alunos da Escola de Comunicação da UFRJ Orientação acadêmica Maurício Schleder e Paulo Roberto Pires Coordenação editorial André Motta Lima Elizabete Cerqueira Assessoria gráfica Cecília Castro Apoio PR-1 SG-6 Divisão gráfica/UFRJ Este número foi produzido com matérias elaboradas pelos alunos da disciplina Jornal Laboratório. As fotos e ilustrações são de responsabilidade exclusiva dos alunos. Término em 30/07/2004. TIRAGEM: 1.000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA 3 NO 5 - 2004/1 Cariocas por quem não é O retrato idealizado do típico morador da cidade virou até letra de música Flávia Cohen Cariocas são sacanas, cariocas são modernos, cariocas são diretos. São tão alegres, tão espertos e tão sexy. Um retrato do típico morador do Rio de Janeiro está, curiosamente, nas palavras de uma gaúcha, Adriana Calcanhotto, que na letra de “Cariocas” não só homenageia sua cidade de adoção como tenta descrever o que é viver nela. Dos 16 versos que descrevem o cotidiano do carioca, um único parece ser consenso para quem está nesta cidade: “cariocas não gostam de dias nublados”. Mais do que uma impressão, trata-se de uma estatística. Segundo pesquisa realizada no início deste ano pelo Departamento de Turismo da UniverCidade e a Secretaria Municipal de Turismo, o último verão, com jeito de outono, irritou os cariocas - mas não só eles. De mil turistas estrangeiros que vieram à cidade nesse período, o principal problema apontado por 25% deles foi a chuva, considerado mais grave do que dificuldades no transporte e problemas de segurança. Talvez por terem entrado no espírito da cidade. O curioso é entender por que as atitudes e maneiras de viver de um carioca são tão marcantes e possíveis de influenciar pessoas que nem sequer nasceram nesta cidade. Um dado esclarecedor, segundo a antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ilana Stronzenberg é a própria história do Rio. Ter sido centro da política nacional muito tempo e passagem de pessoas e culturas diferentes, lhe deu um caráter cosmopolita que marcou de maneira singular um estilo carioca de viver. Ela comenta que a história dessa cidade como portuária, capital federal e “caixa de percussão de cultura” reforçou uma imagem do “viver carioca”. No entanto, observa que esses aspectos não retiraram a informalidade da cidade. Essa característica informal, para ela, pode ser constatada na famosa imagem que se fez do carioca “que não gosta de trabalhar”, construída sob aspectos geográficos bastante peculiares ao Rio: – Esta imagem de uma cidade que consegue juntar trabalho e lazer estão muito arraigada nisto que chamamos de “imagem do carioca”. Afinal o Rio de Janeiro é um grande centro urbano à beira do mar explica. Mas ressalva que não existe uma opinião única, outras interpretações podem ser feitas com essa imagem: – Além de ter essa caracterização que desqualifica do tipo “ carioca não trabalha”, há também aquele que vê como “carioca trabalha, mas nem parece por que leva a vida numa boa”- complementa. Andréa Frota, 23 anos, aluna do curso de teatro Martins Pena, veio de Fortaleza para estudar no Rio de Janeiro e faz coro com os que duvidam do gosto carioca pelo trabalho, juntando a este preconceito regional um outro muito difundido: – Carioca é um pouco de baiano, tipo está tudo bem assim, então deixa como está. Guedes de Freitas, 54 anos, jornalista, trocou o Mato Grosso do Sul pelo Rio de Janeiro há 34 anos, também vê parentescos entre cariocas e baianos. Para ele, o fato de Rio e Salvador terem sido capitais do Brasil deixou nas cidades uma arraigada mentalidade de funcionalismo público, aquele emprego que traz estabilidade e tranqüilidade. - Por ser praticamente vitalício, o emprego público não gera competição, o que pode ter criado essa atitude despreocupada com a vida. Este “relaxamento” é, quase sempre, associado à mitológica malandragem do carioca. Um mito de duas caras, do sujeito que tenta vencer uma dificuldade sem prejudicar ninguém ou daquele que é considerado mesmo um “abusado”. No que depender do mineiro Felipe Vasconcelos, 18 anos, malandragem é qualidade, sinônimo de atitude, mas sua colega Aline Chagas, 29 anos, gaúcha como Calcanhotto, não se convence disso: – Acho que os cariocas, com esse jeito malandro, na verdade se enganam, pois não sabem é viver. Na lista de defeitos, só a impaciência rivaliza com a malandragem. Bastam poucos minutos no trânsito para comprovar que o verso “cariocas não gostam de sinal fechado” é muito mais do que uma licen- “Esta imagem de uma cidade que consegue juntar trabalho e lazer estão muito arraigada nisto que chamamos de ‘imagem do carioca’. Afinal, o Rio de Janeiro é um grande centro urbano à beira do mar” Ilana Strozenberg, antropóloga ça poética. Para a publicitária Helena Dias, de 41 anos, que se diz “carioca da gema”, o carioca nem precisa estar motorizado para demonstrar que a paciência é palavra fora de seu dicionário: – O carioca é aquele que sempre dá “um jeitinho” de furar ou encontrar um “velho amigo” no meio da fila - comenta. É certo que todos esses aspectos criam estereótipos da imagem do Rio e de seus habitantes. Ilana analisa que é quase impossível eliminar os estereótipos da vida de uma população e que em certos casos eles podem servir de forma positiva na orientação de uma sociedade. O perigo, segundo ela, é quando os estereótipos podem pautar determinados comportamentos que tem conseqüências no destino desta população. – Se o estereótipo for levado a sério, pode vir a ocasionar brigas de rua, denúncias, discriminação política. - explica. Mas um estereótipo já virou quase lei na cidade: “cariocas têm sotaque”. É tema de muitas discussões, na maioria das vezes sem entendimento. A maior parte dos cariocas acha sua maneira de falar mais despojada. Já não-cariocas pensam de outra forma. Luciana Méier, de Campo Grande acha pura pretensão essa convicção do carioca de classificar seu sotaque como o melhor. - Nós temos de aceitar todas as formas de se expressar, e não desprezar alguns e exaltar outros, como o carioca faz -comenta. O lingüista Denis Russo Burgierman explica que a língua falada, no início da colonização portuguesa no Brasil, era mais próxima do modo paulista e só veio mudar a partir do século XVII com a introdução do trabalho escravo e a vinda de diversos sotaques de imigrantes ao longo do tempo - Foram estas circunstâncias que criaram o chamado português “abrasileirado”- ressalta. E esclarece qual foi a origem histórica do jeito de falar carioca: – Quando a família real portuguesa mudou-se para o Rio, em 1808, trouxe 16 mil lusitanos, numa cidade que tinha 50 mil habitantes. Essa gente toda mudou o jeito de falar carioca. Data daí o chiado no “s”, como em “festa”, que fica parecendo “fieishta”. Interessante é saber que existem muitas pessoas morando no Rio de Janeiro que nem sequer nasceram na cidade. Ou vieram desde pequenos, ou para trabalhar, ou por opção mesmo. Mas ao chegar aqui, adotam um único estado em comum: o de espírito. – Essa imagem do carioca não tem muito a ver com a origem, mas com uma determinada maneira de ser, de comportamento, atitude diante da vida - comenta Ilana. O grande compositor e poeta Vinícius de Moraes, que mais do que, na certidão provou ser “carioca da gema” na vida, escreveu uma crônica, publicada em 2001 pela Editora Abril, sobre esse espírito presente nos ares do Rio. Para ele “ser carioca é mais do que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em meio à sua adorável desorganização, é não gostar de levantar cedo, trabalhar com ar de ócio, com um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa, tendo como o único programa o não têlo, é dar mais importância ao amor do que ao dinheiro, ser carioca é ser Di Cavalcanti”. Como diria um bom carioca: “falou e disse!”. 4 NO 5 - 2004/1 O malandro não é mais aquele... Arquivo JB Natalia Sahlit Chico Buarque cantou há mais de vinte anos que o bom e velho malandro da Lapa havia sido substituído por um outro “com retrato na coluna social”. Na década de 1990, outro compositor nascido e criado na cidade, Toni Garrido descreveu os cariocas como “corpos malhados” e “sorrisos talhados” que perambulam pela Zona Sul de bar em bar. Mas como foi que o mulato dos botequins da Zona Norte do Rio Antigo, que entoava o samba e dançava o maxixe, se transformou no garotão bronzeado, “parado em qualquer praia” e “solto em qualquer lugar”? É fato que a cultura da picardia, da molecagem e do “jeitinho” foi sendo construída junto com a cidade do Rio de Janeiro. Capital no século XIX, a cidade se tornou centro econômico e cultural do país. A elite carioca, acostumada às modas que aportavam no cais, pretendia fazer aqui uma cidade cosmopolita como Paris, ignorando a cultura popular que começava a surgir da mistura de ritmos e costumes europeus com africanos. Antônio Herculano Lopes, no livro Entre Europa e África: a invenção do carioca, cita José Veríssimo para exemplificar como o negro era mal visto: O africano alegre, descuidoso, afetivo, com sua moralidade primitiva de selvagem, invadiu tudo e imiscuiu-se em tudo. Nunca se notou bastante a depravada influência deste particular tipo de brasileiro, a mulata, no amolecimento do nosso caráter. “Esse fenômeno de afrodisismo pátrio”, como lhe chama o Sr. Sílvio Romero, foi um dissolvente da nossa virilidade física e moral. A audaciosa reforma urbana de Pereira Passos Retratos da malandragem na gravura de Álvaro Martins e na figura do sambista Noel Rosa: bebida, mulheres, cigarro e música trouxe glamour e sofisticação ao Centro da cidade, desenhando ruas largas como as das grandes metrópoles e expulsando, para os subúrbios e as favelas, moléstias, sujeiras e povo. E é a região conhecida como “Pequena África”, lá para os lados da Cidade Nova, que já nas primeiras décadas do século XX vê nascer