O POVO DAS MAOS
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O POVO DAS MAOS
REPOVOAMENTO (histórias) Daniel Melim.2010 1. Amor 2. Comunidade 3. Animais Amor A VELHA ÁFRICA Era uma vez uma velha que foi apanhar lenha. Quando voltou a casa tinham-lhe destruído a casa. Para passar a noite, fez uma cabanita com os paus que tinha apanhado. Tapou a cabanita com as suas roupas estendidas, preparando-se para dormir nua, e como ainda lhe sobraram uns pauzitos fez uma fogueirita em frente à cabana. Durante o sonho que teve essa noite, foi-lhe revelado quem lhe tinha destruído a casa. Quando acordou, foi procurar comida e pelo caminho encontrou a pessoa que entretanto sabia ter sido a que lhe destruiu a casa. Disse-lhe Bom Dia e convidou-a a ir lá a casa tomar um cházinho, que era a única coisa que tinha. A pessoa quando ouviu convidar aquilo desatou a correr de susto dali para fora. A velha continuou o seu caminho e encontrou uns morangos, que comeu. Quando mais tarde voltou à cabana, esta tinha sido destruida e e todos os paus levados, até os da fogueira. Deixou-se ficar ali sentada até anoitecer. Quando chegou a noite e ela ouviu o som daquela pessoa a vir de novo, ela disse ao homem: olha, sei que vieste aqui para me tirares as roupas, que é a última coisa que tenho, toma, mas preferia mesmo era que dormisses comigo, porque também é isso que tu querias desde o início. O homem, muito tímido e estremecendo em muitas formas na penumbra, tirou também as suas roupas e juntou-se então a ela, em meio da caruma e sons da coruja e dos sapos. * PRESTES JOÃOZINHO Um dia o Prestes Joãozinho foi à dispensa e não havia leite. Foi ao supermercado e pelo caminho passou também na casa da Maria, porque tinha saudades dela. Ela não quis ir com ele, porque não lhe apetecia e tinha as costas a doer. Ele foi-se embora triste e quando chegou ao supermercado reparou que se tinha esquecido das chaves de casa. Fez as compras na mesma e depois de meter os sacos no porta-bagagens foi ao senhor João, que era tio da Maria e era serralheiro. Disse-lhe «olhe, dê-me uma mãozinha ali que eu depois pago, que agora fiquei sem dinheiro no supermercado.» O homem lá foi. Quando chegaram à casa do Prestes João, havia barulhos estranhos lá dentro, embora a porta continuasse fechada. Ele disse uma reza mas a porta não abria. O senhor João depois dele tentou com todas as chaves, e foi tentando e foi muito tentando mas só com a última chave dos vinte maços que tinha é que aquilo abriu. Lá entraram, e estiveram um bocado à procura do que é que andava por ali a fazer barulhos, sem nada encontrar. Viram depois que era uma fada mágica, sentada no sofá da sala a fazer zapping. Eles foram lá tirar-lhe o comando mas ela não quis dar. E como brigaram um bocado, no fim, ela que era uma pequenina atirou-lhe o comando à cabeça e fugiu pela janela que era mesmo ao lado. O Prestes Joãozito ficou com um galo de todo o tamanho da testa, e depois de pagar ao senhor João o serviço disse-lhe para chamar a Maria quando pudesse mas para não lhe contar aquilo da fada porque não se bate em meninas. Sentou-se a descansar no sofá, a olhar sempre o mesmo canal porque não encontrava o comando. E esperou muito pela Maria, mas como ela não vinha e naquela altura não tinham inventado ainda os telemóveis, foi sentar-se à janela porque fazia calor cá dentro e já era de noite. Depois de lá estar um bocado a olhar para a praça à noite e para os outros prédios, veio-lhe a fada em segredo pelo lado direito junto ao ouvido e disse-lhe: «se me deres um beijinho não digo nada à Maria e devolvo-te o comando.» Como eles foram sentar-se no sofá, tinham dado um beijinho e ela pequenina sentar-se-ia então todos os dias numa outra tecla do comando para eles verem juntos um canal diferente. * OS PASTORES E O SENHOR DAS TERRAS No tempo em que isto se passava não havia ainda a Itália, a Lapónia e metade dos Países Baixos ainda estava por nascer. As horas tocavam assim baixinho ao lado dos montes onde as vacas pastavam. Havia lá uma igreja e os pastores amavam-se por todos os cantos. Quando os cheiros das flores entravam nos narizes nasciam crianças e as avós primeiro ralhavam e depois ficavam felizes. «Amo-te», disse o João à Maria, e tomou-a por trás, como os cavalos na estrebaria. Depois beberam água da fonte e foram tratar das vacas. Os pastores ali bebiam muito. Água, bem visto, e por isso tinham os pulmões mais abertos e cheiravam mais longe. Um assim dizia até que conseguia ver o leiteiro a vir, quando este não se via e estava ainda por detrás da igreja. O senhor das terras fartou-se disto tudo e mandou matar sete cabras. Os pastores ficaram a ver porque, a bem dizer, aquilo os punha tristes mas havia ainda árvores e o amor. Matou mais cinco, o senhor das terras, e eles: tampis! Ele, o senhor das terras, ficou mais que chateado, e mandou por vinagre em todas as ervas, de tal maneira que as costas da Maria (ou do João, quando ela estava por cima) ficavam azedas nos lambimentos do amor feito ao ar livre; e mesmo dessa feita cagavam para o gajo senhor das terras, porque ele não era nada de especial. Mandou o senhor das terras alcatroar os pulmões de todos os que lá passavam durante trinta estações e carnavais e o sítio ficou bem feio e escuro. As dificuldades que tiveram foram muitas mas lá acabaram por se mudar os pastores para um terreno pequenino ao lado e um deles teve a ideia de criar o Alberto Caeiro, para ver se pelo menos em papel o mundo deles sobrevivia. Do mal o menos, assim podiam sempre esconder os papelinhos com os poemas que eles escreviam do Alberto Caeiro eou quando as brigadas passavam a alcatroar tudo podiam mesmo engoli-los. Aquilo era muito difícil de engolir (o alcatrão era difícil de engolir, porque eram obrigados pelo senhor das terras a comê-lo, e os papéis com os poemas do Alberto Caeiro eram difíceis de engolir porque tinham de fazê-lo empurrando com água que já não era das fontes frescas). A história repetiu-se muitas vezes: os pastores faziam uma coisa, o senhor das terras fazia outra. Um dia, quando o mundo era um pedaço de alcatrão com um sinal de trânsito a meio, os pastores, que tinham inventado uma maneira de viver a voar, desceram um bocadinho cá a baixo para ver se dava para plantar alguma coisa. Um homem a mando do senhor da terra deu-lhes um pontapé no cu e disse-lhes: «fora daqui.» Iam sair dali, mas antes perguntaram: «o senhor das terras ainda está vivo?» O homem que lhes tinha dado o pontapé disse: «agora é o filho dele.» Eles viram logo que era mentira, que não havia filho nenhum porque ele não era capaz de amar para nascer um filho. Sem mandante, assim, sentaram-se todos os pastores no alcatrão à espera que as ervas daninhas conseguissem rebentar e de cada vez que vinha um homem a mando do senhor das terras davam-lhe um beijinho e diziam para ele segurar uma das crianças que entretanto no ar eles. * UM BARQUINHO Um barquinho. Um barquinho a vogar por cima das ondas, suas irmãzinhas de baixo. As ondas a levá-loinho aos ombros, carregadinhas de felicidade ao fazê-lo. O barquinho sonolento por cima delas, como que deitado a dormir a sesta com massagens das mãozinhas das ondas que por baixo. Uma lenta bossa o sono dele mais as ondinhas, um gingar colando uns aos outros, elas nelas, ele nelas, elas nele, ele e elas na roça. O vento soprava no cima e as suas mãos massajavam-nas de cima, às ondinhas. Os ventinhos mil escolhiam cada um a sua ondinha e levavam-na até onde podiam, fazendo-lhe espuma no seu modo de beijar e ser branquinhas. Depois a dissolução, o vento volta aos outros ventos, a onda volta às outras ondas. Os rituais do amor. As ondas agitadas, os ventos e as suas entradas, a meio a barquinha ondulada a vir-lhes no amor balançado, a barquinha dormir como um bebé ali no amor das ondas e os ventos. O barquinho bebé, o lençol limpo das mudanças de corrente. As tempestades paternas do vento e modo como a mãe quase o engole em ser onda. A chuva alimentar, a mãe água, o vento o pai a trazer a chuva. O barquinho a dormir na chuva, a criança em sítio de luta. O modo como o vento o vogava de sul, depois de norte. As mãos moles da mãe a sustentá-lo aguosas e alimentadas. A barquinha, qualquer uma, a quase morrer nos lençóis de água. A água a lavá-la em bica, o pai a soprar-lhe a água. O barco como que a dormir. A água a serenar e o dia a nascer no vento brando e seco com o sol lá no fundo. As lutas são de noite, a ventania branda de dia. O barco sem tribos lá dentro nem pescadores nem vontades, um bebé dormindo na sorte dos dias, adormecendo no modo como a mãe encostava o regaço ao sulco do pai. Antes da terra, os canibalismos essenciais da barca destroçada na próxima tempestade e os destroços à costa na praia. Os pedaços de pau jogados na areia. Alguém a reconstitui-los em forma de cubata de brincar, alguém em forma de crianças negras a brincar lá dentro e também por fora. O dia todo elas a brincar. No fim do dia alguém um último pontapé naquilo e voltar para as casas reais. A descubata moronada ali na areia de vez, levada às ondas aos bocados, adeus e até qualquer praia, ou o modo como as criações entre o vento e as ondas no modo como a espuma bate na terra. * MENINA Todos os dias se sentava à porta de um prédio diferente, Menina. Entrava quando alguém abria a porta. Subia até ao alto das escadas interiores do prédio e escrevia uma frase na parede, com spray e em bem grande. Era uma sorte de vandalismo benigno. As frases era escritas com maiúsculas e tentavam dar força às pessoas do prédio. AMA era uma das mais comuns. E era por todo o qualquer lado de dentro que as escrevia com letras agitadas e somente a vermelho. O que ela não sabia era que as pessoas não querem conselhos. Menina morava dentro de uma mulher de 37 anos. Com as suas altas pernas magras sentava-se à porta de um prédio a cada dia. E estava coberta por um vestido verde, por habitual. A situação era portanto esta: frase dentro de Menina dentro de mulher dentro de vestido dentro de prédio. Escrever era a maneira de atravessar todos estes perímetros e cravar-se no mais fora deles, o prédio. As pessoas não queriam conselhos, apagavam ferozmente as frases com lixívia e tudo o que havia à mão, inclusive com fúria e outras mortes. Menina era frequentemente vista como Vagabundo por estar ali àquelas horas sentada. Mas nunca desconfiaram de que fora ela que escrevera aquilo ali, praguejando contra outras pessoas (erradamente) aquando de esfregar. As pessoas não andam atentas. Um dia começou a ir de noite. Tinha percebido o problema dos conselhos serem malvindos. Também como antes, era quando a porta se abria que ela entrava. Entrou atrás de um homem de preto e de uma mulher velha espalhada pelos dois sacos que trazia e atrás de um rapazito e da mãe, um por noite. Chegada ao topo da escada do prédio, escrevia agora as frases apenas com uma lanterna, quando a luz das escadas se apagava. Era como uma benzedura aprendida dentro de uma pirâmide. Só que à noite as pessoas estão mais atentas, e algumas pessoas viam-na às vezes a sair do prédio e a seguir caminho pela rua, ficando desconfiadas. Era portanto esta a nova ordem das coisas: luz dentro de coração dentro de Menina dentro de mulher dentro de vestido dentro de prédio escuro. A luz emergia desde o seu coração até ao prédio através de frases escritas com a lanterna. Depois ia-se embora. Isto aconteceu bastantes vezes. Uma vez ela deu-se conta de ser vista e não voltou a prédios. Doravante passaria a ir para um pátio exterior rodeado pelas costas dos prédios A, B, C e D. Uma estrada pouco frequentada passava perto. O pátio era basicamente de lajes de cimento, com alguns canteiros de terra abandonados. Umas cinco ou seis árvores dispersas pelos canteiros sobreviviam graças à chuva atribuida à cidade. Estacava ao centro do pátio. A iluminação pública não funcionava ali. Ela estava no escuro. Em silêncio, Menina ouvia as frases dentro de si, as frases como AMA e FORÇA! Luz dentro de frase dentro de Menina dentro de mulher de 37 anos dentro de pátio dentro de universo. Isto ela era como uma pirâmide. De vez em quando passava um carro na estrada perto e ela era milésimamente visível graça àquilo que dos faróis conseguisse passar entre os pilotes térreos dos prédios, como um prisma que atravessado por um raio de luz durante um segundo em toda a eternidade. Alguém reparasse naquilo acontecer todas as noites: tal é a probabilidade do amor na cidade. * BERNARDO SEM MEDO A aventura de Bernardo sem medo começa com um segredo: Bernardo sem medo não foi, teve medo. Disse à mãe que ia, deixou-se ficar a um canto lá em casa. Passou passando o dia por fora da casa: as pessoas na janela, pássaros, tudo passava. Bernardo, a coberto de ter ido, ficou pensando tudo o que a mãe pensaria dele por ter saído: que era um quixote, um herói, um fura-bardos, um arrufa-amores. Na sua imaginação, Bernardo estava no pódio de sua mãe. Mas deixou-se em casa a fazer paciências, em vez de ir. Fez vários castelos de cartas. Como não nem abria as janelas para arejar, as correntes de ar não os podiam derrubar. A mãe de Bernardo chegou ao fim da tarde e trazia sacos de compras na mão, forte. Bernardo seguia fazendo paciências a um canto. A mãe foi para a cozinha e pôs-se a fazer comer. Depois veio à sala e perguntou-lhe como foi. Bernardo respondeu-lhe coisas espantosas, milagres, foi de tal maneira maravilhoso que cabum! Foi-se ele e a mãe deitar, cada um sozinho no seu quarto depois do jantar. Bernardo acorda cedo e Bernardo tem ainda outro segredo: das sete para as sete sai à rua antes de toda a gente estar lá fora, ele corre por todo o lado e fica livre e com ar fresco nos pulmões entre as ruas vazias. Antes da mãe de pé já está ele ao pé dela, pequeno-almoço. Vai-se a mãe embora, vai para o trabalho. Bernardo devia ir, não vai. Vai a mãe pela rua a pensar que tem de lhe arranjar um pai. Foi ver ao supermercado