universidade do federal do rio de janeiro/ufrj

Transcrição

universidade do federal do rio de janeiro/ufrj
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OS “REALITY SHOWS” E O RESPEITÁVEL PÚBLICO DA VIDA PRIVADA
Veronica Eloi de Almeida
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia/PPGSA, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade do Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Sociologia (com concentração em
Antropologia).
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Kruse Villas
Bôas
Rio de Janeiro
Junho de 2003
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OS “REALITY SHOWS” E O RESPEITÁVEL PÚBLICO DA VIDA PRIVADA
Veronica Eloi de Almeida
Orientadora Glaucia Kruse Villas Bôas
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia/PPGSA, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração
em Antropologia).
Aprovada por:
_____________________________________________
Presidente, Profª. Drª. Glaucia Kruse Villas Bôas – IFCS/UFRJ
_____________________________________________
Prof. Dr. André Botelho – IFCS/UFRJ
_____________________________________________
Prof. Drª. Ilana Strozenberg - ECO/UFRJ
Rio de Janeiro
Junho de 2003
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3
ALMEIDA, Veronica Eloi de.
Os “reality shows” e o respeitável público
da vida privada/ Veronica Eloi de Almeida. Rio de
Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2003.
viii, 110 f.
Glaucia Kruse Villas Bôas. Dissertação de
mestrado- UFRJ/IFCS/PPGSA, 2003. 5 f.
1. Sociologia da cultura. 2. Cultura de massa. 3.
Televisão 4. Tese I. VILLAS BÔAS, Glaucia. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais/Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.
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4
RESUMO
OS “REALITY SHOWS” E O RESPEITÁVEL PÚBLICO DA VIDA PRIVADA
Veronica Eloi de Almeida
Orientadora: Glaucia Kruse Villas Bôas
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia/PPGSA, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia
(com concentração em Antropologia).
O objetivo central deste trabalho é compreender o sucesso de audiência
do programa de televisão Big Brother Brasil (BBB), exibido pela Rede Globo de
Televisão no início do ano de 2002. Inicialmente abordei a ausência de uma
reflexão mais freqüente sobre a televisão nas ciências sociais e a partir da
descrição do BBB tento perceber que elementos o programa trouxe para atrair
os telespectadores.
Neste sentido, o convite feito ao telespectador para
“espiar” a vida de doze pessoas confinadas numa casa foi interessante para
atraí-lo, bem como a interatividade proporcionada pelo programa e a presença
da cordialidade que marcou a convivência dos participantes. A metodologia
incluiu a análise do material visual (os programas gravados) e a observação do
material publicado em jornais, periódicos e nas páginas da “internet” sobre o
programa de TV.
Palavras-chave: sociologia da cultura, cultura de massa e televisão.
Rio de Janeiro
Junho de 2003
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ABSTRACT
REALITY SHOWS AND THE “RESPECTABLE PUBLIC” OF PRIVATE
LIFE
Veronica Eloi de Almeida
Orientadora: Glaucia Kruse Villas Bôas
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia/PPGSA, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia
(com concentração em Antropologia).
This analysis intends to understand the audience success from the TV
program named Big Brother Brasil (BBB), showed by the brasilian TV network
Globo in 2002. First of all, the analysis goesthrough the absence of a more
frequent reflection about TV on social sciences, and what elements
were
brought by BBB in order to attract the TV spectator through the description of
the program. In this sense, an invitation to “ take a peep at ” twelve individual’s
lives confined in a house was really interesting to attract the TV spectator, as
well as the interaction proposed by the program and the cordiality which marked
the individuals daily participation in it. The methodology used was the analysis
either of the recorded programs or of the newspapers, periodicals and wide
wored web sites subjects about the Big Brother Brasil.
Kew-words: cultural sociology; mass culture; television.
Rio de Janeiro
Junho de 2003
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DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação à minha família e especialmente a João e Euridice,
meus pais, com carinho e amor.
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AGRADECIMENTOS
Antes de tudo agradeço cada palavra e linha escritas a Deus, meu apoio,
minha luz e minha paz.
Agradeço aos meus pais, irmãos, irmã e familiares pela força e fé no meu
trabalho.
Aos amigos da UERJ, aos novos do IFCS, aos de Fé (antigos e novos), cujos
nomes não caberiam nesta folha, mas enchem com muito orgulho e
propriedade o meu coração, tornando a vida mais bela.
Ao meu querido professor Orlando de Barros, que me orientou na UERJ e que
continua me ajudando, enviando artigos e reportagens dos jornais sobre a TV,
me incentivando na direção deste objeto de estudo. Agradeço também à profª.
Maria Lígia Barbosa pelo incentivo à esta pesquisa e ao prof. André Botelho
pela sua disponibilidade sempre muito atenciosa.
Um agradecimento muito especial dedico à minha orientadora Glaucia Villas
Bôas, que aceitou “corajosamente” e sem preconceitos o desafio de orientar
um tema que não é comum (ainda!) entre os sociólogos, sendo extremamente
zelosa, atenta, compreensiva e amiga.
E finalmente agradeço ao CAPES pelo apoio financeiro à minha pesquisa.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................... 09
CAPÍTULO I – A TELEVISÃO COMO OBJETO DE REFLEXÃO ................. 14
1.1 O “Mau Olhado” dos Intelectuais ... ............................................... 25
1.2 Instrumental Teórico Inadequado? ................................................ 34
1.3 A Dura Crítica à Cultura de Massa ................................................ 37
1.4 Em Defesa da Cultura de Massa ................................................. 42
1.5 Conclusões .................................................................................... 47
CAPÍTULO II - O BIG BROTHER BRASIL .................................................... 49
2.1 Antecedentes do Big Brother Brasil ............................................. 51
2.2 O Programa Big Brother Brasil ................................................... 61
2.3 A Proposta do BBB de levar o Telespectador a “Espiar” os
Confinados .......................................................................................... 80
2.4 O que o Telespectador “Espiou”? ...... ......................................... 86
2.5 Conclusões ................................................................................... 89
CAPÍTULO
III
–
A
COMPETIÇÃO
BIG
BROTHER
BRASIL
E
A
CORDIALIDADE BRASILEIRA ..................................................................... 92
3.1 A Competição Big Brother Brasil.................................................... 93
3.2 A competição BBB e a Cordialidade Brasileira ............................ 102
3.3 A Vitória dos “Caipiras” ............................................................... 109
3.4 Conclusões ................................................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 116
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ... ............................................................. 119
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APRESENTAÇÃO
Meu interesse pelo estudo sociológico da televisão existe desde a
graduação e nasceu de um desconforto pessoal em relação ao que era exibido
pelos canais de TV. Por isso, fui estudar o que me causava estranhamento,
um programa que não gostava, o Programa do Ratinho, exibido até hoje a
partir das 21 horas pelo Sistema Brasileiro de Televisão e extremamente
assistido pelo público telespectador. Na época, em 1999, o programa foi líder
de audiência diversas vezes, chegando a quebrar o domínio da audiência da
Rede Globo de Televisão, que tradicionalmente liderava a audiência naquele
horário com as telenovelas e foi alvo de discussões na imprensa escrita.
A crítica de Guy Debord (1997) sobre o espetáculo oferecido pela mídia
parecia se encaixar perfeitamente no Programa do Ratinho, que explorava
indivíduos maltratados pela seca, esmagados pela cidade grande, as brigas de
família ou situações do quadro político do país, exibindo um espetáculo quase
circense em torno destas questões.
Entretanto, a partir da análise do
comunicólogo Muniz Sodré (1988) sobre alguns programas que trabalhavam
com o grotesco, observei que o grotesco também caracterizava o Programa do
Ratinho, que a partir de um modo catártico levava informação ao público seja
quando expunha seus personagens imitando políticos e personalidades
importantes da vida social brasileira, seja exibindo o descaso dos setores
públicos em relação a homens e mulheres maltratados pela fome ou pela
doença, numa perspectiva crítica. Neste sentido o grotesco tinha uma função
de crítica social, discutindo as questões políticas e sociais do Brasil. Dito de
outra forma, o grotesco que se exibia no programa em alguns momentos podia
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ser bastante crítico em relação às questões sociais, mesmo que de modo
teatralizado.
Então, se a princípio fui pronta para criticar o programa, a
pesquisa me levou a ter outro olhar sobre o espetáculo oferecido e sobre o que
despertava o interesse dos telespectadores.
Pude perceber também que
formação e informação não precisam ter um formato esteticamente belo. E
talvez fosse esse um dos fatores que contribuía para elevar a audiência do
programa.
Com este relato da monografia demonstro que meu interesse pela
televisão sempre esteve associado de alguma forma ao conteúdo do que é
exibido, às formas de apropriação deste conteúdo pelo público e a programas
que tenham um considerável grupo de telespectadores ou audiência, pois creio
que isto pode proporcionar elementos para pensar sobre eles e sobre própria
sociedade em que vivo. Continuo sem interesse em estudar um programa que
considere particularmente excelente em termos de informação e formação dos
indivíduos, mas que interesse a poucos, como os programas exibidos pela
emissora da rede pública, por exemplo.
Ao ingressar no mestrado estava decidida a continuar estudando a
televisão, uma vez que creio ser importante refletir sobre o que é oferecido
para os mais de 145 milhões de telespectadores, muitos dos quais têm nela a
sua única fonte de informação, de lazer e de cultura. Infelizmente, vivemos
uma situação que ainda não permite a muitos brasileiros o acesso a cinemas,
teatros, concertos de música etc. a preços mais acessíveis.
E ainda que
existam programas culturais baratos ou gratuitos nas grandes cidades, a
maioria das pessoas nem sabem que existem. Por outro lado, não vejo muitos
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investimentos na criação de salas de cinemas, teatros e museus. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE (2001), dos 5.506
municípios brasileiros, 93% não possuem sala de cinema; 85% não dispõem de
museus e teatros e 25% não têm nem bibliotecas. Mas seria injusta se não
reconhecesse que coisas importantes estão sendo feitas no sentido de ampliar
o acesso aos programas culturais. A Prefeitura do Rio de Janeiro em especial
engatinha alguns passos nesta direção com a construção de lonas culturais
nos subúrbios, que são espaços para shows, peças teatrais etc., cujo
freqüência do público tem sido motivo de alegria para artistas e produtores
culturais, e com viabilização de espetáculos a preços populares não apenas
nas lonas culturais, mas em várias partes da cidade. Mas de um modo geral a
TV ainda reina absoluta no acesso de grande parte da população brasileira.
Enquanto pensava sobre qual programa escolher para continuar
estudando a TV, minha curiosidade foi aguçada pela publicidade não apenas
na TV mas em vários veículos, em torno do novo programa que a Rede Globo
ia lançar, o Big Brother Brasil. O título foi o que primeiro me chamou a atenção
em relação ao programa, uma vez que eu já tinha tido um contato com o livro
de Orwel (1983), cujo personagem principal dá título ao programa. Pensei: o
que o cruel personagem de Orwel (1983) estaria fazendo num programa de
televisão?
Mas, rapidamente percebi que tudo não passava de uma grande
ironia com o personagem, sendo esta a forma que o programa encontrou de
despertar a atenção do público em torno do convívio de um grupo de pessoas
confinadas numa casa, conforme esclarecerei mais adiante a analogia entre o
livro e o programa.
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Deste modo, mais uma vez assustada com o interesse do público (por
um programa para mim não muito interessante) e impressionada com o formato
do programa, que vigiou doze pessoas e despertou 500 mil interessados em
ser vigiados, ousei observar mais atentamente e pesquisar o Big Brother Brasil
e tentei, não sem dificuldades, conter o quanto pude os meus próprios juízos
de valor. Considerando que a questão central do trabalho é observar porque o
público viu e gostou do programa, a dissertação será dividida em três capítulos.
A primeira questão que me chamou a atenção nesta pesquisa foi a
reação dos pesquisadores em relação à escolha da TV como objeto de estudo,
pois muitos deles me questionaram se eu era mesmo socióloga ou se não era
da Comunicação Social. Por isso, no primeiro capítulo abordarei a televisão
enquanto objeto de reflexão sociológica, tentando compreender os motivos de
tanto espanto por parte dos meus colegas. No segundo capítulo farei uma
descrição minuciosa do programa.
É importante ressaltar que não farei uma
narrativa dos 64 dias de exibição do programa, explorando tudo o que pôde ser
observado durante a convivência dos participantes. Abordarei a origem do
programa, como foi produzido, a montagem, arrumação e número de câmeras,
como aconteceu a seleção dos participantes, as regras do programa, a
interatividade com o público, para observar um aspecto muito enfatizado pelo
programa que foi o fato dele convidar o telespectador a espiar os confinados, o
que por sua vez se relaciona ao voyeurismo, que é um dos motivos mais
apontados pelos autores de artigos e reportagens sobre a televisão para
justificar a audiência dos “reality shows”. E finalmente, no terceiro capítulo me
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concentrarei na cordialidade como um aspecto que marcou a convivência dos
participantes do programa.
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CAPÍTULO I
A TELEVISÃO COMO OBJETO DE REFLEXÃO
O objetivo deste capítulo é procurar entender os motivos pelos quais há
tão pouco interesse na análise sociológica da televisão. Antes disso, porém,
abordarei brevemente a implantação da televisão no Brasil e a escassez de
estudos sobre a TV no campo da Sociologia.
A implantação da televisão no Brasil ocorreu em setembro de 1950, com
a criação da TV Tupi / Canal 3, em São Paulo, apenas quatro anos depois que
o aparelho passara a ser produzido em grande escala nos Estados Unidos, um
dos países que mais se empenhou na sua invenção. A televisão foi trazida ao
Brasil graças aos esforços de Assis Chateaubriand, proprietário de jornal e
estações de rádio da empresa Diários Associados, que importou os
equipamentos necessários dos Estados Unidos para montar a emissora, e
criou um verdadeiro império jornalístico, protagonizando um episódio
extremamente significativo para a expansão da cultura de massa no Brasil.
A industrialização do país iniciada sob o regime político autoritário de
Getúlio Vargas, foi direcionada para a produção de bens de consumo durante
meados da década de 50 no governo de Juscelino Kubitschek. Este período
da industrialização do Brasil, coincidiu com o auge do rádio e a entrada dos
televisores no mercado consumidor. Mas ainda assim, o modelo econômico
excludente e concentrador que acompanhou a industrialização brasileira não
permitia que muitos indivíduos tivessem condições para comprar a novidade
eletrônica, que também custava caro porque parte do equipamento era
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importado, por isso, nos anos 50 eram poucos aqueles que tinham um aparelho
televisor. Somente com a criação do sistema de crédito este quadro viria a
mudar, tornando mais acessível o consumo às classes populares e com isso, a
difusão da idéia de uma melhora nas condições de vida da parte da população
menos favorecida (SODRÉ, 1988).
Apesar da quantidade reduzida de telespectadores, ao final dos anos 50,
existiam nove emissoras no Brasil, sendo seis no Eixo Rio-São Paulo ( TV-Tupi
do Rio, TV-Tupi de São Paulo, TV-Paulista, TV-Recorde, TV-Continental e TVRio), uma emissora em Belo Horizonte e dois canais em Brasília. (SODRÉ,
2001). Em 1960, o “vídeo-tape” chega ao país, substituindo as exibições ao
vivo. Foram criadas duas importantes emissoras da época, a TV Cultura e a TV
Excelsior. Em 1965 entrou no ar no Rio de Janeiro, a TV Globo, que adquiriu
a TV Paulista em 1966. No ano seguinte foi inaugurada a TV Bandeirantes.
Em 1969, o Brasil recebeu as primeiras imagens via-satélite e a TV Globo
iniciou suas transmissões em rede com o Jornal
Nacional.
Em 1973, foi
exibida a primeira novela em cores, o Bem Amado, de Dias Gomes pela Rede
Globo. Em 1976, o apresentador de TV, Sílvio Santos, comprou o Canal 11 no
Rio de Janeiro, e inaugurou em 1981 o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT),
com 18 emissoras. Nesta época a Rede Globo já contava com emissoras
espalhadas em várias partes do país.
Atualmente, há diversos canais de TV no país, só em São Paulo existem
20 e no Rio de Janeiro há 7 canais. A maioria das emissoras são de empresas
privadas que receberam concessões do Estado para poderem realizar suas
transmissões. O Brasil possui uma emissora pública, a Rede Brasil, localizada
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no Rio de Janeiro. As telenovelas, os programas jornalísticos e de variedades
são os formatos mais exibidos pela maioria das emissoras. Neste sentido, a
Rede Brasil destaca-se frente às demais emissoras, pois sua programação é
voltada basicamente para o telejornalismo, debates, entrevistas e programas
educativos.
Se ao final dos anos 50 a quantidade de telespectadores era pequena,
atualmente, segundo dados do IBGE/ Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (2000), cerca de 38 milhões de domicílios possuem aparelhos de
tevê, o que representa algo em torno de 145 milhões de telespectadores, o que
nos faz observar que aproximadamente 87% dos domicílios particulares
brasileiros têm televisão, isto porque dos 44 milhões de domicílios particulares,
38 milhões possuem televisores. O que seria o mesmo que dizer que dos 168
milhões de moradores de domicílios particulares, 145 milhões têm acesso a
televisores. No início dos anos 90, houve um aumento do consumo deste
eletrodoméstico entre pessoas das classes populares, que foi fundamental para
a construção destes dados. De acordo com o IBGE (2000) há mais domicílios
com televisores do que com geladeiras e, entre os eletrodomésticos
pesquisados, a presença da televisão nos domicílios só perde em termos
quantitativos não muito relevantes para o rádio1.
A medição da audiência é realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e
Estatística, o IBOPE, que acompanha a TV desde quando ela foi implantada no
Brasil e tem por objetivo saber quantos televisores estão ligados e o que as
1
Segundo o censo preliminar do IBGE (2000) há 38.906.707 televisões e 39.107.478 rádios no país. Os
eletrodomésticos pesquisados e dispostos em ordem crescente foram: aparelho de ar condicionado,
microcomputador, forno de microondas, videocassete, máquina de lavar, geladeira, televisão e rádio.
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pessoas assistem2. Na Grande São Paulo a medição ocorre em tempo real,
isto é, no momento em que são exibidos os programas.
A partir de uma
amostra proporcional ao número de habitantes e da condição econômica de
cada região, segundo dados do IBGE, domicílios são sorteados, sendo
acoplado ao televisor o “Peoplemiter”, também chamado de “snifer”, um
aparelho que funciona como um farejador de sinal, que é captado por uma
antena que por sua vez descarrega as informações para os computadores do
IBOPE.
Os pesquisados são divididos por zonas e classificados por sexo,
idade, presença de crianças e classe social.
Para pesquisar a audiência nacional da TV, o IBOPE elabora o Painel
Nacional de Televisão (PNT), cuja a amostra é de 2.521 domicílios ou 8.870
indivíduos, que estão localizados nas principais capitais do país. Num universo
de aproximadamente 51 milhões de telespectadores, para construir o PNT, o
IBOPE mede a audiência no Grande Rio de Janeiro, na Grande São Paulo, em
Belo Horizonte, em Porto Alegre, em Curitiba, em Recife e em Brasília, dentre
outras cidades do país.
Os programas de maior audiência chegam a ter em média de 18 a 22 %
de audiência, podendo chegar em certas ocasiões, como o final de telenovelas
ou de campeonatos de futebol a 40%. Os “reality shows” em dias de grande
audiência chegam a 30%.
A
televisão brasileira demonstra desenvolvimento e qualidade
comparáveis às televisões dos países desenvolvidos em termos de qualidade
2
Segundo Gonçalo (2001) o IBOPE foi criado em 1942 por Auricélio Penteado, proprietário da emissora
de rádio Kosmos em São Paulo. Depois de aprender a técnica de medição da audiência nos Estados
Unidos, Auricélio a implantou no Brasil, e constatando que a sua emissora estava em último lugar, fechou
a rádio e abriu o instituto de pesquisa.
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artística, jornalística e técnica.
Neste sentido, a Rede Globo é o melhor
exemplo que poderíamos citar, uma vez que, atualmente, está entre as quatro
maiores redes do mundo, quanto à qualidade visual e tecnológica. A Rede
Globo com suas 113 emissoras (entre geradoras e afiliadas), cobre
praticamente todo o território nacional, sendo vista por 99,84% dos 5.043
municípios do Brasil. No mercado publicitário da televisão, a participação da
Rede Globo corresponde a 75% do total de verbas destinadas à mídia
televisiva. A emissora com cerca de oito mil (8.000) funcionários, mobiliza mais
de quatro mil (4.000) profissionais envolvidos diretamente na produção dos
programas, como atores, diretores, jornalistas etc. e produz a maior parte de
sua programação, o que a coloca na posição de maior produtora de programas
próprios de televisão no mundo.
Há sete anos a emissora inaugurou em
Jacarepaguá (RJ), a Central Globo de Produções, o PROJAC, onde produz
boa parte dos programas, novelas e “reality shows”. O PROJAC é o maior
centro de produção de TV da América Latina, contém seis estúdios, fábrica de
cenários, de figurinos, cidades cenográficas, áreas de apoio à produção e
complexo administrativo. A Rede Globo exporta seus programas para cerca de
130 países3.
No Brasil, apesar da imensa rede televisiva (que abrange praticamente
todo o território nacional) e do considerável público (aproximadamente 145
milhões de telespectadores), a Sociologia tem se interessado pouco e
praticamente não tem explorado a televisão enquanto tema de estudo. Para se
ter uma idéia da escassez de estudos, levantamento realizado na Biblioteca
3
Ver página da Rede Globo na internet: http://www.redeglobo3. globo.com/institucional/
19
Marina São Paulo de Vasconcellos, do IFCS, indica que naquele acervo
encontram-se dissertações de mestrado sobre o tema mas nenhuma tese de
doutorado sobre a televisão ou outros meios de comunicação de massa4. O
levantamento bibliográfico que fiz em algumas das principais revistas de
ciências sociais no Brasil, buscando artigos que aludissem ainda que de modo
indireto à televisão, constatou uma quantidade irrisória de trabalhos sobre o
assunto. Na “Revista Brasileira de Ciências Sociais”, publicada pela ANPOCS,
no período de 1986 a 2002, foi encontrado apenas o artigo “Continuidade e
inovação, conservadorismo e política da comunicação no Brasil”, de Fátima
Lampreia Carvalho (2000); um único artigo foi também encontrado na “Revista
Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais” no período de 1996
a 2000, a saber, “Um ponto cego nas teorias da democracia: os meios de
comunicação”, de Luís Felipe Miguel (2000); três artigos foram publicados em
“Ciências Sociais Hoje”, no período de 1981 a 1996, “A televisão e outras
falas: como se reconta uma novela”, de Ondina Fachel Leal e George Ruben
Oliven (1987), “Transformações culturais, criatividade popular e comunicação
de massa: o carnaval brasileiro ao longo do tempo”, de Olga von Simson
(1981) e “Sambandido: arte popular e cultura de massa”, de Letícia Vianna
(1996).