o maxixe, o choro e o samba, além do teatro de revista e outras tantas manifestações geradas pela interseção da cultura dos escravos recém-libertos com os brancos. – A malandragem está diretamente ligada ao fato de sermos colonizados. O negro teve que dar um “jeitinho” para sobreviver a esta violência, com astúcia, alegria e música. E como o Rio foi capital durante muito tempo, havia aquela idéia de “tem alguém trabalhando para mim” – diz o antropólogo José Carlos Rodrigues. A cidade representava também uma espécie de sonho de ascensão, já que era a corte. Para cá vieram pessoas de todo o Brasil e vários estrangeiros, o que aumentou esta mistura tipicamente carioca. O fato de o Rio ser quente, ter praias e belezas naturais, além disso, contribuiu para a idéia de que aqui não há trabalho, só lazer. Mas, e hoje, quem é o carioca? Para a historiadora Esther Kuperman, esta imagem de um sujeito divertido, cheio de ginga e galhofa atualmente não passa de um mito. Só existe na cabeça dos turistas, que restringem o Rio aos hotéis de luxo de Copacabana. – Essa visão é algo que interessa vender para o exterior. Só que nos lugares de convivência da cidade já não há solidariedade. É só ver a cara das pessoas no metrô, a forma como caminham pelas ruas, esbarrando, sem pedir licença, xingando no trânsito. O malandro bem-humorado virou o malandro agressivo, o que quer se dar bem às custas de todo o mundo. O carioca, hoje, é individualista; infelizmente, está cada vez mais próximo do paulista e de outros moradores de grandes metrópoles – afirma a historiadora, quase em um desabafo. Ela acredita que, como o fim da ditadura militar, a repressão às formas de união e convívio passou a ser sutil e eficiente. A competitividade seria ensinada em escolas e incentivada pelos meios de comunicação de massa. Tudo isto, de acordo com Esther, modificou a identidade do carioca. José Carlos Rodrigues acha que o individualismo é conseqüência inevitável das grandes metrópoles, mas vê no aumento da violência – real e imaginária – a principal razão para esta mudança de comportamento dos moradores da cidade. – Como é possível pegar carona na rua, coisa típica do improviso carioca, nos dias de hoje? O malandro, para muita gente, virou bandido. Esta agressividade, esta violência são fruto muito menos da pobreza, que sempre existiu, do que de esquemas internacionais. A mídia também se acostumou a alimentar este terror, que vende muito bem. E a violência imaginária e a real se retroalimentam – acredita ele. O malandro de que fala Toni Garrido, no entanto, não é nenhum destes dois: nem o de cuíca na mão, mito do passado; nem o sujeito assustado, agressivo e violento do cotidiano da cidade. Ele é um cidadão alegre, que vagueia pelos bares da Zona Sul de copo na mão, cantando samba, sem esquecer 5 NO 5 - 2004/1 Arquivo JB No quadro do músico e pintor Heitor dos Prazeres, da década de 60, um pouco da vida noturna carioca da época. Abaixo, caricatura do malandro por Claudão que no dia seguinte tem que chegar cedo ao escritório. A publicidade e a mídia parecem ter dado um charme a mais ao malandro rejeitado pela sociedade, que hoje “chacoalha no trem da Central”, como adiantou Chico Buarque. O discurso desta antiga personagem carioca ganhou certo glamour e foi adaptado ao dos moradores da Zona Sul. – Não é só a cidade que está partida, mas também a identidade do carioca. E a mídia só faz questão de mostrar o lado do asfalto. Nos jornais, você encontra matérias e matérias sobre os nobres freqüentadores do Bracarense, no Leblon, mas onde estão as biroscas da Zona Norte, dos morros? Quem freqüenta a Lapa, hoje? Os “malandros-zonasul”. Pelo menos é só isso o que se mostra – ressalta Esther Kuperman. Thiago Cesário Alvim, 43 anos, dono do Carioca da Gema, na Lapa – um dos bares mais citados por jornais e revistas atualmente – garante que o público da casa é bem diversificado. Mas confirma que o bairro e o samba viraram modismo. – Tem uma galera que vem porque está todo o mundo falando. A Lapa atrai gente antenada, de vanguarda. E também é uma nova opção para este pessoal. Porque preferir ir a uma boate nos chamados bairros nobres para pagar caro, ver briga? – explica Thiago, nascido e criado na Gávea. Para Paulo Celso Pereira, estudante de 21 anos da PUC, morador do Leblon e freqüentador de bares na Lapa, a repaginação do bairro pela mídia parece por vezes “meio fake”. – O Carioca da Gema, por exemplo, não é Lapa de verdade. Aquela parede raspada é para parecer antiga, mas é nova. E a cerveja, que custa R$ 4,00? O estudante acha que a imagem do carioca nos dias de hoje é a do morador da Zona Sul, que vai à praia no Posto 9 da Praia de Ipanema antes do trabalho e gosta de sair à noite para boates como o Oi Noites Cariocas, na Urca, ouvir Jorge Ben Jor e Farofa Carioca. Mesmo assim, Paulo Celso acredita que o malandro à moda antiga ainda existe, talvez na Zona Norte, que ele não conhece bem. José Carlos Rodrigues também afirma que a “boa malandragem” não foi completamente extinta. O antropólogo diz que este espírito carioca ainda está presente em alguns lugares do subúrbio, no carnaval e no futebol – manifestação cultural e esporte também adaptados do exterior. Mas quem é classi f i c a d o c o m o t í p i c o malandro carioca recusa o rótulo. Oswaldo Cavalo, 46 anos, ritimista de Zeca Pagodinho, vive do samba, adora beber e encontrar os amigos em bares do Centro, na Mangueira, na Portela e até no Carioca da Gema. Quando é apontado como malandro, no entanto, desconfia e acha engraçado. – Talvez me chamem assim pela maneira de falar, pelas gírias antigas, porque bebo bastante, normalmente à noite. Mas malandro nunca foi moda, nunca vai ser. O samba também nunca esteve na moda, sempre existiu. Tem que tocar o samba como ele sempre foi tocado, não ficar inventando. Se não, perde a essência – diz ele, fala mansa, copo de cerveja na mão, em frente ao Teatro Rival, no Centro. E, como quem quer nada, sintetiza de forma simples e clara o espírito tão discutido e mitificado: – Carioca é quem nasceu aqui, se identifica com as coisas daqui, não tem que dizer que é quem faz isso ou aquilo. Tem aquele jeito, se tá te incomodando, se você não tem afinidade, deixa pra lá... 6 NO 5 - 2004/1 O outro lado da beleza carioca Mulheres do Rio têm sido vulgarizadas pela mídia Sâmea de Sá A famosa moça do corpo dourado que Tom Jobim e Vinícius de Moraes descreveram em “Garota de Ipanema” paga hoje o preço de sua beleza. A imagem sensível, doce, sensual e alegre da mulher carioca tem estado cada vez mais apagada na memória dos brasileiros. Em seu lugar surge uma mulher fácil, “dadeira” e “gostosa” que tem sido construída e mantida pela mídia. Ilana Strozemberg, professora de Antropologia da UFRJ, afirma que o estereótipo da mulher carioca tem a ver com o próprio relevo da cidade. “Essa imagem de mulher sensual e gostosa tem uma homologia com a imagem do Rio por ser uma cidade de praias, lazer e belezas naturais. As curvas das cariocas lembram os morros e a Baía de Guanabara”, destaca. Por outro lado, a imagem da carioca não se resume ao aspecto sensual. Para Diego do Carmo, carioca, 23 anos, a mulher da cidade do Rio é também muito trabalhadora. “Penso em sensualidade, mulher decidida e que corre atrás de seu ideal” – diz ele. A beleza suave e a doçura das cariocas estão de fato entrando em extinção deixando, assim, o espaço livre para o surgimento de uma mulher fácil e “dadeira”. “Ela tem um estilo funkeira que malha muito, é gostosa e vai à praia direto. Além disso, é muito fácil e interesseira. Um grande exemplo de mulher carioca pra mim é a Darlene” , ressalta Frederico Machado, carioca, 20 anos, numa comparação com a personagem interpretada por Débora Secco na telenovela Celebridade. Segundo Ilana, essa imagem de mulher gostosona e fácil está mais na cabeça do que no cotidiano dos cariocas. “A mulher do Rio está muito associada ao corpo e não a exercícios de intelectualidade, nem de trabalho. Mas, isso é apenas um estereótipo criado pela mídia, pois as pessoas trabalham muito no Rio”, explica. As cariocas também tiveram expressivas participações nos movimentos sociais que marcaram a história do Rio de Janeiro. “Existe uma outra mulher carioca que tem também a imagem do Rio: a vanguardista, que atua fortemente nos movimentos sociais e feministas”, ressalta a fotógrafa e feminista Cláudia Ferreira. No entanto, o que predomina atualmente no pensamento dos brasileiros é justamente o estereótipo vulgarizado da carioca que tem sido criado e divulgado pelos meios de comunicação de massa. “O apelo da mídia em manter essa imagem, que para mim é muito reducionista, tem sido muito forte, pois é ela que vende e garante a audiência. Por isso, fica difícil construir uma outra imagem da carioca como mulher engajada, empresária, artista e independente”, afirma Cláudia. Para Ilana Strozemberg, a mídia usa suas produções audiovisuais para disseminar essa imagem da carioca fácil, gostosa e interesseira. “A indústria cultural é o grande motor de manutenção desse estereótipo através de desfiles de moda, telenovelas, comerciais e da própria música popular brasileira. Ela cultiva isso, porque tem grande público que consome”, diz ela. A doce Garota de Ipanema dá lugar a uma emergente mulher vulgar. “O aspecto brejeiro, sensível, suave e receptivo da carioca não está mais representado na mídia. O que a propaganda faz é utilizar uma mulher caucasiana que, na minha opinião, pouco tem haver com a carioca, mas sim com uma mulher que circula e que vende por ser atraente, gostosa e fácil”, afirma Sócrates Nolasco, professor de História da Propaganda na UFRJ. “Não só a propaganda ajudou a desconstruir essa imagem brejeira, mas também as telenovelas como, por exemplo, a personagem Darlene, que ressalta esse aspecto da carioca interesseira e gostosona. A menina cheia de graça foi galvanizada pela grande pressão que a mídia faz visando alcançar uma maior audiência e, acima de tudo, vender, vender e vender”. 