O POVO DAS MAOS

Transcrição

O POVO DAS MAOS
REPOVOAMENTO
(histórias)
Daniel Melim.2010
1. Amor
2. Comunidade
3. Animais
Amor
A VELHA ÁFRICA
Era uma vez uma velha que foi apanhar lenha. Quando voltou
a casa tinham-lhe destruído a casa. Para passar a noite, fez uma
cabanita com os paus que tinha apanhado. Tapou a cabanita com
as suas roupas estendidas, preparando-se para dormir nua, e
como ainda lhe sobraram uns pauzitos fez uma fogueirita em
frente à cabana. Durante o sonho que teve essa noite, foi-lhe
revelado quem lhe tinha destruído a casa. Quando acordou, foi
procurar comida e pelo caminho encontrou a pessoa que
entretanto sabia ter sido a que lhe destruiu a casa. Disse-lhe Bom
Dia e convidou-a a ir lá a casa tomar um cházinho, que era a
única coisa que tinha. A pessoa quando ouviu convidar aquilo
desatou a correr de susto dali para fora. A velha continuou o seu
caminho e encontrou uns morangos, que comeu. Quando mais
tarde voltou à cabana, esta tinha sido destruida e e todos os paus
levados, até os da fogueira. Deixou-se ficar ali sentada até
anoitecer. Quando chegou a noite e ela ouviu o som daquela
pessoa a vir de novo, ela disse ao homem: olha, sei que vieste aqui
para me tirares as roupas, que é a última coisa que tenho, toma,
mas preferia mesmo era que dormisses comigo, porque também é
isso que tu querias desde o início. O homem, muito tímido e
estremecendo em muitas formas na penumbra, tirou também as
suas roupas e juntou-se então a ela, em meio da caruma e sons da
coruja e dos sapos.
*
PRESTES JOÃOZINHO
Um dia o Prestes Joãozinho foi à dispensa e não havia leite. Foi
ao supermercado e pelo caminho passou também na casa da
Maria, porque tinha saudades dela. Ela não quis ir com ele,
porque não lhe apetecia e tinha as costas a doer. Ele foi-se
embora triste e quando chegou ao supermercado reparou que se
tinha esquecido das chaves de casa. Fez as compras na mesma e
depois de meter os sacos no porta-bagagens foi ao senhor João,
que era tio da Maria e era serralheiro. Disse-lhe «olhe, dê-me
uma mãozinha ali que eu depois pago, que agora fiquei sem
dinheiro no supermercado.» O homem lá foi. Quando chegaram
à casa do Prestes João, havia barulhos estranhos lá dentro,
embora a porta continuasse fechada. Ele disse uma reza mas a
porta não abria. O senhor João depois dele tentou com todas as
chaves, e foi tentando e foi muito tentando mas só com a última
chave dos vinte maços que tinha é que aquilo abriu. Lá entraram,
e estiveram um bocado à procura do que é que andava por ali a
fazer barulhos, sem nada encontrar. Viram depois que era uma
fada mágica, sentada no sofá da sala a fazer zapping. Eles foram
lá tirar-lhe o comando mas ela não quis dar. E como brigaram
um bocado, no fim, ela que era uma pequenina atirou-lhe o
comando à cabeça e fugiu pela janela que era mesmo ao lado. O
Prestes Joãozito ficou com um galo de todo o tamanho da testa, e
depois de pagar ao senhor João o serviço disse-lhe para chamar a
Maria quando pudesse mas para não lhe contar aquilo da fada
porque não se bate em meninas. Sentou-se a descansar no sofá, a
olhar sempre o mesmo canal porque não encontrava o comando.
E esperou muito pela Maria, mas como ela não vinha e naquela
altura não tinham inventado ainda os telemóveis, foi sentar-se à
janela porque fazia calor cá dentro e já era de noite. Depois de lá
estar um bocado a olhar para a praça à noite e para os outros
prédios, veio-lhe a fada em segredo pelo lado direito junto ao
ouvido e disse-lhe: «se me deres um beijinho não digo nada à
Maria e devolvo-te o comando.»
Como eles foram sentar-se no sofá, tinham dado um beijinho
e ela pequenina sentar-se-ia então todos os dias numa outra tecla
do comando para eles verem juntos um canal diferente.
*
OS PASTORES E O SENHOR DAS TERRAS
No tempo em que isto se passava não havia ainda a Itália, a
Lapónia e metade dos Países Baixos ainda estava por nascer. As
horas tocavam assim baixinho ao lado dos montes onde as vacas
pastavam. Havia lá uma igreja e os pastores amavam-se por todos
os cantos. Quando os cheiros das flores entravam nos narizes
nasciam crianças e as avós primeiro ralhavam e depois ficavam
felizes. «Amo-te», disse o João à Maria, e tomou-a por trás, como
os cavalos na estrebaria. Depois beberam água da fonte e foram
tratar das vacas. Os pastores ali bebiam muito. Água, bem visto, e
por isso tinham os pulmões mais abertos e cheiravam mais longe.
Um assim dizia até que conseguia ver o leiteiro a vir, quando este
não se via e estava ainda por detrás da igreja. O senhor das terras
fartou-se disto tudo e mandou matar sete cabras. Os pastores
ficaram a ver porque, a bem dizer, aquilo os punha tristes mas
havia ainda árvores e o amor. Matou mais cinco, o senhor das
terras, e eles: tampis! Ele, o senhor das terras, ficou mais que
chateado, e mandou por vinagre em todas as ervas, de tal maneira
que as costas da Maria (ou do João, quando ela estava por cima)
ficavam azedas nos lambimentos do amor feito ao ar livre; e
mesmo dessa feita cagavam para o gajo senhor das terras, porque
ele não era nada de especial. Mandou o senhor das terras
alcatroar os pulmões de todos os que lá passavam durante trinta
estações e carnavais e o sítio ficou bem feio e escuro. As
dificuldades que tiveram foram muitas mas lá acabaram por se
mudar os pastores para um terreno pequenino ao lado e um deles
teve a ideia de criar o Alberto Caeiro, para ver se pelo menos em
papel o mundo deles sobrevivia. Do mal o menos, assim podiam
sempre esconder os papelinhos com os poemas que eles escreviam
do Alberto Caeiro eou quando as brigadas passavam a alcatroar
tudo podiam mesmo engoli-los. Aquilo era muito difícil de engolir
(o alcatrão era difícil de engolir, porque eram obrigados pelo
senhor das terras a comê-lo, e os papéis com os poemas do
Alberto Caeiro eram difíceis de engolir porque tinham de fazê-lo
empurrando com água que já não era das fontes frescas). A
história repetiu-se muitas vezes: os pastores faziam uma coisa, o
senhor das terras fazia outra. Um dia, quando o mundo era um
pedaço de alcatrão com um sinal de trânsito a meio, os pastores,
que tinham inventado uma maneira de viver a voar, desceram um
bocadinho cá a baixo para ver se dava para plantar alguma coisa.
Um homem a mando do senhor da terra deu-lhes um pontapé no
cu e disse-lhes: «fora daqui.» Iam sair dali, mas antes
perguntaram: «o senhor das terras ainda está vivo?» O homem
que lhes tinha dado o pontapé disse: «agora é o filho dele.» Eles
viram logo que era mentira, que não havia filho nenhum porque
ele não era capaz de amar para nascer um filho. Sem mandante,
assim, sentaram-se todos os pastores no alcatrão à espera que as
ervas daninhas conseguissem rebentar e de cada vez que vinha
um homem a mando do senhor das terras davam-lhe um beijinho
e diziam para ele segurar uma das crianças que entretanto no ar
eles.
*
UM BARQUINHO
Um barquinho. Um barquinho a vogar por cima das ondas,
suas irmãzinhas de baixo. As ondas a levá-loinho aos ombros,
carregadinhas de felicidade ao fazê-lo. O barquinho sonolento por
cima delas, como que deitado a dormir a sesta com massagens das
mãozinhas das ondas que por baixo. Uma lenta bossa o sono dele
mais as ondinhas, um gingar colando uns aos outros, elas nelas,
ele nelas, elas nele, ele e elas na roça. O vento soprava no cima e
as suas mãos massajavam-nas de cima, às ondinhas. Os ventinhos
mil escolhiam cada um a sua ondinha e levavam-na até onde
podiam, fazendo-lhe espuma no seu modo de beijar e ser
branquinhas. Depois a dissolução, o vento volta aos outros ventos,
a onda volta às outras ondas. Os rituais do amor. As ondas
agitadas, os ventos e as suas entradas, a meio a barquinha
ondulada a vir-lhes no amor balançado, a barquinha dormir
como um bebé ali no amor das ondas e os ventos. O barquinho
bebé, o lençol limpo das mudanças de corrente. As tempestades
paternas do vento e modo como a mãe quase o engole em ser
onda. A chuva alimentar, a mãe água, o vento o pai a trazer a
chuva. O barquinho a dormir na chuva, a criança em sítio de
luta. O modo como o vento o vogava de sul, depois de norte. As
mãos moles da mãe a sustentá-lo aguosas e alimentadas. A
barquinha, qualquer uma, a quase morrer nos lençóis de água. A
água a lavá-la em bica, o pai a soprar-lhe a água. O barco como
que a dormir. A água a serenar e o dia a nascer no vento brando e
seco com o sol lá no fundo. As lutas são de noite, a ventania
branda de dia. O barco sem tribos lá dentro nem pescadores nem
vontades, um bebé dormindo na sorte dos dias, adormecendo no
modo como a mãe encostava o regaço ao sulco do pai.
Antes da terra, os canibalismos essenciais da barca destroçada
na próxima tempestade e os destroços à costa na praia. Os
pedaços de pau jogados na areia. Alguém a reconstitui-los em
forma de cubata de brincar, alguém em forma de crianças negras
a brincar lá dentro e também por fora. O dia todo elas a brincar.
No fim do dia alguém um último pontapé naquilo e voltar para as
casas reais. A descubata moronada ali na areia de vez, levada às
ondas aos bocados, adeus e até qualquer praia, ou o modo como
as criações entre o vento e as ondas no modo como a espuma bate
na terra.
*
MENINA
Todos os dias se sentava à porta de um prédio diferente,
Menina. Entrava quando alguém abria a porta. Subia até ao alto
das escadas interiores do prédio e escrevia uma frase na parede,
com spray e em bem grande. Era uma sorte de vandalismo
benigno. As frases era escritas com maiúsculas e tentavam dar
força às pessoas do prédio. AMA era uma das mais comuns. E era
por todo o qualquer lado de dentro que as escrevia com letras
agitadas e somente a vermelho. O que ela não sabia era que as
pessoas não querem conselhos. Menina morava dentro de uma
mulher de 37 anos. Com as suas altas pernas magras sentava-se à
porta de um prédio a cada dia. E estava coberta por um vestido
verde, por habitual. A situação era portanto esta: frase dentro de
Menina dentro de mulher dentro de vestido dentro de prédio.
Escrever era a maneira de atravessar todos estes perímetros e
cravar-se no mais fora deles, o prédio. As pessoas não queriam
conselhos, apagavam ferozmente as frases com lixívia e tudo o
que havia à mão, inclusive com fúria e outras mortes. Menina era
frequentemente vista como Vagabundo por estar ali àquelas horas
sentada. Mas nunca desconfiaram de que fora ela que escrevera
aquilo ali, praguejando contra outras pessoas (erradamente)
aquando de esfregar. As pessoas não andam atentas.
Um dia começou a ir de noite. Tinha percebido o problema
dos conselhos serem malvindos. Também como antes, era quando
a porta se abria que ela entrava. Entrou atrás de um homem de
preto e de uma mulher velha espalhada pelos dois sacos que trazia
e atrás de um rapazito e da mãe, um por noite. Chegada ao topo
da escada do prédio, escrevia agora as frases apenas com uma
lanterna, quando a luz das escadas se apagava. Era como uma
benzedura aprendida dentro de uma pirâmide. Só que à noite as
pessoas estão mais atentas, e algumas pessoas viam-na às vezes a
sair do prédio e a seguir caminho pela rua, ficando desconfiadas.
Era portanto esta a nova ordem das coisas: luz dentro de coração
dentro de Menina dentro de mulher dentro de vestido dentro de
prédio escuro. A luz emergia desde o seu coração até ao prédio
através de frases escritas com a lanterna. Depois ia-se embora.
Isto aconteceu bastantes vezes. Uma vez ela deu-se conta de ser
vista e não voltou a prédios. Doravante passaria a ir para um
pátio exterior rodeado pelas costas dos prédios A, B, C e D. Uma
estrada pouco frequentada passava perto. O pátio era
basicamente de lajes de cimento, com alguns canteiros de terra
abandonados. Umas cinco ou seis árvores dispersas pelos
canteiros sobreviviam graças à chuva atribuida à cidade. Estacava
ao centro do pátio. A iluminação pública não funcionava ali. Ela
estava no escuro. Em silêncio, Menina ouvia as frases dentro de si,
as frases como AMA e FORÇA! Luz dentro de frase dentro de
Menina dentro de mulher de 37 anos dentro de pátio dentro de
universo. Isto ela era como uma pirâmide. De vez em quando
passava um carro na estrada perto e ela era milésimamente visível
graça àquilo que dos faróis conseguisse passar entre os pilotes
térreos dos prédios, como um prisma que atravessado por um raio
de luz durante um segundo em toda a eternidade. Alguém
reparasse naquilo acontecer todas as noites: tal é a probabilidade
do amor na cidade.
*
BERNARDO SEM MEDO
A aventura de Bernardo sem medo começa com um segredo:
Bernardo sem medo não foi, teve medo. Disse à mãe que ia,
deixou-se ficar a um canto lá em casa. Passou passando o dia por
fora da casa: as pessoas na janela, pássaros, tudo passava.
Bernardo, a coberto de ter ido, ficou pensando tudo o que a mãe
pensaria dele por ter saído: que era um quixote, um herói, um
fura-bardos, um arrufa-amores. Na sua imaginação, Bernardo
estava no pódio de sua mãe. Mas deixou-se em casa a fazer
paciências, em vez de ir. Fez vários castelos de cartas. Como não
nem abria as janelas para arejar, as correntes de ar não os podiam
derrubar. A mãe de Bernardo chegou ao fim da tarde e trazia
sacos de compras na mão, forte. Bernardo seguia fazendo
paciências a um canto. A mãe foi para a cozinha e pôs-se a fazer
comer. Depois veio à sala e perguntou-lhe como foi. Bernardo
respondeu-lhe coisas espantosas, milagres, foi de tal maneira
maravilhoso que cabum! Foi-se ele e a mãe deitar, cada um
sozinho no seu quarto depois do jantar.
Bernardo acorda cedo e Bernardo tem ainda outro segredo:
das sete para as sete sai à rua antes de toda a gente estar lá fora,
ele corre por todo o lado e fica livre e com ar fresco nos pulmões
entre as ruas vazias. Antes da mãe de pé já está ele ao pé dela,
pequeno-almoço. Vai-se a mãe embora, vai para o trabalho.