4
Sobre o acervo de teses do IFCS ver o relatório de Antônio Brasil Jr. para o projeto “A literatura na
televisão: um estudo sobre suas relações, produção e recepção” (2003), desenvolvido no Núcleo de
Pesquisa em Sociologia da Cultura ( NUSC). As dissertações defendidas no PPGSA são as seguintes:
SILVA FERREIRA, Denise, “O reverso do Espelho: o lugar da modernidade. Um estudo sobre mito e
ideologia racial nas novelas da TV Globo”, 1991; FONSECA, Alexandre Brasil, “Evangélicos e mídia no
Brasil”, 1997, SOARES, M. R. “Pelas lentes da Tupi: uma leitura do campo jornalístico no final da Era
Vargas”, 1999; LATTMAN- WELTMAN, F. “Jornalistas: agenciando a cidadania, publicando o
privado”, 1992; ALMEIDA, A. P. T de. “Pague para entrar e reze para sair: a repercussão dos filmes de
violência nos jornais cariocas e paulistas”, 1998; CASTILHO, S. R. R. “O “Soldado da TV” contra a
“Pretinha do Povo”. A propaganda eleitoral televisiva de César Maia e Benedita da Silva”, 1994.
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Um dos raros títulos de referência nos estudos estritamente sociológicos
sobre televisão continua sendo o livro de Sérgio Miceli, “A noite da madrinha”
(1982), baseado em sua dissertação de mestrado realizada na Universidade de
São Paulo. A pesquisa centrou-se no conteúdo da mensagem do Programa
da Hebe, apresentado por Hebe Camargo no SBT, observando o autor, dentre
outros aspectos, como o programa reforça os valores do universo da família de
classe média.
As entrevistas feitas com celebridades por Hebe Camargo,
giravam em torno de situações domésticas, relacionadas à maternidade, ao
casamento, às compras no supermercado, à gerência da casa etc.
Neste
sentido, o programa reforça a divisão sexual do trabalho, pois ainda que a
mulher trabalhe fora de casa, fosse uma cantora ou atriz, a apresentadora
enfatizava o fato de que ela deveria ser também uma mãe zelosa, uma
dedicada esposa e dona-de-casa, testando seu “know-how” doméstico nas
entrevistas. Por isso, Hebe Camargo é vista pelo autor como madrinha deste
sistema de valores, recebendo os seus convidados numa sala de estar
cenográfica, com uma linguagem emocional, com carinho, aconchego e calor,
que por sua vez davam o tom de intimidade e familiaridade do programa. No
entanto, em sua carreira acadêmica, Miceli enveredou por outra temáticas
voltadas para os intelectuais brasileiros, deixando para trás os estudos sobre a
televisão5.
Se há escassez de estudos sobre a televisão no campo da sociologia,
não pode-se dizer o mesmo quando a televisão toma a si mesma como objeto
de reflexão, considerando que nos últimos anos vêm crescendo no Brasil os
5
Resultados das pesquisas desenvolvidas pelo sociólogo sobre os intelectuais encontram-se no livro “Os
intelectuais no Brasil”. Bertrand (Nac.). 1994.
21
títulos publicados pelas pessoas que trabalham ou trabalharam em televisão,
que vão de reflexões sobre o que se veicula e porque se veicula, a assuntos
relacionados à produção na TV propriamente dita. O jornalista Gonçalo Júnior
fez uma série de entrevistas só com os profissionais de TV no livro “Os pais da
TV: a história de televisão brasileira” (2001), que reuniu profissionais como o
escritor Dias Gomes, os diretores Walter Avancini e Guel Arraes, o ex vicepresidente de coordenação estratégica da Rede Globo, José Bonifácio de
Oliveira Sobrinho, dentre outros, onde discutiram audiência, qualidade
televisiva, programas popularescos, autonomia na produção dos programas
etc. O diretor de TV Daniel Filho publicou o livro “O circo eletrônico: fazendo
TV no Brasil” (2001), onde abordou os segredos e curiosidades dos bastidores
da TV, como são feitos os programas, os profissionais envolvidos e o trabalho
em equipe. O Brasil foi o primeiro país a realizar o Congresso Internacional de
Televisão, em 2001, que contou com a presença de apresentadores, escritores
e teatrólogos para discutir questões relacionadas à imagem televisiva.
As
ciências sociais e a sociologia em particular vem perdendo terreno diante da
produção que vem tornando-se regular sobre a televisão de autoria dos
produtores de televisão.
Considero que as ciências sociais se caracterizam pela versatilidade de
temas trabalhados, contudo, torna-se um tanto difícil compreender a distância
frente ao estudo de um fenômeno tão presente nas sociedades modernas, cuja
repercussão é notável desde o seu surgimento.
Neste momento, poderia
inverter o questionamento e pensar justamente no “por que” a televisão deveria
ser mais estudada pela Sociologia?
Há pelo menos duas considerações
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relevantes que justificam a importância da TV como objeto de pesquisa. Em
primeiro lugar, porque a televisão atinge 145 milhões de brasileiros, muitos dos
quais têm nela a sua única fonte de informação, lazer e cultura, atuando no
processo de formação destes indivíduos na medida em que os informa, seja
quando os diverte ou não. Em segundo lugar, observo a televisão como um
espelho no qual a sociedade se vê, assim como o cinema, a literatura, o teatro
ou a arte de um modo geral. Neste sentido, pode ser importante me deter um
pouco mais neste ponto, que considera haver uma relação direta entre a
literatura, o cinema, a arte em geral, os programas de TV e a sociedade. Para
isto recorri ao sociólogo francês Pierre Bourdieu, que ao tratar das relações
entre literatura e sociedade, defende uma abordagem sociológica da cultura6.
No livro “As regras da arte”, (1996), Bourdieu usa o romance de Gustave
Flaubert, “Educação sentimental”, para refletir sobre as relações sociais
concernentes às produções literárias. Com este livro, o sociólogo demonstra o
quanto pode ser válido estudar sociologicamente a literatura, pois o romance
que sintetiza as contradições entre o mundo da arte e o mundo burguês do
século XIX, põe em evidência uma série de questões que estão muito
presentes na sociedade contemporânea, como a autonomia dos produtores de
cultura (músicos, literatos etc.), o poder de consagração das obras, as
pressões sofridas para as obras se adequarem ao receptores, dentre outras
questões7.
6
Não se trata aqui de comparar literatura com programas de TV. Creio apenas que as afirmações sobre
literatura e sociedade podem contribuir para pensar as relações entre televisão e sociedade.
7
A leitura de Mukarovsky pode ser interessante, uma vez que o autor também acentua uma relação direta
entre a literatura e a sociedade, por isso o estudo dessa relação não deve ser deixado de lado. Ver:
JAKOBSON, R.; MUKAROVSKY, J. “Formalismo russo, estruturalismo tcheco”. In “Círculo
Lingüístico de Praga: estruturalismo e semiologia”. TOLEDO, D (Org.). RS: Ed. Globo, 1978. 3-4 p.
23
Assim como a literatura pode nos levar a pensar sobre a sociedade,
creio que a televisão também têm esta capacidade. Dito isto, posso considerar
que ela traz elementos para pensar as relações sociais, pois através dela
vêem-se representados traços que caracterizam tais relações, como no caso
de certos programas, a cordialidade, o “jeitinho brasileiro”, a valorização das
formas do corpo, as paixões pelo carnaval e futebol, entre outros aspectos,
onde ressalto que seus produtores estão inseridos numa teia de relações
sociais que caracterizam o país, e internalizam certos valores que acabam
aparecendo na elaboração dos programas.
Bourdieu defende o estudo das relações entre a produção cultural e a
sociedade não somente no mencionado livro “As regras da Arte” como também
no livro “Sobre a televisão” (1997). Estendo este estudo à televisão. Durante a
pesquisa feita sobre o programa Big Brother, objeto desta dissertação, observei
os programas de televisão como produtos culturais como qualquer outro, só
que com especificidades próprias, entre as quais ressalto a possibilidade de
alcance considerável, conforme já dito, no caso da televisão brasileira. Há uma
relação entre o que se produz na televisão e a sociedade. Por isso, creio ser
possível compreender a sociedade em que vivemos através da sua pesquisa.
Para procurar entender os motivos pelos quais há tão pouco interesse
na análise sociológica da televisão selecionei textos que procuram elucidar a
questão, trazendo à discussão as contribuições de Jesus Martín-Barbero,
Pierre Bourdieu, Umberto Eco, Armand e Michèle Matterlart, Theodor Adorno,
Max Horkheimer, Dominique Wolton, Abraham Moles, Sérgio Paulo Rouanet e
Muniz Sodré.
Gostaria de ressaltar no entanto, que como nem todos os
24
autores escreveram especificamente sobre a televisão, em alguns momentos
utilizarei os argumentos que usaram para analisar os meios de comunicação de
massa em geral, nos quais a TV está incluída.
A seguir investigarei três
motivos que podem nos ajudar a compreender a escassez de estudos sobre a
televisão no campo da sociologia, no Brasil, são eles 1) a televisão gerando
entre os intelectuais ora a crítica ora a sedução pelo novo meio de
consagração; 2) os limites relacionados ao instrumental teórico para construção
deste objeto de pesquisa; 3) a dura crítica feita à televisão e aos meios de
comunicação de massa por vertentes teóricas amplamente difundidas.
25
1. 1 O “Mau-Olhado” dos Intelectuais8
Recomeçamos a discutir uma coisa ou outra à borda da
piscina e, como Mechelius, recobrando um pouco a
vivacidade, perguntou-me se eu tinha visto o programa
sobre os Fugger há alguns dias na televisão, a grande
família de banqueiros de Augsburgo, eu lhe disse que
não, e ele me explicou que o programa lhe parecera
bastante interessante, com um trabalho sério de pesquisa,
vários arquivos consultados e a montagem cuidadosa.
Não, não, eu não vi, repeti, começando a bater os pés
dentro da água. Tirei um pé da água e examinei-o um
pouco com ceticismo, com a perna estendida, e disse a
ele que havia parado de ver televisão. Você vê televisão
com freqüência? Eu perguntei, virando-me para ele.
Retesou-se imediatamente e, cruzando os braços no peito
num reflexo de defesa e distanciamento (vi em seu olhar,
de maneira fugidia, que ele achava muito desleal eu lhe
fazer essa pergunta quando ele acabava de se
comprometer falando de um programa), e apressou-se a
dizer que não. Não, não, muito pouco, ele disse, quase
nunca, uma ópera de vez em quando, ou algum filme
antigo. Mas eu os gravo, ele acrescentou, eu os gravo
(como se o fato de gravá-los pudesse adoçar a
condenação que se fizesse por ele assisti-los).
(TOUSSAINT, 1999, p.138-139)
O personagem principal do romance “A televisão” de Jean-Philippe
Toussaint (1999), que aparentemente desaprova seu colega pela opinião
favorável a um programa de televisão, é um francês, historiador da arte, que
para elaborar um ensaio sobre a vida do pintor da Renascença Ticiano, recebe
uma bolsa de estudos para pesquisar em Berlim. O historiador se muda para
a cidade alemã com a esposa grávida e o filho, ao mesmo tempo em que
8
Não me ocupei aqui com a definição do termo intelectual, usando-o na sua expressão corrente que o
relaciona à pessoa estudiosa, para não perder de vista meu objetivo principal de discutir as atitudes que a
TV incita em professores, pesquisadores, jornalistas, cientistas etc. de acordo com o que pude perceber
durante a elaboração deste trabalho e confirmar na literatura sobre o assunto.
26
decide parar de ver televisão. O diálogo transcrito acima entre o historiador da
arte e o presidente da Fundação financiadora Mechelius, é apenas um entre
tantos outros do romance em que o primeiro se coloca numa posição de
distinção justamente por não mais assistir à televisão. O romance de Toussaint
aparentemente despretensioso, porém muito irônico, evoca uma das primeiras
questões que me chamaram a atenção no que se refere à atitude dos
intelectuais diante da televisão: a sedução e a repulsa pela imagem televisiva
ou o hábito de ver televisão e a vergonha de confessá-lo em público.
Para o personagem de Toussaint a televisão seria definida como a
superficialidade em movimento incessantemente novo e dinâmico que só
contribui para a irreflexão.
Por isso, qualquer tentativa de reflexão que o
telespectador desejasse estaria prestes a se diluir numa sucessão contínua de
imagens, conforme podemos observar no trecho adiante:
Uma das principais características da televisão quando
ela está ligada é nos manter continuamente despertos de
modo artificial. Ela emite permanentemente sinais ao
nosso cérebro, pequenos estímulos de toda qualidade,
visuais e sonoros, que despertam nossa atenção e
mantêm nossa cabeça alerta. Mas assim que nossa
mente, alertada por esses sinais reúne forças para refletir,
a televisão já passou para outra coisa, novos estímulos,
novos sinais tão estridentes quanto os anteriores, ainda
que com o tempo, em lugar de se manter desperta por
essa sucessão sem fim de sinais que a exaurem, nossa
mente (...) antecipe, então, a natureza real dos sinais que
recebe e, em vez de mobilizar novamente suas forças
para a reflexão, ao contrário, relaxa e abandona-se à uma
vagabundagem passiva ao sabor das imagens que lhe
são apresentadas. (TOUSSAINT, 1999, 16-17 p.)
27
Para o personagem de Toussaint (1999), a mente do homem seria
continuamente solicitada, mas não estimulada à reflexão, como se estivesse
anestesiada, permanecendo passiva diante da televisão. Entretanto, Toussaint
narra a sua estória de forma que o leitor vai percebendo aos poucos que a
repulsa não é o único sentimento que o pesquisador nutre pela televisão. Ao
contrário, há uma atração irresistível pelo veículo que faz com que ele se sinta
continuamente tentado a mudar de decisão, se deixando vencer pelo
encantamento que a TV incitaria nele. Por isso, ao longo da narrativa, o leitor
percebe que o personagem não hesita em ligar o aparelho de TV na casa vazia
de seus vizinhos, ou em assistir na casa de amigos ou ainda em comprar mais
um televisor para a sua esposa, posicionando-o mais especificamente no
quarto do casal, enfatizando a finalidade exclusiva de presenteá-la, ainda que
ele seja sempre o último a desligar o aparelho depois do campeonato de
futebol.
O trecho da vida de Ticiano que o historiador da arte pesquisava era a
visita do rei ao ateliê do artista, que enquanto pintava sobre uma escada,
assusta-se com a inusitada visita e acaba deixando o pincel cair no chão, o que
talvez nem tenha realmente ocorrido e seria apenas uma anedota.
Para
elaborar o ensaio sobre Ticiano, o pesquisador cujo nome não é revelado por
Toussaint, e cuja esposa e o filho passam férias em outra cidade, pára de ver
televisão pelas razões expressas acima e, também, para não perder tempo.
No entanto, o historiador da arte termina por não produzir nada, mas se
divertindo muito e diariamente, seja saindo para conhecer a cidade ou
28
simplesmente assistindo televisão. Em suma, o pesquisador omite que vê TV,
mas por ser tão atraído por ela, até deixa de trabalhar somente para vê-la.
Suponho que o personagem de Toussaint represente parte da categoria
de intelectuais que diz publicamente que não vê TV, mas no entanto que não
deixa de saber de alguma forma o que se passa na repulsiva, porém,
encantadora, caixa de Pandora9.
A atitude do personagem construído por
Toussaint expressa a relação de desprezo e encantamento que muitas vezes o
intelectual pode ter pela televisão.
A intenção em trazer a esta pesquisa o romance de Toussaint é ressaltar
que o desprezo e o encanto do pesquisador pela televisão é tão evidente que
se tornou objeto da literatura, o que só ratifica o que pretendo levar em
consideração, ou seja, que o desprezo seja um dos responsáveis pela
escassez de estudos sobre ela, como veremos mais adiante.
Observo no
romance o quanto um pesquisador pode se especializar estudando até uma
anedota, mas ao mesmo tempo reflito sobre o quanto ele pode excluir de suas
pesquisas um tema tão relevante como a televisão, algo que apresenta-se com
um papel importante do ponto de vista da formação das consciências,
considerando-se a tecnologia de que dispõe e o seu alcance.
Para refletir sobre as atitudes dos pesquisadores em relação à televisão,
observaremos o texto “O mau olhado dos intelectuais”, que o teórico da
comunicação Jesús Martín-Barbero escreveu em parceria com o psicólogo
colombiano Germán Rey, que integra o livro “Os exercícios do ver” (2001).
Espanhol, radicado na Colômbia, Martín-Barbero é atualmente um dos maiores
9
Na mitologia, a caixa da deusa Pandora guardava vários males, que escaparam da mesma, restando
apenas um bem, a esperança.
29
teóricos da comunicação na América Latina.
Seu livro mais conhecido no
Brasil chama-se “Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia”
(2001), que foi publicado aqui pela primeira vez em 1997, dez anos após sua
edição original castelhana. O autor que optou pela interdisciplinalidade para
entender a comunicação de massa, na introdução deste livro conta
rapidamente como foi o seu encontro com a comunicação:
Vinha eu da filosofia e, pelos caminhos da linguagem, me
deparei com a aventura da comunicação.
E da
heideggeriana morada do ser fui parar com meus ossos
na choça-favela dos homens, feita de pau-a-pique mas
com transmissores de rádio e antenas de televisão.
Desde então trabalho aqui, no campo da mediação de
massa (...) (MARTÍN-BARBERO, 2001, p.27)
Em “Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia”
(2001), dentre outras questões, Martín-Barbero, contextualizando politicamente
as posições de Adorno para poder relativizá-las, critica o que denomina de
“elitismo da escola de Frankfurt10”.
Em “Os exercícios do ver” (2001), Martín-Barbero reflete sobre o poder
da televisão no imaginário das pessoas, analisando as telenovelas latinoamericanas, com atenção especial para as produções brasileiras. O autor ao
abordar a relação entre o intelectual e a televisão critica o que denomina de
“exasperação da queixa” contra a televisão.
Isto porque, segundo o autor,
quando um pesquisador se propõe a estudar este veículo, o faz para criticá-lo
misturando indignação moral com asco estético, o que faz de sua pesquisa não
uma crítica bem fundada, mas uma queixa. Contudo, Martín-Barbero sublinha
10
A expressão foi extraída da contracapa do livro “Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia” (2001).
30
que o asco dos intelectuais pela TV não a transformará em nada, e quer
queiram ou não ela vai continuar fazendo parte da sociedade moderna, ou seja,
o “mau-olhado” dos intelectuais não os levará a lugar algum.
Conforme
acentua o autor:
Nossa crítica do rancor dos intelectuais conduz ao
desmonte desse círculo que conecta, em um só
movimento, a “má consciência” dos intelectuais e a “boa
consciência” dos comerciantes da cultura e a
incompreensão das ciências sociais para com a televisão.
(MARTÍN-BARBERO, REY, 2001, p.27)
Segundo Martín-Barbero se os intelectuais que pesquisam a televisão
vêem o desligar do aparelho como a única saída, não cabe mais pensar em
políticas de televisão, em luta contra a lógica mercantil, ou numa televisão
pública que passe das mãos do governo para as mãos das organizações da
sociedade civil, ou ainda na valorização dos canais independentes. Não há
nem mesmo a necessidade de se formar uma visão crítica que distinga
informação independente de informação submissa ao poder político e
econômico.
Em recente entrevista concedida à TV Cultura em parceria com a Rede
Brasil11, ao ser questionado sobre o desprezo dos intelectuais pela TV
abordado em “Os exercícios do ver” (2001), Martín-Barbero longe de dizer que
ela não deva ser criticada, supõe que há um preconceito dos intelectuais em
relação ao meio, pois há uma espécie de ressentimento deles frente ao novo
poder que se estabeleceu após o surgimento da televisão. Logo, o preconceito
11
BARBERO, J. M. TV Cultura. São Paulo, 03 fev. 2003. Entrevista concedida a Paulo Markun no
programa Roda Viva que é retransmitido pela Rede Brasil.
31
dos pesquisadores em relação à TV seria explicado pelo fato destes terem
perdido boa parte do prestígio que possuíam para os novos personagens da
mídia.
De acordo com o autor, alguns estudiosos tentam recuperar o seu
prestígio, fazendo quando possível uso da TV para falar sobre os seus
trabalhos.
Aliás, o poder de consagração pela televisão também foi evocado por
Pierre Bourdieu. No livro “Sobre a televisão” (1997), o sociólogo afirma que
muitos pesquisadores vêem a televisão como uma espécie de espelho de
Narciso, cuja possibilidade de consagração os encanta, pois, enfatiza o autor
(1997, p.16): “Ser, dizia Berkeley, é ser percebido”. Para alguns de nossos
filósofos (e de nossos escritores), ser é ser percebido na televisão, isto é,
definitivamente, ser percebido pelos jornalistas”.
O que é confirmado pelo
sociólogo com o fato de que muitos pesquisadores quando participam da TV,
nunca se interroguem sobre “por que” participam dela (IDEM).
Tanto
Martín-Barbero
quanto
Bourdieu abordam a questão da
consagração dos pesquisadores pela mídia.
Entretanto este último é mais
crítico e vai um pouco mais longe quanto à busca de consagração via televisão,
afirmando que quanto mais o pesquisador aparece no veículo, menos pode ser
respeitado entre os seus pares, sobretudo porque de um modo geral se
participa do veículo aceitando as suas condições, como a imposição do
assunto, das condições de comunicação e da limitação do tempo, fazendo com
que não sobre nada muito produtivo a ser dito. O próprio Bourdieu aceitou
participar de um programa na televisão porque pôde controlar o que para ele
eram as condições ideais.
32
A questão da consagração pela mídia é bastante complexa, isto porque
Bourdieu mostrou que a televisão tem uma dinâmica própria que muito
dificilmente permitirá que o pesquisador tenha o controle sobre os seus
instrumentos de produção. A exceção parece ter sido a do próprio Bourdieu,
intelectual já consagrado entre os seus pares e bastante conhecido na
imprensa, que concedeu participar de dois programas para falar a respeito de
seus estudos sobre a televisão12.
Ainda sobre o poder de consagração da televisão, segundo o professor
de
Comunicação Social Juremir da Silva, autor do texto “O pensamento
contemporâneo
francês
sobre
a
comunicação”
no
livro
“Teorias
da
comunicação: conceitos, escolas e tendências” (2002), o livro de Bourdieu
“Sobre a televisão” (1997) é um dos mais críticos sobre as estratégias de
espetacularização da mídia pelos profissionais da comunicação, onde dentre
outros assuntos, Bourdieu aborda a circularidade da informação, isto é, o fato
de a mídia falar dela mesma, pautando-se sobre outros veículos midiáticos, o
que a fez sair do acontecimento em si para entrar no culto à personalidade.
Neste sentido, podemos considerar que o espetáculo oferecido pelos
programas que exploram a vida privada de celebridades ou de pessoas
desconhecidas para a mídia, os “reality shows”, vêm bem a calhar, haja visto a
intenção televisiva relacionada ao culto à personalidade e o poder que a
televisão têm de torná-los famosos. Enfim, sobre Bourdieu e Martín-Barbero,
podemos dizer que ambos concordam no que diz respeito ao poder de
consagração da televisão, que ameaça as práticas mais tradicionais de
12
“Sobre a televisão” (1997) baseou-se na transcrição de dois programas realizados em 18/03/1996 no
âmbito de uma série de cursos do Collège de France, difundidos por Paris Première em maio de 1996.
