Hoje Hoje não: Não tenho mãos e a alma está densa, Solta, sem
Transcrição
Hoje Hoje não: Não tenho mãos e a alma está densa, Solta, sem
Hoje Hoje não: Não tenho mãos e a alma está densa, Solta, sem forma, caída para lado nenhum Presa a si e embrulhada, desembrulhada Toldada. Por aí não vou, não sou dono de mim, Não escolho, não sei. Saber é dizer o que já não é ... Eu estou na ignorância, na minha e na tua Se ela existe, para mim, para ti, para o mistério. Na rua quem fala são os sinais e eu deixo-os dizer: Dizem o que sinto na pele, o vermelho de um não Que me deixou, A dor amarela presa ao silêncio de poder ser. Vou partir ... parto sempre, com as mãos presas ao que deixo, A palavra lograda num texto sem preço algum. Hoje sim: hoje estou aqui. Hoje talvez seja. Talvez possa dar no meu sorriso Os milhões de olhares que deixei presos ao mundo Sem sequer pensar em os agarrar. Montra Pelas ruas da cidade vejo vultos Nem por isso pouco comuns. Deixou de haver diferença visível, Ela esconde-se no medo de ser revelada Não se dá solta, não se mostra Não é divergente. E é por aí que eu passeio, É por aí que sou e não me escondo. Volto-me de repente e ela está lá: A mesma e já outra A igualdade cristalizada, 1 Sombreada, igualitarizada Num nada sem tempo, NUM tempo que é este, que é um, O mesmo espaço, o mesmo dado Sem oferta, transiente, pleno e perdido. Volto-me e ela já lá não está, O que não é importante, nunca foi, Mas merece a palavra Essa outra de si mesma, envolta num lugar sem “si” Que sabe dizer não. Mão As vozes que se dão sem questões Deram em permanecer. São as vozes que Esquecem a justiça, Vozes altas de afirmação, Imensas, moles maiorias sem braços Que me rodeiam sem cessar. Por ti gritarei forte E darei a minha cor sem medo. Volto-me para o mundo, Olho-o de frente e não esqueço Que as madrugadas um dia ditas Tiveram um propósito, Ou vários, talvez perdidos Mas não esquecidos, Talvez mais tácitos, menos explícitos, Mas meus E de todos os que acreditam Nesse murmúrio que sabe valer a pena falar Enquanto por aí passear A sombra triste da dor. 2 Brilho Dar é poder. Poder já não é dar. Olhar é dizer. Dizer, sem olhar, é sempre dizer, é não calar. Dou. Olho. Escrevo. Entretanto paro. Dou ... não propriamente: Dou por mim, isso sim. Parei de pensar e olhei. No teu corpo estão inscritas as formas de vida que circulam no meu. No teu corpo deixaram de existir as pressões que marcam o meu. De dia não tenho cor e olho o mundo sem o fixar. A noite traz-me um paz renovada ... já foi assim, antes era assim. No meu mundo as barreiras acabam onde começam, no lugar da pele onde também está o pensamento. Nas mãos nervosas em que escrevo o que olho: ... “file ... save” língua da tecnologia, específica, que não flui, que esquece a magia de um só dizer servindo muitos. Mas eu não vou por lá, eu resisto aqui, falando de dentro do meu lugar, lugar de vários lugares, muitos dados ao silêncio, lugar de onde falo, de onde parte a minha voz para dentro do mundo sem esperar retornos. E é teu também esse lugar. Hesitas nele, admiras a cor nervosa dos olhos límpidos que em mim colocas, ficas perplexa e gostas, sem eu saber como gostas ou de onde parte o teu gostar. Pelo dia, que descubro na noite brilhante em ti deixada, passam cenas nervosas dum passado que é só meu, que ainda sou eu. Dás-me a mão. Eu paro. Dar é poder. Poder já não é dar. Newtown Hoje e agora; O dia desta noite A sombra que esmorece Sobre um olhar a fenecer; Na dor dos meus passos não há silêncio. As vozes são dadas em festim, Ocaso duplo de mãos soltas Envoltas num ar sem cor 3 Amordaçado por silêncios que te foram dados, Já sem remédio, sem fuga. Na tua pele há uma inscrição que não é minha: Uma voz sáfica e bela inebria-me No “como será” desta minha tristeza Tão maldita que já não tem som. Contemplo-te, imagino-te noutro corpo, Feminino também Doce como o teu ar límpido De lua perdida em que as nuvens passam Sem reparar. Em frente das mesas havia alguém. Eu não reparei: Duas mulheres riam, Cruzavam as mãos em ternura, Abandonavam-se. A minha carne cheira a espera, O meu corpo acordou e não tem manhã, Não há fim, nem porto nem luz Só esta carícia que chega ... Que chega pela noite E não se entrega ... espera. Contemplo-te, imagino-te nesse corpo, A tua morada, A tua pertença, E tu nem sabes, Ou já sabes? Deste-me um pouco da tua noite Um ponto que chega, Um ponto que vai. Parei só no sinal que me leva a casa, Numa luz sem dó, Sem dizeres que eu ouça no lugar da minha morada. Boa noite bonita ... 