7 NO 5 - 2004/1 Tem um famoso aqui... E daí? M ICHELLE P EREIRA É só passear pela Cidade Maravilhosa para comprovar. Tanto nos shoppings quanto nas praias, os artistas podem andar tranqüilamente. Uma liberdade que poderia ser comparada à que tinham quando ainda estavam no anonimato, não fosse uma e outra manifestação mais calorosa. Normalmente vinda de turistas, que ainda não estão acostumados com o vaivém dos artistas pela cidade. “Sempre que vou ao Rio sou surpreendida com tantos famosos nos cinemas, lanchonetes e shoppings. E faço questão de pagar alguns micos. Se eu puder ir falar, abraçar, tirar foto, conversar... Eu vou mesmo”, conta Melisa Pedra, 20 anos, que mora em Campos-RJ, e gosta de vir passar as férias no Rio. “Certa vez estava no Barra Shopping e dei de cara com o Fábio Assunção. Eu mal conseguia respirar. Foi hilário. E todas as minhas amigas estavam me impedindo de ir até ele, dizendo que eu iria pagar o maior mico. Mas não resisti. Pedi pra ele tirar uma foto com a gente. Foi o máximo! Durante a viagem de volta, gritávamos o tempo todo: ‘Tirei uma foto com Fábio Assunção!’ Isso rendeu assunto aqui em Campos”, relata. “Os cariocas encaram os famosos como uma pessoa qualquer. Eu não. Não moro no Rio. Não estou acostumada com tantas celebridades juntas”, conclui Melisa. Não há dúvidas: o Rio de Janeiro é a Hollywood tupiniquim. Em todo o território brasileiro nenhuma cidade tem aglomerado tantos artistas por metro quadrado. E nenhuma tem sido palco de uma relação tão peculiar entre as celebridades e o público. Para o músico e jornalista Celso Fonseca, isso acontece porque, no Rio, a praia e o shopping ajudam a desmistificar essa relação. “Não vejo os artistas serem importunados aqui como se fossem pessoas de outro mundo, diferente do que ocorre em outros lugares”, atesta Fonseca. A atriz global Rosamaria Murtinho lembra da Lei 256/91, de Obrigatoriedade da Produção Regional. “Se houvesse incentivo e investimento de empresas e do governo para a produção artística em outras cidades, os artistas locais seriam valorizados e o público desses lugares também se acostumaria a conviver com eles”, afirma a atriz, com a experiência de quem há mais de duas décadas foi alçada ao posto de celebridade. “Apesar de acreditar que a relação estabelecida entre fãs e artistas seja, antes de qualquer coisa, uma questão de educação, é evidente que no Rio é diferente. Aqui os fãs são menos invasivos”, conclui Rosamaria. Até mesmo quem parece fugir a essa regra, serve para reiterá-la. É o caso dos fãs que durante horas ficam em frente à Central Globo de Produção - PROJAC, em Jacarepaguá. São dezenas de jovens, na maioria meninas, que não pertencem a nenhum fãclube e nem estão ali por causa de um artista em especial. Eles só querem um autógrafo ou, pelo menos, um aceno de qualquer uma das celebridades que diariamente passam por ali. E para isso protagonizam cenas de histeria e escândalo. Em unanimidade surpreendente, todos os fãs garantem que não têm reações escandalosas quando encontram-se com famosos em outros lugares do Rio. Os gritos são restritos à frente do PROJAC. Mayara Ferreira, 13 anos, cercada por um grupo de amigas da Escola Municipal Silveira Sampaio, em Curicica, afirma que cenas de histeria em shoppings é “pagar mico”. “Todo mundo que vem pra cá, vem pra isso. Em outro lugar é diferente, no máximo você cutuca a pessoa que está do seu lado e comenta algo sobre o artista que estiver passando”, conclui Mayara, com a aprovação de todas as amigas. Ana Gabrielle da Silva, 17 anos, está pelo menos duas vezes por semana em frente ao PROJAC, com a máquina fotográfica em mãos. Com ar de vitória, mostra a todos os que chegam um álbum de retratos repleto de fotos dela com famosos. Como a maioria de seus amigos, quer apenas um instante da atenção deles. Muitas vezes consegue. E é por isso que enfrenta mais de uma hora de viagem para chegar de São João de Meriti, cidade em que mora, até o PROJAC. “Aqui eu me sinto à vontade para abordá-los e posso gritar à vontade”, conta Ana Gabrielle. Carioca da gema que se preze não incomoda celebridade. Gabriela da Silva, 18 anos, precisou aprender isso com a irmã Aletéia, 28 anos. Gabriela, então com 14 anos, teve um ataque de histeria e fanatismo ao ver o ator Rodrigo Santoro andando de skate no calçadão, no Leblon. “Estávamos sentadas conversando quando Gabriela viu Santoro. No mesmo instante interrompeu nossa conversa. E virou meu rosto com tanta força para que eu o visse, que quase machucou meu pescoço. Dizia repetidamente: - Olha, olha, é o Rodrigo Santoro! E começou a gritar feito louca”, relata Aletéia, que se hoje ri do episódio, lembra de que no dia não foi nada agradável. “Gabriela conseguiu ‘rachar minha cara’ de vergonha. E ganhar um sorriso (amarelo) de Santoro. Mas aprendeu. Nunca tantos olhares desaprovadores foram dirigidos pra ela como naquele dia”, afirma Aletéia. Pode até parecer exagero, mas não é. Os cariocas parecem sentir-se mais incomodados do que os próprios artistas ao verem as pessoas terem reações exageradas ao abordar algum famoso pelas ruas do Rio. Eles agem sempre como se fossem indiferentes à presença dos artistas. Afinal, já perderam a conta de quantas vezes encontraram-se com um deles por aí. Mayara Ferreira (terceira da esquerda para direita), com as amigas, em frente a Portaria 3 do PROJAC, exibe sua agenda repleta de autógrafos. “Eu grito e faço escândalo mesmo. Mas só aqui. Abordar os artistas em outros lugares é pagar mico.” 8 NO 5 - 2004/1 Profissão Mula Sinônimos de sensualidade e ginga, mulheres que ganham a vida fazendo shows têm rotina menos glamourosa do que sugerem suas fantasias luxuosas Tiana Ellwanger D Baiana, com seus inacreditáveis 42 anos, está no Plataforma há 12 e dança a noite inteira para que seu filho, com 20 anos possa cursar a faculdade de Direito o sonho de namorar um príncipe à dura realidade de fazer shows durante toda a madrugada para sustentar a família. O universo das mulatas por profissão, ou seja, aquelas que ganham a vida fazendo shows, pode ser definido por uma palavra: contradição. Tanto é que as próprias profissionais estão muito longe de um consenso sobre remuneração, rotina e glamour. Com relação ao imaginário da mulata, mais polêmica. Enquanto alguns acham que elas divulgam como ninguém a cultura brasileira dentro e fora do país, outros vêem essas imagens como estereótipos disfarçados, que mais denigrem do que constroem o Brasil na sua imensidão cultural. As confusões e os preconceitos com relação aos shows são inevitáveis. Mas existem regras claras que partem dos próprios empresários. A atriz Solange Couto diz que quando trabalhava com Oswaldo Sargentelli, empresário que fez história como ‘mulatólogo’, as normas eram rigorosas. “Se ganhássemos algum presente dos turistas, estávamos na rua”, lembra a atriz, que alcançou o auge com a personagem Dona Jura em “O Clone”. Sargentelli, convidado a participar da trama, morreu após passar mal durante as gravações. Regras bem definidas também guiam o empresário Luís Fernando, da casa de shows Plataforma, no Leblon, hoje o único lugar com apresentações de mulatas para turistas no Rio. “É expressamente proibido ter qualquer contato com os turistas aqui e nos arredores. Se alguma menina for pega conversando com alguém que tenha assistido ao show, a demissão é imediata”, garante Luis. Mesmo assim, é difícil evitar que as mulatas sejam confundidas com prostitutas. Logicamente não é à toa, já que o Rio virou sinônimo de turismo sexual para muitos gringos que vêm se divertir por aqui. “As pessoas confundem muito quando falo que sou dançarina em uma casa de shows”, conta Delaine Cristina, que também trabalha no Plataforma. “Cabe a nós termos postura e mudarmos essa imagem”, conclui. PRECONCEITOS E RÓTULOS, UMA CONSEQÜÊNCIA Os preconceitos, no entanto, vão além da “confusão” de profissões. O preconceito racial também existe, por mais que disfarçado de sensualidade e “brasilidade”. Adele Fátima, ainda lembrada pelo lendário comercial das Sardinhas 88, conta uma história que mostra que o uso da imagem das mulatas tinha limitações. “Quando estava no auge fui convidada para fazer um comercial de cigarros, pois o pessoal viu que eu vendia”, lembra. “Aí, quando já estava tudo preparado para as gravações, eles falaram que eu não poderia fazer, porque era um anúncio voltado para a classe A”, indigna-se a mulata, que deslanchou na carreira de atriz nos anos 80, contracenando inclusive com Roger Moore em uma das aventuras de 007. Mas a fama não foi suficiente, em 1992, quanto tentou eleger-se vereadora, com plataforma de defesa de prostitutas e travestis. Mais disfarçado do que o preconceito racial, no entanto, é o estereótipo que se criou com a figura da mulata, parte integrante do imaginário social. “Carne, sexo, sensualidade e ritmo. É isso que a mulata representa. Por mais que aparentemente seja uma imagem positiva, essa imagem nega que a mulata possa ser qualquer outra coisa, como uma advogada ou uma médica”, explica a professora de Comunicação da UFRJ Ieda Tucherman. “Isso fica bem claro quando vemos as representações que as mulatas e negras têm na mídia. As novelas são um exemplo. A mulata pode ser boa de cama, ótima ‘aleitadeira’ e dançar como nenhuma outra, mas pode reparar que ela está sempre em uma posição social inferior com relação às outras mulheres, como empregada doméstica”, diz a doutora. Essa imagem da mulata sensual é tão forte que as brasileiras passaram a ser um ponto turístico a mais no Rio de Janeiro. “Os gringos vêm para ver o Cristo, andar de bondinho no Pão de Açúcar e sair com uma mulata’”, enumera Ieda. E não há como negar