33
consagração dos intelectuais entre os seus pares, só que para o pesquisador
espanhol esta seria a justificativa para o desprezo que a TV incita em muitos
intelectuais.
34
1.2 O Instrumental Teórico Insuficiente
O segundo motivo atribuído à escassez de estudos sobre a televisão
pode estar relacionado ao fato de os meios de comunicação de massa serem
um fenômeno recente e não muito estudado e por isso não existir um extenso
instrumental teórico no campo da Comunicação Social.
Alguns indivíduos
referem-se ironicamente à “achologia”, que no uso corrente e irônico significa
ciência do achar, como enfoque utilizado no estudo dos meios de comunicação
de massa, uma vez que as teorias nesta área ainda incipientes, trabalhariam
mais com categorias do que com conceitos bem fundamentados. Contudo, o
fato de determinado estudo ser recente não deve lhe tirar a legitimidade. E não
seria oportuno dar às costas à existência de países seriamente empenhados
na evolução dos estudos tanto teóricos como empíricos, conforme avaliou o
comunicólogo brasileiro Muniz Sodré (1988), também fortemente empenhado
neste sentido.
Se por um lado discute-se a necessidade de um maior aparato teórico
sobre a
televisão no campo da Comunicação Social, por outro, o tema é
recorrente no senso comum.
Segundo Bourdieu (1999), um dos limites
impostos ao estudo dos “mass media” é o fato deles serem os mais permeáveis
às problemáticas e esquemas da sociologia espontânea, praticada pelo senso
comum. No entanto, o autor alerta para a necessidade de se construir o objeto,
seja ele qual for, desde que sejam abandonados os objetos pré-construídos,
que são elaborados na percepção do senso comum.
A pesquisa científica
deve se organizar em torno de objetos construídos, que independem das
unidades separadas pela percepção ingênua (IDEM).
35
E mais uma vez recorrendo a Bourdieu, no livro “O poder simbólico”
(1989) lembro que o cume da arte em Ciências Sociais está em trazer à cena
da pesquisa científica coisas teóricas importantes a respeito de objetos ditos
empíricos muito precisos, que podem até parecer menores na aparência ou
mesmo irrisórios. Bourdieu ressalta que muitas vezes a suposta grandiosidade
do objeto, ou a sua relevância social e política é apresentada por si só como a
justificativa da importância do discurso que lhe é consagrado, motivo pelo qual
muitos pesquisadores se mostrem tão desatentos às questões metodológicas.
Contudo, a riqueza do método pode transformar um objeto aparentemente
insignificante num objeto científico. Por isso, a profissão do sociólogo pode
muito bem ser associada a de artistas como Manet e Flaubert que produziam
um diferencial em termos de arte, a partir do que fora considerado excluído
pela Academia.
Em “O elogio do grande público”(1996), o francês Dominique Wolton13,
diferentemente de muitos analistas de televisão, observa a TV aberta, voltada
para o grande público, como um instrumento de democratização. Contudo,
Wolton atenta também para o pouco estudo dedicado à televisão e afirma que
ela sofre uma espécie de “preguiça de análise”, que outrora sofreu o meio
ambiente, à qual relaciona a duas causas principais. A primeira diz respeito à
sua própria natureza, ou seja, ao fato de ser um objeto presente na vida
cotidiana, cuja banalidade enganadora, não suscitaria tanto interesse, uma vez
que a sua função principal seria a evasão, que raramente constitui-se em
objeto de estudo. A segunda causa diz respeito ao fato da televisão ter sido
13
Responsável pelo Laboratório de Comunicação e Política do Centre National de Recherches (CNRS)
Scientifiques.
36
vista essencialmente por uma perspectiva crítica e hostil, inalterada por muitas
décadas. Sobre esta crítica hostil me deterei mais adiante, pois como o autor,
considero que ela desmotivou as pesquisas na direção da TV no campo das
ciências sociais.
Em seu livro, Wolton analisa ainda a televisão brasileira, desenvolvendo a
idéia de que a TV aberta serve para reforçar os laços sociais e atua como fator
de integração e de valorização da identidade nacional, apresentando-se como
um antídoto contra o isolamento no mundo contemporâneo, uma vez que
sedimenta o sentido de identidade cultural. Já a TV fechada, ao contrário, por
sua natureza temática e segmentada, funciona como formadora de guetos, que
acentuam as desigualdades culturais.
37
1.3 A Dura Crítica à Cultura de Massa
Considero que a crítica à cultura de massa, aqui representada pela
televisão, teve uma grande recepção por parte dos pesquisadores e, ao invés
de atraí-los ao estudo, mais os afastou daquele objeto de estudo no Brasil. No
debate sobre a cultura de massa tornou-se lugar-comum criticar a televisão e,
deste modo, enquanto objeto de estudo ela não suscitou tanto interesse, tanto
que muitos pesquisadores, como o personagem do romance de Toussaint
(1999), nem admitem que assistem televisão publicamente.
O semiólogo italiano Umberto Eco no livro “Apocalípticos e integrados”
(2000), aborda a cultura de massa a partir do discurso de seus críticos e
defensores,
aos
quais
chama
de
“apocalípticos”
e
“integrados”,
respectivamente e a leva a um hipotético banco dos réus, construindo seu texto
a partir do que denomina de “peças de defesa” e de “acusação”. Das críticas
listadas por Eco, recolhi três, que são significativas, uma vez que creio que elas
tiveram uma considerável recepção entre os estudiosos. Entretanto, deve-se
ressalvar que os teóricos que trago a esta dissertação não foram os mesmos
utilizados pelo semiólogo, pois é meu objetivo encarnar as críticas dele nos
autores lidos para a elaboração desta pesquisa. Seria importante ressaltar
ainda que não pretendemos rotular os autores que trago a esta pesquisa,
afirmando que aqueles que atuam na defesa da TV não a critiquem ou nunca a
criticaram, nem que aqueles que a criticam duramente, a viram exclusivamente
sobre tal aspecto em suas carreiras acadêmicas.
Nem se trata de uma
atualização de suas pesquisas. Pretendo apenas utilizar os argumentos que
foram produzidos por eles durante determinados momentos de seus estudos,
38
para com isto enriquecer a dissertação e refletir sobre o meu objeto, focando
mais na argumentação sobre a TV do que nos autores.
Dentre as críticas listadas por Eco (2000), de maneira suscinta, destaco
as seguintes: 1) a alienação fomentada pela cultura de massa, que faz parte da
superestrutura do regime capitalista; 2) a superficialidade na fruição dos seus
produtos e 3) a inferioridade do valor da cultura de massa, comparada à alta
cultura e à cultura popular.
A primeira peça de acusação à cultura de massa a ser observada é
aquela que relaciona os produtos da cultura de massa à dominação capitalista.
Os estudiosos franceses da Comunicação Social Armand e Michèlle Mattelart
escreveram “História das teorias da comunicação” (2000), onde analisam
diversas Escolas, dos frankfurtianos aos estudos mais recentes, e mostram que
para algumas delas os “mass media” eram vistos como reprodutores dos
valores do sistema social vigente, isto é, serviriam à regulamentação da ordem
social.
As
Escolas
de
pensamento
crítico
se
interrogaram
se
o
desenvolvimento dos “mass media” não representaria um entrave à
democracia. Por isso, os meios de comunicação passaram a ser vistos por
algumas Escolas como meios de dominação e de poder. Neste sentido, a
Escola de Frankfurt, na Alemanha, foi a que mais se destacou na crítica à
cultura de massa, investigando-a na época de seu surgimento e nela por sua
vez se destacaram os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, que frente
à perseguição nazista aos judeus, têm que deixar a Alemanha e exilarem-se
nos Estados Unidos, onde dão continuidade aos seus estudos e criam na
década de 40 o conceito de “indústria cultural”.
39
Segundo Adorno e Horkheimer, em “Dialética do esclarecimento” (1980),
a indústria cultural é a transformação da cultura em mercadoria, que como
qualquer outro produto do sistema capitalista recebe o tratamento de
padronização, produção em série e utilização de recursos tecnológicos. Com
isso, a idéia de cultura enquanto atitude cultivada que tem o papel de levar o
homem à reflexão é desprezada, já que a indústria cultural rebaixando a cultura
à mercadoria, tirava-lhe a capacidade iluminista e a função crítica, levando
também ao desprezo o papel filosófico-existencial da cultura.
Por trás da idéia de padronização e produção em série com a
emergência de uma sociedade com um maior número de consumidores e com
a proposta de democratização dos bens culturais, havia na realidade a
necessidade de manter o sistema coeso, pois neste sentido tanto os
automóveis e as bombas, quanto o cinema têm a mesma função, isto é, manter
coeso o todo, o sistema que representam. (IDEM).
A segunda peça de acusação à cultura de massa se refere à ausência
de esforço na sua fruição, o que aliás foi outro ponto levantado por Adorno e
Horkheimer. Para os autores (IDEM), a indústria cultural oferece produtos cuja
fruição está automaticamente dada, não havendo necessidade de qualquer
esforço intelectual. Com isso, o espectador passa a ter uma relação ociosa
com os produtos da cultura de massa. A cultura deixa de ter uma função
reveladora, crítica, para ter um conteúdo cuja apreciação já está dada. É como
se o espectador fosse levado pela mão do produto da indústria cultural para ter
40
reações previsíveis, pois a possibilidade de criação frente ao que vislumbra é
esvaziada14.
A terceira peça de acusação à cultura de massa diz respeito à
desqualificação dos produtos que oferece, pois enquanto a cultura popular é
frequentemente associada a identidades culturais regionais e nacionais, a alta
cultura se relaciona às elevações do espírito, a cultura de massa é associada
ao “kitsch”15. Abraham Moles, pesquisador do CECMAS (Centro de Estudos
da Comunicação de Massa), primeiro instituto francês dedicado às pesquisas
de comunicação, discute o significado deste termo no livro “O kitsch” (1986).
Segundo o autor a palavra alemã pode ter vindo de “kitschen”, que significa
atravancar e fazer móveis novos com velhos, ou de “verkitschen”, que significa
trapacear, vender outra coisa no lugar do que fora combinado. Entretanto, o
que ressalto com Moles é que independente de sua origem, o termo “kitsch”
assumiu um significado pejorativo, relacionado à negação do autêntico.
E
sobre este significado pejorativo me deterei um pouco mais, observando o livro
“As razões do iluminismo” (1987), do cientista político Sérgio Paulo Rouanet16.
Rouanet em “As razões do iluminismo” (1987) acentua este caráter de
inautenticidade ligado ao “kitsch”.
14
Segundo o autor há uma espécie de
Segundo Eco (2000) para os apocalípticos, os “mass media” ao invés de sugerirem a emoção, a
entregam já confeccionada. Eles provocam emoções intensas, ao invés de incitar a criação dos
consumidores.
15
Considerando que a distinção entre cultura popular, erudita e de massa baseia-se na temporalidade, no
ordenamento das relações sociais e em arbitrariedades, esta dissertação não pretende acentuar tais
distinções. Ressaltamos apenas que a distinção existe e por sua vez é produto das relações dos indivíduos
em sociedade, ou seja, é também produto de uma cultura. O valor da cultura erudita, popular ou de massa
não é ontológico, pois os valores lhes são atribuídos. E tais valores são arbitrariedades que se impõem a
partir das relações sociais que se estabelecem no campo das produções culturais, uma vez que a sociedade
se organiza de modo que determinados grupos legitimem e consagrem autores e obras, ordenando-os
como alta cultura, cultura popular e cultura de massa. Sobre esta questão ver: BOURDIEU, P. “As regras
da arte: gênese e estrutura do campo literário”. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 e ELIAS, N.
“Mozart: Sociologia de um gênio”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
41
irracionalismo no cenário intelectual brasileiro e internacional. Para autor só a
razão liberta, por isso ele propõe um novo iluminismo racional e crítico, ao
mesmo tempo, capaz de lutar contra o irracionalismo, que se manifesta na
idéia de que a cultura de massa possa ser comparada à cultura erudita, pois
segundo este autor:
Americana ou brasileira, a cultura de massas funciona
como kitsch, como lixo, como narcótico, do mesmo modo
que a alta cultura, nacional ou estrangeira, funciona como
fermento crítico, como fator de reflexão, como instrumento
de autotransformação e transformação do mundo.
(ROUANET, 1987, p.128)
Portanto, para Rouanet há fronteiras muito bem definidas entre cultura
de massa, cultura popular e cultura erudita.
Por isso, o autor acentua a
necessidade de dessacralizar a cultura de massa, desvinculando-a da cultura
erudita, cujo caráter crítico e revolucionário é rejeitado por uma tendência
antielitista e irracional, desvinculando-a da cultura popular, que inclusive
precisaria ser resguardada da cultura de massa.
16
Durante o governo do presidente Collor de Melo, entre 1991 e 1992 Rouanet foi secretário de cultura e
criou em 1991 a Lei que tem o seu nome, de incentivo à cultura.
42
1.4 Em Defesa da Cultura de Massa
Apesar das críticas à cultura de massa (presentes na idéia de que a TV
é difusora de alienação, exige pouco ou nenhum esforço na fruição e sua
inferioridade de valor) estarem relacionadas à ausência de estudos sobre ela,
pois não motivaram os pesquisadores a buscar outras razões para a TV, não
poderíamos deixar de observar que há autores que sublinharam aspectos
positivos.
Em resposta à primeira peça de acusação, que relaciona a cultura de
massa à alienação, ressaltadas por Adorno e Horkheirmer, Eco (2000) não
nega veementemente a possibilidade de alienação, entretanto, crê que o
público possa reapropriar o conteúdo recebido diversamente, ou seja, que de
um conteúdo a princípio alienador, o espectador possa reaproveitá-lo
criticamente, emancipatoriamente, já que ao nível dos valores culturais, se
verificam processos de conhecimento progressivo, que uma vez abertos, não
são mais controláveis por quem os desencadeou.
Martín-Barbero afirma (2001) que não pode-se dissociar o trabalho dos
frankfurtianos do contexto social em que estavam inseridos e acentua que com
o nazismo, o capitalismo deixou de ser visto apenas como economia e se
evidenciou também na cultura e na política. Por isso, os autores que assistiram
à utilização dos meios de comunicação de massa para a disseminação de uma
ideologia torpe e desumana, não puderam mais ver outros aspectos dos “mass
media” além daqueles relacionados à ideologia capitalista dominante. Por isso,
assim como Eco, Martín-Barbero afirma que há brechas na recepção dos
meios de comunicação de massa.
Por exemplo, apesar de tais meios
43
veicularem a idéia de um mundo perfeito, nem por isso deixa de haver conflito,
desconforto e insatisfação social. A relação entre o público e o meio não é
linear e uniforme conforme acentuaram os apocalípticos.
A vitória de um
partido de esquerda no Brasil poderia ser ilustrativo também neste sentido17.
Em relação à segunda peça de acusação à cultura de massa, isto é, a
superficialidade na fruição que a cultura de massa proporciona, apontada por
Adorno e Horkheimer, Martín-Barbero (2001), sem entrar no mérito do que seja
superficialidade ou profundidade no gozo da cultura de massa, lamenta o fato
destes autores não terem se aberto a outras formas de apropriação da cultura
de massa. Martín-Barbero critica o aristocratismo cultural de Adorno, que não
o deixou perceber a pluralidade de modos de fazer e usar a arte, depois que
ela se tornou acessível ao grande público, conforme pode-se observar no
trecho a seguir:
A afirmação não é minha, estou apenas citando
Habermas: a experiência que Adorno procura resguardar
é a que vem “da leitura solitária e da escuta
contemplativa, quer dizer, a via régia de uma formação
burguesa do indivíduo”. Por isso, ao descobrir a fratura
histórica dessa cultura, Adorno pensa que tudo está
perdido. Só a arte mais elevada, a mais pura, a mais
abstrata poderia escapar da manipulação e da queda no
abismo da mercadoria e do magma totalitário. (MARTÍNBARBERO, 2001, p.91)
Martín-Barbero acentua que a arte que saiu do pedestal burguês e se
encarnou na cultura de massa, tornando-se acessível ao homem comum,
continua oferecendo possibilidade de criação entre seus novos consumidores.
17
BARBERO, J. TVCULTURA. São Paulo, 03 de fevereiro. 2003. Entrevista concedida a Paulo Markun
no programa Roda Viva, que é retransmitido pela Rede Brasil.
44
Com a reprodutividade da arte e por conseguinte a sua dessacralização,
Adorno e Horkheimer não observaram que ela não perdia a sua capacidade
reflexiva. Neste sentido, segundo Martín-Barbero (IDEM) Benjamin teve um
pouco mais de sensibilidade, ao perceber por exemplo, que a fotografia só
poderia existir enquanto arte com possibilidade de ser reproduzida, o que não a
diminuía enquanto arte nem impedia sua função crítica. Benjamin conjuga
atividade crítica com prazer artístico, com isso este autor iluminou a acusação
imposta à indústria cultural, de que ela não tenha mais nada a dizer além de
propagar os valores do sistema capitalista ou contar inverdades.
Ainda sobre a fruição dos produtos da cultura de massa, Eco (2000)
ressalta a existência de três níveis de cultura (alto, médio e baixo), que por sua
vez não representariam três graus de complexidade ou de valor. Por isso, o
fato de um produto da cultura de massa (identificado como médio) exigir menos
esforço intelectual para a sua fruição não diminui o seu valor estético e o seu
caráter criativo quando comparado à cultura erudita (identificada como alto).
Estes três níveis se entrecruzam. O que deve ser levado em consideração,
caso se deseje uma melhoria nos “mass media”, é a possibilidade de que todos
os indivíduos possam fruir de todos os níveis de cultura (alto, médio e baixo),
ainda que nos deparemos com os entraves causados pela diferenciação na
educação destes indivíduos, o que por sua vez, se transforma numa questão
de ordem política e não ontológica (relacionado aos consumidores).
Em resposta à terceira acusação à cultura de massa, que diz respeito à
inferioridade de valor dos seus produtos, muitas vezes relacionados ao “kitsch”,
45
Moles no livro “O kitsch18”, salienta que ele está ligado necessariamente à arte,
mas antes de ser um estilo deste ou daquele movimento, ele é um atitude, um
fato social e está presente em vários movimentos estéticos, inclusive nos
considerados mais eruditos. O “kitsch” é uma relação dos homens com as
coisas, muito mais do que as coisas em si.
O “kitsch” tenta aproximar o
homem de coisas com as quais não se aproxima, daí sua perspectiva
enganadora. Por isso, como exemplos de “kitsch”, Moles se refere da escultura
de anjinhos barrocos do quarto do rei Luís II Wittelsbach da Baviera ao
“souvenir” da Torre Eifel. Moles desmistifica a idéia de que o “kitsch” seja um
traço exclusivamente característico da cultura de massa, pois ele está presente
em todas as artes. Deste modo, vemos desarticulada a idéia de que o “kitsch”
está necessariamente associado à cultura de massa, assim como a arte está
necessariamente associada à cultura erudita.
Quanto à inferioridade da cultura de massa, Muniz Sodré, que tem se
dedicado seriamente ao estudo da televisão desde a década de 70, no livro “A
comunicação do grotesco: um ensaio sobre comunicação de massa no Brasil”
(1988) acentua que “refinamento” e “vulgaridade” muitas vezes são termos
utilizados para sintetizar a oposição entre alta cultura e cultura de massa. Para
o autor, tal oposição seria um despropósito, uma vez que a cultura erudita e a
cultura de massa não estão em pólos tão distantes, pois os códigos da alta
cultura e da cultura de massa são essencialmente os mesmos. A distinção
entre elas está no fato de que a cultura de massa necessita de adaptação às
classes populares para atender ao seu caráter industrial, mercadológico, que
18
Em “O kitsch” (1986) de Moles, a definição do termo não se dá de uma só vez, mas ao longo do livro
que o descreve também com imagens (fotografias, pinturas e desenhos).
46
por sua vez não é demeritória. A cultura de massa é criativa e não depende da
criação da cultura elevada ou de uma adaptação de seu código. Até porque,
muitas vezes, o que se veicula na cultura de massa pode ser posteriormente
assumido pela classe burguesa como produto comparável ao da alta cultura.
Quando isto ocorre, o argumento da oposição qualitativa entre ambas se
desmancha no ar. Para explicitar este argumento, Muniz Sodré menciona o
caso de Pixinguinha, músico e compositor da música popular brasileira, que por
ser comparado a Johann Sebastian Bach, músico clássico alemão, acabou
sendo assumido pela elite.
Em síntese, segundo Muniz Sodré (IDEM) não há diferença ontológica
entre os códigos da cultura elevada e da cultura de massa. O que de fato pode
existir é o desprezo de algumas pessoas da elite em relação aos produtos da
cultura de massa disfarçado numa concepção burguesa de cultura.
47
1.5 Conclusões
Neste capítulo, observamos que muito embora haja no Brasil 145
milhões de telespectadores existem poucas pesquisas sociológicas sobre o
tema da televisão. Diante disso, discuti os possíveis motivos que a levaram a
ser tão pouco estudada, ressaltando que a pesquisa sociológica sobre a
televisão não devia ser deixada de lado haja visto a importância que a TV
assume como veículo de informação e meio formador de consciências e
sobretudo como espelho em que a sociedade pode se ver, pois ela é difusora
de representações sociais.
Para compreender a escassez de estudos sobre a TV apontei os
seguintes motivos: 1) a atitude de repulsa e de encantamento dos estudiosos
em relação à TV, que para alguns autores tornou-se um importante instrumento
de consagração na sociedade; 2) algumas dificuldades conceituais e teóricas
relacionadas à construção do objeto de pesquisa e finalmente, 3) as críticas
severas feitas à cultura de massa (como fonte de alienação na sociedade
capitalista, como pouco exigente no que diz respeito à fruição e como inferior
comparada à cultura erudita e à cultura popular), que teriam desmotivados os
pesquisadores. Mostrei ainda sobre este último ponto, que alguns estudiosos
não viram a cultura de massa unicamente sob aspectos negativos, e que
respondendo à questão da alienação através dos “mass media”, crêem numa
reapropriação do conteúdo recebido e até enfatizam a possibilidade de criação
frente a eles, outros ainda ressaltam a inexistência de fronteiras entre alta
cultura, cultura erudita e cultura de massa, que por conseguinte responderia às
48
críticas relacionadas à inferioridade do valor da cultura de massa e à exigência
de pouco esforço na fruição de seus produtos culturais.
No capítulo seguinte descreverei o programa de maior sucesso de
audiência no Brasil nos últimos tempos, o Big Brother Brasil, onde investigarei
que elementos este programa de televisão trouxe para que possamos pensar
sobre a sociedade em que vivemos.