4 “AUX” a ouvir os “Cure” Este é o meu caminho: Pelas ruas de cidades sem nome, De terras sem esperança E corpos despedaçados Pela ausência de tudo o que sempre tive, Esculpi sem reservas A face de toda a minha Volátil, errante, perdição. Fartei-me Dos corpos que não viram o amor Das raivas que não têm perdão. Pelas praias despojadas Em que os vultos comprados se erguem Olho sempre a distância E nada vejo. Nas manhãs em que a despedida se anuncia Dispo a pele em que sirvo outros eus E feneço, Adormeço de novo, Sem esperar acordar, Sem essa manhã na qual te vi E pensei, sem sacrifício, Que o corpo da luz me dava A hora de sorrir. Coisas A sala cheia de luz, O PC ligado, E o Michael a cantar: “If you hear these voices calling”. Um espelho escuro Onde não quero olhar, Um copo de tinto, Meio vazio 5 No silêncio Da minha espera Já decidida. Dois telefones Não chegam, Uma TV sem luz – nunca teve – sem cor Que por vezes tem; “Do my eyes seem empty” Diz ele E eu deixo-o Aqui, aí, Em ti Em nós “Have you been, have done, will travel” Por aí Sem dó, sem pressa, sem presa Na fluidez do meu olhar Que não fixa, Dá-se sem ser e regressa: À sala cheia de luz, Ao PC ligado E ao Michael a cantar: “All the way to Reno ...” Desafiando as leis da mudança (Isto é dele mas eu traduzi) “You´re gonna be a star” Mas não eu. Dedicatória Que a entrega seja feita Em nome de um desejo: Não a função certa do poder. Que a palavra seja dada Em nome de uma verdade: Um sorriso meigo por criar. Que a luz seja vivida 6 Na sombra ténue que vê sorrir: Nunca o desprezo solto, a cair. Que em todas as coisas Guardadas nas palmas De uma só mão Caibam as lutas e vitórias De um só dia Pleno, solto, Todo ele sentido Nunca o nada que corrói, que dói E se faz dia Em sombras múltiplas E reflexos sem cor. Noite Juntámos os lábios E a minha mão correu o teu corpo Livre, em glória, Solta como um tempo que não recordo, Que deixou de existir E parou: olhou-nos nos olhos, Deixou-se ficar sereno, sem luz, Nas nossas mãos soltas Que despem barreiras E erguem vitórias, Húmidas como todas elas, Em suspiros segredadas, dadas, Entregues no ar e na penumbra De um arder forte, Que muitos julgam proibido. Com a boca quente e em dor Procuro-te, entro em ti, Nos teus silêncios, Na tua luz Nos negros espaços Dos teus medos amordaçados Por histórias que não queres contar. 7 No fim deste fim, Talvez de muitos fins, Abraço-te e dou-te o meu, Esse sim, o meu silêncio, Sem te querer despertar Deixando-te partir em mim, Na minha pele, Neste corpo que é o meu lugar. Safo Hesito sempre em perguntar E não resisto: como era ela? Doce luz que a ti soubeste dar. Imagino A tua nudez entrelaçada E sorrio, Como se fosse eu, sendo tu, Como se estivesse e não estivesse, Doce perversão, último suspiro, Terna imensidão. No teu corpo tens inscritos Os sinais de uma longa dor. No teu corpo estão ditos Outros gritos, A mesma cor e muitos ritos Desse passado silenciado Que te cumpre revelar. Dou por mim a sorrir Nas formas da tua mão: Tímida de me ver Tão masculino, firme, Sem saber quando partir E desejando ficar. 8 (Un)ending Hoje, ao telefone, autorizei-me O fim, O que, de facto, não tem importância Nenhuma: Do fim há sempre Algo que continua, Não se sabe o quê, Não se deseja definir. Hoje vi uma cidade Imaginária Toda azul, de esferovite: Imaginei-te lá, Dei-te uma vida LÁ E tu ficaste, Dizendo-me, com um sorriso, Que eras livre No labirinto que eu Criara: Confrontei-me com palavras (“that is one of the mysteries in all this …”Veil Granö, Customs House 1/6/02) E encontrei um texto antigo E este dizia: (Incorporo-o agora: é meu, eu quero-o aqui) Um pensamento que promova a ruptura de barreiras entre realidade e ficção, entre literatura e ciência: não se trata de negar o real, mas de afirmar que ele está imbuído de narrativas que nele se jogam e o constituem, assim como cada ficção é uma visão do mundo que é real porque EXISTE e é afectada pelos mundos circundantes, assim como os afecta a eles. As narrativas e ficções (científicas ou não ... será que importa?) usam metáforas e contam histórias exactamente 9 porque se consagram como perspectivas instrumentais que são afectadas por “conceitos concretos”, assim como a literatura se consagra com perplexidade que é jogada num mundo de incertezas ...” Parti com um sorriso Nos lábios E a face vazia. Ontem, noutro jogo, Entre muitos “jogos”, Alguém dizia Coisas sem sentido E eu entendi Que aqui, Onde eu falo, As pessoas são como alguns “jogos”: Não conhecem posições no campo. Este meu beijo É uma dádiva: Tu estás, Estarás sempre Nele. Sydney 2002: para a Soraia 10 11