Apresentação - Escola Letra Freudiana

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Apresentação - Escola Letra Freudiana
Apresentação
Benita LA. Lopes
N
ossos Estudos e Transmissão de Psicanálise com Crianças e Adolescentes
foram sustentados por Maria Cristina Vidal, inicialmente com Nilza
Ericson e nesses últimos anos com Cora Vieira e grupos de trabalho
constituídos em torno de temas e questões essenciais à teoria e à prática, que deram
origem ao que se consolidou como Grupo de Trabalho HanS.
Desde 1985, de forma sistemática e contínua, faz-se um percurso que passou
por Melaine Klein, Arminda Aberastury, Winnicott, Françoise Dolto, Maud Manonni,
Rosine e Robert Lefort. Procurou-se marcar de cada um, em seus casos, na sua
clínica, aposição do analista na direção da cura, o objeto em questão e o fim de
análise proposto pela teoria. Evidenciaram-se as contribuições, os impasses, os
paradoxos com todas as articulações, tendo por base Freud e Lacan.
Foi trabalhado o Caso Hans de Freud, que permitiu várias leituras em que se
podem ter, como fio condutor, as questões sobre a função paterna, o objeto fóbico
como significante e o falo como aquele que jamais deixou Hans só com sua mãe,
como comenta Lacan no Seminário IV a respeito do sonho de Hans com a pequena
Matilde: "Não somente sozinho, mas sozinho com..."
Freud fazendo valer em sua direção, no Caso Hans, uma verdadeira decantação
do gozo, o gozo que a fobia fixava, cristalizava e nessa linha restaura o movimento,
o sintoma segue seu rumo até o declínio da fobia. Arruma-se a estrutura. Leitura
fina de Lacan sobre o Caso HanS em seu Seminário sobre as Relações do Objeto.
Em 1987 fez-se um trabalho em torno das teorias sobre o Autismo, revisando-se
diversos teóricos como: Leo Kanner, Margareth Mahler, Francis Tustin, Donald
Meltzer, Bruno Bettelhein, tendo-se sempre presente uma polaridade comapsicose
e a neurose. Trabalhou-se, nessa época, diretamente Lacan no Estádio do Espelho,
no Modelo Ótico e os textos onde Lacan remete a criança ao fantasma da mãe e
atribui a seu sintoma uma resposta ao que há de sintomático na estrutura familiar:
a criança, com o seu sintoma, aponta ao não dito da relação parental. É justamente
o que trata as célebres Notas de Lacan à Jenny Aubry e o Discurso de Fechamento
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Apresentação
das Jornadas de Psicanálise sobre Psicose Infantil, promovidas por Maud Manonni.
Produziu-se então um trabalho: O Autismo, a ser brevemente publicado.
Em 1988 dedicou-se à Direção da Cura onde foram desenvolvidos conceitos
fundamentais sobre a prática lacaniana como: Entrevistas Preliminares, Estrutura
da Transferência, Manejo da Transferência, Demanda dos Pais e o endereçamento
da criança ao analista, etc. Quando então, em torno dessa discussão, Eduardo Vidal
propõe uma especificidade a ser considerada no trabalho com crianças: O analista
deve tornar-se imprescindível no sentido de que há uma alienação a perder para
que a própria criança possa sustentar seu tratamento.
Nos anos seguintes, com a apresentação de Casos Clínicos, a partir do trabalho
nos grupos, discutiram-se questões específicas a partir das articulações trabalhadas
nos anos anteriores: estrutura, transferência, entrevistas com os pais, etc.
Em 1991 três questões essenciais foram discutidas. Abordou-se primeiro o
Estatuto do Objeto como duas marcações essenciais por Cora Vieira: o lugar que
a criança ocupa no desejo do Outro e a relação da criança com seu próprio gozo,
com seu objeto, quer dizer, tal como teria acesso a ele em seu fantasma. Em seguida,
Maria Cristina Vidal retomou a questão sobre o Brincar e o Brinquedo já trabalhada
anteriormente, que em Lacan o paradigma é o Fort-Da freudiano. Destacou-se
com Lacan, no Seminário XI, que no lúdico, no jogo, no brincar é o real que se
impõe, "brincar como possibilidade de salto ao simbólico", quer dizer, do que se
trata no Fort-Da não é a simbolização da perda da mãe ou da metáfora de uma
perda, mas do que o sujeito deve perder nesse ato de se articular ao significante. O
brincar é ato e o brinquedo, o carretei, será designado na álgebra lacaniana, como
objeto a.
Finalmente, ainda neste mesmo ano, impôs-se a Questão do Fim de Análise tm
Psicanálise com Crianças. Problema crucial trabalhado por Nilza Ericson a partir
do Seminário sobre o Ato Analítico, quando então algumas questões foram
levantadas: haveria travessia do fantasma, conciliação da criança com seu gozo ou
apenas uma decantação e a construção do mito edípico pela criança? Ou somente
se poderia falar de uma separação do lugar que ocupava no fantasma do Outro e
constituir-se como objeto de seu próprio fantasma? Nesse sentido Eduardo Vidal
abordará aspectos essenciais da praxis psicanalítica e focalizará a conjunção e a
disjunção das Formações do Inconsciente com a estrutura do fantasma, marcando
que, justamente um ponto importante na cura com crianças, é poder construir, dar
um tempo para construção do fantasma, se o fantasma é uma resposta à hiância do
campo do Outro. Nesta abordagem está implicado que se produza algo como uma
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Apresentação
separação do lugar que a criança ocupava no fantasma do Outro, que se descole do
plano da identificação a esse objeto, que encontre sua causa e a mãe tenha
possibilidade de aceder à verdade de seu desejo.
Neste momento, com este primeiro número de sua revista, o Grupo de Trabalho
Han$ compromete-se a continuar publicando os resultados de sua produção.
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O lugar da criança
no discurso analítico
Maria Cristina Vecino Vidal
O
tratamento da criança pode ser abordado na conjunção histórica que
precipitou neste século o lugar da criança no discurso da ciência —
pensemos, por exemplo, na pediatria de recente emergência na clínica
médica. A incidência de Freud com a descoberta da sexualidade infantil, até então
repudiada e ignorada, é primordial. Por sua vez, a psicanálise com crianças teve
um percurso particular na história do movimento psicanalítico, pois a princípio o
próprio Freud não considerou inicialmente a aplicação de seu método ao tratamento
com crianças.
Sophie Morguenstern foi a pioneira no caso de mutismo. Sua posição instiga a
pensar a ação do desejo do analista que sustenta a palavra do sujeito ainda quando
ele não consegue falar. Com a utilização do desenho como suporte da palavra e
com o desejo decidido de articular o pequeno sujeito ao campo da linguagem,
Morguenstern inaugura uma insuspeitada região de interrogações e verificações
na psicanálise.
Na década de 1920 há um início de sistematização do saber da clínica com
crianças, em torno de duas posições antagônicas, a de Anna Freud e a de Melaine
Klein. Ambas analistas propunham uma direção da cura específica com a criança,
mas com abordagens teóricas e clínicas bem diferentes.
Anna Freud postula a realização de uma "análise pedagógica" com a criança.
Considera indispensáveis a existência de medidas educativas, o que ela denomina
"adestramento para a análise", uma preparação necessária para a entrada da criança
no dispositivo analítico, onde terá eficácia a operação do analista. Esta abordagem
supõe uma impossibilidade de estabelecimento precoce da transferência, cuja
causa, segundo Anna Freud, se encontraria na relação ainda muito intensa que a
criança mantém com os pais e a família. Dever-se-ia, assim, produzir uma separação pais-criança para que o sujeito possa entrar na "neurose de transferência".
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O lugar da criança no discurso analítico
Eis aí um paradoxo: o analista produziria essa separação enquanto educador,
subtraindo-se do discurso analítico a partir do qual se sustenta a transferência do
sujeito numa análise.
Melaine Klein, em uma posição radicalmente diferente, destaca uma direção da
cura com a criança dentro do marco da psicanálise. Nesse sentido, trata-se da
primeira psicanalista a considerar a criança enquanto sujeito do inconsciente que
pode ser abordado através de sua atividade espontânea — o brincar: "a criança
expressa suas fantasias, seus desejos e sua experiência atual através do jogo e de
um modo simbólico"1. Essa atividade, incluída na transferência da análise, tem
para Melaine Klein o mesmo valor que a associação livre do paciente adulto. É por
essa via que o pequeno sujeito entra no trabalho analítico. Considera as medidas
tomadas por Anna Freud para adaptar a psicanálise às crianças como um obstáculo
insuperável para o estabelecimento da situação analítica. Para Melaine Klein
orientação pedagógica e análise são radicalmente antinômicas. O processo analítico não se fundamenta no projeto consciente nem no ego do paciente.
A posição destas duas analistas tornara-se uma querela insolúvel a partir da
exposição de suas teorias no Congresso de Insbruck (1927) ante a presença do pai
da psicanálise. A psicanálise com crianças não constituía uma preocupação para
Freud. Apesar da intervenção no caso Hans, esta criança não foi considerada como
o início de uma nova abordagem na psicanálise. Freud resiste a generalizar na
descoberta do universo infantil, o que se revela nas suas palavras introdutórias a
esse caso clínico: "Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam
numa só pessoa e, porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse
científico é que se pode, neste único exemplo, aplicar o método numa utilização
para o qual ele próprio não teria se prestado".2
Ernest Jones, na biografia de Freud, se surpreende com o fato de que o "homem
que explorou a mente infantil até um extremo tal como jamais teria sido possível
antes dele, tivesse conservado, no entanto, certa inibição que lhe impediu de
aproximar-se mais ao tema"3. É importante para nossa interrogação partir daquilo
que ele escreve sobre a criança no percurso de sua teorização.
Antes de mais nada, para Freud a criança é uma construção feita a-posteriori a
partir do discurso do analisante. Isso implica um corte com o evolucionismo
biológico da psicologia. A história não é a cronologia. Não há no sujeito um
desenvolvimento linear que o conduza desde o nascimento até a idade adulta. Os
conceitos de sexualidade infantil, complexo de Édipo, narcisismo, enquanto construção a-posteriori, não têm o caráter de momentos evolutivos senão de estruturas
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O lugar da criança no discurso analítico
constituintes do sujeito. Freud não precisou da observação da criança para inferir
o inconsciente. O inconsciente está estruturado como uma linguagem e a construção tem como suporte o retorno de significantes de fixação do sujeito. É a partir
da retroação da demanda no discurso que Freud procede a estabelecer as pulsões
parciais. A ação do tempo lógico, do só-depois, permite escrever algo definitivamente perdido na origem do sujeito.
O significante criança remete também à origem, na medida que em a causação
dos sintomas são referidos à sexualidade infantil. Freud fez a partir dessa descoberta um percurso, desde a procura do trauma sexual real à consideração da
sexualidade como o real traumático inerente à constituição de todo ser falante. Para
abordar esse real, o sujeito constrói o que Freud denominou os "fantasmas
originários" — Urphantasien: cena originária, castração, sedução. "Esses fantasmas originários constituem o tesouro das fantasias inconscientes que a análise pode
descobrir em todos os neuróticos e em todos os filhos dos homens". Eles são
organizadores da vida fantasmática e independem das experiências pessoais do
sujeito. A sexualidade da criança está implicada no texto do fantasma.
A criança constitui uma interrogação de todo sujeito enquanto presentifica o
enigma sobre sua própria origem, formulado na pergunta "De onde vêm os bebês?"
Freud fala então do pequeno sujeito, e aí está Hans, confrontado com a cena
primária, montagem para o desejo do Outro encarnado no par parental. Não pode
dar resposta à questão que suscita o nascimento da sexualidade. Carece de significantes para dizer ou escrever a ordem do sexual. A ausência de relação sexual na
linguagem é suprida pela construção das teorias sexuais infantis que buscam
circunscrever o real impossível; daí o caráter universal e o valor estruturante da
teoria sexual na constituição do sujeito.
Desde o ponto de vista das "equações inconscientes", Freud destaca a criança
como "DasKleine", "o pequeno", enquanto representante privilegiado na economia psíquica: o bebê é um objeto separável, intercambiável, segundo a dinâmica
inconsciente, por pênis-fezes-presente-dinheiro. São equações estruturantes em
cujas redes circulam os desejos do sujeito. Freud define a estrutura do inconsciente
pela composição dos elementos materiais relacionáveis e intercambiáveis. A
criança à qual se refere está inserida no sistema simbólico; é um significante a ser
substituído na cadeia. A relação de múltiplas equivalências tem como suporte a
primeira e mais fundamental: bebê = pênis, que se sustentam num mesmo significante: "DasKleine", "o pequeno". É a que privilegia a referência ao falo enquanto
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O lugar da criança no discurso analítica
signifícante da falta. O sujeito do inconsciente realiza as cinco equivalências em
cuja produção esteve sempre A mulher, lugar simbólico da falta e ponto de partida
do desejo. O desejo é sempre desejo do Outro e a criança se constitui antes de tudo
como enigma no desejo da mãe. À falta na mulher—o desejo de uma falta—vem
o signifícante "bebê", e na equação, a criança se faz equivalente ao falo faltante.
Constitui nessa relação sua falta-a-ser, pois nunca poderá sê-lo, ou seja, satisfazer
o lugar de falta a qual o Outro o condena. Por esta via, a criança participa do
fantasma materno e está sujeita a todas as capturas imaginárias que se lhe oferecem
para responder à falta do Outro.
Freud, ao abordar o narcisismo, situa o lugar fantasmático da criança no desejo
do Outro: ^His majesty the Baby". Freud toma esta frase como representação
inconsciente da "criança maravilhosa" que existe em todo sujeito e reaparece
renovada nos filhos: "a criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram — o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai,
e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe"4.
A expressão traz à tona, na linguagem, o retorno do fantasma de perfeição e
completude que fundamenta a ilusão de completar-se no Outro. Situa de modo
paradoxal o advento do sujeito em sua dimensão de pura perda. É a nostalgia do
olhar materno, do objeto irremediavelmente perdido, que subjaz ao fascínio de uHis
Majesty the Baby, a imagem, i(a), recobrindo o objeto faltante.
Lacan redimensiona o lugar da criança na psicanálise. Sua teorização possibilita
o questionamento de uma prática freqüentemente atravessada por efeitos imaginários, que acabam na proliferação da técnica como forma de abordá-la. A
afirmação categórica "a psicanálise com criança é psicanálise" testemunha a ética
que coloca a criança no discurso analítico, isto é, deve ser escutada como sujeito
do inconsciente que fala independentemente de sua idade cronológica.
Lacan destaca dois lugares possíveis da criança na economia libidinal que se
presentificam na clínica:
— como sintoma, sendo este o representante do que há de sintomático na
estrutura da família. Através dele fala da verdade enlaçada à trama de
desejos do par parental.
— como fantasma, a criança encarna com seu corpo o objeto a, articulada
ao real do gozo. Freud identificou a criança com "o pequeno", substituto
da falta materna: -cp. Lacan a situa também no real, como objeto de gozo
obturando o acesso possível da mãe à verdade do desejo: a.
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O lugar da criança no discurso analítico
A criança entra no dispositivo analítico como sujeito do sintoma, endereçado a
um Outro a quem lhe supõe um saber, o analista. Na transferência possibilita-se o
percurso da alienação ao significante do Outro — o significante do desejo da mãe
que ele sustenta com seu sintoma — à separação de sua posição de objeto no
fantasma materno, que permite o acesso a seu próprio desejo, localizando-se na
estrutura, em relação à falta do desejo do Outro, ao a no campo do Outro. A partir
da torção operada pelo discurso analítico, o a passa a funcionar como causa e
suporte da construção fantasmática do sujeito em análise. É o vetor que orienta
para o momento de concluir uma análise com uma criança.
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O togar da criança no discurso analítico
CITAÇÕES
1. Klein, Melaine. El Psicanalisis de Ninos, Cap. II
2. Freud, Sigmund. Análise de uma Fobia de um Menino de 5 Anos, vol. X, p.7
3. Jones, Ernest. Vida e Obra de Sigmund Freud.
4. Freud, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, vol. XIV, p. 108.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund
— Sobre Teorias Sexuais das Crianças (1908). Edição Standard Brasileira,
vol. IX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Edição Standard Brasileira,
vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Construções em Análise (1937). Edição Standard Brasileira, vol. XIV,
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
JONES, Ernest.
— Vida y Obra de S. Freud. Buenos Aires, Editorial Nova, 1960.
KLEIN, Melaine.
— Psicoanalisis de Ninos. Buenos Aires, Ediciones Hormé, 1964.
LACAN, Jacques
— Discurso de Clausura de Ias Jornadas sobre Ia Psicosis en ei Nino; Notas
sobre ei Nino, in El analiticon. Madrid, Correo Paradiso.
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A estrutura da transferência
na psicanálise com crianças
Myriam R. Fernández
O
trabalho que ora apresentamos se desenvolveu durante três encontros,
como parte do seminário de Psicanálise com crianças, que teve como tema
inicial, a transferência.
Dividimos o assunto em três subtítulos, cujos temas foram apresentados, um a
um, em nossos encontros.
I. O Sujeito em Análise e as Entrevistas Preliminares
na Psicanálise com Crianças
"No início da psicanálise está a transferência. Está lá graças ao psicanalisante",
diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967.
Na psicanálise com crianças não é diferente. No início de uma análise com
criança, também está a transferência.
E quem está em análise? Sempre, em análise, está o sujeito do inconsciente,
sujeito dividido e sintomático, cujo nascimento se dá pela entrada na ordem
simbólica da linguagem. Foi o que Freud nos mostrou exemplarmente, em Além
do Princípio do Prazer, com o fort da, o par opositivo de significantes.
Na psicanálise com crianças, não é outro o sujeito que está em análise — é
também o sujeito do inconsciente, sintomático na medida em que fala, representado
por um significante para outro significante. É, pois, o sujeito que pode trabalhar
em análise, e o campo deste trabalho, nós o sabemos, é a transferência. Aliás,
podemos dizer que uma análise é o trabalho da transferência.
Se, entretanto, a transferência está no começo da análise, sabemos que uma
análise e, logo, a transferência, não se iniciam com a chegada do paciente ao
consultório. Há um tempo — tempo que é lógico, na medida em que se trata da
temporalidade do inconsciente—há um tempo para que a transferência se instaure.
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Isto acontece também na psicanálise com crianças que é, da mesma forma que com
o adulto, trabalho da transferência. Em se tratando de crianças, porém, há diferenças em relação à análise com adultos e, portanto, em relação à transferência.
Um adulto, bem ou mal, busca análise. Uma criança é levada à análise—a demanda
inicial vem dos pais. Esta diferença é fundamental, inclusive no que se refere a este
tempo prévio à consolidação da transferência.
Falar de tempo prévio, preliminar ao início do trabalho analítico, é falar das
entrevistas preliminares. Em 1971,0 saber do psicanalista, dizia Lacan: "não há
entrada possível em análise sem entrevistas preliminares". Como pensar esta frase
de Lacan e pensá-la também em termos da psicanálise com crianças?
Em primeiro lugar, se é pela via do desejo que um sujeito chega à análise,
sabemos também que é pelo fato de estar sofrendo que ele busca análise. E o que
p faz sofrer, senão seu sintoma? Acontece que este mesmo sintoma que o faz sofrer
é sentido como um corpo estranho, como um sofrimento que lhe é infligido de fora,
por um outro, seja ele quem for. Assim, tal sofrimento poderia ser-lhe também
extirpado por um outro — sempre pequeno outro — que, no caso, seria o analista.
A expectativa é, pois, de uma relação dual, imaginária, deixando-nos perceber
claramente que este sintoma nada tem ainda de analítico, uma vez que o sujeito
não se reconhece no mesmo.
O sintoma a ser escutado em análise é aquele que tem valor de mensagem —
"o sujeito recebe a sua própria mensagem, sob a forma invertida, do campo do
Outro", diz-nos Lacan. Para que um sintoma tenha valor de mensagem a ser
decifrada será preciso, antes de mais nada, que o sujeito nele se reconheça, que
nele se sinta implicado. Só então poderá o sintoma se constituir em verdadeira
demanda que, ao ser dirigida ao campo do Outro, no qual inicialmente se situa o
analista, retornará ao sujeito sob a forma de uma pergunta. O sujeito se questiona,
então, sobre o seu sintoma (Por que faço isso? Por que sinto isso? Sou normal?),
sobre o que ele é (Quem sou eu?), sobre o que o Outro quer — é o Che Vuoi? —
testemunha da divisão do sujeito e de sua alienação fundamental ao desejo do
Outro, na medida em que, ao questionar o desejo do Outro, é sobre o seu próprio
desejo que se interroga.
Este é o momento da demanda de análise, em que o analista é posto no lugar
do sujeito suposto saber, do saber suposto como podendo responder a pergunta do
sujeito. O analista sustenta a função de sujeito suposto saber, embora sabendo que
não tem o saber que lhe é demandado. Não se deixando enganar, sustenta o engano,
possibilitando assim & fixação da transferência. Sustentar o engano, porém, não
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
significa enganar nem se enganar. Logo virá o desengano ... Ao demandar ao
analista que responda, sem obter tal resposta, só resta ao analisante a via da
associação livre, isto é, só lhe resta trabalhar para que se elabore o saber que
responda à pergunta do sujeito. É, já então, o desejo que se põe a caminho ... O
analista é, de certa forma, deslocado deste lugar de sujeito suposto saber, e sua
função será a de causar o trabalho em análise. O sujeito suposto saber—que não
é um nem outro — será o único sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a
elaborar, e que permite que a análise aconteça. É o trabalho da transferência que
já está em jogo. Terminou o tempo preliminar.
Vemos, então, que as entrevistas preliminares foram o tempo necessário à
emergência da transferência, e a sua consolidação como campo do trabalho
analítico.
De início disséramos que este tempo é lógico, como toda temporalidade do
inconsciente. Isso significa dizer que o real, o encontro com o real — a tiquê —
está aí neste tempo preliminar, e que o preliminar de uma análise, como diz Eduardo
Vidal, é justamente o encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Daí falarmos em emergência da transferência, emergência
de um significante que seja o significante da transferência, a partir do qual pode
começar o trabalho de análise. Algo que emerge é algo que irrompe, algo que não
se sabia e que só depois desta irrupção, num a posteriori simbólico, pode ser
significado. O não se sábia tira o analista do lugar do sujeito suposto saber. O
significante da transferência é o algo que não se sabia. A tiquê estaria, pois, neste
não se sabia.
Nas entrevistas preliminares, portanto, as coisas não se passam de forma simples
e linear como, num primeiro momento, podem parecer. Quando há tiquê, não há
simplicidade—há é a surpresa, o espanto.
Só depois, então, poderemos definir o antes que corresponde às entrevistas
preliminares e defini-lo como lugar de um encontro com o incalculável.
As entrevistas preliminares são, pois, a condição de toda análise, seja com
adultos ou com crianças. Como já dissemos, se a psicanálise é uma só, temos que
considerar as diferenças quando se trata da análise com crianças. Nesta, a demanda
inicial é dos pais. É esta demanda que faz com que nos tragam o filho. Isso vai
supor também a questão da transferência dos pais. Aí estão dois aspectos fundamentais — demanda e transferência — que apontam para a importância das
entrevistas preliminares, não só com a criança, mas também com os pais.
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
De que demanda e de que transferência se trata no que diz respeito aos pais?