Bernardo devia ir, não vai. Vai a mãe pela rua a pensar que tem
de lhe arranjar um pai. Foi ver ao supermercado e não havia lá
nenhum. Foi ao mecânico depois do trabalho por causa de umas
peças e ele também não sabia de nada. Perguntou no dia seguinte
lá na botica, tampouco sabiam. Ao chegar a casa, em todos os
dias Bernardo lhe contava uma história diferente. Um dia,
quando voltava para casa nos seus saltos altos, a mãe ouviu
qualquer coisa esquisita vinda de uma sarjeta, junto ao passeio.
Baixou-se para ver o que era e viu que era um pai muito
pequenino a dizer que queria que ela o levasse para casa com ela,
que ele queria ir. Pôs o pai na lapela e andou até casa. Pelo
caminho o pai ficou excitado, porque debaixo dele balouçavam os
seios generosos e saudáveis dela. Quando chegaram a casa foi
posto ao pé da janela com muito cuidado. A mãe foi chamar
Bernardo e disse que tinha arranjado um pai para ele. Era
pequenino mas era o que havia. Bernardo no início achou
estranho mas depois lá se habituou, porque a mãe lhe tinha dito
que ele é que tinha de cuidar do pai, dar-lhe de comer, pô-lo
junto à janela para ele apanhar sol, regá-lo, enfim, tudo o que um
bonsai precisa enquanto a mãe está fora. E o pai lá foi crescendo
muito lentamente, com mimos. Porque o Bernardo, apesar de
continuar a passar o dia a fazer castelos de cartas e muitas
paciências, agora ia ver se estava tudo bem, se ele queria isto ou
aquilo. Com o tempo e os cuidados, o pai estava a ficar grande,
grande que quase já nem cabia na janela por cima do lava-louças
aonde o tinham posto. Não se esperava isto de um pai.
Um dia, Bernardo, que apesar de todos os cuidados ainda era
desmiolado, não reparou que o pai já não cabia ali e deixou-o
estatelar-se todo no chão. Com esta e outras confusões - como o
facto do pai, já grande, precisar de gravata e Bernardo não
compreender as suas novas necessidades - chateou-se tão a sério
que quando Bernardo chegou à cozinha vindo das paciências
lançou-lhe um berro enorme. Por causa de um novo grande medo
Bernardo teve de fugir lá para fora e era meio da tarde como
nunca antes tinha sido para ele na rua. Havia tanta gente a fazer
tanta coisa e era uma assustação, mas depois daquele tempo todo
fechado em casa até sabia extremamente bem. Era estranho e de
bebedeira. O pai já era nesta altura muito maior do que ele e
quando ficou sozinho em casa foi abrir as janelas para arejar. Por
causa disto voaram vários dos castelos de cartas que ao longo
destes anos Bernardo tinha erguido por ali. Os outros voaram
enquanto o pai se pôs a arrumar a casa. O Bernardo demorou
imenso tempo na rua, estava refascinado como quando se vai pela
primeira vez ao Red Light District e se anda ali às voltas com um
misto de curiosidade, medo e excitação. Muito depois, quando já
tinha os olhos cheios e as pernas cansadas, quando já tinha o
coração aberto a punho de tanto e tanto pelas ruas
rehumanizadas, voltou a casa como quem adormece
aconchegado. Os pais faziam amor. Bernardo podia finalmente
nascer.
*
SUSANA
As dores das costas de Susana eram uma demonstração de
afecto como há muito já não se via. Eram as dores de amassar o
pão, eram as dores de amamentar os filhos, eram as dores dos
arcaboiços que lhe jubilam. Eram as vontades todas do mundo
acarroçadas às costas delas e ela cantava de as acartar, pedia mais
uma só para verem como aguentava. Aquilo era uma coisa que
faria a Luísa-sobe-que-sobe-a-calçada corar de vergonha ao meio
dia por aperceber-se que a essa hora já Susana tinha feito o
trabalho de um dia inteiro. E até trabalhava no Extra para fazer
uns trocos a mais. Aquilo era um espanto de mulher, glorioso de
se ver. As horas acertadas para tudo, as mamadas perfeitas ao
marido, o modo como os orgasmos dele saíam em repuxo graças
à técnica de masturbação que ela tinha aprendido nuns fascículos
das Selecções, os modos certos das tortas quentes aos meninos, as
histórias sempre novas que contadas à hora de dormir por Susana
pareciam ganhar vida visível, enfim, tudo. Mas o mais
impressionante era vê-la trabalhar, uma ave entre os postos de
trabalho, um canário a cantar de gozo livre pela determinação
com que operava, um modelo de virtudes, uma determinação
estóica na fidelidade conjugal, uma sortuda pelo modo como a
vontade lhe fazia sempre amar as pessoas certas. Um dia, entroulhe o canhão de um tanque israelita pela janela. Partiu os vidros
todos, tapou a paisagem do jardim que se via dali e foi estacionar
a sua enorme bafejante boca de metal redonda a escassos
milímetros de Susana, que dormia descansada, aproveitando o
Domingo de Páscoa para dormir até um pouco mais tarde. O
marido tinha ido buscar a mãe. Como tinha um sono descansado,
levou algum tempo a acordar mesmo com aquele barulho todo do
canhão a partir a janela. Uma voz radiofónica gritou-lhe de
dentro do canhão: acorda puta, levanta-te da cama ou levas um
balázio!
Ela abriu os olhos docemente, as pálpebras justapostas abriamse com a doçura de uma dobra de lençóis frescos. Lá de dentro, os
seus olhos azul-profundo treme e amplexamente entreviam a luz
da manhã pelos poucos espaços de céu que o canhão deixara
visíveis. Que bela luz, pensou ela, e delicadamente sentou-se na
beira da cama para calçar os chinelos, que condiziam com a
colcha de seda cor-de-rosa. O canhão rodou mecanicamente o
cano para ajustar-se à nova posição de Susana e ficar-lhe de novo
com a boca gigante encostada ao rosto. Susana espreguiçou-se
esticando os braços e, enquanto o fez, não pode impedir que lhe
transbordasse um suave sorriso de prazer ao reparar como os
mamilos estavam um tanto doridos depois da encantadora noite
de amor.
-Oh puta, tás-me a ouvir?! Mexe esse cu ou rebento-te os
miolos. Baza daqui que vamos ocupar esta casa. Põe-te a andar
daqui e leva os putos, senão eles também levam nos cornos! – O
tipo que falava era apenas silhuetamente visível por detrás de um
pequeníssima grelha metálica na frente do tanque e falava para
um rádio que segurava na mão.
Ela, na sua beleza infundível, contorceu-se sobre a cómoda,
olhou três segundos para o espelho, para assegurar-se de que de
facto precisava de tomar banho antes de aparecer na sala, e num
gesto que deve ter ficado nos anais da história da elegância,
executa num sopro a tripla tarefa de ajeitar as madeixas louras,
enfiar a parte de cima que condizia com o chinelinho de seda e
sair do quarto sem fazer qualquer barulho e mesmo assim
fechando a porta. O tipo do tanque continuava a girar o canhão,
partindo nesse movimento para a esquerda a parede onde estava
o espelho, o espelho e metade da porta. Pelo buraco que abriu na
parede via-se Susana a preparar-se para tomar duche, despindo
uma a uma a intimidade vestida.
-Eu estou-te a avisar, puta não brinques comigo. Tens
exactamente dois minutos para tirares tudo o que quiseres daqui.
Depois rebentamos com esta merda toda. Tás a ouvir?!
Ela delicadamente abriu a torneira de água quente e, como de
costume, teve de ajustar várias vezes com a fria para a
temperatura ficar boa. Quando se lembrou de pôr a touca já tinha
uma parte do cabelo molhado e não achou piada nenhuma.
Começou por convidar os vapores e o som da água a invadiremlhe as células, uma forma de dizer bom dia ao mundo que há
muitos anos provava os seus resultados. Depois a água a cair-lhe
pelo corpo, a mão entre as cochas, a passar nos seios, o ventre, a
percorrer toda a árvore do amor até que o champô e as espumas.
Os movimentos coleantes da espuma em rios e cascatas pelo
corpo moreno de Susana. A toalha de um turco puríssimo, o
canto habitual frente ao espelho enquanto os cremes. Olhava-se
ao espelho rodeado de lâmpadas e cantava êxitos da Broadway
enquanto aplicava os produtos em pequenas quantidades bem
espalhadas. O canhão partiu mais um bocado da parede,
rebentando os vários armários da casa de banho e ficando mesmo
atrás da nuca dela. Duplicados no espelho a que ela se olhava,
esta dupla Susana-canhão depressa se desfez porque ela, mãe
zelosa, passou de um pulo só para os salões, a preparar o
pequeno-almoço aos três pequenos rebentos que há muito a
esperavam. Quando se dirigia de toalha na cabeça à máquina de
café que ficava do outro lado do balcão da cozinha aberto
directamente para a sala e os três rebentos se sentavam já na
mesa, a peça de artilharia mais comummente conhecida entre os
israelitas por tanque MZ-147 entra-lhe mesmo pela sala grande
adentro, derrubando o que restava da parede entre a casa de
banho e a sala. Susana põe-se de robe branco à frente dos três
filhos, defendendo-os. A voz radiofónica de dentro do tanque diz:
- É agora, ou saem JÁ daqui ou rebentamo-vos os miolos! A boca
do canhão estava agora a um palmo do peito de Susana, que
escondia de braços abertos os filhos atrás das costas.
Susana morre. Os miúdos conseguem fugir pelas traseiras. Os
israelitas ocupam-lhe a casa, vasculham-na à procura de bombas
e depois deixam-na. Há quem diga que segundo a lenda foi o
coração gigante de Susana que amorteceu o tiro de canhão e
impediu assim os filhos de serem mortos. Há quem diga que ela
berrou para eles fugirem antes de enfrentar sozinha o canhão. Há
quem diga também que o suicídio de Susana foi muito estranho,
depois de tudo o que tinha conseguido na vida
*
A MULHER QUE SORRI
Um veneno suave, doce, um veneno sueco. Um adeus às
armas, luta deitada no chão, cansada, adormecia. As musas
entupidas despediram o canhão em coro, depois choraram para
dentro dos vivos e disseram adeus aos sítios dos costumes.
Uma puta. Saiu da montra. Vestiu a roupa. Comprou um
bilhete da lotaria. Saiu. Voou num avião até à Islândia: aqui não
há montras. Andou pela cidade. Aqui não há montras com putas.
Avistou um avião a passar por cima da neve branca, o avião era
uma cruzinha negra a atravessar lentamente os céus. Xis de Aqui
pelo infinito adentro. Continuou a andar. Aos quadrados nas
ruas, andava. O problema era sair do ritmo de curvar sempre nas
esquinas, andar sempre às voltas quadradas nos quarteirões. Ao
fundo de um beco muito comprido de Rekjavic avista um
descampado. Caminhou aos pulinhos entre os tijolos do beco,
agarrada à carteira debaixo do braço direito. Saiu para o campo,
nada. Neve a perder a vista ao mesmo tempo para todo o lado e
em suavíssimas ondulações. A cidade para trás dela. Empunhava
apenas a carteirita e um alto casaco de peles que comprou no
aeroporto à vinda para cá. Peão parado, olhava em todas as
direcções e deixava-se invadir pelo ar que ali circulava mais solto
e ventanio sobre o imenso manto branco. Abriu os olhos e já
estava a andar sobre a neve. Aspergia neve em todas as direcções
nos passos largos que dava. Avançava decidida. Os olhos semiabertos sobre a neve que saltava dos seus passos. O ar gelado a
gelar-lhe sabidamente os pulmões. Andou muitos metros, infinitas
aspersões de neve nos passos bem traçados. Ao fim dos metros
suficientes, o frio era já o combustível daquela viagem, animava-a
aquele vazio de encheada. O vento empurrava-a e curvava sobre
os cabelos loiríssimos, curtos até ao pescoço, soltos de todo aquele
imenso nadar. O vento às vezes buzinava tanta força que se sentia
mais revolvida pelo mar que pela neve. Era o som do vento, o dos
búzios. Vu. Festas o vento, empurrão o vento, contrariando o
vento e até nisso lhe ganhava força, medindo a sua própria
convicção nas mãos invisíveis do sopro que a contrariava,
achando-se então cada vez maior dentro dela. A malita de lustro
preta sempre segura pela mão direita, pendurada do ombro. As
peles vestidas a esvoaçar, a gola alta reforçada pela mão esquerda
que tentava que a gola não abrisse, tapasse. O suave sorriso que ia
despontando quando as dores se iam congelado nas pernas, cada
uma delas, cada vez mais enterradas na neve. A dado ponto,
olhou para trás e Rekjavic era já pouco mais que uma mancha
azul ténue no horizonte. Aos poucos deixou de se ver. As dores
subiram-lhe das pernas para o corpo todo, e já não sabia se era o
frio ou que outra coisa qualquer. Ela cobria-se de branco, porque
a neve aumentava no vento e a neve do solo dava-lhe já pelos
joelhos. As dores eram a viagem e o sorriso amontoava-se nessas
dores. As dores durante dias. As dores dia e as dores noite.
À noite, nas montanhas que suavisivelmente rodeavam
Rekjavic, as estrelas eram de um brilho intenso, invulgar, inteiro
no modo como exuberava discretamente do vácuo fundo em
milhares de pequenos sorrisos. Passou a primeira noite em grutas,
a segunda junto a um lago onde as estrelas muitas, a terceira já
não se lembra. Depois já era a dor a caminhar por ela, uma
lâmina quente a derreter a neve que lhe dava pelos ombros. Os
búzios. Os largos braços do vento. O longo golpe dela na neve.
Ela era um gesto só a ouvir o vento e a ir por ali a fora. A um
dado momento a puta sorria definitivamente. A um dado
momento, como em todas as incursões pelo frio, o abrandamento
nos braços do gelo. Quando viajava já totalmente debaixo da
neve, depois de descrever um longo túnel congelou.
Anos depois, a puta foi encontrada por um grupo de
aviadores. Deitaram-na na marquesa do avião, como se ainda
viva. Um deles, Wolfgang Recht, quarentão de barba ruiva,
sentou-se na beira da marquesa e destapou-lhe o gelo do rosto
com um pano turco molhado em água quente, suavemente. A
cada toque seu, o corpo dela aquiescia, consentindo revelar-se em
pouco a pouco. Os braços apressados de Wolfgang depressa se
deram conta que apenas pequenos gestos muito concentrados
faziam bem a tarefa de derreter os últimos bocados de gelo que
redomavam aquele corpo. Absorviam-no a ele as repetições mil
dos gestos que quebravam as camadas. Os dois outros aviadores
discutiam coisas banais no cockpit e ele ficara lá atrás com a
Coisa, como lhe chamavam. Entre as sujidades congeladas que
rodeavam a Coisa, os dedos de Wolfgang iam abrindo passagem e
depositando regularmente os detritos sujos em algodões no chão.