49
CAPÍTULO II
O BIG BROTHER BRASIL
Este capítulo pretende mostrar em que consiste o programa de TV Big
Brother Brasil (BBB), cujo sucesso de público o manteve entre os cinco
programas mais assistidos da Rede Globo de Televisão de janeiro a abril de
200219. Segundo o Painel Nacional de Televisão (PNT) do IBOPE já em sua
estréia, o BBB atingiu 23% de audiência, considerado pelo instituto um
excelente índice na praça nacional, que considera a audiência nas principais
capitais do país. Num universo de 51.344.50 e amostra de 2.521 domicílios,
8.870 indivíduos, 23% de audiência eqüivalem a cerca de 2.040 indivíduos. De
acordo com o PNT durante a sua exibição a média de audiência ficou entre 20
e 30%, este último índice equivale a 2.661 indivíduos. O intuito deste capítulo
é analisar a partir da descrição do programa um aspecto bastante enfatizado
no decorrer de sua apresentação, que foi o convite feito ao telespectador para
“espiar” doze pessoas confinadas numa casa, filmadas de vários ângulos
durante 64 dias.
A suposta naturalidade dos participantes, que segundo o
programa deixariam cair as máscaras que habitualmente usam no convívio
social, foi um dos maiores apelos da propaganda e da exibição do programa,
como se a situação de confinamento tivesse feito com que eles mostrassem
sua intimidade.
Por isso, os jornais de grande circulação no eixo Rio/São
Paulo insistiram amplamente na tese de que o voyeurismo fosse uma categoria
chave para o entendimento do sucesso do Big Brother Brasil.
19
Entre os programas mais assistidos figuravam a novela O Clone, o Jornal Nacional, o Globo Repórter,
dentre outros. Estas informações estão disponíveis em: http://www.ibope.com.br/
50
O programa foi exibido de 29 de janeiro a 02 de abril de 2002 pela Rede
Globo, diariamente, começando em torno das 22 horas. A sua duração variou
de 15 minutos até mais de 1 hora. O BBB poderia ser acompanhado na TV a
cabo durante 24 horas. A descrição do programa será feita a partir do material
visual exibido na televisão aberta (durante 64 dias), do material jornalístico
extraído de jornais e revistas (publicados de janeiro a abril de 2002) e da
página do programa na “internet20” (que contém dados sobre os participantes,
as regras do programa, as votações para eliminação e a descrição de alguns
acontecimentos que marcaram o programa).
O capítulo está dividido em duas partes.
Na primeira parte,
observaremos os dois programas que antecederam a estréia do Big Brother
Brasil, para refletirmos sobre o “reality show” como objeto de competição. Na
segunda parte, entraremos no ponto central do capítulo com a descrição
propriamente dita do Big Brother Brasil, tendo como fio condutor a proposta do
programa de chamar o telespectador a “ver sem ser visto” e o que o programa
por sua vez ofereceu para ser visto ao telespectador que aceitou o seu convite.
Com isso, pretendo compreender melhor o programa que se tornou objeto de
uma disputa acirrada entre as duas maiores emissoras de TV do país, a Rede
Globo e o SBT21.
20
O site do programa é: http://www.bbb1.globo.com/
O SBT com suas 108 emissoras é a segunda maior rede de televisão do país, abrangendo 98% da
população do Brasil.
21
51
2.1 Antecedentes do Big Brother Brasil
O Big Brother Brasil foi inspirado no programa de TV holandês Big
Brother, cujo título por sua vez, foi extraído do livro “1984” (1983), do escritor
inglês George Orwel (1903-1950). No livro de Orwel, os habitantes de um país
fictício eram vigiados diariamente por câmeras (chamadas de teletelas)
espalhadas até em suas residências pelo governante da sociedade, o Big
Brother, (Grande Irmão, em português) que deste modo observava e controlava
a vida dos indivíduos.
Na ficção de Orwel, nada escapava aos olhos do
“Grande Irmão”, que não era visto, mas tudo via, tudo sabia e assim invadia a
vida privada, banindo dela os seus segredos. Com a figura do Big Brother, que
vigiava os aspectos mais íntimos da vida dos cidadãos para controlá-los e se
preciso puni-los, Orwel fazia uma crítica ao desejo de onipresença dos Estados
totalitários e à dura repressão frente a qualquer tentativa ou simples suposição
de resistência por parte dos subordinados aos regimes totalitários. Entretanto,
no final do século XX, não em 1984, mas exatamente em 1999, a ficção de
Orwel saiu das páginas do livro para servir de inspiração e título para um novo
estilo de programa de TV, o Big Brother, que atraía a audiência, instigando a
curiosidade a respeito da intimidade de oito participantes, confinados numa
casa e monitorados em tempo integral por diversas câmeras. Criado na
pequena produtora de TV holandesa Endemol (resultado da fusão dos nomes
de seus fundadores Joop Van den Ende e John De Mol), o programa cuja
fórmula vem sendo vendida para vários países desde então, tem elevado os
índices de audiência por onde passa e causado “frisson” na imprensa nacional
e estrangeira. Para se ter uma idéia na versão francesa do Big Brother, o Loft
52
Story, atingiu 10 milhões de telespectadores, chegando a obscurecer o Festival
de Cinema em Cannes e a fase final da Liga dos Campeões de futebol,
causando furor na imprensa internacional, que dedicou várias reportagens ao
país tomado pelo fenômeno do Loft Story. Com isso, ressalto que não foi
somente no Brasil que ocorreu o “frisson” em torno do programa de origem
holandesa22.
Em entrevista à Revista Época, De Mol (2001), um de seus produtores,
afirmou ter lido o livro “1984” somente após criar o programa e negou qualquer
relação séria entre este e o livro, considerando no entanto muito divertido o fato
de tomar emprestado o nome do personagem de Orwel. Despretensiosamente
ou não, o programa procurou ironizar o personagem de Orwel ao tornar seus
telespectadores em “Big Brothers”, feitas as devidas ressalvas, ressaltando a
idéia de que nada deveria escapar aos seus olhos, representados pelas
câmeras, que tudo veriam e saberiam sobre os participantes.
Segundo De Mol (2001), o Big Brother foi inspirado no projeto científico
“Biosfera 2”, construído no Arizona, nos Estados Unidos, onde numa redoma
de vidro com 12 mil metros quadrados, oito cientistas ficaram confinados de
1991 a 1993. O objetivo do projeto era construir uma miniatura de planeta
auto-suficiente e isolar seus habitantes, para testar a capacidade de convívio
dos mesmos e isolamento em relação ao mundo exterior, objetivando com isso
planejar uma futura missão espacial. No entanto, o projeto fracassou, pois os
ânimos dos cientistas ficaram exaltados e houve sérias discussões entre eles.
22
A título de ilustração citamos os dois artigos publicados no Le Monde, cuja versão francesa do Big
Brother, “Loft Story” foi destaque: RAMONET, I. “Big Brother”. Le Monde Diplomatique, junho 2001;
AUGÉ, M. “A ficcionalização da realidade”. Le Monde Diplomatique. Junho 2001.
53
A partir do projeto científico, De Mol teve a idéia de fazer um programa de TV
que unisse um grupo de pessoas desconhecidas, para ver como elas se
relacionariam e formariam grupo e sobretudo com o passar do tempo, como
essas pessoas deixariam transparecer as suas personalidades reais, opondo
interesses pessoais aos do grupo, como segundo o produtor, aconteceu com o
projeto “Biosfera 2”. Com isso, é possível dizer que o programa nasceu com a
proposta de observar a sociabilidade dos participantes e a emergência de suas
“verdadeiras” personalidades, já que para o produtor, ainda que os
participantes fossem monitorados por câmeras em tempo integral, com o
passar do tempo, na intimidade da convivência numa casa, eles se mostrariam
como são de fato e não como representam em sociedade. Deste modo, De
Mol criou o Big Brother, um programa do gênero “reality show”
(show de
realidade, em português) que tem por objetivo mostrar o convívio de um grupo
de pessoas e que portanto não tem roteiro, direção ou dramatizações. Após o
sucesso do Big Brother no canal de TV holandês “Veronica” em setembro de
1999, a Endemol em pouco tempo vendeu os direitos de reprodução do
formato do programa que pretende mostrar a intimidade dos participantes para
cerca de 20 países, como Portugal, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra,
Rússia, dentre outros.
No Brasil, a Rede Globo e o SBT entraram em contato com a produtora
holandesa, mas a princípio o programa interessou apenas a primeira emissora,
que comprou os direitos de reprodução do Big Brother. No entanto, o SBT
adiantando-se aos planos de produção da concorrente, produziu em sigilo e
54
sem divulgação prévia a Casa dos Artistas23, que seguia o mesmo estilo do
Big Brother e dele se diferenciava basicamente por selecionar 12 pessoas que
já tinham sido expostas na mídia e eram conhecidas do público.
O SBT selecionou os participantes de Casa dos Artistas a partir de uma
lista de modelos, atores e cantores sem contrato com as emissoras de TV.
Dentre os selecionados, alguns já haviam trabalhado em novelas ou em
minisséries na TV Globo, como o cantor Supla (filho da prefeita de São Paulo
Martha Suplicy e do senador Eduardo Suplicy), Alexandre Frota, Taiguara
Nazaré, Mateus Carrieri, Marcos Mastronelli e Nana Gouvea, outras eram
modelos fotográficos e atrizes como Bárbara Paz, Mari Alexandre e Núbia
Ólive, ajudante de palco de um programa de auditório como Alessandra
Iscatena, além de cantores como Patrícia Coelho e Leandro Lehart24.
O logotipo do programa era um buraco de fechadura, onde ficava
explícita a idéia de que o telespectador iria ver algo proibido, sem ser visto. A
tática utilizada pela emissora na chamada do programa deu certo, pois a Casa
dos Artistas que no início era exibida às 18 horas, depois do sucesso de
audiência, passou para o horário nobre das 21 horas, horário cuja programação
das emissoras é mais concorrida, pois é a mais assistida entre os
telespectadores, que depois de um dia de trabalho, costumam se reunir com a
família em volta da televisão. A Casa dos Artistas exibia diariamente imagens
do cotidiano dos artistas durante 30 minutos. Aos domingos o programa era
apresentado pelo proprietário do SBT e apresentador de TV Sílvio Santos, que
23
“Reality show”, exibido pelo SBT diariamente de 28 de outubro a 16 de dezembro de 2001, das 21h
até às 21h e 30 min.
55
se comunicava com os participantes num auditório, através de um telão. Os
participantes mais votados pelos colegas de programa, iam para a votação do
público. Este era formado por 20 pessoas que eram escolhidas aleatoriamente
e que indicavam por telefone a Sílvio Santos o artista que deveria ser
eliminado, além de conversar animadamente com o apresentador, dar
sugestões sobre o programa, mandar beijos e abraços para amigos, familiares
etc.
Durante os 45 dias em que ficou no ar, Casa dos Artistas exibiu
discussões, rixas, namoros, paqueras, choros por saudades, promessas de
amizade eterna entre os participantes e ocupou espaço nos cadernos de TV e
de cultura de vários jornais e revistas, muitos dos quais eram lidos e
comentados por Sílvio Santos entusiasticamente no programa ao vivo.
Com Casa dos Artistas, o SBT alcançou índices de audiência recordes
na história da emissora e quebrou a hegemonia de audiência do programa
Fantástico25 da Rede Globo por vários domingos consecutivos. O êxito do
programa pôde ser comprovado já em sua estréia, que mesmo sem ter sido
divulgada venceu o Fantástico com média em São Paulo de 33% de audiência
contra 25% do programa dominical.
No domingo seguinte (04/11) o SBT
venceu com 37% de audiência contra 29% a emissora concorrente e no
domingo subsequente (11/11) a Casa dos Artistas venceu com 39% de
audiência a Rede Globo que teve 26% 26.
24
Além da disputa por 300 mil reais, os participantes recebiam cachês que variavam de 20 mil a 80 mil
reais e em seus contratos havia uma cláusula de lucro cessante, isto é, caso o concorrente desistisse do
programa, perderia o cachê.
25
Programa jornalístico exibido pela Rede Globo de Televisão aos domingos por volta das 20 horas.
26
Estes dados referem-se à medição de audiência do IBOPE na Grande São Paulo, cuja amostra é de
aproximadamente 750domicílios, o que eqüivale a 2.800 indivíduos.
56
A Casa dos Artistas foi o primeiro programa que quebrou a liderança da
audiência de 28 anos do Fantástico, chamando a atenção das pessoas que
escrevem sobre a televisão nos jornais, que noticiaram amplamente a primeira
queda de audiência do programa em quase três décadas de exibição na estréia
de Casa dos Artistas e com isso, passaram a observar outras quedas diárias
dos programas da Rede Globo, que por sua vez tentava reorganizar os seus
horários para não se deixar vencer pela concorrência.
Casa dos artistas
manteve bons índices de audiência no decorrer de sua apresentação, tendo a
liderança em todos os domingos e lançando estratégias para continuar
mantendo a audiência, como por exemplo, adaptando o horário de seus
comerciais para que entrassem no ar no mesmo horário em que a Rede Globo
exibia os seus. Em seu encerramento, o programa do SBT durou cerca de 4
horas, com o melhor desempenho em termos de medição de público da história
da emissora, com média de 47 % de audiência no IBOPE, contra 18% da Rede
Globo (CASTRO, CROITOR, MATTOS, 2001).
A disputa entre as duas maiores emissoras de televisão - a Rede Globo
e o SBT, em torno da audiência e dos direitos autorais do programa holandês
Big Brother, antecedeu a estréia do Big Brother Brasil, e teve uma ampla
divulgação nos outros veículos de comunicação. O sucesso de audiência de
Casa dos Artistas deu início a uma disputa jurídica entre o SBT e a Rede
Globo, que por adquirir os direitos autorais do Big Brother, acusou a outra
emissora de plágio do programa que iria lançar baseado nos moldes do
programa holandês, isto é, acusou o SBT de imitar fraudulentamente o BBB, já
que o SBT havia conhecido o formato do programa holandês. A emissora de
57
Sílvio Santos por sua vez, alegando não poder haver plágio de um programa
que a Rede Globo sequer havia produzido, acusava a emissora concorrente de
monopolista.
Entretanto, através de liminar concedida pelo juiz da 4ª Vara
Cível de Osasco, Paulo Campos Filho, a exibição da Casa dos Artistas foi
suspensa três dias após a sua estréia e foi fixada uma multa de 200 mil reais
por dia, caso a decisão da justiça não fosse cumprida (CASTRO, 2001c). O
SBT cumpriu a decisão e o programa foi suspenso do ar em 31de outubro e 1º
de novembro de 2001, mas entrou com um recurso e o desembargador Marcos
Vinícius dos Santos Andrade, da 5ª Câmara do Direito Privado do Tribunal de
Justiça de São Paulo, cassou a liminar que proibia a exibição do programa,
concluindo que idéias e métodos não têm proteção autoral na legislação
brasileira e que os argumentos da Rede Globo eram insuficientes para
caracterizar o plágio. Segundo o desembargador Andrade, seria caracterizado
plágio se houvesse cópia de roteiro, o que é impossível em se tratando de
atrações caracterizadas como shows de realidade, que não têm roteiro. Para o
desembargador, houve apenas a captação da idéia central do programa
holandês Big Brother, o que não seria um problema, haja visto que a idéia
central do programa já havia sido explorada anteriormente por Sartre na peça
“Huis Clos” e no já citado livro de Orwel. A Rede Globo recorreu junto ao
Tribunal de Justiça de São Paulo, com um pedido de mandado de segurança
impetrado contra a decisão do desembargador Andrade, que foi julgado
improcedente. Diante disso, a Casa dos artistas pôde ser exibida sem
problemas (CASTRO, 2001d).
58
A disputa entre a Rede Globo e o SBT mostra como no Brasil o “reality
show” criado por De Mol se tornou objeto de competição e busca de audiência
entre as emissoras. Diante disso, podemos observar com o sociólogo George
Simmel a competição como um dos valores que caracteriza a sociedade
moderna. A competição tem como principal característica o fato de evocar um
conflito indireto, onde não há interesse em destruir o concorrente (SIMMEL,
1983). Por isso, a disputa assume uma tonalidade diferente e interessante do
ponto de vista sociológico.
Segundo Simmel (IDEM) há duas formas de
competição. Uma delas é aquela em que a vitória sobre o concorrente não
significa nada em si mesmo, mas apenas uma primeira necessidade. É o caso
por exemplo do indivíduo que consegue desacreditar o concorrente, sem no
entanto, isto significar que ele possa lucrar com isso, atraindo para si os
clientes do adversário. Neste sentido, suponho que o processo que a Rede
Globo moveu contra o SBT caracteriza esta forma de competição, onde a
emissora colocou-se frontalmente contra a outra, sem obter necessariamente a
atenção dos telespectadores da concorrente. Outra forma de competição é
aquela em que cada participante busca a meta por si mesmo, sem usar a força
contra o adversário. Dito de outro modo, cada parte combate o adversário sem
se voltar contra ele, sem tocá-lo e até aproximando-se dele. Suponho que a
disputa pela audiência entre as emissoras, que se traduziu na reordenação dos
intervalos comerciais, nos artifícios para a conquista e manutenção da atenção
do público e nas experimentações, caracteriza esta segunda forma de
competição, onde os concorrentes não se opõem frontalmente, mas ao
contrário, se aproximam e até se imitam. Na medida em que o Big Brother foi
59
reproduzido pelo SBT, pela Rede Globo e posteriormente até por uma terceira
emissora27, podemos observar o quanto cada concorrente tentou aproximar-se
do outro e com isso se vê reforçada uma antiga frase do comunicador e
apresentador de programas de auditório, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que
dizia que “na TV nada se cria, tudo se copia28”. Além da busca pela audiência,
definida por Bourdieu (1997) como “mentalidade índice de audiência”, que
apresenta-se como valor máximo em torno do qual as emissoras organizam
sua programação, a competição gera uma padronização que reflete a repetição
entre as concorrentes do mesmo tipo de programa, com roupagens diferentes.
A competição exige concentração consciente sobre a vontade, o
sentimento e o pensamento dos semelhantes, conforme acentua Simmel:
Vezes sem conta a competição consegue o que
habitualmente só o amor pode fazer: adivinhar os mais
íntimos desejos do outro, antes mesmo do outro ter
consciência deles.
A tensão antagônica com seu
concorrente afia a sensibilidade do comerciante para as
tendências do público até o ponto da clarividência, em
relação a futuras mudanças no gosto, no estilo, nos
interesses do público – não afia somente a sensibilidade
do comerciante, mas também a do jornalista, do artista,
do livreiro, do político. (Simmel, 1983, p.139)
Com a disputa entre as emissoras foi possível observar a concentração
das mesmas em atrair os telespectadores. Por um lado observei a perspicácia
do SBT em apostar na criação de um programa que ao invés de confinar
desconhecidos da mídia, expunha a vida de artistas, visando atrair o público.
27
O “reality show” da Rede TV foi feito num apartamento, só com a presença de modelos, em 2002.
Chacrinha estreou na TV em 1956 e apresentou programas de auditórios (Discoteca, Buzina e Cassino
do Chacrinha) em várias emissoras (TV Tupi, TV Rio, TV Bandeirantes, TV Globo), sendo líder de
audiência por 30 anos. Chacrinha é considerado um dos maiores comunicadores da televisão brasileira
pela irreverência e sucesso com o público. Este ano começará a ser rodado um filme sobre a sua vida.
28
60
Com isso, a emissora agiu em função do que para ela o público gostaria de ver
e acertou, mostrando afinidade com a sensibilidade do mesmo.
E por outro
lado, observei a Rede Globo, que por sua vez não deixou por menos e lançou
no início de 2002 o Big Brother Brasil, apostando na fórmula original do
programa holandês, também saindo vitoriosa.
No caso das emissoras, a luta
para conquistar o público é acirrada e a disputa em torno do Big Brother serve
de ilustração para este fato, pois cada emissora tentou se aproximar ao
máximo do público, ainda que para isso tenham se aproximado entre si, e
reatualizando a antiga fórmula de que na TV tudo se copia.
Este episódio da disputa entre as emissoras de TV é bem representativo
das formas de competição que Simmel discute.
A competição, antes de
afastar, como muitas vezes se pensa, reúne os concorrentes. Ao oferecer e
vender seus produtos, os concorrentes fazem de tudo para adivinhar os
desejos de seus clientes, neste caso, dos telespectadores. Observei que se
por um lado há o trabalho dos produtores de TV em atrair o público, por outro,
há o público que respondeu positivamente ao empenho das duas emissoras,
pois de alguma forma a Rede Globo e o SBT se aproximou do desejo de seus
telespectadores.
61
2.2 O Programa Big Brother Brasil
A grande novidade que o Big Brother Brasil trazia às produções da Rede
Globo era o fato de confinar 12 indivíduos numa casa, filmados 24 horas por
dia e chamar os telespectadores para “espiar” a vida daqueles, que ficavam
sem acesso a telefone, jornais, televisores, cartas e “internet”.
Haviam 60
microfones na casa e 40 câmeras que filmavam todos os cômodos, inclusive o
banheiro, que era filmado mais restritamente. A cada semana uma pessoa
deixaria o programa a partir da escolha dos espectadores e os finalistas
deveriam permanecer na casa num total de 64 dias.
O contato dos
participantes com o mundo exterior era feito com a produção do programa, que
se comunicava com eles sem serem vistos, e com o apresentador e animador,
o jornalista Pedro Bial, que falava com os concorrentes através de um telão
posto na sala de estar, nos programas ao vivo, que ocorria às terças-feiras, aos
sábados e domingos. No restante da semana Bial apenas narrava o programa,
sua imagem não aparecia na tela da TV, nem ele era ouvido pelos
participantes. Apenas os telespectadores o ouviam narrar os acontecimentos
que marcavam o programa29.
A casa do BBB possuía uma sala ampla que subdividia-se em sala de
estar, de jantar e cozinha e na parte externa possuía uma área de serviço,
piscina, redes e uma banheira de hidromassagem. Havia um quarto preparado
especialmente para o líder, com uma cama de casal e um “frigobar” com
guloseimas. Um cômodo estreito com uma poltrona reclinável era chamado de
“confessionário”.
29
Na religião católica, confessionário é o lugar onde o
Alguns artistas foram convidados a entrar na casa, como os apresentadores Jô Soares, Xuxa e Ana
Maria Braga, cujas participações foram exibidas pelo “Domingão do Faustão”, nas tardes domingos.
62
sacerdote ouve as confissões dos fiéis. No BBB “confessionário” era o local
em que os participantes se dirigiam individualmente ao público, votavam nos
colegas para a eliminação, ou conversavam em sigilo com a direção do
programa ou com um psicólogo, que ficava à disposição dos participantes, que
deveriam ir uma vez por dia ao confessionário.
O pacote básico de
alimentação era arroz, feijão e goiabada.
Ao todo foram mais de 500 mil inscritos para a seleção do programa,
que sabiam apenas que iriam ser vigiados por várias câmeras numa casa, mas
apenas 12 foram escolhidos. É interessante ressaltar que apesar da grande
campanha publicitária para a seleção, com a exibição de vários “outdoors” nas
cidades e anúncios na televisão, além da divulgação das inscrições via
“internet”, não houve o processo seletivo amplamente anunciado.
Em
entrevista à Revista Playboy (2002), o diretor do Big Brother Brasil,
José
Bonifácio de Oliveira, chamado de Boninho, afirmou ser inviável selecionar as
pessoas baseando-se unicamente em dados pessoais como nome, idade e
telefone. Diante disso, o diretor reuniu a sua equipe e buscou indicações entre
amigos e afins.