Quanto à demanda, não se trata, é claro, da demanda em que o sintoma se
constitui e que, ao se dirigir ao campo do Outro, retorna ao sujeito como pergunta
sobre o seu desejo. Pergunta que, ao ser relançada ao analista e ficando sem
resposta, permitira o surgimento do desejo. Esta é a demanda na qual o desejo
alienado se articula e que, só em análise, pode ser escutada. É a demanda que o
sujeito, adulto ou criança, terá que formular. A demanda dos pais, é, pois, outra
coisa. A questão é escutar de que ordem ela é, já que se trata de uma demanda para
a análise de outro sujeito — o filho.
No que se refere à transferência dos pais, não podemos vê-la como a transferência que é escrita no materna, no qual o significante da transferência é o agente
da instauração transferenciai e de um primeiro surgimento do sujeito. Esta é
reservada apenas e justamente ao sujeito que surge para a análise e que, no caso,
é revestido pelo corpo da criança. Algo há, porém, de transferência, em se tratando
dos pais, pois, de outra forma, seria praticamente impossível a análise com a
criança. Talvez possamos falar, em relação aos pais, numa transferência afetiva,
mas considerando sempre que afeto, em Lacan, não tem nada a ver com sentimento
e sim com um corpo que é afetado pelo significante. Este significante poderia ser,
num primeiro momento, "psicanálise", depois o nome do analista, em relação ao
qual haverá uma certa suposição de saber, sem, no entanto, haver a instituição do
sujeito suposto saber. No caso dos pais, no que diz respeito à transferência, faltaria
sobretudo o próprio significante da transferência, uma vez que não haveria o sujeito
sintomático, aquele que é representado por seu sintoma enquanto significante e
que, como tal, dirige-se ao analista para ser escutado.
Assim, as entrevistas preliminares com os pais são fundamentais, também no
sentido de que permitem que apareça ou não a transferência afetiva com a
psicanálise, substituindo-se esta por um particular analista qualquer—aquele que
tem um nome que o marca e que poderá vir a ser o analista de seu filho. Seja como
for, a transferência dos pais fica mais como vínculo intersubjetivo e, portanto, no
nível imaginário.
Foi Lacan que atraiu a atenção sobre a importância das entrevistas preliminares,
já um tanto tardiamente, em O saber do psicanalista, no qual faz a teorização sobre
as mesmas. É, pois, na clínica lacaniana que elas adquirem uma importância
específica.
Na clínica kleiniana não há entrevistas preliminares como tempo de instauração
da transferência, o que fica explicado quando M. Klein diz textualmente que, nas
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
crianças, a transferência é imediata. Claro está que se trata de uma transferência
puramente imaginária.
Já Anna Freud considerava a necessidade de um tempo prévio, mas que é de
preparação da criança para a análise. Trata-se, portanto, de um preliminar pedagógico.
Mannoni e Dolto falam da importância de um período prévio à análise. Buscam
ver o que há de significativo no discurso dos pais e o lugar que a criança ocupa no
fantasma dos mesmos, principalmente da mãe — o que, aliás, é outra função
importante das entrevistas preliminares com os pais. Ambas, porém, consideram
a criança como um sintoma do conflito dos pais. Acontece que a criança, com seu
sintoma, não é só a expressão do conflito parental. Quanto à transferência, Mannoni
fala na questão da transferência múltipla e Dolto diz textualmente: "a transferência
é a relação imaginária, ao mesmo tempo consciente e inconsciente..."
Vemos, então, que é apenas em Lacan, com a sua clínica do real, que as
entrevistas preliminares têm um lugar teoricamente bem definido. Aliás, há muitas
análises de crianças que ficam apenas no preliminar das entrevistas.
II. A Estrutura da Transferência
Vimos já a importância fundamental das entrevistas preliminares, como tempo
necessário à emergência da transferência e a sua consolidação como campo do
trabalho analítico. Perguntamo-nos agora: afinal, o que é a transferência? Qual a
sua estrutura? É o tema que hoje tomaremos, ainda que de maneira breve, sempre
considerando que a transferência, em termos estruturais, é uma só, seja na análise
com adultos ou na análise com crianças. As diferenças existem, como sabemos,
mas elas se prendem à forma de instauração, de consolidação, de manejo da
transferência e não à sua estrutura.
Quando nos colocamos a pergunta sobre o que é a transferência, de imediato
nos vem uma primeira resposta: a transferência é amor. A sua estrutura é, pois, a
do amor que implica o desejo que se articula na demanda. Vamos porém, devagar...
Ao dizermos que a transferência é amor, nada mais fazemos que nos afirmar,
com Lacan, no campo freudiano. Em Observações sobre o amor transferenciai,
Freud diz textualmente: "A resistência não cria esse amor, encontra-o pronto, à
mão..." E mais adiante, no mesmo texto: "o amor transferenciai é provocado pela
situação analítica".
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Que "a transferência pode se definir como amor" é também o que diz Lacan no
Seminário VIII, onde vamos ouvi-lo dizer ainda: "o problema do amor nos
interessa, na medida em que vai nos permitir entender o que ocorre na transferência,
e diria, até um certo ponto, na causa da transferência". O amor está pois, na causa
da transferência, na causa deste "fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito
e o psicanalista", como coloca também Lacan, em 1964, no Seminário XI. "É —
continua ele—um fenômeno essencial ligado ao desejo como fenômeno nodal do
ser humano e que foi perfeitamente articulado no Banquete, de Platão—um texto
em que se debate sobre o amor". Diz ainda Lacan que "o momento essencial, inicial,
ao qual se deve reportar a questão que temos que nos colocar, da ação do analista,
é aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada saber, senão o que diz
respeito a Eros, quer dizer, o desejo... Platão não pode fazer mais que nos indicar
o lugar da transferência".
Vemos, então, claramente apontado por Lacan que o lugar da transferência é o
amor e que, em um texto em que Platão estabelece um debate sobre o amor, o de
que se trata é também do desejo. "Sócrates pretende não saber nada, salvo saber
reconhecer o que é o amor (o Eros), quer dizer—afirma Lacan—o desejo". Iguala,
assim, o amor ao desejo, na medida em que o percurso de um é o percurso do outro,
na busca de algo que nunca vai se completar. "Na análise—diz Lacan—o sujeito
vai em busca do que tem e que não conhece, o que vai encontrar é isso que lhe
Salta". E ainda:wé nesse tempo, nessa eclosão do amor de transferência que deve-se
ler esta inversão de posição que, desde a busca de um bem, faz a realização do
desejo". Entendamos aqui realização do desejo como "emergência à realidade do
desejo como tal". A pergunta de Sócrates a Agatão é: "pode alguém desejar o que
já tem?"
Temos já agora um pouco mais de clareza quanto ao que significa dizer que a
estrutura da transferência é a do amor e a do desejo, que apontam para a falta e,
portanto, para o objeto. Vejamos, então, qual é afinal, esta estrutura.
Quando Lacan toma o Banquete — um texto de discursos—para aí mostrar a
estrutura do amor de transferência, podemos pensar que não é por acaso: falar de
discurso é falar do simbólico. De saída, pois, Lacan está colocando o amor de
transferência dentro de uma estrutura simbólica e que, como tal, obedece às
mesmas leis que regem a linguagem—a metáfora ea metonímia. Estas são também
as leis segundo as quais trabalha o inconsciente, na medida em que é estruturado
como uma linguagem, isto é, formado por significantes que trabalham. A trans22
LETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
ferência, então, só pode ser transferência de significantes — significantes que
formam o saber não sabido do inconsciente — e nunca de sentimentos.
Dizer, porém, que o amor tem uma estrutura simbólica, não exclui que ele tenha
também uma vertente imaginária e uma outra real. São estas três vertentes do amor
que Lacan aponta na análise que faz do Banquete, no Seminário da Transferência.
Afirmando a estrutura simbólica do amor, diz Lacan no mesmo seminário: "...
do que se trata é que justamente o amor como significante (...) é uma metáfora, na
medida em que a metáfora a aprendemos a articular como substituição ...". É
justamente a metáfora do amor que Lacan nos dá em seguida, ao colocar que "a
significação do amor se produz quando a função do erastés, do amante (podemos
ler — desejante), como sujeito da falta, vem do lugar, se substitui à função do
eromenós que é objeto, objeto amado". Lacan diz ainda que "entre estes dois termos
que constituem em sua essência o amante e o amado, não há nenhuma coincidência
— o que falta a um não é o que está escondido no outro. E aí está todo o problema
do amor". Podemos, então, dizer que do que se trata é da falta, que está tanto no
amante como no amado.
É justamente a função da falta como constitutiva da relação de amor que Lacan
assinala no discurso de Sócrates, quando este pergunta a Agatão: "este amor do
qual falas, é ou não amor de alguma coisa, é tê-lo ou não tê-lo? Pode alguém desejar
o que já tem?" E pouco depois Sócrates dá lugar a Diótima no discurso sobre o
amor.
Diótima, enquanto mulher e, portanto, enquanto lugar da falta, sabe do amor e
nos introduz no mito do nascimento do amor. É pontuando esta passagem que
Lacan vai colocar a sua célebre fórmula: "amar é dar o que não se tem — é dar
uma falta". E continua mais adiante: "o amor não pode ser articulado senão ao
redor dessa falta pelo fato de que, no que deseja, só pode haver falta". Podemos já
aqui pensar na questão do objeto do desejo, enquanto objeto a perdido e que, como
tal, é sempre faltante.
Apesar de estarmos falando da estrutura do amor de transferência como simbólica, o que vai definitivamente confirmá-la como tal, na análise que Sócrates faz
do Banquete, é a presença de três personagens: Agatão, Sócrates e Alcibíades. É
o momento em que Lacan diz: "há que ser três e não apenas dois para amar",
marcando a estrutura ternária da transferência, enquanto relação do sujeito ao
grande Outro. Não se trata, pois, de uma relação dual imaginária de outro a outro.
Aí está presente o grande Outro da linguagem, a partir do qual o sujeito recebe a
sua própria mensagem sob a forma invertida.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
23
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
É este também o momento em que Lacan compara o lugar de Sócrates ao lugar
do analista, na medida em que, ao ouvir o discurso que Alcibíades lhe dirige,
Sócrates o desvia para Agatão, dizendo: "Tudo o que acabas de dizer de tão
extraordinário falando de mim, é para Agatão que o disseste".
"Estruturalmente — diz Lacan — a intervenção de Sócrates tem todas as
características de uma interpretação". É porque sabe sobre o desejo que Sócrates
pode agir, neste momento, como analista, permitindo que o desejo de Alcibíades
siga seu caminho.
"Há agalmas em Sócrates e isto foi o que provocou o amor de Alcibíades", diz
Lacan no Seminário da Transferência, e no Seminário XI acrescenta: "Alcibíades
vem pedir a Sócrates algo que não sabe o que é, mas que chama de agalma". É,
pois, este agalma que constitui o objeto do desejo de Alcibíades e que Sócrates
sabe que lhe falta, assim como falta a Alcibíades — não lhe pode dar porque nada
tem para dar. "É porque Sócrates sabe que ele não ama".
Não podendo conseguir de Sócrates o objeto de seu desejo, Alcibíades tenta
seduzi-lo, oferecendo-se como objeto amado, como eromenon. Como diz Lacan
no Seminário XI, "amar é essencialmente querer ser amado". É o amor em sua
função de tapeação, mostrando a sua face de resistência, que o analista não pode
desconhecer. E é por não desconhecê-la que se nega a responder a demanda,
permitindo que, da posição de objeto a ser amado, o paciente passe à posição de
amante, isto é, de sujeito desejante.
Não nos esqueçamos, no que diz respeito à criança, que sua posição já é de
agalma — objeto a ser amado — o que tem a ver com o lugar que ela ocupa rio
fantasma da mãe. A substituição se daria, pois, no sentido de que pudesse, desta
posição passiva de objeto no fantasma da mãe, passar a ser, ela mesma, mais livre
para cuidar do seu próprio desejo.
Podemos perceber que a dialética da transferência é também a dialética do desejo
que se articula na demanda, que é da ordem da linguagem. Falar é demandar. A
demanda do sujeito se constitui a partir da demanda do Outro da linguagem, e o
desejo é aquilo pelo qual o sujeito se situa em relação à demanda do Outro (sendo
a mãe o primeiro Outro). A demanda é, pois, condição de desejo. O sujeito está
sujeitado à demanda do Outro e é pela via do desejo que pode sair dessa sujeição.
A única forma, porém, pela qual seu desejo pode surgir é pela não resposta do
Outro à sua demanda.
É aí que surge a dimensão da ação do analista, orientada pelo desejo do analista.
Ao não responder à demanda do sujeito, faz aparecer o desejo, permitindo que,
pela associação livre, se realize o trabalho da transferência. Este trabalho vai ter,
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LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
então, como causa, o desejo do analista, que deve ser apenas, e nada mais, o de ser
causa do desejo.
III. O Significante da Transferência
Iniciemos agora, relembrando alguns pontos essenciais do que já vimos a
respeito da transferência. Repetimos, então, que uma análise é o trabalho da
transferência e que a função do analista, orientada pelo desejo do analista, é causar
este trabalho.
Vimos que a estrutura da transferência é simbólica, isto é, uma estrutura ternária
enquanto relação do sujeito ao grande Outro da linguagem. Não se trata, pois, de
uma relação intersubjetiva. Ao contrário, como vai dizer Lacan na Proposição de
9 de Outubro de 1967, "a transferência é, em si mesma, uma objeção à intersubjetividade". Trata-se, já o sabemos, de uma relação que se estrutura em torno
da falta, uma vez que o objeto é desde sempre perdido. Lembremo-nos de que o
agalma que Alcibíades vem pedir a Sócrates—este misterioso objeto de seu desejo
— Sócrates não lhe pode dar porque lhe falta, assim como falta a Alcibíades;
Sócrates sabe que nada tem para dar. "É porque sabe que ele não ama", afirma
Lacan.
É esta também a posição do analista. Se há algo a respeito de que o analista tem
que saber, este algo é a falta. Não é este, porém,, o saber que lhe é suposto por
aquele que o procura. Como diz Lacan no Seminário VIU, "do analista se vem
buscar a ciência do que se tem de mais íntimo (...). Esta ciência ele é suposto tê-la".
O sujeito, portanto, entra em análise numa posição de engano absoluto, demandando ao analista um saber que este não tem. É o que penso podermos matematizar
com o discurso da histérica ( f- §*) em que o sujeito (S) demanda ao analista, que
ele coloca na posição de significante mestre (Si), um saber (S2) que, na verdade,
é ele mesmo que tem, mas que não sabe que tem (um saber sobre o objeto a falante,
sobre aquilo que ele é no desejo do Outro). Este é o engano que, por algum tempo,
o analista sustenta, mas sem enganar nem deixar-se enganar, possibilitando assim
a fixação da transferência. Como já dissemos, logo porém, virá o desengano, uma
vez que o analista, da sua posição de semblante de objeto a (e aqui é bom escrever
o materna do discurso do analista, §-2 |j), só pode responder com a falta de resposta
à demanda do sujeito, falta esta que permitirá que o desejo se ponha a caminho e
que se elabore o saber que responda à pergunta do sujeito.
Já estamos aqui falando do sujeito suposto saber (Ss S2), que Lacan vem
primeiramente formular em 1964, no Seminário XI, dizendo: "o sujeito suposto
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
saber, na análise, é o analista" e "desde que haja S s S2 há transferência". Alguns
anos depois, na Proposição de 9 de outubro, continuando sua formulação sobre a
transferência, que desembocará no materna do significante da transferência, Lacan
irá dizer: "O sujeito suposto saber é, para nós, o pivô no qual se articula tudo o que
se relaciona com a transferência".
É importante marcarmos, porém, que dizer que o sujeito suposto saber, na
análise, é o analista, nada tem a ver com o analista enquanto pessoa, nem mesmo
enquanto sujeito, e sim com o analista enquanto função de causa. Tem a ver, pois
com aquilo a que Lacan se refere no Seminário XI, dizendo: "esse ponto pivô, em
torno do qual o movimento gira, é o que eu designo pelo nome de desejo do
analista". Ainda no mesmo seminário, continua Lacan: "Enquanto o analista é
suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do desejo inconsciente. É por isso que eu digo que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo,
graças ao qual se aplica o elemento-força que há por trás do que se formula primeiro
no discurso do paciente como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto
comum desse duplo machado é o desejo do analista, que eu designo aqui como
uma função essencial (...) esse desejo (...) é precisamente um ponto que só é
articulável pela relação de desejo a desejo".
Vemos, assim, que se sujeito suposto saber e desejo do analista estão no mesmo
lugar, neste ponto de articulação de desejo a desejo, então o Ss S2 será o único
sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a elaborar. A elaboração desse saber
será o trabalho da análise, isto é, trabalho da transferência, a ser realizado pela via
da associação livre, que supõe que o inconsciente é um saber (S2) — trata-se do
saber não sabido do inconsciente.
É importante, em relação ao inconsciente, poder fazer a distinção entre saber do
inconsciente (S2) e sujeito suposto saber (Ss S2). Se o inconsciente é um saber (S2),
não é, porém, o sujeito suposto saber (Ss S2). Tanto assim que quando Lacan
escreve os discursos, em todos o saber (S2), e o sujeito (S) são escritos como
opostos, são separados. No final da análise isto fica bem claro, pois, se o fim da
análise é também o fim do Ss S2, não é, entretanto, o fim do inconsciente, ou seja,
do saber não sabido (S2). O inconsciente não se esgota.
Estamos, já há algum tempo, falando do sujeito suposto saber, e nos parece que
é hora de nos perguntarmos: sujeito suposto por quem? Não pode ser por outro
sujeito. Como diz Lacan na Proposição—"um sujeito não supõe nada, é suposto"
e "suposto pelo significante que o representa para outro significante".
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Se o analista tem a hipótese de um saber inconsciente do lado do analisante e,
por isso, o faz falar, o analisante, por sua vez, supõe um saber ao analista. E do
lado do analista, pois que fica o Ss S2. Trata-se, no entanto, de um saber sem sujeito,
na medida em que o único sujeito em análise, voltamos a repetir, será o desse saber
suposto, ainda a elaborar.
Lacan nos dá, então, na sua Proposição, a escritura do "suposto desse sujeito,
colocando — como diz — o saber em seu lugar de adjacência da suposição".
Temos, então, o materna da transferência, que é a escrita do significante da
transferência.
Sq
s (Si, S 2 ... Sn)
Sendo:
S — significante que representa o sujeito
S q — significante qualquer, frente ao qual o sujeito é representado sobre a barra
s (Si, S2... Sn) — saber não sabido do inconsciente (S2), formado pela cadeia
de significantes articulados.
Na primeira linha está o significante (S) da transferência que representa o sujeito
para outro significante; neste caso o significante qualquer (Sq). O sujeito é
representado por seu sintoma enquanto significante, que se dirige a um particular
analista qualquer. O analista é, pois, colocado no lugar do significante qualquer
(Sq), mas que, sendo qualquer, supõe uma particularidade do lado do analista e da
análise. O paciente diz: "meu analista".
Na Proposição, Lacan se refere a esta particularidade "no sentido de Aristóteles",
ou seja, da lógica aristotélica que implica a lógica de classe. Se se diz — "meu
analista", "um analista"—é porque há constituída a classe dos analistas.
Nesta primeira linha do materna da transferência, vemos bem precisado o caráter
binário do significante, uma vez que não há um significante sem outro significante.
A respeito da segunda linha, diz Lacan: "sob a barra, o s representa o sujeito,
implicando no parêntese o saber, suposto presente, dos significantes no inconsciente, significação que ocupa o lugar do referente ainda latente nesta relação
terceira que o junta ao par significante/significado".
Tentemos ler o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o sujeito, para Lacan,
não é uma subjetividade e, pela formulação que faz do sujeito suposto saber,
podemos dizer que o sujeito é só a suposição de trabalho inconsciente. O sujeito é
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
escrito no lugar do significado em sua relação ao significante (S) e, enquanto
significado, é representado por seu sintoma endereçado ao analista. No parêntese
temos o saber (S2) suposto presente dos significantes no inconsciente. Esse saber,
na verdade, é suposição do significante primeiro (Si), pois o segundo significante
(S2) não supõe nada.
O saber suposto é a significação que ocupa o lugar do referente ainda latente,
em sua relação terceira que o junta à dupla significante-significado. Teremos que
ver depois que referente é este que, no momento, é ainda apenas latente.
Vejamos, então, na escrita do materna, como fica o saber nessa relação terceira
ao par significante-significado.
s
S2
(saber) referente latente (significação)
O saber inconsciente é então uma significação e esta se produz como terceiro
termo entre significante e significado, quando um primeiro significante (Si) se
articula a um segundo significante (S2) que vem dar significação ao primeiro. Por
trás dessa significação está o saber escondido que a produz. O saber inconsciente
se manifesta, então, como significação. É preciso o deciframento para que apareça
como saber e isto se compreende a partir da metáfora. O efeito de significação se
produz por metáfora, em que há a substituição de um significante por outro.
Lembremo-nos da metáfora do amor, em que "a significação do amor se produz
quando a função do erastés, do amante (isto é, desejante), como sujeito da falta,
vem no lugar, substitui-se à função do objeto, objeto amado".
Lacan diz, porém, que "a significação ocupa o lugar do referente ainda latente"
e temos que pensar o que isto quer dizer. É o saber (S2) sob a forma de significação
que ocupa tal lugar.
Já vimos que o momento de entrada em análise, que se dá exatamente pela
irrupção do significante da transferência, é também o momento de um não se sabia
e, portanto, de um encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Esse não se sabia, que surge como tiquê, justamente no lugar
onde se produz a significação, é algo que escapa a todo registro que seja da ordem
do significado e da significação, que implicam também o significante — escapa,
portanto, ao simbólico. É algo que estava lá, de forma latente, mas que não se sabia
e que, justamente com o significante da transferência, irrompe também, escapando
ao próprio significante. Trata-se então, da emergência fugaz do objeto a, para o
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
qual aponta todo o trabalho da transferência, mas que ainda não está lá. É o referente
latente, em cujo lugar está o saber sob a forma de significação encobridora.
O sujeito, em análise, dirige-se ao analista, que ele coloca no lugar do sujeito
suposto saber, demandando-lhe um saber que este não tem. Coloca, portanto, o
saber no lugar de objeto de desejo. O objeto está, então, do lado do Outro e,
recoberto pelo saber, sustenta a demanda na transferência. Ao não responder à
demanda, o analista, na sua função de causa, faz aparecer o desejo, permitindo que
se realize o trabalho da transferência, ao mesmo tempo, em que é, de certa forma,
deslocado do lugar de sujeito suposto saber. Ocupando o lugar de objeto causa de
desejo, sai do campo do Outro, permanecendo nele apenas como falta.
Por outro lado, o sujeito em análise, que busca o objeto de seu desejo, objeto
que nada mais é que saber o lugar que ele ocupa no desejo do Outro, esse sujeito,
pela via da associação livre, irá construindo tal saber, até chegar à descoberta final
— a de que, no desejo do Outro, ele é apenas objeto a causa do desejo. Esse é o
momento final de análise em que, do lugar que ocupava de semblante de objeto a
o analista cai definitivamente como resto.
Vemos então que o objeto a esteve aí o tempo todo, ainda que recoberto pelo
saber e que, em torno dele, se faz o trabalho de análise.
Quando se disse a princípio que a análise é o trabalho da transferência, vemos
que isto fica confirmado no final de análise. Foi o amor de transferência que
permitiu que o sujeito, de sua posição de objeto amado, de objeto de desejo do
Outro, passasse finalmente a objeto causa de desejo. E este é todo o trabalho de
uma análise...
