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Naufrágio da biblioteca queimada cartografia de sombras
Claudio Parmiggiani
Seleção, tradução e apresentação de Joana Corona
Claudio Parmiggiani (1943 - Luzzara) é poeta, artista e ensaísta italiano, e seus
textos, bem como suas mostras, ainda não tiveram uma recepção significativa
no Brasil. As esculturas de sombra, como ele chama, e reafirma Didi-Huberman
(20091), a respeito da série Delocazione (Deslocamento, 1970-1997), são feitas
de uma matéria informe e residual: fuligem, pó e cinzas. Cria-se no espaço
uma espécie de ausência presente, com a marca fantasmática dos objetos
que foram removidos. Depara-se então com a imagem – poética e política
– da biblioteca queimada. Pensando ainda de outro modo, surge a imagem
do negativo de um espaço, que se assemelha a um negativo fotográfico,
preenchendo com sombras e restos o espaço em ruína.
A montagem proposta nesta publicação arma um percurso de leitura a partir
da figura do fantasma, num movimento de insistência do que já não está a
não ser como potência – resquícios de uma escritura “que escava o vazio”.
São três narrativas breves, com a intermitência de imagens, que se tocam em
alguns pontos, sem deixar de marcar o intervalo2. Entre as narrativas, há uma
carta ao filósofo francês Jean-Luc Nancy, considerando a relação não apenas
intelectual, mas também de amizade que há entre ambos. Há, por fim, um
poema da série Quadros, na qual ele esboça uma cartografia em que cada
poema tem como título o nome de uma cidade diferente.
1
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sculture
d’ombra - aria polvere impronte
fantasmi. Trad. Alessandro Serra.
Milano: Mondadori Electa, 2009.
2
Os textos foram publicados anteriormente em outros livros ou catálogos, e
reunidos na antologia Fede in niente ma totale (Fé em nada mas total), de
2010, com prefácio de Jean-Luc Nancy e organização de Andrea Cortellessa.
No ritmo da repetição e do diferimento, algumas perguntas retornam em
seus textos: “Como uma ideia ganha forma?” Ou: “Como se forma uma
imagem?” Em Parmiggiani, a biblioteca pega fogo e naufraga, ao mesmo
tempo, enquanto desenha uma cartografia de sombras, feita de cinzas, de
fumaça e fuligem.
Joana Corona, agosto de 2013.
Todos os textos aqui publicados têm
como fonte o livro: PARMIGGIANI,
Claudio. Fede in niente ma totale.
Firenze: Le Lettere, 2010 (pp. 20, 21,
22, 53 e 251). As imagens têm como
fonte o livro: Petrolio (Petróleo).
Milano: Charta, 2009 (organizado
por Claudio Parmiggiani, com texto
de Luca Massimo Barbero).
Deslocamento: pó e fumaça
Mostrei ambientes completamente nus. A
única presença era a ausência, a marca sobre
as paredes de tudo aquilo que estava ali,
as sombras das coisas que aqueles lugares
haviam guardado. Os materiais para realizálas, pó, fuligem e fumaça, contribuíam para
criar o clima de um lugar abandonado pelos
homens, como depois de uma súplica; um
clima de cidade morta. Restavam somente as
sombras das coisas, ectoplasmas de formas
quase desaparecidas, esvaecidas como as
sombras dos corpos humanos dissolvidos
sobre os muros de Hiroshima.
Deslocamento é um trabalho que nasceu da
observação de um espaço, de um ambiente
interno de um museu, um lugar abandonado,
onde as únicas presenças eram as marcas dos
objetos que eu havia removido. Um ambiente
de sombras, sombras de telas removidas das
paredes, sombras de sombras, tal como ver
por trás de um véu outra realidade velada e
por trás dessa outra realidade ainda outra e
outros véus, e assim por diante perdendose ao infinito, buscando uma imagem e
através dessa imagem o desejo de entrever
a si mesmo. Um ambiente de sombras como
obra; um lugar da ausência como lugar da
alma.
imagem 1 :
Scultura d’ombra, (Escultura de sombra, da série Delocazione),
2003 | fogo, fumaça, fuligem | Museu Fabre, Montpellier
imagem 2 :
Scultura d’ombra (Escultura de sombra), 2007
fogo, fumaça, fuligem. Palácio Fabroni, Pistoia
Coleção Palácio Fabroni
/ 2
Como se fosse uma língua que falasse
Eu gostava de observar, destacados pelo pó, a passagem, o traço do adeus das coisas. A
auréola, a ilusão, a sombra daquilo que havia sido.