e não havia lá nenhum. Foi ao mecânico depois do trabalho por causa de umas peças e ele também não sabia de nada. Perguntou no dia seguinte lá na botica, tampouco sabiam. Ao chegar a casa, em todos os dias Bernardo lhe contava uma história diferente. Um dia, quando voltava para casa nos seus saltos altos, a mãe ouviu qualquer coisa esquisita vinda de uma sarjeta, junto ao passeio. Baixou-se para ver o que era e viu que era um pai muito pequenino a dizer que queria que ela o levasse para casa com ela, que ele queria ir. Pôs o pai na lapela e andou até casa. Pelo caminho o pai ficou excitado, porque debaixo dele balouçavam os seios generosos e saudáveis dela. Quando chegaram a casa foi posto ao pé da janela com muito cuidado. A mãe foi chamar Bernardo e disse que tinha arranjado um pai para ele. Era pequenino mas era o que havia. Bernardo no início achou estranho mas depois lá se habituou, porque a mãe lhe tinha dito que ele é que tinha de cuidar do pai, dar-lhe de comer, pô-lo junto à janela para ele apanhar sol, regá-lo, enfim, tudo o que um bonsai precisa enquanto a mãe está fora. E o pai lá foi crescendo muito lentamente, com mimos. Porque o Bernardo, apesar de continuar a passar o dia a fazer castelos de cartas e muitas paciências, agora ia ver se estava tudo bem, se ele queria isto ou aquilo. Com o tempo e os cuidados, o pai estava a ficar grande, grande que quase já nem cabia na janela por cima do lava-louças aonde o tinham posto. Não se esperava isto de um pai. Um dia, Bernardo, que apesar de todos os cuidados ainda era desmiolado, não reparou que o pai já não cabia ali e deixou-o estatelar-se todo no chão. Com esta e outras confusões - como o facto do pai, já grande, precisar de gravata e Bernardo não compreender as suas novas necessidades - chateou-se tão a sério que quando Bernardo chegou à cozinha vindo das paciências lançou-lhe um berro enorme. Por causa de um novo grande medo Bernardo teve de fugir lá para fora e era meio da tarde como nunca antes tinha sido para ele na rua. Havia tanta gente a fazer tanta coisa e era uma assustação, mas depois daquele tempo todo fechado em casa até sabia extremamente bem. Era estranho e de bebedeira. O pai já era nesta altura muito maior do que ele e quando ficou sozinho em casa foi abrir as janelas para arejar. Por causa disto voaram vários dos castelos de cartas que ao longo destes anos Bernardo tinha erguido por ali. Os outros voaram enquanto o pai se pôs a arrumar a casa. O Bernardo demorou imenso tempo na rua, estava refascinado como quando se vai pela primeira vez ao Red Light District e se anda ali às voltas com um misto de curiosidade, medo e excitação. Muito depois, quando já tinha os olhos cheios e as pernas cansadas, quando já tinha o coração aberto a punho de tanto e tanto pelas ruas rehumanizadas, voltou a casa como quem adormece aconchegado. Os pais faziam amor. Bernardo podia finalmente nascer. * SUSANA As dores das costas de Susana eram uma demonstração de afecto como há muito já não se via. Eram as dores de amassar o pão, eram as dores de amamentar os filhos, eram as dores dos arcaboiços que lhe jubilam. Eram as vontades todas do mundo acarroçadas às costas delas e ela cantava de as acartar, pedia mais uma só para verem como aguentava. Aquilo era uma coisa que faria a Luísa-sobe-que-sobe-a-calçada corar de vergonha ao meio dia por aperceber-se que a essa hora já Susana tinha feito o trabalho de um dia inteiro. E até trabalhava no Extra para fazer uns trocos a mais. Aquilo era um espanto de mulher, glorioso de se ver. As horas acertadas para tudo, as mamadas perfeitas ao marido, o modo como os orgasmos dele saíam em repuxo graças à técnica de masturbação que ela tinha aprendido nuns fascículos das Selecções, os modos certos das tortas quentes aos meninos, as histórias sempre novas que contadas à hora de dormir por Susana pareciam ganhar vida visível, enfim, tudo. Mas o mais impressionante era vê-la trabalhar, uma ave entre os postos de trabalho, um canário a cantar de gozo livre pela determinação com que operava, um modelo de virtudes, uma determinação estóica na fidelidade conjugal, uma sortuda pelo modo como a vontade lhe fazia sempre amar as pessoas certas. Um dia, entroulhe o canhão de um tanque israelita pela janela. Partiu os vidros todos, tapou a paisagem do jardim que se via dali e foi estacionar a sua enorme bafejante boca de metal redonda a escassos milímetros de Susana, que dormia descansada, aproveitando o Domingo de Páscoa para dormir até um pouco mais tarde. O marido tinha ido buscar a mãe. Como tinha um sono descansado, levou algum tempo a acordar mesmo com aquele barulho todo do canhão a partir a janela. Uma voz radiofónica gritou-lhe de dentro do canhão: acorda puta, levanta-te da cama ou levas um balázio! Ela abriu os olhos docemente, as pálpebras justapostas abriamse com a doçura de uma dobra de lençóis frescos. Lá de dentro, os seus olhos azul-profundo treme e amplexamente entreviam a luz da manhã pelos poucos espaços de céu que o canhão deixara visíveis. Que bela luz, pensou ela, e delicadamente sentou-se na beira da cama para calçar os chinelos, que condiziam com a colcha de seda cor-de-rosa. O canhão rodou mecanicamente o cano para ajustar-se à nova posição de Susana e ficar-lhe de novo com a boca gigante encostada ao rosto. Susana espreguiçou-se esticando os braços e, enquanto o fez, não pode impedir que lhe transbordasse um suave sorriso de prazer ao reparar como os mamilos estavam um tanto doridos depois da encantadora noite de amor. -Oh puta, tás-me a ouvir?! Mexe esse cu ou rebento-te os miolos. Baza daqui que vamos ocupar esta casa. Põe-te a andar daqui e leva os putos, senão eles também levam nos cornos! – O tipo que falava era apenas silhuetamente visível por detrás de um pequeníssima grelha metálica na frente do tanque e falava para um rádio que segurava na mão. Ela, na sua beleza infundível, contorceu-se sobre a cómoda, olhou três segundos para o espelho, para assegurar-se de que de facto precisava de tomar banho antes de aparecer na sala, e num gesto que deve ter ficado nos anais da história da elegância, executa num sopro a tripla tarefa de ajeitar as madeixas louras, enfiar a parte de cima que condizia com o chinelinho de seda e sair do quarto sem fazer qualquer barulho e mesmo assim fechando a porta. O tipo do tanque continuava a girar o canhão, partindo nesse movimento para a esquerda a parede onde estava o espelho, o espelho e metade da porta. Pelo buraco que abriu na parede via-se Susana a preparar-se para tomar duche, despindo uma a uma a intimidade vestida. -Eu estou-te a avisar, puta não brinques comigo. Tens exactamente dois minutos para tirares tudo o que quiseres daqui. Depois rebentamos com esta merda toda. Tás a ouvir?! Ela delicadamente abriu a torneira de água quente e, como de costume, teve de ajustar várias vezes com a fria para a temperatura ficar boa. Quando se lembrou de pôr a touca já tinha uma parte do cabelo molhado e não achou piada nenhuma. Começou por convidar os vapores e o som da água a invadiremlhe as células, uma forma de dizer bom dia ao mundo que há muitos anos provava os seus resultados. Depois a água a cair-lhe pelo corpo, a mão entre as cochas, a passar nos seios, o ventre, a percorrer toda a árvore do amor até que o champô e as espumas. Os movimentos coleantes da espuma em rios e cascatas pelo corpo moreno de Susana. A toalha de um turco puríssimo, o canto habitual frente ao espelho enquanto os cremes. Olhava-se ao espelho rodeado de lâmpadas e cantava êxitos da Broadway enquanto aplicava os produtos em pequenas quantidades bem espalhadas. O canhão partiu mais um bocado da parede, rebentando os vários armários da casa de banho e ficando mesmo atrás da nuca dela. Duplicados no espelho a que ela se olhava, esta dupla Susana-canhão depressa se desfez porque ela, mãe zelosa, passou de um pulo só para os salões, a preparar o pequeno-almoço aos três pequenos rebentos que há muito a esperavam. Quando se dirigia de toalha na cabeça à máquina de café que ficava do outro lado do balcão da cozinha aberto directamente para a sala e os três rebentos se sentavam já na mesa, a peça de artilharia mais comummente conhecida entre os israelitas por tanque MZ-147 entra-lhe mesmo pela sala grande adentro, derrubando o que restava da parede entre a casa de banho e a sala. Susana põe-se de robe branco à frente dos três filhos, defendendo-os. A voz radiofónica de dentro do tanque diz: - É agora, ou saem JÁ daqui ou rebentamo-vos os miolos! A boca do canhão estava agora a um palmo do peito de Susana, que escondia de braços abertos os filhos atrás das costas. Susana morre. Os miúdos conseguem fugir pelas traseiras. Os israelitas ocupam-lhe a casa, vasculham-na à procura de bombas e depois deixam-na. Há quem diga que segundo a lenda foi o coração gigante de Susana que amorteceu o tiro de canhão e impediu assim os filhos de serem mortos. Há quem diga que ela berrou para eles fugirem antes de enfrentar sozinha o canhão. Há quem diga também que o suicídio de Susana foi muito estranho, depois de tudo o que tinha conseguido na vida * A MULHER QUE SORRI Um veneno suave, doce, um veneno sueco. Um adeus às armas, luta deitada no chão, cansada, adormecia. As musas entupidas despediram o canhão em coro, depois choraram para dentro dos vivos e disseram adeus aos sítios dos costumes. Uma puta. Saiu da montra. Vestiu a roupa. Comprou um bilhete da lotaria. Saiu. Voou num avião até à Islândia: aqui não há montras. Andou pela cidade. Aqui não há montras com putas. Avistou um avião a passar por cima da neve branca, o avião era uma cruzinha negra a atravessar lentamente os céus. Xis de Aqui pelo infinito adentro. Continuou a andar. Aos quadrados nas ruas, andava. O problema era sair do ritmo de curvar sempre nas esquinas, andar sempre às voltas quadradas nos quarteirões. Ao fundo de um beco muito comprido de Rekjavic avista um descampado. Caminhou aos pulinhos entre os tijolos do beco, agarrada à carteira debaixo do braço direito. Saiu para o campo, nada. Neve a perder a vista ao mesmo tempo para todo o lado e em suavíssimas ondulações. A cidade para trás dela. Empunhava apenas a carteirita e um alto casaco de peles que comprou no aeroporto à vinda para cá. Peão parado, olhava em todas as direcções e deixava-se invadir pelo ar que ali circulava mais solto e ventanio sobre o imenso manto branco. Abriu os olhos e já estava a andar sobre a neve. Aspergia neve em todas as direcções nos passos largos que dava. Avançava decidida. Os olhos semiabertos sobre a neve que saltava dos seus passos. O ar gelado a gelar-lhe sabidamente os pulmões. Andou muitos metros, infinitas aspersões de neve nos passos bem traçados. Ao fim dos metros suficientes, o frio era já o combustível daquela viagem, animava-a aquele vazio de encheada. O vento empurrava-a e curvava sobre os cabelos loiríssimos, curtos até ao pescoço, soltos de todo aquele imenso nadar. O vento às vezes buzinava tanta força que se sentia mais revolvida pelo mar que pela neve. Era o som do vento, o dos búzios. Vu. Festas o vento, empurrão o vento, contrariando o vento e até nisso lhe ganhava força, medindo a sua própria convicção nas mãos invisíveis do sopro que a contrariava, achando-se então cada vez maior dentro dela. A malita de lustro preta sempre segura pela mão direita, pendurada do ombro. As peles vestidas a esvoaçar, a gola alta reforçada pela mão esquerda que tentava que a gola não abrisse, tapasse. O suave sorriso que ia despontando quando as dores se iam congelado nas pernas, cada uma delas, cada vez mais enterradas na neve. A dado ponto, olhou para trás e Rekjavic era já pouco mais que uma mancha azul ténue no horizonte. Aos poucos deixou de se ver. As dores subiram-lhe das pernas para o corpo todo, e já não sabia se era o frio ou que outra coisa qualquer. Ela cobria-se de branco, porque a neve aumentava no vento e a neve do solo dava-lhe já pelos joelhos. As dores eram a viagem e o sorriso amontoava-se nessas dores. As dores durante dias. As dores dia e as dores noite. À noite, nas montanhas que suavisivelmente rodeavam Rekjavic, as estrelas eram de um brilho intenso, invulgar, inteiro no modo como exuberava discretamente do vácuo fundo em milhares de pequenos sorrisos. Passou a primeira noite em grutas, a segunda junto a um lago onde as estrelas muitas, a terceira já não se lembra. Depois já era a dor a caminhar por ela, uma lâmina quente a derreter a neve que lhe dava pelos ombros. Os búzios. Os largos braços do vento. O longo golpe dela na neve. Ela era um gesto só a ouvir o vento e a ir por ali a fora. A um dado momento a puta sorria definitivamente. A um dado momento, como em todas as incursões pelo frio, o abrandamento nos braços do gelo. Quando viajava já totalmente debaixo da neve, depois de descrever um longo túnel congelou. Anos depois, a puta foi encontrada por um grupo de aviadores. Deitaram-na na marquesa do avião, como se ainda viva. Um deles, Wolfgang Recht, quarentão de barba ruiva, sentou-se na beira da marquesa e destapou-lhe o gelo do rosto com um pano turco molhado em água quente, suavemente. A cada toque seu, o corpo dela aquiescia, consentindo revelar-se em pouco a pouco. Os braços apressados de Wolfgang depressa se deram conta que apenas pequenos gestos muito concentrados faziam bem a tarefa de derreter os últimos bocados de gelo que redomavam aquele corpo. Absorviam-no a ele as repetições mil dos gestos que quebravam as camadas. Os dois outros aviadores discutiam coisas banais no cockpit e ele ficara lá atrás com a Coisa, como lhe chamavam. Entre as sujidades congeladas que rodeavam a Coisa, os dedos de Wolfgang iam abrindo passagem e depositando regularmente os detritos sujos em algodões no chão. Depois, com um gesto pungente, mergulhava de novo a toalha turca no alguidar de água quente e seguia derretendo os gelos e outras escuridões como matos e lamas em torno