Conhecimento Tácito e Pedagogia Instrumental Jorge
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Conhecimento Tácito e Pedagogia Instrumental Jorge
Conhecimento Tácito e Pedagogia Instrumental Jorge Salgado Correia (Universidade de Aveiro) Objectivo As experiências de Polanyi (1966) sugerem inequivocamente que o nosso corpo dispõe de um conhecimento tácito que, por definição, nos é inconsciente em larga medida, e sobre o qual a própria consciência está alicerçada. Com este estudo pretende-se perceber que consequências esta evidência tem (ou deveria ter) para o ensino instrumental, especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento da capacidade de expressar emoções. Metodologia Numa primeira parte, faz-se um levantamento dos estudos e das contribuições mais relevantes sobre o ensino instrumental, procurando perceber como se ensina a expressão das emoções nas aulas de instrumento. Numa segunda parte, faz-se uma análise das estratégias deste ensino, confrontando o discurso e as metodologias de ensino tradicionais e seleccionando as estratégias de ensino/aprendizagem em que o conhecimento tácito e o que ele implica são considerados. Fundamentação No ensino instrumental, a observação na sala de aula mostrou que as aulas são dominadas pelo discurso (verbal e gestual) do professor, o que significa que a recorrência a estratégias de imitação não são tão frequentes como se poderia pensar, sendo o aluno quem toca significativamente durante mais tempo na aula (cf. Karlsson & Juslin, 2005). Também tocar de ouvido ou improvisar acontecem muito raramente na sala de aula (cf. Rostvall & West, 2001; Young et al., 2003; Tait, 1992; Sang, 1987). Nestes estudos também se verificou que no ensino instrumental muito raramente as aulas são guiadas por objectivos explícitos, por imposição de tarefas específicas, ou por padrões sistematizados de ensino. De um modo geral, o professor pede ao aluno para tocar a obra que preparou para depois tecer comentários mais ou menos ‘ad-hoc’ sobre os diferentes aspectos da performance (cf. Karlsson & Juslin 2005), o que levou Susan Hallam a concluir que os professores de instrumento raramente preparam as aulas ou estruturam o seu ensino, quando muito planeiam o repertório para cada aluno em particular (cf. Hallam, 1998). O estudo de Karlsson & Juslin (2005) é muito relevante para o presente artigo porque nele se tenta perceber como é abordada a expressão das emoções na sala de aula e se verifica que a expressão é tratada quase totalmente de um modo implícito. Embora estes investigadores tenham também observado que as estratégias dos professores variam consideravelmente de uns para os outros e que, passo a citar, “alguns professores usam técnicas adicionais para refinar a expressão, tais como ‘pensa como um actor’ ou ‘traduz o carácter da música em cores”, globalmente, Karlsson & Juslin sugerem que os resultados do seu estudo “apoiam inequivocamente a reivindicação de Elliott (2005) de que os professores raramente discutem a expressão de emoções nas aulas, e que, em vez disso, tendem a recorrer a descrições coloridas mas vagas dessas expressões, o que pode levar a mal-entendidos.” Como veremos mais adiante, estas descrições só são vagas dentro de uma lógica de discurso racional ou proposicional, mas não dentro de uma lógica emocional. Nesta lógica elas não são vagas, são imediatas, isto é, são produzidas intencionalmente para afectar de modo directo (cf. Davidson & Correia 2002). Karlsson & Juslin (2005) concluem o seu estudo destacando o facto, muito pertinente na minha opinião, de que os professores só muito raramente tentam conectar a núsica que está a ser tocada com as vidas pessoais (emocionais) dos estudantes. O presente artigo situa-se precisamente no centro destas questões. O ensino tradicional poderá com certeza ser melhorado mas não podemos afirmar que dentro desse contexto não se tenha ensinado a exprimir emoções de um modo eficaz - ou não teríamos o número avassalador de óptimos intérpretes que temos tido e que temos actualmente. Do meu ponto de vista, o que urge entender em primeiro lugar é o que é essa capacidade de transmitir emoções, ou seja, como se processa a comunicação musical; em segundo lugar, que estratégias são aplicadas para desenvolver esta capacidade neste modelo de ensino tradicional do Mestre-aprendiz; e, em terceiro lugar, tentar elaborar sobre essas estratégias de modo a poder eventualmente divulgá-las para que tenham um uso mais generalizado. Na compreensão do que é esta capacidade de transmitir emoções está a chave para compreender o que é a comunicação musical, a qual deve ser entendida não na procura de uma definição conceptual mas descrevendo-a como um processo contextualizado e temporal. Com base no trabalho de Johnson (1987) e na recente evidência produzida pela investigação neurológica, consideremos estas duas premissas: I) Existe um stock de conhecimento baseado na experiência física/corporal onde toda a produção de sentido tem a sua origem. II) A este stock de conhecimento corresponde um stock de afectos também baseado na experiência física/corporal. Elaborando a partir destas duas premissas, veremos que a comunicação musical pode ser sistematizada e sintetizada pelos seguintes cinco princípios: 1. Há um trabalho do inconsciente cognitivo que fundamenta toda a produção de sentido, sendo que a capacidade de produzir narrativas emocionais acompanha a cognição humana desde as suas primeiras manifestações. 