Depois, com um gesto pungente, mergulhava de novo a toalha
turca no alguidar de água quente e seguia derretendo os gelos e
outras escuridões como matos e lamas em torno dela. Os gestos
sulcaram-lhe a forma dela, as cochas, a estranha forma mirrada
do casaco de peles. Descartou a mala vinílica dela e alcançou as
mãos esguias da Coisa. Depois os braços, o peito. A esta parte, já
as águas que escoavam da Coisa em desgelo inundavam parte do
amplo vagão aberto do avião. Com as oscilações do voar, a água
caída da Coisa acumulava-se mais à esquerda ou mais à direita do
vagão, mais atrás ou mais à frente em pequenas ondulações que
os pés de Wolfgang não consideravam. Absorviam-no agora mais
precisos os gestos de limpar-lhe o rosto, de desvelar-lhe a face.
Derrete a água que gelava a fronte, alta e eslava, os olhos, dois
ameijoados nas formas finas, a cana e as narinas, as maçãs do
rosto, os cabelos louros, o pescoço e queixo esguios. Depois veio a
boca, último gelo. Abria-se-lhe um gesto: o sorriso dela não era
definitivo como o das caveiras, era mais macio e real, cortante e
animal, como a satisfação no estado aberto de uma loucura
qualquer. Aproxima-se, era terrível, um rosto verdadeiramente
vivo. Inesqueceu-se daquilo e tentou beijá-la. Os lábios violeta
dela não eram receptivos, o gesto amplo de sorrir exuberava tanto
que não tinha capacidade de aconchegar a forma dos lábios dele.
Susteve-se no gesto, a escassos milímetros dela, a sua respiração
arfante e quente a derreter-lhe os últimos cristais no rosto. O
sorriso dela também não era como o dos vivos, social, medido,
crucificado nos gestos da vida comum. Era inadiável e já, entrante
no encará-la assim de face a face. Fitou-a horas seguidas, como o
cuidado que o enfermeiro na ambulância ao paciente. Todo o
longo voo da Islândia ao continente a fitá-la.
«A mulher que sorri» era uma das campas mais visitadas do
Père Lachaise, ilustre cemitério de Paris. Era ela, a puta sem
nome um dia ali ilegalmente posta em descanso por Wolfgang
Recht. Ninguém o viu entrar com ela ao colo, saltou o muro,
encontrou uma campa vazia e deitou-a no solo uma última vez
para a contemplar. Estava uma sereníssima lua cheia e o sorriso
rasgado dela parecia ali ter cumprido o seu destino. O rosto dela
estava iluminado de tal lunar que se assemelhava às inúmeras
estátuas marmóreas que naquela colina bordejante de árvores
choravam os seus mortos. Fez-lhe uma cama de folhas secas no
fundo da campa, deitou-a suavemente sobre elas e depois de sair
de lá de dentro cobriu-a com mais folhas secas. Pensou encher
aquilo e respirou fundo. Encheu o resto com todas as folhas que
encontrou ali à volta. Passou três horas a arrastar para o túmulo
uma enorme pedra tosca de arenito que parecia a ponta de um
iceberg. Colocou-a
sobre o túmulo. Com mãos tremendo,
inscreveu a tinta negra «La femme qui sourit» e a data do seu
encontramento. Roubou flores ao túmulo do Alan Kardec e pôs
ao lado da pedra. Pensou na sua última namorada, na severidade
dela, pensou também nos seus cabelos que pareciam os da
Medusa. De pé contra a pedra que arrastou até ali, olhou a lua
cheia, ouviram-se corvos, passaram os corvos entre as silhuetas
negras das árvores nuas de Inverno. Esperou um milagre. O
milagre não veio. Esperou mais um bocadinho. Foi-se embora.
Vieram de manhã os turistas, puseram mais flores, criaram
histórias sobre aquilo. Veio a direcção do parque, abriram o
túmulo, a mulher entregue à bicharada, tiraram-na, cremaramna. Deixaram lá a pedra, voltaram a tapar o túmulo. Incluíramno na lista de coisas a visitar no cemitério.
*
OS HOMENS E AS MULHERES
Na estação, despediram-se os homens das mulheres e elas
partiram para a Lua. Quando lá chegaram fizeram queijo para se
esquecerem da tristeza e a cada buraco desse queijo disseram um
segredo. Quando foram para o mar, os homens deitaram segredos
dentro de garrafas depois de as beberem para não ficarem tristes.
Por isso é que a água e o leite correm muito quando eles se
encontram de novo. Os homens e as mulheres à noite falam
baixinho um com o outro dentro da casa, porque os ratos sabem
os segredos tristes da distância guardados nos armários e nos
porões e roem muito e por todos os lados.
O vento sopra na rua. A lua está sobre o mar. A casa está
parada a amar. À volta os ratos roem.
*
O ENCANTAMENTO
Deitou as cartas e viu que a Maria não se amigava dele. Pegou
então num facalhão e foi pelo mato adentro. Para não
enlouquecer de raiva esculpiu uma barca. Navegou nela sete dias
e chegou a uma ilha encantada. Lá, um mouro pediu-lhe três
desejos, que ele havia de lhos conceder. O homem, como era de
bem, pediu para voltar à terra e que lá fizesse fortuna e tivesse
Maria por sua esposa. Voltou então à terra demorando desta vez
apenas dois dias, sendo que lhe apareceram os bolsos cheios de
ouro e Maria a seu lado logo depois de aportar a barca. Vendo
que ele era um homem que sabia controlar a sua raiva, Maria
contou-lhe que tinha feito um contrato com o dono da floresta
que deu a madeira para fazer o papel das cartas dele deitar e para
o barco e também estava apalavrada com o mouro encantado, de
maneira que tudo aquilo era um testesinho e vão ter muitos filhos
vivendo muito tempo felizes na sua terra. Mas ele achou que era
demais cenariar aquilo tudo, como se ele um brinquedo
navegando nas ideias dela para um lado e para outro, conforme
ela a soprar. E largou tudo aquilo e ali mesmo o amor que lhe
tinha, de trombas aviado para fora daquelas provices. E foram os
dois dificilmente palavras até fora do bosque, até fora da história.
E, lá sim, já fora das folhas, casaram. Ele vestido de Maria, ela
vestida dele, ela dizendo desculpa e ele dizendo não faz mal já fiz
igual, os dois cheios de dúvidas e iguais aos outros todos, às vezes
felizes às vezes na merda, às vezes personagens às vezes sendo de
verdade.
*
O CANSAÇO
Não estava maluco, estava cansado. Cansado e fodido com a
vida caminhava em direcção ao pôr-do-sol com uma espingarda
da mão.
Disparava, mas o filho da puta do sol da maravilha nascia
sempre de novo.
Comunidade
O SR. FARNEL
Era uma vez uma nota. Quando o sr. farnel a dobrou em dois
três quatro e fez dela um barco, os meninos gostaram que ela
fosse lançada ao rio. Ao chegarem a casa, os três meninos fizeram
o mesmo com as notas que encontraram na carteira das mães.
Lançaram cada um estes barquinhos notáveis ao sitio de água
que estava mais à mão: um regato, um lavatório, o mesmo rio que
o sr. farnel. O grande Douro. As mães não gostaram, assustaram
e bateram, ensinando o valor. As mãos pesaram como ouro cheio
de passado aos ombros de viuva domingueira. Aos domingos no
adro, sr. farnel era olhado de lado, sempre solteiro, de mãos nos
bolsos e assobiando. Além longe, na outra margem do rio,
vigilavam sempre as fábricas dos maridos das mães. Só as crianças
o pareciam seguir para todo o lado. E, se o sabia, não era por isso
que mudava. Chegou por ali a haver uma época em que deixar de
assistir ao lançamento da nota ao rio assinalava a passagem à
idade adulta. A idade de ser sólido, de construir: pedra. Alguns
nunca passariam, e talvez ou seguramente por isso a aldeia ainda
existe e cante. O sr. farnel era uma montanha assente em
crianças. Não pediu para sê-lo: foi erguido. Em matéria de
sustentação, os campanários e as chaminés de fábricas nunca
poderão competir com as serras.
*
O CEDRO QUE CRESCIA ENORMEMENTE
Como ninguém naquela aldeia sabia se o cedro novo que
crescia enormemente era uma angiospérmica ou uma
gimnospérmica, decidiram descer todos a montanha e ir
perguntar ao professor que vivia lá em baixo. Quando chegaram
ele recebeu-os a todos com um cházinho. Ele pegou nos livros e
explicou trinta coisas que não tinham nada a ver e por fim lá disse
que o problema das árvores era manterem-se fiéis. Como
ninguém percebeu nada daquilo, e já se fazia noite, tossiram todos
um bocadinho e foram embora pedindo licença. Cansados da
viagem, chegaram de novo lá cima à aldeia com os bofes de fora e
a dizer : «Ó Maria, telefona lá ao homem que ele há-de te dizer
alguma coisa sobre a árvore nova. Vá lá, ele gosta de ti, telefona.»
Depois de lhe darem chocolates, a jeitosa da Maria concordou e
foi-se à cabine pública meter moedas para telefonar ao professor,
com a aldeia toda à espera atrás dela e a ver. Estava impedido.
Bofaram todos e foi cada um para sua casa fazer o jantar à sua
maneira. Para ela não se esquecer de telefonar outra vez, veio
cada um com uma coisa diferente bater à porta dela depois e
dizer-lhe: «Lambe-te lá com isto, Maria, que as voltas que o
colchão dá não hão de pagar os favores de ciência que fazes à
gente. Bendita sejas, pequena.» Ela achou muito estranho
dizerem todos o mesmo aquilo, ainda por cima com o mesmo
tom. Mas como as coisas que lhe traziam eram boas, lá ela ia
lambendo os dedos e dizendo: «Cá te vistes, cá me tens, se me
amas dessa maneira hás-de ter os meus bens.» Meia hora depois
da chegada do último pudim, pensou que tudo isto era obra do
Manelito, que fazia tensões de chegar a prior. «Quero lá saber»,
disse ela aos botões. Alçou a meia e foi saltarilhando colina abaixo
ter com o professor a meio da noite, já que ele não lhe atendia o
telefone. Chegou lá baixo e como ele também não lhe abriu a
porta, espreitou da janela que malabria e viu lá dentro uma
miúda mais nova que ela toda nua com o professor, os dois à
frente da lareira. Ficou muito triste, sentou-se a chorar muito na
soleira da porta e depois teve uma ideia: vou subir ao telhado e
deitar pela chaminé bagas de pedreira, que há de lhes criar
bolotas na pandilha. Assim fez rapidamente e fugiu embora logo
de seguida, a rir do feito no meio dos soluços do choro.
No outro dia de manhã, quando o sol abria as padarias,
chegaram o professor e a amante da lareira ainda os dois de
pijama lá a cima à aldeia. Como estavam os dois muito barbudos
e chateados por causa disso, puseram-se a gritar no meio da praça
principal onde estava o tal cedro: «Quem é que fez esta merda?
Hã?! Respondam, seus pafónios! Desengulam os cremes e venham
marear a coisa feita! Se eu fosse o mandante disto vocês iam de
caneca», acrescentou o professor. Como já tinham gritado, foramse embora da aldeia. O professor e a amante, mais satisfeitos.
Quando iam mesmo a sair da povoação, encontraram uma velha
que tinha umas bagas de fazer desaparecer a barba: eram bagas
do cedro novo que crescia na aldeia, disse o professor. «Trata-se
de uma angiospérmica», precisou ele para impressionar a amante.
A amante, que estava muito chateada por ter agora barba, nem
ouviu. Pagaram à velha as bagas e comeram aquilo. Enquanto
iam a descer de novo desde a aldeia até à casa do professor, a
barba foi-lhes caindo, deixando duas filas de pêlos pela encosta
abaixo, uma atrás de cada um deles. As filas iam desde a aldeia lá
em cima até à casa do professor lá em baixo, como os carris de
um eléctrico. Eles chegaram muito contentes e sem barba à casa
do professor e foram logo fazer amor por causa disso. Quando no
dia seguinte foram tomar o pequeno-almoço à janela, viram de lá
que os pêlos que eles deixaram cair se tinham transformado em
duas filas de cedros que cresciam muito rápidos, criando uma
alameda de árvores até lá cima. O professor preparou logo uma
conferência para informar a aldeia daquele fenómeno raro, mas
no dia ninguém apareceu porque a conferência se chamava «O
Esperma dos Anjos» e isso era pecado. Quando ia depois
desiludido e com a amante a descer a alameda dos cedros desde a
aldeia até à sua casa, ela já era entretanto sua mulher (milagres
são assim) e os cedros já tinham a altura de sete andares. Ao vê-los
aos dois a ir embora, toda a gente comentava da janela que o
professor fazia feitiços e tinha que ver com o diabo a quatro.
Apesar de tudo, só a Maria é que continuava ainda a acreditar
que ele até era boa pessoa e por isso foi lá a baixo deixar à porta
do professor uma tarte de capim que dizia assim: «Fim!» (escrito a
canela). E com este feitiço transformaram-se os dois, o professor e
a amante, cada um num cedro que cresceu tanto que arrebentou
até sair por fora dos telhados da casa aonde estavam a dormir.
Isto porque a Maria era afinal em segredo a velha bruxa que lhes
tinha dado as bagas mágicas e tinha poder para isto tudo. «Assim
ficam juntinhos para sempre», disse.
*
MENTIRA
Em Lugar de Cima achavam que ele era mentira. Por isso
resolveu apresentar-se a meio da praça todos os dias. As pessoas
passavam e diziam coisas como estar ali um belo dia e sobre
qualquer coisa, tudo menos dele. Não havia coisa tão estranha:
nem ao estar de casaco de peles se eles lhe davam atenção, ele não
estava ali. Foi o barbeiro às lâminas e voltando afiou-as no
cabedal à mesma, sem desviar a cabeça por algo que no centro da
praça. Foi o tasqueiro às pipas e não houve nada que o fizesse
desviar. Foi o trovante às trovas e achou inspiração noutro sítio e
não ali. Foi algum músico judeu que desenhou a música ambiente
daquele sítio, eles viviam naquilo como peixes em formol,
passando lentos de um lado para o outro. Sempre à volta da praça
e sem lhe saberem, ele era mentira apesar da apresentação, apesar
de ser a pecinha central daquele aquário de Lugar de Cima. Eles
estavam um bocado melancólicos até aos ossos e não queriam
saber de novidades, mais ainda não queriam saber do passado. E
possivelmente ainda o pior sendo aquele nó no espaço-tempo que
ele era: estava ali e não existia, nem roupa ou matéria ou fome na
carne o salvavam para dentro da vida. Encarnecidamente, a
carne do real deles não aguentava aquilo.
Houve então, furando por um dia adentro, uma trova de
trovador inesperante, que este trazia uma suspeita de no centro da
praça haver uma quebrita no contínuo da aldeia. A propósito de
algo existir sozinhindependente, ele intuía isto às especiais curvas
da voz do vento ao centro da praça e cantarolou o que chamou de
História da Ruína do Ar:
A história de um homem sem história,
a história de um homem sem excepção.