dela. Os gestos sulcaram-lhe a forma dela, as cochas, a estranha forma mirrada do casaco de peles. Descartou a mala vinílica dela e alcançou as mãos esguias da Coisa. Depois os braços, o peito. A esta parte, já as águas que escoavam da Coisa em desgelo inundavam parte do amplo vagão aberto do avião. Com as oscilações do voar, a água caída da Coisa acumulava-se mais à esquerda ou mais à direita do vagão, mais atrás ou mais à frente em pequenas ondulações que os pés de Wolfgang não consideravam. Absorviam-no agora mais precisos os gestos de limpar-lhe o rosto, de desvelar-lhe a face. Derrete a água que gelava a fronte, alta e eslava, os olhos, dois ameijoados nas formas finas, a cana e as narinas, as maçãs do rosto, os cabelos louros, o pescoço e queixo esguios. Depois veio a boca, último gelo. Abria-se-lhe um gesto: o sorriso dela não era definitivo como o das caveiras, era mais macio e real, cortante e animal, como a satisfação no estado aberto de uma loucura qualquer. Aproxima-se, era terrível, um rosto verdadeiramente vivo. Inesqueceu-se daquilo e tentou beijá-la. Os lábios violeta dela não eram receptivos, o gesto amplo de sorrir exuberava tanto que não tinha capacidade de aconchegar a forma dos lábios dele. Susteve-se no gesto, a escassos milímetros dela, a sua respiração arfante e quente a derreter-lhe os últimos cristais no rosto. O sorriso dela também não era como o dos vivos, social, medido, crucificado nos gestos da vida comum. Era inadiável e já, entrante no encará-la assim de face a face. Fitou-a horas seguidas, como o cuidado que o enfermeiro na ambulância ao paciente. Todo o longo voo da Islândia ao continente a fitá-la. «A mulher que sorri» era uma das campas mais visitadas do Père Lachaise, ilustre cemitério de Paris. Era ela, a puta sem nome um dia ali ilegalmente posta em descanso por Wolfgang Recht. Ninguém o viu entrar com ela ao colo, saltou o muro, encontrou uma campa vazia e deitou-a no solo uma última vez para a contemplar. Estava uma sereníssima lua cheia e o sorriso rasgado dela parecia ali ter cumprido o seu destino. O rosto dela estava iluminado de tal lunar que se assemelhava às inúmeras estátuas marmóreas que naquela colina bordejante de árvores choravam os seus mortos. Fez-lhe uma cama de folhas secas no fundo da campa, deitou-a suavemente sobre elas e depois de sair de lá de dentro cobriu-a com mais folhas secas. Pensou encher aquilo e respirou fundo. Encheu o resto com todas as folhas que encontrou ali à volta. Passou três horas a arrastar para o túmulo uma enorme pedra tosca de arenito que parecia a ponta de um iceberg. Colocou-a sobre o túmulo. Com mãos tremendo, inscreveu a tinta negra «La femme qui sourit» e a data do seu encontramento. Roubou flores ao túmulo do Alan Kardec e pôs ao lado da pedra. Pensou na sua última namorada, na severidade dela, pensou também nos seus cabelos que pareciam os da Medusa. De pé contra a pedra que arrastou até ali, olhou a lua cheia, ouviram-se corvos, passaram os corvos entre as silhuetas negras das árvores nuas de Inverno. Esperou um milagre. O milagre não veio. Esperou mais um bocadinho. Foi-se embora. Vieram de manhã os turistas, puseram mais flores, criaram histórias sobre aquilo. Veio a direcção do parque, abriram o túmulo, a mulher entregue à bicharada, tiraram-na, cremaramna. Deixaram lá a pedra, voltaram a tapar o túmulo. Incluíramno na lista de coisas a visitar no cemitério. * OS HOMENS E AS MULHERES Na estação, despediram-se os homens das mulheres e elas partiram para a Lua. Quando lá chegaram fizeram queijo para se esquecerem da tristeza e a cada buraco desse queijo disseram um segredo. Quando foram para o mar, os homens deitaram segredos dentro de garrafas depois de as beberem para não ficarem tristes. Por isso é que a água e o leite correm muito quando eles se encontram de novo. Os homens e as mulheres à noite falam baixinho um com o outro dentro da casa, porque os ratos sabem os segredos tristes da distância guardados nos armários e nos porões e roem muito e por todos os lados. O vento sopra na rua. A lua está sobre o mar. A casa está parada a amar. À volta os ratos roem. * O ENCANTAMENTO Deitou as cartas e viu que a Maria não se amigava dele. Pegou então num facalhão e foi pelo mato adentro. Para não enlouquecer de raiva esculpiu uma barca. Navegou nela sete dias e chegou a uma ilha encantada. Lá, um mouro pediu-lhe três desejos, que ele havia de lhos conceder. O homem, como era de bem, pediu para voltar à terra e que lá fizesse fortuna e tivesse Maria por sua esposa. Voltou então à terra demorando desta vez apenas dois dias, sendo que lhe apareceram os bolsos cheios de ouro e Maria a seu lado logo depois de aportar a barca. Vendo que ele era um homem que sabia controlar a sua raiva, Maria contou-lhe que tinha feito um contrato com o dono da floresta que deu a madeira para fazer o papel das cartas dele deitar e para o barco e também estava apalavrada com o mouro encantado, de maneira que tudo aquilo era um testesinho e vão ter muitos filhos vivendo muito tempo felizes na sua terra. Mas ele achou que era demais cenariar aquilo tudo, como se ele um brinquedo navegando nas ideias dela para um lado e para outro, conforme ela a soprar. E largou tudo aquilo e ali mesmo o amor que lhe tinha, de trombas aviado para fora daquelas provices. E foram os dois dificilmente palavras até fora do bosque, até fora da história. E, lá sim, já fora das folhas, casaram. Ele vestido de Maria, ela vestida dele, ela dizendo desculpa e ele dizendo não faz mal já fiz igual, os dois cheios de dúvidas e iguais aos outros todos, às vezes felizes às vezes na merda, às vezes personagens às vezes sendo de verdade. * O CANSAÇO Não estava maluco, estava cansado. Cansado e fodido com a vida caminhava em direcção ao pôr-do-sol com uma espingarda da mão. Disparava, mas o filho da puta do sol da maravilha nascia sempre de novo. Comunidade O SR. FARNEL Era uma vez uma nota. Quando o sr. farnel a dobrou em dois três quatro e fez dela um barco, os meninos gostaram que ela fosse lançada ao rio. Ao chegarem a casa, os três meninos fizeram o mesmo com as notas que encontraram na carteira das mães. Lançaram cada um estes barquinhos notáveis ao sitio de água que estava mais à mão: um regato, um lavatório, o mesmo rio que o sr. farnel. O grande Douro. As mães não gostaram, assustaram e bateram, ensinando o valor. As mãos pesaram como ouro cheio de passado aos ombros de viuva domingueira. Aos domingos no adro, sr. farnel era olhado de lado, sempre solteiro, de mãos nos bolsos e assobiando. Além longe, na outra margem do rio, vigilavam sempre as fábricas dos maridos das mães. Só as crianças o pareciam seguir para todo o lado. E, se o sabia, não era por isso que mudava. Chegou por ali a haver uma época em que deixar de assistir ao lançamento da nota ao rio assinalava a passagem à idade adulta. A idade de ser sólido, de construir: pedra. Alguns nunca passariam, e talvez ou seguramente por isso a aldeia ainda existe e cante. O sr. farnel era uma montanha assente em crianças. Não pediu para sê-lo: foi erguido. Em matéria de sustentação, os campanários e as chaminés de fábricas nunca poderão competir com as serras. * O CEDRO QUE CRESCIA ENORMEMENTE Como ninguém naquela aldeia sabia se o cedro novo que crescia enormemente era uma angiospérmica ou uma gimnospérmica, decidiram descer todos a montanha e ir perguntar ao professor que vivia lá em baixo. Quando chegaram ele recebeu-os a todos com um cházinho. Ele pegou nos livros e explicou trinta coisas que não tinham nada a ver e por fim lá disse que o problema das árvores era manterem-se fiéis. Como ninguém percebeu nada daquilo, e já se fazia noite, tossiram todos um bocadinho e foram embora pedindo licença. Cansados da viagem, chegaram de novo lá cima à aldeia com os bofes de fora e a dizer : «Ó Maria, telefona lá ao homem que ele há-de te dizer alguma coisa sobre a árvore nova. Vá lá, ele gosta de ti, telefona.» Depois de lhe darem chocolates, a jeitosa da Maria concordou e foi-se à cabine pública meter moedas para telefonar ao professor, com a aldeia toda à espera atrás dela e a ver. Estava impedido. Bofaram todos e foi cada um para sua casa fazer o jantar à sua maneira. Para ela não se esquecer de telefonar outra vez, veio cada um com uma coisa diferente bater à porta dela depois e dizer-lhe: «Lambe-te lá com isto, Maria, que as voltas que o colchão dá não hão de pagar os favores de ciência que fazes à gente. Bendita sejas, pequena.» Ela achou muito estranho dizerem todos o mesmo aquilo, ainda por cima com o mesmo tom. Mas como as coisas que lhe traziam eram boas, lá ela ia lambendo os dedos e dizendo: «Cá te vistes, cá me tens, se me amas dessa maneira hás-de ter os meus bens.» Meia hora depois da chegada do último pudim, pensou que tudo isto era obra do Manelito, que fazia tensões de chegar a prior. «Quero lá saber», disse ela aos botões. Alçou a meia e foi saltarilhando colina abaixo ter com o professor a meio da noite, já que ele não lhe atendia o telefone. Chegou lá baixo e como ele também não lhe abriu a porta, espreitou da janela que malabria e viu lá dentro uma miúda mais nova que ela toda nua com o professor, os dois à frente da lareira. Ficou muito triste, sentou-se a chorar muito na soleira da porta e depois teve uma ideia: vou subir ao telhado e deitar pela chaminé bagas de pedreira, que há de lhes criar bolotas na pandilha. Assim fez rapidamente e fugiu embora logo de seguida, a rir do feito no meio dos soluços do choro. No outro dia de manhã, quando o sol abria as padarias, chegaram o professor e a amante da lareira ainda os dois de pijama lá a cima à aldeia. Como estavam os dois muito barbudos e chateados por causa disso, puseram-se a gritar no meio da praça principal onde estava o tal cedro: «Quem é que fez esta merda? Hã?! Respondam, seus pafónios! Desengulam os cremes e venham marear a coisa feita! Se eu fosse o mandante disto vocês iam de caneca», acrescentou o professor. Como já tinham gritado, foramse embora da aldeia. O professor e a amante, mais satisfeitos. Quando iam mesmo a sair da povoação, encontraram uma velha que tinha umas bagas de fazer desaparecer a barba: eram bagas do cedro novo que crescia na aldeia, disse o professor. «Trata-se de uma angiospérmica», precisou ele para impressionar a amante. A amante, que estava muito chateada por ter agora barba, nem ouviu. Pagaram à velha as bagas e comeram aquilo. Enquanto iam a descer de novo desde a aldeia até à casa do professor, a barba foi-lhes caindo, deixando duas filas de pêlos pela encosta abaixo, uma atrás de cada um deles. As filas iam desde a aldeia lá em cima até à casa do professor lá em baixo, como os carris de um eléctrico. Eles chegaram muito contentes e sem barba à casa do professor e foram logo fazer amor por causa disso. Quando no dia seguinte foram tomar o pequeno-almoço à janela, viram de lá que os pêlos que eles deixaram cair se tinham transformado em duas filas de cedros que cresciam muito rápidos, criando uma alameda de árvores até lá cima. O professor preparou logo uma conferência para informar a aldeia daquele fenómeno raro, mas no dia ninguém apareceu porque a conferência se chamava «O Esperma dos Anjos» e isso era pecado. Quando ia depois desiludido e com a amante a descer a alameda dos cedros desde a aldeia até à sua casa, ela já era entretanto sua mulher (milagres são assim) e os cedros já tinham a altura de sete andares. Ao vê-los aos dois a ir embora, toda a gente comentava da janela que o professor fazia feitiços e tinha que ver com o diabo a quatro. Apesar de tudo, só a Maria é que continuava ainda a acreditar que ele até era boa pessoa e por isso foi lá a baixo deixar à porta do professor uma tarte de capim que dizia assim: «Fim!» (escrito a canela). E com este feitiço transformaram-se os dois, o professor e a amante, cada um num cedro que cresceu tanto que arrebentou até sair por fora dos telhados da casa aonde estavam a dormir. Isto porque a Maria era afinal em segredo a velha bruxa que lhes tinha dado as bagas mágicas e tinha poder para isto tudo. «Assim ficam juntinhos para sempre», disse. * MENTIRA Em Lugar de Cima achavam que ele era mentira. Por isso resolveu apresentar-se a meio da praça todos os dias. As pessoas passavam e diziam coisas como estar ali um belo dia e sobre qualquer coisa, tudo menos dele. Não havia coisa tão estranha: nem ao estar de casaco de peles se eles lhe davam atenção, ele não estava ali. Foi o barbeiro às lâminas e voltando afiou-as no cabedal à mesma, sem desviar a cabeça por algo que no centro da praça. Foi o tasqueiro às pipas e não houve nada que o fizesse desviar. Foi o trovante às trovas e achou inspiração noutro sítio e não ali. Foi algum músico judeu que desenhou a música ambiente daquele sítio, eles viviam naquilo como peixes em formol, passando lentos de um lado para o outro. Sempre à volta da praça e sem lhe saberem, ele era mentira apesar da apresentação, apesar de ser a pecinha central daquele aquário de Lugar de Cima. Eles estavam um bocado melancólicos até aos ossos e não queriam saber de novidades, mais ainda não queriam saber do passado. E possivelmente ainda o pior sendo aquele nó no espaço-tempo que ele era: estava ali e não existia, nem roupa ou matéria ou fome na carne o salvavam para dentro da vida. Encarnecidamente, a carne do real deles não aguentava aquilo. Houve então, furando por um dia adentro, uma trova de trovador inesperante, que este trazia uma suspeita de no centro da praça haver uma quebrita no contínuo da aldeia. A propósito de algo existir sozinhindependente, ele intuía isto às especiais curvas da voz do vento ao centro da praça e cantarolou o que chamou de História da Ruína do Ar: A história de um homem sem história, a história de um homem sem excepção. A história de um homem que não existiu nem sequer na imaginação. Uma história que passou, uma história que é passado. Uma