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A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
BIBLIOGRAFIA
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LETRA FREUDIANA- Ano X .n»9
As entrevistas preliminares
na psicanálise com
uma criança
Myriam R. Fernández
N
essa apresentação, vamos focalizar, na prática analítica, as entrevistas
preliminares com os pais e a criança. Quanto ao analisante—a criança —
as entrevistas preliminares são, como sabemos, o tempo necessário à
emergência da transferência e a sua condição como campo do trabalho analítico.
O paciente, um menino, esteve em análise por dois anos e meio, quando, então,
o tratamento foi concluído. No caso de uma criança, se não é possível dizer que
houve um final de análise como o formulado logicamente por Lacan no seminário
do Ato Analítico, pode-se, no entanto, afirmar que, naquele momento, essa análise
terminara. Ao iniciá-la, o paciente tinha cerca de cinco anos e oito meses e
anteriormente estivera em tratamento por um ano e meio. Era encoprético. Filho
mais velho de um casal jovem já separado, tinha um irmão mais moço que nascera
quando estava com aproximadamente dois anos e meio. Poucos meses depois
deu-se a separação dos pais. O menino sofrerá algumas perdas praticamente
concomitantes: a saída da ilha onde vivera com os pais (uma espécie de ilha
encantada para ele), o nascimento do irmão (e conseqüentemente perda do lugar
de filho único) e a separação dos pais.
A queixa fundamental dos pais era a encoprese, mas a mãe falava da agressividade do filho e o pai considerava-o manhoso e mimado.
Aí estava, pois, a demanda dos pais com a sua queixa. Demanda que, já sabemos,
é apenas imaginária, diferente daquela que se constitui em análise.
Em termos de transferência possível, nesse momento inicial, havia o signif icante
"psicanálise" e o nome da analista. Teria que aparecer uma certa suposição de saber
que, de certa forma, se apresentou de início, fortificou-se e permaneceu durante
LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
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As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
todo o tratamento e até para além dele. É interessante pensar que, se ao final de
uma análise, cai o sujeito suposto saber, em se tratando do que se pode chamar de
transferência dos pais, permanece a suposição de um certo saber, o que aponta para
o caráter imaginário dessa transferência, diferente também da que se institui em
análise, mas que, como vínculo intersubjetivo, é indispensável à possibilidade do
tratamento de uma criança.
As entrevistas preliminares
Primeira entrevista com os pais (o que escutei de mais significativo no discurso
de ambos):
Pai — falando a respeito da separação do casal, diz duas vezes: "fui eu que me
separei". No decorrer das entrevistas, entretanto, vai aparecer sua dificuldade de separação. A tal ponto que, quando o tratamento do filho é
concluído, acha que é cedo para terminar. Aos poucos aparece muita
culpa em relação à separação do casal, a qual relaciona o sintoma do
filho, embora o ligue também ao nascimento do irmão. Dou-me conta
de que essa separação ficou muito mal resolvida, permanecendo o
paciente no meio do "jogo" que havia entre os pais.
Mãe '•—a respeito do sintoma do filho: "acho que agora ele faz mais para me
agredir. Eu me sinto agredida". Conta como se dá a questão do cocô
entre o filho e ela (um verdadeiro jogo de gozo) e diz: "Ele pede para
eu lhe bater, é como se pedisse para apanhar". Mais adiante, afirma:
"Ele não quer que lhe digam — não". Escuto que ela também não quer
que o filho lhe diga — não (um "presente" não pode dizer — não) ...
Veremos adiante porque se fala aqui em "presente".
Conta que o filho, quando bebê, tivera algumas doenças: alergia a
picadas de mosquito e, ao mesmo tempo, sarna e impetigo. Diz que
ficava noites em claro passando a mão no corpo do menino para que
ele não se cocasse (mais tarde sujaria as mãos no cocô dele).
Mãe e pai dizem que na escola o filho parece outra criança. O pai acrescenta:
"sem estar conosco parece outro. É como dizem: são os pais que estragam os
filhos". Penso que a fantasia desse pai seria a de que, com a separação, teria
estragado o filho.
Há muita rivalidade entre os pais, usam de muita ironia um contra o outro,
discordam freqüentemente. A separação não fora aceita pela mãe, que aproveita
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LETRA FREUDIANA - Ano X - n« 9
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
todas as oportunidades para agredir o pai. Este, por sua vez, usa o foto de sustentá-la
para querer que ela fique como babá dos filhos (vamos ver como isto adquire
importância pela própria história dela).
Na segunda entrevista com os pais o que surge de mais significativo é a fantasia
do pai de que o filho, quando vier, talvez não queira entrar na sala sozinho comigo
(não se separar dele, portanto, não se soltar).
Percebo a necessidade de ouvir esses pais separadamente. Antes, porém, devo
ver a criança. Afinal, ambos tinham formulado sua demanda de tratamento para o
filho e havia um sintoma bem enunciado pelos pais — a encoprese.
Faço três entrevistas com a criança. Na primeira vem com o pai e a fantasia deste
não se realiza, pois o menino entra comigo, desenha, quase não fala, mas fica.
Na segunda entrevista, penso que algo da suposição de um saber e, portanto, da
transferência, começa a se delinear. Faz um desenho, peço-lhe que conte uma
história sobre o mesmo e ele diz: "você já sabe" (refere-se à história que contara
sobre o desenho que fizera na primeira entrevista e que era também com coelhos).
Respondo-lhe que é um desenho novo, pode ser uma história nova e quem sabe é
ele. Falando sobre os coelhos, pergunta-me quanto ao maior deles: "que ano ele
tem?" Não respondo, dizendo-lhe apenas que quem sabe é ele. Faz o mesmo em
relação ao coelho menor, sem obter resposta. Pergunto-lhe quais são os nomes dos
coelhos, ele não fala, mas "escreve". Ainda não sabe escrever, mas faz com clareza
a primeira sílaba do nome do coelho maior — Mi (que é também a sílaba inicial
do nome da analista).
Na terceira entrevista, o que de mais significativo surge em relação à emergência
da transferência, dá-se justamente quando já está saindo. Brinca com a corrente da
porta, tentando fechá-la por fora (para guardar-me lá dentro?). Digo-lhe que não
dá, que fica difícil e que eu fecharei por dentro. Diz então: "mas não fecha a porta".
Escuto isto como um pedido para que eu deixe a porta aberta para que ele possa
voltar a entrar. Respondo-lhe então que a porta estará aberta para ele, quando voltar
da próxima vez.
Depois dessas três entrevistas com a criança, vejo o pai. Diz que faz análise, e
volta a mostrar muita culpa pela separação. Fala na perda de sua mãe, há um ou
dois anos, e na dificuldade de separar-se dela—chora. Pergunta se o filho estaria
doente pela separação dos pais. Separação parece ser algo da ordem do seu
fantasma e mais: o filho doente pela separação.
Faço a seguir umas quatro entrevistas com a mãe. A princípio estava muito
arredia. Percebo que tinha medo de que eu quisesse analisá-la ao invés do filho,
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
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As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
pois o marido dizia que ela tinha problemas psíquicos e que precisava de análise
(e, de fato, necessitava). Havia uma certa "limpeza de campo" a ser feita, inclusive
para que a "transferência" comigo pudesse aparecer. A situação era um tanto
complicada e não se podia começares cegas o tratamento da criança. Estaria o filho
denunciando com o seu sintoma o que era da mãe?
A partir da terceira entrevista a situação fica mais clara, inclusive para a mãe, a
quem digo que se alguém ali for fazer análise comigo será o filho e não ela. Diz
que já se tratara durante algum tempo. A partir desse momento, pode falar sobre a
sua própria história, na qual aparece um pai muito severo, "durão", que não era
bom marido para sua mãe e que também só lhe permitira fazer o primeiro grau,
obrigando-a, então, a ficar em casa para ajudar a mãe, que trabalhava com ele.
Sentira-se como empregada para os irmãos, principalmente para um deles, que ela
dizia ser o privilegiado — ganhava coisas do pai e pudera estudar (era clara a
rivalidade com esse irmão). "Agora quero me presentear. Quero me dar coisas".
Diz isto com raiva do marido que quer fazê-la de babá dos filhos (e, portanto, de
empregada).
Na fantasia dessa mãe, seria o paciente, primeiro filho, o "presente" que não
tivera do pai? Só que um presente cheio de cocô, onde ela suja as mãos, uma vez
que o menino não se limpa e é ela que tem de fazê-lo, como antes passara a mão
na sarna e no impetigo dele. Além do mais, até o cocô que ela lhe pede ele não dá
— mas se suja (faz nas calças) e ela tem que limpá-lo como uma empregada.
Quanto à criança, parece que está recebendo a demanda que poderá levá-lo à
neurose obsessiva, frente à natureza paradoxal do objeto anal que lhe é demandado
— a mãe pede, mas, quando ele dá, é algo que ela acha nojento. Diante disto, a
dúvida: dou ou não dou? A dona é ela ou sou eu? Ao mesmo tempo, está preso na
relação mal resolvida entre os pais, nesse jogo em que fica como a pedra do meio.
Talvez, com seu sintoma, fale sem saber do desejo de se soltar. Durante as
entrevistas, através das brincadeiras e dos desenhos que faz, percebo que está entre
prender e soltar.
Depois das entrevistas com a mãe, faço uma com o casal e começo a ver
regularmente o menino. Estamos ainda no tempo preliminar das entrevistas. Na
terceira, após esse início regular, surge mais claramente, por meio de uma desenho,
algo da transferência. Faz primeiro um barco preso pela âncora (barcos presos por
uma âncora serão uma constante por longo tempo — é o gozo fixado que não se
move). Através de minhas perguntas, vai contando parte de sua história na ilha em
que vivera com os pais, uma vida paradisíaca, que fora bruscamente interrompida.
34
LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
Enquanto fala, desenha um segundo barco que não está preso pela âncora. Leio
esse desenho como: ele está preso (ancorado), mas não está sozinho—há um outro
barco que está com ele. Vejo isto na transferência como a inclusão da analista nas
suas fantasias.
Na entrevista seguinte começa a dirigir o sintoma à analista: arrasta-se pelo chão,
tira a camisa e esfrega-a também no chão, põe-na na boca, empapa-a de saliva.
Suja-se, portanto, como se fizesse cocô nas calças, mas ainda é uma sujeira só dele
que o outro não tem que limpar. Trata-se de uma mostração do sintoma. É como
se estivesse me testando.
Paralelamente, a situação com a mãe está péssima, há brigas terríveis entre os
dois—o "jogo" continua. Começa também a fazer tudo para contrariar a analista.
Passa a só querer entrar acompanhado pela mãe ou pela avó. Vacila na transferência. Há entrevistas que são interrompidas ainda na sala de espera. Outras vezes
entra na sala com a mãe ou a avó. É um momento bastante difícil. Numa das vezes
em que entra com a mãe, há uma verdadeira mostração do jogo de gozo enlouquecido entre eles — é a repetição em ato que denuncio na hora. O "jogo" agora
é o entra não entra. A questão não era tanto com a analista, mas com a mãe: ela
queria que ele entrasse (que desse o cocô), ele não entrava (não dava) — era a sua
forma de se proteger do desejo da mãe. Isto se repete outra vez quando, ao
chegarem, a mãe quer que ele vá ao banheiro e ele não vai — era a encenação do
gozo real com o objeto cocô entre eles. Denuncio a situação novamente, interrompo
e digo que voltem na próxima vez.
Durante esse período tenho entrevistas freqüentes com a mãe porque a questão
está séria.
Quanto ao menino, um dia entra, outro não. Às vezes está na sala comigo, a mãe
na sala de espera, sai correndo para vê-la e não quer mais entrar. Espero mais um
pouco e decido cortar as vindas da mãe e da avó com ele, pedindo que venha com
a empregada. Na primeira vez não entra, mando-o embora da sala de espera. Depois
disso, começa aos poucos a entrar, mas continua as provocações com a analista.
Queixa-se à mãe da falta de brinquedos no consultório. Converso com ele sobre
isto, diz que quer um jogo, não sabe qual, mas acaba se decidindo por um dominó.
A princípio brinca com as pedras sozinho. Pouco depois, passa a pedir à analista
que "jogue" com ele (é importante que o jogo passe a ser com a analista). É tempo
de fixação da transferência, mas outra complicação aparece: a mãe arranja um
namorado e leva-o para casa. O menino então nega-se a vir com a empregada, quer
que a mãe venha e entre na sala. Permito por algum tempo.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
35
As eatrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
Nessa época, tenho duas ou três entrevistas com o pai, que está furioso com a
questão do namorado da mulher estar na casa.
A situação se acalma um pouco. Corto novamente as vindas da mãe com o filho,
que volta a ser trazido pela empregada. Outra vez tenho que mandá-lo embora da
sala de espera, ou porque não quer entrar ou porque quer ficar lá vendo revistas —
mas isto dura pouco. Recomeça a entrar e um dia, de repente, irrompe o significante
da transferência. É realmente uma irrupção que eu não esperava (não sabia) que
se daria assim, o paciente também não.
Ele chegara com um embrulho de papel laminado no qual havia quatro sanduíches de biscoitos cream crackers com requeijão pastoso. Senta-se no diva, abre
o pequeno embrulho e começa a comer seus "sanduíches". Ainda pela sala, senta-se
no diva e, aos poucos, temos o "cocô" espalhado por todos os lados. De vez em
quando olha-me provocativamente. Continuo sentada, sem dar uma única palavra.
Ele também não fala, mas suja e se suja. É claro que sinto um certo mal estar com
tanta sujeira, mas calmamente espero. Quando termina, ele fica me olhando e eu
lhe pergunto: "e agora?" Ao que ele responde: "você limpa". Digo-lhe: "é você
que vai limpar. Quem suja, limpa. Quem se suja, se limpa". Claro está que ele diz
que não vai limpar. Apanho a vassoura e a pá de lixo, ele diz que vai embora, eu
lhe respondo que ele irá sim, mas que antes vai ter que limpar. Proponho ajudá-lo,
segurando a pá, mas a limpeza com a vassoura será dele. O momento é crucial. Por
fim, apanhado de surpresa com a minha decisão e vendo que parecia não haver
outro jeito, ele aceita o acordo e faz, como pode, a limpeza.
Fora algo da ordem da tiquê — encontro com um ponto do real — tanto para
ele como para a analista.
Penso que o fato de a mãe não estar mais ali sustentando aquela relação via cocô
facilitou o deslocamento. O sujeito (s), com o saber não sabido do inconsciente
(Si, S2 ... Sn), representado por seu sintoma enquanto significante (S), pôde se
dirigir ao analista, esse particular significante qualquer (Sq). Temos então o
materna da transferência:
s(Si,S 2 ...S n )
A partir desse momento é o trabalho da transferência que estará em jogo.
Terminou o tempo preliminar — término que só um pouco depois, já a posteriori,
pôde ser reconhecido como tal.
36
LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
O estatuto do objeto
na psicanálise
Cora Vieira
"Eu te amo,
Mas, porque inexplicavelmente
Amo em ti algo
mais do que tu o objeto a minúsculo
Eu te mutilo".
(Lacan, Seminário XI,
Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise)
O
estatuto do objeto na psicanálise para Lacan tem características bastante
definidas e particulares.
O objeto para ele, não é o objeto dividido em bom e mau de M. Klein, nem
o objeto transicional de Winnicott e nem o objeto perdido que se busca infinitamente reencontrar de Freud.
No Seminário A Ética da Psicanálise (Seminário VII) fala de das Ding,
antecedente lógico e teórico do objeto a, definido como um espaço vazio de
representação e constitutivo do objeto. É neste vazio, furo que delimita o inconsciente, fora de qualquer articulação significante, que Lacan instaura o objeto
a, encarnação de um vazio, causa de desejo. Marcado pelo significante da falta no
Outro, S(A), o objeto a vem funcionar no lugar onde a existência do Outro falha.
O conceito de objeto a vai sendo construído ao longo de sua obra. Em 56/57,
no Seminário As Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas (Seminário IV),
diz: "a relação central de objeto é a de falta de objeto". Trabalha neste texto o objeto
do desejo como a falta de objeto, simbolizada pelo falo. Em 57/58, nas Formações
do Inconsciente diz: "não há objeto senão metonímico, o objeto do desejo sendo o
objeto do desejo do Outro e o desejo sendo sempre desejo de outra coisa, mais
precisamente, daquilo que faltava ao objeto perdido primordialmente, na medida
em que Freud nô-lo mostra como estando sempre por ser reencontrado". Ai ainda
LETOA.FRBUDIANA-AnoX-n'^
37
O estatuto do objeto na psicanálise
trata o objeto como ilusório e procurado infinitamente por um desejo metonímico.
Em 58/59, em O Desejo e sua Interpretação, Lacan aponta para o caráter real do
objeto a, indicando o lugar do objeto no materna do fantasma $Qa, a partir da
estrutura do desejo do sujeito como desejo do Outro. Em 60/61, no Seminário
A Transferência (Seminário VIII), começa a marcar a diferença entre o objeto a
do fantasma e o objeto metonímico.
Porém, é no Seminário A Angústia (Seminário X), em 62/63, onde Lacan vai
teorizar sobre o objeto a como objeto do real. Coloca, que a angústia surge como
sinal de algo que falta, falta da falta, resposta no real evocada pela incidência do
desejo. O desejo do Outro, se endereça ao sujeito e o coloca em questão. A angústia
é o que não engana e surge diante de algo irredutível do real.
Lacan nos fala ainda neste texto de duas faltas: a falta no simbólico, ligada à
castração, ponto onde Freud articula o final de análise; e a falta no real, onde o
sujeito tem que se defrontar com o seu ser, onde o Outro o coloca se defrontando
com a perda de seu ser e é aí que Lacan vai além de Freud. Esta falta no real, o
simbólico não pode remediar, esta falta não se esgota na castração. Apresenta o
seguinte esquema:
onde num primeiro tempo temos um sujeito e um Outro míticos, anteriores à
divisão feita pela barra que cairá sobre os dois, tempo inicial de gozo absoluto.
Num segundo tempo surge a angústia do Outro, apontando para um Outro barrado,
A, com o surgimento da falta; e num terceiro tempo surge a angústia do sujeito, e
este também está barrado, S.
É pois, a queda do objeto, o resto, o resíduo, que está na raiz da angústia. A barra
incide sobre o sujeito e faz cair o objeto num mesmo golpe. O a como testemunha
de um gozo perdido no Outro, marcando que não há relação sexual. Objeto podendo
vir então, a causar o desejo.
Entretanto ponto de angústia e ponto de desejo, nfto coincidem. O ponto de
angústia se articula com a função da falta que está enlaçada à satisfação, e o ponto
de desejo com a função de resto enlaçado à causa de desejo.
Nos diz Lacan no Seminário4 Angústia: "O desejo eu lhes ensinei a localizá-lo,
a ligá-lo à função do corte, a colocá-lo numa certa relação com a função do resto.
38
LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
O estatuto do objeto na psicanálise
Este resto é o que o sustenta, o que o anima e o que aprendemos a localizar na
função analítica do objeto parcial. Entretanto, a falta à qual está ligada a satisfação
é outra coisa. Esta distância do lugar da falta, em sua relação com o desejo conforme
estruturado pela fantasia, pela vacilação do sujeito em sua relação com o objeto
parcial, esta não-coincidência da falta com a função do desejo em ato, eis aí o que
cria a angústia, e só na angústia encontra-se designada a verdade dessa falta".
A partir da castração temos a marcação de -cp, lugar vazio, lugar da falta, -cp que
dá um lugar, uma imagem à a. -cp que aponta para a falta de objeto causa de desejo,
onde diferentemente do objeto a aceita qualquer vestimenta para cobrir esta falta.
Surge então a miragem do objeto do desejo. Já o objeto a não se reflete, é não
especularizável, algo que a imagem não resolve, inclusão aí do real. É o objeto a
que dá o ponto de basta, um limite, uma não reflexão. Lacan nos indica, num final
de análise, à levar o sujeito a chegar ao mínimo do seu laço social, que é ao objeto.
Por isso, a análise chega à um ponto de um discurso minimal, onde as palavras não
contam, só conta o laço social do sujeito a um objeto que o determina. Não há
relação sexual, a única relação é a relação fantasmática.
A construção fantasmática é então o trabalho da análise, o que possibilita o
sintoma ser escrito de outra forma, onde não há síntese mas sim um ponto finito,
real.
O objeto da pulsão se transmuta em objeto de desejo a partir de que alguma coisa
do fantasma se revela para o sujeito. Com a travessia do fantasma, o sujeito muda
de posição com relação ao objeto, o objeto passa a ser colocado atrás do sujeito,
causando-o, e não mais à frente como algo a ser reencontrado. Aí parece residir a
inovação de Lacan com relação ao final de análise, marcando o limite de Freud.
Para isto, o analista vem a ocupar o lugar de agente, lugar de causa, lugar de
objeto, mais precisamente vem a fazer semblant de objeto a; diferentemente do
que o analista na transferência é chamado a ocupar, que é o lugar de ideal. No lugar
de responder a partir de um saber que possa levar a uma identificação com um
ideal, deve surgir um analista que responda a partir do ato analítico.
O sujeito encontra a sua verdade a partir de seu fantasma, resta saber como
vamos determiná-la no caso da psicanálise com crianças. Para Freud o final de
análise se resolveria com a reconciliação com o significante Pai, com a castração,
diferentemente de Lacan, para quem o resto, o objeto a e sua posição em relação
ao sujeito no fantasma, é que seria resposta ao final de análise.
Há uma reconstrução de uma história primitiva, que é mítica, portanto uma
verdade que tem uma estrutura de ficção. A história que se reconstrói é fantasLETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
39
O estatuto do objeto na psicanálise
mática, há o real que leva o sujeito a tentar montar uma rede com significações que
venham a simbolizar algo. Há um real em causa que aponta e exige um trabalho
de reconstrução. Mas isto não é o mesmo que a construção do fantasma fundamental.
Será que o final de análise com crianças poderia ir além de uma certa construção
de mito, abordando o real do sexo, e aí então poderíamos falar em travessia do
fantasma?
Em psicanálise com crianças, temos duas dimensões a serem pensadas com
relação ao objeto. Uma delas é pensar o lugar que a criança ocupa no desejo do
Outro, que pode ser encarnado pela mãe; lemos no texto Duas Notas aJennyAubry:
"... a criança realiza a presença disto que Lacan designa como objeto a no
fantasma...". Como um sujeito vem a realizar um objeto no fantasma do Outro?
Lacan diz que o sujeito como tampa, se fazendo objeto, impossibilita o acesso da
mãe à sua verdade.
E a outra dimensão, que está articulada à primeira, trata de pensar a relação da
criança com seu gozo, com seu objeto, tal como ela tem acesso a ele no seu próprio
fantasma.
40
LETOA FREUDIANA-Ano X-n» 9
O estatuto do objeto na psicanálise
BIBLIOGRAFIA E CITAÇÕES
LACAN.J.
— Seminário IV — As relações de Objeto e as Estruturas Freudianas
(inédito).
— Seminário V —As Formações do Inconsciente (inédito).
— Seminário VII — A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1988.
— Seminário X —Angústia (inédito).
— Seminário XI — Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise,
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
— Duas Notas sobre ei Nino (1969) — Intervenciones y Textos 2, Buenos
Aires, Ediciones Manantial, 1988.
MILLOT, C.
— A construção do Objeto (a) —Nobodaddy, a histeria no século, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.
VIDAUE.