2. A imaginação opera em todos os níveis de actividade cognitiva, seja ela consciente ou inconsciente (aproximadamente 95% da nossa actividade cognitiva é inconsciente), alicerçando e fundamentando, inclusivamente, as formas mais elaboradas de conceptualização e raciocínio. 3. A imaginação opera seguindo uma lógica emocional (- 'it is coherent if it feels right' ), sendo a construção das narrativas emocionais no âmbito da linguagem gestual a base original de onde emergiram todas as linguagens (verbais ou musicais). É a nossa experiência estruturada emocional e kinesteticamente que simultaneamente alimenta e condiciona o jogo livre da imaginação na construção do conhecimento e em todos os actos de comunicação. 4. Os sentidos da linguagem gestual são sentidos simbólicos enraizados na experiência física/corporal por definição, o que implica que eles têm de ser representados quando são produzidos pelos intérpretes e re-representados pelos ouvintes para serem compreendidos. 5. O ritual da comunicação musical parece ser inerentemente kinestético e intermodal, e portanto intrinsecamente gestual: a) Os ouvintes de música parecem reagir mimeticamente às acções ritualizadas dos performers, representando ficcionalmente a partir delas as suas narrativas emocionais e pessoais num processo de introspecção contínua e criativa. b) Os performers parecem representar presencialmente as suas coactivadas narrativas emocionais, reagindo no momento à atmosfera ritualizada das performances musicais, num processo de improvisação contínua e criativa. Estes princípios definem uma base teórica firme a partir da qual me parece possível compreender os misteriosos processos da comunicação musical. Os pontos número 4 e 5 são os que mais nos importam aqui. A capacidade de ser expressivo será então directamente proporcional a esta capacidade de construir narrativas emocionais enraizadas na experiência física/corporal, que é evidentemente marcada por um cunho pessoal irredutível e que mobiliza inevitavelmente um conhecimento tácito (cf. Correia 2007). Todas as estratégias do ensino tradicional identificadas pelos investigadores metáforas, imitação, instruções verbais, interpretar a música teatralmente como um drama ou como uma paleta de cores, etc. - parecem poder fazer apelo ao conhecimento tácito. As projecções metafóricas, por exemplo, propiciam o elo de ligação entre a experiência física e a produção de sentido (assim, quando o professor diz a um aluno para tocar uma determinada frase que inclui uma escala ascendente como se estivesse a subir uma escada com grande esforço, por estar muito carregado ou cansado, o aluno vai exprimir essas qualidades no seu fraseado reportando-se às experiências retidas na sua memória físico/corporal). Na imitação, o aluno, ao imitar o seu professor, percebe mais do que consegue representar mentalmente já que grande parte da informação é assimilada e reproduzida por mimesis de um modo inconsciente, tacitamente portanto. As instruções verbais podem referir-se a aspectos técnicos mas também a aspectos estruturais da obra a ser tocada ou ainda à verbalização de qualquer uma das outras estratégias e neste caso implicarem também conhecimento tácito. Interpretar a música como um drama, definindo e interpretando personagens implica obviamente a mobilização da memória físico/corporal introduzindo sistematicamente elementos que escapam à representação consciente e que são por isso também tácitos. Conclusão Concluímos portanto que o ensino tradicional desenvolveu estratégias suficientes para focalizar os alunos na expressão das emoções e, portanto, desenvolver a sua capacidade de serem expressivos. Agora, o que também é inegável é que nem todos os professores utilizam estas estratégias do mesmo modo ou com a mesma frequência, e que muitos poderão até não estar conscientes da sua existência dado o isolamento profissional em que poderão estar mergulhados. É também inegável que a reacção formalista aos exageros interpretativos dos últimos românticos na primeira metade do sec. XX teve este efeito colateral de disseminar a convicção de que uma técnica perfeita associada a uma compreensão da estrutura seria suficiente para tornar uma obra expressiva. Esta tendência pode ter-se acentuado por um lado com a emergência da música gravada e por outro com a popularidade das competições internacionais, o que resultou para muitos num culto por um certo virtuosismo em que se dá prioridade à proficiência técnica preterindo a expressividade. Assim, a investigação na sala de aula no âmbito do ensino instrumental mostrou que actualmente este modelo tradicional do Mestre-aprendiz, apesar de ter todas as condições para envolver os alunos nas escolhas interpretativas e portanto criativas, parece ser para muitos professores ainda um modelo unívoco em que os alunos não fazem mais do que seguir rigorosamente as instruções do professor (Persson, 1993). Neste ponto concordo inteiramente com Juslin (in Juslin et al., 2004) quando escreveu que uma maior abertura por parte dos professores de instrumento à investigação em expressão musical poderia abrir caminho para uma abordagem mais sistemática ao ensino da expressão. Bibliografia Alcantara, P. (1997) Indirect Procedures: A Musician's Guide to the Alexander Technique, Oxford: Oxford University Press. Boal, A. (1992) Games for Actors and Non-Actors (2nd ed.), London: Routledge. Cox, A. 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