que, se por um lado os shows de mulatas mostram um pouco da cultura brasileira para o mundo, por outro alimentam um imaginário que muitas vezes não corresponde à realidade. Não é raro vermos “desavisados” que chegam aqui achando que todas as brasileiras são mulatas e andam de biquíni sambando nas ruas. ROMANCES DE CONTOS DE FADA TAMBÉM FAZEM PARTE DESSE UNIVERSO O g osto pelo exótico, principalmente dos europeus, é confirmado por quem viaja pelo mundo fazendo shows. A portabandeira Selminha Sorriso, que já fez mais de 20 viagens internacionais como mulata, teve a prova em uma viagem a Mônaco. “Estava dançando em Monte Carlo, durante as comemorações dos 700 anos do Principado. Nisso, o príncipe Albert, herdeiro do trono, parecia me olhar fixamente. Não estava acreditando naquilo, mas quando acabou o show, ele veio falar comigo e disse que que não conseguia desviar o olhar de mim. 9 NO 5 - 2004/1 ata Adele Fátima: a primeira mulata oficial do Braisl O caricaturista Lan, à esquerda, imortalizou em seu traço o tipo feminino que é sinônimo da mulher brasileira e atrai levas de turistas para shows como o do Plataforma (ao centro), uma invenção do “mulatólogo” Oswaldo Sargentelli (à direita) Ficamos juntos durante todo o tempo que fiquei lá”, conta. É bem comum, no entanto, que esse fascínio pelo diferente gere ilusões. Baiana, do Plataforma, conta que já pediu demissão quatro vezes por causa de viagens. “A gente sonha, acha que vai fazer uma vida de sucesso lá fora, que não vai precisar mais voltar, que vai ficar rica e casar com um gringo. Mas não é bem assim”, alerta a dançarina. Quem acha que para ser mulata profissional basta ter um corpo bonito e a cor característica, está muito enganado. O Plataforma é um exemplo. Antes de subir no palco, há um longo caminho a percorrer. Tudo começa na escolinha, com ensaios duas vezes por semana. “É como no futebol. Para entrar na escolinha de um time profissional, o cara tem de ter o dom de jogar bola. Aqui, a mulher tem de saber dançar, além de ter altura mínima de 1,70 m”, compara Luís Fernando, sócio da casa junto com seus irmãos. A seleção é tão severa, que barrou até Selminha Sorriso, portabandeira nota 10 da Beija Flor. “Eu tenho 1,67 m. Eles falaram que eu era linda, dançava bem, mas era muito baixa. Além disso, sou magrinha. Não tenho bundão e coxas muito grossas, como era exigido”, lembra a campeã do Carnaval 2004, hoje beirando os 30 anos. CURVAS JÁ NÃO TÃO IMPORTANTES Não é à toa que Selminha alcançou o sucesso. Junto com os padrões de beleza internacionais, o modelo de mulata ideal também mudou dos anos 70 e 80 para cá. A veterana Edna Souza Menezes, conhecida como Baiana, que o diga. “Me sinto fora de forma às vezes. Hoje todas as meninas malham, não têm barriga nenhuma. Queria ter mais tempo e dinheiro para cuidar do meu corpo”, diz a mulata, que apesar da preocupação, está em plena forma para os seus inacreditáveis 42 anos. As curvas acentuadas, hoje já não tão exigidas, inspiraram todo um imaginário em torno das mulatas brasileiras. Um dos responsáveis por essa fantasia, que já tirou o sono de muitos homens por aqui e no mundo, foi o caricaturista Lan, que exarcebou essas curvas em caricaturas que fizeram história. “Não saberia fazer uma caricatura de uma modelo magrela. Meus desenhos são todos em curvas e ninguém se encaixa melhor neles do que as mulatas, lindas, sensualíssimas”, delira o italiano, casado há 44 anos com Olívia, uma das Irmãs Marinho, grupo que rodou o mundo fazendo shows. Quanto ao casamento, Lan afirma: “Não sou contraditório”. A fascinação vem desde a infância. “Quando saí da Itália e vim morar em São Paulo, com quatro anos de idade, tive uma babá mulata, maravilhosa. Aquela figura de beleza, carinho e bondade ficou na minha lembrança. E olha que naquela época, nem era tarado como sou hoje”, brinca. Se o padrão estético mudou, não há dúvida que a remuneração também. A grande maioria busca outra profissão e encara os shows como uma fase passageira. É o caso de Janaína Santana, de 30 anos, dançarina do Plataforma. “Estou no 3º período da faculdade de Educação Física, na Estácio de Sá da Barra. Quero ser personal trainer”, sonha. Sua colega Michele Ramos, atualmente com 25 anos, também quer ir longe: “Quero terminar o ensino médio e fazer Medicina”. FAMA NÃO É SINÔNIMO DE DINHEIRO Isso é reflexo de uma série de fatores, como a remuneração reduzida, a forte concorrência, a crise econômica e a efemeridade da profissão. Selminha Sorriso, que cursa o 9º período de Direito e atualmente faz parte do Corpo de Bombeiros, tem opinião formada sobre o assunto: “Antes, não havia a crise e o desemprego que vivemos hoje. Atualmente, mulheres que poderiam estar trabalhando como secretárias ou em uma repartição pública, preferem ser mulatas porque isso pode ser mais rentável”, explica com linguagem próxima a de um economista. “Essa concorrência fez com que os cachês fossem achatados”, completa. Fica difícil ser só mulata. Baiana, que sustenta o filho de 20 anos no curso de Direito da faculdade Cândido Mendes, dança há 12 anos no Plataforma e ganha R$ 840 por mês. Para complementar a renda, depois do show na renomada casa de espetáculos, ela corre para a boate Barbarela, em Copacabana, onde fica até as 5 h da manhã fazendo shows de samba. Mas se hoje os salários não são dos mais altos, a época áurea das mulatas gera contradições com relação à remuneração. Solange Couto, hoje global, diz que ganhava muito bem com Oswaldo Sargentelli. “Era o equivalente a R$ 10.000 hoje, isso sem contar os extras”, afirma a atriz. Já Adele Fátima, considerada a primeira “mulata profissional” do Brasil, conta que, apesar da fama, não acumulou riquezas e ganhava no máximo o equivalente a três mil reais quando dançava com Sargentelli, nos anos 70. Solange também conta que, apesar dos salários mais altos, muitas das mulatas tinham outras profissões: “A Etienete era professora, a Gisele Márcia telefonista e a Mara Brum tinha um salão de cabeleireiros”, lembra das colegas. E, saudosa, fala do amigo Oswaldo Sargentelli: “Ele era extremamente paternalista. Sabia de toda a nossa vida, nossos namorados, o cabeleireiro e até a butique onde comprávamos roupas. Preocupava-se muito com a nossa imagem. Tinha até uma condução que levava as meninas em casa para evitar problemas”. 10 NO 5 - 2004/1 Céu e inferno da vida num cartão-postal Turistas, equipes de cinema e fiscais do Patrimônio Histórico tumultuam o cotidiano dos moradores do Largo do Boticário Adriana Calderoni Domingo de manhã, bem cedo. A campainha da casa 1 começa a tocar. Antes das 8 horas o movimento já é grande. Taxistas e guias de turismo contam histórias – nem sempre verdadeiras – enquanto famílias, amigos, brasileiros e estrangeiros tiram fotografias. Com atenção pode-se ouvir três ou quatro línguas diferentes. Essa é a rotina das manhãs dominicais no Largo do Boticário, o beco residencial mais conhecido do Rio de Janeiro. Ivanise Fontes, moradora do número 1, costumava se incomodar ao ser acordada pela campainha aos domingos. “Os visitantes querem obter informações e muitas vezes não sabem que tem gente morando ali. Às vezes incomoda, mas no geral eu gosto do movimento”, diz a psicanalista. “Gosto também quando os estudantes da Escola de Belas Artes fazem os exames de desenho”. Ivanise nasceu no Boticário e tem uma relação afetiva com a casa que foi construída no início do século XIX. “Meus avós compraram essa casa em um leilão na década de 40”, lembra a moradora. Ela conta também que sua família muitas vezes para nas janelas para ouvir as histórias contadas pelos guias de turismo profissionais e improvisados. “Os taxistas têm uma imaginação tão fértil, eu gostaria de gravar um dia as explicações que eles dão para os turistas. Mas mesmo os guias não têm muita informação sobre a história do largo”, observa. “Algumas semanas atrás uma professora estava com vários alunos sentada aqui na beira do rio. Ela falava coisas muito pertinentes, até o momento em que afirmou categoricamente que as casas da frente eram mais recentes por que haviam sido construídas quando o rio já estava poluído e só usavam a água para lavar roupa!” Das casas do largo, apenas as que dão para a Rua Cosme Velho são originais. As demais, que tornaram o lugar um ponto turístico, são reconstituições feitas na época de Getúlio Vargas a partir de materiais de demolição do Centro da cidade– o piso pé-de-moleque vem da Rua da Constituição e muitos elementos das casas vêm das demolições feitas para a abertura da Avenida Presidente Vargas, na década de 1940. Outra moradora que se diverte com os guias e suas histórias sobre o Boticário é a figurinista teatral Patrícia Bueno que mora no porão da casa número 4. No seu caso as histórias são ainda mais interessantes pois falam de sua família. Patrícia é filha da crítica teatral Bárbara Heliodora – que mora no andar de cima da mesma casa - e neta do historiador e goleiro do Fluminense Marcos Carneiro de Mendonça e da poetisa Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, que moraram na Casa dos Abacaxis, número 857 da Rua Cosme Velho, praticamente em frente ao Largo do Boticário. “Você não imagina quantas derrubá-la e construir no local um posto de gasolina. Hoje, a casa, cujo projeto é assinado por José Maria Jacinto Rebello - mesmo arquiteto do Palácio Itamaraty -, é patrimônio tombado. Em tempo, os abacaxis foram comprados por Ana Amélia, que colecionava antiguidades. Segundo Patrícia, as informações equivocadas sobre sua família não são os maiores absurdos históricos testemunhados pelas paredes e pedras do largo. “A República foi proclamada no Boticário e, de acordo com um taxista, até Tiradentes foi enforcado aqui!” Os turistas também se sentem um pouco perdidos. O estudante de arquitetura Fábio Ferraz veio de São Paulo com a namorada para