Olhar a marca quase luminosa que uma presença qualquer, por exemplo, de um quadro
arrancado da parede, deixava naquele espaço. O espaço puro, abstrato, da sua marca
imaterial.
Pegar um quadro, jogá-lo fora e dirigir-se para dentro de sua sombra, para observar
além, mais longe.
Não colocava apenas perguntas sobre a finitude, mas alimentava fantasias sobre a
fisicalidade do ausente, sobre a corporeidade da sombra. Não o vazio, mas escavar
no vazio. Naquelas impressões espectrais, mudas, nebulosas, havia um mundo, uma
aurora, quase uma perspectiva. Naquelas órbitas, naquele infinito nada me parecia ser
igualmente absoluto, assim como um quadro de Malevich. A percepção de um grau
superior da imagem. Pintar com a fumaça; na paleta há sombra e tempo.
Na mostra de Veneza, o gesto de tirar era o de fazer. Não acrescentar, mas dispersar.
Semelhante a uma antiga alegoria do vento; um anjo de bochechas inchadas que sopra.
Resultado: sobre uma parede, a exalação da fumaça, a agonia de uma chama, a marca
de uma respiração. Como atravessar a célebre ponte de Veneza: um suspiro.
“Como se fosse uma língua que falasse”.
/ 3
imagem 3 :
Delocazione (Deslocamento), 19701997 | fogo, fumaça, fuligem |
Centro Georges Pompidou, Paris,
1997
A ilha do silêncio
Caro Jean-Luc,
você se lembra do Fausto que realizamos no Teatro Metastasio da cidade de Prato?
Também ali havia livros. Uma cenografia e uma alegoria daquela vã erudição contra a qual se lança
o sarcasmo e a amarga irrisão de Fausto.
Pergunta-me da obra na Capela das Brigittines em Bruxelas.
No entanto, gostaria de lhe falar do lugar.
No início era um convento; Ordem das Brittines, consagrado ao culto da paixão de Cristo. Depois,
depósito de armas e quartel. Em seguida, prisão, leprosário, abrigo para os pobres, biblioteca,
matadouro.
Depois, corpo de solidão; uma gruta. Agora é um teatro.
As paredes têm cor de fumaça, cera de vela, sangue coagulado. O material das paredes: tijolos,
dispostos como livros. Uma biblioteca de livros de pedra.
Há, ainda, suor, hálito, eco de rezas e de cantos. Dor e livros de horas. Palavras ornadas e pragas
na carne.
Na abside, agora estão acumulados milhares de volumes.
Uma torre de livros percorrida pelo fogo e recoberta de cinzas. Uma escultura de palavras
queimadas, um altar, uma fogueira, um cemitério da voz, uma torre de pó. Mas também palavra
que migra, que se eleva, que voa.
Fiz com que transportassem até a nave central um sino de bronze.
Um coração.
Enfim, o incipt. Um depois do outro, três golpes de vara para fazer vibrar o edifício; um sino a
martelo, um alarme. A etimologia de “sino” (“campana”) é campanus, da Campania; eram
fabricados em Nola. Nola é a cidade onde nasceu Giordano Bruno.
A ilha dos mortos poderia ter sido o seu böckliniano título depois de: A Ilha do silêncio.
imagem 4 :
Envie-me logo notícias suas e, na espera de revê-lo, receba o afetuoso pensamento do seu
Claudio.
/ 4
A ilha do silêncio (L’isola
del silenzio), 2005 | livros
queimados | Capela das
Brigittines, Bruxelas
Cythera
Desejo uma arte antiteatral, para que esta possa viver sua vida sinceramente,
desprovida de espetacularização, como pensada por uma microssociedade ou
por uma sociedade secreta.
Uma arte introvertida, misteriosa, que aja por evocação.
Penso em qualquer coisa como uma visão, algo que exprima o sentido de uma
memória, que se assemelhe a um objeto profético.
Penso nas imagens que têm o caráter hipnótico e a inquieta profundidade de
uma sombra que filtra através do olho da mente trazendo consigo uma dúvida
e uma pergunta.
O sentimento indefinível e de infinito que experimentamos diante dos hieróglifos
impressos no olhar de qualquer homem.
Este é o Caderno de Leituras n.25.
Outras publicações das Edições Chão
da Feira estão disponíveis em:
www.chaodafeira.com

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