A história de um homem que não existiu
nem sequer na imaginação.
Uma história que passou,
uma história que é passado.
Uma história que acabou
sem nunca ter começado.
Uma história que há-se ser,
uma história que há-de vir.
Que há-de vir sem se ler,
que há-de ser sem se ouvir.
Um buraco vazio,
uma folha sem buraco.
A sombra vaga de um rio,
a sua ausência de facto.
Um história que não é,
uma história que não foi.
Ela só fica de pé
no momento que a destrói.
A história do homem sem história,
a história do homem em pó.
Esvaziado da memória
vem chegando e já passou.
Ouvindo isto espancaram o trovador até à morte, que não se
havia de falar daquelas coisas sem as haver ou como era possível
aquelas intuições? Desaparecendo um por cima outro por baixo,
ali ao centro da praça, um pelo ar de não existir e outro morto na
terra por existir cantando demais. A mentira branca a subir e a
canção negra a descer, foram eles os dois, o Trovante e a Mentira,
o vertical eixo cósmico (de lendas) que fez o pião do tempo girar
mais lento e mais lento em Lugar de Cima, sempre em torno
daquela praça, de tal maneira abrandando as gentes e os costumes
ao longo dos calendarinhos que um dia eles já só eram todos
apenas paradamente uma fotografia com volume. Assim, depois
depois, as ervas cresceram por três gerações e o peão sem tempo
que era aquela aldeia foi sendo engolido no húmus da terra,
adormecendo apodrecida. Mas este romance de estrofinhas seguiu
sendo cantado de gente em gente, levado pelo vento desde então,
uma bolinha que do fundo do copo de cerveja boa se
desprendesse de seu misterioso centro e fosse visível todo o tempo
do seu subir encantado, até desaparecer na geral espuma das
nuvens sobre tudo.
*
A VELHA DOS HAMBÚRGUERES
«Esta é a história da estúpida velha rançosa que vendia
hambúrgueres. Um deles larvou as moscas debaixo do balcão. Os
clientes fugiram assustados, avisaram outros cidadãos e as lojas de
hambúrgueres ficaram desertas. Passaram a vegetarianos todos,
mas quando veio a gripe das couves retornaram à carne. A velha
quis dizer que não tinha sido ela a esquecer-se do hambúrguer de
baixo do balcão, mas não escapou ao chicote. A carne dela
vergastada incitava-me a fazer bifes de velhas, mas resisti à
tentação e debiquei-me à exploração aviária. Era giro os pintos
aos montes. Obriguei a velha a ir para a máquina de cortar os
bicos aos pintos. Eram serrados para não preferirem comer-se a
comerem a ração. Trabalhava naquilo noite e dia. As pessoas já
não comiam carne mas comiam ovos, as estúpidas, por isso a
velha trabalhava bem ou então...já sabia. Os pintos ficavam para
ali em roldanas esmagadas a tentar comer-se uns aos outros e, se
chegassem a sobreviver, o resto da vida era em jaulas. As pessoas,
desde a gripe das couves sem nunca notícias, saíam pouco de casa
e pareciam elas próprias mais pintos de engorda do que outra
coisa. Íamos pôr-lhes a comidinha a casa, carninha de novo, e eles
depois devolviam os tabuleiros vazios. Davam-lhes computadores
para trabalharem em casa e tudo corria bem. A fábrica teve de
fazer mais pintos e estragalhá-los rápido para as engordas
humanas. E nisto havia uma felicidade sem limites, uma estesia
dos sentidos a todos os níveis. As ruas eram prados verdes a
perder de vista, visto que as pessoas já não saíam de casa. Havia
vaquinhas e tudo de novo nos centros das cidades, tenho aqui um
postal que o prova. Mas um dia a puta da velha encravou-me o
mecanismo da máquina de cortar os bicos aos pintos e, quando
um mecânico se aproximou dela, esmagou-o com uma chave
inglesa que tinha no bolso. A tipa ameaçou sobre quem se
aproximava
dela
e
reduziu
cada
um
a
pedacinhos
ensanguentados, faltando pouco para sair da fábrica. Felizmente
conseguimos lançar-lhe uma peça de equipamento pesado para
cima, um turlão ou assim, mesmo antes de sair da fábrica. De
qualquer maneira, a coisa soube-se e as pessoas ficaram
escandalizadas pela puta da velha se ter passado dos cornos e ter
querido fazer uma revolução ali mesmo. Agora as pessoas são
todas vegetarianas outra vez e eu estou escondido num covil à
espera que isto passe para lhes vender hambúrgueres outra vez. E
desta vez a velha já lá não está... »
*
A CADEIRA MÁGICA
Ela era a cadeira de Van Gogh reduzida a miniatura ali no canto da
sala. Sentavam-se nela. Ela tinha poderes. Se te sentasses nela encolhias
ainda mais que ela e tudo te parecia grande. Sentado nela ficavas
com o tamanho ideal para dormir uma soneca no assento de
palhinha, e havia muita gente a ansear por isso. Logo que saísses
voltavas a ficar normal, de tamanho igual a ti. Claro que não era
a cadeira do Van Gogh, era uma cópia feita para crianças e que
tinha poderes. Sentavas-te lá, pequenavas, e logo que começavas
a ter ideias de aproveitar a pequenez, como entrar por certos
envelopes adentro ou montar um cão específico, eras grande de
novo: ao te afastares da cadeira para o fazer, ficavas grande. Só
funcionava estando em contacto com ela. Se tentavas levar a
cadeira contigo para as ideias ela era grande demais para arrastála, tu pequeno. Entrar por certas portas para ir à Holanda
comprar haxixe mais facilmente era uma tentação, mas nada
feito. Um dia sentou-se lá um presidente. Presidentes pequeninos
parecem já estátuas. Com a escala diminui a voz, não podem
fazer discursos também. Sentou-se lá uma menina, daquelas como
as que o Lewis Carroll fotografava, saiitas curtas e tudo. Espreitou
por entre as palhas do assento e achou um ovo de qualquer coisa.
Era de uma mosca. Buarg. Quando ficou grande lavou as mãos
muitas vezes. Outro era um leopardo, sentado ficou um gato
pintas negras e feições raras. Disse um rugido baixinho, como um
gato adormecido a sonhar ser grande. Aquela sala era como um
estúdio de fotografia: as pessoas vinham, sentavam-se na cadeira,
tiravam o retrato de encolher e iam-se embora. Não havia
ninguém a morar ali, a cadeira era numa sala secundária de uma
casa grande onde só os quartos noutra ala distante. As pessoas
chegavam, topavam a cadeira e sentavam. Um palhaço veio e foi
bonequinho todos os instantes sentados. O leiteiro veio e ficou
ligeiramente maior do que a garrafa de litro. O palhaço nunca
mais assustou os pequenos, o leiteiro passou a achar as garrafas
lindas nas portas dos clientes, o presidente respirou fundo antes de
cada vez que discursava depois disso e o leopardo tornou-se
vegetariano ou caçou com mais fineza. Ao saírem da cadeira
todos tinham de saltar para o vazio até ao chão, porque ficavam
pequenos demais para descer pela perna de madeira. Tinham de
confiar que ao tocarem no solo, na outra ponta do salto lá para
baixo, seriam já grandes de novo e portanto não morrendo ou
magoando na queda. E todos os que tinham esta experiência não
faziam muito barulho sobre ela, ficando neles como um galho a
mais que não se destaca da árvore nem exubera lá por ser novo.
A senhora que dirigia a sala com a cadeira morava numa ala
afastada da casa. Era mais ou menos como aquelas lavandarias
self-service, chegas lá não há ninguém, sais de lá não há ninguém,
entretanto usas. Mas não se pagava. A senhora só ia lá varrer a
sala de quando em quando e abrir as janelas. Estava lá sempre só
a cadeira, único objecto daquela sala alta com altas janelas de luz
filtrada por cortinas brancas. Havia também uma lareira que não
funciona, lá naquela sala de chão de madeira não polida. A
pessoa chega, senta, encolhe, salta para o vazio, fica grande outra
vez. Uma vez, alguém depois de ficar pequeno desatou a bater em
tudo o que era grande, de susto maior, e continuou partindo e
batendo coisas mesmo depois de normalar de novo ao tamanho
original, ampliando o tamanho da rebentação que ia sendo pelos
ares a toda a volta, muito mau. Não parava nunca, por isso o
povo invadiu aquela casa e pegou fogo à cadeira e à sala e à casa.
A revolução de gentes que isto deu, e foi muita e longa e
eufórica no modo de odiar a cadeira e os seus malefícios, cruzouse na rua com uma outra multidão de pessoas. Estas outras
tinham ido à cadeira e gostado e empunhavam cartazes a dizer
exactamente isso. Ninguém disse nada de nada, as duas grandes
massas de pessoas a passarem silenciosamente uma pela outra,
como água pelo azeite, as armas a ferver nas mãos de cada um
dos manifestantes. Quando acabaram de cruzar-se e os olhares de
lado já não se viam entre as duas facções, uma pessoa virou-se e
começou a bater nos oponentes pelas costas. Choraram e
rangeram, destruindo-se entre si e grande parte da cidade entre
traches e lamas, paus e pedras e o que mais havia a rebentar. Um
grande buraco aberto no meio disto, no fim. O fumo no ar,
porcaria, estilhaços e ruínas e outras coisas habituais.
Escorregando para muitos minutos de anos depois: em meio
das coisas caídas que ainda se aguentavam de pé nos restos e
desesperando por encontrar pedaços de água limpa, alguém
avistou ao longe numa colina um rapazinho. Ele está sentado
debaixo de uma árvore no topo da colina e com um ar
sereníssimo recebendo com abertura inteira o ar que lá chega
puro. Vai esse alguém agora desimpedindo os destroços pelo
caminho até fora do grande buraco aberto onde estava, a pé até lá
cima à colina. Lentamente olha a criança de cada vez mais perto,
para, toca a criança. Uma luz enche-lhe o coração, um alívio
inominável. Mil anos de bombas saradas não saberiam ser isto. A
criança sorri, o seu olhar olha para cima e respira fundo como um
pêssego acabado de comer fresco. Esse alguém tocado pela
criança chama outro alguém lá do buraco, depressa outro alguém;
a criança alimenta-os todos só de estar ali, a todos os que vão
chegando à criança sentada debaixo da árvore no topo da colina.
Outros sobem a colina ainda verde, rodeiam a colina verde
generosamente, invadem a colina, acampam por ali em excursões
ao menino. Esquecem, lá em baixo foi. Quando eram muitos e a
noite acabara de nascer em pequenas fogueiras de muita gente
pela colina abaixo, abeiraram-se da criança para mais uma vez
tocarem na sua. Vinham de muitas partes e a criança era muito
falada no meio dos destroços. Agora esta última vez chegaram lá e
apenas a cadeira onde a criança se sentara sempre. Nunca mais
apareceu e alguém tornou aquilo sagrado.
*
LISBOA
Lisboa. Três mil metros de altitude. Um balão larga pessoas
sobre a cidade. Parte do novo plano do governador para aprender
as pessoas a voar, elas eram largadas a altitude diferentes
consoante o peso e a idade. Às vezes até a posição social era tida
em conta. Uma mulher foi atirada com um jumento. Um
rapazinho foi atirado vestido de branco à domingo. Um queijeiro
foi atirado de cabeça porque se recusava a aprender a voar. Se as
pessoas continuam assim sem resultados, diziam os entendidos
que rodeavam o governador, daqui a bocado alguém vai fazer
troça de nós. As equipas em terra passavam todo o dia a recolher
os corpos pelas ruas da capital, quando não era pelos telhados ou
outros sítios piores e inacessíveis. A chuva de pessoas dava-se
particularmente aos domingos, quando as pessoas andam mais
livres pela rua e então os homens do governador as submetiam
aos testes para ver se podiam ser jogadas pelo balão fora. Umas
acabavam no rio, outras até na margem sul. As atrocidades que
diziam no ar eram naturais, era o medo.
Quando a experiência de ensinar pessoas a voar não dava
sucesso há já muito tempo, os estrangeiros começaram a rodear a
capital portuguesa por todos os lados e era mesmo uma invasão.
Enquanto as poucas tropas resistiam aos atacantes em Monsanto,
junto ao castelo de Palmela ou nas trincheiras abertas pela Parque
Expo,
as
emissões
de
balões
à
atmosfera
crescem
exponencialmente, de tal maneira que na tarde de 19 de Janeiro
de 1947 contam-se 108 subidas no Cais do Sodré, 47 de
Monsanto e 11 das recém-inauguradas pistas dos Olivais e de
Carnide. Nos dias seguintes os números não pararam de subir. O
governador ordenou turnos contínuos de trabalhadores a
trabalhar dia e noite. Umas semanas depois, já com os Alemães às
portas de Lisboa, as subidas sucediam-se ao impressionante ritmo
de 114 por hora só na região de Baixa-Chiado. As pessoas eram
jogadas já sem grande critério, alguns até logo depois de passado
o nível dos telhados. Eram levadas normalmente em grupos de 10
mas nas últimas semanas a média erguia-se aos 26 passageiros por
elevação. Guardados por cinco guardas armados e um cão, eram
jogadas rapidamente quatro ou cinco delas logo depois do nível
do tabuleiro da ponte 25 de Abril. Para os passageiros não
perderem a esperança de que a queda os aprendesse a voar, os
guardas anunciam que estes quatro ou cinco a saltar logo tão cedo
eram apenas para testar novos equipamentos no ar, que tudo
estava assegurado e a uma queda segura de três mil metros
seguramente as asas se abririam e eles começariam a voar. Alguns
respiravam de alívio ao ouvir a explicação, mas erradamente,
porque eles só iam jogando as primeiras pessoas para o balão
poder subir mais. Continuavam a jogar as pessoas ao elevarem-se
e já não explicavam nada, sete ao nível do Cristo-Rei, doze à
altura da Serra de Sintra e os restantes logo que podiam. Voltam
a baixo e executam o plano de lançamentos em pressa por todo o
dia e toda a noite. O governador sonhava com a descoberta do
modo de voar, de tal maneira que sobre os exércitos que
rodeavam Lisboa cairia a vergonha de terem considerado o seu
plano
um
plano
insano.
Observava
nocturnamente
os
lançamentos da janela do seu altíssimo prédio. Telefonava
constantemente a todas as frentes de lançamento a verificar os
resultados. As pessoas continuavam a cair a um ritmo alucinante,
lançando o caos pela cidade onde ainda as pessoas tentavam
normalmente. À noite não se dormia por causa do barulho das
quedas constantes e os gritos das multidões por causa da guerra
da invasão. As pessoas ficavam em casa a escolher entre ir para as
linhas de defesa da guerra ou para os lançamentos dos balões. Os
exércitos invasores vinham já da outra margem e da segunda
circular. O governador, vendo a cidade ficar deserta, decide
montar um plano de evacuar-se e sai de balão na vertical e muito
alto e desaparece acima de tudo isto. Os americanos chegam à
Praça do Comércio, os Russos ao Rossio, as Brigadas inglesas a
Santa Apolónia, os Franceses a Alfama, os Alemães rebentam
pelas adufas de Lisboa onde estavam escondidos nos subterrâneos
à espera do dia do ataque coordenado para saírem à superfície.