conhecer um pouco mais sobre os prédios históricos do Rio. guém, nenhum guarda ou morador.” Mas nem só de anedotas vive esse pedacinho histórico da cidade. O Largo do Boticário enfrenta os mais variados problemas por ser tombado e por ser um ponto turístico. As casas têm que ser pintadas constantemente - e a tinta deve ser da cor original, especificada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. “Você não imagina a trabalheira que dá para encontrar essa tinta rosa, fora o preço. Todos os encargos são responsabilidade dos moradores, o IPHAN apenas nos isenta de pagar o IPTU”, desabafa Ivanise. Patrícia faz coro ao contar a novela que foi quando teve que fazer uma reforma no telhado, “Fomos informados de que as telhas eram especiais, feitas em coxa de escravos! Rodamos o Rio de Janeiro inteiro atrás de telhas parecidas.” Nada é simples em casas com mais de 150 anos. Os moradores pagam um alto preço para preservar o clima original das residências e se adequar às regras de tombamento. As fiações são todas externas, pois as paredes feitas com óleo de baleia não podem ser furadas. Ar-condicionado, então, é uma verdadeira ginástica para instalar. Ninguém imagina os malabarismos que a gente faz para o aparelho não alterar a fachada. – brinca outra moradora, que não quis se identificar. histórias eu já ouvi sobre os meus avós! A última era sobre a linda história de amor que eles viveram, e de como os abacaxis simbolizavam a fertilidade desse amor que deu origem a grande crítica Bárbara Heliodora”, conta Patrícia bem-humorada. A Casa dos Abacaxis foi erguida em 1846 e, desde que foi posta à venda, já houve propostas até mesmo para Ele conta que ficou com gostinho de quero mais quando visitou o Boticário: “O lugar é lindo e foi bom descobrir que ainda é habitado, mais sentimos falta de um centro de informações, um lugar para sentar, tomar uma água, um café.” Fábio reclama também da falta de segurança: “Passamos um certo apuro no trajeto, pois as calçadas são estreitas e não se vê nenhum outro turista. E quando chegamos ao largo não tinha nin- Os moradores do Largo do Boticário acham que a qualidade de vida compensa as dores de cabeça com o IPHAN. O que incomoda mesmo são as gravações de filmes e comerciais que chegam a bloquear a entrada do Largo por dias, impedindo os moradores de estacionarem os seus carros. “Aqui vem todo o tipo de gente fazer gravação. Tem equipes muito educadas que avisam com antecedência, passam uma circular entre os moradores, enfim procuram incomodar o mínimo. Mas de vez em quando o pessoal chega a pedir para usar as nossas instalações elétricas! E não hesita em tocar a campainha de madrugada para pedir para algum morador tirar o carro que está atrapalhando a filmagem”, desabafam em coro . 11 NO 5 - 2004/1 O bom negócio carioca Turismo ganha destaque como uma das principais oportunidades de investimento na cidade ALESSANDRA LEMOS Na décima edição do prêmio World Travel Awards, em novembro de 2003, a cidade do Rio de Janeiro foi eleita o melhor destino turístico da América do Sul. E o setor de turismo tem tido crescimento significativo, se tornando uma das principais oportunidades de investimento. Segundo a Empresa Brasileira de Turismo - Embratur, o Rio é a região mais visitada do país, recebendo anualmente mais de 2 milhões de turistas estrangeiros, o que significa participação próxima de 33% do total nacional. Somente no período de dezembro/2003 a março/2004 a cidade recebeu 2 milhões e 700 mil turistas, que deixaram uma receita de US$ 950 milhões. Como em todo local turístico, o sucesso do setor depende da imagem que é construída nacional e internacionalmente desse lugar. A cidade tem sido classificada como violenta e palco de barbaridades, mas, segundo a assessora de comunicação da Riotur, Gracie Croce, isso não afetou o turismo na região. – A Associação de Hotéis do Rio não registrou nenhum cancelamento em função dos conflitos na Rocinha. Em relação aos turistas estrangeiros, nossa imagem é melhor que a de muitos países vitimados pelo terrorismo e guerras. O medo de americanos e europeus é de terrorismo. O que não temos aqui e que nos coloca como um destino seguro. A violência que enfrentamos é semelhante à que acontece nas grandes cidades de todo o mundo – afirmou. O sucesso econômico não resulta apenas dos indiscutíveis atrativos naturais da cidade, mas principalmente da ampla infra-estrutura de serviços turísticos. O Rio, além de estar classificado como um dos maiores destinos do mundo também na recepção de eventos culturais, comerciais, técnicos e científicos, possui vasta rede hoteleira com mais de 22.000 quartos. Segundo pesquisa do Instituto Fecomércio, em convênio com a Associação Brasileira de Indústria e Hotéis do Estado do Rio de Janeiro (ABIH-RJ), a ocupação hoteleira da cidade ficou em 70,61% no mês de fevereiro, 2,46 pontos percentuais acima da registrada no mesmo período de 2003. O faturamento do setor cresceu 12,93% acima do registrado no ano anterior. O turismo é responsável pelo crescimento de outros setores da economia, incrementando o mercado de trabalho. Com a atividade se torna necessário absorver mão-de-obra em setores como hotelaria, comércio, bares e restaurantes, transportes, serviços de guia e outros. De acordo com o Sebrae, o turismo gera cerca de 500 mil empregos, entre os ligados direta e indiretamente à atividade. Apesar do grande sucesso e desenvolvimento do setor, o turismo ainda apresenta proble- Beleza natural do Rio ajuda a gerar negócios de US$ 950 milhões mas. Grande parte dos turistas reclama da falta de informação específica ao visitante, da falta de mãode-obra específica para a atividade e da disparidade entre preços e serviços oferecidos. Mas, segundo Gracie, a prefeitura tem reunido esforços das mais variadas secretarias para resolver essas questões. Em relação à informações, são oferecidos seis Postos de Atendimento ao Turista, além de uma linha direta de telefone. Já em relação a mão-deobra, em setembro de 2003 a prefeitura da cidade deu início ao projeto “Rio Hospitaleiro”, cujo objetivo é instruir os profissionais que direta e indiretamente têm contato com os turistas. O programa já ofereceu 500 vagas para cursos e treinamentos para a capacitação de taxistas, mas a expectativa é de oferecer cursos para garçons, vendedores de quiosques da orla carioca, comerciante, motoristas, entre outros profissionais vinculados ao atendimento turístico. O objetivo da prefeitura é fomentar ainda mais o turismo na região, e para isso a Rio Tur participa de eventos no Brasil e no exterior divulgando a cidade. Para 2004, 20 eventos internacionais já fazem parte do roteiro de divulgação e entre os nacionais, apenas no primeiro semestre, o Rio acolhe 11. Além da participação em congressos e feiras e das campanhas institucionais e publicitárias, está sendo incrementado o marketing de relacionamento. – Enquanto as outras ações visam atrair os turistas que não conhecem nosso destino, o marketing de relacionamento procura fidelizar os que já conhecem. Assim, todos os visitantes que se cadastram em nossos postos de atendimento recebem periodicamente uma newsletters com o que está programado para acontecer na cidade e informações gerais sobre o Rio – diz Gracie. O próximo evento que irá movimentar o turismo no Rio de Janeiro será o PanAmericano de 2007. A prefeitura já está se preparando, através do desenvolvimento de diversas obras, para melhorar a infra-estrutura da cidade. Na Barra da Tijuca, onde deverão acontecer cerca de 85% de todas as modalidades esportivas, diversos hotéis encontram-se em fase de construção. Ao total serão mais 8 novos hotéis, elevando a capacidade do bairro para quase três mil apartamentos. RIO DE JANEIRO RUMO AO PAN - 2007 Segundo informações da Riotur, estão previstas 350 intervenções na cidade do Rio de Janeiro em preparação para o Pan Americano de 2007. O projeto, desenvolvido pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para o Pan, está orçado em mais de US$ 180 milhões. Entre as principais obras previstas destacam-se: · Construção da Vila Olímpica na Barra da Tijuca · Construção de um Estádio Olímpico no Engenho de Dentro com capacidade para 45 mil pessoas · Desenvolvimento do Veneza Carioca, que vai promover a intercomunicação hidroviária de vários pontos da Barra, Vargem Grande, Vargem Pequena e Recreio · Desenvolvimento de um projeto de ligação hidroviária entre o Centro (Praça Quinze) e a Barra (Quebra-Mar) · Construção de uma avenida ligando a Zona Portuária ao Centro do Rio e uma nova linha, Transpan, que ligará o Terminal Alvorada, na Barra, aos aeroportos Santos Dumont e Internacional do Galeão. 