história que acabou sem nunca ter começado. Uma história que há-se ser, uma história que há-de vir. Que há-de vir sem se ler, que há-de ser sem se ouvir. Um buraco vazio, uma folha sem buraco. A sombra vaga de um rio, a sua ausência de facto. Um história que não é, uma história que não foi. Ela só fica de pé no momento que a destrói. A história do homem sem história, a história do homem em pó. Esvaziado da memória vem chegando e já passou. Ouvindo isto espancaram o trovador até à morte, que não se havia de falar daquelas coisas sem as haver ou como era possível aquelas intuições? Desaparecendo um por cima outro por baixo, ali ao centro da praça, um pelo ar de não existir e outro morto na terra por existir cantando demais. A mentira branca a subir e a canção negra a descer, foram eles os dois, o Trovante e a Mentira, o vertical eixo cósmico (de lendas) que fez o pião do tempo girar mais lento e mais lento em Lugar de Cima, sempre em torno daquela praça, de tal maneira abrandando as gentes e os costumes ao longo dos calendarinhos que um dia eles já só eram todos apenas paradamente uma fotografia com volume. Assim, depois depois, as ervas cresceram por três gerações e o peão sem tempo que era aquela aldeia foi sendo engolido no húmus da terra, adormecendo apodrecida. Mas este romance de estrofinhas seguiu sendo cantado de gente em gente, levado pelo vento desde então, uma bolinha que do fundo do copo de cerveja boa se desprendesse de seu misterioso centro e fosse visível todo o tempo do seu subir encantado, até desaparecer na geral espuma das nuvens sobre tudo. * A VELHA DOS HAMBÚRGUERES «Esta é a história da estúpida velha rançosa que vendia hambúrgueres. Um deles larvou as moscas debaixo do balcão. Os clientes fugiram assustados, avisaram outros cidadãos e as lojas de hambúrgueres ficaram desertas. Passaram a vegetarianos todos, mas quando veio a gripe das couves retornaram à carne. A velha quis dizer que não tinha sido ela a esquecer-se do hambúrguer de baixo do balcão, mas não escapou ao chicote. A carne dela vergastada incitava-me a fazer bifes de velhas, mas resisti à tentação e debiquei-me à exploração aviária. Era giro os pintos aos montes. Obriguei a velha a ir para a máquina de cortar os bicos aos pintos. Eram serrados para não preferirem comer-se a comerem a ração. Trabalhava naquilo noite e dia. As pessoas já não comiam carne mas comiam ovos, as estúpidas, por isso a velha trabalhava bem ou então...já sabia. Os pintos ficavam para ali em roldanas esmagadas a tentar comer-se uns aos outros e, se chegassem a sobreviver, o resto da vida era em jaulas. As pessoas, desde a gripe das couves sem nunca notícias, saíam pouco de casa e pareciam elas próprias mais pintos de engorda do que outra coisa. Íamos pôr-lhes a comidinha a casa, carninha de novo, e eles depois devolviam os tabuleiros vazios. Davam-lhes computadores para trabalharem em casa e tudo corria bem. A fábrica teve de fazer mais pintos e estragalhá-los rápido para as engordas humanas. E nisto havia uma felicidade sem limites, uma estesia dos sentidos a todos os níveis. As ruas eram prados verdes a perder de vista, visto que as pessoas já não saíam de casa. Havia vaquinhas e tudo de novo nos centros das cidades, tenho aqui um postal que o prova. Mas um dia a puta da velha encravou-me o mecanismo da máquina de cortar os bicos aos pintos e, quando um mecânico se aproximou dela, esmagou-o com uma chave inglesa que tinha no bolso. A tipa ameaçou sobre quem se aproximava dela e reduziu cada um a pedacinhos ensanguentados, faltando pouco para sair da fábrica. Felizmente conseguimos lançar-lhe uma peça de equipamento pesado para cima, um turlão ou assim, mesmo antes de sair da fábrica. De qualquer maneira, a coisa soube-se e as pessoas ficaram escandalizadas pela puta da velha se ter passado dos cornos e ter querido fazer uma revolução ali mesmo. Agora as pessoas são todas vegetarianas outra vez e eu estou escondido num covil à espera que isto passe para lhes vender hambúrgueres outra vez. E desta vez a velha já lá não está... » * A CADEIRA MÁGICA Ela era a cadeira de Van Gogh reduzida a miniatura ali no canto da sala. Sentavam-se nela. Ela tinha poderes. Se te sentasses nela encolhias ainda mais que ela e tudo te parecia grande. Sentado nela ficavas com o tamanho ideal para dormir uma soneca no assento de palhinha, e havia muita gente a ansear por isso. Logo que saísses voltavas a ficar normal, de tamanho igual a ti. Claro que não era a cadeira do Van Gogh, era uma cópia feita para crianças e que tinha poderes. Sentavas-te lá, pequenavas, e logo que começavas a ter ideias de aproveitar a pequenez, como entrar por certos envelopes adentro ou montar um cão específico, eras grande de novo: ao te afastares da cadeira para o fazer, ficavas grande. Só funcionava estando em contacto com ela. Se tentavas levar a cadeira contigo para as ideias ela era grande demais para arrastála, tu pequeno. Entrar por certas portas para ir à Holanda comprar haxixe mais facilmente era uma tentação, mas nada feito. Um dia sentou-se lá um presidente. Presidentes pequeninos parecem já estátuas. Com a escala diminui a voz, não podem fazer discursos também. Sentou-se lá uma menina, daquelas como as que o Lewis Carroll fotografava, saiitas curtas e tudo. Espreitou por entre as palhas do assento e achou um ovo de qualquer coisa. Era de uma mosca. Buarg. Quando ficou grande lavou as mãos muitas vezes. Outro era um leopardo, sentado ficou um gato pintas negras e feições raras. Disse um rugido baixinho, como um gato adormecido a sonhar ser grande. Aquela sala era como um estúdio de fotografia: as pessoas vinham, sentavam-se na cadeira, tiravam o retrato de encolher e iam-se embora. Não havia ninguém a morar ali, a cadeira era numa sala secundária de uma casa grande onde só os quartos noutra ala distante. As pessoas chegavam, topavam a cadeira e sentavam. Um palhaço veio e foi bonequinho todos os instantes sentados. O leiteiro veio e ficou ligeiramente maior do que a garrafa de litro. O palhaço nunca mais assustou os pequenos, o leiteiro passou a achar as garrafas lindas nas portas dos clientes, o presidente respirou fundo antes de cada vez que discursava depois disso e o leopardo tornou-se vegetariano ou caçou com mais fineza. Ao saírem da cadeira todos tinham de saltar para o vazio até ao chão, porque ficavam pequenos demais para descer pela perna de madeira. Tinham de confiar que ao tocarem no solo, na outra ponta do salto lá para baixo, seriam já grandes de novo e portanto não morrendo ou magoando na queda. E todos os que tinham esta experiência não faziam muito barulho sobre ela, ficando neles como um galho a mais que não se destaca da árvore nem exubera lá por ser novo. A senhora que dirigia a sala com a cadeira morava numa ala afastada da casa. Era mais ou menos como aquelas lavandarias self-service, chegas lá não há ninguém, sais de lá não há ninguém, entretanto usas. Mas não se pagava. A senhora só ia lá varrer a sala de quando em quando e abrir as janelas. Estava lá sempre só a cadeira, único objecto daquela sala alta com altas janelas de luz filtrada por cortinas brancas. Havia também uma lareira que não funciona, lá naquela sala de chão de madeira não polida. A pessoa chega, senta, encolhe, salta para o vazio, fica grande outra vez. Uma vez, alguém depois de ficar pequeno desatou a bater em tudo o que era grande, de susto maior, e continuou partindo e batendo coisas mesmo depois de normalar de novo ao tamanho original, ampliando o tamanho da rebentação que ia sendo pelos ares a toda a volta, muito mau. Não parava nunca, por isso o povo invadiu aquela casa e pegou fogo à cadeira e à sala e à casa. A revolução de gentes que isto deu, e foi muita e longa e eufórica no modo de odiar a cadeira e os seus malefícios, cruzouse na rua com uma outra multidão de pessoas. Estas outras tinham ido à cadeira e gostado e empunhavam cartazes a dizer exactamente isso. Ninguém disse nada de nada, as duas grandes massas de pessoas a passarem silenciosamente uma pela outra, como água pelo azeite, as armas a ferver nas mãos de cada um dos manifestantes. Quando acabaram de cruzar-se e os olhares de lado já não se viam entre as duas facções, uma pessoa virou-se e começou a bater nos oponentes pelas costas. Choraram e rangeram, destruindo-se entre si e grande parte da cidade entre traches e lamas, paus e pedras e o que mais havia a rebentar. Um grande buraco aberto no meio disto, no fim. O fumo no ar, porcaria, estilhaços e ruínas e outras coisas habituais. Escorregando para muitos minutos de anos depois: em meio das coisas caídas que ainda se aguentavam de pé nos restos e desesperando por encontrar pedaços de água limpa, alguém avistou ao longe numa colina um rapazinho. Ele está sentado debaixo de uma árvore no topo da colina e com um ar sereníssimo recebendo com abertura inteira o ar que lá chega puro. Vai esse alguém agora desimpedindo os destroços pelo caminho até fora do grande buraco aberto onde estava, a pé até lá cima à colina. Lentamente olha a criança de cada vez mais perto, para, toca a criança. Uma luz enche-lhe o coração, um alívio inominável. Mil anos de bombas saradas não saberiam ser isto. A criança sorri, o seu olhar olha para cima e respira fundo como um pêssego acabado de comer fresco. Esse alguém tocado pela criança chama outro alguém lá do buraco, depressa outro alguém; a criança alimenta-os todos só de estar ali, a todos os que vão chegando à criança sentada debaixo da árvore no topo da colina. Outros sobem a colina ainda verde, rodeiam a colina verde generosamente, invadem a colina, acampam por ali em excursões ao menino. Esquecem, lá em baixo foi. Quando eram muitos e a noite acabara de nascer em pequenas fogueiras de muita gente pela colina abaixo, abeiraram-se da criança para mais uma vez tocarem na sua. Vinham de muitas partes e a criança era muito falada no meio dos destroços. Agora esta última vez chegaram lá e apenas a cadeira onde a criança se sentara sempre. Nunca mais apareceu e alguém tornou aquilo sagrado. * LISBOA Lisboa. Três mil metros de altitude. Um balão larga pessoas sobre a cidade. Parte do novo plano do governador para aprender as pessoas a voar, elas eram largadas a altitude diferentes consoante o peso e a idade. Às vezes até a posição social era tida em conta. Uma mulher foi atirada com um jumento. Um rapazinho foi atirado vestido de branco à domingo. Um queijeiro foi atirado de cabeça porque se recusava a aprender a voar. Se as pessoas continuam assim sem resultados, diziam os entendidos que rodeavam o governador, daqui a bocado alguém vai fazer troça de nós. As equipas em terra passavam todo o dia a recolher os corpos pelas ruas da capital, quando não era pelos telhados ou outros sítios piores e inacessíveis. A chuva de pessoas dava-se particularmente aos domingos, quando as pessoas andam mais livres pela rua e então os homens do governador as submetiam aos testes para ver se podiam ser jogadas pelo balão fora. Umas acabavam no rio, outras até na margem sul. As atrocidades que diziam no ar eram naturais, era o medo. Quando a experiência de ensinar pessoas a voar não dava sucesso há já muito tempo, os estrangeiros começaram a rodear a capital portuguesa por todos os lados e era mesmo uma invasão. Enquanto as poucas tropas resistiam aos atacantes em Monsanto, junto ao castelo de Palmela ou nas trincheiras abertas pela Parque Expo, as emissões de balões à atmosfera crescem exponencialmente, de tal maneira que na tarde de 19 de Janeiro de 1947 contam-se 108 subidas no Cais do Sodré, 47 de Monsanto e 11 das recém-inauguradas pistas dos Olivais e de Carnide. Nos dias seguintes os números não pararam de subir. O governador ordenou turnos contínuos de trabalhadores a trabalhar dia e noite. Umas semanas depois, já com os Alemães às portas de Lisboa, as subidas sucediam-se ao impressionante ritmo de 114 por hora só na região de Baixa-Chiado. As pessoas eram jogadas já sem grande critério, alguns até logo depois de passado o nível dos telhados. Eram levadas normalmente em grupos de 10 mas nas últimas semanas a média erguia-se aos 26 passageiros por elevação. Guardados por cinco guardas armados e um cão, eram jogadas rapidamente quatro ou cinco delas logo depois do nível do tabuleiro da ponte 25 de Abril. Para os passageiros não perderem a esperança de que a queda os aprendesse a voar, os guardas anunciam que estes quatro ou cinco a saltar logo tão cedo eram apenas para testar novos equipamentos no ar, que tudo estava assegurado e a uma queda segura de três mil metros seguramente as asas se abririam e eles começariam a voar. Alguns respiravam de alívio ao ouvir a explicação, mas erradamente, porque eles só iam jogando as primeiras pessoas para o balão poder subir mais. Continuavam a jogar as pessoas ao elevarem-se e já não explicavam nada, sete ao nível do Cristo-Rei, doze à altura da Serra de Sintra e os restantes logo que podiam. Voltam a baixo e executam o plano de lançamentos em pressa por todo o dia e toda a noite. O governador sonhava com a descoberta do modo de voar, de tal maneira que sobre os exércitos que rodeavam Lisboa cairia a vergonha de terem considerado o seu plano um plano insano. Observava nocturnamente os lançamentos da janela do seu altíssimo prédio. Telefonava constantemente a todas as frentes de lançamento a verificar os resultados. As pessoas continuavam a cair a um ritmo alucinante, lançando o caos pela cidade onde ainda as pessoas tentavam normalmente. À noite não se dormia por causa do barulho das quedas constantes e os gritos das multidões por causa da guerra da invasão. As pessoas ficavam em casa a escolher entre ir para as linhas de defesa da guerra ou para os lançamentos dos balões. Os exércitos invasores vinham já da outra margem e da segunda circular. O governador, vendo a cidade ficar deserta, decide montar um plano de evacuar-se e sai de balão na vertical e muito