Olham à volta, apenas um enorme mar de gentes tombadas
em todas as direcções, em todas as varandas e ruas e calçadas e
telhados, toda a Lisboa horizontalmente espalmada num mar de
ossos e sangue e vísceras entregues aos pombos. A perspectiva da
Avenida da Liberdade era um só tapete humano dilacerado. O rio
tinha ainda alguns espaços vazios entre o manto longo de corpos a
derivar para o mar. Alfama tinha sido reduzida a escombros com
o peso das quedas. Os guardas dos balões tinham recebido ordem
para se jogarem a si mesmos depois de acabarem de jogar os
últimos cidadãos. Jogaram-se. O que os invasores estrangeiros
encontraram foi este imenso mar de nada. Fizeram a vitória,
foram-se embora. Deixaram Lisboa. Lisboa com o seu sol
abrasador e cinquenta agoirentos balões a pairarem a diferentes
alturas sobre as diferentes zonas da cidade. Desabitados, os balões
perdiam altura lentamente, mais calmos que o ar que nada mexia
sobre aquela multidão de morte. Os balões aterravam de
esvaziados, mais um objecto tombado naquele mar de nada. Um
deles trazia três raparigas e dois rapazes que tinham conseguido
sobreviver: a única revolta que houve em toda aquela cidade, mar
terra ou ar, durante todo aquele tempo. Mataram os guardas e
esfolaram o cão para poderem comer. Ficaram na barca sete dias.
Foram eles que recomeçaram Lisboa.
*
O FRADE E O TOSTÃO
Andava um frade cismando com as mãos atrás das costas e caminhando
pelos bosques.
Apareceu-lhe um vendedor de bebidas e ofereceu-lhe dois
frascos de grande mistério. O frade cruzou as mãos, desta vez à
frente da barriga, e disse para si: que só tinha um tostão para uma
e qual delas levaria? O vendedor: que esta era boa por artes de
isto e a outra era maravilhosa por magias de aquilo. Rebrilho e
tresbrilho, uma linda disto outra boa daquilho. Vira o olho para
um lado, logo o outro vai ao outro, indecisando a vontade das
duas metades do frade. O vendedor agitadamente os pés e as
palavras enquanto o frade dividia os olhos. Isto ou isto? O frade
então percebeu que já tinha suado vários dos seus cabelos e não
tinha chegado a nenhuma conclusão. Enfiou então o tostão no cu
do vendedor e foi-se embora sem levar nenhuma das garrafas,
mas cismando menos e bem mais aliviado. Ia agora de mãos nos
bolsos e tinha perdido quase cinco minutos naquela questão sem
importância nenhuma.
*
A REVOLUÇÃO
As moscas choveram. Os gatos, os mosquitos desapareceram
dali. Ziguezagueavam por tudo o que era muito. E as vozes
calavam ao passar dos trovões mais baixos, rentes ao chão.
Lavavam tudo, turbamulta agitada, adiando o dia da alvorada e
querendo para si tudo o que trazia a possibilidade de saltar para o
outro lado.
Estes filhos da puta tinham que nos abandonar precisamente
agora a meio da revolução, disse Castro a Anacoluto com um ar
furioso. Estavam debaixo de tudo o que naquela praça caía e
voava pelo ar. Aliás estavam no canto, por baixo e em meio de
tudo o que estourava docemente na manhã da revolução. Havia
canhões alinhados do outro lado, havia cadeiras a voar, havia
uma desgravitação das pedras das calçadas, bocados de carro
tornados voadores. Havia os gritos de uma parte dos revoltosos
que se tranformaram em coro grego, observando tudo e uivando
ao longe retirados da cena. Havia outros espalhados pelo chão, já
mortos, meio-mortos, pedaços de edifícios desmoronados.
Sobretudo uma quantidade incrível de materiais a circular pelo ar
agitado de estrondos e sopros: plásticos, vidros picantes de
automóveis desfeitos, sacos de papel molhados. As botas nas poças
respingavam a chuva de ontem para cima dos que tombavam, as
fitas nos cabelos desprendem-se levadas pelos redemoinhos que o
vento fazia, os fumos dos carros e dos incêndios das barricadas
misturam-se e as crianças tossiam, as crianças eram levadas para
fora dali por quem visse uma aberta na praça. As caixas partidas
pelos ares e ribombando nos quatro cantos da praça onde tudo
aquilo se encaixava. As placas das obras levadas aos ombros por
uma parte da multidão convulsa e encarniçada eram jogadas para
cima de quem viesse não importa de onde. Os lixos desfeitos e
pontapeados, as lamas misturadas de porcarias vindo daqui e dali.
Parecia que tudo derramava naquela praça, naquela manhã
enevoeirada eou com sol. O vento agitado ou fechava ou abria o
céu, dando fulgores luminosos ou assombradas escuridões aos
ritmos das lutas que lá em baixo na praça. Cá na praça, a meio
dos incêndios e da chuva que os apagava, às vezes havia horas de
espera pela próxima estocada, silêncios absurdos em que
estranhatacitamente todas as partes antagonistas se calavam e
chegavam quase mesmo a ousar ouvir-se os pássaros nos parques
ao fundo. A grande revolução.
A praça era fechada nos quatro lados por colunatas
neoclássicas que apresentavam ao mundo que ali passava os rostos
dos quatro poderes. As sedes fecharam cedo nessa manhã e os
funcionários fugiram ainda mais cedo do que puderam. As pedras
voavam, as manadas de cães lançadas da Boca Norte varriam as
gentes revoltas e voltavam com troféus macabros às calças dos
seus donos. Os cães morriam, dominados por paus tumultuosos.
Alguém derrubou a estátua. Tinha de ser, alguém derrubar
sempre a estátua ao centro da praça. Uma mãe morreu e a polícia
tirou-a dali o mais depressa que pôde. Apenas uma secção da
polícia conseguia ainda sair da grande praça, o resto da ordem
estava encurralada em várias pequenas trincheiras compostas
como se pôde, e lutavam pela vida a cada instante revelado
rápido. Do alto de dois dos quatro edifícios que ladeavam a praça,
funcionários revoltosos às sedes derramavam coisas pesadas sobre
as cargas da polícia. Uma betoneira caiu ao pé do chefe da
esquadra e foi a custo que ele ainda conseguiu chamar o exército
pelo intercomunicador. Túneis começavam a ser escavados por
baixo da praça para levar os mortos para fora dali e para ver se se
arranjava ar mais respirável. As crianças rebeldes organizavam
piquetes para bater nos polícias, os polícias organizavam-se como
podiam para desertar a um ritmo razoável e sem o exército dar
por nada. As fardas eram depois traficadas a mulheres
organizadas que as vendiam ao dobro do preço do outro lado da
praça, passando pelo estreito corredor oficial que a polícia ainda
mantinha. Muitas delas ficaram lesionadas ou mortas ao tentarem
atravessar a praça. Uma boca de canhão foi levada para a entrada
oeste mas não sabia para onde atirar. Acabou por ser rebocada e
eventualmente atirada ao rio por algum dissidente infiltrado
numa farda. As facções dividiam-se e voltavam a unir-se em
pactos reactualizados a uma tal velocidade que a razoabilidade foi
melhor nem os fazer. Cessaram as comunicações móveis, os
telemóveis usados como arma de arremesso. As comidas
chegavam em rações atiradas por cima da polícia ou de quem
estivesse no caminho.
A praça era agora, pelo fim da manhã de tudo isto, já só um
amontoado de diques, barricadas, carros tombados, cadeiras
voadoras, cocktails molotov feitos com gás, estruturas móveis e
outras suspensas, gruas, andaimes retorcidos para se tornarem
aríete de alguém contra alguém. Alguém lançara megafones para
a população por isso os apelos sucediam-se em várias línguas,
mais ou menos verídicos, em suspenso ou dando indicações de
rumo. Ninguém parecia saber o que fazer e todos queriam pensar
sabê-lo. E não havia ninguém a quem parecer, que todos os que
ali estavam eram em luta. As t-shirts começavam a rasgar-se por
causa do calor excessivo do meio-dia mas logo depois veio uma
nuvem cobrir o sol e as fogueiras improvisadas foram sabotadas
pela chuva que se lhe seguiu. Havia uma entrada da praça onde
sucessivamente os carros vindos do exterior embatiam nas
barricadas, criando uma camada aí com umas sete filas de
espessura. Nem todos estavam esmagados, por isso largas ordas de
revoltantes eram achadas entre os que aí engarrafados. Saíam das
viaturas, caminhavam por cima das capotas e das latas várias e,
triunfantes, entravam na enorme praça em meio do sumo do
tumulto. A dada altura um destes grupos vindos das viaturas
conquistou e empunhou uma grua do exército. De tal maneira se
agitou a sua base que a fizeram inclinar e embater contra uma
torre da televisão que, desmoronando-se, foi desfazer grande
parte da rede eléctrica que cobria a praça a sudoeste, provocando
o electrocutamento geral de quem lá estava e a debandada geral
do último bando de pombos que insistia em procurar comida por
ali.
Foi depois disso, já era final da tarde, que a coisa endureceu.
Vieram os comandos, as metralhadoras e as tácticas sacanas, os
esquemas as naifadas e subterfúgios ilegais mesmo para essa
ilegalidade geral que é já sempre o exército. Os golpes baixos, as
decapitações e as ameaças. A noite caía e as luzes acendiam-se.
Espalhou-se a moda de circular a pares de mota entre as
barricadas empunhando longos postes de iluminação. Passavam a
rasar os combatentes e enquanto um conduzia a mota o outro
usava o poste de madeira para derrubar tudo o que encontrasse
vivo pelo caminho. Medieval dos torneios, a cavalo mecânico. As
barricadas explodiam agora, e alguém no comando de alguma
coisa alegava que estavam todas vazias daquele lado, que era um
truque para nos fazer crer que estavam todos mortos e logo que
caíssemos no seu engodo nos atacariam por detrás. Um dos
edifícios começou a ruir como se a partir de dentro, como se
alguém armado de vinte bulldozers estivesse instalado na sala dos
paços do conselho. Ruíram janelas, tombaram colunas. O fumo
destas quedas à noite era pior, enganava as luzes, sufocava as
restantes dúvidas e incitava a actos de loucura ainda maiores do
que os até aí. Um homem-kamikaze atirou-se do alto de um
edifício para esmagar o que ele julgava ser um indivíduo nocivo.
Acabou esmagado no chão entre uma cratera mal aberta e um
capacete de polícia, em meio de coisas de nada. Depois vieram os
lança-chamas, depois os venenos líquidos, mas a contra-resposta
era sempre demasiado rápida para as ofensivas surtirem efeito.
Aos lança-chamas, a facção auto-denominada Pró-Tumultos-Rosas-e-Outros-Ismos-Trogloditas reagiu com a abertura das
bocas de incêndio e o rapto do chefe dos lança-chamistas. Estes
pagaram o resgate entregando as armas em mão. Voavam balões,
alguém tinha tido a ideia de dispersar um líquido tóxico
utilizando balões com hélio que se deveriam desfazer com o calor
do incêndio contínuo que lavrava a sudoeste da preça desde as
duas da manhã. Mas, ao cair o líquido, não só se revelou ineficaz
como as máscaras que foram distribuídas aos apoiantes eram
indicadas para a protecção de um outro líquido, acabando por
fazer mais baixas entre os apoiantes do que no resto dos
tumultuosos: os com máscaras aventuraram-se a ir a sítios onde
nunca ninguém tinha posto os pés e morreram.
Numa acção sem precedentes, ao longo de todo o sudoeste da
praça - a montante do grande incêndio- todas as facções se
uniram e acharam que iam acabar com aquela gentalha de uma
vez por todas. Entre eles contavam-se polícias, gatos regressados,
homens-aranha, revoltosos de 68, gente do comércio e da
imprensa, desempregados e mulheres a dias. Avançaram aos urros
pontapeando tudo pelo caminho, empunhando cartazes do Che
com um bigode daliniano. Conquistaram sete barricadas.
Apreenderam três carregamentos de contentores de lixo industrial
que estavam até então escondidos numa cabana improvisada. Na
altura de dividir o espólio, o grupo dividiu-se e mataram-se uns
aos outros com garrafas de vidro partidas. A poesia daquele
pequeno levantamento colectivo morava agora apenas no cheiro a
queimado que enrugava as nuvens de pólvora sobre a praça e no
modo como algumas gaivotas tontas das explosões embatiam nos
vidros dos edifícios do quarto andar, pensando que o mar era por
ali.
Numa dessas janelas, só numa numa, estava um jovem rapaz a
escrever e a observar com razoável panorâmica e lucidez tudo o
que se passava lá em baixo na praça. Era um jovem romântico,
sonhador, viajador, revolucionário. Usava no pescoço um lenço
palestiniano e ao colo tinha um caderninho onde ia escrevendo
uns versos. Era, em suma, uma criatura execrável retirada ali num
canto eremita de um edifício seguro e burguês a dar sobre os
acontecimentos reais e urgentes. Escrevia no papelinho umas
odezinha a uma puta ceguinha que ele conheceu nas montanhas
gregas o verão passado e por quem se apaixonou. Fazia
comparaçõezinhas entre os montinhos que eram os seios nus
arrepiados dela e as montanhinhas gregas que houvera galgado.
Na parte em que escrevia a comparação entre os rebanhos de
ovelhinhas que passeavam pela encosta abaixo e as mãozinhas e
dedinhos dele que passavam pelas montanhas dela, o Paulito, que
estava a ter este sonho todo, acordou de repente escaldado pelo
sol de meio-dia que lhe queimava as ventas ali no Terreiro do
Paço, onde dormia num banco desde as nove da manhã na
ressaca da festa do Fetichismo Esquerdista. Ergue o pescoço a
custo e custou-lhe a acreditar que a praça estava mesmo vazia, o
imenso quadrado de luz apenas pontuado por peões isolados e
pombos, o inevitável trânsito a quadrangular a praça. Ele a meio
da praça, a acordar baixo o sol do meio-dia e a luz imensa a
turvar-lhe a visão de tudo aquilo vazio. Esfregou os olhos a
bocejar, sentou-se no banco e espreguiçou-se. Levantou-se e
arrastou-se na sua roupa escura pela praça luminosa, soerguendo
os jeans pretos gastos que logo tornam a decair rabo abaixo,
lentamente até desaparecer em perspectiva numa qualquer artéria
da Baixa. Chegou a casa e escreveu no blogue um texto muita
nice sobre este sonho.
5 comentários:
posted at 7:30 a.m
Ana Lisa said...