Caso o candidato fosse interessante passaria para uma
segunda etapa, uma bateria de perguntas via telefone. Se aprovado, deveria
enviar uma fita de 10 minutos de duração se apresentando. Depois disso, era
realizada uma entrevista com o candidato.
Para Boninho (IDEM), a escolha não foi centrada na personalidade
individual dos participantes, mas no resultado que o indivíduo podia render em
grupo. Para esclarecer a intenção do programa, o diretor afirmou:
63
O que se quer são figuras interessantes, gente que sirva
para fazer uma boa festa. Tem que ter a barraqueira30, o
cara engraçado e por aí vai. São as reações dessas
pessoas juntas – os conflitos, as armações, as tensões, o
humor e os romances – que farão a receita. ( BONINHO,
2002).
A arbitrariedade na escolha dos participantes fez com que dos 500 mil
inscritos, dois mil organizassem um “site” contra a falta de neutralidade na
seleção (VALLADARES, 2002a). Segundo informações encontradas no “site”,
os participantes do BBB tinham contatos com as pessoas que trabalham na
Rede Globo ou já haviam eles próprios trabalhado na emissora, o que foi
fundamental para a seleção, que ocorreu em 2001, antes do programa
começar a ser divulgado pelos meios de comunicação.
As inscrições via
“internet” foram uma fraude, já que foram criadas somente para divulgar o
portal da Rede Globo e não para selecionar participantes31.
Seis homens e seis mulheres foram selecionados para participarem do
Big Brother Brasil. A maioria era de cor branca, havendo apenas dois negros
de sexos diferentes. A média de idade girava em torno de 25 anos. Havia um
participante casado e uma divorciada, os demais eram solteiros. A maioria dos
participantes era carioca ou paulista, mas havia também uma paraibana, uma
paranaense e um angolano que moravam no Rio de Janeiro e um baiano que
morava em Salvador.
Entre os homens figuravam um cantor, um baiano falastrão, um modelo
de 40 anos, um cabeleireiro afrancesado, um “playboy” da zona sul carioca e
um dançarino musculoso e ignorante (inculto).
Entre as mulheres estavam
uma “funkeira” evangélica, uma empresária falida, duas modelos, uma moça
30
No uso corrente “barraqueira” é uma pessoa que cria confusão.
64
que usava “piercings” e tatuagens e finalmente uma loira de corpo escultural.
Os participantes de um modo geral assumiram os tipos que caracterizavam e a
partir deles criaram pequenas tramas que alimentavam o programa
diariamente.
Cada um assumia uma característica que se sobressaía em
relação às demais e que podia ser ligada à sua profissão, religiosidade,
sexualidade ou plástica. As profissões das mulheres não foram tão exploradas
quanto as dos homens. Algumas mulheres nem disseram o que faziam antes
do Big Brother Brasil e para àquelas que falaram não foi dado nenhum enfoque
especial.
Isto já não ocorreu em relação aos homens, pois quatro deles
tiveram momentos especiais para exerceram as suas profissões: um ateliê para
Adriano pintar, um palco para André cantar, outro para Kléber dançar e um
salão de cabeleireiro para Sérgio.
Tanto os homens entre si, quanto as mulheres tinham o biotipo
semelhante. Todos eram magros à exceção do cantor, que era um pouco mais
gordo. As mulheres além de magras, tinham o quadril mais largo que o tronco,
que se alinhava com as cinturas finas, formando um padrão na casa do Big
Brother Brasil, o padrão associado à mulher brasileira.
As roupas dos homens seguiam um mesmo padrão, ou seja, vestiam
calças, bermudas e camisetas regatas, a exceção era o dançarino Kléber, que
vestia-se constantemente de sunga, canga ou roupão.
As roupas das
mulheres variavam mais que as dos homens, mas de um modo geral a maioria
vestia roupas justas e curtas, sejam “shorts”, saias ou vestidos. Duas mulheres
se distinguiam do grupo. Uma delas (Estela) vestia-se basicamente de calças
compridas e blusões e a outra (Vanessa) não deixava de usar as roupas
31
O “site” de protesto é: http://www.bigbro.hpg.ig.com.br/conteudo.htm
65
curtas, mas às vezes lançava mão de saias compridas e faixas estampadas no
cabelo, formando um estilo mais afro-brasileiro, que se destacava na
uniformidade das roupas femininas.
O corpo, a sensualidade, o flerte e a
expressão física foram altamente valorizados no programa.
Quais foram afinal os tipos selecionados pelo diretor do programa que
na sua concepção fariam a receita de sucesso do Big Brother Brasil?
Caetano, o “mais velho” do grupo, tinha cerca de 40 anos, era modelo
fotográfico e antes de entrar para o BBB havia apresentado programas de
pouca projeção na TV aberta e fechada.
Durante uma das provas, que
consistia em ficar dentro de um carro sem beber, dormir, comer e urinar, o
participante esqueceu-se de que não poderia urinar e urinou num balde, sendo
imediatamente desclassificado na prova. Loiro de olhos azuis, o modelo fazia
poses no espelho e não chegou a se envolver em nenhum conflito, mas
também não se destacou, sendo indicado para a eliminação logo na primeira
semana.
Ao ser eliminado, disse aos outros participantes a seguinte frase
solta: “Lembrem-se do lance da paz no mundo, não é brincadeira isso não! É
sério o que eu tô falando”. A frase solta na despedida é representativa da
desarticulação do modelo com o restante do grupo32.
Xaiane, a “loira escultural” foi logo eliminada do programa. Dizia que
tinha cinco empregos: secretária executiva, “webdesigner”, “hostess”, “Disc
Joquey” (DJ) e artista performática, para compensar suas despesas com a
faculdade de comunicação. Entretanto, estes aspectos de sua vida não foram
abordados no programa, que focalizou a proporção e beleza de suas formas,
32
Caetano foi a única pessoa a cuidar de uma cadelinha posta no início do programa para conviver com o
grupo. Após a sua saída, os participantes não cuidaram do animal, que foi retirado do programa.
66
comentadas pelos homens da casa.
Namorou Kléber e diferentemente do
outro casal formado no BBB Sérgio e Vanessa, apresentou-se com o parceiro
de forma mais ousada sexualmente. Na semana que se seguiu ao romance, a
participante foi eliminada do programa, sendo a primeira mulher a deixá-lo. E
na final do BBB, seu romance voltou a ser comentado já que a participante
exibia uma camiseta com a seguinte frase: “No meu modo de vista, faz parte
Bambam campeão”.
Bruno era o “playboy” da zona sul carioca. Deixava clara a sua condição
social de classe média alta, a sua “cultura” (já que havia trabalhado como
modelo na Europa e em Nova York) e arrogância. Tanto que sobre o dançarino
Kléber, disse: “Ele é burro, não sabe falar porque é burro mesmo, entendeu?
Não quis estudar”. O participante tinha um sotaque tipicamente carioca e disse
durante o programa já ter namorado brevemente ou “ficado” conforme a gíria,
com uma modelo internacional. O acontecimento mais marcante que o
envolveu foi quando desejou beber leite condensado e descobriu que havia
acabado, por causa de Cristiana que havia tomado tudo. O participante se
exaltou e xingou Cristiana, que retribuiu as acusações do mesmo modo
grosseiro, chorando. Depois disso, Bruno foi o terceiro eliminado no programa.
Cristiana se destacou como a evangélica que freqüentava bailes “funk” e
mostrou-se uma pessoa extrovertida, cantando e dançando ao som das
músicas, muitas vezes de duplo sentido, isto é, com conotação sexual.
A
participante levou uma bíblia e rezou algumas vezes, fazendo jus ao fato de ser
evangélica. Quando exaltada, a “funkeira-evangélica” falava palavrões e por
isso foi tida como a “desbocada”, embora não fosse a única pessoa a usar tais
67
recursos para se expressar33. Por mostrar-se como uma pessoa que fala o que
pensa, disse num dos episódios: “Eu falo o que eu quiser, na hora que eu
quiser”. Cris, como era chamada pelos colegas, foi o pivô do primeiro grande
conflito da casa, onde tentou influenciar a “amiga” Alessandra (quando líder)
para indicar para a eliminação Estela, sua outra “amiga”, o que desestruturou o
seu grupo, a “panelinha do quarto azul” e trouxe para a si a antipatia de
Adriano, que defendia Estela e a sua eliminação na quarta semana de
programa.
Helena era modelo fotográfico, como Vanessa, mas diferente desta, a
concorrente expressava suas opiniões e não conquistou a simpatia dos outros
participantes, sendo três vezes indicada para a eliminação. É de Helena a
frase a seguir:
“Eu sou uma pessoa que gosto sempre de expor a minha
opinião, eu não fico em cima do muro, eu sempre me posiciono diante das
situações”. Helena não mostrava muita naturalidade com as câmeras, pois
procurava-as, passando certa artificialidade nas suas falas e atitudes, diferente
dos outros participantes que passavam a idéia de terem abstraído as câmeras.
A “loira insossa” tentou se enturmar, mas não conseguiu, pois o fato de ir várias
vezes para o “paredão34” por escolha dos colegas a colocava numa situação
difícil dentro da casa, isto é, de desconfiança de ambas as partes.
Ao ser
acusada de fofoqueira por Kléber, nem um dos participantes a defendeu e o
33
Nos momentos em que os participantes usavam tais recursos para se expressar, os produtores exibiam
um som específico para impedir que o telespectador os ouvisse, o “pii”. Contudo, nem sempre os
telespectadores não ouviam os palavrões, sobretudo nos programas ao vivo.
34
“Paredão” foi o nome dado ao dia da eliminação de um concorrente, que acontecia às terças-feiras. O
termo foi cunhado pelo participante Adriano e adotado pelos demais participantes e pelo próprio Pedro
Bial. Tratava-se de um trocadilho entre o dia de eliminação de um participante e o paredão de
fuzilamento cubano.
68
líder (Kléber) a escolheu para o seu último “paredão”, sendo a quinta pessoa a
deixar o programa.
O artista plástico Adriano possuía um discurso que girava em torno da
sinceridade ou da falta dela, sendo dele a seguinte frase: “Sou sapo, na pele de
sapo”. Com ela, o “baiano falastrão” evocava a sinceridade, reafirmando que
não havia fingimento em sua apresentação, pois ele era aquilo que aparentava
e não um “lobo em pele de cordeiro”, como o ditado popular.
Ele foi o
participante que mais estimulou a tensão no grupo, preocupando-se
demasiadamente com a prova de líder, com a indicação para o “paredão”, com
as tramas sobre as escolhas individuais, enfim, com o que fazia parte do jogo.
O “baiano falastrão” dava a impressão que falava o que viesse à cabeça, por
isso, ganhou alguns desafetos e afetos no decorrer do programa. Didi, como
era chamado pelos colegas, era candomblecista e às quintas-feiras, dia de seu
orixá, vestia-se com as cores da entidade, rezava bastante, acendia velas
coloridas para os orixás e certa vez mostrou uma caixinha, onde depositava
fios de cabelo dos participantes, para segundo ele mesmo, fazer trabalhos. Em
seu último “paredão” pediu que todos os atabaques da Bahia tocassem para
que ele ficasse no programa. O participante foi o sexto eliminado.
Estela era a única mulher que usava óculos, tatuagens, “piercing” na
língua e cabelos curtos. A “moça de visual alternativo” não possuía um rosto
ou corpo muito próximo do padrão de beleza da casa e por vestir-se de modo
masculinizado destoava das outras mulheres. Nos primeiros dias do programa,
disse sentir-se incomodada por causa disso, mas foi consolada por outro
participante.
Evitava discussões, fofocas e intrigas, mas sempre tomava
69
posições, procurando esclarecer os acontecimentos. Depois de ser indicada
para o “paredão”, a videografista teve uma forte crise de choro na sala de estar
no meio do grupo, que assistiu atônito aos seus soluços e ao desabafo em
torno do fato de ver sua integridade e sinceridade ser colocada à prova pelos
colegas de confinamento. No seu segundo “paredão” Estela arrependeu-se de
não ter sabido jogar, de ter sido muito sincera, ingênua e sentindo-se magoada
pela indicação disse: “Um bom jogador jamais fala o que passa na cabeça.
Um bom jogador omite, entendeu?
E é uma coisa que eu não sei fazer”.
Estela foi a sétima eliminada.
O que marcou a participação de Alessandra no programa foi a bulimia,
doença escondida segundo a mesma até de sua mãe, mas partilhada por
milhões de espectadores que assistiram suas freqüentes provocações de
vômitos. Leka, como era chamada pelos colegas, era magra, mas fazia regime
frequentemente, o que é comum entre as pessoas que sofrem de bulimia,
assim como o fato de provocar vômitos e diarréias. Para dividir sua angústia,
em tom jocoso, disse: “Meu sonho de consumo é uma diarréia com vômito35”.
A participante era extremamente expansiva e embriagou-se algumas vezes
durante as festas. E quando isto acontecia, a participante perdia o controle,
tornando-se mais ousada.
A morena por aparentemente flertar com o
apresentador, foi chamada em tom de brincadeira de “namorada virtual” e
quando foi líder, de “Leka, a Rainha Louca” pelo apresentador, onde fora
destacada como uma mulher sem meio-termo, exagerada seja quando bebia,
discutia ou se divertia.
A “bela e louca mulher sem meio termo” mostrou ser
70
amiga de todos, mas deu início ao conflito que desarticulou o grupo do quarto
azul ao indicar suas duas “amigas” (Cristiana e Estela) para a eliminação. Era
a participante que mais demonstrava preocupação em relação ao que seus
pais ou as pessoas de um modo geral pensariam dela ao sair do programa36.
Alessandra foi a oitava pessoa a sair o programa.
Nascido em Angola, mas criado na França, Sérgio tinha como
característica principal o sotaque mesclado entre o português e o francês37. O
“cabeleireiro afrancesado” se mostrou amigo de todos e sempre disposto a
ajudar quando os colegas ficavam abatidos, não se envolvendo em confrontos
com ninguém. A questão que marcou a permanência do cabeleireiro foi o seu
romance com a participante Vanessa, que impôs algumas restrições sexuais ao
parceiro, como a abstinência. Entretanto, o participante se mostrou tranqüilo
em relação a isso, respeitando a postura da namorada.
O cabeleireiro foi
apenas uma única vez para o paredão, por opção própria para privar a
namorada de uma possível eliminação. Durante o programa os participantes
comentavam entre si e em sigilo que por uma questão de nacionalismo, um
estrangeiro dificilmente seria escolhido para ganhar o prêmio final pelos
35
As cenas de vômito propriamente dito eram omitidas, sendo exibido apenas o momento em que a
participante entrava no banheiro, já que havia uma câmera acima do vaso sanitário. Algumas vezes o
telespectador ouvia a ânsia de vômito.
36
Ao se despedir de Helena (ao vivo), Alessandra mandou um recado no ouvido dela para os pais,
dizendo que é mandada a fazer muitas coisas no programa. No dia seguinte, o líder foi excepcionalmente
escolhido pelos participantes que haviam sido excluídos. Bial de frente para Helena, a questionou sobre o
recado. Ambas disseram que se referiam às regras do programa, às provas e não a algum tipo de direção.
37
O cabeleireiro estava no Brasil de modo irregular. Por causa disto, a polícia federal foi até o programa
chamá-lo a dar explicações logo nos primeiros dias de exibição. Segundo Boninho, tanto o cabeleireiro
quanto a produção do programa não sabiam da situação de irregularidade, que foi denunciada à polícia
federal por um jornalista de um grande jornal de São Paulo. A produção liberou o cabeleireiro para que
fosse prestar esclarecimentos à polícia e voltar no mesmo dia à casa do Big Brother Brasil. Ao voltar
para o programa após o encontro com a polícia, o participante fechou-se no quarto e chorou
copiosamente. Foi a primeira cena de choro do programa, poucos dias após sua estréia. A polícia federal
permitiu que o cabeleireiro permanecesse no programa até o fim.
71
telespectadores.
O apresentador levantou esta questão para Sérgio, que
respondeu resignado: ”Eu sou um estrangeiro. Eu sou mais um, onze mais um.
Eu tô muito feliz de estar aqui, de ter tido essa oportunidade (...) num país que
eu adoro, que eu me senti quase meu”.
Diante da questão de sua
nacionalidade, o cabeleireiro afirmou que não havia nada mais justo do que
enfrentar o “paredão” e ver qual era o desejo do público, que o preteriu, sendo
o nono eliminado.
“Sou totalmente esquisito, sou totalmente maluco, faço as coisas mais
doidas”. Essa foi a frase com que André, o único homem negro, se apresentou
no programa. Homossexual, não fez de sua opção sexual uma bandeira, pois
pretendia ser visto como pessoa e não como um homossexual ou qualquer
coisa que diga respeito à sexualidade. Passava boa parte do tempo cantando,
mostrando-se uma pessoa divertida e amável. Tinha como pretensão lançar
um “compact disc” (cd), já havendo trabalhado para a banda de “reggae”
“Cidade Negra”, bastante conhecida das rádios no eixo Rio-São Paulo. Era
carismático e tinha boas relações com todos, a única exceção era o baiano
Adriano, que num determinado momento do programa passou a considerar o
cantor como falso e manipulador, justamente por estar sempre bem com todos.
O concorrente criava personagens e imitava cantoras como Clementina de
Jesus e a americana Whitney Houston, divertindo os colegas, era um “cantor
multifacetado”. Nos últimos dias do programa, raspou as sobrancelhas, pôs
uma peruca loira e criou o personagem Marcelo Márcio Leite. Ao ser indagado
por Bial sobre o personagem criado, o cantor respondeu que este foi o jeito que
encontrou de ir para o quarto amarelo, juntar-se aos outros colegas, já que ele
72
foi o único participante do quarto azul a ficar na casa até o fim. O personagem
não era diferente do próprio André, só um pouco mais irreverente quando
dançava, cantava, arrotava ou fazia caretas. Com a sua irreverência e sua veia
cômica, o cantor foi um dos finalistas do programa, conquistando o terceiro
lugar e o contrato com uma gravadora de música.
A única mulher negra no programa, Vanessa tinha como característica
principal o fato de não se envolver em nenhum tipo de conflito com os outros
concorrentes. Por causa disto e por não expressar atitudes exageradas, como
choros na presença dos colegas, bebedeiras, discussões etc. acabou vista
como uma pessoa morna e sem postura por alguns colegas no fim do
programa. Entretanto, sua permanência na casa foi marcada pela boa
convivência. A modelo ganhou a confiança de todos, dando a impressão de
não estar competindo e estar ali apenas para aproveitar o seu romance com
Sérgio. O seu sorriso era a sua marca. Para evitar constrangimentos à sua
avó, a modelo evitava contatos mais íntimos com o namorado. Isto aliás foi
uma das tramas que tomou uma proporção maior quando o apresentador
questionou a postura da modelo, que chorou e sentindo-se pressionada disse
para André: “A impressão que dá é que eu tô fazendo papel de ridícula, sabe?”.
Entretanto, Bial negou qualquer má intenção e tentou desfazer o mal
entendido. Antes porém, Vanessa teve apoio de André, que disse que ela não
tinha que “transar” ou servir de atriz de “cinema pornô” pra ninguém, e do
próprio namorado que respeitava suas razões. Mesmo sem expor cenas de
maior intimidade, a modelo “doce recatada” e seu namorado apareciam no
programa principalmente juntos, abraçados ou se beijando. Eram chamados
73
por Bial de Casal 20 do Big Brother Brasil, uma alusão ao seriado de TV
americano, exibido pela Rede Globo na década de 80. O casal do Big Brother
Brasil se manteve à parte de todas as confusões da casa, sendo uma
unanimidade entre os colegas em termos de boa convivência e juntos ficaram
entre os quatro finalistas. A disputa final foi entre Vanessa e Kléber, que foi o
vencedor.
O dançarino Kléber já havia participado do Planeta Verão, programa de
música apresentado por Xuxa Menegel nas tardes de Domingo.
Cantava
sempre a mesma música baiana, alegre e dançante enquanto ensinava
a
coreografia aos outros participantes ou dançava sozinho em frente aos
espelhos. O participante era chamado de Bambam, personagem do desenho
animado “Os Flintstones”, de Hanna Barbera, que era uma criança grandalhona
e desajeitada, mas profundamente doce e ingênua e assim como o
personagem, o dançarino também era forte, sendo o mais alto e musculoso da
casa e vestia poucas roupas.
Ex. vendedor de côcos na Bahia, Bambam
ficou conhecido no programa por seu forte sotaque do interior (de Campinas) e
pelas expressões “Faz parte” e “Tá tranqüilo” que dizia no sentido de
conformar-se com alguma prova ou situação vivida na casa, e “no meu modo
de vista”, ao expressar sua opinião sobre algo. Por causa do seu sotaque, pela
falta de instrução e pelo fato de falar incorretamente algumas palavras,
Bambam era tido como “o caipira” do grupo. Mas foi o vencedor na escolha do
público, após livrar-se de quatro indicações para a eliminação. A chave de seu
personagem pode estar nas palavras: “Eu sou filho de mineiro. Posso ser meio
bolado, mas bobo eu não sou”.
74
Os participantes dormiam na alta madrugada, não falavam de sua
história, mas sobretudo das oportunidades que poderiam surgir depois do
programa, onde ressaltavam expectativas cultivadas em torno dos ganhos
simbólicos, com a fama, que por sua vez poderia proporcionar ganhos
materiais.
Assuntos mais sérios, que envolviam política, violência ou a
situação econômica do país, por exemplo, não eram abordados. As conversas
giravam em torno dos próprios concorrentes, das suas personalidades, de
sexo, do corpo, da comida, do jogo, da aventura e das dificuldades de viver
dentro de uma casa filmados em tempo integral.
Às quartas-feiras, “pós-
paredão” eram oferecidos churrascos ou almoços especiais para acalmar o
estresse dos participantes. Aos sábados aconteciam as festas temáticas, das
quais destacamos a festa mineira, a indiana, a discoteca dos anos 80, a “blacktie” e a baiana38.
No final das festas, frequentemente alguns participantes
ficavam bêbados e não raro choravam ou ficavam mais predispostos a
discussões. Pequenas tramas e pequenos dramas que marcaram o convívio
dos jovens participantes foram exibidos com destaque: o namoro de Sérgio e
Vanessa, as limitações que ela impunha ao namoro, as mancadas de Kléber, a
bulimia da Leka, as desconfianças de Estela, as maluquices do cantor/imitador
André, a especulação do baiano Adriano sobre o próximo eliminado, os modos
de se expressar da evangélica espevitada Cristiana, as discussões e
xingamentos por causa de desentendimentos etc.
Relembrando a entrevista do Diretor do Programa Big Brother Brasil
José Bonifácio de Oliveira (2002) vimos que na sua opinião a receita do
38
Na festa baiana os participantes de roupas brancas lavaram uma escada numa alusão à lavagem da
escadaria do Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia, e dançaram ao som de atabaques tocados pelos mesmos.