12 NO 5 - 2004/1 Botequim ‘carioca’ vira negócio de paulista Donos de bar de São Paulo descobrem novo e lucrativo filão em cenário, petisco e chope inspirados na tradição do Rio Divulgação Moema de Barros O Rio seduz, São Paulo suborna. Assim terminam muitas discussões em que o tema é a diferença entre as duas cidades. Bairrismos à parte, o fato é que São Paulo está utilizando seu dinheiro para deixar a cidade mais atraente – importando um pouco do charme carioca. Não se trata de construções de estátuas que imitem o Cristo Redentor, morros artificiais com teleféricos ou piscinas com ondas e bordas copiando o calçadão de Copacabana. O Rio que invade São Paulo é o do botequim carioca. Para citar alguns, Posto 6, Espírito Santo, São Cristóvão, Mercearia São Pedro e o grande precursor dessa história: o Pirajá. Aberto em 1998, a esquina carioca em Sampa, como é conhecido na cidade, pertence ao grupo Companhia Tradicional de Comércio, sociedade formada por cinco jovens executivos que, cansados da trabalhar em multinacionais, resolveram unir forças em prol da realização profissional. Ironicamente, a história do grupo se confunde com os estereótipos que envolvem as duas cidades: labuta x ócio, shopping x praia, formalismo x descontração. Mais que isso, eles associaram as imagens que se tem das duas metrópoles brasileiras e criaram um grupo que administra bares informais com o profissionalismo das grandes corporações. Embora o primeiro bar da CTC, fundado em 1996, o Original, não seja um bar com temática carioca, ele já trazia os embriões do que estava por vir. Aberto e com mesas na calçada, coisa não muito comum em Sampa, o Original foi logo comparado aos bares cariocas justamente por seus visitantes do Rio. Disso nasceu o desejo de seus donos de conhecer a cultura de bar carioca e, posteriormente, a inauguração do Pirajá. Nas palavras de um dos idealizados e sócios da companhia, Ricardo Garrido, “a intenção era fazer uma declaração de amor ao comportamento carioca”. Mas o que é o comportamento carioca na visão de um paulista? No que se refere a bares e botequins, além da preferência pelo chope há um despojamento e informalidade desconhecidos do paulistas no convívio social. Ainda, nas palavras do próprio Garrido, “simplicidade e mistura democrática são características do botequim carioca”. O negócio se mostrou lucrativo, tanto que agora o grupo possui mais um bar, o Astor, e uma cadeia de pizzarias. Além disso, outros seguiram seu exemplo e abriram bares que se inspiram no Rio. “Nós quebramos a barreira de dizer que São Paulo não gosta do Rio”, finaliza Garrido. Dono do Posto 6, aberto em 2002, Wanderley Romano afirma que não conhecia os botequins cariocas antes de criar o seu próprio bar. Seu objetivo na realidade era abrir uma choperia e a idéia de usar o Rio como tema veio da força que o chope tem na capital fluminense. Mas, para ele, o chope em São Paulo é melhor pelo tratamento especial recebido. De fato, o chope paulista possui colarinho mais cremoso do que aquele servido na maioria dos bares cariocas. Isso se deve, em última instância, aos donos do Pirajá. Sabendo que o grande diferencial de clássicos Diferentes exemplos de botequins: acima, o carioca-paulista Pirajá; ao lado, acima, um clássico pé-sujo no Leblon e embaixo uma das filiais do Botequim Informal como o Bar Luiz e o Jobi é o tirador do chope, e que não seria viável contratá-los para trabalhar em São Paulo, os rapazes da CTC encomendaram da Brahma um novo sistema de dupla serpentina: uma para tirar o chope e outra para a espuma do colarinho. Desse modo, a medida estará sempre certa. Essa industrialização da cultura de botequim se vê por todos os lados nas réplicas paulistas. Onde originalmente seria um balcão de mármore, uma fórmica branca; nas paredes, fotos acomodadas seguindo um lógica estética ao invés de recortes de jornal dispostos à época de sua publicação; garçons vestidos com uniformes que imitam tempos passados no lugar de uma roupa clássica e simples e, para completar a figura, banheiros limpos e garçons treinados que nada lembram um autêntico carioca. Toda essa informalidade metodicamente adquirida é sentida pelos olhares atentos. No local, ninguém de bermuda ou havaianas. Autor do Rio Botequim, guia da prefeitura do Rio de Janeiro que cataloga e elege os melhores bares e botequnins da cidade, Paulo Thiago de Mello define a situação: “a maior diferença entre as duas cidades é o uso social do local”. Enquanto o carioca tem no botequim uma extensão de casa, no boteco paulista privilegia-se o consumo: é fundamental comida de primeira e atendimento cordial. Em vez de local para encontros informais, em São Paulo é mais um programa com hora marcada. Os novos freqüentadores de botequins do Rio possivelmente se identificam com essa postura paulista. Já os mais antigos, refutam-na. Originalmente o botequim funcionava como um espaço público com dono, local para encontros espontâneos e palco para conversas sobre a vizinhança. Não sem motivos, Thiago lembra o que diz o povo: “o melhor botequim é o da esquina [porque é o mais perto]”. Nesse ambiente, privilegia-se a relação de amizade entre o dono do bar e a sua freguesia, pela qual até beber fiado é possível. “Atualmente houve uma valorização do botequim”, continua Paulo Thiago, “e o Guia Rio Botequim ajudou isso”. Ele conta que em 1997, quando a pesquisa para o guia começou, muitos dos entrevistados se recusavam a rotular seu estabalecimento desse modo. Naquela época, era preferível qualificar o local como bar-restaurante; hoje, o termo botequim é Fotos Moema de Barros motivo de orgulho. Isso porque sua representação no imaginário popular mudou. Antes repleta de ambivalência (por um lado, lugar do submundo e da malandragem; por outro, palco da boemia e de encontro entre artistas), agora é visto como local para beber com tradição. É possível que seja justamente a busca por essa tradição que atraia os novos empresários paulistanos. Bar é um tipo de negócio muito vulnerável aos modismos, e são justamente aqueles considerados tradicionais os que conseguem sobreviver às oscilações comportamentais. Ao optar por abrir um “botequim carioca”, o empresário espera agregar à imagem do seu novo negócio o tradicionalismo dos pés-sujos do Rio de Janeiro. Para o Rio, as conseqüências são sensíveis. Além da exploração de uma imagem idealizada da cidade e de seus habitantes, esses bares paulistas com temática carioca estão servindo de inspiração para a abertura de botequins cariocas na sua própria cidade de origem. Para muitos, se trata de uma “paulistinização” da cidade e de seus hábitos. Ricardo Garrido diz que isso não existe: “o que acontece é que o público carioca está ficando mais exigente e isso impulsiona uma melhor infraestrutura dos bares”. Exemplos concretos podem ser citados para os que defendem a teoria: reforma de bares clássicos como Garota do Leblon, Jobi e Bracarense; utilização do sistema de dupla serpentina pelo Jobi e abertura de bares como o Devassa e o Botequim Informal. O último, inclusive, pode ser utilizado para sintetizar a questão dos botequins cariocas e a sua representação em São Paulo. Aberto em 2000 por paulistas donos do Espírito Santo, o bar atrai grande número de jovens em busca de um chope com temperatura e colarinho perfeitos. Apesar do nome, o bar não entrou no Guia Rio Botequim. A busca por uma informalidade, que mais parece paulista a carioca, saiu pela culatra. 13 NO 5 - 2004/1 O bonde dos baianos e gaúchos, menos dos cariocas Pesquisa revela que a cada dez passageiros do Bondinho seis são turistas Carlos Eduardo Cayres No dia 21 de maio de 2004 foi feita uma pesquisa para averiguar a quantidade de cariocas que visitam o Pão de Açúcar. Essa pesquisa teve como objetivo saber se os nativos do Rio de Janeiro estão indo visitar seus pontos turísticos ou se eles continuam sendo locais de diversão apenas para turistas. Todo esse trabalho se desenvolveu na bilheteria do Bondinho e demorou cerca de duas horas. Logo após o término, as respostas foram contabilizadas e o resultado comprovou que a cada dez passageiros do Bondinho, seis são turistas. O que estará espantando os cariocas dos pontos turísticos? A falta de tempo e de dinheiro ou o comodismo? Em entrevista nas ruas, conversamos com algumas pessoas e procuramos saber delas qual desses fatores faz os cariocas agirem desta maneira. Segundo Viviane Abrahão Salim, estudante de Pedagogia, a ausência pode ser explicada pelo comodismo de seus conterrâneos e pelo dinheiro que se gasta visitando esses locais: – Tenho a maior vontade de visitar todos os lugares bonitos do Rio. Quase toda semana marco com o meu namorado uma visita a um deles. Mas quando chega na hora, fico com preguiça ou estou sem dinheiro e acabo transferindo o passeio para outro dia. Já a professora de espanhol Marcella Sanches dos Reis, acredita que a falta de tempo e de dinheiro ajuda muito a espantar os cariocas. – Acho que o carioca não tem tempo nem dinheiro. Isso eu tiro por mim que sou louca para conhecer todas as maravilhas da cidade, mas, infelizmente, trabalho muito e, como toda professora, não tenho dinheiro. Após ouvir pessoas, a idéia que se tem é de que o carioca está trabalhando muito, ganhando pouco e ficando cansado. Obvio que isso não vale para todos, pois, se valesse, os pontos turísticos já teriam sido entregues aos turistas. Um bom exemplo para comprovar que nem todo carioca está apresentando esses sintomas é o estudante de Psicologia e operador de telemarketing Rodrigo Freitas Chagas. Rodrigo ganha cerca de quatro salários mínimos por mês, paga 450 reais de faculdade e, mesmo assim, sempre que pode pega sua namorada e vai passear no Bondinho do Pão de Açúcar. Já perdeu a conta das vezes que foi, mas garante que foram mais de 20. – A vista de lá em cima é maravilhosa. Faz você ficar com “cara de paisagem”, só contemplando, não pensando em nada. É muito bom. Estou quase todo final de semana lá, principalmente agora que está “rolando” um desconto para carioca. O desconto a que Rodrigo se refere é o de 50% no valor do ingresso do Bondinho. Ele é oferecido pela Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar através da campanha Carioca Maravilha a cariocas e moradores do Rio. O sucesso desse projeto é absoluto. Mais da metade dos nativos entrevistados na pesquisa afirmaram estarem ali só por causa dele. PROJETOS QUE OFERECEM DESCONTO A CARIOCAS À direita, Carine Renha, supervisora do projeto Graças ao projeto Carioquinha Cidade, cariocas e moradores do Rio passarão a ter desconto de 50% no ingresso para alguns pontos turísticos da cidade. Essa promoção entrou em vigor no dia 29 de maio de 2004, logo após o término da campanha Carioca Maravilha, que oferecia o mesmo desconto. A supervisora do projeto, Carine Renha, afirmou que o surgimento da campanha está intimamente ligado ao sucesso das anteriores e que seu objetivo é atrair, cada vez mais, os cariocas a esses locais. – Parte dos cariocas não conhece os pontos turísticos da cidade. Alguns estão vindo pela primeira vez, graças à campanha. Acredito que o preço alto do ingresso contribuia para isso. Mas a campanha está ai e vai reverter essa situação. O Bondinho, os Bondes de Santa Teresa, o Maracanã, a Fundação Casa-FrançaBrasil, a Fundação Riozoo, o Planetário da Gávea e o Jardim Botânico são alguns lugares onde a promoção está sendo aceita. Os interessados devem comparecer a esses locais munidos de identidade ou do comprovante de residência. 