Muito bonito! Escreves assim e encantas-me a alma. Aquela
imagem da cena de guerra é muito fodida e a do rapazinho na
janela um tanto patética, mas faz-me lembrar um gajo que eu
conheço, eh,eh. Continua assim....devias escrever mais estas coisas
do que aqueles textos raivosos contra o sistema que antes
publicavas.
Posted at 4.15 p.m
Sun Tzu said...
Obviamente que do teu texto três conclusões emergem:
1.que a carga imagética que o legado revolucionário da
história dos movimentos sociais, de pendor mais ou menos anarca
ou controlado por tautologias castradoras próprias –conforme a
situação- nos deixou é importante e não é preciso chegar a essas
catárticas descrições acéfalas de um hipotético cataclismo
colectivo que surgiria de uma materialização entre nós da
emergente força subversiva que impulsiona os espíritos que lutam
por um mundo melhor nos dias que correm. A vontade de
mudança colectiva não é um sonho de carochos adormecidos na
Praça do Comércio depois de uma festa anarca, mas uma pulsão
vital que não cessará de perseguir o seu desejo de libertação
sensual e vital, e que precisamente por ser uma agitação profunda
do ser que aspira por liberdade, saberá encontrar na sua marcha
sem táctica fixa, sem bandeiras, os meios específicos para uma
acção directa, não embrutecida com estereótipos mentais do que
a “cena” deve ou não fazer, sendo esta disciplina de acção que em
última análise impede esse cenário catastrofista de acontecer.
Depois, tudo isso é possivelmente o teu passadozinho adolescente
a falar, os sonhos revolucionários com que te masturbavas na casa
de banho do Bloco entre dois charros.
2. Se a acção tiver de ser catastrofista e avassaladora, será,
mas sê-lo-ia não por militante programa mas em reacção natural
às forças opressoras, como quando se coça o sobrolho porque se
tem comichão. Quando descrevo o ridículo da catarse que
apresentas não é porque a exclua como táctica válida, mas
sobretudo porque o impasse em que a manténs no teu contito,
impasse que não limpa realmente, que não muda, que não purga
e renova, faz lembrar um puritanismo apresentado no inverso,
puritanismo que não sabe apresentar as diversas situações
quotidianas em que a verdadeira subversão contrapoder se faz,
contentando-se com generalizações catastrofistas que, muito
previsivelmente, vão depois desembocar no seu oposto: o
rapazinho romântico da treta, a contemplar à janela,
provavelmente a salivar com os seios da musa enquanto a
revolução (a revolução como TU a sonhas) se passa lá fora.
3. Insinuar que tudo isto se passa na cabeça de alguém que
vem da Festa do Fetichismo Esquerdista que organizámos na
sexta-feira passada até não é mal pensado, visto que muitos dos
que lá estavam não chegavam a aperceber-se de que se trata de
demolir e regurgitar os ícones de esquerda, enquanto dançamos
alegremente com os seus cadáveres. Houve quem pensasse tratarse de uma orgiástica celebração de tudo o que há de bom e é útil e
casto no mundo – Staline incluído, veja-se! - , como se aquilos
fossem uma espécie de divindades vindas debaixo de boina para
salvar a humanidade e nós que organizámos a festa fossemos os
seus cicerones por uma noite. Por aí até ias lá, que tal confusão
pudesse passar-se em alguém que foi àquela festa enganado
porque pensou que ia curtir com a malta fixe de esquerda, mas a
maneira como sarcasticamente incluis o blog no conto poderia
fazer supor que aqui não se fazem mais do que carpir mágoas que
não se conseguem manifestar no real, que agora se embalam os
fantasmas de revoluções ou anarquias de pacote que vão buscar a
sua força escrita ao preciso facto de subterraneamente se saber
entre todos que nada disto será nunca levado ao ponto em que a
santa pelezinha de cada um se possa queimar, que isto não é
senão retórica burguesa esclarecida e com as costas quentes, isso é
chapadamente uma fantasia do puto imaturo que és e que não é
por saber articular umas ideias que deixa de se parecer com a
personagem panhonha e, essa sim, verdadeiramente frustrada e
incapaz, do rapazito a escrever à janela da revolução. Para
finalizar e matar de vez o mosquito, tenho a dizer que te
aconselho futuramente a manteres as tuas contribuições para o
blog no espírito do debate que aqui propomos e que não disfarces
as tuas crisezinhas existenciais debaixo de poesias que pretendem
ter algo de relevante a dizer e que nem contendo por antecipação
e defensivamente a própria figura do blog te impedem de ficar a
salvo de ser arrasado por quem já conhece bem os da tua laia.
Arre.
Posted at 18:47
Lolita said...
Eu cá pra mim achei giro. É só um conto, ó Sun Tzu, vê lá se
aprendes a ser mais relaxado, mais divertido, senão a única
revolução que acabas por fazer é rebolar durante as tuas insónias,
entre os lençóis!
Posted at 21:07
Aika-xan-li-sue said...
Ai os esquerdistas e os seus fantasminhas! “O sonho da razão
produz moonstros”
Posted at 22:47
Garcia said...
Ó pessoal, então e se nos deixássemos todos desta conversa que
não dá em nada e fossemos à casa do Tó amanhã às 9 da noite.
Ele recebeu uns vídeos novos das manifs recentes no Peru e na
Argentina, e parece que tem um doc fixe sobre o fim das bicicletas
em Ljubljana.
*
A PAISAGEM ENCRAVADA
Havia um rio, um estranho rio. Um rio com um interruptor na
ponta. Ora corria para um lado ora corria para o outro, conforme
a posição do interruptor. Eram os dedos de Deus que
comandavam aquela mudança. Se para um lado a água corria
para um enorme vale, para o outro a água corria para o cimo de
uma montanha. Os sábios chamavam-lhe movimento espiritual,
os electricistas nada. Deus não anda aqui a mandar nada, deus
veio depois, deus é um inquilino que usa a casa mas não foi ele
que fez a casa, deus é a nossa explicação para o fantasmas que
acende e apaga as luzes, Deus é o pôr-do-sol e usa capuzes.
O rio para cima, o rio para baixo. Muda a corrente e o tempo
vem para trás. Os barcos são levados, os barcos são recuados. As
pessoas lavadas, as pessoas sujas. O dia é vivido, o dia é trazido.
As nuvens avançam, as nuvens recuam. Da esquerda para a
direita e da direita para a esquerda, o sol sobe e desce em arco
por cima do rio que desce e reflui, como se o cimo da montanha e
o fundo do vale soprassem de um para o outro o balão do sol
pelos ares. As pessoas viam, espectadoras da paisagem encravada.
Mas não havia comando para isto, funcionava sozinho. «Deus
é uma solidão», estava escrito nos livros sagrados desta terra
encravada a olhar um rio estranho. Um dia resolvem matar Deus,
a ver se saíam daquele tempo repetido, e apontaram as
metralhadoras ao céu e apontaram as metralhadoras ao fundo da
terra, mas não havia mais resultado nisto do que um buraco na
vertical. Foram chamar os electricistas. «Tudo é energia», dizia
nos livros deles. Acharam que havia de electrocutar-se tudo, para
se acabar com aquela brincadeira de Deus e o interruptor e o
mesmo dia ser sempre repetido para trás e para a frente.
O trabalho dos electricistas foi tão bem feito que conseguiram
fundir o sol bem no meio do seu trajecto, estourando e partindose sobre as pessoas e as coisas todas. As pessoas ficaram de tal
maneira chamuscadas com isto em partes diferentes do corpo que
hoje cada um sente Deus onde quer, mas já não dá para vê-lo. A
paisagem já corre, o tempo foi libertado. O interruptor é hoje um
museu em ruínas ao pé da água, mais ou menos como a torre de
Belém mas em tom de plástico queimado e amarelecido.
Animais
SANTA ESTRADA
Na terrinha de Santa Estrada, havia um homem que tinha
poderes de magia, por isso toda a gente lá ia quando precisava de
alguma coisa. Veio uma velhinha pela estrada um dia e ele já
sabia que ela lhe pedia sempre a mesma coisa: uma coisinha de
pudim das murtas, para ver se animava o velhinho dela. Quando
vinha uma charrua de bois ao longe na estrada, ele sabia que
havia sarilho, que dois vizinhos de gado tinham discutido e um
queria magias contra o outro. Quando era uma miudinha de saias
ainda curtas eou um rapazito de fisga na mão que vinham ali, era
por causa de coisas nas cola eou ela queria mais beijinhos de nãosei-quem ou ele mais pontaria para atirar com a fisga a sicrano.
Quando o padeiro, falava de conspirações do moleiro com o
diabo e ora toda a gente sabe que isso era mentira. Por isso o
homem que tinha estes poderes sabia muitas coisas, adivinhava
quase tudo, excepto aquilo que não adivinhava. O mais difícil,
dizia ele ao seu ajudante pequenino que oraera um cão oraera
uma pessoa, o mais difícil eram os males de amor e os feitiços que
as pessoas tentavam fazer sozinhas em casa.
Um dia, por detrás de uma tempestade, chegou-lhe às mãos
um papel onde vinha a seguinte magia escrita: «3 vezes: F. Bravo
leão amansa aos pés de camaleão, assim tu amanses amanses para
mim. F. tu és de ferro eu sou de aço, com as três palavras de
Cristo eu te embaço, que não tenhas descanso, sem que sejas
muito meu amigo e faças tudo o que eu queira.» «Ora que
porcaria!», ficou ele muito chateado e voltou a casa a ver se
desviava aquele poder para alguma energia boa ou assim.
Trabalhou três muitas noites naquilo e a verdade é que ia
conseguindo. Mas quando ele acabou a fórmula para dar cabo
daquilo, achou que se calhar andava era mesmo ali nas
redondezas um outro bruxo que dava aqueles papéis que fazem as
pessoas ir umas contra as outras. Então, pensando isto, achou que
não era suficiente fazer de escrever uma magia para pôr em cima
daquela, e foi encontrar o tal bruxo. O que ele não disse a
ninguém era que não tinha conseguido desfazer o feitiço que
encontrou. Enxeriu por todos os cantos da aldeia e até encontrou
um vedor ilegal, mas nada do outro bruxo. Pensou neste assunto
mais um bocadinho e veio-se a ver teve a ideia de que o outro
bruxo se podia ter transformado num gato. Andou então com
uma tacinha de leite à procura dele e efectivamente veio um gato
ou dois, mas nada que se parecesse a um bruxo. Depois daquilo
dos gatos, quando se deitou sentiu uma comichão estranha.
Pensou: “pulgas dos gatos”. A verdade é que, quando acabou de
comichar, ele próprio já era um gato e portanto andou às turras
com o ajudante que naquela oraera um cão. O ajudante não o
reconheceu e começou a ladrar. Eles os dois às turras fizeram
daquela casa um caco e foi por sorte que conseguiu escapar do
ajudante pelas traseiras. Quando se meteu na floresta deu-se
conta de que percebia o que diziam os outros gatos e não
demorou muito tempo a perceber que tudo isto era um feitiço de
um dos gatos a quem tinha dado leitinho. Esse gato era o outro
bruxo. Como isto de ser gato tem vantagens, dissassimesmo, subiu
a uns telhados para espreitar de umas chaminés e de facto lá em
baixo de uma delas viu um bruxo a passar bruxedos como quem
passa facturas. «Calúnia» pensou ele, «aquilo é cá bruxo!» Urdiu
cá para si umas coisas más de fazer ao outro, mas no fim deixou-se ficar ali no telhado mais um tempo, porque sabia que a lua
cheia que ali vinha desfaria o feitiço e retornaria a ser gente. Essa
mesma noite, pufe, com a lua cheia voltou a ser gente. «Como já
não ronrono devo conseguir entrar ali sem ser ouvido», pensou e
fez. Misturou as poções do outro ao contrário e disse: «há-de
servir-te esta mais longe que a mão na testa.» Saiu dali e
finalmente adormeceu na sua casinha, depois de um longo
regresso a casa. Como o encantamento que fez das poções do
outro bruxo foi bem feito, de tal modo as coisas saíram mal nos
feitiços que não tardou a dar nas notícias que o outro tinha sido
expulso da ordem das bruxas. Deixou-se ficar a beber um
cházinho de purinhas e a cogitar, porque ali em Santa Estrada se
sabia que um bruxo rijo não desaparece assim. Ele sabia que o
outro ia voltar, porque o outro fazia feitiços mais fortes que ele
próprio.
Quando adormeceu e ouviu um barulho de osga na janela,
sabia que era o outro. Quando ele ouvia a cafeteira a uivar em
vez de cheirar, sabia que era o outro. Quando as tostas saíam
queimadas antes de ligar a tostadeira, sabia que era o outro.
Quando as lentes de contacto estavam besuntadas de azeite, sabia
que era o outro. Quando a toalha de banho era de palha de aço,
sabia que era o outro. Quando as chaves do carro eram afinal um
aviãozinho de metal, sabia que era o outro. Quando o próprio
carro o levou sozinho a uma clareira de final, sabia que era o
outro e quando saiu do carro nessa clareira encontrou o outro. O
outro estava na outra ponta da clareira e o vento uivava muito
nos pinheiros altos. Eles aproximaram-se um do outro e o outro
disse: «porque é que...» «Calma», disse o nosso bruxo, «ouve o
vento». E como o outro, que era novo, ouviu o vento e se
sentaram os dois a meio da clareira, o outro explicou que tinha
contas antigas a pagar e por isso fazia muitos milagres avulsos. O
nosso bruxo chamou o seu ajudante pequenino, assobiando. Disse
para o ajudante levar o outro bruxo para a cabana ao lado da sua
e que eles trabalhassem juntos em tudo. Assim o outro bruxo já
não tinha que pagar mais nada porque ficava ali de graça, com a
condição de não vender mais feitiços de tuta e meia. Quando teve
um sonho mais forte, o outro bruxo transformou a cabana num
eucalipto, mas isso foi só um percalço nos três anos que levou a
aprender a ser simples. Um dia percebeu que até com massagens
se podiam tirar dores dos pés e foi nesse dia que o nosso bruxo
disse que ia ali acima ao monte morrer na sua horagora e que o
outro bruxo ia ficar no lugar dele.
O ajudante uivou como um lobo, porque percebeu que este
bruxo ia ser mais potente que o anterior.
*
A LESMA E O REI
Numa terra distante havia um rei que tinha uma lesma. A
lesma tinha dores de barriga, por isso o rei fazia-lhe festinhas e
massagens. Os cães do castelo tinham ciúmes disso, por isso
ladravam a noite toda. Um dia a rainha, para o rei não os mandar
matar um a um, foi escondê-los numa casa ao lado do castelo.