alto e desaparece acima de tudo isto. Os americanos chegam à Praça do Comércio, os Russos ao Rossio, as Brigadas inglesas a Santa Apolónia, os Franceses a Alfama, os Alemães rebentam pelas adufas de Lisboa onde estavam escondidos nos subterrâneos à espera do dia do ataque coordenado para saírem à superfície. Olham à volta, apenas um enorme mar de gentes tombadas em todas as direcções, em todas as varandas e ruas e calçadas e telhados, toda a Lisboa horizontalmente espalmada num mar de ossos e sangue e vísceras entregues aos pombos. A perspectiva da Avenida da Liberdade era um só tapete humano dilacerado. O rio tinha ainda alguns espaços vazios entre o manto longo de corpos a derivar para o mar. Alfama tinha sido reduzida a escombros com o peso das quedas. Os guardas dos balões tinham recebido ordem para se jogarem a si mesmos depois de acabarem de jogar os últimos cidadãos. Jogaram-se. O que os invasores estrangeiros encontraram foi este imenso mar de nada. Fizeram a vitória, foram-se embora. Deixaram Lisboa. Lisboa com o seu sol abrasador e cinquenta agoirentos balões a pairarem a diferentes alturas sobre as diferentes zonas da cidade. Desabitados, os balões perdiam altura lentamente, mais calmos que o ar que nada mexia sobre aquela multidão de morte. Os balões aterravam de esvaziados, mais um objecto tombado naquele mar de nada. Um deles trazia três raparigas e dois rapazes que tinham conseguido sobreviver: a única revolta que houve em toda aquela cidade, mar terra ou ar, durante todo aquele tempo. Mataram os guardas e esfolaram o cão para poderem comer. Ficaram na barca sete dias. Foram eles que recomeçaram Lisboa. * O FRADE E O TOSTÃO Andava um frade cismando com as mãos atrás das costas e caminhando pelos bosques. Apareceu-lhe um vendedor de bebidas e ofereceu-lhe dois frascos de grande mistério. O frade cruzou as mãos, desta vez à frente da barriga, e disse para si: que só tinha um tostão para uma e qual delas levaria? O vendedor: que esta era boa por artes de isto e a outra era maravilhosa por magias de aquilo. Rebrilho e tresbrilho, uma linda disto outra boa daquilho. Vira o olho para um lado, logo o outro vai ao outro, indecisando a vontade das duas metades do frade. O vendedor agitadamente os pés e as palavras enquanto o frade dividia os olhos. Isto ou isto? O frade então percebeu que já tinha suado vários dos seus cabelos e não tinha chegado a nenhuma conclusão. Enfiou então o tostão no cu do vendedor e foi-se embora sem levar nenhuma das garrafas, mas cismando menos e bem mais aliviado. Ia agora de mãos nos bolsos e tinha perdido quase cinco minutos naquela questão sem importância nenhuma. * A REVOLUÇÃO As moscas choveram. Os gatos, os mosquitos desapareceram dali. Ziguezagueavam por tudo o que era muito. E as vozes calavam ao passar dos trovões mais baixos, rentes ao chão. Lavavam tudo, turbamulta agitada, adiando o dia da alvorada e querendo para si tudo o que trazia a possibilidade de saltar para o outro lado. Estes filhos da puta tinham que nos abandonar precisamente agora a meio da revolução, disse Castro a Anacoluto com um ar furioso. Estavam debaixo de tudo o que naquela praça caía e voava pelo ar. Aliás estavam no canto, por baixo e em meio de tudo o que estourava docemente na manhã da revolução. Havia canhões alinhados do outro lado, havia cadeiras a voar, havia uma desgravitação das pedras das calçadas, bocados de carro tornados voadores. Havia os gritos de uma parte dos revoltosos que se tranformaram em coro grego, observando tudo e uivando ao longe retirados da cena. Havia outros espalhados pelo chão, já mortos, meio-mortos, pedaços de edifícios desmoronados. Sobretudo uma quantidade incrível de materiais a circular pelo ar agitado de estrondos e sopros: plásticos, vidros picantes de automóveis desfeitos, sacos de papel molhados. As botas nas poças respingavam a chuva de ontem para cima dos que tombavam, as fitas nos cabelos desprendem-se levadas pelos redemoinhos que o vento fazia, os fumos dos carros e dos incêndios das barricadas misturam-se e as crianças tossiam, as crianças eram levadas para fora dali por quem visse uma aberta na praça. As caixas partidas pelos ares e ribombando nos quatro cantos da praça onde tudo aquilo se encaixava. As placas das obras levadas aos ombros por uma parte da multidão convulsa e encarniçada eram jogadas para cima de quem viesse não importa de onde. Os lixos desfeitos e pontapeados, as lamas misturadas de porcarias vindo daqui e dali. Parecia que tudo derramava naquela praça, naquela manhã enevoeirada eou com sol. O vento agitado ou fechava ou abria o céu, dando fulgores luminosos ou assombradas escuridões aos ritmos das lutas que lá em baixo na praça. Cá na praça, a meio dos incêndios e da chuva que os apagava, às vezes havia horas de espera pela próxima estocada, silêncios absurdos em que estranhatacitamente todas as partes antagonistas se calavam e chegavam quase mesmo a ousar ouvir-se os pássaros nos parques ao fundo. A grande revolução. A praça era fechada nos quatro lados por colunatas neoclássicas que apresentavam ao mundo que ali passava os rostos dos quatro poderes. As sedes fecharam cedo nessa manhã e os funcionários fugiram ainda mais cedo do que puderam. As pedras voavam, as manadas de cães lançadas da Boca Norte varriam as gentes revoltas e voltavam com troféus macabros às calças dos seus donos. Os cães morriam, dominados por paus tumultuosos. Alguém derrubou a estátua. Tinha de ser, alguém derrubar sempre a estátua ao centro da praça. Uma mãe morreu e a polícia tirou-a dali o mais depressa que pôde. Apenas uma secção da polícia conseguia ainda sair da grande praça, o resto da ordem estava encurralada em várias pequenas trincheiras compostas como se pôde, e lutavam pela vida a cada instante revelado rápido. Do alto de dois dos quatro edifícios que ladeavam a praça, funcionários revoltosos às sedes derramavam coisas pesadas sobre as cargas da polícia. Uma betoneira caiu ao pé do chefe da esquadra e foi a custo que ele ainda conseguiu chamar o exército pelo intercomunicador. Túneis começavam a ser escavados por baixo da praça para levar os mortos para fora dali e para ver se se arranjava ar mais respirável. As crianças rebeldes organizavam piquetes para bater nos polícias, os polícias organizavam-se como podiam para desertar a um ritmo razoável e sem o exército dar por nada. As fardas eram depois traficadas a mulheres organizadas que as vendiam ao dobro do preço do outro lado da praça, passando pelo estreito corredor oficial que a polícia ainda mantinha. Muitas delas ficaram lesionadas ou mortas ao tentarem atravessar a praça. Uma boca de canhão foi levada para a entrada oeste mas não sabia para onde atirar. Acabou por ser rebocada e eventualmente atirada ao rio por algum dissidente infiltrado numa farda. As facções dividiam-se e voltavam a unir-se em pactos reactualizados a uma tal velocidade que a razoabilidade foi melhor nem os fazer. Cessaram as comunicações móveis, os telemóveis usados como arma de arremesso. As comidas chegavam em rações atiradas por cima da polícia ou de quem estivesse no caminho. A praça era agora, pelo fim da manhã de tudo isto, já só um amontoado de diques, barricadas, carros tombados, cadeiras voadoras, cocktails molotov feitos com gás, estruturas móveis e outras suspensas, gruas, andaimes retorcidos para se tornarem aríete de alguém contra alguém. Alguém lançara megafones para a população por isso os apelos sucediam-se em várias línguas, mais ou menos verídicos, em suspenso ou dando indicações de rumo. Ninguém parecia saber o que fazer e todos queriam pensar sabê-lo. E não havia ninguém a quem parecer, que todos os que ali estavam eram em luta. As t-shirts começavam a rasgar-se por causa do calor excessivo do meio-dia mas logo depois veio uma nuvem cobrir o sol e as fogueiras improvisadas foram sabotadas pela chuva que se lhe seguiu. Havia uma entrada da praça onde sucessivamente os carros vindos do exterior embatiam nas barricadas, criando uma camada aí com umas sete filas de espessura. Nem todos estavam esmagados, por isso largas ordas de revoltantes eram achadas entre os que aí engarrafados. Saíam das viaturas, caminhavam por cima das capotas e das latas várias e, triunfantes, entravam na enorme praça em meio do sumo do tumulto. A dada altura um destes grupos vindos das viaturas conquistou e empunhou uma grua do exército. De tal maneira se agitou a sua base que a fizeram inclinar e embater contra uma torre da televisão que, desmoronando-se, foi desfazer grande parte da rede eléctrica que cobria a praça a sudoeste, provocando o electrocutamento geral de quem lá estava e a debandada geral do último bando de pombos que insistia em procurar comida por ali. Foi depois disso, já era final da tarde, que a coisa endureceu. Vieram os comandos, as metralhadoras e as tácticas sacanas, os esquemas as naifadas e subterfúgios ilegais mesmo para essa ilegalidade geral que é já sempre o exército. Os golpes baixos, as decapitações e as ameaças. A noite caía e as luzes acendiam-se. Espalhou-se a moda de circular a pares de mota entre as barricadas empunhando longos postes de iluminação. Passavam a rasar os combatentes e enquanto um conduzia a mota o outro usava o poste de madeira para derrubar tudo o que encontrasse vivo pelo caminho. Medieval dos torneios, a cavalo mecânico. As barricadas explodiam agora, e alguém no comando de alguma coisa alegava que estavam todas vazias daquele lado, que era um truque para nos fazer crer que estavam todos mortos e logo que caíssemos no seu engodo nos atacariam por detrás. Um dos edifícios começou a ruir como se a partir de dentro, como se alguém armado de vinte bulldozers estivesse instalado na sala dos paços do conselho. Ruíram janelas, tombaram colunas. O fumo destas quedas à noite era pior, enganava as luzes, sufocava as restantes dúvidas e incitava a actos de loucura ainda maiores do que os até aí. Um homem-kamikaze atirou-se do alto de um edifício para esmagar o que ele julgava ser um indivíduo nocivo. Acabou esmagado no chão entre uma cratera mal aberta e um capacete de polícia, em meio de coisas de nada. Depois vieram os lança-chamas, depois os venenos líquidos, mas a contra-resposta era sempre demasiado rápida para as ofensivas surtirem efeito. Aos lança-chamas, a facção auto-denominada Pró-Tumultos-Rosas-e-Outros-Ismos-Trogloditas reagiu com a abertura das bocas de incêndio e o rapto do chefe dos lança-chamistas. Estes pagaram o resgate entregando as armas em mão. Voavam balões, alguém tinha tido a ideia de dispersar um líquido tóxico utilizando balões com hélio que se deveriam desfazer com o calor do incêndio contínuo que lavrava a sudoeste da preça desde as duas da manhã. Mas, ao cair o líquido, não só se revelou ineficaz como as máscaras que foram distribuídas aos apoiantes eram indicadas para a protecção de um outro líquido, acabando por fazer mais baixas entre os apoiantes do que no resto dos tumultuosos: os com máscaras aventuraram-se a ir a sítios onde nunca ninguém tinha posto os pés e morreram. Numa acção sem precedentes, ao longo de todo o sudoeste da praça - a montante do grande incêndio- todas as facções se uniram e acharam que iam acabar com aquela gentalha de uma vez por todas. Entre eles contavam-se polícias, gatos regressados, homens-aranha, revoltosos de 68, gente do comércio e da imprensa, desempregados e mulheres a dias. Avançaram aos urros pontapeando tudo pelo caminho, empunhando cartazes do Che com um bigode daliniano. Conquistaram sete barricadas. Apreenderam três carregamentos de contentores de lixo industrial que estavam até então escondidos numa cabana improvisada. Na altura de dividir o espólio, o grupo dividiu-se e mataram-se uns aos outros com garrafas de vidro partidas. A poesia daquele pequeno levantamento colectivo morava agora apenas no cheiro a queimado que enrugava as nuvens de pólvora sobre a praça e no modo como algumas gaivotas tontas das explosões embatiam nos vidros dos edifícios do quarto andar, pensando que o mar era por ali. Numa dessas janelas, só numa numa, estava um jovem rapaz a escrever e a observar com razoável panorâmica e lucidez tudo o que se passava lá em baixo na praça. Era um jovem romântico, sonhador, viajador, revolucionário. Usava no pescoço um lenço palestiniano e ao colo tinha um caderninho onde ia escrevendo uns versos. Era, em suma, uma criatura execrável retirada ali num canto eremita de um edifício seguro e burguês a dar sobre os acontecimentos reais e urgentes. Escrevia no papelinho umas odezinha a uma puta ceguinha que ele conheceu nas montanhas gregas o verão passado e por quem se apaixonou. Fazia comparaçõezinhas entre os montinhos que eram os seios nus arrepiados dela e as montanhinhas gregas que houvera galgado. Na parte em que escrevia a comparação entre os rebanhos de ovelhinhas que passeavam pela encosta abaixo e as mãozinhas e dedinhos dele que passavam pelas montanhas dela, o Paulito, que estava a ter este sonho todo, acordou de repente escaldado pelo sol de meio-dia que lhe queimava as ventas ali no Terreiro do Paço, onde dormia num banco desde as nove da manhã na ressaca da festa do Fetichismo Esquerdista. Ergue o pescoço a custo e custou-lhe a acreditar que a praça estava mesmo vazia, o imenso quadrado de luz apenas pontuado por peões isolados e pombos, o inevitável trânsito a quadrangular a praça. Ele a meio da praça, a acordar baixo o sol do meio-dia e a luz imensa a turvar-lhe a visão de tudo aquilo vazio. Esfregou os olhos a bocejar, sentou-se no banco e espreguiçou-se. Levantou-se e arrastou-se na sua roupa escura pela praça luminosa, soerguendo os jeans pretos gastos que logo tornam a decair rabo abaixo, lentamente até desaparecer em perspectiva numa qualquer artéria da Baixa. Chegou a casa e escreveu no blogue um texto muita nice sobre este sonho. 