— La Construccion dei Fantasma Fundamental em Freud y Lacan, in Como
se Analisa hoy?, Buenos Aires, Ediciones Manantial, 1984.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
41
Questões sobre o brincar
Maria Cristina Vecino Vidal
P
ode-se perguntar o porquê do brincar. E a resposta levaria a assinalar sua
importância, de dois aspectos:
— Enquanto forma privilegiada da expressão infantil. A criança brinca
permanentemente.
— Sua existência mesma implica a constituição do ser como sujeito e sua
inscrição na ordem simbólica e da cultura.
O primeiro aspecto foi relevante na psicanálise de crianças. Na medida em que
a criança brinca, foi preciso criar técnicas como ludoterapias, dramatizações, etc,
para abordar o seu inconsciente. Esta mudança ao nível da técnica levou a uma
mudança na teoria, chegando ao ponto de se desconhecer a paternidade freudiana
que caracteriza a psicanálise como tal.
Desde Freud sabemos que não existem teorias especiais para escutar o discurso
da criança. Ele se refere ao jogo da criança em vários trabalhos, ao compará-lo com
a atividade do poeta (1906), em seu Estudo sobre o Chiste (1905), em Mais além
do princípio do prazer (1920). Sempre é entendido como um discurso onde o
inconsciente produz seus efeitos. Trata-se então, não de criar técnicas, mas de
escutar nesse discurso particular que a criança sustenta, as formações do inconsciente.
Do ponto de vista histórico, Hans foi a primeira criança da psicanálise. Paciente
de cinco anos tratado por Freud por intermédio de vários relatos escritos por seu
pai. Freud não vê aqui a possibilidade de surgimento de uma nova especialidade
em psicanálise e menos ainda a necessidade de adaptar seu método com novas
técnicas. Em Hans, a preocupação de Freud é teórica: permite confirmar as teorias
sexuais infantis deduzidas e reconstruídas nas análises dos pacientes adultos. Ao
mesmo tempo, há um aprofundamento da estrutura da fobia como expressão da
impossibilidade de um corte com a mãe, e da complexa relação com a função
paterna e a castração.
LETRA FREUDIANA. Ano X-n« 9
43
Qaestões sobre o brincar
Freud analisa aí um sujeito que se manifesta nos seus desenhos, sonhos, relatos,
jogos. Constitui-se um discurso a decifrar, efeito da articulação inconsciente. Mas
é a partir de Hans que se vislumbra a possibilidade de analisar uma criança.
Neste sentido, pode-se citar os trabalhos de Sophie Morgestern na França. O
valor de sua obra está na exposição de seu método de análise infantil através de
desenhos, método que surgiu a partir do tratamento de um caso de mutismo. Mas
sua verdadeira importância está no fato de que é a primeira psicanalista, após Freud,
a pensar que os desenhos têm uma gramática própria.
Em Viena surgem contemporaneamente Melaine Klein e Anna Freud. Há uma
profunda diferença ente elas, que também se exterioriza na forma com que abordam
a questão do brincar.
Para Melaine Klein, o brincar se transforma no elemento essencial da análise de
crianças, que possibilita a instauração da transferência em análise. O acesso ao seu
inconsciente devia realizar-se através da atividade lúdica que vai pontuando os
diferentes tempos na direção da cura. É abordada enquanto formação do inconsciente, pois ela é expressão do desejo e da fantasia inconsciente. O brincar se
torna uma tela onde é projetado esse universo fantasmático: fantasmas de destruição
e de ataque se articulam com sentimentos de depressão e culpa. A dialética da
introjeção-projeção é especialmente assinalada na transferência. Marca os momentos da relação da criança com o analista que, para Melaine Klein, correspondem à
primazia de um tipo de fantasia dominante. Há nela uma preocupação em compreender o significado que a criança exterioriza em cada jogo e com cada brinquedo:
"a criança expressa suas fantasias, seus desejos e suas experiências de um modo
simbólico por meio dos brinquedos e jogos. Se desejamos compreender corretamente o jogo da criança em relação com a conduta total durante a sessão de análise,
devemos desentranhar o significado de cada símbolo separadamente. O psicanalista deve mostrar repetidamente os diferentes significados que pode ter um
simples brinquedo do fragmento de jogo". Há uma predominância do significado
em detrimento da escuta significante.
Que conseqüências produz esta abordagem do brincar em psicanálise? Em
primeiro lugar, o surgimento da noção de técnica com uma força inusitada até
então. Para Freud, a única regra técnica foi a associação livre, decorrente da
sobredeterminação do inconsciente. Freud só pensou na possibilidade de uma
psicanálise na ordem da palavra. A técnica, na obra de Freud, sempre foi subsidiária
da teoria do inconsciente. A partir da abordagem kleiniana existe uma proliferação
do enquadre e da técnica: estabelecem-se as características das interpretações, ir
44
UETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9
Questões sobre o brincar
às angústias mais profundas e começar bem no início. Catalogam-se os tipos de
brinquedos, a sala, e até a própria conduta do analista, que teve como efeito a
standarização da psicanálise com crianças. A questão do brincar nesta teoria se
sustenta no desejo do analista. Existe uma demanda à criança para que brinque,
mas esta demanda é o equivalente da demanda de associação livre em toda análise
com o adulto. É o dispositivo encontrado para dirigir a cura. Se a análise continua
é pelo desejo do analista envolvido.
O analista está identificado com uma posição de saber, sustentado na interpretação baseada no simbolismo do jogo. O simbolismo está caracterizado pela
constância na relação entre o símbolo e o simbolizado inconsciente. O analista
reconhece nos objetos e situações do brincar uma relação fixa com os elementos
essenciais do inconsciente.
Em Melaine Klein, o simbolismo e a analogia substituem a palavra do paciente:
"Melaine Klein interpretou que a viagem de recreio das crianças a D. significava
que elas também desejavam realizar algum ato sexual, como os pais o faziam ...
Ao final tudo terminou num 'desastre'. M.K. interpretou ainda seu medo de que a
análise pudesse terminar num desastre, o que seria culpa dele, da mesma maneira
como sentia ter sido culpado pelo mal causado à mãe".
"Richard ficou profundamente impressionado pela interpretação de Melaine
Klein manifestando surpresa de que suas brincadeiras pudessem traduzir seus
pensamentos e sentimentos"1.
Melaine Klein utiliza a interpretação do jogo mesmo na ausência da palavra. O
efeito (estranho) é de escutar um analista que sabe sem que o outro fale. Há uma
precipitação baseada num saber já constituído.
Anna Freud, numa posição contrária, considera o brincar uma questão secundária no marco de sua teoria e técnica em Psicanálise de Crianças. Sua preocupação
é a entrada do pequeno sujeito no dispositivo analítico, a partir de um "treinamento"
no qual o analista opera enquanto educador. Quando a criança entra no trabalho de
análise, sua técnica consiste na interpretação dos sonhos, dos devaneios e dos
desenhos. O brincar e a colocação de brinquedos, fundamentais na teoria kleiniana,
são para ela métodos substitutivos e contingentes na análise com uma criança. Ela
marca sua discordância do simbolismo que utiliza Melanie Klein com relação ao
brincar na sessão. O importante para Anna Freud é o fato da criança estar em
transferência, ou seja, numa vinculação tal com o analista que possibilite sua
intervenção e a interpretação — "a análise de criança exige muito mais dessa
vinculação do que no caso da análise de adultos". Assinala a diferença de técnica
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
45
Questões sobre o brincar
com Melaine Klein para quem a criança é um sujeito em análise, sendo o brincar
a atividade mediadora para abordar o inconsciente.
Winnicott retorna ao brincar numa perspectiva diferente. Sua concepção está
intimamente ligada e fundamentada nos fenômenos e objetos transicionais e, como
elemento indispensável, está a ilusão. "Os fenômenos transicionais representam as
primeiras etapas do uso da ilusão". Há um tempo não só cronológico mas lógico
no qual se constitui entre o bebê e a mãe a "zona" da ilusão que "é a função principal
do objeto e do fenômeno transicionaP. É importante destacar o entre-dois representado por este objeto. Ele é o suporte de uma mediação simbólica entre a mãe e
a criança. A partir de Lacan, podemos dizer que o objeto transicional representa a
emergência do desejo no campo do Outro. Enquanto encontro de duas faltas, a da
mãe e da criança, não há complementação possível. O objeto transicional não tem
valor em si mesmo, mas no seu uso, que é simbólico. É o objeto que permite
simbolizar a ausência da mãe e presentificar a primeira experiência de brincar.
Winnicott pensa o brincar em análise, não pela via de seu conteúdo a ser
interpretado, senão enquanto ato: é um fazer que tem um lugar (o espaço intermediário entre mãe e criança) e um tempo lógico para sua constituição. Ele tem
um valor universal: "ao psicanalista tem que resultar-lhe valioso que se recorde a
cada instante, nãp só o que se deve a Freud, senão também o que lhe devemos a
essa coisa natural e universal que chamamos jogo". É inerente à constituição de
todo sujeito e portanto inscreve a criança no campo da criatividade e da cultura.
Ou seja, no campo da linguagem, o jogo aparece em análise não enquanto técnica,
mas como fazer necessário a toda direção possível de uma cura.
Desde uma outra perspectiva, para Freud e para Lacan, o brincar é um fazer,
efeito da estruturação significante do sujeito. Poderíamos abordá-lo como linguagem e discurso determinado por uma ausência que insiste repetidamente, mas
também enquanto ato da ordem do tiquê, do mal encontro do Real.
Foi Freud quem nos legou a observação fundamental do jogo do Fort-Da,
enquanto jogo de presença-ausência, no qual uma criança constrói as primeiras
simbolizações. Destaca a repetição significante nos balbucios de seu neto de vinte
meses. É aqui onde se articula o brincar e a palavra, num jogo opositivo dos
fonemas Fort e Da. Existe uma diferença mínima que implica todas as possibilidades operatórias da linguagem; uma criança se debate com uma perda, a do
objeto amado (mãe).
Esse jogo do carretei representa o momento crucial na estruturação da criança,
enquanto sujeito do inconsciente; sua posição é questionada na dialética da pre46
LETOA FREUDIANA-Ano X - n ' 9
Questões sobre o brincar
sença-ausência. Do ensino freudiano sustentamos que é no jogo e pelo jogo que o
sujeito "elabora sua situação penosa" e se inscreve na ordem da linguagem. Esta
situação penosa está implicada na natureza humana. O filho do homem nasce numa
situação de desamparo. Este estado é inerente à prematuridade do ser humano,
colocando o pequeno ser numa relação de dependência total frente ao Outro
representado pela mãe. Quando o neto de Freud brinca de estender o carretei com
sua recuperação ulterior, algo operou-se nele, para passar de sua posição de objeto
dependente e se aventurar no domínio da perda do objeto, imaginá-lo como faltante.
Não se deve pensar o jogo do Fort-Da como um jogo onde a criança ganha em
autonomia e em domínio. Na verdade, é a estrutura do signif icante que se lhe impõe.
Lacan destaca neste jogo de desaparição-reaparição o momento em que a criança
nasce para a linguagem, É a primeira posição lacaniana sobre o brincar na criança,
trabalhada na ordem do autômaton, da repetição significante. O brincar presentifica, e aqui está o ponto de articulação com Winnicott, a entrada do sujeito no
simbólico e na cultura. É justamente no jogo que a criança recebe e se compromete
com o sistema lingüístico exterior a ele, reproduzido aproximadamente como Fort
e como Da. É na oposição de dois fonemas que, num mesmo ato se aniquila a coisa
e se perde o objeto. Instaura-se uma falta no simbólico. A palavra, o símbolo, nasce
sobre o fundo da ausência: "o símbolo se manifesta como morte da coisa, e essa
morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo"2.
Assim como o jogo é uma mediatização na relação com a mãe, também funciona
como simbólico na constituição da realidade.
A criança que brinca cria um mundo de fantasia ao qual se submete, mas também
mantém uma separação entre ele e a realidade. Existe um delicado equilíbrio que
só pode ser sustentado por uma atividade simbólica. A relação com a realidade é
conflitiva. Por isso Freud e depois Lacan prestam atenção aos elementos intermediários do real. O real é o que se perde no gozo, e o gozo supõe a existência de
corpos. Há aí algo que resta impenetrável, que não fala e foge de todo discurso. É
a impossibilidade. O jogo vislumbra o desejo que não vai ser satisfeito e tenta
corrigir uma realidade insatisfatória; mostra a impossibilidade e seu retorno.
Lacan, com a teorização do objeto a, que se perde na repetição, esse objeto
condensação de gozo e causa de desejo, outorga à questão do brincar uma outra
dimensão. Além do jogo significante, do jogo articulado à palavra na sua vertente
simbólica, o aborda pelo tiquê, pelo encontro sempre faltoso com o real. É o brincar
como ato que se repete na análise destacando o valor do carretei, o brinquedo que,
enquanto a, não representa a mãe, mas é o próprio sujeito que se realiza como
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
47
Questões sobre o brincar
objeto nesse ato: "é a repetição de sua saída, como causa de uma Spaltung no
sujeito, superada pelo jogo alternativo Fort-Dani.
Esse carretei "é alguma coisinha do sujeito" que representaria aquilo destinado
a cair. O carretei, enquanto objeto a estaria na lógica de Lacan, no lugar hipotético
da intersecção de duas faltas, do sujeito e do Outro.
(3i)
carretei (por extensão, o brinquedo)
Esse objeto, portanto, não tem em análise função de tampa, mas é presença de
um vazio ocupável por não importa que objeto. Sua posição serve de ponte do real
ao simbólico, possibilitando a entrada do sujeito na estrutura significante sem cair
fora da cena: "é com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio"4.
O brinquedo como suporte do objeto a permite trabalhar na direção da cura o
registro do real, fazendo nó com o simbólico e o imaginário. O simbólico, enquanto
discurso estruturado na cadeia significante que, em sua repetição, fala algo da
verdade do sujeito; o brincar e o brinquedo operando como Reprâsentanz da
Vorstellung que instaura o sujeito. Lacan interpreta o jogo fora da ordem da
significação, da Vorstellung. Ela até pode vir depois. O Reprâsentanz é o fundante
que denota a Spaltung do sujeito, sua barra, sua alienação. É o significante que
representa o sujeito para outro significante.
O Registro do Imaginário é o que dá consistência ao brincar. Aqui interessa o
corpo nas suas encenações: a materialidade do brinquedo reflete e se confunde com
o corpo da criança. Nesse registro o corpo do analista é demandado a incluir-se no
espaço do brincar.
A abordagem kleiniana, na qual é evidente o fascínio que produz nos analistas
o brincar, privilegia a dimensão do imaginário: "para ser psicanalistas de crianças
é necessário conhecer e brincar suficientemente um amplo número de jogos —
xadrez, damas, baralhos, etc. Devem conhecer personagens e as historinhas mais
lidas pelas crianças, o que leva ao conhecimento das revistas infantis, lembrar os
contos infantis e ter reflexionado sobre seu significado"3.
Para uma clínica que articule a dimensão do discurso analítico, não seria preciso
demandar à criança que brinque. É a estrutura que se impõe na análise como
específica de uma criança, no momento particular de uma transferência e compromete os três registros da experiência analítica.
48
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
Questões sobre o brincar
NOTAS
1. Klein, Melaine. Narrativa de uma análise de uma criança.
2. Lacan, Jacques. Função e Campo da Palavra e da Linguagem.
3. Lacan, Jacques. Seminário XI:
Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise.
4. Lacan, Jacques. Seminário XI:
Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise.
5.Aberastury, Arminda. Teoria y Técnica en Psicoanalisis de Ninos.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Anna.
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
49
A interpretação e o ato
na psicanálise com crianças
Beatriz Siqueira
Sofia Saruê
Vera Vinheiro
O
Psicanalista, a partir de uma ética, ética do seu desejo de analista, e
conduzindo-se dentro de uma estratégia — a da transferência — coloca
em ação uma tática, cabendo aqui seus atos e interpretações. O ato do
analista, portanto, só se dirigirá à cura, se for feito a partir da ética do seu desejo,
pois o seu ato tem conseqüências.
A criança, em seu processo de análise, tem que poder se situar em relação ao
lugar que ela ocupa no desejo dos pais, repetindo, na transferência, os buracos da
demanda do Outro. A mãe é vista inicialmente pela criança como sendo o Grande
Outro, possuidor do saber e da verdade, e a criança passa a ser objeto a no fantasma
da mãe. A criança, muitas vezes, faz, com seu sintoma, uma delimitação do que
não está bem dito no par parental.
Uma Clínica:
Uma criança de 9 anos, adotada, cujos pais não sabiam como lhe dar a notícia
da adoção, e cujo sintoma era pânico diante do afastamento da mãe, ao longo de
seu processo de análise, repetiu diversas vezes a mesma história:
— "Na minha casa tem muitos bichos, tem galinhas, patos e marrecos. A
marrequinha botou ovo, mas quem está chocando é a galinha. A marreca não quis
chocar os ovos. Todos os dias, eu via a galinha chocando os ovos da marreca. Já
nasceu um monte de marrequinhos que a galinha chocou".
—Analista: Quem você acha que os marrequinhos vêem como sendo a mãe —
a marreca ou a galinha?
— "A galinha, é claro, pois foi ela que chocou eles e depois criou".
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
—Analista: Mãe, então, é a que choca e cria...
— "É".
A analista sublinha no discurso desta criança aquilo que lhe retorna do discurso
dos pais, pois, através dos seus bichinhos, esta criança está abordando, em última
instância, a questão de sua origem —sua adoção.
Na análise com crianças, trata-se de levar a criança a separar-se de um lugar de
alienação, de um lugar de objeto no fantasma materno e dirigi-la à construção de
seu próprio fantasma.
Na clínica, a operação de passagem da alienação à separação já se inicia a partir
do momento em que a criança tem que deixar a mãe na sala de espera e dirigir sua
demanda ao analista, enquanto Outro.
Lacan, em seu Seminário As Formações do Inconsciente, aborda o Complexo
de Édipo teorizado por Freud, dividindo-o em três tempos: o 1° tempo, tempo
mítico, da metáfora paterna e da primazia do falo. A criança neste momento é
desejo do desejo da mãe. O 2a tempo é o do pai privador, e o 3" tempo é o do declínio
do Édipo e formação do ideal do eu.
No 2a tempo, Lacan nos diz: "... é uma mensagem sobre uma mensagem: uma
proibição, um não. Dupla proibição. Com respeito à criança: não deitarás com tua
mãe. E com respeito à mãe: não reintegrarás teu produto. Aqui o pai se manifesta
enquanto Outro, e a criança é profundamente sacudida em sua posição de sujeição:
o objeto do desejo da mãe é questionado pela interdição paterna"1.
Uma Clínica:
B.éum garoto de sete anos que é trazido para análise por não ter conseguido
alfabetizar-se. É o primeiro de dois filhos de uma mãe pedagoga que, embora
reconheça a inteligência do filho, quase não o deixa "respirar sozinho". O pai,
ciente do autoritarismo da esposa, assiste a tudo de camarote achando ser apenas
uma "questão de escola " o fato do filho usar somente o primeiro sobrenome, o da
mãe.
Nas entrevistas preliminares, B. demonstrou ser muito esperto, tendo optado
por permanecer no mesmo lugar, junto à barra da saia da mãe, sem passar ao
mundo dos letrados.
Nas sessões, B. insistia em sentar no lugar da analista, chegando, por vezes, a
sentar-se no seu colo. Durante um certo tempo, houve uma tentativa de questionálo a respeito desse lugar que queria ocupar. Pouco pôde ser dito e permanecia a
repetição.
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LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
Numa sessão, B. entra correndo e senta-se na cadeira da analista, esconde o
rosto epede: — "Deixa, vai". A analista faz com que ele saia do seu lugar. B. sai,
mas diz: "Não tem lugar marcado " — "Onde não tem lugar marcado ? " questiona
a analista — "Aqui", respondeB. — "Aqui?" espanta-se a analista e afirma —
"Aqui tem lugar marcado, sim".
B. vai para a mesa e propõe, pela primeira vez em sua análise, o jogo da velha,
jogo no qual são dois os jogadores, mas onde há um terceiro, a velha, na cena.
Na seqüência do jogo, cada vez que a velha ou a analista ganham, B. tenta
modificar o resultado pondo seu "X" no lugar do círculo da analista. A analista
marca que isso não pode ser feito, que o lugar não pode ser alterado. A "velha "
ganha então o jogo, eB. aceita.
A função do analista introduz o terceiro na cena, num processo que visa privar
a criança do objeto do seu desejo e a mãe do objeto fálico.
A questão edípica é central na psicanálise com crianças; portanto, a direção da
cura terá que apontar para o 3 a tempo do Édipo, colocando uma barra no Outro,
tanto em relação ao saber quanto ao gozo.
Lacan, no Seminário do Ato Psicanalüico, nos diz: "o psicanalisando no início
pega seu bastão, enche sua sacola para ir ao encontro, ao ponto de encontro do
sujeito suposto saber"2. É, portanto, via transferência, que o analista poderá operar
com seus atos e interpretações pois, "fora disto que chamei manipulação da
transferência, não existe ato analítico ... O sujeito como tal e que se chama
inconsciente está dentro da psicanálise, posto em ato"3.
Em 1953, no texto "Informe de Roma", Lacan introduz a idéia de que a
interpretação em psicanálise pode ser uma pontuação. O analista trabalhará pontuando o discurso do sujeito, no sentido de articulá-lo numa cadeia significante,
colocando o inconsciente em ação.
No final dos anos 50, como nos diz Eric Laurent, a "clínica da psicose e a
psicanálise com crianças teriam uma influência preponderante sobre o dispositivo
analítico da interpretação, até o ponto em que já nada havia que separava uma
interpretação de qualquer outra intervenção do analista"4.
Lacan define a interpretação, nessa época, como sendo um dizer esclarecedor,
opondo-se ao insight inglês, que é uma concepção da interpretação centrada em
um fenômeno de visão e que dá margem a tudo o que pode ser imaginário.
A criança, com seu discurso mais metonímico, com seu brincar incessante, nos
traz questões. Ela age mais, seus discursos associativos são mais reduzidos, seus
desejos são exteriorizados e dramatizados de forma lúdica. Como intervir? Como
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
interpretar? Pensamos que o analista, ao intervir na análise com uma criança,
pontua um texto para que a metáfora, além da metonímia, também se coloque.
Essas pontuações não são necessariamente palavras, podendo ser puros cortes.
A interpretação, na teoria Lacaniana, não é da ordem de uma técnica, pois ela
produz o corte que institui o sujeito e aponta para a causa do desejo. Ela visa o
surgimento de algo novo para o sujeito, sendo que o enunciado que responde a esse
modelo é o que está entre enigma e citação.
Uma Clínica:
J. é uma criança que se atrapalha em corresponder ao que os pais lhe
demandam: "Seja o craque! Seja o melhor!". Ele se atrapalha porque, na
escolinha de futebol, embora J. tenha um bom estilo reconhecido por todos, não
consegue ter um bom desempenho ao jogar uma partida de verdade, fato este que
irrita muito os seus pais.
Esta situação se repete também em casa, pois existe uma expectativa de
organização, uma expectativa em torno dos filhos que "deram certo" (já que a
mãe é educadora). J. foge a isso, colocando-se como o inquieto, desorganizado,
embora tente, de todas as formas, corresponder a essa expectativa.
Num momento de sua análise, a analista diz a J.: "quero que me pague com
parte de sua mesada ". J. fica irritado diante deste ato da analista, pois não quer
perder nada, embora tudo o que faça seja perder: perder no futebol, perder
passeios por causa de seu comportamento, etc. Diante dessa reação, a analista
não cede, repetindo a demanda de que ele pague com sua mesada. Ele recusa-se
apagar dizendo: "Estou aqui há 3 anos. Não venho mais. Tomei uma decisão",
ao que a analista responde: "Trabalhe!" Como resposta, J. propõe um enigma.