75
sucesso do programa se deve a “candidatos interessantes” que fazem render
as relações em grupo. O diretor de TV não revelou exatamente o que é este
“render”. No entanto, a descrição dos tipos selecionados mostra que eles são
bem diferentes dos tipos de outras categorias sociais como operários e
trabalhadores braçais, que não aparecem no programa e também são
diferentes de alguns tipos que figuram frequentemente nas novela da Rede
Globo, tais como o grande empresário, o dono de terras, o jovem pobre
oprimido pelo patrão, que aspira à riqueza pelo trabalho, dentre outros. Entre
os participantes masculinos e femininos do programa repetem-se as mesmas
características. Os tipos que fizeram a receita do BBB são em sua maioria
jovens voltados para o mercado dos shows e dos espetáculos, com os corpos
bem modelados, que cuidam e cultivam o “visual” e querem ser conhecidos e
famosos.
São homens
e mulheres
voltados,
quase sem exceção para
profissões que têm a ver com o uso do corpo, modelos, cantores, dançarinos,
artistas plásticos, ou que cuidam de algo que faz parte do corpo como o
cabeleireiro.
Esta foi a receita de sucesso do programa.
O corpo está
presente nas pequenas tramas como no episódio do leite condensado e
relaciona-se à fome e à alimentação, aos fluidos e excrementos do corpo, ao
vômito, ao sexo, à pele. A exibição da boa forma física é essencial na imagem
que os participantes fazem de si mesmos e para os outros. Excetuando-se o
candomblé, as evocações da Bahia e o nacionalismo, que aparece
discretamente no caso da eliminação do cabeleireiro angolano, os episódios
que marcam cada um dos “personagens” estão relacionadas ao corpo,
76
evocando em geral situações ou hábitos que se dão na intimidade e desta
forma buscando manter a curiosidade do telespectador.
Nunca o corpo foi tão abertamente exibido na televisão. A exibição do
corpo na TV faz dele uma das principais vitrines da sociedade de consumo.
Para se ter uma idéia em 1990 pesquisadores da Escola de Comunicação da
Universidade de São Paulo observaram durante uma semana a programação
da Rede Globo, da Rede Bandeirantes e da Rede Manchete (extinta
atualmente) e concluíram que se uma pessoa permanecesse na frente do
televisor duas horas por dia, ao final de um ano estaria exposta a 7.446 cenas
de nudez (CHIMELLI, 2002). Neste sentido, o artigo de Afonso Romano de
Sant’Anna publicado no Jornal O Globo (2000) é interessante, já que o autor
enfatiza através da emergência dos “reality shows”, que na sociedade atual o
indivíduo prefere a vidraça ao espelho. Por isso, é possível dizer que o que
importa é mostrar-se, exibir-se em nome da fama, do dinheiro ou de qualquer
outra motivação, ao invés de olhar para si mesmo. O fenômeno dos “reality
shows” pode estar apontando para uma crise de identidade, na medida em que
para se ver reconhecido no outro (no caso dos “mass media”, em muitos
outros), o participante destes programas quis ser filmado em tempo integral por
diversas câmeras, espetacularizando o que faria parte de sua própria
intimidade.
O Big Brother Brasil explorou dramas pessoais, sexuais e aspectos
relacionados às necessidades fisiológicas, insistindo naquilo que até então não
era comum, isto é, mostrar o que seria a intimidade filmada em tempo integral,
fazendo da intimidade um espetáculo e atraindo com isso para si, a atenção
77
de uma disputada audiência. Os aspectos relacionados ao coprológico, isto é,
aos excrementos do corpo ou às necessidade fisiológicas foram bastante
enfocados, como os vômitos de Leka, os arrotos de alguns participantes, a
mania de Estela de enfiar o dedo no nariz, a referência às partes baixas do
corpo, a diarréia de André nos últimos dias do programa etc. Neste sentido, o
grotesco foi presença marcante no BBB na sua variação escatológica (por
causa da referência a dejetos humanos, secreções, genitália etc.).
O grotesco é associado ao disforme, ao desvio de norma dominante em
relação a costumes ou a convenções culturais.
O grotesco pode assumir
espécies diversas, como o teratológico, escatológico, o chocante e o crítico.
(SODRÉ, PAIVA, 2002).
Aliás, o grotesco é uma categoria marcante em
grande parte da produção televisiva: na sua variação teratológica (referente à
monstruosidades e deformações, como Hora da Verdade e Sabadaço, exibidos
pela Band, que recentemente apresentaram respectivamente um menino com o
corpo coberto por algo semelhante a escamas e uma adolescente de
baixíssima estatura, que possui uma doença cujos ossos não se desenvolvem);
na variação escatológica (referente às excreções do corpo e às partes baixas,
como as chamadas “pegadinhas” ou “câmeras escondidas” onde as pessoas
são expostas a situações vexatórias, exibidas pelo Fantástico no quadro
apresentado pela atriz Regina Casé, que flagrou recentemente mulheres
saindo do banheiro de um “shopping center” sem lavar as mãos e seguiu
também um grupo de motoristas de táxi que paravam o carro somente para
urinar na rua, por exemplo); na variação chocante (com intenções
sensacionalistas, como o programa Brasil Urgente, da Band, que exibiu
78
também recentemente o depoimento de várias moças que haviam sido
violentadas) e finalmente na variação crítica (onde intenção é provocar o riso e
a reflexão crítica sobre a sociedade, como o Casseta e Planeta, da Rede
Globo).
Estas variações podem se cruzar e estar presente num mesmo
programa. Na minha monografia de graduação em Ciências Sociais, analisei o
Programa do Ratinho com base na categoria estética do grotesco39. Observei
que o programa usando uma linguagem muitas vezes chula, através de
paródias e imitações de políticos do cenário brasileiro discute aspectos
importantes da vida política do país, que vão do descaso com a ecologia à
impunidade e desonestidade dos governos.
Neste sentido, o grotesco do
programa tem uma função crítica importante, trata-se pois do grotesco crítico,
que mostra “convenções e ideais, ora rebaixando as identidades poderosas e
pretensiosas, ora expondo de modo risível ou tragicômico os mecanismos do
poder abusivo” (SODRÉ, PAIVA, 2002, p. 69) . A diferença entre o BBB e
Programa do Ratinho é que o BBB não mostrou reflexividade sobre qualquer
assunto, pois apenas a banalidade estava presente no cotidiano exibido, que
dava a impressão de que o mundo dos participantes girava somente em torno
da competição, das provas, da convivência entre eles, enfim deles mesmos e
que a intimidade era reduzida somente à banalidade. O grotesco foi expresso
apenas como espetáculo, sem qualquer conteúdo crítico. Contudo, observo
em comum entre os dois programas é que tanto os miseráveis apresentados no
Programa do Ratinho, esmagados pela seca do Nordeste ou pela pobreza dos
39
Ver: ALMEIDA, V. E de. “A televisão da sociedade do espetáculo”. Rio de Janeiro, UERJ, 1999.
(Monografia de bacharelado em Ciências Sociais).
79
grandes centros urbanos, quanto os “sarados40” aspirantes ao estrelato do BBB
desejam momentos de visibilidade pública, ainda que os motivos sejam
diversos.
Enfim, o convite ao telespectador para ver a intimidade dos
participantes numa casa foi a novidade trazida pelo BBB, entretanto, o que ele
exibiu, isto é, jovens instrumentalizando o próprio corpo e o uso de um recorte
grotesco não é nenhuma novidade na televisão brasileira, pois trata-se de uma
categoria estética há muito conhecida pelos telespectadores, só que sem
nenhum conteúdo crítico.
40
“Sarado” é uma gíria que se refere ao indivíduo que cuida do corpo através de atividades físicas,
malhação.
80
2.3
A Proposta do BBB de levar o Telespectador a “Espiar” os
Confinados
O BBB construiu a idéia de que levaria o telespectador a “espiar” algo a
partir de quatro elementos: a publicidade, a arrumação e direção das câmeras
no estúdio-casa, as falas do apresentador e por último, explorando o que as
pessoas fazem mais ocultamente. Antes de abordar estes aspectos, cabe uma
referência ao significado do termo espiar, que consiste em observar
secretamente, espionar e olhar às escondidas (DICIONÁRIO HOUAISS, 2001,
1230 p.).
Sobre o primeiro elemento que contribuiu para que o sentido de levar o
telespectador a “espiar” fosse construído, ou seja, a publicidade, pode-se dizer
que ela marcou a diferença do BBB em relação aos outros programas da Rede
Globo, que nunca foram tão divulgados quanto este. O BBB lançou mão de
uma indústria paralela de propaganda, que anunciou amplamente a sua estréia
numa multiplicidade de meios – jornais, revistas, “internet”, TV aberta e rádio.
Os anúncios da TV e os “outdoors” prometiam que tão logo o programa
começasse, o espectador não iria mais querer sair de casa interessado no que
acontecia dentro da casa do Big Brother Brasil. Nas chamadas publicitárias
não ficava claro para o telespectador que se tratava de uma competição, pois
ele era simplesmente chamado a “espiar” a vida dos participantes e através
das câmeras “entrar” na casa e se “sentir à vontade”.
Neste sentido, o
segundo elemento, ou seja, a arrumação das câmaras também foi importante.
Na casa as câmeras foram cuidadosamente postas atrás de espelhos e de
vidros fumê. Haviam também pequenas câmeras móveis suspensas no teto da
81
casa ou postas no chão. Entretanto, a produção do programa tinha o cuidado
de mostrar o mínimo possível tais câmeras para os telespectadores, o que é
similar ao que acontece quando o espectador assiste a uma novela, por
exemplo, onde as câmeras nunca aparecem. Com isso, reforçava-se a idéia
de naturalidade, de modo que como as câmeras não apareciam para o público,
podia-se abstrair mais uma vez de sua presença na casa e imaginar que o que
se via era um “show” de realidade. E realmente, o caráter do programa girou
em torno do fato de os telespectadores olharem algo proibido, sem serem
vistos e por sua vez o que viriam seria a naturalidade dos participantes. Na
vinheta de abertura o desenho da lente de uma câmera tomava todo o espaço
da tela de TV, remetendo à idéia de que quem está sendo filmado é o próprio
telespectador. Aos poucos esta lente ia diminuindo até assemelhar-se a um
olho, como se transformasse nos “olhos” do telespectador, e se juntava às
demais letras para formar o logotipo do programa “Big Brother Brasil”.
A
câmera que num primeiro momento “filma” o telespectador, num segundo
momento, “se transforma” nos “olhos” do mesmo, que não veria simplesmente,
mas veria sem ser visto o que acontecia na casa.
O apresentador Bial teve um papel fundamental para construir a idéia do
“espiar” que acompanhou o programa, sendo o terceiro elemento que destaco,
pois dirigindo-se ao público usou constantemente o termo “espiar”, seja antes
do intervalo comercial, durante ou término dos programas, convidando deste
modo os telespectadores a dar mais uma “espiada” ou “espiadinha” nos
participantes.
Usando este verbo, Bial dava à impressão de que os
participantes não sabiam que estavam sendo observados e desta forma
82
ressaltava a espontaneidade dos mesmos, acentuando a ausência de roteiro
ou direção do programa.
Novamente se vê a idéia de que o público era
chamado a “ver sem ser visto”, o contrário do que acontece quando o
telespectador assiste a outras produções televisivas, onde as pessoas que
participam sabem que serão vistas.
E por último, o quarto elemento que contribuiu para dar um sentido de
que o telespectador “espiaria” algo diz respeito a “o que” o programa exibiu, ou
seja, ele explorou o que as pessoas fazem mais ocultamente ou sozinhas,
como fofocas, intrigas, o falar sozinhos, os aspectos fisiológicos, o rezar, o
chorar, o trocar de roupa, os banhos etc. Ainda sobre este aspecto, o discurso
comum dos participantes em torno da espontaneidade também costurou a idéia
do “espiar”, pois cada um ao seu modo queria parecer mais autêntico ou como
se não estivesse sendo observado, ainda que de alguma forma chocasse os
telespectadores e tivessem de sofrer conseqüências, como o preconceito ou a
estigmatização.
Por isso, não escondiam suas bulimias, seus dramas
familiares, sexuais, financeiros, suas arrogâncias etc.
Por causa da idéia construída em torno do “espiar”, ou do fato de que o
telespectador “vê sem ser visto” e de que o que ele vê é a espontaneidade dos
participantes, desde a sua primeira exibição na televisão holandesa em 1999, o
formato do Big Brother vem chamando a atenção de jornalistas, comentaristas
de televisão, psicanalistas, profissionais de TV e cientistas sociais que
escrevem para a imprensa, cujo volume de matérias nos jornais, revistas
e páginas da “internet” é grande e supera em muito o número de artigos em
periódicos especializados nas Ciências Sociais, como mostrei no primeiro
83
capítulo.
Embora o voyeurismo não seja a questão central do trabalho, é
importante ressaltar que a partir do levantamento de matérias e artigos sobre o
BBB publicados nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo, no
período de janeiro a abril de 2002, o voyeurismo é uma das justificativas mais
freqüentes para explicar o sucesso do “reality show”41.
A identificação do
público com a concorrência e o individualismo, a deslealdade e a falta de
solidariedade que o programa estimulou entre os participantes foi outra
justificativa encontrada (SOARES, 2002), assim como a idéia de que o público
se identificou com uma mudança nos ideais de privacidade, que continua
existindo, só que com parâmetros diferentes, já que a intimidade foi
transformada e dela foi excluída sua atração moral e emocional (FREIRE,
2002).
Entretanto, neste momento examinarei apenas a justificativa mais
usada nos jornais observados.
O termo voyeurismo foi usado em 1866, na obra “Psychopathia
Sexualis”, do psicólogo alemão Richard von Kraft-Ebing, que o catalogou como
perversão sexual daqueles que sentem prazer ao ver a cópula de outras
pessoas. Entretanto, foi seu aluno Sigmund Freud, que deslocou a atenção
exclusiva da conduta à patologia, destacando o voyeurismo como um impulso
que faz parte da vida das pessoas comuns, que se traduz pela vontade de ver
o proibido, que só em casos extremos assume uma forma patológica
41
A título de ilustração, podemos citar: DAPIEVE, A. “‘Irreality show!’ Nem todo mundo quer
aparecer”. O Globo, 05 abril, 2002. Segundo Caderno. Coluna; INTRATOR, S; MARINHO, A. “Sorria,
você está sendo vigiado”. O Globo, 03 fevereiro, 2002. Jornal da Família. Reportagem; FRIAS FILHO,
O. “BBB”. Folha de S. Paulo, 31 janeiro, 2002. Opinião. Coluna; PAIVA, M. R. “Sbt cria versão “light”
de “reality show”. Folha de S. Paulo, 20 fevereiro, 2002. Ilustrada. Articulista da Folha.
84
(VALLADARES, 2001b)42. De acordo com o “Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa” O voyeurismo é definido como:
(...) desordem sexual que consiste na observação de uma
pessoa no ato de se despir, nua ou realizando atos
sexuais e que não se sabe observada; forma de
curiosidade mórbida com relação ao que é privativo,
privado ou íntimo. (HOUAISS, 2001, p. 2883)
A idéia de que o telespectador “espia” ou “vê sem ser visto” pode
realmente ter atraído a atenção do público, elevando os índices de audiência,
deixando milhares de telespectadores curiosos para ver algo proibido e íntimo.
Entretanto, se considerarmos a relação do termo voyeurismo com o proibido,
destacado por Freud, o BBB não mostrou nada proibido. Ao contrário, ele
mostrou o que se vê comumente na programação das emissoras, isto é, o
corpo, a comida, a sensualidade, os dramas pessoais etc. Já na definição de
Houaiss o voyeurismo é associado à idéia de que a pessoa não sabe que está
sendo observada e esta questão de que o telespectador “vê sem ser visto” é
bem complexa, pois os participantes estavam no BBB justamente para serem
vistos e desenvolverem suas carreiras, já que todos tinham um projeto
geralmente ligado à TV. E se considerarmos que o telespectador pode estar
sendo continuamente acompanhado pelos medidores de audiência, ele deixa
42
Antes de ser abordado pela televisão, devemos acrescentar que o voyeurismo inspirou a literatura e o
cinema. No século XX a título de ilustração, podemos citar o romance “Voyeur” (1955), do escritor
francês Robbe-Grillet, um dos primeiros exemplos de “nouveau roman”, cuja objetividade vai a ponto de
tornar impossível esclarecer o crime que o “voyeur” provavelmente cometeu, mas do qual não tem clara
consciência; no cinema, por Alfred Hitchcock em “A janela indiscreta” (1954), onde um repórter
fotográfico imobilizado numa casa, observa o comportamento dos vizinhos do prédio oposto; por Peter
Weir, em o “Show de Truman” (1998), onde um jovem cuja vida evolui num imenso estúdio de TV, sem
que ele o saiba, é filmado em tempo integral por um canal de TV e por último em por Ron Howard em Ed
TV (1999), onde um canal de TV para elevar a audiência, decide acompanhar a vida de um homem
comum 24 horas por dia.
85
então de “ver sem ser visto”, ou para usar um termo mais preciso, ele
certamente é considerado. Deve-se lembrar que a audiência pode ser medida
em tempo real, isto é, durante a exibição do programa, sendo por isso possível
conhecer qual participante ou situação está elevando ou não a audiência do
telespectador e a partir daí modificar a orientação da edição do programa. Por
esses motivos, considerando as definições para o voyeurismo observadas, a
justificativa da imprensa ao sucesso do BBB associando-o ao termo não me
parece tão pertinente. Neste momento, contrario a logica corrente na imprensa
que torna todos os telespectadores dos “reality shows” em “voyeurs” (aqueles
que experimentam o voyeurismo), pois eles não viram nada proibido, mas o
que é comum na TV conforme abordei no tópico precedente o corpo e o
grotesco, quem era visto por sua vez, sabia que era visto, aliás, estava lá
justamente para ser visto e o termo voyeurismo tem uma relação com o ato
sexual muito forte, o que não foi concretizado no programa, pelo menos a olhos
vistos, o que nos interessa nesta análise. A seguir continuando a reflexão
sobre o que os telespectadores viram, me deterei num aspecto extremamente
abordado pelo programa, que foi a queda das máscaras que os participantes
usam para viver em sociedade, mas das quais se distanciariam na convivência
num show de realidade.
86
2.4 O Que o Telespectador “Espiou”?
A partir da idéia de que o telespectador espia, o programa enfatizava
que o público veria a naturalidade dos participantes, que relacionava à queda
das máscaras sociais que os concorrentes usam para viver em sociedade.
A
proposta de levar o espectador a “espiar” a naturalidade dos indivíduos esteve
presente no livro “1984” (1983) de Orwel, no programa holandês Big Brother,
na Casa dos Artistas e no Big Brother Brasil.
referência
ao
interessante.
sociólogo
norte-americano
Sobre esta questão, uma
Erving
Goffman
me
parece
No livro “A representação do eu na vida cotidiana” (2001),
Goffman usa a metáfora da representação teatral para afirmar que todo homem
em qualquer situação social, seja em casa, no trabalho, na rua etc., apresentase diante dos outros, dirigindo e tentando dominar as impressões que pretende
causar, assim como um ator que representa um personagem diante de uma
platéia. Goffman preocupa-se com a forma com a qual o indivíduo apresentase a si mesmo e às suas atividades aos demais, por isso, para o sociólogo
(IDEM) em qualquer lugar, o indivíduo representa um papel, usa uma máscara
social e para isso a sua comunicação está sempre voltada para a impressão
que deseja causar no outro. Mas, o uso das máscaras por sua vez não diminui
o fato de o indivíduo estar sendo ele mesmo, conforme pode-se observar com
Robert Ezra Park “apud” Goffman:
Não é provavelmente um mero acidente histórico que a
palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer
máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que
todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos
conscientemente, representando um papel... É nesses
papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses
papéis que nos conhecemos a nós mesmos. Em certo
87
sentido, e na medida em que esta máscara representa a
concepção que formamos de nós mesmos - o papel que
nos esforçamos por chegar a viver – esta máscara é o
nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser.
(...) Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um
caráter e nos tornamos pessoas. (GOFFMAN, 2001, p.
27)
Segundo Goffman (2001), quando não observados, os atores sociais são
menos escrupulosos e preocupam-se menos com a impressão que desejam
causar. O que se relaciona por sua vez à idéia de que em seus lares, os
indivíduos seriam menos escrupulosos. No entanto, suponho que se eles são
menos preocupados em manter determinada impressão em casa e relaxam,
não fariam deste modo num programa de TV, cuja audiência atinge a 30% dos
telespectadores e quando se tem por objetivo permanecer na mídia.
Um outro aspecto abordado por Goffman (IDEM), que me pareceu
bastante pertinente para analisar o BBB, diz respeito ao fato de que em toda
representação exista um ingrediente de segredo, uma vez que para o autor
dificilmente haverá uma profissão ou relacionamento cotidiano cujos atores não
se entreguem a práticas secretas incompatíveis com as impressões criadas43.
Diante disso, pode-se dizer que numa representação os indivíduos acentuam
determinados aspectos e dissimula outros, mas usam a representação seja
para mentir, ocultar ou mostrar sinceridade.
Não analiso como cada participante do BBB geriu as suas atitudes,
mostrando-se a si mesmo desta ou daquela maneira, como Goffman fez com
vários exemplos de situações e atores sociais.
43
Meu intuito é mostrar que
Neste sentido, Goffman se aproxima muito de Simmel que também analisa o segredo nas relações
sociais em SIMMEL, Jorge. “Sociología. Estudios sobre las formas de socialización”. Buenos Aires:
Espasa-Calpe Argentina, S. A, 1939.
88
apesar do discurso de naturalidade do programa, como algo desvinculado de
representação, o que vimos foram as máscaras sociais e não a sua queda
como propunha o programa, pois usando a mentira, ocultando ou mostrando
algo, todos representam. A representação ou o uso de máscaras sociais não
significam falsidade ou falta de espontaneidade no convívio social.
Ao
contrário, é a forma pela qual o homem se apresenta ao mundo e torna
possível a vida social.
Diante disso, pode-se dizer que a distinção máscara “versus” rosto, tão
fomentada pelo programa e ao que parece tão interessante para o público que
assistiu o programa, perde sentido, pois ambos (máscara e rosto) se fundem e
tornam-se uma mesma coisa, o ser humano.
Diante disso, o “eu” ou a
“personalidade real”, para citar um termo utilizado pelo programa e pelo
produtor John De Mol, e a representação se tornam um só, não havendo
possibilidade de emergir algo diferente das máscaras sociais que as pessoas
usam para viver.
89
2.5 Conclusões
O Big Brother Brasil gerou competição e acirrou a disputa que já existe
entre as emissoras. Não foquei a análise na questão de como a audiência gera
lucros para as emissoras, mas direcionei o foco de análise da televisão tanto
para quem produz, quanto para quem assiste a estes programas, já que a
competição faz os concorrentes tornarem-se mais sensíveis e perspicazes em
relação ao “gosto do freguês”, sendo difícil separar os produtos da TV dos
telespectadores. Com isso, ressalto que o programa trouxe algo que o público
viu e gostou, talvez a possibilidade de ver um segredo ou como as pessoas são
menos escrupulosas em seus lares, ainda que o segredo seja não ter segredo
algum.