5 comentários: posted at 7:30 a.m Ana Lisa said... Muito bonito! Escreves assim e encantas-me a alma. Aquela imagem da cena de guerra é muito fodida e a do rapazinho na janela um tanto patética, mas faz-me lembrar um gajo que eu conheço, eh,eh. Continua assim....devias escrever mais estas coisas do que aqueles textos raivosos contra o sistema que antes publicavas. Posted at 4.15 p.m Sun Tzu said... Obviamente que do teu texto três conclusões emergem: 1.que a carga imagética que o legado revolucionário da história dos movimentos sociais, de pendor mais ou menos anarca ou controlado por tautologias castradoras próprias –conforme a situação- nos deixou é importante e não é preciso chegar a essas catárticas descrições acéfalas de um hipotético cataclismo colectivo que surgiria de uma materialização entre nós da emergente força subversiva que impulsiona os espíritos que lutam por um mundo melhor nos dias que correm. A vontade de mudança colectiva não é um sonho de carochos adormecidos na Praça do Comércio depois de uma festa anarca, mas uma pulsão vital que não cessará de perseguir o seu desejo de libertação sensual e vital, e que precisamente por ser uma agitação profunda do ser que aspira por liberdade, saberá encontrar na sua marcha sem táctica fixa, sem bandeiras, os meios específicos para uma acção directa, não embrutecida com estereótipos mentais do que a “cena” deve ou não fazer, sendo esta disciplina de acção que em última análise impede esse cenário catastrofista de acontecer. Depois, tudo isso é possivelmente o teu passadozinho adolescente a falar, os sonhos revolucionários com que te masturbavas na casa de banho do Bloco entre dois charros. 2. Se a acção tiver de ser catastrofista e avassaladora, será, mas sê-lo-ia não por militante programa mas em reacção natural às forças opressoras, como quando se coça o sobrolho porque se tem comichão. Quando descrevo o ridículo da catarse que apresentas não é porque a exclua como táctica válida, mas sobretudo porque o impasse em que a manténs no teu contito, impasse que não limpa realmente, que não muda, que não purga e renova, faz lembrar um puritanismo apresentado no inverso, puritanismo que não sabe apresentar as diversas situações quotidianas em que a verdadeira subversão contrapoder se faz, contentando-se com generalizações catastrofistas que, muito previsivelmente, vão depois desembocar no seu oposto: o rapazinho romântico da treta, a contemplar à janela, provavelmente a salivar com os seios da musa enquanto a revolução (a revolução como TU a sonhas) se passa lá fora. 3. Insinuar que tudo isto se passa na cabeça de alguém que vem da Festa do Fetichismo Esquerdista que organizámos na sexta-feira passada até não é mal pensado, visto que muitos dos que lá estavam não chegavam a aperceber-se de que se trata de demolir e regurgitar os ícones de esquerda, enquanto dançamos alegremente com os seus cadáveres. Houve quem pensasse tratarse de uma orgiástica celebração de tudo o que há de bom e é útil e casto no mundo – Staline incluído, veja-se! - , como se aquilos fossem uma espécie de divindades vindas debaixo de boina para salvar a humanidade e nós que organizámos a festa fossemos os seus cicerones por uma noite. Por aí até ias lá, que tal confusão pudesse passar-se em alguém que foi àquela festa enganado porque pensou que ia curtir com a malta fixe de esquerda, mas a maneira como sarcasticamente incluis o blog no conto poderia fazer supor que aqui não se fazem mais do que carpir mágoas que não se conseguem manifestar no real, que agora se embalam os fantasmas de revoluções ou anarquias de pacote que vão buscar a sua força escrita ao preciso facto de subterraneamente se saber entre todos que nada disto será nunca levado ao ponto em que a santa pelezinha de cada um se possa queimar, que isto não é senão retórica burguesa esclarecida e com as costas quentes, isso é chapadamente uma fantasia do puto imaturo que és e que não é por saber articular umas ideias que deixa de se parecer com a personagem panhonha e, essa sim, verdadeiramente frustrada e incapaz, do rapazito a escrever à janela da revolução. Para finalizar e matar de vez o mosquito, tenho a dizer que te aconselho futuramente a manteres as tuas contribuições para o blog no espírito do debate que aqui propomos e que não disfarces as tuas crisezinhas existenciais debaixo de poesias que pretendem ter algo de relevante a dizer e que nem contendo por antecipação e defensivamente a própria figura do blog te impedem de ficar a salvo de ser arrasado por quem já conhece bem os da tua laia. Arre. Posted at 18:47 Lolita said... Eu cá pra mim achei giro. É só um conto, ó Sun Tzu, vê lá se aprendes a ser mais relaxado, mais divertido, senão a única revolução que acabas por fazer é rebolar durante as tuas insónias, entre os lençóis! Posted at 21:07 Aika-xan-li-sue said... Ai os esquerdistas e os seus fantasminhas! “O sonho da razão produz moonstros” Posted at 22:47 Garcia said... Ó pessoal, então e se nos deixássemos todos desta conversa que não dá em nada e fossemos à casa do Tó amanhã às 9 da noite. Ele recebeu uns vídeos novos das manifs recentes no Peru e na Argentina, e parece que tem um doc fixe sobre o fim das bicicletas em Ljubljana. * A PAISAGEM ENCRAVADA Havia um rio, um estranho rio. Um rio com um interruptor na ponta. Ora corria para um lado ora corria para o outro, conforme a posição do interruptor. Eram os dedos de Deus que comandavam aquela mudança. Se para um lado a água corria para um enorme vale, para o outro a água corria para o cimo de uma montanha. Os sábios chamavam-lhe movimento espiritual, os electricistas nada. Deus não anda aqui a mandar nada, deus veio depois, deus é um inquilino que usa a casa mas não foi ele que fez a casa, deus é a nossa explicação para o fantasmas que acende e apaga as luzes, Deus é o pôr-do-sol e usa capuzes. O rio para cima, o rio para baixo. Muda a corrente e o tempo vem para trás. Os barcos são levados, os barcos são recuados. As pessoas lavadas, as pessoas sujas. O dia é vivido, o dia é trazido. As nuvens avançam, as nuvens recuam. Da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, o sol sobe e desce em arco por cima do rio que desce e reflui, como se o cimo da montanha e o fundo do vale soprassem de um para o outro o balão do sol pelos ares. As pessoas viam, espectadoras da paisagem encravada. Mas não havia comando para isto, funcionava sozinho. «Deus é uma solidão», estava escrito nos livros sagrados desta terra encravada a olhar um rio estranho. Um dia resolvem matar Deus, a ver se saíam daquele tempo repetido, e apontaram as metralhadoras ao céu e apontaram as metralhadoras ao fundo da terra, mas não havia mais resultado nisto do que um buraco na vertical. Foram chamar os electricistas. «Tudo é energia», dizia nos livros deles. Acharam que havia de electrocutar-se tudo, para se acabar com aquela brincadeira de Deus e o interruptor e o mesmo dia ser sempre repetido para trás e para a frente. O trabalho dos electricistas foi tão bem feito que conseguiram fundir o sol bem no meio do seu trajecto, estourando e partindose sobre as pessoas e as coisas todas. As pessoas ficaram de tal maneira chamuscadas com isto em partes diferentes do corpo que hoje cada um sente Deus onde quer, mas já não dá para vê-lo. A paisagem já corre, o tempo foi libertado. O interruptor é hoje um museu em ruínas ao pé da água, mais ou menos como a torre de Belém mas em tom de plástico queimado e amarelecido. Animais SANTA ESTRADA Na terrinha de Santa Estrada, havia um homem que tinha poderes de magia, por isso toda a gente lá ia quando precisava de alguma coisa. Veio uma velhinha pela estrada um dia e ele já sabia que ela lhe pedia sempre a mesma coisa: uma coisinha de pudim das murtas, para ver se animava o velhinho dela. Quando vinha uma charrua de bois ao longe na estrada, ele sabia que havia sarilho, que dois vizinhos de gado tinham discutido e um queria magias contra o outro. Quando era uma miudinha de saias ainda curtas eou um rapazito de fisga na mão que vinham ali, era por causa de coisas nas cola eou ela queria mais beijinhos de nãosei-quem ou ele mais pontaria para atirar com a fisga a sicrano. Quando o padeiro, falava de conspirações do moleiro com o diabo e ora toda a gente sabe que isso era mentira. Por isso o homem que tinha estes poderes sabia muitas coisas, adivinhava quase tudo, excepto aquilo que não adivinhava. O mais difícil, dizia ele ao seu ajudante pequenino que oraera um cão oraera uma pessoa, o mais difícil eram os males de amor e os feitiços que as pessoas tentavam fazer sozinhas em casa. Um dia, por detrás de uma tempestade, chegou-lhe às mãos um papel onde vinha a seguinte magia escrita: «3 vezes: F. Bravo leão amansa aos pés de camaleão, assim tu amanses amanses para mim. F. tu és de ferro eu sou de aço, com as três palavras de Cristo eu te embaço, que não tenhas descanso, sem que sejas muito meu amigo e faças tudo o que eu queira.» «Ora que porcaria!», ficou ele muito chateado e voltou a casa a ver se desviava aquele poder para alguma energia boa ou assim. Trabalhou três muitas noites naquilo e a verdade é que ia conseguindo. Mas quando ele acabou a fórmula para dar cabo daquilo, achou que se calhar andava era mesmo ali nas redondezas um outro bruxo que dava aqueles papéis que fazem as pessoas ir umas contra as outras. Então, pensando isto, achou que não era suficiente fazer de escrever uma magia para pôr em cima daquela, e foi encontrar o tal bruxo. O que ele não disse a ninguém era que não tinha conseguido desfazer o feitiço que encontrou. Enxeriu por todos os cantos da aldeia e até encontrou um vedor ilegal, mas nada do outro bruxo. Pensou neste assunto mais um bocadinho e veio-se a ver teve a ideia de que o outro bruxo se podia ter transformado num gato. Andou então com uma tacinha de leite à procura dele e efectivamente veio um gato ou dois, mas nada que se parecesse a um bruxo. Depois daquilo dos gatos, quando se deitou sentiu uma comichão estranha. Pensou: “pulgas dos gatos”. A verdade é que, quando acabou de comichar, ele próprio já era um gato e portanto andou às turras com o ajudante que naquela oraera um cão. O ajudante não o reconheceu e começou a ladrar. Eles os dois às turras fizeram daquela casa um caco e foi por sorte que conseguiu escapar do ajudante pelas traseiras. Quando se meteu na floresta deu-se conta de que percebia o que diziam os outros gatos e não demorou muito tempo a perceber que tudo isto era um feitiço de um dos gatos a quem tinha dado leitinho. Esse gato era o outro bruxo. Como isto de ser gato tem vantagens, dissassimesmo, subiu a uns telhados para espreitar de umas chaminés e de facto lá em baixo de uma delas viu um bruxo a passar bruxedos como quem passa facturas. «Calúnia» pensou ele, «aquilo é cá bruxo!» Urdiu cá para si umas coisas más de fazer ao outro, mas no fim deixou-se ficar ali no telhado mais um tempo, porque sabia que a lua cheia que ali vinha desfaria o feitiço e retornaria a ser gente. Essa mesma noite, pufe, com a lua cheia voltou a ser gente. «Como já não ronrono devo conseguir entrar ali sem ser ouvido», pensou e fez. Misturou as poções do outro ao contrário e disse: «há-de servir-te esta mais longe que a mão na testa.» Saiu dali e finalmente adormeceu na sua casinha, depois de um longo regresso a casa. Como o encantamento que fez das poções do outro bruxo foi bem feito, de tal modo as coisas saíram mal nos feitiços que não tardou a dar nas notícias que o outro tinha sido expulso da ordem das bruxas. Deixou-se ficar a beber um cházinho de purinhas e a cogitar, porque ali em Santa Estrada se sabia que um bruxo rijo não desaparece assim. Ele sabia que o outro ia voltar, porque o outro fazia feitiços mais fortes que ele próprio. Quando adormeceu e ouviu um barulho de osga na janela, sabia que era o outro. Quando ele ouvia a cafeteira a uivar em vez de cheirar, sabia que era o outro. Quando as tostas saíam queimadas antes de ligar a tostadeira, sabia que era o outro. Quando as lentes de contacto estavam besuntadas de azeite, sabia que era o outro. Quando a toalha de banho era de palha de aço, sabia que era o outro. Quando as chaves do carro eram afinal um aviãozinho de metal, sabia que era o outro. Quando o próprio carro o levou sozinho a uma clareira de final, sabia que era o outro e quando saiu do carro nessa clareira encontrou o outro. O outro estava na outra ponta da clareira e o vento uivava muito nos pinheiros altos. Eles aproximaram-se um do outro e o outro disse: «porque é que...» «Calma», disse o nosso bruxo, «ouve o vento». E como o outro, que era novo, ouviu o vento e se sentaram os dois a meio da clareira, o outro explicou que tinha contas antigas a pagar e por isso fazia muitos milagres avulsos. O nosso bruxo chamou o seu ajudante pequenino, assobiando. Disse para o ajudante levar o outro bruxo para a cabana ao lado da sua e que eles trabalhassem juntos em tudo. Assim o outro bruxo já não tinha que pagar mais nada porque ficava ali de graça, com a condição de não vender mais feitiços de tuta e meia. Quando teve um sonho mais forte, o outro bruxo transformou a cabana num eucalipto, mas isso foi só um percalço nos três anos que levou a aprender a ser simples. Um dia percebeu que até com massagens se podiam tirar dores dos pés e foi nesse dia que o nosso bruxo disse que ia ali acima ao monte morrer na sua horagora e que o outro bruxo ia ficar no lugar dele. O ajudante uivou como um lobo, porque percebeu que este bruxo ia ser mais potente que o anterior. * A LESMA E O REI Numa terra distante havia um rei que tinha uma lesma. A lesma tinha dores de barriga, por isso o rei fazia-lhe festinhas e massagens. Os cães do castelo tinham ciúmes disso, por isso ladravam a noite toda. Um dia a rainha, para o rei não os mandar matar um a um, foi escondê-los numa casa ao lado do castelo. Encontrou lá um amante. Foderam a noite toda e ficaram muito muito suados. Da casa via-se a luz da janela da torre do castelo, onde