"É uma frase sem pontuação e que tem que ser pontuada —deixo meus bens à
minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres
—o jeito como você vai pontuar vai dizer para quem ficará o dinheiro: separa a
irmã, o sobrinho, os pobres ou para o alfaiate". A analista diz: "Então pontue".
EJ. responde: "Acho que vai para o alfaiate". E pontua —"Deixo meus bens à
minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais será paga a conta do alfaiate. Nada aos
pobres".
Aqui o enigma se coloca no ato do analista ao dizer "quero que pague com sua
mesada", ato este cujo efeito no paciente é fazê-lo dizer que há uma conta a ser
paga. Cabe à analista executar e cobrar, para que o paciente, ao "perder",
pagando a análise, possa começar a sair do lugar daquele que sempre perde.
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
A interpretação é um meio dizer, e, como tal, não explicita, mas aponta na
direção do horizonte desabitado do ser. A interpretação é um dizer privilegiado
que sustenta a causa no caminho da verdade; ela revela um dizer proveniente do
Real como não todo.
A operação do analista é possibilitar a emergência do desejo, fazendo aparecer
um dizer que se apresenta como inarticulado.
Colette Soler afirma que, quando o sujeito se reconhece no que o analista diz,
não se trata de uma interpretação, pois esta divide, e não reassegura as identificações. Ela faz surgir um "que quer dizer isso?" tornando assim presente o Che Vuoi!
Uma Clínica:
Ainda um exemplo sobre J.: Numa determinada sessão, ele faz um desenho e
conta uma estória:
— "Tinha um homem que ia se livrar do castelo. O reifez uma armadilha. Botou
um monstro e ele ia se assustar. O homem não queria mais entrar e saiu correndo.
Os homens do rei ficaram felizes. Fizeram aqueles jantares que os reis fazem. O
homem pensava que o rei tinha pegado a mulher dele ". J. diz à analista que é o
rei nessa estória e completa: "sou o melhor do futebol na Ia série, mas não sou o
Rei Pele".
Nesse momento a analista corta a sessão, para que se presentífique o Che Vuoi,
e possa retornar aJ. a questão que lhe vem do Outro: "O que o Outro quer de
mim?"
Poderíamos acrescentar que o material que a criança produz em suas sessões de
análise—seus desenhos, estórias, jogos, etc.—constituem, muitas vezes, interpretações que apontam a dar um sentido ao que do Real se apresenta no trauma.
Uma Clínica:
D. de nove anos, insere-se numa trama familiar, onde as funções paterna e
materna são muito confusas, sendo que a mãe, por diversas vezes, refere-se ao pai
como a um terceiro filho. Ela, com seu sintoma, sustenta a ambigüidade do casal
parental permanecendo, no entanto, aí enredada.
Numa sessão D. desenha essa situação: Faz duas árvores, sendo que uma, como
diz, tem mais galhos e a outra tem menos. Procura, então, a cor mais forte e
brilhante para pintar a rede que fica amarrada entre as duas árvores. Ao ser
questionada pela analista sobre quem ficará na rede, D. desenha uma menina.
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
Com o corte da sessão, ela dobra o desenho e o deixa noporta-lápis da analista,
dizendo que tem que ficar ali até a próxima sessão.
D., em análise, ilustra com sua produção o lugar que ocupa na trama familiar.
No Seminário do Ato Psicanalítico, Lacan nos diz: "O analista não pode fingir
esquecer que seu ato é ser causa de um processo"3.0 ato analítico tem um cunho
de ficção, uma vez que ele acontece a partir de um saber suposto, sendo, ao mesmo
tempo, através da escansão provocada pelo ato do analista, que o sujeito poderá ter
acesso a um saber no lugar da verdade.
O ato sintomático que acontece numa análise é o ato falho, que vai revelar a
verdade do sujeito. No brincar da criança, o analista deverá estar atento às falhas
que aí se apresentarão, pois o brincar articula e contorna o gozo e a repetição,
realizando-se sob o fundo da perda.
Uma Clínica:
D., de quem já falamos anteriormente, coloca sua questão já na primeira
entrevista: Trata-se de saber sobre duas pequenas letras perdidas no desenho,
"m " e "f", o masculino e o feminino.
Quase um ano depois, ela recorta um coração onde desenha sua mãe com um
exuberante vestido que deveria herdar aos 8 anos. Ela fez nove anos e ainda não
recebeu o vestido—"Está lá em cima ", diz. Cola um bilhete no coração e o deixa
secar na janela — "num outro lugar", aponta a analista.
Na sessão seguinte, faz um outro coração e desenha seu pai. Compara os
corações e exclama — "É, tá certo, são diferentes". — "Qual i a diferença?"
questiona a analista—"nenhuma ", responde D.—"Nenhuma ? " repete a analista
deforma interrogativa. Ela se assusta ao escutar seu próprio dito vindo do Outro
e diz: — "Minha mãe é alta e magra, e meu pai é baixo e gordo ". Com o corte da
sessão, D. deixa o coração do pai também em outro lugar.
Nesse ato falho, D. revela sua dificuldade em articular suas questões sobre o
feminino e o masculino, face à indiferenciaçüo de seus pais em suas funções.
Na psicanálise com crianças, a repetição aparece muitas vezes sob a forma do
brincar, um brincar incessante. Freud, em seu texto Recordar, Repetir, Elaborar,
afirma que a repetição está para ser interpretada. A interpretação que cabe aqui é
o corte. O analista, com seu ato, corta a sessão, possibilitando ao sujeito circunscrever a repetição e metonimizar.
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
Uma Clinica:
F. é uma criança que chegou à análise com 5 anos. Ele foi encaminhado pela
escola com suspeita de autismo, pelo grande isolamento que apresentava e,
principalmente, pelo seu silêncio. Ele sabia falar, mas pouco falava. F. vivia num
clima de rivalidade e oposição entre os pais que brigavam por seu intermédio.
No início de seu tratamento, F. repetia a mesma brincadeira e a mesma frase:
"É uma guerra", e arrumava a guerra com alguns bonecos, esta cena se repete
seguidamente até que, numa sessão, quando ele arrumava os bonecos, a analista
derruba-os surpreendendo-o e diz: "Essa, acabou. "A analista, com seu ato corta
a sessão. Nas sessões seguintes, o paciente traz suas questões não mais repetindo
a guerra, mas podendo falar, desenhar, brincar. O ato psicanalítico fez com que
o discurso do paciente prosseguisse, como também sua investigação, nesse caso
particular, para saber quem tem o falo.
A partir do estudo da brincadeira do Fort-Da, Freud conclui, em seu texto de
1920 Mais além do Princípio do Prazer, que "as crianças repetem experiências
desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão poderosa
muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente
experimentando-o de modo passivo. Cada nova repetição parece fortalecer a
supremacia que buscam. Tampouco podem as crianças ter suas experiências
agradáveis repetidas com freqüência suficiente, e elas são inexoráveis em sua
insistência de que a repetição seja idêntica"6.
Lacan, nos Escritos, declara que Freud, numa intuição genial, apresentou-nos
esses jogos de ocultação, para que neles reconhecêssemos que o momento em que
o desejo se humaniza é também o momento em que a criança nasce à linguagem.
O jogo do carretei é a primeira aparição da ausência da perda simbólica de um
Grande Outro. O Fort-Da fala da falta da mãe, não sendo somente de sua
simbolizaçâo que se trata, mas também do que cai, enquanto Real, do campo do
Outro. Esse jogo é a resposta do sujeito à ausência da mãe. Trata-se de fazer valer
a hiância, de dar conta deste objeto que cai e do que, no jogo, se realiza da própria
perda do sujeito. Esse objeto é real, sendo que o Fort-Da, enquanto repetição,
articula o simbólico e o real. A impossibilidade de repetir o mesmo aí se coloca;
há sempre, na repetição, algo de novo que se produz e, como objeto a, é chamado
a ser cedido.
A repetição é um ato, no qual o que se faz é mais uma vez perder. O brincar,
numa análise, vai por essa via.
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
O brincar na psicanálise com crianças, portanto, não é um brincar qualquer, um
brincar sem conseqüências, pois ele comportará a verdade do sujeito e deverá ser
lido no campo da articulação significante.
O brinquedo, na análise, dá suporte, dá corporeidade a esse objeto cessível,
aquilo que está para se perder (ex. caso F.). A análise é um trabalho de perda, que
se faz através do objeto; é fazer do objeto um certo instrumento para que a perda
aconteça.
O analista, que está atento a esse brincar, intervém com seu ato, algo como um
despertar que coloca o ponto de emergência do objeto a como causa do desejo.
Uma Clínica:
L. é o filho mais velho que reagiu muito ao nascimento de sua irmã. A mãe diz
aflita que ele não "desgruda" dela e da irmã, que não tem amigos, que ninguém
o convida para nada, e que ela percebe que algo não está bem. A mãe diz ainda
que ele se coloca como aquele que nunca sabe nada, como uma "porcaria ", e a
irmã como "a melhor coisa do mundo". Ele diz sempre: "eu não sei, mas minha
irmã sabe".
L. sempre que vem à análise faz, em cada sessão, um teatro, encenando, a cada
vez, estórias novas. L., ao brincar de teatro, vai desenrolando o fio de sua estória,
e trazendo, na transferência, suas questões. Em suas peças, L. vai oscilando o
lugar que ocupa: ora ele é a vítima, ora o carrasco. A partir de sua análise, o clima
constante de competição em casa diminui bastante e L., começa a se desligar um
pouco do par irmã-mãe. Ele agora quer descer para brincar no prédio e está
conseguindo fazer amizades com outros meninos, aponto de ser convidado para
passar o fim de semana fora.
Através da oscilação dos discursos do Senhor e do Escravo, de vitima ou de
carrasco, metaforizados em suas brincadeiras de teatro, pôde-se barrar o seu
gozo, que estava amarrado nopar mãe-irmã, fazendo, assim, circular o seu desejo.
O ato está sempre ligado à determinação de um começo lógico: ele é um dizer
e, como tal, articula-se à interpretação.
A interpretação e o ato do psicanalista tem a estrutura de corte, pois eles
acontecem num repente, a partir do "não penso" do analista. O seu efeito vai ser
vivido num a posteriori e, a partir daí, o analista irá construir a particularidade de
cada caso.
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
Uma Clínica:
R., de 12 anos, com sintoma de gagueira, inibição e timidez excessivas, e de
dificuldade de fazer amigos, começa sua análise onde ele nada fala. Inicialmente,
a analista insistia, demandando-lhe sua palavra efazendo-lhe várias perguntas.
Como R. continuava sem conseguir colocar suas questões, a analista passou a
cortar após os primeiros minutos da sessão sempre que ele se recusava a falar,
mandando-o voltar no dia seguinte. Esses atos da analista, ela pôde fazê-los a
partir da instalação da transferência. Após uma semana em que ele insistiu em
dizer "não tenho nada para falar hoje " e, por isso, teve que virá análise todos os
dias da semana, sua questão finalmente se coloca e ele diz: "não sei por que eu
me sinto tão mal na escola, na minha turma. Acho que é porque eu não consigo
falar com ninguém..." Na sessão seguinte ele se deita e diz: "hoje eu quero falar
sobre a minha gagueira ".
A analista, neste caso, não cedendo sobre seu desejo, e atuando a partir de um
"não penso", pôde ver, num aposteriori, o efeito de seus atos pois, somente a
partir deste momento, a análise deste paciente pôde finalmente deslanchar.
O analista age com seu ser, e o seu ser é o des-ser. A ação é a colocação em ato
da falta — a — ser. A ação do analista é espinhosa na medida em que o ser está
em jogo iia causação da transferência. Não há regras porque a questão não é de
técnica, mas de ética.
"Nunca seria demais chamar os psicanalistas a meditarem sobre a especialidade
da posição que acontece será deles, de dever ocupar um lugar bem outro que aquele
onde são requisitados ... ainda assim, é do ponto de vista do ato que eles têm que
centrar sua meditação sobre a sua função"7.
NOTAS
1. Lacan, J. Las Formaciones dei Inconsciente.
2. Lacan, J. O Ato Psicanaltiico — Lição do dia 24/01/68.
3. Lacan, J. O Ato PsicanalUico — Lição do dia 15/11/67.
4. Laurent, E. Concepciones de Ia Cura en Psicoanalisis, p. 20.
5. Lacan, J. O Ato PsicanalUico — Lição do dia 29/11/67.
6. Freud, S.Além do Princípio do Prazer, p. 52.
7. Lacan, J. O Ato PsicanalUico — Lição do dia 24/01/68.
LETRA FREUDIANA - Ano X-n" 9
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A interpretação e o ato na psicanálise com crianças
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60
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
O despertar da primavera ...
um tempo lógico
Aríete Garcia Lopes
Sofia Saruê
O
termo adolescente etimologicamente vem do latim adolescere, que significa crescer, brotar, fazer-se grande e surgiu em português, espanhol e
italiano no século XV. Conceitualmente é definido como um período de
desenvolvimento biopsicossocial que se situa entre a infância e a maturidade. Em
Freud encontramos os termos jovem, escolar, puberdade e adolescente, para
designar o tempo após a latência. Lacan, por sua vez, fala em puberdade no seu
texto sobre Hamlet, designa por moça (jeune filie) a paciente de Freud, no Caso
deHomossexualismo numa Mulher, e refere-se às raparigas na tradução portuguesa
do texto escrito para a encenação da peça O Despertar da Primavera de Frank
Wedekind.
Pensar este tempo nomeado de tantas formas é começar se perguntando, se este
momento seria uma reedição da primeira onda das pulsões parciais ou haveria um
novo dado que daria uma configuração específica a este momento.
Com Lacan aprendemos a considerar a sincronia e a diacronia, como formas de
estruturação e com Freud, a dar importância à sexualidade infantil e a considerar
o traumatismo sexual da puberdade, como um après coup da sedução precoce da
criança. No entanto, tanto em Freud como em Lacan encontramos uma importância
crescente do traumatismo na puberdade para a gênese da perversão, ou seja, uma
perturbação no momento da escolha do objeto sexual.
Além disso, culturalmente a adolescência é comumente dita fase difícil ou, como
assinala o título de um texto de Serge Cotttet, Puberdade Catástrofre. Qual a
catástrofe que este tempo evoca?
Freud nos Três Ensaios sobre a Sexualidade1, recorre à metáfora da perfuração
de um túnel iniciada simultaneamente pelas duas extremidades, para ilustrar o
processo da puberdade. Se por um lado podemos falar na reedição das pulsões
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
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O despertar da primavera... um tempo lógico
parciais da infância, por outro lado, há um dado novo que se impõe com o primado
da genitalidade ou, com Lacan, com o encontro com o real do sexo. Retomando a
metáfora freudiana, podemos dizer que esta imposição tem a força de uma
perfuração.
Encontramos nos escritos de Octávio Fernandez Mouján2, teórico e clínico
argentino, que o período da adolescência ilustra o fenômeno do luto. Para ele, a
adolescência é um processo, onde cada período é marcado por onde o luto se
centraliza — na puberdade o luto se centra no corpo como objeto, na adolescência
média há o luto da bissexualidade com a resolução do conflito edípico genital e na
adolescência tardia, o luto dos papéis sociais.
É interessante notar que uma das primeiras referências de Freud ao luto, é feito
em um comunicado de 19103 a respeito da questão do suicídio entre os escolares.
Tomando esta via, nos perguntaríamos como Lacan no texto Hamlet de 19594:
"Dizem-nos que o luto se efetua em razão de uma introjeção do objeto perdido,
mas para que o objeto possa ser introjetado, há uma condição preliminar, é que seja
constituído como objeto. Como é que o objeto acaba por se constituir como tal?"
e mais ainda, de que objeto se trata?
Retornando ao Complexo de Édipo em Freud, Lacan nos diz que é o falo, a
chave do Declínio do Édipo, o falo ainda não simbolizado e que é ao final do círculo
da sua relação com o Campo do Outro, o campo do simbólico, que se produz a
perda do falo experimentada como tal, radical. Desta forma o "Édipo entra no seu
declínio do mesmo modo em que o sujeito deve fazer o luto do falo"5. O sujeito
responderia à exigência do luto com sua textura imaginária, quer dizer, sobre o
plano imaginário a falta como tal é representada sob uma forma velada, sob a forma
de -<p.
Lacan nos diz mais: "Esta falta é a reserva, o molde, a partir do qual o sujeito
terá que remodelar e assumir a sua posição na função genital"6.
É na distinção das funções de castração, frustração e privação onde procura
esclarecer a questão do objeto genital. Na castração simbólica o sujeito é castrado
ao nível da sua posição como sujeito falante e não ao nível do seu ser. É na privação,
que tem como exigência lógica a castração simbólica, pois incide sobre o falo
simbólico, que o sujeito é castrado ao nível do seu ser.
Mas o que poderia querer dizer privação ao nível do ser ou perda do falo
simbólico? Lacan nos explica dizendo: "Há um plano, o plano imaginário, onde o
sujeito é idêntico às imagens biológicas que o guiam e que constituem para ele o
sulco preparado do seu behaviour. Ora o que o deve seduzir em todas as vias da
62
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
O despeitar da primavera... un
voracidade e da copulação encontra-se subtraído a esse plano. É o que faz do sujeito
algo de realmente privado"7. Ou seja, na função da privação, o sujeito castrado
simbolicamente faz o luto do falo enquanto sujeito do desejo, que é de não o ser.
É por isso que Lacan nos fala que a sexualidade "cava um buraco no real"8, longe
da posição que supõe a genitalidade como um momento de confluência das pulsões
parciais.
O buraco cavado no real, trazido por Lacan, se encontra com a imagem que faz
Freud nos Três Ensaios sobre a Sexualidade, onde a puberdade está colocada como
a "conclusão de um túnel cavado através de uma montanha, a partir de ambos os
lados*9.
O despertar da primavera, como escolhemos chamar este momento lógico, é o
momento de retorno das pulsões parciais, por intermédio das quais a sexualidade
exerce sua atividade. Este despertar, despertar dos sonhos, não é feito senão pela
demanda do Outro, onde o sujeito é chamado a gozar do objeto de amor.
No psiquismo não há nada que responda às questões sobre a polaridade sexual,
reenviando o sujeito para o Campo do Outro, o campo da cultura e é a relação ao
Outro, como Lacan diz no Seminário XI que "faz surgir o que representa a lâmina
— não a polaridade sexuada, a relação do masculino ao feminino, mas a relação
do sujeito vivo com aquilo que ele perde por ter que passar, para sua reprodução,
pelo ciclo sexual"10.
Privado no ser, com um buraco cavado no real, o sujeito parte do impossível da
relação sexual, para o possível do gozo sexual. Contrapondo o mito de Aristófanes
ao que a experiência analítica nos ensina, Lacan nos diz que não é a sua metade
sexual que o vivo procura no amor, mas sim a parte para sempre perdida dele
mesmo, que é constituída pelo fato de ser apenas um vivo sexuado. E é nos jogos
do amor, que o sujeito do tempo do despertar da primavera, tenta dar conta da dor
da privação do ser.
O Despertar da Primavera é uma peça do dramaturgo alemão Frank Wedeking,
escrita em 1891 e que Lacan comenta em 1974, para o programa da encenação
dirigida por Brigitte Jacques.
A peça tem o subtítulo de Uma Tragédia da Juventude e é dedicada pelo autor
ao Homem Mascarado, personagem que aparece na última cena.
Lacan coloca que o dramaturgo antecipa Freud largamente, que nessa época,
cogita ainda o inconsciente e sua estrutura.
A peça gira em torno do despertar dos impulsos sexuais dos jovens. Seus
personagens principais são Wendla, Melchior, Moritz e o Homem Mascarado.
LETOA FREUDIANA-Ano X-n« 9
63
O despertar da primavera... um tempo lógico
A primeira cena mostra Wendla experimentando um vestido feito pela mãe para
seu aniversário de quatorze anos. Wendla pergunta à mãe por que ela lhe fez um
vestido tão longo, ao que a Sra. Bergman responde que uma mocinha como ela,
não pode mais andar por aí de vestido curto de criança. Wendla diz que preferia
ter ficado com treze anos ou ter logo vinte, saltando, portanto, a época da penitência,
pois o vestido mais longo é chamado por ela de roupão de penitência.
Algumas cenas depois, quando Wendla se torna tia pela terceira vez, pergunta
à mãe como tudo isso acontece, pois não pode mais acreditar em cegonhas. A Sra.
Bergman, depois de muita hesitação e extremamente perturbada, pede à filha que
esconda o rosto em baixo de seu avental e lhe diz que para ter uma criança é preciso
amar o homem com quem se casou. Dito isso, olha para a filha e afirma que sua
saia está curta e que a descerá um palmo assim que tiver tempo, marcando
novamente a passagem da filha de criança à mocinha.
Na segunda cena Melchior e Moritz conversam sobre impulsos sexuais, falando
dos seus sonhos: "pernas com meias azul-claro que subiam por cima da mesa do
professor, dando a impressão que elas queriam montar sobre a mesa"11.
Moritz diz sentir uma angústia mortal desde então, e Melchior responde que já
estava mais ou menos preparado para isso. Relata que um amigo, embora três anos
mais velho que ele, só sonha com tortas de creme e geléia de damasco, concluindo
que não há idade certa para o aparecimento de tais fantasmas (Phantome)i2.
Lacan, no seu comentário à peça, afirma que é somente pelo despertar dos seus
sonhos, que os rapazes articulam o problema que é para eles, fazer amor com as
moças.
É do despertar do sonho com torta de creme e geléia de damasco, para a angústia
mortal que assinala Moritz, que o real se encontra. É para além do sonho, para além
da representação ou melhor, por trás do que tem lugar de representação, que emerge
a pulsão — Trieb por vir. Toda pulsão é por essência pulsão parcial, sendo que
nenhuma pulsão representa a totalidade da tendência sexual.
Podemos assinalar nestas cenas, que a demarcação da puberdade e o retorno das
pulsões parciais recalcadas na latência se faz pela via do Grande Outro, pela sua
demanda, sendo a puberdade não somente uma questão de tempo cronológico.
Ainda na segunda cena, Moritz confessa desconhecer como veio ao mundo,
assim como o que são as coisas indecentes nas quais pensa ao falar com as meninas.
Diz já ter folheado o dicionário de A a Z, encontrando apenas palavras, sem a mais
leve sombra de explicação.
64
LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
O despeitar da primavera... uni tempo lógico
Vislumbramos aí a questão daquilo que escapa à articulação significante—são
apenas palavras, diz Moritz — e da falta de representação no psiquismo do ser
macho ou ser fêmea.
Melchior prontifica-se a falar-lhe sobre a reprodução, mas Moritz disso não pode
ouvir falar, preferindo que Melchior faça suas explicações por escrito, colocandoas entre seus livros, afim de que ele possa lê-las sem querer.
Quando mais tarde Moritz relata haver lido o que Melchior lhe escreveu,
exprime-se assim:"... acho que li a maior parte de olhos fechados. Tuas explicações
soavam aos meus ouvidos como uma série de recordações obscuras, como se fosse
uma canção que em criança se cantarolou para si mesmo com alegria, e que surge
mais tarde no leito de morte na boca de outra pessoa, dolorosamente"13.