Encontrou lá um amante. Foderam a noite toda e ficaram muito
muito suados. Da casa via-se a luz da janela da torre do castelo,
onde o rei estava com a minhoca. Os cães ficaram com isto à solta
e foram para o bosque. Dias depois os homens do rei vieram
buscar a rainha de volta e ela estava toda satisfeita, parecia que
estava tonta. O rei tinha ficado no quarto a jogar playstation e os
homens tiveram de vir sozinhos buscá-la. Enquando a levavam
num carrinho de andar e entravam no castelo pela ponte levadiça,
os cães estavam todos felizes a nadar na água que havia agora no
fosso à volta do castelo. Os cães uivavam a-u. Quando puseram a
rainha de novo na cama real, o rei mandou-os agora buscar os
cães. . Os homens arregaçaram as calças na berma do fosso e
puseram-se à procura de apanhar os cães, cada um ao seu. Mas os
cães deram muita luta e mergulharam bastante, por isso depois de
muito tempo só tinham agarrado um de vinte cães. Os cães
fugiram e foram dar a volta ao castelo, subiram a torre e quando
estavam para entrar no quarto real ouviram o rei e a rainha a
ganir que nem cães, fazendo amor. a-u. Desceram todos contentes
da torre embora e voltaram voluntariamente para o canil do
castelo. A minhoca, vendo aquela cena de amor entre o rei e a
rainha, suicidou-se do alto da torre para o fosso do castelo.
Enquanto saíam da água, os homens acharam estranho toda
aquela água do fosso estar tão salgada que parecia suor humano.
Depois, usaram a minhoca aos bocadinhos para pescar naquela
água salgada que apareceu de repente. Quando o rei estava com a
rainha à janela depois de fazerem amor, viram lá em baixo os
homens pescarem cá para fora todos os filhinhos que eles dois
haviam de fazer. O rei ficou tão contente que atirou com a
televisão e a playstation para cima da tal casa que estava ao lado
do castelo, rebentando com a televisão, a playstation e a casa.
Fizeram uma grande festa com aquilo tudo e foram felizes para
sempre.
*
A COISA ESTRANHA
Esta é a história de uma coisa estranha. A coisa estranha
passou do pai para o filho e do filho para o cão. O cão comeu a
avó e depois fugiu, separando-se em dois no modo como o
perseguiam. Uns acharam que ele tinha fugido para o campo,
outros acharam que ele tinha fugido para a praia. Ambos os
grupos estavam armados até aos dentes. Ele ia por ali e eles
também achavam que sim. Ele subia os montes e eles também.
Ele duchava-se na água do mar e eles também. Ele atrás de uma
cabana e eles à volta dela. Ele dentro das dunas e eles dão tiros
nelas. Ele eventualmente estava mesmo era em casa e quando os
dois grupos voltam, um com o pai e outro com o filho, a avozinha
estava sentada à lareira com o tricô no colo e a fazer festinhas ao
cão com a mão esquerda. A avó estava virada para a lareira,
portanto de costas para os dois grupos armados até aos dentes, e o
cão estava apoiado sobre as patas dianteiras, muito manso, a
olhar para eles. As armas todas apontadas para o cão e alguém
diz: - Mas o cão está ali, não comeu a avozinha!
Disparam.
-Cala-te, lês demasiadas histórias da carochinha.
*
O SAPO E A BOLA DE BOWLING
Um sapo e um bola de bowling estavam os dois a ser pesados.
O grande sapo era mais pesado do que a bola de bowling e por
isso a sua bandeja ficava mais em baixo que a da bola. Mas
quando o sapo enchia a sua bolsa cheia de ar, ficava mais leve que
a bola e a sua bandeja subia, ficando então acima da bola, que
por sua vez então descia. Quando esvaziava o ar da bolha que
tinha debaixo da boca, voltava a ficar mais pesado e a descer. O
corpo era feliz neste movimento respiratório. Mas quando
taparam os três buraquinhos da bola de bowling ela ficou logo
mais pesada do que o sapo. Por isso, mesmo que ele estivesse com
a bolsa cheia de ar, quem estava em baixo era sempre a bola.
Quando o sapo engoliu pedras, ficou ele sempre em baixo de
novo e em vez de encher às vezes o saco com ar e subir, dava
arrotos. Encheram a bola de bowling toda com pedras e ficou ela
em baixo e do outro lado da balança o sapo em cima, com os seus
arrotos. O sapo. Saltou então para a outra bandeja e começou a
comer essas pedras uma a uma pelos buraquinhos da bola.
Comeu algumas e voltou para o seu prato. Mas nada, a balança
nem se mexeu, a bola continuava a ser a mais pesada. Foi de novo
ao prato de lá e comeu mais umas tantas, bastante mesmo, de
maneira que nem arrotos conseguiu dar e esteve esgazeado nas
voltas até ao seu prato. A balança mexeu-se mas não o suficiente
para ficar ele o mais pesado, ela hesitava entre dar a vitória a um
ou a outro, trémemente. Arrastando-se como já quase não podia,
foi até à borda do seu prato e atirou-se desalmadamente para
fora, caindo entre os dois pratos. Depois rastejou até ao prato da
bola de bowling e comeu o resto das pedras, ficando com elas a
saírem mesmo pela boca fora e todo o saco debaixo da boca com
a forma angulosada de estar cheiíssimo delas. Todo o corpo dele
era um peso, só os olhos é que se mexiam um bocadinho e já
estavam todos vidrados e inchados daquilo. Lá rebolou
pedradamente para fora do prato despedrado e deixou-se cair a
meio, soltando nisto uma ou duas pedras da boca. Com a mesma
boca as apanhou, que as patas de nada já seriam naquele inchaço
pedrado que ele era. Com um milagre qualquer, alçou a beira do
seu prato. Mas ao cair lá para dentro o peso das pedras rompeu a
pele do seu saco e ele estourou todo. Ficou ali então um todo pele
de sapo e suas entranhas à vista espalhadas em cima de um monte
de pedras. Esse monte era de facto mais pesado do que a bola de
bowling. Só quando os pássaros começaram a debicar entranhas
de sapo é que, uma delas resistindo mais viscosamente a um bico,
oscilava um pouco a balança de estar decididamente pendida
para o lado do ex-bicho, agora pedras. Isto por acção das asinhas
que pássaro abria e batia com força para retirar tal mais difícil
entranhinha. Uma ligeiríssima elevação do prato conseguia este
breve forçar.
Pequenas gotas de humidade formavam-se na superfície da
bola de bowling à saída e entrada do ar pelos buracos. Dir-se-ia
que respirava.
*
A TAÇA DE CHÁ
Uma taça de chá, os modos de a atravessar.
As formigas vieram na longa mesa de madeira bruta e subiram
o caldeirão de porcelana, a taça. Reuniram-se e consideraram
atravessar o líquido. Umas falavam da sua cor, outras do cheiro,
outras do modo mais seguro de chegar ao formigueiro. Umas
foram pela beira da chávena, rodeando numa circunferência
perfeita o bordo onde as bocas costumam ir buscar os líquidos.
Desenhando o seu perímetro cuidadoso, lá de cima observavam
as de lá de baixo. As de lá de baixo houveram ousado descer,
umas foram pelo líquido adentro outras por onde der. Junto ao
líquido cada vez menos fumegante, umas quantas juntaram-se e
foram no périplo lacustre, cuidadosamente. Andavam rapidito
junto à beirinha do lago de chá, indo inclinadas pela superfície
branca inclinada. O calor da água chalada aquecia-lhes a metade
esquerda do corpo, já que davam a volta pela metade direita da
taça de chá. Das que foram pela água adentro, houve dois
grupinhos: um lançou-se a nado, outro à boleia nas folhas de chá
que abeiravam a superfície do líquido. Quem se lançou afogou-se,
por mais que esperneie uma formiga não nada. Umas ficaram
mortas à tona, outras no fundo. As que foram à boleia nas folhas
de chá esperaram muito até poderem avançar de uma para outra
folha, porque elas às vezes ficavam dias sem se tocarem. Só
quando duas folhas à deriva se tocavam é que elas podiam passar.
E depois de passarem esperavam que a folhita em que estavam
agora derivasse o mais possível na direcção da margem oposta
àquela da qual partiram. Eram muito poucas estas formigas à
deriva nas folhas de chá que à tona, e mesmo assim tiveram de
separar-se porque cada folhita de chá só dava para uma.
Demoraram vários dias a atravessar, umas mais outras menos. Uma
chegou a usar o cadaverito de uma companheira para flutuar, quando a
sua folha nunca tocava em nada foi o que teve de fazer. Depois chegou
à beira e nunca ninguém falou mais disso. Algumas das que vinham nas
folhas afogaram-se porque experimentaram nadar, outras porque a
folha afundou. As que vieram das folhas juntaram-se no fim às que
rodearam o lago e às que vieram pelo rebordo superior da chávena e
foram todas ter com as que tinham simplesmente ido sempre pela mesa
e rodeado a base da taça. Estas estavam muito aborrecidas e
perguntaram porque é que as outras tinham feito aquilo de ir lá por
dentro. Ninguém respondeu e continuaram viagem.
*
A CERVEJA DE PAUL RICARDS
A cerveja na mão, o amarelo dedicado do líquido. As
borbulhas internas, o suave espumito no topo do copo. A beleza
da luz que por detrás e o ouro que temos entre as mãos. A cerveja
que Paul Ricards estava prestes a beber era um contrato social:
calhando estar aqui com vocês, bebo e vocês aceitam-me. Acabo a
bebida e vou-me embora eram as letras pequenitas que só ele
sabia.
A conversa alongava-se em vastas perourações sobre as
corridas de Ascot e a múmia de Akhenaton. Ao longe, a bar
woman passeava os grandes seios por detrás do balcão como se
nisso consistisse uma tarefa importante. As outras convivas abriam
argumentos sobre a escuta social e a função dos pobres. Eram
ingleses nobres e essa a sua função: serem nobres e dar conselhos
a quem os escutasse. As fatiotas eram todas muito espampanantes
e totalmente despropositadas para a ocasião, e era também esse o
seu propósito. As tias de Paul também andavam por ali a abanar-se graciosamente em leques e vestidos esponjosos, as flores que
transportavam fazendo pandã com o chapéu. Ninguém tinha
corcéis à espera na porta do pub, mas vários desejariam tê-los.
Porém, quem mais chamou a atenção de Paul neste pub foi um
sujeito sul-americano, um peruano que só aparecia de quando em
quando ao lado de fora das janelas. O pub era todo em madeira
escura e Jacques, o peruano, parecia estar encarregado de
arranjar qualquer coisa no seu exterior, de maneira que aparecia
nesta ou naquela janela sempre montado num escadote, só e com
o seu ar moreno altamente compenetrado no que. Devia ter uns
quarenta anos e havia quatro que estava em Londres, comentou
uma tia enquanto molhava a bolachinha no chá. Era um homem
honesto, nisso todos concordavam. E tinha um corte de cabelo
invulgar, era consensual. Mas não era por isso que enquanto os
convivas discorriam sobre os cortes orçamentais, as corridas de
Ascot, o asco dos franceses, a xenofobia transimigrante e outras
desgraças afins, não era por isso que Paul o fitava demoradamente
enquanto trabalhava no exterior.
A tia que rodeava a mesa cotovelou a outra tia que também
rodeava a mesa e apontou com o queixo para a porta aonde
estava a entrar um gentleman. Lady Harry, disse, este é um
momento extraordinário. Alguma vez ouviu falar de Harry
Houdini? Então prepare-se... O cavalheiro pousou a cartola no
bengaleiro à entrada, deu o casaco à criada e encaminhou-se para
a mesa onde estavam sentados Paul Ricards, as convivas nobres e
o Coronel Dormitts, que se entretinha com os seus botões mas
que naquele momento ergueu um sobrolho inteiro para receber o
jovem Harry Houdini. Ora seja bem-vindo, meu caro, bons olhos
o vejam, disse o velho Coronel, sente-se e conte-nos coisas. Nada
como um jovem para nos pôr a par com o mundo, não é
verdade?, disse em tom cúmplice e vagamente serrado às várias
convivas nobres que concordaram todas em coro, fazendo cada
uma gestos à sua maneira para receber o jovem Houdini. Paul
Ricards fitava o copo de cerveja mas sorriu simpaticamente.
Houdini instala-se entre as senhoras e o Coronel. As tias de Paul
Ricards interrompem o seu périplo pela sala e vêm juntar-se ao
grupo, ficando as duas em pé junto à mesa. Uma delas continuava
a beber chá, segurando o pires numa mão e a chávena noutra, os
dois bem juntos sensivelmente à altura do broche de hibiscos.
Houdini começa, incitado pelos mais velhos, a descrever
caravanas em África, excursões turcas, pulsões mágicas, instintos
demagogos dos reis da Turquia, amargas decepções das
cocumbinas do Ceilão, escaravelhos míticos do sul do Egipto,
canoas egiptólogas auto-navegadas, estritos proformes das
expedições de Lord Rawleigh ao sul do Pacífico, as mortes nas
Índias, as tribos do Ceilão, as costas de lá-tão-longe, as vontades
dos marinheiros no mar alto, as bênçãos dos pastores antes da
partida, a partida de xadrez com o rei de Almat, o trigo como
cresce nas encostas do Rub’yat, as vozes das mulheres de
Capadócia, as cores do solo arménio. Esta descrições provocam, à
vez e depois em ciranda, sensações nas mentes de cada uma das
convivas, de modo que a reparada viagem se faz mais
vividamente graças ao tom encorpado da voz de Houdini e ao
modo como os convivas nele embarcam em meio da madeira
escura do pub. Houdini continua: as tribos de Alarca, as contas do
Mar Morto, juízos errados de quem se enganou na expedição de
68/69, aqueles que queriam ter sido ouvidos no Conselho de 73,
quando se decidiu embarcar para a Síria e despejar tudo até que a
pólvora secasse, as vontades populares e os tecidos bordados pelos
mais simples pescadores de Viniatu, os croque-monsieur de
Vistapão, as coroas de harique, as bostas amarelas que os pastores
tiveram de carregar às costas como punição pelo desaforo de
autorizar descargas ilegais de chá nas costas do Paquistão. As
damas vibram, o coronel fingia tão bem o entusiasmo que às vezes
por
descuido
se
entusiasmava
mesmo.
Paul
olhava
alternadamente a cerveja que ainda não ousara beber e o bom
Jacques a trabalhar fora nas janelas.
Uma das damas propôs um jogo, Houdini não pôde recusar:
havia de demonstrar como em 77, no Canadá, apenas por acção
da força psíquica humana se ergueu uma mesa inteira de carvalho
sólido até ao tecto. O velho coronel olhou-o aborrecido até ao
espanto e até deixou sair, pelo modo como arregaçou a manga
direita do casaco e apoiou o cotovelo esquerdo sobre a mesa e
depois o queixo sobre a mão aberta, um certo interesse por
aquilo.
Como aquela não era uma boa velha mesa de carvalho sólido,
decidiram mudar-se para uma mesa próxima da janela, essa sim
adequada. Era uma mudança complicada. Havia que transportar
os lulus da madames e amarrá-los de novo aos pés da mesa, mas
de maneira que quando se tivesse de levá-los a fazer pipi fosse
fácil. Havia que esperar que a perna falsa do Coronel deixasse de
estar dormente, o que acontecia sempre que a deixava esticada na
horizontal. Havia que cuidadosamente dispor as estruturas de
arame das saias das senhoras, por causa dos grandes balões e do
modo como estas podiam ser incomodativas ao sentarem-se.