Neste capítulo vimos em que consiste o “reality show” que vem
conquistando a audiência nos países por onde passa, que se tornou um
fenômeno da comunicação e que no Brasil foi até objeto de disputa jurídica
entre as duas maiores redes de televisão do país. Trata-se de um programa
que explora os dramas pessoais, a comida e o corpo costurados por um viés
grotesco, característico de muitas produções televisivas, mas sem nenhum
conteúdo crítico.
Diante da grande audiência do programa no Brasil e no exterior, é
possível dizer que o formato interessou a muitos telespectadores, que
quiseram ver a intimidade, a vida privada dos confinados, ou pelo menos, o
espetáculo não ensaiado da convivência de um grupo de pessoas. Isto aliás foi
o que moveu o meu interesse nesta dissertação e me espantou. Como só
estudamos aquilo que nos espanta e geralmente o que nos move é o mesmo
90
que nos comove, o interesse do público me levou até o Big Brother Brasil. Por
isso, me detive naquilo que o espectador viu, ou usando termo do programa,
“espiou”.
O uso do termo “espiar” no decorrer do programa foi associado à idéia
de que os telespectadores iriam ver a espontaneidade dos participantes, cujas
máscaras sociais cairiam com a emergência da naturalidade dos mesmos,
conforme disse no início do capítulo. Desta forma, os telespectadores eram
chamados a ver algo proibido, como se as personalidades reais escondessem
algo que costumam mostrar na intimidade de seus lares. A escolha de uma
casa para servir de palco do BBB costurou bem o sentido de intimidade, com
seus quartos aconchegantes, a comida feita por um ou outro participante, mas
partilhada por todos, como geralmente acontece nas grandes famílias, o uso de
um banheiro único, as dores de barriga ou as prisões de ventre, os arrotos, o
falar sobre as necessidades fisiológicas, sobre sexo e masturbação, enfim
todas estas coisas construíram a idéia de os participantes estavam muito a
vontade e se sentiam em casa. Do mesmo modo, o apresentador teve um
papel muito importante, pois constantemente convidava os telespectadores a
“espiar” ou a dar mais uma “espiadinha” no que os participantes estavam
fazendo na casa. Desta forma, o programa foi costurando a idéia de que os
telespectadores espiavam a espontaneidade dos participantes.
Contudo,
considerando que o programa esperava explorar as personalidades reais dos
participantes como algo desvinculado do que eles são em sociedade, vimos
que a proposta do BBB não é pertinente, pois não há oposição entre
personalidade real e máscaras sociais, ambos se fundem e formam as pessoas
91
que se exibem no programa. Diante disso, é possível dizer que o tempo todo
os indivíduos fazem uso da representação, seja em suas casas ou num
estúdio-casa de um programa de TV. Mas certamente ao se colocarem num
programa de TV, com todas as expectativas geradas com relação à sua
aparição na mídia e às conseqüências simbólicas e materiais daquela aparição
há de se convir que a possibilidade de controlarem e dirigirem a representação
de si próprios é bem maior.
Na tentativa de dar uma justificativa para o sucesso de público dos
“reality shows” muitos autores através da imprensa destacaram o voyeurismo
como o responsável pelo êxito do programa.
Entretanto, neste capítulo tentei
desmontar esta hipótese, uma vez que o telespectador do BBB não viu nada
que fosse proibido e que os participantes do programa sabiam e queriam ser
filmados e observados.
No capítulo seguinte faremos algumas considerações sobre um traço
que marcou a competição no Big Brother Brasil e sobre a escolha do vencedor.
92
CAPÍTULO III
A COMPETIÇÃO BIG BROTHER BRASIL E A CORDIALIDADE BRASILEIRA
O objetivo deste capítulo é mostrar como a cordialidade foi a atitude que
marcou a convivência do grupo de participantes do Big Brother Brasil. Para
isso, mostrarei em que consistiu a competição do programa, enfatizando a
dinâmica da eliminação dos participantes, momento de maior tensão no
programa. Embora a competição fosse inevitável, a cordialidade foi sempre
enfatizada por eles próprios ou pelo apresentador do BBB. Além disso, faço
algumas ponderações sobre a escolha do vencedor do Big Brother Brasil,
associando-a à cordialidade.
É importante ressaltar que uso a palavra “cordialidade” respeitando,
como o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o sentido etimológico do seu
radical “cordial”, que a relaciona às questões do coração, como a afabilidade, a
simplicidade, a naturalidade e a sinceridade, que são por sua vez estreitamente
relacionados à esfera do íntimo, familiar e privado44.
O fato de observar a cordialidade como algo que marcou a convivência
dos participantes, não significa que não houve conflitos entre eles. Entretanto,
em nossa análise, percebi que os conflitos ocorridos não desarmonizaram a
teia de relações que os participantes formaram entre si.
Não houve nenhum
confronto sério, com a possibilidade de agressão ou isolamento demorado
entre os confinados numa casa para disputarem um prêmio em dinheiro.
44
Segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI “cordialidade” vem de cordial+dade; qualidade
do que é cordial. A palavra “cordial” vem do latim medieval “cordiale”, relativo ou pertencente ao
coração. Afetuoso, afável, sincero e franco.
93
3.1 A Competição Big Brother Brasil
Na competição do BBB a disputa girava em torno do dinheiro e para
obtê-lo, o participante teria que ser escolhido pelos telespectadores por
telefone e através da “internet” no 64º dia de programa. A cada semana um
participante era eliminado do programa pelos telespectadores.
Por isso, o
concorrente deveria se esforçar para permanecer na casa, para ficar entre os
finalistas e tentar ser o eleito do público no final do programa. Mas, para atingir
este objetivo, deveria cultivar um bom relacionamento com os colegas de
confinamento, ter um bom entrosamento no grupo, evitando ou adiando assim
as indicações para a eliminação.
Deveria conquistar também a simpatia dos
telespectadores, pois caso candidato ao “paredão”, o participante passaria ileso
por ele, caso o público não aceitasse sua eliminação. Nesta disputa cada
concorrente dispunha apenas de suas próprias atitudes e crenças para adquirir
a simpatia dos colegas, do público e assim permanecer na casa para tentar
ganhar o prêmio. Exibir uma boa imagem de si mesmo, acionando valores
como a autenticidade, a amizade e a sinceridade e mostrando a sua condição
econômica e a sua religiosidade foram atitudes que fizeram parte da “receita”
para o sucesso dos participantes e concorreram para a exclusão ou
permanência dos concorrentes a cada semana.
Dentre as regras da competição foi estabelecido que os participantes
não podiam quebrar nada propositalmente, nem agredir aos outros colegas,
pois imediatamente seriam expulsos.
Eles deveriam cuidar da casa e da
própria alimentação, participar das provas para a obtenção de comida, para a
liderança e indicar um concorrente para a eliminação a cada semana. Ao final
94
do programa (64º dia), quando restassem apenas três pessoas na casa, a
dinâmica da votação mudava e apenas o público escolhia quem deveria ganhar
os prêmios. O antepenúltimo e o penúltimo a deixar a casa escolhidos pelo
público ganhariam 20 e 30 mil reais, respectivamente e o vencedor escolhido
pelos telespectadores ganharia 500 mil reais45.
Toda quinta-feira através de jogos46, um participante conquistava a
liderança e ganhava imunidade, isto é, não poderia ser indicado para a
eliminação na semana, mas teria o direito de indicar outro concorrente para o
“paredão” no sábado, quando justificava a sua escolha na presença do grupo.
No programa de sábado, o líder tinha as batidas do coração monitoradas por
aparelhos e reproduzidas no vídeo para que fossem acompanhadas pelos
telespectadores, enquanto anunciava o seu escolhido. Aos domingos era a vez
do restante do grupo escolher outra pessoa, mas cada participante votava
isoladamente no “confessionário”.
No programa de domingo, o telespectador tomava conhecimento dos
dois candidatos à eliminação, eleitos pelos confinados. Antes do encerramento
do programa, os indicados para o “paredão” deveriam convencer o
telespectador a não votar neles, ressaltando as suas qualidades, às vezes até
chorando e só a partir de então, o público poderia votar (através de telefones
fixo e móvel ou pela página do programa na “internet”) para tentar eliminar o
seu escolhido47.
45
Os demais participantes ganharam 500 reais por semana de isolamento. Informação omitida no
programa.
46
A cada semana uma prova diferente daria a liderança para um participante. Numa delas, cada
participante lançou uma pequena bola num corredor estreito, como num corredor de boliche, e a bola que
chegasse à outra extremidade do corredor dava a liderança para o concorrente.
47
Em algumas semanas as ligações eram gratuitas, em outras custavam 0,27 centavos por minuto e mais
os impostos.
95
O resultado da eliminação era divulgado na terça-feira48. Neste dia da
semana, o centro do programa girava em torno dos possíveis eliminados, onde
era exibido um “clip” com o perfil de cada um deles, que mostrava os conflitos,
discussões, amizades e as características principais dos indicados, que
poderiam ser a religiosidade, a simpatia, a irreverência, os atributos físicos,
dentre outros.
A exibição destes “clips” podia especialmente influenciar
especialmente a escolha do candidato que seria eliminado, uma vez que os
telespectadores podiam votar inclusive no mesmo dia.
Às terças-feiras os indicados para a eliminação tinham os corações
monitorados e suas batidas acompanhadas pelo público. Ao lado da casa em
que os participantes estavam confinados foi construído um auditório com duas
arquibancadas para receber os familiares e amigos de cada indicado, que junto
a alguns espectadores organizavam torcidas, com camisetas, faixas e gritos de
ordem. O apresentador se comunicava com os participantes, mostrando pelo
telão o pai, a mãe, os familiares e amigos de cada indicado, que neste
momento tinham os corações disparados e muitas vezes chorando diziam
frases como “eu te amo” para os seus, repetindo seus nomes, como se
quisessem passar através do telão, ficando visivelmente emocionados. Aliás, a
emoção era extremamente explorada no dia da do “paredão”. Os indicados
passavam o programa geralmente muito tensos, temendo a eliminação e ao
lado de suas malas, com as batidas do coração monitoradas, esperavam o
resultado da eliminação durante todo o programa, ansiosamente. Às vezes
48
Nos intervalos da programação diurna de terça-feira, a jornalista Renata Caputti fazia enquetes nas ruas
perguntando quem deveria ser eliminado, por que e o que as pessoas achavam dos participantes. Às vezes
eram entrevistados os familiares dos indicados, que também davam entrevistas para jornais, revistas e
programas de TV.
96
esperavam o resultado de mãos dadas com o seu oponente. É interessante
notar que com o acompanhamento das batidas do coração, a espontaneidade
mais uma vez era reforçada.
Ao término do programa, o apresentador chamava os telespectadores
para ver o “tape” do momento em que cada indicado arrumava a mala sozinho
para talvez ter que deixar o programa. Em seguida, Pedro Bial fazia suspense
para anunciar o eliminado, deixando os indicados ainda mais apreensivos. E
finalmente, usando jogo de palavras, revelava o nome do eliminado.
Este
chorava, despedindo-se dos amigos e colegas de confinamento, abraçando-os.
Enquanto acompanhava a despedida do eliminado, os telespectadores ouviam
uma música triste. Entretanto, ao sair da casa e ser recebido no auditório por
Bial, seus familiares, seus amigos e ser ovacionado pelas arquibancadas e
sobretudo pela família do concorrente que permaneceu no programa, o
eliminado ficava sorridente, enquanto os confinados choravam abraçados. O
apresentador fazia uma rápida entrevista com o eliminado, seus pais e irmãos.
O eliminado também falava com os participantes através do telão, enviandolhes conselhos. Depois disso, o apresentador encerrava o programa,
convidando os espectadores a participarem de um bate-papo com o eliminado
no “site” do programa, mas antes, os convidava a dar mais uma “espiadinha”
na casa. Deste modo, na competição do BBB o telespectador acompanhava
as batidas dos corações dos indicados, telefonava ou usava a “internet” para
eliminá-los, observava as torcidas e intervinha na disputa, tendo o poder de
juntos excluir um dos participantes.
97
Aliás, o público foi uma peça fundamental no jogo, ainda que não
recebesse prêmio algum, e pelo fato de os participantes estarem isolados, a
sua percepção em relação ao público foi dificultada. Logo, os concorrentes
jogavam um pouco às cegas.
Digo um pouco, porque a eliminação do
candidato era o retorno que eles tinham dos espectadores. Contudo, podemos
dizer ainda assim que os competidores jogavam sem uma noção clara se
estavam ou não agradando, o que pode iluminar o fato de o concorrente que
teve mais resistência para se integrar no grupo, ou seja, ter sido o menos
entrosado pelo menos durante boa parte do programa, ter sido o vitorioso desta
disputa na escolha do público. Por isso, numa balança, a conquista do público
tem muito mais peso do que a conquista das amizade dos concorrentes entre
si.
Em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo (2002), a antropóloga
Esther Hambúrguer ressalta a interatividade que o programa promoveu.
Interatividade ao vivo, pelo telefone, no auditório, na casa, entre apresentador,
participantes e telespectadores, que representam por sua vez vários pontos
que se ligam formando uma rede quando o programa está no ar, onde cada
parte pode de alguma forma intervir sobre a outra.
Diante disso, é possível dizer que este tipo de “reality show” surge no
Brasil como um programa inovador no sentido em que possibilitou uma
conexão com os telespectadores nunca vista antes. O público poderia intervir
na competição, escolhendo quem deveria ser ou não eliminado e no fim do
programa, poderia escolher a pessoa que iria ganhar o prêmio. O papel do
apresentador mais uma vez foi importante para guiar os telespectadores e
98
tentar construir uma certa cumplicidade com eles, ao mesmo tempo, em que
tentava não ser tão parcial com os participantes, o que logicamente não
conseguia, pela exigência de seu próprio papel. O espectador deixou de ser
um simples receptor da imagem, para atuar sobre ela, para mudar a
competição, mexer em suas “peças”, eliminar participantes.
Considero que a interatividade proporcionada pelos “reality shows” está
relacionada ao “novo olhar” abordado por Martín-Barbero, em “Os exercícios do
ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva” (2001).
Segundo o autor
(IDEM), este “novo olhar” foi conquistado graças à tecnicidade, cujos avanços
atuam nos olhos do telespectador, pois ela transforma o sentido (olhar),
apresentando ao telespectador outras possibilidades do “ver”.
Os “reality
shows” provocam este debate, uma vez que trabalham a partir da idéia de que
o telespectador verá algo que não vê em outras produções. Assunto abordado
no capítulo precedente com a idéia da queda das máscaras sociais.
Na
medida em que o olhar se amplia e entra na “casa-estúdio” dos confinados, no
banheiro, nas conversas mais reservadas ou nos momentos de solidão dos
participantes, atiçou a interatividade, a intervenção na competição e formou
uma espécie de comunidade virtual entre os telespectadores, que para
intervirem no jogo, precisavam se unir, fazendo número, para tentar fazer
prevalecer a sua vontade. Por isso, é possível dizer que o programa provocou
interatividade, a criação de comunidades virtuais e trouxe à tona o debate
sobre a tecnicidade e o olhar.
Ainda sobre a questão da competição, é interessante ressaltar que a
fama é uma conseqüência para aqueles que participaram do “reality show”,
99
inclusive para os que saíram nas primeiras semanas de programa. A fama é o
prêmio para todos os participantes que buscaram o programa para se
promoverem. Neste sentido, a competição continua fora do programa, onde os
participantes disputam a partir da sua saída do programa, a permanência na
mídia49.
O Big Brother Brasil deu o passo inicial, apresentando o candidato à
fama ao mundo do “show business” dos meios de comunicação. E mesmo
após a saída do concorrente, havia uma estrutura na Rede Globo para recebêlo e mantê-lo por um certo tempo na mídia. Na semana seguinte à sua saída, o
eliminado do BBB era entrevistado pelo apresentador Fausto Silva no
Domingão do Faustão, um dos programas de maior audiência aos domingos; a
maioria dos candidatos fotografou com poses sensuais para uma página na
“internet”, alguns deles pousaram nus para revistas masculinas, outros foram
convidados a dar entrevistas no programa do Jô Soares, na Ana Maria Braga
ou no Fantástico e fizeram outras participações na programação da emissora.
Enquanto estavam vinculados por contrato à Rede Globo, os concorrentes do
BBB não podiam dar entrevistas aos programas de outras emissoras, mas
mesmo assim foram muito assediados por alguns deles, sobretudo
imediatamente após saírem do BBB e um tempo após o término do programa
em abril de 2002. Já seus pais, familiares e amigos concediam entrevistas
49
A análise da fama ultrapassa a nossa pesquisa. Para uma análise da experiência da fama, ver:
COELHO, Maria Cláudia. “A experiência da fama”. Rio de Janeiro: Ed. FGV. 1999.
100
para emissoras de TV, rádio, revistas e jornais, indo a reboque da fama
repentina dos seus50.
Das três edições do BBB, a primeira delas foi a que mais rendeu frutos
aos participantes em termos de trabalho na mídia. Vanessa participou de uma
novela na Rede Globo, Kléber e Helena fazem parte do elenco dos
humorísticos A turma do Didi e Zorra Total, respectivamente, da mesma
emissora. Aqueles que ainda estão sem-contrato com as TVs, vez ou outra
ainda aparecem em programas dando algum depoimento ou participando de
algum debate ou jogo. Caetano, o primeiro a ser eliminado no BBB, volta e
meia dá entrevistas, participa de programas e recentemente posou nu para
uma revista. Adriano fez exposições e é um dos que mais participa de
programas nas TVs, Sérgio e Xaiane também transitam pelos programas.
André está divulgando o seu “cd”, Alessandra excursiona com uma peça de
teatro, Cristiana acompanha uma equipe de som de “funk” e participa
eventualmente de um programa de TV sobre o mesmo gênero de música.
Com isso, pudemos observar que a Rede Globo produziu um programa com
pessoas desconhecidas dos “mass media”, diferenciando-se de Casa dos
Artistas, mas cujos trabalhos não estavam desvinculados do mundo artístico51.
Diante disso, o BBB representou a passagem do indivíduo anônimo a
uma espécie de reino encantado ou conto de fadas, que muitas vezes é
atribuído pela própria mídia ao mundo das celebridades, da fama, cujos
50
Os programas de variedades que se dedicam à vida de celebridades e que acabam sendo também
responsáveis por manter os ex. BBB no mundo da fama, assediando-os são: A Casa é Sua e TV Fama, da
Rede TV, Melhor da Tarde, da Band e Falando Francamente, do SBT.
51
Segundo Elisabete Nunes em matéria publicada pelo jornal O Globo (2002), a maioria dos participantes
têm em comum o fato de terem um projeto para a TV. E de acordo com o que acompanhamos na
imprensa, os únicos que não aparecem mais na mídia são Estela (videografista) e Bruno (empresário e ex.
modelo).
101
percalços parecem inexistentes, daí o seu encantamento. Além da disputa
pelo prêmio em dinheiro, o programa consagrou os jovens concorrentes, que
tiveram o rosto e o corpo fotografados e impressos em diversos jornais e
periódicos, capas de revistas, páginas na “internet”, a partir dos quais
passaram a ter mais chances para concorrer e alcançar um lugar no mercado
da televisão, do “show business” e da mídia de um modo geral. Neste sentido,
o comentário da participante Alessandra sobre Estela é interessante: “Ela disse
que não quer fama, não quer dinheiro. Tá fazendo o que aqui?52”.
Enfim, a competição não se dá só pelo prêmio para alguns participantes,
mas continua pela fama, que embora efêmera pode abrir as portas do mercado
de trabalho e para isto os participantes deste formato de programa não
hesitaram em transformar a própria vida em espetáculo, 24 horas por dia, para
milhões de telespectadores.
52
Comentário de Alessandra exibido em 26 de fevereiro de 2002, onde Estela e Cristiana eram as
indicadas à eliminação.
102
3.2 A Competição Big Brother Brasil e a Cordialidade Brasileira
Neste momento o Brasil todo tá votando pelo telefone, e é pra excluir
um de vocês. Então, queiram ou não, aqui vocês estão sim um
contra o outro. Pode ser feito com cordialidade e tudo, mas é uma
competição, não é53?
A frase de Pedro Bial referindo-se à dificuldade de Vanessa em
confrontar-se com outro participante (Adriano) no “paredão” retrata a mistura
entre cordialidade e competição que caracterizou o BBB. A convivência dos
participantes foi marcada pela afetividade e pelos laços que tentavam construir,
por isso, a permanência destes aconteceu de um modo geral num clima
cordial.
Os participantes eram vistos principalmente juntos em atividades
lúdicas, dançando, tomando banho de piscina, na banheira de hidromassagem,
tomando banho de sol, brincando, cantando e rindo. O uso de apelidos foi
freqüente entre os participantes, por isso Adriano era chamado de Didi,
Alessandra era Leka, Kléber era Bambam, André era Dé, Vanessa era
chamada de Van e assim por diante.
Por demonstrarem afinidade e
afetividade, votar em alguém para ser eliminado não era uma tarefa muito
simples, sendo também este um momento central da competição, que será
mais detalhado a seguir.
Frequentemente,
quando
um
concorrente
saía
do
programa,
praticamente todos se mostravam emocionados com a sua eliminação, onde
não eram raros os prantos dos que ficavam, um sinal visível de afetividade
demonstrada entre eles, abordada anteriormente na descrição do dia da
eliminação. Contudo, a divisão dos participantes em dois quartos, facilitou a
53
Programa de 12 de março de 2002.
103
formação de um grupo, que pela proximidade de seus componentes, foi
apelidado de “panelinha do quarto azul”, e definiu basicamente as escolhas
individuais para o “paredão”, já que as pessoas de um mesmo quarto evitavam
votar em seus colegas54.
Quando um participante indicava alguém para o “paredão”, afirmava não
ser por razões pessoais. E quando conquistava a liderança, enfatizava que o
seu voto era baseado no interesse do grupo, desvinculando mais uma vez o
seu voto do interesse pessoal. Até mesmo as pessoas que admitiam ter um
pretexto para votar em determinado concorrente como um incidente ou um malentendido, com cuidado o indicavam para o “paredão” e faziam questão de
ressaltar que não desejavam que o seu escolhido deixasse o programa. Em
outras palavras, quando votavam, os participantes queriam deixar claro que
separavam a competição da relação pessoal, tentando assim preservar a boa
convivência que se mantinha na casa. No entanto, ao serem indicados para a
eliminação, esta visão amistosa mudava e os participantes atribuíam os
motivos da sua indicação a questões pessoais, sentindo-se traídos ou
prejudicados, reclamando da deslealdade dos colegas, da falta de amizade e
da injustiça sofrida por eles, remetendo tais escolhas a questões pessoais.
Na maioria das vezes os concorrentes tentavam se esquivar do fato de
que estavam competindo, dizendo não serem jogadores, ou não estarem
jogando e quando votados, os concorrentes exprimiam um discurso pejorativo
associando a disputa à esperteza e a aspectos opostos aos laços de amizade
que tentavam fazer e que por sua vez eram até mais importantes do que
54
Mesmo quando houve um conflito num dos quartos, nem todos os laços de confiança foram desfeitos e
os concorrentes mantiveram a fidelidade aos colegas de quarto.