Acreditamos ser particularmente feliz, a imagem de ler de olhos fechados
explicações que soam como recordações obscuras, para falar do novo despertar
das pulsóes recalcadas na latência; assim como a imagem da canção cantarolada
com alegria na infância e que ressurge no leito de morte pela boca de outro, para
dar conta do que da sexualidade se articula com a morte.
Moritz, no entanto, está preocupado com seus estudos sobre América Central,
Luis XV, etc., preso na tentativa desesperada de passar de ano, para que seu pai
não tenha um ataque e sua mãe não vá parar no manicômio. Quer responder ao que
acredita ser o que os pais querem dele, tamponando, como falo, a falta do Outro.
Da reprodução, que aponta para o .que perde o ser, ele não pode querer saber.
Já na primeira cena do segundo ato, Moritz marca sua posição, antecipando o
ato de suicídio que virá a realizar: — "Minha garantia é que, vindo a cair, não
haverá outra alternativa: quebro o pescoço de vez"14, diz ele. Não podendo
manter-se como falo, ficando na idéia do tudo, ao qual o menor encontro com o
real faz objeção, Moritz se precipita fora da cena, perdendo literalmente a cabeça
ao dar-lhe um tiro.
É o luto do falo que faz do sujeito algo de realmente privado, resultando desse
processo o objeto a, enquanto objeto cedível que, como nos diz Lacan no Seminário
A Angústia,"... é o princípio do que faz desejar, que me faz desejante de uma falta
que não é falta do sujeito, senão um não apresentar-se feito ao gozo, que se situa
no nível do Outro. É por isso que toda função do a só se refere a essa hiância central
que separa a nível sexual, o desejo do lugar do gozo ..."15.
A ausência do luto do falo em Moritz o precipita no ato, porque o desejo falta e
falta por se achar fundido ao Ideal, já que ele tenta ser feito para o gozo do Outro.
LETOA FREUDIANA-Ano X-n» 9
65
O despertar da primavera... um tempo lógico
Momentos antes do ato trágico e após ter se despedido de uma amiga prostituta,
Moritz diz: "Só seria preciso uma palavra"16. Que palavra seria esta que o salvaria?
Seria o significante da falta, ao qual não teve acesso e que lhe possibilitaria o gozo
fálico?
Já o percurso do outro jovem personagem se faz por outra via. Melchior parte
de que da reprodução ele sabe:"— Poderíamos pensar que o mundo inteiro só gira
em torno de duas coisas: o pênis e a vagiria"17, diz ele. A questão que lhe retorna
é sobre a mulher, sobre qual é o seu gozo. Quando Melchior encontra Wendla na
floresta, pergunta-lhe intrigado se ela tem prazer em visitar e ajudar os pobres, ao
que ela responde afirmativamente: "É culpa minha se isso me dá prazer?"18
Cenas mais tarde, quando Melchior e Wendla têm um ato sexual, ela lhe diz não
querer beijar, pois as pessoas se amam quando se beijam, ao que ele responde:"—
Isso não existe, amor! Tudo é interesse, egoísmo!... Eu te amo tão pouco quanto
você me ama ,.."19.
Do que se trata nesse ato, já que, como ambos dizem, não está situado no campo
do amor? Seria uma pura descarga pulsional ou, do lado do Melchior, uma busca
do saber sobre o Outro sexo?
Com a morte de Moritz, Melchior é julgado culpado e expulso da escola, pelas
palavras escritas ao amigo à respeito da reprodução. Os pais o condenam ao
reformatório em função da transgressão com Wendla:"— Lá o menino finalmente
aprenderá a desejar o bem e não o que lhe é agradável, a seguir a lei e não a natureza
nas suas ações"20, afirma o pai. Em outra fala ele declara que presenciou durante
quatorze anos, sem nada dizer, os métodos de educação maternos que foram
contrários à sua convicção: "... uma criança não é brinquedo"21.
Nos perguntamos se é neste momento, a primeira cena na qual o pai aparece,
onde reafirma a privação dá mãe do seu objeto de gozo:"— não reintegrarás o teu
produto"22.
Melchior foge do reformatório através do cemitério, derrubando a cruz do
túmulo de Moritz e deparando-se com a laje tumular de Wendla, vítima dos
métodos abortivos da Sra. Schmidt."— No reino dos mortos! A única coisa para
a qual não estava preparado"23, lamenta ele, dando-se conta de que, embora tivesse
o conhecimento que julgava ser o que lhe preparava para as questões da sexualidade, algo lhe escapou: o que desta se articula com a morte.
É somente enquanto perdido que Wendla se constitui como objeto de desejo.
Wendla, da mesma forma que Ofélia em Hamlet, objeto até então negligenciado,
é reintegrado pela via da identificação, na medida em que vem a desaparecer:"—
Tudo o que me dava coragem, jaz agora num túmulo"24, afirma Melchior.
66
LETRA FREUDIANA- Ano X - n« 9
O despertar da primavera... um tempo lógico
Neste momento de luto, reaparece o fantasma de Moritz com a cabeça debaixo
do braço. Pede a Melchior que lhe dê a mão, seguindo-o no caminho da exceção,
no para-além, acenando-lhe com o logro da possibilidade do tudo.
Surge, então, o Homem Mascarado que, nas palavras de Lacan25, põe termo ao
drama, no papel de salvar Melchior dos ataques de Moritz.
O Homem Mascarado interpela Melchior dizendo que ele treme de fome.
Retornando a Lacan no Seminário XI26, lemos que Freud, para nossa surpresa, nos
ensina que o amor vem do ventre, é o que é rom-rom.
O que é pontuado pelo personagem é que é do amor que Melchior sofre, do amor
enquanto um possível revestimento do buraco cavado no real, separando assim, o
que é de a e o que é de i(a). Lacan, no Seminário A Angústia, diz que "O problema
do luto é da manutenção dos vínculos por onde o desejo está suspenso, não do
objeto a, senão de i(a), pelo qual todo amor, enquanto este implica a dimensão
idealizada, está estruturado narcisicamente"27. É através da consumação, pela
segunda vez, da perda provocada pelo objeto amado, que se trata de restaurar o
vínculo com o objeto fundamental, o objeto oculto, o objeto a, verdadeiro objeto
que como causa, permitirá a continuação da vida e a substituição do objeto de amor.
Se, por um lado a puberdade catástrofe, como nos diz Serge Cottet, coagula a
inexistência da relação sexual, articulando o que o ser vivente deve à morte, por
outro lado torna possível algo do possível — fazendo uso de um pleonasmo —
tanto na esfera do amor, como na esfera da produção.
Finalizando, gostaríamos de deixar a palavra com o Homem Mascarado: "—
No final, a cada um a sua parte: você, a consciência tranqüila de não possuir nada,
você a dúvida enervante a respeito de tudo. Adeus"28.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
67
O despertar da primavera... um tempo lógico
NOTAS
1. Freud, S. Três Ensayos para una Teoria Sexual, p. 1216.
2. Mouján, O. F. Abordaje teórico y clinico dei adolescente.
3. Freud, S. Contribuições para uma Discussão acerca do Suicídio, p. 217.
4. Lacan, J. Hamlet, por Lacan, p. 55.
5. Lacan, J. Hamlet, por Lacan, p. 108.
6. Lacan, J. Hamlet, por Lacan, p. 110.
7. Lacan, J. Hamlet, por Lacan, p. 112.
8. Lacan, J. O Despertar da Primavera, p. 132..
9. Freud, S. Três Ensaios sobre a Sexualidade, p. 213.
10. Lacan, J. Seminário XI, p. 188.
11. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 6.
12. Wedeking, F. Frühlings Erwachen, p. 18.
13. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 20.
14. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 17.
15. Lacan, J. Seminário X, La Angustia, p. 111.
16. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 30.
17. Ibid, p. 20.
18. Ibid, p. 14.
19. Ibid, p. 25.
20. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 41.
21. Ibid, p. 38.
22. Lacan, J. Las Formaciones dei Inconsciente, p. 89.
23. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 47.
24. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 49.
25. Lacan, J. O Despertar da Primavera, p. 131.
26. Lacan, J. Seminário XI, p. 179.
27. Lacan, J. Seminário La Angustia, 03/07/63.
28. Wedeking, F. O Despertar da Primavera, p. 52.
BIBLIOGRAFIA
COTTET, S.
— Puberdade Catástrofe, in Estudos Clínicos, Transcrição 4, Publicação da
Clínica Freudiana, Salvador, Fator, 1988.
68
LETRA FREUDIANA-Ano X - n " 9
O despertar da primavera... um tempo lógico
FREUD, S.
— Três Ensayos para una Teoria Sexual — Obras Completas, tomo II,
Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
— Três Ensaios sobre a Sexualidade, Edição Standard Brasileira, vol. XI,
Rio de Janeiro, Imago, 1970.
— Luto e Melancolia, Edição Standard Brasileira, vol. XIV, Rio de Janeiro,
Imago, 1970.
—Ansiedade, Dor e Luto, Edição Standard Brasileira, vol. XV, Rio de
Janeiro, Imago, 1970.
—Algumas Reflexões sobre a Psicologia do Escolar, Edição Standard
Brasileira, vol. XIII, Rio de Janeiro, Imago, 1970.
— Contribuições para uma Discussão acerca do Suicídio, Edição Standard
Brasileira, vol. XI, Rio de Janeiro, Imago, 1970.
— Dissolução do Complexo de Édipo, Edição Standard Brasileira, vol. XIX,
Rio de Janeiro, Imago, 1970.
LACAN, J.
— O Despertar da Primavera, in Shakespeare, Duras, Wedeking, Joyce,
Lisboa, Assírio e Alvim, 1989.
— Hamlet, por Lacan, in Shakespeare, Duras, Wedeking, Joyce, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1989.
— Los Formaciones dei Inconsciente (inédito).
— Seminário, Livro 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise,
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
— Seminário X, La Angustia (inédito).
ROSENFELD,A.
— Teatro Alemão, São Paulo, Editora Brasiliense, 1968.
— Teatro Moderno, São Paulo, Editora Perspectiva, 1977.
WEDEKING, F.
— O Despertar da Primavera, Tradução de Luciano Costa Neto, 1976.
— Frühlings Erwachen, München, Wilhen Goldmann Verlang.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n»9
69
Final de análise
com crianças
Cora Vieira
E
sta produção surge a partir das discussões do Seminário de Psicanálise
com Crianças, sobre as questões do objeto, do fantasma e do final de
análise; assim como também das pontuações de Nilza Ericson sobre o
Seminário O Ato Analítico, das pontuações de Benita Lopes sobre topologia e
finalmente causado por questões que se colocam em minha própria clínica.
M. tem 7 anos e vem trazida pela mãe, que relata nas entrevistas dificuldades
na escola da ordem da escrita e dores de estômago. Diz achar que estes sintomas
se iniciam após a "viagem de volta" para o Rio, pois estavam morando em outro
país, e pensa que M. sofreu muito com esta mudança.
O pai é chamado a comparecer, ao que responde que não quer vir por não
concordar que M. precise de tratamento, embora aceite que a mãe a traga.
Começa então, o período das entrevistas preliminares, M. fala de seus sintomas,
de sua vida cotidiana, faz desenhos e colagens, mas ainda não há trabalho de
análise.
Um dia chega na sessão acompanhada da mãe, que comunica que irão viajar em
férias, porém na "volta da viagem", M. não vai encontrar a analista, que também
estará viajando de férias. M. viaja. A analista viaja. A partir de então M. não quer
vir mais, a analista insiste e a mãe sustenta, quer que a filha continue o tratamento.
M. insiste em não vir mais, chora muito e traz sonhos que se repetem, segundo
ela, pesadelos, que são mais angustiantes e terríveis nos dias em que vem à análise.
A partir do trabalho desses sonhos, onde aparecem figuras que a olham e aterrorizam, começa a falar que não consegue mais ir sozinha ao play, à piscina e ao terreno
baldio perto de sua casa, lugares onde se passam as cenas de seus sonhos. Surge
então um comportamento fóbico, demarca lugares em que não vai só. É um período
bastante difícil, de muita angústia e a analista reafirma a cada fim de sessão que a
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
71
Final de análise com crianças
está esperando na próxima, ao que ela retruca chorando que não quer vir mais; mas
vem. Surge um sujeito dividido, com uma demanda própria em que o sintoma se
constitui e que ao dirigir-se ao campo do Outro, retorna a ela, como pergunta sobre
o seu desejo.
M. vem a análise então pela primeira vez, acompanhada do pai, traz novamente
os dois sonhos, só que desta vez com uma diferença, um homem surge para
defendê-la das figuras ameaçadoras. Depois diz que o pai veio para falar com a
analista, e num só depois fica-se sabendo que ela chama o pai, dizendo que a
analista queria falar com ele. Após esta entrevista, fica acordado com o pai, que
pelo menos por um período ele trará a filha à análise.
M., sujeito do inconsciente, sintomático, 6 o sujeito que inicia um trabalho em
análise, sendo este o campo do manejo da transferência. M. se angustia com a falta
da falta, precisa constituir uma significação para a falta do Outro. Eis o sintoma
fóbico, na tentativa de colocar uma lei, uma interdição, um corte no gozo sem
limites. Faz uma chamada ao pai para que este encarne a lei, deixando de ser
extremamente simbólico e compareça também como real e imaginário. MO pai deve
entrar no jogo" é o que diz Lacan no Seminário As Relações de Objeto e as
Estruturas Freudianas.
O sintoma como metáfora permite operar a interpretação, possibilitando a
articulação de significantes onde vigora a história do Outro.
Prossegue o trabalho de análise, os sintomas vfto deslizando, assim como
também os significantes, algo vai sendo construído em análise, construção de um
mito particular, sempre articulado neste caso, ao objeto-olhar.
Numa sessão, M. conta que está escrevendo bem agora, e que quando uma letra
sai errada ela não se importa mais tanto, diz: "perco um ponto e pronto". Posição
bastante diferente diante da escrita e da perda.
Depois relata que está bem, refere-se a sintomas que não tem mais e a outros
pelos quais já não sofre tanto e diz: "não preciso mais". Corte da sessão.
Na sessão seguinte, após reafirmar que não precisa mais da análise nem da
analista e marcar o término para o fim do mês, diz: "tenho uma coisa importante
para falar, vi no Fantástico o nome da doença que tinha: fobia". Corte da sessão.
Na seguinte, diz: "Não venho mais, mas vou deixar marcado até o final do mês,
quero faltar".
Término? Final de análise? Estas são questões que se colocam para a analista
neste momento.
72
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
Final de análise com crianças
No Seminário A Angústia, Lacan nos fala sobre duas faltas: a falta no simbólico,
ligada à castração, e a falta no real onde o sujeito tem que se defrontar com o seu
ser. Esta falta no real o simbólico não pode remediar, esta falta não se esgota na
castração, trata-se do gozo do Outro.
Lacan faz um retorno a Freud, e a partir do rochedo da castração, a questão do
final de análise ganha outras significações.
Freud marca o final de análise em função da maneira singular do sujeito se
posicionar frente ao rochedo da castração, definindo as diferentes relações ao falo,
trata-se do gozo fálico. Com a teorização do objeto "a", Lacan acompanha o
desenvolvimento freudiano, mas vai além.
Podemos pensar o objeto a e o falo simbólico não só em sua distinção, mas
principalmente em sua articulação na direção de uma cura. É a partir de um
não-todo do gozo fálico, que temos uma outra relação à falta, desvelando então o
fantasma de suas roupagens e apontando para o não há relação sexual.
No final de uma análise o sujeito encontra sua verdade, à medida em que se
desnuda das vestimentas imaginárias, ficando apenas o objeto a destinado a cair
após a construção e travessia fantasmática.
Isto se evidencia na mostração topológica pela via do verdadeiro ato analítico,
na produção do oito interior. Banda de Moebius e disco enquanto sujeito e objeto
a, que pela sutura articulavam no cross-cap, o fantasma $ Q a e pelo corte de dupla
volta faz surgir um sujeito novo deixando cair um resto.
A análise de M. não estaria justamente aí no ponto anterior a esta passagem? A
este corte? Não seria este o final de análise possível para uma criança marcado pelo
particular de cada uma? Ponto este que evidencia que algo da separação operou,
onde caem as identificações imaginárias e algo do real se contorna, apontando para
uma barra no Outro.
Penso que este término estaria apontando como um vetor para um outro fim,
vetor que tem como direção a direção da cura e como sentido o final de análise.
Uma torção produziu uma mudança de posição radical, mas aponta para um tempo
ainda a vir a ser percorrido num qualquer tempo. Trata-se de um ponto anterior ao
cross-cap, mostração da estrutura do fantasma. Neste caso, apesar de algo do
movimento da separação ter operado e de algo fantasmático que toca o objeto olhar
ter sido enunciado, creio que não podemos chamar de uma construção e travessia
fantasmáticas.
É pela via do corte que se dá a análise de M. O corte toca a dimensão simbólica
e imaginária do significante, na medida em que produz novos efeitos de sentido,
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
73
Final de análise com crianças
mas, no mesmo movimento aponta para a dimensão irredutível do real, do para
além do sentido, barrando a satisfação de completude. O real leva o sujeito a um
trabalho de reconstrução que, pelos cortes, atos e escanções no discurso da
paciente, possibilitaram uma mudança de posição a partir de uma barra no Outro,
que remete a própria falta enquanto sujeito também barrado.
Lacan em O Equívoco do Sujeito Suposto Saber (1967): "Uma teoria que inclui
uma falta que se deve tornar a encontrar em todos os níveis; increver-se aqui como
indeterminação, ali com certeza e formar o nó do não interpretável; nela me esforço,
sem deixar de experimentar sua atopia sem precedentes. A pergunta aqui é: quem
sou eu para ousar uma tal elaboração? A resposta é simples: um psicanalista. A
resposta é suficiente, se limita seu alcance ao que tenho de um psicanalista: a
prática".
BIBLIOGRAFIA E CITAÇÕES
FREUD, S.
—Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, Edição Standart
Brasileira, vol. X, Rio de Janeiro, Imago, 1970.
—Análise terminável e interminável, Edição Standart Brasileira, vol.
XXIII, Rio de Janeiro, Imago, 1970.
LACAN, J.
— Seminário IV — As Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas
(inédito).
— Seminário X —Angustia (inédito).
— Seminário XV — O Ato Psicanaltüco (inédito).
— El atolondrado, ei atolondradicho o Ias vueltas dichas, in Escansion,
Buenos Aires, Editorial Paidos, 1984.
— La Equivocación dei sujeito supuesto ai saber, in Momentos cruciales de
Ia experiência analítica, Buenos Aires, Manantial, 1987.
VIDAL,E.eRUIZ,C.
— Psicanálise e Topologia, publicação da Letra Freudiana.
DARMON, M.
— Essais sur Ia Topologie Lacanienne, Editions de 1'Association
Freudienne, 1990.
74
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
A adolescência e
o tomar-se desejante
Aríete Garcia Lopes
Sofia Saruê
"Fomenta-me no peito intenso fogo
Que por aquela linda imagem arde.
E assim, baqueio do desejo ao gozo,
E no gozo arfo, a ansiar pelo desejo."
Goethe, Fausto
T
omando a adolescência como um tempo do despertar da sexualidade, um
tempo de trabalho doloroso, ao elaborar o luto pelo corpo tão bem assinalado
por Arminda Aberastury, nos perguntamos de que corpo se trata aqui?
Aberastury nos fala de uma vontade biológica que impõe uma mudança corporal
irrecuperável, frente aos quais tanto os pais, como o adolescente não podem manter
uma posição de negação1. Maurício Knobel nos diz que "o esquema corporal é uma
resultante intrapsíquica da realidade do sujeito, ou seja, é a representação mental
que o sujeito tem de seu próprio corpo, como conseqüência de suas experiências
em contínua evolução"2.
No discurso fisiológico, fica claro o corpo com consistência de glândulas,
hormônios e substâncias químicas, mas para a psicanálise o que é um corpo?
Quando se fala de representação mental do corpo, de que falamos?
É importante notar que Freud em As Transformações da Puberdade, após
discutir a teoria química da sexualidade baseada nas glândulas e hormônios,
acrescenta em 1915 a "Teoria da Libido", uma secção onde abandona inteiramente
os termos fisiológicos para tratar a sexualidade a partir da libido — "uma força
quantitativamente variável que poderia servir de medida do processo e das transformações que ocorrem no campo da excitação sexual"3.
Para Lacan, a psicanálise implica o real do corpo e do imaginário de seu esquema
mental4, não tendo trazido ao longo de sua evolução nenhuma contribuição à
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
75
A adolescência e o tornar-se desejante
fisiologia. Marca assim, o real e o imaginário do corpo no esquema mental em um
registro distinto do registro fisiológico.
Seguindo as contribuições de Lacan sobre o estádio do espelho, procuraremos
buscar como se constitui o corpo em seu esquema mental.
O corpo humano é apreendido inicialmente no espelho do Outro, marcando a
impotência primitiva do ser humano de ter um domínio do real do seu corpo. O
sujeito se reconhece tendo um corpo na medida em que os outros que lhe são
essenciais, pela própria prematuração do ser humano, também os tem, ou como diz
Lacan "temos um corpo como o deles"5. É na medida em que a primeira tomada
do corpo como totalidade, é apreendida prematuramente em relação à maturação
das funções motoras, que permitiriam um domínio real do corpo, que para o ser
falante se introduz uma falha especial: o não acoplamento do imaginário e do real.
O ser humano vê a sua forma realizada fora de si, é preciso um espelho,
representado no modelo óptico como o espelho plano—o campo do Outro—para
que numa reflexão em relação ao outro, sua imagem lhe retorne totalizada. A
imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma, que lhe permite situar o que é e
o que não é o eu. Torna-se então necessária a distinção do eu ideal e do ideal do
eu, enquanto a imagem do corpo reenvia à função por onde o eu se constitui pela
série de identificações.
Em 1964, no Seminário Problemas Cruciais para a Psicanálise, Lacan introduz
a figura topológica da garrafa de Klein, cuja característica a ser assinalada, é que
toda representação dela é inexata e forçada, dando uma ilusão de interior e exterior.
É uma figura que, assim como o corpo, funciona no espaço do Outro, enquanto
lugar da palavra.
Sustentado nesta figura topológica, Lacan avança na distinção do eu ideal e do
ideal do eu. O ideal do eu é um ponto de acomodação, onde o sujeito encontra sua
imagem mais além do espelho, em sua identificação com o adulto. A imagem do
corpo, i(a), se origina no sujeito na experiência especular. Esta imagem se caracteriza por uma falta, na medida em que se constitui fora, no lugar do Grande Outro,
onde há algo que não se projeta, que não é investido libidinalmente, um resto, (a).
Este resto tem uma relação com o desejo do Outro que resta velado, inalcançável
para o sujeito. O eu ideal é o lugar do traço unário, o lugar de suspensão do sujeito
ao campo do Outro, é a identificação primordial, mítica, por onde se estrutura a
função do ideal do eu.
Enquanto que o ideal do eu é um ponto imaginário onde o sujeito está fixado, o
eu ideal tem uma referência no materialismo do corpo. Lacan nos diz "... a natureza
76
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A adolescência e o tornar-se desejante
do corpo tem algo a fazer com o que introduz, restaura como libido, que é a libido
enquanto primeira forma desta pulsão oral por onde se processa a incorporação"6.
A incorporação em sua referência mítica, onde o pai morto é consumido, nos revela
que, o que se assimila deste corpo, é o ser do Outro que não se pode nomear,
apresentando-se como o mais inacessível ao sujeito, resumindo-se no ser do corpo.
