Por que não estamos em uma nova Guerra Fria

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Por que não estamos em uma nova Guerra Fria
Por que não estamos em uma nova Guerra Fria
Roberto Moll
A Guerra Fria colocou em lados opostos duas grandes potências econômicas e
militares, que carregavam visões de mundo distintas, o capitalismo e o socialismo
realmente existente. Durante aproximadamente 40 anos, essas duas potências ocuparam
zonas de influência para realizar seus interesses materiais e subjetivos, mas nunca entraram
em confronto direto porque poderiam pôr fim à humanidade. Com a extinção da União
Soviética, a maioria dos cidadãos do extinto bloco, progressivamente, abraçou o
capitalismo, tanto no plano material quanto subjetivo. Assim, os Estados Unidos, como
representante máximo dos interesses da elite capitalista internacional, passaram a atuar em
quase todo o globo como um império informal preocupado em manter e estabelecer as
regras de realização do capital em parceria com outros governos, representantes de
interesses comuns, incluso nos novos Estados que surgiram com a desintegração da União
Soviética. Como resultado, desenhou-se um mundo caracterizado pela hegemonia do
macropolo estadunidense em parceria com polos dependentes. Mas, não isento de tensões.
Nesse quadro de hegemonia capitalista, as crises, características do sistema,
continuaram a existir. Na Ucrânia, o povo foi às ruas insatisfeito com um governo corrupto
e tradicional, que acentuou os efeitos da crise econômica que atingiu o país, como em
outras regiões do globo, sobretudo da Europa. Nas ruas de Kiev, cidadãos de diferentes
classes e frações de classe com ideais socialistas, anarquistas, liberais conservadores,
fascistas e visões de mundo plurais, ecléticas e contraditórias exigiram reformas em
diversos aspectos da sociedade. Quase nenhum grupo da sociedade civil apoiou o governo
de Viktor Yanukovych, em um caso claro de crise hegemônica. Outros políticos
tradicionais tentaram captar as vozes das ruas e assumir o vácuo de poder, como Oleksandr
Turchynov e Yulia Tymoshenko. A tensão no país ameaçou a realização do capital russo,
estadunidense e europeu na região, principalmente porque afetou o mercado consumidor
ucraniano, gerou insegurança para empresas, desestabilizou o mercado financeiro e colocou
em risco o funcionamento do gasoduto que abastece a Europa.
Para tentar solucionar o problema de acordo com seus interesses materiais
imediatos, a elite europeia e políticos ucranianos de oposição, como Turchynov e
Tymoshenko, encenaram uma aproximação bilionária, garantida pela União Europeia, que
prometeu solucionar a crise, mas colocava o país sob o auspício do polo europeu. O polo
russo, que cobria a Ucrânia, reagiu à intervenção europeia e tentou sustentar o governo
Yanukovych. Ambos reforçaram construções nacionais distintas, enraizadas no passado e
em diferenças étnicas. Com essa estratégia material e simbólica, os governos europeus
garantiram o apoio do oeste. Como resposta, o governo russo tentou controlar o leste a
partir da Crimeia, onde tem uma base militar e apoio da população de origem russa. Nos
Estados Unidos, os interessados em salvaguardar as regras de realização do capital
internacional, representados por setores conservadores que anunciam com temor a
decadência estadunidense e setores liberais que defendem a democrática expressão popular
(vide o discurso do ator Jared Leto na premiação do Oscar), pressionam o governo a
intervir diretamente.
Portanto, a crise na Ucrânia não tem nenhuma relação com a Guerra Fria, mas com
a dinâmica interna do próprio capitalismo contemporâneo permeada por crises econômicas
internacionais e crises hegemônicas nacionais em meio à formação instável do bloco
hegemônico internacional organizado a partir do polo estadunidense em parceria com polos
regionais semiautônomos, que só entram em conflito dentro dos limites do sistema. Por
isso, é difícil acreditar que homens como Putin queiram ressuscitar a União Soviética e
enfrentar os Estados Unidos. A ocupação da Crimeia é a chave de barganha na negociação
sobre o controle da região, a fim de construir um rearranjo que manterá o equilíbrio de
poder dos diferentes polos. A ideia de que Putin lidera um polo criptocomunista agressivo
em uma nova Guerra Fria tem por objetivo gerar incerteza dentro e fora dos Estados, para
deslegitimar o tímido surgimento de propostas socialistas, comunistas e anticapitalistas que
emergiram em meio à crise e alimentar a indústria da segurança. Não estamos próximos de
uma Guerra Mundial. Mas, se não formos capazes de avaliar a complexidade de interesses,
grau de autonomia e a capacidade dos russos, a trágica repetição da história poderia estar
mais próxima da lógica da Primeira Guerra Mundial do que a da Guerra fria.
Postado em 12/03/2014