14 NO 5 - 2004/1 O Turismo da pobreza Nem praia nem Carnaval. O roteiro agora é nas favelas Luciana Ramos Q uantas vezes você já foi surpreendido por um jipe cheio de turistas circulando pela cidade do Rio de Janeiro? Com máquinas fotográficas em punho e roupas que parecem saídas de um documentário sobre safári do Discovery Channel, essas pessoas vem ao Brasil em busca de algo muito mais impressionante do que belas paisagens e Carnaval. Esperam tentar entender e ver a pobreza bem de perto. Há mais de dez anos Marcelo Armstrong teve a idéia de organizar turismo em favelas. Para isso precisou fazer levantamento de opiniões nas comunidades, que sempre o receberam bem, ganhando o aval de pessoas que têm voz dentro da comunidade, entre eles líderes comunitários. E quando se fala em aval dentro de uma favela, entende-se, segundo ele, que a permissão foi dada também pelos traficantes. Mas que tipo de turistas vai em busca da pobreza ao invés de conhecer lugares bonitos? A resposta para Marcelo é simples: “Depende de turista para turista. Existe um público específico de profissionais, como arquitetos interessados nas construções, professores e sociólogos, mas de maneira geral são pessoas muito viajadas, que conhecem o mundo inteiro e querem sair do lugar comum, conhecer a fundo a sociedade em que estão visitando. Não só ver mas também entender o Rio de Janeiro”. Praticamente todos colaboram com os projetos sociais que conhecem durante a visita - e algumas doações são bem expressivas, podendo chegar a cinco mil dólares. Uma das coisas que mais chamam a atenção dos turistas ao visitarem a Rocinha é a vista que a favela oferece do Pão de Açúcar e do Corcovado juntos. Mas o que os deixam realmente impressionados é a forma como as pessoas vivem. Conseguem ver até sob um aspecto positivo, já que no exterior são constantemente bombardeados por uma imagem apenas negativa, um gueto miserável completamente dominado por traficantes. “Alguns comentam que pensavam que iriam encontrar uma nova África, pessoas extremamente infelizes e morrendo, mas encontram um povo pobre, sofrido, mas acima de tudo transmitindo alegria e vontade de viver”. Mas e o medo, onde fica? Pensando antes de tudo na segurança dos seus clientes, Marcelo toma cuidado para não expô-los a riscos desnecessários. Por isso, mudou seu roteiro e trocou a visita à Rocinha, atualmente em clima de guerra por conta de disputas no tráfico, por um passeio na Vila Canoas, uma favela menor, também em São Conrado. “ Eu também não aponto traficantes, eles não podem ser colocados como foco, como se fossem o objetivo como o melhor programa social dos países em desenvolvimento, apresentando o menor índice de criminalidade infantil e o maior índice de escolaridade entre as comunidades de baixa renda. A idéia original era tirar as crianças da rua, mas hoje o projeto reúne cerca de dez mil moradores da Mangueira entre crianças, jovens, adultos e idosos. Na Vila Olímpica e nas outras sedes recebem orientação educacional, esportiva e profissionalizante gratuita, além de reforço alimentar. Muitas crianças Favela da Rocinha: o novo ponto turístico da Cidade Maravilhosa com potencial esportivo e na dança são vistos por ‘olheiros’, uma espécie de turístico. Falo do tráfico, explico, pois é pertinente à caça-talentos, do Brasil e principalmente do exterior. realidade local. Não há como fugir da influência que Essa iniciativa, que conseguiu zerar a ele exerce”. mortalidade infantil e estabelecer uma medicina Cada vez mais popular, o turismo em favelas preventiva de excelente atuação, atraiu personalidades já consta até mesmo em alguns dos mais tradicionais internacionais ilustres como os ex -presidentes dos guias de turismo. “É seguro, diferente e muito Estados Unidos, Bill Clinton, e da África do Sul, interessante“, recomenda o Handbooks, publicado Nelson Mandela, além de ganhar um grande apoio e na Inglaterra. “Realmente informativo, não é um divulgação da ONU. voyeurismo da pobreza, mas uma visita educada ao Segundo a coordenadora da Vila Olímpica e coração de um universo diferente, podemos ter um responsável por receber os turistas, Ana Lúcia Bertholini, melhor entendimento das contradições do Rio”, diz muitos destes estrangeiros são engajados em trabalhos o Routard, conceituado guia francês. sociais, alguns são jornalistas, educadores e médicos, Ainda que com interesses sociais, muitos se interessados nos projetos. Em sua maioria são rendem ao samba e gostam de conhecer as raízes americanos, franceses, japoneses, alemães e belgas. Mas populares do Carnaval – que para muitos não não são meros espectadores, gostam de interagir, começa e acaba no Sambódromo, estendendo-se a principalmente os mais jovens, fazendo uma espécie visitas às quadras das escolas de samba, muitas delas de intercâmbio cultural. em favelas. Tentam sambar, brincam, deslumbramEles jogam futebol, aprendem português, ensinam se com a beleza e irreverência das mulatas e, mais beisebol e inglês. Poucos têm o interesse de conhecer o do que isso, parecem gostar do contato e da calorosa local de moradia da comunidade, e os que têm e não receptividade brasileira. vão é pelo medo da violência, tão divulgada pela Por ser uma das mais tradicionais escolas de imprensa. Aqueles que vão ficam impressionados como samba, a Estação Primeira de Mangueira é parada as casas são construídas, já que acreditam que são todas obrigatória para muitos destes turistas. Muitos de- padronizadas. les, no entanto, nem passam perto do samba, prefeA experiência é única. Conhecimentos são rindo conhecer o bem sucedido projeto social da adquiridos e pré-conceitos quebrados. Uma realidade comunidade. O “Mangueira não é só samba” foi completamente diferente, uma vida desconhecida, mas criado por Francisco Carvalho, o Chiquinho da que eles resolveram conhecer. Feia, mas que às vezes Mangueira, há dezessete anos e é referência em todo consegue ser bonita. Uma vida que precisa tanto ser o mundo. Já foi inclusive premiado pela Unesco ajudada, é a que mais ajuda. 15 NO 5 - 2004/1 Retrato da (in)Segurança Pública Os policiais do Estado do Rio estão despreparados para combater o crime Lucas Bonates O Rio sofre com a crescente sensação de insegurança. As polícias Civil e Militar mostram-se despreparadas para prevenir e solucionar crimes. São desprovidas de equipamentos (armas, viaturas, computadores), treinamento e pessoal. O policiamento ostensivo na Zona Oeste e na Zona Norte está ainda mais deficiente, pois houve, em abril, o deslocamento de policiais militares para as favelas da Rocinha e do Vidigal, na Zona Sul da cidade, na tentativa de controlar a violência na região. Para comprovar o empenho da Polícia no combate à violência, o Instituto de Segurança Pública (ISP) divulgou recentemente os índices de criminalidade no Rio que, em maio, registraram queda em alguns crimes hediondos como extorsão mediante seqüestro e latrocínio (roubo seguido de morte). Não houve nenhum caso de seqüestro registrado, e apenas 18 casos de latrocínio, dois a menos do que em maio de 2003. São estatísticas que se baseiam nos boletins de ocorrência das delegacias. Mas casos como tentativas de roubo com arma de fogo, assalto a pedestres e pequenos furtos, por exemplo, não são registrados, na maioria dos casos. Prova de que a população não acredita na Polícia. No dia 13 de maio, uma quintafeira, Márcio Galindo, cabo do Corpo de Bombeiros, foi vítima de tentativa de assalto. Ele pretende ser pastor metodista e, por isso, faz o curso de Teologia do Instituto Bennett, no Flamengo, durante o turno da noite. Por volta das 23h, voltava para casa pela pista direita da Avenida Brasil, quando dois homens em um Gol escuro apontaram um revólver calibre 38 em sua direção. Estavam próximos à Vila Militar, em Deodoro, Zona Oeste do Rio. Os bandidos queriam sua moto, uma Honda Twister, cor preta, chamada pelo dono de “minha preta”. Num ato de reflexo, Márcio freou e tentou mudar de pista. “O golzinho brecou na minha frente, eu bati no carro e caí. Levantei rapidinho e corri desesperado para o outro lado. Foi quando ouvi o carro arrancando. Olhei e vi ‘minha preta’ no chão, toda torta”, conta. Segundo ele, não prestou queixa à polícia pois de nada adiantaria. Desde então, Márcio volta pela Barra da Tijuca, onde vê muitas viaturas da Polícia Militar e sente maior segurança. Para evitar novas tentativas de assalto, ele tirou alguns acessórios que embelezam sua moto. “Procurei uma viatura da polícia, mas não achei nenhuma. Se não existe socorro imediato, duvido que eles (a polícia) investigariam” Segundo o professor de Sociologia da UFRJ Michel Misse, a maior parte dos casos não é registrada. “Na Inglaterra, apenas 30% das vítimas dão queixa. Não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Pesquisas de vitimização mostram que as pessoas acham que o crime não será solucionado, portanto é inútil prestar queixa. Além disso, muitos não acreditam na eficiência policial.” Michel Misse é coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) e mantém uma base de dados e estatísticas sobre a violência no Estado do Rio. Segundo o sociólogo, o tráfico de drogas é o inimigo número um da polícia. Primeiro, porque o comércio de entorpecentes é uma atividade que movimenta milhões de dólares e, por isso, tem condições de comprar armas e subornar autoridades, o que permite estender sua rede de influências. Além disso, o acesso da polícia aos “centros nervosos” do tráfico é prejudicado por sua localização. “Os traficantes ficam dentro da favela, criam uma espécie de fortaleza. Se a polícia entra, eles atiram”, disse o professor. Segundo ele, os confrontos mais freqüentes são entre facções do tráfico, e não entre policiais e bandidos. Para prender bandidos nas favelas é preciso planejamento e objetividade na ação. “Todo morador de favela diz que o problema começa quando a polícia chega. A polícia já chega atirando. Não sabe que casa invadir. Não tem investigação”, disse o professor. Mas a polícia não é só incompetência. Consegue acertar em alguns casos e prevenir outros tantos. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), os índices de ocorrências de crimes como latrocínio e roubos e furtos de veículos diminuíram em maio deste ano. Outras modalidades apresentam melhorias: foram 293 roubos em coletivos, uma redução de 47,5% em relação a maio de 2003 ou de 17,4% se comparado a abril deste ano, 562 roubos a estabelecimentos comerciais e 147 a residências. Das dez modalidades pesquisadas, apenas três tipos de crime registraram aumento no número de casos. Foram 605 homicídios dolosos, uma taxa 17,6% superior ao último mês de abril, cinco assaltos a banco — em abril, foram três — e 1.692 registros de roubo a transeuntes, uma taxa 6,7% superior a maio de 2003. O governo do Estado do Rio precisa investir nas corporações policiais. Falta infra-estrutura, equipamentos e profissionais bem treinados e bem pagos. “É preciso melhorar a polícia, investir na formação desses profissionais”, sugere o sociólogo da UFRJ. O Rio é uma metrópole violenta como outra qualquer, mas aqui não oferecem drogas nas esquinas como em Lisboa ou Paris. Cinco sugestões para que você não se torne vítima da violência Não existe nenhuma fórmula capaz de acabar com o problema da violência. Mas a vida na Região Metropolitana permite ao cidadão desenvolver estratégias de sobrevivência. Aqui estão as cinco dicas para que você leitor, carioca ou não, não seja mais uma vítima da violência: 1) Se precisar atender o celular em lugares como a Central do Brasil, Uruguaiana ou Cinelândia, segure o aparelho com firmeza, nunca com a ponta dos dedos. 2) Aviso aos turistas: não é preciso ir à praia com cordão de ouro, relógio e máquina digital pendurada no pescoço. 3) Caso esteja passando por uma rua desconhecida, repleta de gente mal-encarada, seja como um deles, aja com a mesma naturalidade. Não demonstre medo. 4) Quando estiver no ponto de ônibus, não fique com o dinheiro ou vale-transporte na mão. Os pivetes são ágeis. 5) Se você estiver na Avenida Brasil, cuidado com os retornos. Você pode acabar entrando numa favela perigosa. Entrar é mole, agora sair... Sociólogo diz que a mídia produz a circulação da violência A imagem de Cidade Maravilhosa tem sido substituída pela de “Cidade do Crime” pela mídia carioca. Episódios como a disputa dos traficantes “Dudu” e “Lulu” pelo domínio do tráfico nos morros da Rocinha e Vidigal, rebeliões em presídios de segurança máxima, a constatação da incapacidade do governo estadual de se responsabilizar pela custódia do traficante Fernandinho Beira-Mar e a fuga de 100 presos da casa de detenção, no bairro de Benfica, no início de junho, aumentam a sensação de insegurança da população fluminense. Segundo Michel Misse, professor de sociologia da UFRJ, “o Rio é tão violento quanto qualquer outra metrópole. São cometidos muitos crimes violentos: arrombamentos, assaltos a mão armada, furto de veículos, etc. Mas o seqüestro, por exemplo, praticamente não existe mais. Já em São Paulo, os índices chegam a 100 seqüestros por ano. O problema é que a imprensa carioca é muito sensacionalista, produz a circulação da insegurança”. No primeiro trimestre de 2004, São Paulo já registrou 22 casos de extorsão mediante seqüestro. O Rio de Janeiro registrou aproximadamente 600 homicídios dolosos (praticados intencionalmente) no mês de janeiro, enquanto São Paulo tem uma média de 760 casos desse tipo a cada mês. São números que desagradam e preocupam o cidadão carioca. As autoridades não podem mais brincar de fazer política partidária com a questão da segurança pública. É preciso reformular a polícia, aparelhá-la e treiná-la para agir com presteza e agilidade. Por sua vez, os veículos de comunicação devem ser mais responsáveis no tratamento dessa questão. O carioca está cansado de sentir medo. 16 NO 5 - 2004/1 O.RIO.FICA.BEM.NA.FITA! Contrariando a crença geral, produtoras cariocas comprovam com bons números a supremacia da cidade na produção cinematográfica Divulgação IMMANUELA D’OLIVEIRA Apesar da crença difundida pelo mercado de produção de que a cidade do Rio de Janeiro vinha perdendo nos últimos anos seu título de pólo de cinema nacional, os números mostram o contrário, restringindo a baixa apenas aos filmes publicitários. Segundo dados da Ancine (Agência Nacional de Cinema), dos 35 filmes realizados no Brasil em 2003, nada menos do que 27 foram feitos por produtoras cariocas, atraindo mais de 70% do público total alcançado pelas produções nacionais. Um ranking divulgado pelo órgão no ano passado mostra que das 10 produtoras brasileiras que atingiram os maiores números de espectadores, 7 são cariocas. Isto confirma o fato de que o Rio de Janeiro adotou a produção cinematográfica para si e se firma, a cada ano, como o grande pólo de produção audiovisual do Brasil. Encabeçando o ranking da Ancine está a Diler & Associados, do produtor Diler Trindade, que produziu cinco filmes em 2003, alcançando um público de 10 milhões de pessoas. Dos filmes que Trindade já produziu (18 longas metragens que alcançaram o recorde de público de 21 milhões de espectadores, entre eles os da apresentadora infantil Xuxa e os últimos sucessos de bilheteria “Dom” e “Um Show de Verão”), todos foram feitos no Rio de Janeiro. Ele afirma que a cidade tem potencial para continuar crescendo na área do cinema e que há uma constante tentativa de desenvolvimento desta indústria na cidade. Segundo ele, o que falta para a produção nacional crescer é vencer o preconceito dos brasileiros em relação ao cinema nacional, além de uma mudança no comportamento das produtoras, que arrecadam dinheiro público sem fazer uma previsão concreta do orçamento que irão OS NÚMEROS DO CINEMA CARIOCA EM 2003 - Dos 35 filmes feitos em 2003 no país, 27 foram no Rio - Das 10 produtoras que mais alcançaram público espectador, 7 são cariocas - As produtoras cariocas foram responsáveis por 70% do público alcançado pelos filmes nacionais O produtor Diler Trindade e o cantor Jorge Ben Jor durante a gravação do filme “Zico”, no Rio de Janeiro utilizar. Assim, gasta-se muito e a produção não se paga. A indústria precisa tornar-se mais atrativa para os investidores, e, para isso, precisa mostrar-se lucrativa, com orçamentos mais conscientes. O ideal seria se as produções aumentassem dos 40 filmes feitos por ano, atualmente, para 200 filmes anuais. Aumentando a produção, aumentará o número de salas de exibição (reduzido pela metade nos últimos 15 anos) e o cinema se tornará mais rentável. “Só assim o cinema nacional deixará de depender do dinheiro público e passará a caminhar com suas próprias pernas”, afirma Trindade. A Diler & Associados está localizada no Pólo Rio de Cine, Vídeo e Comunicação, conglomerado industrial instalado no bairro de Jacarepaguá há aproximadamente 17 anos, com auxílio da Prefeitura. Em uma área de 25.000 m² este pólo abriga hoje mais de 60 empresas associadas, dos ramos cinematográfico, audiovisual e de comunicação, com 6 estúdios coletivos utilizados pelos associados em suas produções. Próximo ao Pólo Rio está o PROJAC, maior centro de produção de TV da América Latina, com participação no mercado internacional. Em uma área de 1.300.000 m², concentram-se grandes estúdios, módulos de produção e galpões de acervo. E como no Brasil é a televisão que influencia o cinema, este depende dos grandes nomes da TV para consiguir atrair público para os filmes que produz. Por conta desta g rande aglomeração de talentos, o Rio de Janeiro é considerado a Hollywood brasileira. Apenas nesta região em torno do Pólo Rio e do PROJAC (que engloba os bairros do Recreio, Barra, Jacarepaguá, Vargem Grande e Vargem Pequena) estima-se que, atualmente, cerca de 30 mil pessoas trabalhem direta e indiretamente com a indústria do audiovisual. Não é à toa que, em termos de prestígio mundial, esta é a segunda maior indústria do estado, perdendo somente para a petrolífera. Assim como as demais for mas de expressão cultural e artística, o cinema entrou no país pelo Rio de Janeiro, porque a cidade era a capital federal e, por isso, grande centro cultural do país, situação que tende a se confirmar com a ajuda da produção artísitica. Ainda hoje praticamente todas as etapas da produção cinematográfica se concentram no Rio. Apenas a captação de investimentos necessita ser feita em São Paulo, onde se concentram os maiores patrocinadores. Assim como a mixagem sonora e a finalização de efeitos especiais, técnicas desenvolvidas por lá pelas grandes agências de publicidade. Enquanto isso, o cinema nacional começa a se tornar mais significativo em outras cidades. Há pólos emergentes em Fortaleza, Salvador, Porto Alegre e Curitiba. Porém, com o potencial carioca de produzir e desenvolver a sétima arte, dificilmente o Rio perderá seu posto de pólo central da indústria audiovisual nacional. Até porque, “o Rio de Janeiro é o centro cultural do país, e, como na música de Caetano Veloso, ‘vivemos na melhor cidade da América do Sul...’”, afirma Diler Trindade, único brasileiro indicado pela revista Variety entre os 10 produtores de cinema mais promissores no mundo e um carioca eternamente apaixonado pela sua cidade natal.