Vemos então, distintos o i(a)—a imagem do corpo que se origina na experiência
especular — de a, objeto que não tem imagem especular, oculto na referência ao
Grande Outro. Ou seja, o corpo constituído em uma imagem tem um ponto de
opacidade, um ponto de condensação libidinal, ao redor do qual giram todas as
identificações do sujeito.
O corpo então para Lacan, implica o imaginário, enquanto apreendido no
espelho, no campo do Grande Outro e o real referido a incorporação mítica, aquilo
de mais inacessível ao sujeito.
Por outro lado, poderíamos pensar no mito da libido, descrito por Lacan em
Posição do Inconsciente, onde ao se quebrar o ovo se faz o homem e a omelete,
figurando que pelo fato da reprodução sexuada há algo que escapa ao sujeito falante
— "A libido é essa laminula, que desliza o ser do organismo até seu verdadeiro
limite, que vai mais além que o do corpo"7.
Dessa forma, tanto na referência ao modelo óptico, onde o a não é especularizável, onde a imagem se caracteriza por uma falta, como na referência ao
mito da libido onde parte do ovo fecundado é subtraído ao sujeito, o corpo se
constitui como essencialmente faltante.
Se pensamos que no tempo da adolescência, há um luto do corpo a ser elaborado,
é o luto dessa parte do corpo sempre perdida. Assim como a primeira tomada do
corpo como totalidade no estádio do espelho deixa um resto, também na adolescência o real do sexo, o buraco aberto pela sexualidade, traz a dor da perda de algo
que não foi, levando o simbólico a produzir significantes na tentativa de dar conta
da hiância que retorna. É um momento de intensificações das fantasias e das buscas
de identificações ideais através dos grupos.
Lacan discute na Tópica do Imaginário que a libido concernente à emergência
do objeto genital é de outro nível que a libido primitiva, ou seja, a libido referida
à própria imagem do sujeito. Diz ele "... a libido que se relaciona ao objeto genital
não é do mesmo nível que a libido, cujo objeto é a própria imagem do sujeito, a
libido em causa é da ordem da Liebe, do amor"8. Ou seja, Lacan supõe uma torção
na superfície do sujeito, uma passagem da especularidade, enquanto uma imagem
supostamente completa, para o amor, que, parte de uma falha, daquilo que não se
tem, amor enquanto suplência do real do corpo.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
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A adolescência e o tornar-se desejante
O adolescente, ao sofrer a dor do luto, um luto que trata de consumar pela
segunda vez a perda, ou seja o luto por algo sempre perdido, lhe possibilita realizar
que ele não tem o órgão, órgão miticamente unificante. Essa realização Lacan
simboliza por -cp, referência imaginária do falo que vem sob a forma de uma falta.
O estádio do espelho coloca-se aí como fundamental, por trazer ao nível da
primeira identificação do sujeito um desconhecimento na imagem especular,
introduzindo-se na relação com o outro semelhante uma mediação, o falo. O falo
encarna a função das trocas sociais e reduz o sujeito a ser seu portador, o que torna
a castração necessária para uma sexualidade socializada.
É pelo luto de parte do corpo, de a, no registro do real, que o sujeito pode
realizar-se como sujeito faltante, não possuidor do órgão miticamente unificante,
onde a imagem da falta surge como -cp. O -cp é o lugar onde se inscreve a hiância
própria do ato sexual.
Relembramos, neste ponto, o discurso sobre a origem do amor de Aristófanes
relatado no Banquete. Neste mito, os seres que eram primitivamente inteiros,
esféricos e possuidores de dois sexos, após terem sido cortados e o rosto voltado
para o lado do corte, para que contemplassem a própria mutilação, estavam
morrendo de inércia geral, na tentativa inútil de se confundirem novamente. Zeus,
então, tomado de compaixão, lhes muda o sexo para frente, porque eles o tinham
para fora, possibilitando que se processasse a geração um no outro e pudessem
repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida.
Podemos depreender deste mito que só após o órgão instrumento ter sido
constituído como mediação, como suporte das trocas sociais, que algo da realização
se inscreve.
Ali onde o falo é esperado como sexual, nunca aparece mais que como falta,
como evanescente, sendo chamado então a funcionar como instrumento de potência.
Nos diz Lacan: "Este falo, para os dois sexos, é o que eu desejo e o que não
posso ter senão enquanto -cp. Este menos se representa no campo da conjunção
sexual, como o meio universal, como esse menos... enquanto que constitui o campo
do Outro como falta"9. Ou seja, o ato sexual tem uma estrutura que comporta a
subtração no Campo do Outro, a falta no gozo. Para todo ser falante por se inscrever
como queda de a no Campo do Outro, a perda está regulada como perda de gozo,
e é o falo que articula essa impossibilidade na relação sexual.
Para o homem, a mulher pode ser o símbolo da onipotência fálica, constituindose naquilo que deseja, mas precisamente quando já não é A mulher. Ou seja, quando
também para ela o falo inscreve o limite, o menos. Enquanto a mulher no encontro
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A adolescência e o tornar-se desejante
com o homem, toma o falo pelo que ele não é, o objeto a, e só encontra um gozo
de potência aproximada, um não toda fálica.
O adolescente encontra-se então, em um tempo de luto pelo corpo, luto de a,
que entretanto encontra-se oculto no espaço especular que é o espaço onde a captura
do desejo se dá, dirigindo-se na busca da potência fálica no encontro com o outro
sexo.
Nas palavras de Lacan: "... propor-me como desejante é propor-me como falta
de a, trata-se aí de sustentar que é por esta via que abro a porta ao gozo do ser"10
— gozo do ser, do ser do Outro, que se resume no ser do corpo.
Retomemos a análise da peça de 1891, O Despertar da Primavera de Frank
Wedeking, dramaturgo que, segundo Lacan11, permanece ortodoxo ao dito de
Freud.
Há dois atos que determinam a sua estrutura, assim como o desenrolar de sua
trama, a saber: o ato do suicídio de Moritz e o ato sexual realizado por Wendla e
Melchior.
Do ato de suicídio, no qual o sujeito se precipita fora da cena, reduzido a uma
identificação com o objeto a, não há retorno possível do lado do sujeito. Circunscreveremos, portanto, o ato sexual e o que deste retorna para os seus protagonistas.
Podemos dizer que o ato que vem a consumar-se como sexual, inicia-se no
interesse e espanto de Melchior, face ao prazer que Wendla diz sentir ao visitar
famílias pobres e sujas.
Wendla vai mais longe, conta-lhe seu devaneio ner qual é mandada à rua de
madrugada pedir dinheiro e que, ao voltar para casa, tremendo de frio e fome, é
espancada por seu pai. Pede, então, a Melchior que lhe bata com uma varinha; este
recua assustado, mas, face à insistência de Wendla, acaba por surrar-lhe com
violência e fugir com gritos lancinantes.
Lacan, no Seminário XX12, afirma que o sexo da mulher não lhe diz nada a não
ser por intermédio do gozo do corpo. Ela é não-toda, tendo em relação à função
fálica um gozo suplementar.
No Objeto da Psicanálise, lemos que "... o masoquismo feminino é, em último
termo, o perfil do gozo reservado a quem entraria, no mundo do Outro, em tanto
que este Outro seria o Outro feminino, quer dizer a Verdade"13. A Verdade,
portanto, está do lado d'A Mulher, como não-toda, que diz de a como o resto que
cai do campo do Outro. É somente pelo corpo que algo disso se sabe, mas enquanto
pedaço do corpo perdido.
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A adolescência e o tornar-se desejante
É por essa via que Melchior investe, quando Wendla o procura no celeiro, já
que o ato que realizam não se situa na esfera do amor. Como o próprio Melchior
diz, em resposta à Wendla que fala do amor especular, referido à mãe, este não
existe, sendo tudo interesse e egoísmo.
O amor enquanto especular, faz signo, é recíproco, não sendo, portanto, do amor
de onde parte o que é capaz de responder pelo gozo do corpo do Outro.
Como já vimos, é o falo, que é desejado por ambos os sexos, mas o que pode
ser encontrado é -cp. O falo, ali onde é esperado como sexual, só aparece como
falta, sendo a cópula entre homem e mulher, portanto, o que permite a inserção da
castração no vivido humano.
O gozo do homem e da mulher não se coadunam organicamente, sendo que a
mulher é conduzida à idéia de ter o órgão, o instrumento da potência. Mais ainda,
a mulher só pode tomar o falo pelo que ele não é, ou seja, a, o objeto, a parte para
sempre perdida de si.
Após a realização do ato, Wendla, sem conseguir manter os lábios juntos, diz
estar pronta para usar o roupão de penitência, como nomeia o vestido mais longo,
que sua mãe havia feito para o seu aniversário de quatorze anos. Ela havia se
recusado a usá-lo, dizendo preferir permanecer com treze anos ou ter logo vinte,
saltando, assim, a época da penitência.
Que penitência é essa nesse tempo da adolescência, do encontro com o real do
sexo?
Podemos ler no Aurélio Buarque de Holanda que penitência é a expiação de
uma falta cometida; expiação, por sua vez, diz respeito a pagamento. Há algo,
portanto, a ser pago por uma falta.
Por se constituir no campo do Outro, como esse resto que cai, há um tributo a
ser pago pela sua realização enquanto sujeito. No Seminário O Ato Analítico",
Lacan afirma que o sujeito só se realiza enquanto que falta — falta no Campo do
Outro — e é somente pela via da castração, -<p, que se dá essa realização.
A idade da puberdade nos indica Lacan15 no seu comentário a teoria de Piaget
a respeito do acesso ao conceito, seria marcada pela maturação do objeto a no
momento em que passa pela castração, pelo que simboliza por -çp.
Wendla, quando a mãe lhe diz que o médico constatou que está com anemia —
diminuição da hemoglobina do sangue circulante —, responde que deve estar é
com hidropsia — acumulação de serosidade no tecido celular. Da função da
castração, como uma das voltas por onde se inscreve a perda primordial do ser,
Wendla parece não querer saber. Ao invés de se constituir como desejante, como
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A adolescência e o toraar-se desejante
falta de a, Wendla permanece como amável — Eromenos —, objeto de desejo da
mãe, sucumbindo vítima de uma tentativa de aborto, que lhe é imposta. Ao não
elaborar o luto de parte do corpo, Wendla, como corpo hidrópico, pleno de a, falece.
Já o que retorna do ato para Melchior é de outra ordem, é da ordem da castração.
Do real do corpo e do gozo, o que lhe chega não é a relação sexual como interditada,
mas sua não existência. Do que se trata no ato é da impossibilidade da estrutura,
mais além da lei.
Esta peça, cujo subtítulo é "Uma tragédia da juventude", se estrutura, como
vimos, a partir do ato e vem nos assinalar que do ato o sujeito sai modificado,
modificação esta produzida na medida em que o ato é sempre falho e comporta
uma pura fenda, uma ruptura, que é a estrutura própria do inconsciente.
A partir do ato o sujeito não encontra significação, mas non-sense, a impossibilidade de dizer sobre a relação sexual.
Há um luto a ser feito — luto de parte do corpo —, da falha por onde o sujeito
se constitui no campo do Qutro. É por esse trabalho de luto que o sujeito se torna
desejante, tendo o objeto a como causa de seu desejo.
Como nos diz Goethe pela boca de Fausto:
"E assim, baqueio do desejo ao gozo,
E no gozo arfo, a ansiar pelo desejo"16.
LETRA FREUDIANA-Ano X-a* 9
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A adolescência e o tornar-se desejante
NOTAS
1. Aberastary, A. O Adolescente e a liberdade, p. 16.
2. Knobel, IA. Adolescência Normal, p. 31.
3. Freud, S. Três ensaios sobre a sexualidade, p. 223.
4. Lacan, J. Subvsersão do Sujeito, p. 286.
5. Lacan, J. Seminário I, p. 172.
6. Lacan, J. Seminário Problemas cruciais para a Psicanálise, 03/03/65.
7. Lacan, J. Posição do Inconsciente, p. 384.
8. Lacan, J. Seminário I, p. 208.
9. Lacan, J. Seminário A Angustia, 05/06/63.
10. Lacan, J. Seminário A Angústia, 13/03/63.
11. Lacan, J. O Despertar da Primavera, p. 131.
12. Lacan, J. SeminârioXX, p. 14.
13. Lacan, J. Seminário O Objeto da Psicanálise, 09/02/66.
14. Lacan, J. Seminário O Ato Analítico, Lição VI.
15. Lacan, J. Seminário A Angústia, 29/05/63.
16. Goethe, J.W. Fausto, p. 151.
BIBLIOGRAFIA
ABERASTURY, A., KNOBEL, M.
— A Adolescência Normal. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1985.
FREUD, S.
— Três Ensaios sobre a Sexualidade, Edição Standart Brasileira, vol. XI,
Rio de Janeiro, Imago, 1970.
GOETHE, J.
— Fausto. Rio de Janeiro, Editora Itatiaia Ltda. Editora da Universidade de
São Paulo, 1981.
LACAN, J.
— Escritos, México, Siglo Veintiuno Editores, 1983.
— O Despertar da Primavera, in Shakespeare, Duras, Wedeking, Joyce,
Lisboa, Editora Assírio e Alvim, 1989.
82
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
A adolescência e o tornar-se desejante
— Seminário, Livro I, Os Escritos Técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1983.
— Seminário X, La Angústia (inédito).
— Seminário El Objeto delPsicanâlisis (inédito).
— Seminário ElActo Psicanaltiico (inédito).
— Seminário, Livro XX, Mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1985.
PLATÃO
— O Banquete, São Paulo, Difusão Editorial S.A., 1986.
WEDEKIND, F.
— O Despertar da Primavera, tradução de Luciano Costa Melo, 1976.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
83
Um caso de término
de análise com criança
"Falta um pouquinho..."
Beatriz Siqueira
Vera Vinheiro
"É a criança que é alimentada com mais amor
a que rechaça o alimento ejoga com sua recusa
como com um desejo".
(Lacan, no texto A Direção da Cura.)
'A passagem do psicanalisante a psicanalista
tem uma porta da qual esse resto, que faz a sua
divisão é a dobradiça, pois tal divisão não é
outra senão a do sujeito, do qual esse resto é a
causa "•
(Lacan, na Proposição de 9 de outubro de 1967)
Introdução
Quando pensamos em Psicanálise com uma criança, pensamos sempre na
Psicanálise com um sujeito que nos chega trazido por um outro. Nunca é a criança
que vem buscar a análise, e sim os familiares que vêm se queixar da criança para
um psicanalista, o que aponta para a dependência primeira que a criança tem do
Outro.
No entanto, num determinado momento transferenciai, esse sujeito, que inicialmente vem à análise pelas mãos de um outro, coloca-se em trabalho de análise
e passa a vir e a caminhar com seus próprios pés. É com o discurso da criança que
lidamos, e não com o discurso dos pais. Sendo assim, podemos considerar a criança
como sendo um analisante integral, uma vez que o sujeito de que se trata na
psicanálise é o sujeito do inconsciente.
A partir dessas premissas básicas de análise, e após todo um percurso de análise
com uma criança, resolvemos nos perguntar sobre o que estaria em jogo num final
de análise com crianças. Para tentar responder a essa pergunta, percorremos
inicialmente os Escritos de Lacan onde ele propõe, em três textos diferentes,
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
85
Um caso de término de análise com criança
formulações a respeito do final de uma análise: a primeira em "Função e campo
da palavra e da linguagem", a segunda na "Direção da Cura", e finalmente no texto
sobre o informe de Daniel Lagache. Nesses três textos, como nos diz Colette Soler,
o que há de comum é a postulação de Lacan sobre o trabalho de análise consistindo
na busca do neurótico de uma resposta à sua questão sobre "quem sou eu", sendo
que nessas três abordagens estaria presente um fim sobre o "tu és".
No primeiro texto, o "tu és" aparece sustentado pela palavra, enquanto articulação significante, sendo o lugar da palavra também o lugar da falta. No segundo
texto, o "tu és" aparece como "tu és barrado", ou melhor, "tu não és o falo"; Lacan
evoca aí a SPALTUNG do sujeito, articulando-a ao significante da falta na busca do
desejo. No terceiro texto, o "tu és" coloca o sujeito no lugar de "tu és objeto", pois
o sujeito vê figurar no seu fantasma aquilo diante do qual ele se vê abolir-se,
realizando-se como desejo.
Para Freud há um limite real que é a castração. A travessia do Édipo seria a
possibilidade de um final de análise, pois indicaria um percurso do sujeito em torno
do falo. Com a travessia do complexo de Édipo, o sujeito muda de posição frente
ao desejo do Outro, embora ainda continue identificado ao pai, como Freud nos
mostra no caso Hans.
Lacan considera o final de análise proposto no caso Hans como sendo insatisfatório, pois o final de análise teria que tocar as questões de sexo e da morte. Lacan
dá um passo a mais quando propõe um trabalho de análise que implique na travessia
do fantasma e na destituição subjetiva. Essa travessia propicia o confronto do
sujeito com o Real do sexo.
Um Caso Clínico
J., tem 12 anos e está em análise desde os 7 anos de idade. A família de J. é
constituída pelos pais, um irmão e uma irmã, sendo J. o mais velho. A queixa
principal trazida pelos pais era sua agitação. J. colocava-se um pouco fora do
modelo ideal que sua mãe tinha de um filho: sentia muito ciúme de sua irmã, e
apresentava uma falta de atenção que o prejudicava. Os pais relatam que J. estava
na escolinha de futebol no Flamengo e que tinha muito talento, segundo os técnicos
e entendidos no assunto. No entanto, J. está sempre brincando, sempre desatento,
o que faz com que perca o lugar no time e tenha que ficar no banco de reserva.
A demanda que chega o tempo todo dos pais é que ele seja o craque, o melhor,
o bom, o modelo, e que ganhe sempre. Isso também acontece na escola, onde sua
mãe é coordenadora.
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LETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9
Um caso de término de análise com criança
O pai é uma figura deprimida e enfraquecida, sempre em "câmera lenta". Ele é
enorme de gordo, "uma bola", como diz J.. Quando jovem foi atleta: jogava vôlei,
possuindo até medalhas.
A mãe é uma pessoa controladora, a ponto de dizer que a única creche que serviu
para colocar seus filhos foi a que ela podia entrar sem hora marcada. Talvez
possamos pensar esse pai, enquanto atleta, como sendo a opção que não deu certo,
e um desejo da mãe dirigido a J. de que seja a opção que tem que dar certo.
J. passa muito tempo brincando com bola, onde ganhar ou perder era a questão.
Ele repetia incessantemente esta questão. A analista intervém, com seu ato,
fazendo-o pagar simbolicamente as sessões com dinheiro de sua mesada. Se havia
algo a perder, que fosse perdido na análise: o ato funciona como corte, numa
tentativa de circunscrever essa repetição. J. se aborrece, diz que vai chamar a
polícia, mas vem e paga. É que o gozo, ao ser cortado, dá margem a que se possa
construir um saber, saber não sabido.
J. começa a falar e a trazer outras questões, tais como as brigas que tem com a
irmã (que é a 2* filha e que tem o nome do pai). Ele se pergunta, em análise, porque
ela teria o mesmo nome que seu pai (a irmã, no discurso dos pais, é tida como a
perfeita). Nessa época ele já tinha se "desligado" do futebol, passando a escolher
a natação como sendo o seu esporte.
Num outro momento, em que suas questões com a irmã se acirraram, ele tem
uma briga feia com ela por causa de um apontador, chegando até a machucá-la. Os
pais ligam para a analista pedindo uma entrevista. Esta comunica a J. que haverá
uma entrevista com seus pais, e ele diz: "eu também venho". Nessa entrevista, J.
chora reclamando com os pais que eles estão sempre do lado da irmã, e nunca do
lado dele, e pergunta aos pais o porquê de ser ela quem tem o nome do pai.
Reconhece que a briga não era por causa do apontador, e sim porque está com raiva
e inveja dela. E ainda, nessa entrevista, lembra-se de quando apanhou pela primeira
vez: foi quando bateu na irmã que era pequena e estava no carrinho. Os pais se
surpreendem nesse momento, se emocionam e a entrevista é cortada.
J. prossegue por mais um tempo falando sobre a rivalidade com a irmã, até que
a mãe telefona à analista para comunicar-lhe que o avô paterno de J. tinha falecido,
e que J. havia chorado muito, dando murros e chutes na parede, embora não tenha
falado nada sobre isso. J. chega à sessão e diz que tem uma coisa para contar à
analista, mas que não quer falar: propõe então que se faça a brincadeira da forca,
onde a analista teria que descobrir qual era a frase. A brincadeira acontece, e a frase
que se forma é: "meu avô paterno morreu". Diante do Real da morte, do qual não
se pode falar, J. só pode escrevê-la.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
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Um caso de término de análise com criança
J. faz um trabalho de análise, onde algo da operação alienação-separação
acontece, e no final do ano passado ele diz que quer acabar sua análise. A analista,
enganada, concorda, ao que ele responde com uma crise: os pais são chamados ao
colégio, pois J. foi suspenso e tem que ficar pela primeira vez em "recuperação".
A analista resgata a situação, já que há algo a "recuperar", e "recupera" o trabalho
de análise, discordando desse final colocado por ele.
A análise de J. continua durante mais um ano, no qual ele começa a trazer
questões de sexo, os namoros, as meninas, as festas, até que ele volta a afirmar que
quer terminar sua análise e diz: "quem tem que vir agora é o meu irmão e não eu.
Ele é que não está legal. Eu não preciso mais. Não é mais com você que eu tenho
que conversar — é com meu pai — ele é quem sabe". A analista pergunta sobre o
que ele tem que conversar com o pai, e ele responde: "Uma garota pediu para
namorar comigo, mas eu estou na dúvida, porque, se eu decidir namorar com ela,
sempre que eu for nas festas, eu não poderei dançar com outras garotas. E só o meu
pai poderá me ajudar agora". A analista corta aí a sessão. Na sessão seguinte ele,
irritado, diz novamente que é o irmão que tem que vir à análise, ao que a analista
responde dizendo que não se trata de uma simples questão de substituição, e
convida-o a vir outras vezes. J. relata a conversa que teve com o pai, e a resposta
que obteve dele sobre as garotas: "chega uma hora em que a gente tem que
escolher".
J. passa então a trazer novas questões sobre sexo: como se comportar diante das
meninas, como fazer no início desses encontros, quando ele não sabe nem onde
colocar a mão; traz questões sobre a homossexualidade, sobre os meninos que não
conseguem se aproximar das meninas, e fala do medo dos meninos de serem
chamados de "viado". Na sessão seguinte ele paga o que devia (não pagava há 4
meses), mas não paga tudo, e fica devendo duas sessões. Nesse momento ele diz
— "falta um pouquinho" — ao que a analista responde — "falta um pouquinho"
—e o convida a retornar na próxima sessão. J. volta na semana seguinte e comunica
à analista: "Vou ficar até a próxima festa que é no mês que vem". A festa acontece,
e J. conta: "na festa do meu amigo eu fui esperto, pois, assim que eu cheguei, fui
togo formando a roda do 'RAP', e aí ficou mais fácil".
Gostaríamos ainda de ressaltar que nessas últimas sessões aconteceu um esvaziamento do discurso de J., pois as questões abordadas por ele eram trazidas com
distanciamento, demonstrando haver menos embaraço e sofrimento.
Na última sessão, J. reafirma que havia terminado sua análise, agradece à
analista e, estendendo-lhe a mão, deseja-lhe "felicidades". A analista avaliza esta
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UETRA FREUDIANA-Ano X - n 4 9
Um caso de término de análise com criança
decisão de término de análise, após considerar os pontos de torção já ocorridos
anteriormente neste percurso de análise de J.:
— Saída do futebol e escolha da natação como sendo o seu esporte.