104
competir. Mas, por outro lado, alguns deles lamentavam não terem sabido
jogar e magoados prometiam que a partir daquele momento iriam começar a
jogar, deixando de lado a sinceridade e ingenuidade. Com isso é possível dizer
que uma ética emocional envolveu a atitude dos competidores.
A disputa para permanecer na casa entre Estela e Cristiana é ilustrativa
no que se refere à ênfase na sinceridade que marcou a competição.
No
“paredão” de 26 de fevereiro de 2002 o público foi solicitado como juiz pelos
participantes, para que decidisse qual das duas indicadas à eliminação merecia
ficar no programa. O episódio marcou o fim da “panelinha do quarto azul”, que
era formada por Adriano, André, Estela, Alessandra e Cristiana.
Quando
Alessandra ganhou a liderança, Cristiana tentou influenciá-la para que
indicasse Estela para o “paredão”, pois seria ela uma excelente jogadora.
Adriano percebendo a intenção de Cristiana, toma a defesa de Estela e tenta
influenciar a líder para que votasse em Cristiana, pois esta sim estaria jogando.
A líder aceita a sugestão do participante e indica sua “amiga” Cristiana.
Entretanto, Alessandra acaba tendo que votar novamente para desempatar os
indicados dos participantes e escolhe sua outra “amiga”, Estela, alegando que
os telespectadores teriam mais condições para decidir entre as duas,
justificativa que foi apoiada pelos participantes que votaram na moça. Segundo
os participantes, o público teria mais clareza que eles para decidir quem
deveria ficar no programa, pois tinha uma visão do conjunto, maior que a deles
mesmos. Observemos os relatos a seguir.
Estela surpreende-se com a indicação, dizendo ver a sua honestidade
posta à prova. A participante tem uma forte crise de choro, vai para o quintal
105
da casa e dirigindo-se a Sérgio, que havia votado nela, diz em meio a lágrimas,
engasgos e soluços:
Se eu saísse daqui por qualquer outro motivo, tudo bem.
Agora, sair porque tão botando em dúvida a minha
honestidade e a minha dignidade é uma coisa que me
incomoda profundamente. Eu não precisaria estar aqui,
sendo julgada (...) Vocês me colocaram lá (no “paredão”)
pra ter uma certeza de alguma coisa. Se eu sair,
continuem não me julgando. (Estela, 24 fevereiro, 2002).
Cristiana dirigindo-se à Helena, também queixa-se por passar pela
indicação, ser vista como jogadora, e afirma que até abriria mão do dinheiro
para não ter que passar por tudo o que estava passando. E dirigindo-se ao
público no “confessionário”, tentando convencê-lo a ficar no programa, afirmou:
Eu tô com muito medo de ser julgada por uma coisa que
eu não sou. Eu tô com muito medo de sair e ver que de
repente minha mãe e meu pai podem estar pensando que
eu sou de uma maneira que meus pais não me
conhecem. Então, é só isso que eu espero, que as coisas
sejam feitas com justiça. (Cristiana, 26 fevereiro, 2002).
A frase de Adriano a seguir que abriu o “paredão” de 26 de fevereiro, no
“confessionário”, dirigindo-se ao Brasil também é interessante:
Pensem bem no voto de vocês. Vejam, avaliem a prática
das duas pessoas dentro dessa casa. Veja se o discurso
das duas combina com os atos que elas fazem ou fizeram
dentro dessa casa. Veja se a pessoa que fala uma coisa
e faz aquela coisa é a mesma pessoa que fala uma coisa
e não faz o que fala, não faz o que prega. Então
sinceramente, acho que o Brasil tem discernimento pra
ver quem na verdade é Estela, quem na verdade é
Cristiana. (Adriano, 26 fevereiro, 2002).
É importante ressaltar que nos três discursos o apelo à sinceridade é
observado, com a indignação de Estela por ver sua honestidade e dignidade
106
posta à prova, com o apelo de Cristiana à família e com a crença de Adriano de
que o público saberia discernir e escolher a participante que apresentou a
maior coerência em termos de palavras e atitudes.
No “paredão” a eliminada foi Cristiana, que foi recebida pelos pais e por
Léo, seu irmãozinho caçula.
Após a sua saída da “casa-estúdio”, alguns
confinados comemoraram o que chamaram de “sabedoria” do público, que
escolhia a pessoa certa para deixar o programa, para estes confinados, a mais
falsa.
Diante disso, pode-se dizer que neste “paredão” a sinceridade foi o
critério da eliminação do participante.
O fato de os participantes do BBB demonstrarem afinidades estando
juntos, se divertindo e brincando, tratarem-se carinhosamente com o uso de
apelidos, chorarem com as eliminações, confundirem “competir” versus “fazer
amigos”, por pretenderem deixar claro que contribuíam para que um clima
amistoso acontecesse na casa e terem a sinceridade como ponto alto de seus
discursos, me leva a crer que a regra básica de convivência no Big Brother
Brasil era a da cordialidade.
A cordialidade entre os participantes foi comentada algumas vezes pelo
apresentador Pedro Bial. Numa delas, ao receber o sexto eliminado, Adriano,
Bial referindo-se aos outros participantes, afirma que na verdade existiu uma
grande cordialidade entre o eliminado e os outros jogadores. Adriano, que era
um dos que frequentemente falava na questão do jogo na casa, dizendo
durante o programa ser tão jogador quanto os demais participantes, ao sair da
casa, concorda com Bial, e diz que existia disputa, mas que não havia
107
deslealdade entre os concorrentes55. Por isso, compreender a busca por laços
afetivos, o clima de cordialidade numa competição e a forma negativa com que
os participantes viam o fato de competirem, me levou ao historiador Sérgio
Buarque de Holanda.
Em “Raízes do Brasil” (2002), Buarque de Holanda analisou os entraves
que a tradição brasileira impunha à vida moderna, pois as famílias patriarcais
educavam
seus
sentimentalizadas
filhos
e
de
menos
modo
que
racionalizadas
preservassem
conforme
o
atitudes
mais
individualismo
pressupunha. A vida moderna com uma concepção que é atrelada aos valores
do individualismo, como a iniciativa pessoal e a concorrência, não encontrou
um terreno muito fecundo no país, pois encontrou uma sociedade tradicional,
fundada sobre os laços pessoais, sobre o paternalismo e a obediência, valores
opostos àqueles próprios da vida moderna56. O aspecto que me chamou a
atenção neste autor foi o fato de que ele acentua que mesmo após o declínio
do patriarcalismo, os efeitos da busca por laços pessoais, gestada no âmbito
doméstico daquele período, ainda permanecem firme no solo brasileiro, pois os
laços de amizade, confiança e fidelidade forneceram o modelo das
composições sociais no Brasil.
Por isso, a cordialidade seria a forma do
brasileiro de estar no mundo e a sua contribuição para ele, conforme ressalta o
autor a seguir:
Já se disse, numa expressão feliz, que a
contribuição brasileira para a civilização será de
55
Programa de 12 de março de 2002.
Buarque de Holanda colocava os valores da sociedade tradicional como um dos entraves à democracia,
haja visto que por causa deles o público é muitas vezes utilizado a serviço do privado. Neste trabalho não
abordo esta questão política. Ao trazer a distinção entre os valores da tradição e da modernidade feita
pelo autor, me interessa apenas a compreensão da ética de fundo emocional, que marca a atitude do
brasileiro e a sua origem.
56
108
cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A
lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes
tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,
representam com efeito, um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa
e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio
humano, informados no meio rural e patriarcal.
(BUARQUE DE HOLANDA, 2002, p.146-147)
Para Buarque de Holanda (IDEM) nenhum povo está mais longe da
polidez e da noção ritualista da vida do que o brasileiro, cuja manifestação de
respeito, ao contrário de outros povos, se expressa justamente pelo desejo de
estabelecer intimidade.
A competição no BBB foi marcada pelos laços afetivos.
Numa
competição em geral as pessoas não choram quando um concorrente perde,
pois seria o mesmo que torcer contra si próprio e sobretudo não negam que
estejam jogando. Aliás, admitir que eram jogadores era algo ofensivo, como
ressaltei no “paredão” entre Estela e Cristiana. Em alguns momentos, competir
era enfatizado pelos participantes como menos importante que a construção
das relações pessoais, que por sua vez sedimentaram as relações no Big
Brother Brasil. Por isso, Estela chorou ao ver sua “honestidade” posta à prova
e Cristiana disse abrir mão do dinheiro para não passar pelo conflito.
Na
competição do programa a família esteve presente, bem como outros laços
pessoais, a busca pela intimidade, a hospitalidade e a generosidade que
formam o “ethos” brasileiro. Com isso, suponho que a forma com a qual a
competição foi encarada pelos participantes no programa, vem demonstrar que
nas regras de convívio do país a ética de fundo emotivo continua bastante
presente.
109
3.3 A Vitória dos “Caipiras”
Em todos os “reality shows” produzidos no Brasil nos moldes do
programa de John De Mol, isto é, as três edições de Casa dos Artistas e as três
edições do Big Brother Brasil, dentre os vencedores, cinco eram do interior do
país e alguns deles eram os participantes que mais enfatizavam as suas
dificuldades financeiras ou que revelavam um histórico dessas dificuldades57.
Isto me levou a tentar compreender o “por que” da escolha pelo mais pobre e
“caipira”.
Na terceira edição do BBB, a vitória foi dada a Dhomini, secretário
parlamentar, do interior de Goiás. Na segunda edição do programa, o peão de
rodeios Rodrigo foi o vencedor e também é do interior de São Paulo.
No
primeiro BBB o vencedor foi o dançarino e ex. vendedor de côcos, Kléber, que
é do interior de São Paulo. Os três tinham em comum um forte sotaque do
interior e sobretudo Kléber e Rodrigo destoavam dos demais concorrentes pelo
vocabulário simples que usavam, pela ênfase na condição econômica inferior e
pela simplicidade demonstrada.
Observaremos a seguir os acontecimentos
que marcaram a final do BBB e que contribuíram para a escolha de Kléber.
Além do franco-angolano Sérgio que às vezes se atrapalhava com a
língua portuguesa, o dançarino Kléber era o único que falava errado do grupo e
que muitas vezes não entendia o que os outros participantes falavam, sendo
por isso, motivo de riso dos mesmos e até do próprio apresentador. Quando
era motivo de riso, o dançarino em tom humilde, lamentava o fato de não ter
57
Na Casa dos Artistas venceu a modelo Bárbara Paz, que vinha do interior do Rio Grande do Sul tentar a
vida em São Paulo. Na Casa dos Artistas 2 não havia ninguém do interior, mas venceu Rafael Vanucci,
filho da cantora Vanusa, que era um dos que mais falava no quanto precisava do dinheiro. Na Casa dos
Artistas 3 a vitória foi de Sérgio, ator nordestino, de João Pessoa na Paraíba.
110
completado os estudos, mas não perdia a vontade de participar das conversas
e de juntar-se aos colegas. Nas ocasiões em que não compreendia porque
seus colegas riam dele, o participante passava uma idéia de simplicidade, a
imagem de uma pessoa que parecia não se incomodar muito em ser motivo de
riso. Nem mesmo quando foi líder e tinha o poder de indicar qualquer um para
o “paredão”, o concorrente foi mais respeitado pelos colegas, sendo até
chamado de “Rei-tardado” por alguns deles. Contudo, nas poucas ocasiões
em que se incomodou, Kléber dizia que de “bobo” não tinha nada.
No decorrer do programa, Kléber não fez grandes alianças com os
outros participantes, tendo dificuldade para se entrosar no grupo, sendo muitas
vezes posto de lado pelos colegas. Entretanto, à medida em que passava ileso
pelas eliminações, sendo desta forma preferido pelos telespectadores, a sua
inclusão no grupo ficava mais facilitada.
Um episódio curioso envolvendo o dançarino ocorreu dias antes da
definição do vencedor e foi decisivo para a sua vitória. Com as sobras do
material artístico (ferro e tinta) que Adriano havia ganho para trabalhar no ateliê
montado especialmente para ele num dos programas, com a ajuda de Sérgio,
Kléber fez uma boneca de ferro, que foi chamada de Maria Eugênia e se tornou
parte da decoração da casa, sendo posta na sala de estar. Nos últimos dias do
programa, quando só restavam Vanessa, Kléber e André, a produção do
programa retirou a boneca da casa. Entretanto, ao tomar conhecimento do
fato, o dançarino, em prantos e muito emocionado procurou a boneca por toda
a casa e não encontrando-a, foi até o “confessionário” implorar para que a
111
produção lhe devolvesse Maria Eugênia. Imediatamente a
produção do
programa devolveu a boneca à casa para consolo do dançarino58.
Diante da dramática cena de um homenzarrão (o maior e mais forte da
casa) em descontrole por causa de uma boneca, não foi difícil remeter o apego
à boneca de ferro, à exclusão sofrida por ser considerado um “caipira”
ignorante (inculto).
O pranto do participante foi o episódio mais comovente que o envolveu e
foi a tônica da final do BBB, junto à ênfase na espontaneidade da cena do
homenzarrão que chora, sendo bastante explorado pelo apresentador, que
dirigindo-se ao dançarino, afirmou que ele foi muito rejeitado e entrevistando a
mãe do participante, perguntou se ele era ou não uma criança. A mãe de
Kléber chorando, confirmou que seu filho era como uma “criança grande” e que
teve vontade de tirá-lo do BBB assim que viu tais cenas.
Na final do BBB, foram exibidos depoimentos de vários eliminados, cuja
maioria torcia para Kléber e que reiteraram a crença na inocência e na
espontaneidade do participante. Alguns deles, assim como a mãe do
dançarino, até choraram, admitindo que o excluíram durante a convivência no
BBB, como foi o caso de Alessandra, que referindo-se ao choro de Kléber
afirmou:
Ele é só sentimento, ele é só ingenuidade. Ele é uma
criança. Eu fiquei mal de ver ele chorando, porque é
muito triste aquilo. É uma pessoa que tá muito sozinha,
que pediu carinho pra gente o tempo inteiro e a gente não
teve a sensibilidade de ver.(...). Eu olhava aquilo, eu via
uma tristeza tão grande naquilo, eu não conseguia ver o
lado engraçado. As pessoas tavam rindo daquela cena e
58
Em relato informal, uma das produtoras do programa disse que o choro de Kléber deixou a todos
estupefatos nos bastidores do BBB, pois ninguém imaginou que a retirada da boneca da casa, que até
então não tinha qualquer expressão no programa, causasse tanto transtorno.
112
eu entendo, porque é engraçado você ver um marmanjão,
fortão, grandão chorando que nem criança. Só que ele é
aquela criança, ele não é aquele marmanjão, grandão.
(Alessandra, 02 abril, 2002).
O depoimento de Alessandra confirmava a crença na sinceridade do
participante. E apesar de alguns depoimentos de outros eliminados
questionarem a ingenuidade de Kléber, isto parece não ter sido suficiente para
diminuir o impacto da cena do homem forte visivelmente alterado, chorando
pela única “amiga” que segundo o mesmo fez na casa, a boneca Maria
Eugênia.
Disputavam com Kléber, André e Vanessa.
André foi o terceiro
colocado, mas saiu feliz da casa, com a proposta de lançar um “cd”, conforme
já dito. Na série de depoimentos dos colegas, ele foi chamado de “jogador” por
Adriano, o que como vimos era uma ofensa. Os demais não falaram nada
muito significativo. Vanessa ficou em segundo lugar e mostrou-se visivelmente
abatida com a saída do namorado e as suas especulações sobre o fim do
romance.
Na série de depoimentos dos outros candidatos, a modelo foi
chamada de “morna” e sem opinião, sobretudo porque se manteve distante dos
conflitos ocorridos no programa.
Deste modo, após a explosão emocional, o participante Kléber ou
Bambam, o “caipira”, depois de passar por quatro indicações para a
eliminação, se tornou o grande vencedor do Big Brother Brasil, considerado o
mais espontâneo, sincero e amigo dentre todos os participantes.
Sobre a escolha dos telespectadores pelo mais pobre, suponho que os
participantes que se dizem economicamente mais necessitados do grupo
113
suscitam a piedade daqueles, que escolhem o que demonstra ser o mais
sofredor dentre eles, reforçando a possibilidade de mobilidade social, tema
recorrente na maioria das telenovelas brasileiras, onde o pobre e sofredor
termina rico e feliz59.
Além disso, a figura do pobre vencedor serve para
enfatizar a idéia de que a mobilidade social num país de grandes
desigualdades sociais como o Brasil é possível, ainda que por meios pouco
ortodoxos, como num jogo televisivo.
Já a escolha dos “caipiras” aponta para a valorização de aspectos
relacionados à vida no campo, que me remeteu ao sociólogo Norbert Elias. Em
“A sociedade de corte” (1995), Elias aborda dentre outros aspectos a
idealização da vida no campo, criada a partir do impacto que o nobre tem ao
transferir-se do campo para a cidade e submeter-se às novas regras sociais
que morar na cidade exigia de cada um. A partir de então, o campo passou a
ser visto pelo nobre como símbolo da inocência perdida, da simplicidade livre e
“natural”, da espontaneidade, posta em oposição à vida na cidade, com as
suas pressões, autocontrole e autodomínio. Todavia, trata-se da idealização
de uma vida no campo que na realidade nunca existiu, pois em qualquer
formação social existem normas que devem ser seguidas, pressões,
autocontrole e autodomínio.
Suponho que a escolha dos “caipiras” no BBB represente esta
idealização da vida no campo, com a valorização de aspectos como o bommocismo, a simplicidade, a sinceridade e a generosidade, aos quais é atribuído
59
A título de ilustração citamos da Rede Globo as novelas “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, onde a
personagem que vendia sanduíches na praia se torna dona de uma rede de restaurantes e “Renascer”, de
Benedito Ruy Barbosa, onde um homem que no início da novela é roubado e torturado, se torna também
pelo trabalho um rico fazendeiro.
114
uma pureza de sentimentos.
Por isso, a vitória foi dada a indivíduos
considerados mais espontâneos, sinceros e simples, porque falavam errado,
tinham sonhos mais simples, comparando-se aos dos outros participantes, e
eram até tachados de bobos ou ignorantes pelos outros participantes sem se
importar, sendo por isso possível compreendê-la num programa cuja ênfase foi
dada à sinceridade e à espontaneidade.
115
3.4 Conclusões
Neste capítulo ao abordar a competição no Big Brother Brasil considerei
pertinente enfatizar o papel do público na competição que pode ter se
encantado com a interatividade e com a propaganda de ampliação de seu olhar
na vida privada das pessoas. A parte central do capítulo foi a descrição da
competição onde atentei para a afabilidade, a sinceridade e a espontaneidade,
como traços que tiveram um peso considerável no “reality show”. As afinidades
demonstradas entre os participantes, o choro nas despedidas dos eliminados, a
forma carinhosa pela qual se chamavam, associados ao drama que criavam
para votar e à ênfase na sinceridade em seus discursos, me fizeram crer que a
regra da convivência era a da cordialidade.
A reflexão sobre a escolha do participante do interior me levou à
idealização de valores atribuídos aos homens do campo, como a simplicidade e
a espontaneidade e que foram representados pelos “caipiras” dos “reality
shows”. Valores que por sua vez não estão dissociados das qualidades do
“homem cordial”, de Buarque de Holanda. O vencedor do Big Brother Brasil foi
aquele ao qual foi atribuída mais sinceridade e espontaneidade. Neste sentido,
a crise de choro de Kléber, foi decisiva para a sua escolha como vencedor,
pois, no país do “homem cordial” venceu o participante considerado mais
cordial de todos, o “caipira” espontâneo, sincero e que não sabe ainda controlar
automaticamente suas pulsões frente às regras que encontra na cidade grande
e chora por uma boneca de ferro.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na dissertação abordei os motivos que impedem a televisão de ser um
objeto de reflexão mais freqüente nas ciências sociais, destacando a atitude de
repulsa e encantamento que ela incita entre os intelectuais, as dificuldades
relacionadas à construção deste objeto de estudo e a recepção da dura crítica
aos “mass media”, que mais teria afastado do que atraído os pesquisadores.
Distância que a TV já não encontra entre os telespectadores, constituindo-se
muitas vezes seu único acesso à cultura, à informação e ao entretenimento.
Meu intuito foi então tentar compreender o sucesso de audiência do Big Brother
Brasil, exibido pela Rede Globo de Televisão no início de 2002, que foi muito
explorado pela imprensa escrita e que só confirmou o “frisson” que o formato
do programa holandês Big Brother, de onde o BBB foi originado, causou nos
países pelos quais passou.
Para tentar compreender o sucesso de público do
BBB me detive naquilo que o programa ofereceu aos telespectadores para que
apreciassem. Constatei que ele ofereceu novidades e regularidades do que já
é exibido na programação televisiva que o público gostou de ver, por isso, o
sucesso de audiência.
A novidade foi o convite feito ao público para “espiar” a convivência,
chamada de intimidade ou de vida privada, de doze desconhecidos do público
numa casa. Neste sentido, o uso do termo “espiar” foi associado à idéia de que
os telespectadores iriam ver as personalidade reais dos participantes em
oposição àquilo que eles são em sociedade, com a queda das máscaras
sociais. Entretanto, vimos que isto não é possível já que não há oposição entre
personalidade real e máscaras sociais, pois ambos se fundem e formam as
117
pessoais e ainda que elas sejam menos escrupulosas em seus lares, não
seriam deste modo num programa que as filmava em tempo integral. Mas
ainda assim, com o logotipo do programa (a câmera que se transforma num
olho), a disposição das câmeras, a participação do apresentador, a edição das
conversinhas particulares, dos dramas pessoais e daquilo que as pessoas
geralmente fazem em suas casas, como o banho, as necessidades fisiológicas
dentre outros aspectos, mostrei como o programa construiu a idéia de que o
telespectador iria “espiar” algo.
Por causa da proposta de levar o telespectador a “espiar”, no material
observado dos jornais o voyeurismo foi uma das justificativas mais freqüentes.
Entretanto, contrario à associação entre voyeurismo e telespectadores, pois
eles que não viram nada que não pudesse ser mostrado (ao contrário, viram
aquilo que mais se exibe na TV), não viram nada proibido e sobretudo não
espiaram, pois os participantes estavam no programa justamente para se
exibirem e conquistarem um lugar ao sol no mundo da imagem e dos meios de
comunicação de massa em geral.
Entre aquilo que é comum na TV brasileira e que o BBB exibiu, ressaltei
a exploração do corpo e o uso do grotesco como recorte estético sem nenhuma
conotação crítica, mas apenas sensacionalista, que não mostrou reflexividade
sobre qualquer assunto e reduziu a intimidade à banalidade.
Entretanto, o “respeitável público dos reality shows” não gostou apenas
da possibilidade de “espiar” algo, de ver o corpo, o grotesco e de intervir no
programa, eliminando e torcendo para os participantes, ele gostou também de
ver o sentimentalismo que o programa explorou, a espontaneidade, a
118
sinceridade e a afabilidade, características da cordialidade, valores que por sua
vez caracterizam a sua própria forma de estar no mundo e com as quais ele se
identificou.
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