o rei estava com a minhoca. Os cães ficaram com isto à solta e foram para o bosque. Dias depois os homens do rei vieram buscar a rainha de volta e ela estava toda satisfeita, parecia que estava tonta. O rei tinha ficado no quarto a jogar playstation e os homens tiveram de vir sozinhos buscá-la. Enquando a levavam num carrinho de andar e entravam no castelo pela ponte levadiça, os cães estavam todos felizes a nadar na água que havia agora no fosso à volta do castelo. Os cães uivavam a-u. Quando puseram a rainha de novo na cama real, o rei mandou-os agora buscar os cães. . Os homens arregaçaram as calças na berma do fosso e puseram-se à procura de apanhar os cães, cada um ao seu. Mas os cães deram muita luta e mergulharam bastante, por isso depois de muito tempo só tinham agarrado um de vinte cães. Os cães fugiram e foram dar a volta ao castelo, subiram a torre e quando estavam para entrar no quarto real ouviram o rei e a rainha a ganir que nem cães, fazendo amor. a-u. Desceram todos contentes da torre embora e voltaram voluntariamente para o canil do castelo. A minhoca, vendo aquela cena de amor entre o rei e a rainha, suicidou-se do alto da torre para o fosso do castelo. Enquanto saíam da água, os homens acharam estranho toda aquela água do fosso estar tão salgada que parecia suor humano. Depois, usaram a minhoca aos bocadinhos para pescar naquela água salgada que apareceu de repente. Quando o rei estava com a rainha à janela depois de fazerem amor, viram lá em baixo os homens pescarem cá para fora todos os filhinhos que eles dois haviam de fazer. O rei ficou tão contente que atirou com a televisão e a playstation para cima da tal casa que estava ao lado do castelo, rebentando com a televisão, a playstation e a casa. Fizeram uma grande festa com aquilo tudo e foram felizes para sempre. * A COISA ESTRANHA Esta é a história de uma coisa estranha. A coisa estranha passou do pai para o filho e do filho para o cão. O cão comeu a avó e depois fugiu, separando-se em dois no modo como o perseguiam. Uns acharam que ele tinha fugido para o campo, outros acharam que ele tinha fugido para a praia. Ambos os grupos estavam armados até aos dentes. Ele ia por ali e eles também achavam que sim. Ele subia os montes e eles também. Ele duchava-se na água do mar e eles também. Ele atrás de uma cabana e eles à volta dela. Ele dentro das dunas e eles dão tiros nelas. Ele eventualmente estava mesmo era em casa e quando os dois grupos voltam, um com o pai e outro com o filho, a avozinha estava sentada à lareira com o tricô no colo e a fazer festinhas ao cão com a mão esquerda. A avó estava virada para a lareira, portanto de costas para os dois grupos armados até aos dentes, e o cão estava apoiado sobre as patas dianteiras, muito manso, a olhar para eles. As armas todas apontadas para o cão e alguém diz: - Mas o cão está ali, não comeu a avozinha! Disparam. -Cala-te, lês demasiadas histórias da carochinha. * O SAPO E A BOLA DE BOWLING Um sapo e um bola de bowling estavam os dois a ser pesados. O grande sapo era mais pesado do que a bola de bowling e por isso a sua bandeja ficava mais em baixo que a da bola. Mas quando o sapo enchia a sua bolsa cheia de ar, ficava mais leve que a bola e a sua bandeja subia, ficando então acima da bola, que por sua vez então descia. Quando esvaziava o ar da bolha que tinha debaixo da boca, voltava a ficar mais pesado e a descer. O corpo era feliz neste movimento respiratório. Mas quando taparam os três buraquinhos da bola de bowling ela ficou logo mais pesada do que o sapo. Por isso, mesmo que ele estivesse com a bolsa cheia de ar, quem estava em baixo era sempre a bola. Quando o sapo engoliu pedras, ficou ele sempre em baixo de novo e em vez de encher às vezes o saco com ar e subir, dava arrotos. Encheram a bola de bowling toda com pedras e ficou ela em baixo e do outro lado da balança o sapo em cima, com os seus arrotos. O sapo. Saltou então para a outra bandeja e começou a comer essas pedras uma a uma pelos buraquinhos da bola. Comeu algumas e voltou para o seu prato. Mas nada, a balança nem se mexeu, a bola continuava a ser a mais pesada. Foi de novo ao prato de lá e comeu mais umas tantas, bastante mesmo, de maneira que nem arrotos conseguiu dar e esteve esgazeado nas voltas até ao seu prato. A balança mexeu-se mas não o suficiente para ficar ele o mais pesado, ela hesitava entre dar a vitória a um ou a outro, trémemente. Arrastando-se como já quase não podia, foi até à borda do seu prato e atirou-se desalmadamente para fora, caindo entre os dois pratos. Depois rastejou até ao prato da bola de bowling e comeu o resto das pedras, ficando com elas a saírem mesmo pela boca fora e todo o saco debaixo da boca com a forma angulosada de estar cheiíssimo delas. Todo o corpo dele era um peso, só os olhos é que se mexiam um bocadinho e já estavam todos vidrados e inchados daquilo. Lá rebolou pedradamente para fora do prato despedrado e deixou-se cair a meio, soltando nisto uma ou duas pedras da boca. Com a mesma boca as apanhou, que as patas de nada já seriam naquele inchaço pedrado que ele era. Com um milagre qualquer, alçou a beira do seu prato. Mas ao cair lá para dentro o peso das pedras rompeu a pele do seu saco e ele estourou todo. Ficou ali então um todo pele de sapo e suas entranhas à vista espalhadas em cima de um monte de pedras. Esse monte era de facto mais pesado do que a bola de bowling. Só quando os pássaros começaram a debicar entranhas de sapo é que, uma delas resistindo mais viscosamente a um bico, oscilava um pouco a balança de estar decididamente pendida para o lado do ex-bicho, agora pedras. Isto por acção das asinhas que pássaro abria e batia com força para retirar tal mais difícil entranhinha. Uma ligeiríssima elevação do prato conseguia este breve forçar. Pequenas gotas de humidade formavam-se na superfície da bola de bowling à saída e entrada do ar pelos buracos. Dir-se-ia que respirava. * A TAÇA DE CHÁ Uma taça de chá, os modos de a atravessar. As formigas vieram na longa mesa de madeira bruta e subiram o caldeirão de porcelana, a taça. Reuniram-se e consideraram atravessar o líquido. Umas falavam da sua cor, outras do cheiro, outras do modo mais seguro de chegar ao formigueiro. Umas foram pela beira da chávena, rodeando numa circunferência perfeita o bordo onde as bocas costumam ir buscar os líquidos. Desenhando o seu perímetro cuidadoso, lá de cima observavam as de lá de baixo. As de lá de baixo houveram ousado descer, umas foram pelo líquido adentro outras por onde der. Junto ao líquido cada vez menos fumegante, umas quantas juntaram-se e foram no périplo lacustre, cuidadosamente. Andavam rapidito junto à beirinha do lago de chá, indo inclinadas pela superfície branca inclinada. O calor da água chalada aquecia-lhes a metade esquerda do corpo, já que davam a volta pela metade direita da taça de chá. Das que foram pela água adentro, houve dois grupinhos: um lançou-se a nado, outro à boleia nas folhas de chá que abeiravam a superfície do líquido. Quem se lançou afogou-se, por mais que esperneie uma formiga não nada. Umas ficaram mortas à tona, outras no fundo. As que foram à boleia nas folhas de chá esperaram muito até poderem avançar de uma para outra folha, porque elas às vezes ficavam dias sem se tocarem. Só quando duas folhas à deriva se tocavam é que elas podiam passar. E depois de passarem esperavam que a folhita em que estavam agora derivasse o mais possível na direcção da margem oposta àquela da qual partiram. Eram muito poucas estas formigas à deriva nas folhas de chá que à tona, e mesmo assim tiveram de separar-se porque cada folhita de chá só dava para uma. Demoraram vários dias a atravessar, umas mais outras menos. Uma chegou a usar o cadaverito de uma companheira para flutuar, quando a sua folha nunca tocava em nada foi o que teve de fazer. Depois chegou à beira e nunca ninguém falou mais disso. Algumas das que vinham nas folhas afogaram-se porque experimentaram nadar, outras porque a folha afundou. As que vieram das folhas juntaram-se no fim às que rodearam o lago e às que vieram pelo rebordo superior da chávena e foram todas ter com as que tinham simplesmente ido sempre pela mesa e rodeado a base da taça. Estas estavam muito aborrecidas e perguntaram porque é que as outras tinham feito aquilo de ir lá por dentro. Ninguém respondeu e continuaram viagem. * A CERVEJA DE PAUL RICARDS A cerveja na mão, o amarelo dedicado do líquido. As borbulhas internas, o suave espumito no topo do copo. A beleza da luz que por detrás e o ouro que temos entre as mãos. A cerveja que Paul Ricards estava prestes a beber era um contrato social: calhando estar aqui com vocês, bebo e vocês aceitam-me. Acabo a bebida e vou-me embora eram as letras pequenitas que só ele sabia. A conversa alongava-se em vastas perourações sobre as corridas de Ascot e a múmia de Akhenaton. Ao longe, a bar woman passeava os grandes seios por detrás do balcão como se nisso consistisse uma tarefa importante. As outras convivas abriam argumentos sobre a escuta social e a função dos pobres. Eram ingleses nobres e essa a sua função: serem nobres e dar conselhos a quem os escutasse. As fatiotas eram todas muito espampanantes e totalmente despropositadas para a ocasião, e era também esse o seu propósito. As tias de Paul também andavam por ali a abanar-se graciosamente em leques e vestidos esponjosos, as flores que transportavam fazendo pandã com o chapéu. Ninguém tinha corcéis à espera na porta do pub, mas vários desejariam tê-los. Porém, quem mais chamou a atenção de Paul neste pub foi um sujeito sul-americano, um peruano que só aparecia de quando em quando ao lado de fora das janelas. O pub era todo em madeira escura e Jacques, o peruano, parecia estar encarregado de arranjar qualquer coisa no seu exterior, de maneira que aparecia nesta ou naquela janela sempre montado num escadote, só e com o seu ar moreno altamente compenetrado no que. Devia ter uns quarenta anos e havia quatro que estava em Londres, comentou uma tia enquanto molhava a bolachinha no chá. Era um homem honesto, nisso todos concordavam. E tinha um corte de cabelo invulgar, era consensual. Mas não era por isso que enquanto os convivas discorriam sobre os cortes orçamentais, as corridas de Ascot, o asco dos franceses, a xenofobia transimigrante e outras desgraças afins, não era por isso que Paul o fitava demoradamente enquanto trabalhava no exterior. A tia que rodeava a mesa cotovelou a outra tia que também rodeava a mesa e apontou com o queixo para a porta aonde estava a entrar um gentleman. Lady Harry, disse, este é um momento extraordinário. Alguma vez ouviu falar de Harry Houdini? Então prepare-se... O cavalheiro pousou a cartola no bengaleiro à entrada, deu o casaco à criada e encaminhou-se para a mesa onde estavam sentados Paul Ricards, as convivas nobres e o Coronel Dormitts, que se entretinha com os seus botões mas que naquele momento ergueu um sobrolho inteiro para receber o jovem Harry Houdini. Ora seja bem-vindo, meu caro, bons olhos o vejam, disse o velho Coronel, sente-se e conte-nos coisas. Nada como um jovem para nos pôr a par com o mundo, não é verdade?, disse em tom cúmplice e vagamente serrado às várias convivas nobres que concordaram todas em coro, fazendo cada uma gestos à sua maneira para receber o jovem Houdini. Paul Ricards fitava o copo de cerveja mas sorriu simpaticamente. Houdini instala-se entre as senhoras e o Coronel. As tias de Paul Ricards interrompem o seu périplo pela sala e vêm juntar-se ao grupo, ficando as duas em pé junto à mesa. Uma delas continuava a beber chá, segurando o pires numa mão e a chávena noutra, os dois bem juntos sensivelmente à altura do broche de hibiscos. Houdini começa, incitado pelos mais velhos, a descrever caravanas em África, excursões turcas, pulsões mágicas, instintos demagogos dos reis da Turquia, amargas decepções das cocumbinas do Ceilão, escaravelhos míticos do sul do Egipto, canoas egiptólogas auto-navegadas, estritos proformes das expedições de Lord Rawleigh ao sul do Pacífico, as mortes nas Índias, as tribos do Ceilão, as costas de lá-tão-longe, as vontades dos marinheiros no mar alto, as bênçãos dos pastores antes da partida, a partida de xadrez com o rei de Almat, o trigo como cresce nas encostas do Rub’yat, as vozes das mulheres de Capadócia, as cores do solo arménio. Esta descrições provocam, à vez e depois em ciranda, sensações nas mentes de cada uma das convivas, de modo que a reparada viagem se faz mais vividamente graças ao tom encorpado da voz de Houdini e ao modo como os convivas nele embarcam em meio da madeira escura do pub. Houdini continua: as tribos de Alarca, as contas do Mar Morto, juízos errados de quem se enganou na expedição de 68/69, aqueles que queriam ter sido ouvidos no Conselho de 73, quando se decidiu embarcar para a Síria e despejar tudo até que a pólvora secasse, as vontades populares e os tecidos bordados pelos mais simples pescadores de Viniatu, os croque-monsieur de Vistapão, as coroas de harique, as bostas amarelas que os pastores tiveram de carregar às costas como punição pelo desaforo de autorizar descargas ilegais de chá nas costas do Paquistão. As damas vibram, o coronel fingia tão bem o entusiasmo que às vezes por descuido se entusiasmava mesmo. Paul olhava alternadamente a cerveja que ainda não ousara beber e o bom Jacques a trabalhar fora nas janelas. Uma das damas propôs um jogo, Houdini não pôde recusar: havia de demonstrar como em 77, no Canadá, apenas por acção da força psíquica humana se ergueu uma mesa inteira de carvalho sólido até ao tecto. O velho coronel olhou-o aborrecido até ao espanto e até deixou sair, pelo modo como arregaçou a manga direita do casaco e apoiou o cotovelo esquerdo sobre a mesa e depois o queixo sobre a mão aberta, um certo interesse por aquilo. Como aquela não era uma boa velha mesa de carvalho sólido, decidiram mudar-se para uma mesa próxima da