Tinham ainda que arranjar candelabros adequados à luz
necessária na nova localização na sala. Depois havia que transpor
cuidadosamente os bolos, os chás, as chávenas, os pires, os copos
de xerez, os guardanapos, a toalha de renda branca que cobria a
toalha vermelha e a toalha vermelha. Chegados lá, o jovem
Houdini disse que precisavam da mesa totalmente vazia para a
experiência, pelo que tudo foi removido para a cozinha com a
máxima brevidade. Todo o cortejo deve ter demorado cerca de
meia hora. Estavam agora sentados em círculo à volta da grande e
sólida mesa de carvalho e Jacques trabalhava mesmo junto a eles
mas do lado de fora da janela. O próprio Jacques parou a olhar.
Houdini preparou o gesto e estendeu as mãos abertas sobre a
mesa, os braços esticados e bem afastados um do outro. Disse aos
outros para fazerem o mesmo, suspendendo as mãos aí a uns dez
centímetros da mesa. Ficaram assim uns dez segundos. A mão
direita de cada um estava directamente posta sobre a mão
esquerda do conviva ao lado, igualmente abertas, igualmente a
planar sobre a mesa. Intensa concentração, respirações apertadas.
Os olhos de Houdini faiscavam. O coronel começou a reficar
impaciente. A mesa não se movia nem um centímetro. As damas
olhavam de soslaio umas para as outras, talvez embaraçadas por
terem deixado envolver-se em tamanha patranha, mas logo
retomam a focalização na mesa. Houdini concentra-se, respira,
largamente, as fontes corriam-lhe suor mas o gel do cabelo escuro
continuava impecável. Mais uns momentos passam, nada. A esta
altura já nem os mais renitentes desviavam um milímetro que
fosse da mesa e já nem os mais concentrados acreditavam que
algo fosse possível passar-se. Tudo era enfim confiança depositada
na figura do jovem Houdini, vibrando milimetricamente de calma
concentração. A mesa inteira olha o centro, respira, deseja e
desconfia. A dada altura passa um gato por ali e um dos cães das
madames ladra. Nesse exacto momento invisível em que os
convivas em uníssono olham para o gato passante, a mesa dispara
para o tecto e estala tão violentamente que ao descer trás consigo
um bocado grande do estuque e vem cravar-se bem abaixo do
nível do soalho. Os cães então uivam, o trânsito na rua faz-se
finalmente ouvir pelo buraco aberto no tecto. As convivas tentam
desembaraçar-se, entre gritinhos, das cadeiras que lhes ficaram
entaladas em arames agora visíveis das saias de balão. O coronel
tenta limpar a cal que lhe arrancou uma vertente esquerda do
bigode e, grita rouco, lhe sujou de vez o casaco de cerimónia
grená. Houdini evita o vexame: escapa-se agilmente pela porta do
pub no meio da confusão geral, sem levar o casaco nem nada, e
penteia do lado de fora a cabeleira lustrosa de modo a que a cal
seja sacudida e o aspecto devolvido. As tias de Paul estão algures
parcialmente cobertas por um tapete vermelho de feltro, mas
ninguém deu por elas porque o piano de cauda rachado ao
comprido pela queda oblíqua da mesa lhes obstruía a visão. Paul
levanta-se, sacode o pó e aproxima-se da janela, onde Jacques
observa toda a cena. Abre a janela e Jacques diz-lhe,
demonstrando um mínimo de espanto pelo sucedido: Já vi uma
vez isto lá no Peru, mas foi com uma ovelha. O pastor ficou tão
furioso que os aldeões se juntaram todos e não soltaram o
governador até que este prometeu ir lá buscar a ovelha
pessoalmente.
-E ele foi? Perguntou Paul.
- Não sei, a verdade é que ele não voltou a aparecer e
substituíram-no por um tipo que era tão incompetente que alguns
dirigentes da oposição, incitados pela população que estava do seu
lado, propuseram que se nomeasse uma ovelha para o cargo.
-Hum...estou a ver... A propósito, há bocado estava a vê-lo
trabalhar aqui nas janelas e queria perguntar-lhe se você antes
trabalhou no campo, na agricultura.
-Sim, no campo sim, mais era mais couves que ovelhas.
-E...e como é isso no campo?
-Ah....é....é diferente, é mais simples, mais duro também.
-Ah...e se eu quiser ir para lá, como é que faço?
-Eeh...quer ir para o campo?....bem, o Peru é um bocado
longe, suponho que se arranja qualquer coisa aqui mais perto,
não sei.
- Pois...bem.... se calhar vou andando. Olhe, se calhar vou
perguntar ali àquela florista, ela vende flores, talvez ela saiba
alguma coisa do assunto.
-Talvez...
-Ciao, obrigado.
-Ciao.
Saiu pela janela mesmo do pub esventrado, atravessou o
carríssimo trânsito de Londres e dirigiu-se à florista do outro lado
da estrada.
*
O CORDEIRO E A RUA
Tinha postas nas mãos as mãos práticas e dessa maneira
arranjou a casa toda. Depois pôs-se bonita e foi dar uma volta
pelas ruas entre as casas dos vizinhos. Passou entre os lençóis a
secar de uma vizinha. Estava sol, algumas janelas estavam abertas
e ela espreitava lá para dentro. Às vezes via umas pessoas e às
vezes não via nada. Mais à frente encontrou um cordeiro vestido
de lobo. Ele tinha uma coleira que dizia: «Fábula». Foi passear
com ele e não esteve assustada. Mas agora quando olhava para
dentro da janela da casa das pessoas, alguém já lhas fechava na
cara e nunca mais alguém lhe ofereceu um chá como dantes. Era
por causa do lobo que as pessoas tinham medo. Ela tinha umas
sapatilhas muito descontraídas e o lobo pezinhos de lã. Por dentro
ela ficava triste de os tapassóis serem fechados à sua passagem e o
cordeiro ficava tremendo de seu sucesso ao contrário. Mas os
homens continuavam a assobiar quando ela passava. Foi quando
reencontraram uma janela aberta que isto da tristeza passou um
bocadinho. Mas era aberta porque nessa casa o dono dormia
dentro de seu fato de treino azul petróleo, no sofá frente à
televisão, e portanto tinha deixado a janela assim de qualquer
maneira. A casa estava escura e desarrumada, apesar do sol lá
fora. Só se via a luzazulando da televisão e ele de costas para a
janela, adormecido. O cordeiro empoleirou-se aos ombros dela
para ver e ambos viram muitas coisas espalhadas pelo chão escuro
da casa: coisas, revistas, isto e aquilo tudo jogado. Depois o lobo
foi lá dentro passear um pedaço, mas pouco se percebeu, porque
estava escuro e voltou cá para fora com umas revistas na boca. Foi
por causa destas revistas que ela se apercebeu de que ele não era
um lobo mas um cordeiro, porque a boca dele não encaixava com
a boca dele ao abocanhar as revistas. Ela teve muito medo desta
descoberta e esteve em fuga de soluços durante algum bastante
tempo. Ela não gostava nada de desaparecências. As pessoas
naquela rua toda começavam a abrir as janelas aos poucos,
porque afinal andava por ali um cordeirinho e não um lobo. O
deslobo já tinha ficado por ali no chão, escalpíssimo, porque o
recordeiro andava às voltas já descoberto atrás da mulher
inconsolável a caminhar pela rua. Àquelas tantas, o homem que
dormia no fato de treino azul acorda e vai à janela, gritando: Que
desgraça é esta que vai um carneiro deitando um lobo no chão e
depois balindo atrás de uma mulher que chora? A população
teme desgredo e e recolhe de novo as persianas, que vinha
timamente reabrindo, ficando um só olho ou dois de fora pelos
buracos mais fininhos. Estende-se depois o homem à rua e diz à
mulher para entrar na sua casa, que não tenha medo. Deixou o
cordeiro na rua e fechou ao bicho a porta na cara. A mulher, de
confiança difícil, desdiz pouco e não quer dizer nada. O homem
fica cada vez mais apaixonado com aquele espectáculo e diz que
fará o que ela quiser para que ela lhe conte aqueles mistérios, que
em anos de vida ele nunca vira nada assim tão fabuloso. Na
verdade ele já estava apaixonado por ela. Depois de muito insistir,
lá deu a volta ao braço a torcer e disse a mulher o que tinha a
dizer. Contou que não lhe metiam medo as bestas de mato, como
lobos e afins, mas sim os animais mansos como o cordeiro, e que
naquele momento lhe estava fazendo muita desgraça o facto de
reparar que o homem estava a apaixonar-se por ela, que era
aquela mansidão mesma que lhe metia medo. Confessou também
ela que estava prestes a largar-lhe com uma haste de bengaleiro
na cabeça, se não fosse a porta ali tão perto e soubesse que podia
fugir a qualquer instante. Quando foram os dois abrir a porta, o
cordeiro já tinha comido a pele de lobo e, compreendendo essa
visão, o homem pôde ser de beijá-la, obrigando-a apenas como o
vento obriga as árvores nalguns galhos. De maneira que a rua
toda, vendo aquilo, passou a ter medo mesmo até do cordeiro e
continuou sem perceber nada do amor. Voltaram todos para a
frente do seu televisor e dava a novela. Tinham os olhos
esbugalhados e não adormeceram. Tremiam indecisos algures
entre os olhos e o coração, como se cada um andando entre a
televisão e a sua janela de espreitáculo, nunca saindo.
As bruxas locais sopraram vento pela rua e foi bonito vê-los
aos dois irem pôr o sol sozinhos.
*
A NÓDOA
Não passava de uma nódoa. Era uma nódoa no pano branco.
Já se tinham tentado várias abordagens, nomeadamente lixívia,
sais, beijinhos e pó-de-arroz. Mas ali estava ela, a pedir atenção e
a tê-la. Numa casa de família as nódoas são sempre o centro. Lá
em baixo na nódoa, as espécies 2 e 3 não sabiam bem o que lhes
sucedia: corriam de um lado para outro como se o fim estivesse
próximo. Havia então várias opções a viver entre as espécies:
comerem-se entre si ou batalharem-se unhamente contra o
invasor. Uma outra vez foi a unha que esfregou na nódoa e não
sabiam elas que espécie de coisa é uma unha, mas sabiam dos
efeitos.
E foram-se esgotando as opções até que espécie 1, silenciosa
como sempre, apresentou a sua hipótese: Aceitar, deixar-se
morrer. Se ninguém compreendeu esta opção, ela foi no entanto
ficando por aí até que as lutas 2 e 3 abrandaram. O ácido cítrico
estava já a ser preparado para agir sobre a toalha quando a opção
da espécie 1 foi unanimemente aceite pelos 2 e 3. E então, numa
coincidência que supõe ligações sem teoria, o pano foi
subitamente abandonado a um canto português, porque a mãe
recebeu um abraço que aguardava da sua mãe há trinta e cinco
anos, permitindo assim que as três espécies de bolor se multiplicassem
no pano por gerações e gerações, em miríades de cores inacreditáveis e
maravilhosas.
*
A RUA DO AMOR
Passa uma caravana à frente da Rua do Amor. A caravana está
cheia de mulheres. As mulheres têm lenços coloridos nas mãos e
agitam-nos por fora das janelas. A caravana tem muitas mãos pelo
lado de fora. As varandas da Rua do Amor têm muitas flores nas
varandas. A caravana é branca. Lagartas passam em várias folhas
das plantas presentes à varanda. O tempo é dividido pelas várias
coisas presentes. Ora: as mulheres na caravana passam como uma
lagarta pela rua. A Rua do Amor está cheia de mãos à janela a
regar as plantas, braços de fora deixando cair água nos vasos.
Gotas caíam no passeio. Está uma luz de três da tarde em Lisboa:
um auge já um pouco oblíquo. As mãos continuam de fora, a
apanhar luz e mosquitos. Nunca se viam as faces de quem regava
as plantas. A caravana tinha passado, como e quando uma lagarta
cai da varanda à rua sem morrer. Continuava agora a lagarta
pelos charquinhos de água pingada lá em baixo na calçada; a
memória é um charco. O animal é verde. Neste momento há três
maçãs a serem comidas e duas camas a serem usadas na Rua. O
sol estar avermelhado, as casas amarelas ou por aí, as flores
vermelhão esmeralda azul violeta simples esticadas por todos os
lados ao alcance de cada mão. As mulheres tinham passado já
havia um tempo. Ainda pairava no ar o perfume eriçado das
flores acabadas de regar. As varandas babavam-se delicadamente
para o passeio e o sol ajudava a transformá-las em algo
interessante. Os insectos distribuíam qualidades pelas várias
regiões da rua. O vento era totalmente descarado e voava no
sentido contrário ao que levaria ao pedaço de chão aonde haviam
passado as belas moças em caravana e lenços. O vento tinha
contudo sementes em trânsito, e estas eram úteis. Os únicos olhos
presentes a toda esta Rua eram os que narravam isto, mas
ninguém sabe a quem são. Continuando o sonho: a vida é verde,
isto passa-se num lugar de chuva, os amores encostam-se aos
muros e deixam passar as terríveis palavras para que cheguem até
nós. Pff!, narrar aquela luz com esta sombra de letrinhas...
Continuemos debaixo das folhas e continuemos lagarta pelos
charcos, reconstruindo letra a letra e desajeitadamente já muito
passado: a caravana das mulheres na rua sem olhos. Tínhamos
portanto: varandas babadas, uma metáfora lagarta-mulheres,
outra charco-passado, e uma luz maravilhosa a dar nisto tudo. Foi
referido que era um sonho, portanto vai durar pouco. Vejamos:
comer maçãs, usar camas. Passou há muito tempo uma caravana
(daquelas de campismo, brancas) com uma mulher de mil braços
a acenar em todas as direcções. As flores desfizeram-se então das
varandas e das sementes caídas nascem homens. Os homens não
tinham olhos, por isso desaparecem. As mulheres nunca
existiram. Tudo isto dentro do caroço de uma maçã. Um bocejo.
Bom dia.
AMOR
A Velha África
Prestes Joãozinho
Os Pastores e o Senhor das Terras
Um Barquinho
Menina
Bernardo Sem Medo
Susana
A Mulher Que Sorri
Os Homens e as Mulheres
O Encantamento
O Cansaço
COMUNIDADE
O Sr. Farnel
O Cedro Que Crescia Enormemente
Mentira
A Velha dos Hambúrgueres
A Cadeira Mágica
Lisboa
O Frade e o Tostão
A Revolução
A Paisagem Encravada
ANIMAIS
Santa Estrada
A Lesma e o Rei
A Coisa Estranha
O Sapo e a Bola de Bowling
A Taça de Chá
A Cerveja de Paul Ricards
O Cordeiro e a Rua
A Nódoa
A Rua do Amor
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