janela, essa sim adequada. Era uma mudança complicada. Havia que transportar os lulus da madames e amarrá-los de novo aos pés da mesa, mas de maneira que quando se tivesse de levá-los a fazer pipi fosse fácil. Havia que esperar que a perna falsa do Coronel deixasse de estar dormente, o que acontecia sempre que a deixava esticada na horizontal. Havia que cuidadosamente dispor as estruturas de arame das saias das senhoras, por causa dos grandes balões e do modo como estas podiam ser incomodativas ao sentarem-se. Tinham ainda que arranjar candelabros adequados à luz necessária na nova localização na sala. Depois havia que transpor cuidadosamente os bolos, os chás, as chávenas, os pires, os copos de xerez, os guardanapos, a toalha de renda branca que cobria a toalha vermelha e a toalha vermelha. Chegados lá, o jovem Houdini disse que precisavam da mesa totalmente vazia para a experiência, pelo que tudo foi removido para a cozinha com a máxima brevidade. Todo o cortejo deve ter demorado cerca de meia hora. Estavam agora sentados em círculo à volta da grande e sólida mesa de carvalho e Jacques trabalhava mesmo junto a eles mas do lado de fora da janela. O próprio Jacques parou a olhar. Houdini preparou o gesto e estendeu as mãos abertas sobre a mesa, os braços esticados e bem afastados um do outro. Disse aos outros para fazerem o mesmo, suspendendo as mãos aí a uns dez centímetros da mesa. Ficaram assim uns dez segundos. A mão direita de cada um estava directamente posta sobre a mão esquerda do conviva ao lado, igualmente abertas, igualmente a planar sobre a mesa. Intensa concentração, respirações apertadas. Os olhos de Houdini faiscavam. O coronel começou a reficar impaciente. A mesa não se movia nem um centímetro. As damas olhavam de soslaio umas para as outras, talvez embaraçadas por terem deixado envolver-se em tamanha patranha, mas logo retomam a focalização na mesa. Houdini concentra-se, respira, largamente, as fontes corriam-lhe suor mas o gel do cabelo escuro continuava impecável. Mais uns momentos passam, nada. A esta altura já nem os mais renitentes desviavam um milímetro que fosse da mesa e já nem os mais concentrados acreditavam que algo fosse possível passar-se. Tudo era enfim confiança depositada na figura do jovem Houdini, vibrando milimetricamente de calma concentração. A mesa inteira olha o centro, respira, deseja e desconfia. A dada altura passa um gato por ali e um dos cães das madames ladra. Nesse exacto momento invisível em que os convivas em uníssono olham para o gato passante, a mesa dispara para o tecto e estala tão violentamente que ao descer trás consigo um bocado grande do estuque e vem cravar-se bem abaixo do nível do soalho. Os cães então uivam, o trânsito na rua faz-se finalmente ouvir pelo buraco aberto no tecto. As convivas tentam desembaraçar-se, entre gritinhos, das cadeiras que lhes ficaram entaladas em arames agora visíveis das saias de balão. O coronel tenta limpar a cal que lhe arrancou uma vertente esquerda do bigode e, grita rouco, lhe sujou de vez o casaco de cerimónia grená. Houdini evita o vexame: escapa-se agilmente pela porta do pub no meio da confusão geral, sem levar o casaco nem nada, e penteia do lado de fora a cabeleira lustrosa de modo a que a cal seja sacudida e o aspecto devolvido. As tias de Paul estão algures parcialmente cobertas por um tapete vermelho de feltro, mas ninguém deu por elas porque o piano de cauda rachado ao comprido pela queda oblíqua da mesa lhes obstruía a visão. Paul levanta-se, sacode o pó e aproxima-se da janela, onde Jacques observa toda a cena. Abre a janela e Jacques diz-lhe, demonstrando um mínimo de espanto pelo sucedido: Já vi uma vez isto lá no Peru, mas foi com uma ovelha. O pastor ficou tão furioso que os aldeões se juntaram todos e não soltaram o governador até que este prometeu ir lá buscar a ovelha pessoalmente. -E ele foi? Perguntou Paul. - Não sei, a verdade é que ele não voltou a aparecer e substituíram-no por um tipo que era tão incompetente que alguns dirigentes da oposição, incitados pela população que estava do seu lado, propuseram que se nomeasse uma ovelha para o cargo. -Hum...estou a ver... A propósito, há bocado estava a vê-lo trabalhar aqui nas janelas e queria perguntar-lhe se você antes trabalhou no campo, na agricultura. -Sim, no campo sim, mais era mais couves que ovelhas. -E...e como é isso no campo? -Ah....é....é diferente, é mais simples, mais duro também. -Ah...e se eu quiser ir para lá, como é que faço? -Eeh...quer ir para o campo?....bem, o Peru é um bocado longe, suponho que se arranja qualquer coisa aqui mais perto, não sei. - Pois...bem.... se calhar vou andando. Olhe, se calhar vou perguntar ali àquela florista, ela vende flores, talvez ela saiba alguma coisa do assunto. -Talvez... -Ciao, obrigado. -Ciao. Saiu pela janela mesmo do pub esventrado, atravessou o carríssimo trânsito de Londres e dirigiu-se à florista do outro lado da estrada. * O CORDEIRO E A RUA Tinha postas nas mãos as mãos práticas e dessa maneira arranjou a casa toda. Depois pôs-se bonita e foi dar uma volta pelas ruas entre as casas dos vizinhos. Passou entre os lençóis a secar de uma vizinha. Estava sol, algumas janelas estavam abertas e ela espreitava lá para dentro. Às vezes via umas pessoas e às vezes não via nada. Mais à frente encontrou um cordeiro vestido de lobo. Ele tinha uma coleira que dizia: «Fábula». Foi passear com ele e não esteve assustada. Mas agora quando olhava para dentro da janela da casa das pessoas, alguém já lhas fechava na cara e nunca mais alguém lhe ofereceu um chá como dantes. Era por causa do lobo que as pessoas tinham medo. Ela tinha umas sapatilhas muito descontraídas e o lobo pezinhos de lã. Por dentro ela ficava triste de os tapassóis serem fechados à sua passagem e o cordeiro ficava tremendo de seu sucesso ao contrário. Mas os homens continuavam a assobiar quando ela passava. Foi quando reencontraram uma janela aberta que isto da tristeza passou um bocadinho. Mas era aberta porque nessa casa o dono dormia dentro de seu fato de treino azul petróleo, no sofá frente à televisão, e portanto tinha deixado a janela assim de qualquer maneira. A casa estava escura e desarrumada, apesar do sol lá fora. Só se via a luzazulando da televisão e ele de costas para a janela, adormecido. O cordeiro empoleirou-se aos ombros dela para ver e ambos viram muitas coisas espalhadas pelo chão escuro da casa: coisas, revistas, isto e aquilo tudo jogado. Depois o lobo foi lá dentro passear um pedaço, mas pouco se percebeu, porque estava escuro e voltou cá para fora com umas revistas na boca. Foi por causa destas revistas que ela se apercebeu de que ele não era um lobo mas um cordeiro, porque a boca dele não encaixava com a boca dele ao abocanhar as revistas. Ela teve muito medo desta descoberta e esteve em fuga de soluços durante algum bastante tempo. Ela não gostava nada de desaparecências. As pessoas naquela rua toda começavam a abrir as janelas aos poucos, porque afinal andava por ali um cordeirinho e não um lobo. O deslobo já tinha ficado por ali no chão, escalpíssimo, porque o recordeiro andava às voltas já descoberto atrás da mulher inconsolável a caminhar pela rua. Àquelas tantas, o homem que dormia no fato de treino azul acorda e vai à janela, gritando: Que desgraça é esta que vai um carneiro deitando um lobo no chão e depois balindo atrás de uma mulher que chora? A população teme desgredo e e recolhe de novo as persianas, que vinha timamente reabrindo, ficando um só olho ou dois de fora pelos buracos mais fininhos. Estende-se depois o homem à rua e diz à mulher para entrar na sua casa, que não tenha medo. Deixou o cordeiro na rua e fechou ao bicho a porta na cara. A mulher, de confiança difícil, desdiz pouco e não quer dizer nada. O homem fica cada vez mais apaixonado com aquele espectáculo e diz que fará o que ela quiser para que ela lhe conte aqueles mistérios, que em anos de vida ele nunca vira nada assim tão fabuloso. Na verdade ele já estava apaixonado por ela. Depois de muito insistir, lá deu a volta ao braço a torcer e disse a mulher o que tinha a dizer. Contou que não lhe metiam medo as bestas de mato, como lobos e afins, mas sim os animais mansos como o cordeiro, e que naquele momento lhe estava fazendo muita desgraça o facto de reparar que o homem estava a apaixonar-se por ela, que era aquela mansidão mesma que lhe metia medo. Confessou também ela que estava prestes a largar-lhe com uma haste de bengaleiro na cabeça, se não fosse a porta ali tão perto e soubesse que podia fugir a qualquer instante. Quando foram os dois abrir a porta, o cordeiro já tinha comido a pele de lobo e, compreendendo essa visão, o homem pôde ser de beijá-la, obrigando-a apenas como o vento obriga as árvores nalguns galhos. De maneira que a rua toda, vendo aquilo, passou a ter medo mesmo até do cordeiro e continuou sem perceber nada do amor. Voltaram todos para a frente do seu televisor e dava a novela. Tinham os olhos esbugalhados e não adormeceram. Tremiam indecisos algures entre os olhos e o coração, como se cada um andando entre a televisão e a sua janela de espreitáculo, nunca saindo. As bruxas locais sopraram vento pela rua e foi bonito vê-los aos dois irem pôr o sol sozinhos. * A NÓDOA Não passava de uma nódoa. Era uma nódoa no pano branco. Já se tinham tentado várias abordagens, nomeadamente lixívia, sais, beijinhos e pó-de-arroz. Mas ali estava ela, a pedir atenção e a tê-la. Numa casa de família as nódoas são sempre o centro. Lá em baixo na nódoa, as espécies 2 e 3 não sabiam bem o que lhes sucedia: corriam de um lado para outro como se o fim estivesse próximo. Havia então várias opções a viver entre as espécies: comerem-se entre si ou batalharem-se unhamente contra o invasor. Uma outra vez foi a unha que esfregou na nódoa e não sabiam elas que espécie de coisa é uma unha, mas sabiam dos efeitos. E foram-se esgotando as opções até que espécie 1, silenciosa como sempre, apresentou a sua hipótese: Aceitar, deixar-se morrer. Se ninguém compreendeu esta opção, ela foi no entanto ficando por aí até que as lutas 2 e 3 abrandaram. O ácido cítrico estava já a ser preparado para agir sobre a toalha quando a opção da espécie 1 foi unanimemente aceite pelos 2 e 3. E então, numa coincidência que supõe ligações sem teoria, o pano foi subitamente abandonado a um canto português, porque a mãe recebeu um abraço que aguardava da sua mãe há trinta e cinco anos, permitindo assim que as três espécies de bolor se multiplicassem no pano por gerações e gerações, em miríades de cores inacreditáveis e maravilhosas. * A RUA DO AMOR Passa uma caravana à frente da Rua do Amor. A caravana está cheia de mulheres. As mulheres têm lenços coloridos nas mãos e agitam-nos por fora das janelas. A caravana tem muitas mãos pelo lado de fora. As varandas da Rua do Amor têm muitas flores nas varandas. A caravana é branca. Lagartas passam em várias folhas das plantas presentes à varanda. O tempo é dividido pelas várias coisas presentes. Ora: as mulheres na caravana passam como uma lagarta pela rua. A Rua do Amor está cheia de mãos à janela a regar as plantas, braços de fora deixando cair água nos vasos. Gotas caíam no passeio. Está uma luz de três da tarde em Lisboa: um auge já um pouco oblíquo. As mãos continuam de fora, a apanhar luz e mosquitos. Nunca se viam as faces de quem regava as plantas. A caravana tinha passado, como e quando uma lagarta cai da varanda à rua sem morrer. Continuava agora a lagarta pelos charquinhos de água pingada lá em baixo na calçada; a memória é um charco. O animal é verde. Neste momento há três maçãs a serem comidas e duas camas a serem usadas na Rua. O sol estar avermelhado, as casas amarelas ou por aí, as flores vermelhão esmeralda azul violeta simples esticadas por todos os lados ao alcance de cada mão. As mulheres tinham passado já havia um tempo. Ainda pairava no ar o perfume eriçado das flores acabadas de regar. As varandas babavam-se delicadamente para o passeio e o sol ajudava a transformá-las em algo interessante. Os insectos distribuíam qualidades pelas várias regiões da rua. O vento era totalmente descarado e voava no sentido contrário ao que levaria ao pedaço de chão aonde haviam passado as belas moças em caravana e lenços. O vento tinha contudo sementes em trânsito, e estas eram úteis. Os únicos olhos presentes a toda esta Rua eram os que narravam isto, mas ninguém sabe a quem são. Continuando o sonho: a vida é verde, isto passa-se num lugar de chuva, os amores encostam-se aos muros e deixam passar as terríveis palavras para que cheguem até nós. Pff!, narrar aquela luz com esta sombra de letrinhas... Continuemos debaixo das folhas e continuemos lagarta pelos charcos, reconstruindo letra a letra e desajeitadamente já muito passado: a caravana das mulheres na rua sem olhos. Tínhamos portanto: varandas babadas, uma metáfora lagarta-mulheres, outra charco-passado, e uma luz maravilhosa a dar nisto tudo. Foi referido que era um sonho, portanto vai durar pouco. Vejamos: comer maçãs, usar camas. Passou há muito tempo uma caravana (daquelas de campismo, brancas) com uma mulher de mil braços a acenar em todas as direcções. As flores desfizeram-se então das varandas e das sementes caídas nascem homens. Os homens não tinham olhos, por isso desaparecem. As mulheres nunca existiram. Tudo isto dentro do caroço de uma maçã. Um bocejo. Bom dia. AMOR A Velha África Prestes Joãozinho Os Pastores e o Senhor das Terras Um Barquinho Menina Bernardo Sem Medo Susana A Mulher Que Sorri Os Homens e as Mulheres O Encantamento O Cansaço COMUNIDADE O Sr. Farnel O Cedro Que Crescia Enormemente Mentira A Velha dos Hambúrgueres A Cadeira Mágica Lisboa O Frade e o Tostão A Revolução A Paisagem Encravada ANIMAIS Santa Estrada A Lesma e o Rei A Coisa Estranha O Sapo e a Bola de Bowling A Taça de Chá A Cerveja de Paul Ricards O Cordeiro e a Rua A Nódoa A Rua do Amor [email protected]