— Pagamento simbólico das sessões com dinheiro da sua mesada.
— Colocação em cena de sua rivalidade com a irmã em torno do nome do
pai.
— Jogo da forca onde o Real da morte do avô se escreve.
— Suspensão na escola como "acting-out" dirigido à analista no sentido de
uma demanda de recuperação do processo de análise.
— Retorno ao pai com uma questão sobre o que é ser homem e como abordar
o Outro sexo.
— Surgimento de uma questão obsessiva quando fala de sua dificuldade de
abrir mão das outras mulheres para ter uma só.
— Colocação significante do "Falta um pouquinho" onde, através de uma
amarração tempo-dinheiro, o sujeito aponta para algo que lhe falta.
— Roda do "RAP" como tentativa de produzir algo que "dê conta" de sua
confrontação com o Real da impossibilidade.
— Esvaziamento do discurso e furo no "todo saber".
Considerações Teóricas
Em função de sua não maturação, a criança está numa posição de espera no que
diz respeito ao ato sexual como tal. No entanto, a criança, com suas construções
em análise, suas teorias sexuais infantis, nos mostra que ela tenta simbolicamente
dar conta desse buraco cavado no real pela sexualidade, evidenciando, assim, já
estar marcada pela impossibilidade. O analista, portanto, não deve ficar enganado
numa posição de saber sobre o sexo, e a destituição do sujeito suposto saber tem
que poder acontecer.
No seminário do ato psicanalítico, Lacan refere-se à destituição do sujeito
suposto saber da seguinte maneira: "O término da análise consiste na queda do
sujeito suposto saber e sua redução ao surgimento desse objeto a como causa da
divisão do sujeito que vem em seu lugar. Aquele que fantasmaticamente, com o
psicanalisando, joga a partida enquanto sujeito suposto saber, a saber, o analista,
é este, o analista, que vem no término da análise a suportar não ser mais nada senão
este resto. Este resto da coisa sabida, que se chama objeto a. É em torno disto que
deve levar nossa questão".
LETOA FREUDIANA-Ano X - n e 9
89
Um caso de término de análise com criança
Neste mesmo seminário, o do Ato Psicanalítico, Lacan refere-se a término de
análise e a final de análise. Deveríamos aqui pensar, então, em dois tempos? Talvez
o melhor seria pensarmos no final da análise como sendo uma linha contínua, onde
o final estaria em algum lugar deste horizonte, como pontos de basta a partir do
particular de cada um.
No entanto, nos retorna a questão sobre o que estaria em jogo neste ponto de
basta, neste momento de concluir uma análise?
Sobre o final de uma análise, Lacan, ainda no Seminário do Ato Psicanalítico,
afirma que "o fim da psicanálise supõe uma certa realização da operação verdade,
a saber: que isso deve constituir de fato esta espécie de percurso que, do sujeito
instalado no seu falso ser, faz com que ele realize alguma coisa como um
pensamento que comporta o 'eu não sou'; isso não acontece sem reconhecer, como
convém sob uma forma cruzada e invertida, seu lugar do mais verdadeiro, seu lugar
sob a forma do 'Lá onde isso estava' ao nível do 'eu não sou', que se reconhece
neste objeto a que desde sempre se define como essência do homem, e que se chama
o desejo, mas que, no fim de uma análise, se traduz por essa coisa não apenas
formulada, mas encarnada, que se chama castração. É o que nós geralmente temos
etiquetado sob a letra do -<p."
O -q> é o lugar onde se inscreve a hiância própria ao ato sexual; é a perda fálica
a nível do signif icante. A falta tem que ir se inscrevendo em várias passagens: num
momento como -<p, e noutro como objeto a,
No final da análise tem que acontecer a desmontagem da pulsão. Fazer o
caminho do significante ao objeto a é desmontar a pulsão. A pulsão é a forma em
que o sujeito inscreve, no seu corpo, a demanda do Outro. A pulsão, no final de
análise, é o traçado do puro corte. É através da montagem da pulsão que a
sexualidade participa da vida psíquica. O que há de sexual no ser falante está
condenado a passar pela hiância do inconsciente, e essa passagem pela hiância é
denominada pulsão. O analista, funcionando como causa, e não respondendo à
demanda, reconduz a transferência à pulsão.
O que interessa à psicanálise é a subjetivação da questão do sexo, ou seja, é a
constatação de que não há realidade subjetiva possível do sujeito como elemento,
como "partenaire" sexuado no que ele imagina como unificação no ato sexual. O
ato sexual surge, então, como paradigma dessa conjunção impossível.
Não há relação sexual, não há dois. Trata-se aqui do Um da separação: Yad' V
Unéo Um, cujo suporte vem do campo do Real; é o Um do puro corte.
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Um caso de término de análise com criança
O Um da separação está para representar a solidão, pois indica a não relação
com o outro sexo. É impossível fazer o Um da conjugação, isto é, fazer a
conjugação do macho-fêmea. O parceiro vai, então, ser procurado como aquilo que
está perdido.
O fantasma vai ser constituído na medida em que o objeto a faz o papel do que
vem no lugar do parceiro que falta. A conjunção desse $ e desse a não é outra coisa
se não fantasia: $()a.
O sujeito entra na alienação como objeto a—seria o momento do "não penso".
A passagem dele a sujeito desejante seria via simbolização desse a como -<p.
Portanto, haveria uma passagem de ser a ter: tê-lo, mas enquanto falo perdível.
Durante muito tempo em sua análise, J. deteve-se na questão do brincar com
bola, em ganhar e perder, ou melhor ter ou não ter, o que, na verdade, era um jogo
imaginário que apontava para o simbólico da castração.
A criança, em seu processo de análise, terá ainda que fazer uma separação desse
lugar de objeto a sobre o qual ele nada sabe. É, portanto, na destituição do sujeito
suposto saber que o sujeito retorna ao "não penso" constituinte, mas de uma outra
maneira, uma vez que terá cumprido um percurso de análise.
Quando J. diz à analista — "não é mais com você que tenho que falar, é com
meu pai porque é ele quem sabe" — talvez possamos falar aqui numa certa
dessuposição, ou, pelo menos, num furo no "todo saber".
Quando J. fica em dúvida sobre se abriria mão das outras mulheres para ficar
com uma só, não estaria se delineando aí á questão fantasmática do sujeito
obsessivo?
Levando-se em conta a equação dinheiro-fezes, quando J. resolve pagar o que
deve, não estaria ele deixando cair esse objeto, mesmo que ainda "falte um
pouquinho"? E quando a analista lhe reenvia o "falta um pouquinho" convidando-o
a retornar, não haveria aí uma certa equivalência entre J. e ai
No entanto, uma questão se coloca: J. faz um apelo ao pai, ou um retorno ao pai,
lançando-lhe uma pergunta sobre o outro sexo, mas evidenciando que houve uma
circularídade e uma alienação de uma outra ordem. Como poderíamos pensar esse
retorno ao pai? Acreditamos que um final de análise tem que passar pelo pai uma
vez que o campo do Outro é paterno em Freud.
Freud instala o pai no centro do complexo de Édipo: a entrada no Édipo é
desencadeada pelo pai, e a saída do Édipo implica na morte do pai, ou na entrada
em cena do "pai morto". O pai tem a função de abrir, para o sujeito, o acesso ao
desejo, reenviando o sujeito ao seu próprio enunciado.
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Um caso de término de análise com criança
Um final de análise teria que passar pelo pai, pelo que resta do pai enquanto
pergunta sobre a existência do Outro. Não teria J. feito esse retorno ao pai ao lhe
lançar uma pergunta sobre o sexo, e passando a colocá-lo não mais à margem, não
mais em "câmera-lenta"?
Conclusão
Nas últimas sessões de sua análise, J. fala de uma festa que foi na casa de um
amigo onde, "para ficar mais fácil", ele propõe a Roda do "RAP". O que poderíamos pensar sobre essa Roda? Quando pensamos num final de análise pensamos
na produção de uma borda ao Real que lhe faça limite. "Há do Um" aponta para o
que não se pode dizer; ele. indica que a escritura está para além do que foi falado,
pois a escritura está sempre ligada a impossibilidade. O Um tem que ter lugar no
final da análise pois é o que permite que um resto se produza para escrever a
impossibilidade.
A impossibilidade se escreve ao lado de A mulher, barrando-se o artigo para
indicar a não existência de um universo de discurso. "A escrita que nos interessa
é a que visa produzir, a partir do impossível, uma borda" (Eduardo Vidal, em seu
texto Ya d' V Uri). J., quando fala de sua dificuldade nas festas, fala desse encontro
com A mulher, com o Outro sexo. É um mau encontro, pois é um encontro com o
Real que traz um mal estar. J. não faz essa borda ao Real enquanto escritura; no
entanto, talvez possamos ver a Roda do "RAP" como sendo uma tentativa de dar
conta desse mal estar, mostrando não estar mais numa posição de impotência, e
sim tocado pela impossibilidade.
Nossa hipótese é que, na Psicanálise com criança, teríamos que falar em término
de análise (a partir da diferença que Lacan faz no Seminário do Ato Psicanalítico
entre término e final de análise), um término de análise como ponto de basta a partir
do particular de cada um.
Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan afirma que "a terminação da
análise, é a passagem, com efeito, do psicanalisante a psicanalista, num a posteriori,
num aprés-coup característico do tempo lógico". Esta passagem seria confirmada
no dispositivo do passe, onde a psicanálise em intensão se enlaçaria no horizonte
da psicanálise em extensão.
Propomos que o final de uma análise deveria ser pensado, como nos diz Lacan,
sempre como um final num tempo lógico, e não cronológico, onde o passe estaria
apontado no horizonte, e onde o momento de concluir estaria num a posteriori,
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
Um caso de término de análise com criança
quando então os efeitos do percurso de análise viriam a se manifestar na sustentação
pelo sujeito de um discurso de analista.
Discussão
Algumas questões que nos ficaram a partir da discussão desse trabalho, após
apresentação numa jornada de psicanálise:
1. Em que acarretaria a não maturação genital da criança no trabalho clínico?
2. "... ele não sabe nem onde colocar a mão" —porque nos casos clínicos com
crianças se fala tão pouco em masturbação?
3. Levando-se em conta que o fantasma é estrutural, como ficaria a travessia do
fantasma na clínica com crianças?
4. "Falta um pouquinho" — um título ou uma questão na direção da cura com
crianças?
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
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Um caso de término de análise com criança
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Sobre o fantasma1
Eduardo A. Vidal
D
e início, sobre a travessia do fantasma, alguns pontos iniciais podem nos
servir de referência. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a praxis
psicanalítica é o trabalho das formações do inconsciente em conjunçãodisjunção com a estrutura do fantasma a ser produzida na análise.
Os analistas que sustentaram o desejo nesse difícil campo, nesse difícil trabalho
que é psicanalisar, consideram o fantasma como fundamental. A série é Freud, M.
Klein e Lacan. Os que a abandonaram—e a resistência, em última instância, é do
fantasma e ao fantasma — deslizaram para o domínio da psicologia e terapias que
conhecemos.
O masoquismo moral neurótico é justamente o da culpa por um gozo estrutural,
insuficiente, e é nesse masoquismo moral que Freud faz a implicação do sintoma.
O ponto de conjunção —formação do inconsciente e fantasma — com a qual
nos deparamos permanentemente na clínica, é o sintoma,—sintoma como divisão
do sujeito e na sua estrita relação a um gozo silencioso que Freud chamou de
benefícios sintomáticos.
A implicação do masoquismo no sintoma se exerce pela via do fantasma
enquanto o sujeito sofre a punição — ser batido pelo pai — sob a forma de um
padecimento sintomático. O supereu é, portanto, o intérprete do fantasma no
sintoma. Isto é o que Freud pensa, e nossa clínica o corrobora. O sintoma tem uma
articulação com o fantasma, uma vez que ele representa um gozo. Esse gozo
implica numa posição de punição frente ao Outro que é a encarnação, no sintonia,
da estrutura do fantasma fundamental do sujeito; ou seja, há uma possibilidade de
se pensar, no texto de Freud e na clínica, uma conjunção fantasma-sintoma.
O sintoma não é a única formação do inconsciente e, na nossa prática, a escuta
de um sonho nos revela, e também ao paciente, elementos de seu fantasma. O sonho
é essa cadeia significante que desliza e que traz como retorno uma pergunta pelo
desejo do Outro. A interpretação dos sonhos é uma via regia para o inconsciente,
mas é, nesse mesmo sentido, uma abertura para a localização do sujeito em relação
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
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Sobre o fantasma
ao desejo do Outro. O sonho não é o fantasma, mas o indicador da presença do
desejo do Outro e da posição que o sujeito ocupa em relação a esse desejo. E Freud
também o tomou nessa vertente.
O segundo ponto seria a disjunção: o inconsciente, como lugar do Outro, como
cadeia significante, é disjunto do Isso, ou seja, do silêncio da pulsão e da dimensão
de um gozo real — o que Lacan denominou esse fluxo fugidio dos pensamentos
do analisante ou "a cauda do cometa". O sujeito fala na análise causado por algo
que é disjunto ao inconsciente no qual, de fato, ele se constitui. Que a causa de sua
fala, da associação livre, em última instância, de seu encadeamento inconsciente,
esteja em outro lugar, que a causa seja real e que não esteja ali onde se manifesta.
É nesse sentido que o fantasma se separa das formações do inconsciente e é um
ponto onde não há mais nada a dizer (é o império do objeto a onde o sujeito se
realiza como objeto que goza), é um ponto de silêncio, máximo na disjunção da
formação do inconsciente-fantasma.
Freud escreve duas tópicas: a tópica do inconsciente e a tópica do Isso, que são
correlativas à conjunção-disjunção formações do inconsciente-fantasma.
O terceiro ponto afirma que a psicanálise com crianças é psicanálise. Há uma
mesma ética que rege a psicanálise, e esta ética tem por princípio não retroceder
diante do real da experiência. Não deveríamos estabelecer de antemão as limitações
da psicanálise com crianças para justamente podermos encontrar os limites da
praxis. As limitações se colocam como anteparo e não permitem situar os limites.
A questão do término da análise é um ponto crucial no campo da psicanálise com
crianças.
A demanda associada ao sintoma é freqüentemente escutada na clínica, cujo
correlato, às vezes, é a desaparição do sintoma e a interrupção da análise. É comum
ouvir-se na psicanálise com crianças esse tipo de resolução: uma demanda de
sintoma e seu desaparecimento, quase concomitantemente com o término da
análise. Muitas análises se dão por realizadas quando atingem este ponto. Por que?
Porque a incidência de um analista no inconsciente tem uma função de reordenação, opera como lei. Esse trabalho que conclui com a supressão ou desaparição do
sintoma não deve ser desprezado de antemão. É um trabalho que muitas vezes
atravessa questões sobre a identificação e se confronta com as fantasias de
castração, as quais a criança, como todo ser falante, está submetida, fantasias que
se manifestaram com uma série de inibições.
Se a psicanálise com crianças se inicia com uma demanda ligada a inibições e
a sintomas, o fato de um analista intervir em posição de analista produz uma
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
Sobre o fantasma
desobstrução do quadro sintomático e a passagem ao ato do que estava, em
princípio, inibido. O ato guarda uma relação estrutural com a inibição. As vezes
isto acontece sem que se saiba muito bem o porquê, e nem o que ocasionou
realmente essa mudança. Haveria uma desobstrução pela própria posição que o
analista ocupa no discurso. E a demanda ligada à inibição de funções que as
crianças desenvolvem num momento crucial de mutação da posição subjetiva
(inibição para aprender, escrever, ler, calcular ...). A intervenção tem efeitos, as
vezes "milagrosos", que permitem desobstruir aquilo que estava obturado, e é até
porque o analista opera com uma presença e com uma escuta, o que já tem em si
uma função de desobstrução.
Um dos términos na psicanálise com a criança acontece nesse lugar. É um
término real e possível numa transferência. Às vezes o analista pede para esperar
e é escutado, ou seja, isto indica que há algo para além da execução do ato — é
necessário constituir um saber a ser produzido justamente sob transferência. A
criança pode acompanhar esse desejo respondendo com seu sintoma, ou bem
porque o sintoma permanece, ou bem porque o sintoma aparece e desaparece, o
que faz com que a análise continue — são os casos mais saudáveis para a
experiência analítica. Trata-se de um sujeito que não coloca seu sintoma como
obstrução do fantasma, senão pelo contrário, é aquele que, com seu sintonia,
sustenta a produção de um saber em análise; é aquela criança que acompanha o
desejo do analista no sentido do "devemos esperar". Esse tempo é essencial. Seria
interessante que as análises fossem levadas até esse lugar. Corresponderia a um
dizer da ordem: "ainda não". É um tempo que o analista teria que saber considerar
e até produzir. Essa frase pode ser até mesmo dita ao paciente — é uma frase
essencial. Diz-se "não", algo que é da ordem de uma interdição, e diz-se "ainda",
que, de alguma maneira, supõe que há alguma passagem, algum acesso a ser
discutido no campo da análise — a questão do gozo. "Ainda não". De fato, no
"não" há uma proibição, mas há uma abertura para que ali possa vir uma dimensão
do saber.
Esse tempo, portanto, não deveria faltar numa análise com crianças — o analista
deveria chegar lá. Uma pergunta que o analista de crianças se faz é esta: até que
ponto ou até que lugar ele conduz essa análise? Essa pergunta não é exclusiva de
análise com crianças, mas toma, na análise com crianças, uma premência, um valor
radical.
LETOA FREUDIANA-Ano X-n« 9
97
Sobre o fantasma
Sobre o fantasma
O fantasma, na nossa praxis — Freud e Lacan — nos permitira fazer alguma
distinção da análise com crianças numa praxis kleiniana de uma práxis freudiana,
ou noutra orientação teórica.
O fantasma é uma estrutura articulada numa lógica que opera como resposta à
hiância do campo do Outro. Produzir, elaborar uma lógica do fantasma é interrogar,
de forma permanente, a estrutura do campo do Outro, a estrutura do significante,
especificamente a função de corte nessa estrutura. No seminário Os Quatro
Conceitos Fundamentais, Lacan nos diz: "A relação do sujeito ao Outro se
engendra por inteiro num processo de hiância"2.
A psicanálise pode servir-se dos paradoxos da lógica em frases que provocam
vertigem nos lógicos, mas que encontram uma solução na teoria do inconsciente.
A psicanálise se serve precisamente da lógica para formular que o Outro é
inconsciente.
Se Hans age como cientista, como diz Freud, como pequeno investigador, é
porque ele está tomado na estrutura do fantasma. O que não difere muito da
estrutura daquele que faz ciência. Nesse sentido são equivalentes: os dois estão
tomados pelo fantasma sem questioná-lo. Hans opera com o mesmo fantasma que
o cientista. Aessa falha do Outro ele responde com a produção de uma certa ciência,
responde com a obturação dessa falta de modo equivalente à ciência: não querendo
saber nada disso. O que parece ser um elogio, que Freud faz a Hans, torna-se
definição da estrutura que ele ocupa no fantasma, isto é, que ele é um cientista —
opera não querendo saber nada disso.
Claro está que, para ele como para muitos seres falantes, as coisas se complicaram, especialmente as coisas que "fazem pipi" — é por ali que as coisas se
complicaram. Se tivesse sido um fantasma de um cientista realizado, talvez a fobia
não tivesse acontecido, como muitos cientistas são mais ou menos bem sucedidos
em sua praxis, mas ele é um cientista falho. As coisas se lhe complicam justamente
nesse lugar que ameaça a relevância, que tinha para ele, esse universo fechado que
mantinha com sua mãe. Lacan chega a dizer que nem privação nem frustração
teriam feito tanto estrago quanto esse mundo fechado que continha uma promessa
de felicidade. A partir da complicação exercida pelas "coisas de fazer pipi", o que
é pré-fóbico—por pré-fóbico entendemos o jogo imaginário com a mãe, um gozo
fechado entre dois — se transforma numa fobia manifesta.
A análise que Freud faz, e que Lacan formaliza no seminário Relações de Objeto,
indica que um ponto importante na direção da cura com criança é poder constituir
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LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
Sobre o fantasma
um tempo pata a construção do fantasma. Se o fantasma é a resposta à hiância do
campo do Outro, o tempo de sua construção é essencial. Tanto Freud quanto Lacan
dão a esse tempo um lugar primordial.
Há uma construção que se dá num tempo lógico da análise de Hans, e essa
construção Freud a sustenta como pai simbólico por trás do pai real que intervém
nessa cura, cura atípica, porém muito interessante como dispositivo. É uma cora
interessante porque, desde o início, o campo do Outro está claramente colocado de
uma forma irredutível; é sustentado por um desdobramento entre Freud e o pai da
criança, que nunca se suprime e que produz um efeito inédito e exemplar.
Como esse fantasma foi construído e a partir de que função? Foi construído a
partir do campo do Outro, sob transferência. O fantasma não é algo inato que o
sujeito traz e coloca a funcionar. O fantasma é por excelência o fantasma do Outro,
e é ali onde a criança se inscreve. Isto constitui uma diferença tanto na concepção
teórica quanto na realização clínica. Freud opera pensando esse fantasma como
exterior, como fantasma do Outro, assim ele pode se colocar como terceiro na
relação, e o pai pôde operar como "analista".
Lacan assinala que é um instrumento de crise, uma revolução que se opera na
criança. Do ponto em que Hans estava capturado na trama de um engodo imaginário, de um jogo imaginário, surgem dois elementos: 1) a manifestação de uma
agressividade com o pai; 2) uma certa revelação de uma fixação à mãe.
É precisamente nesse plano imaginário que o complexo de Édipo se manifesta
inicialmente; é nessa mesma estrutura de agressividade ao pai (fantasias do cavalo
caindo, etc.), que se produz a crise, a revolução, algo da ordem de uma saída.
A criança oferece à mãe o objeto imaginário: o falo, sob a forma de um engodo.
Mas ao oferecer o falo já faz intervir um Outro, ou seja, nisso que oferece, indica
como referência: o Outro. Nesse ato de engodo faz existir algo que não estava em
jogo até então; é o ponto em que a estrutura tanto pode significar um fechamento
como também uma indicação para outro lugar. Hans não sabe que está oferecendo
algo que até esse momento não tinha função ou operação nessa estrutura. O qae
poderia ter acontecido então?
Nesse tempo ele descobre algo que pode responder ao Outro, que é o pênis reaL
Nessa trama de engodos há uma descoberta que não tinha lugar até esse momort&
É um momento crucial quando a criança, menino no caso, está totalmente captando
à imagem fálica que a mãe deseja; há um momento em que ele descobre e fazvafer
um elemento, que até então, não tinha função, e que é o seu pênis real. É o momento
em que o pênis real começa a ter função, isto é, que algo do real irrompe no
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
99
Sobre o fantasma
simbólico. Este momento é precisamente o avesso da primeira posição do sujeito
frente ao Outro, a da frustração, em que algo do real, algo do Outro real, se
simboliza no jogo significante de presença-ausência.
Inicialmente a mãe "real" foi constituída num jogo de presença-ausência, ou
seja, foi constituída como mãe simbólica. O que havia de real foi submetido à lei
do simbólico que é justamente a lei do fazer aparecer e desaparecer, a lei do jogo
que conhecemos como Fort-Da, em que a aparição-desaparição do objeto está
sustentada pela introdução da linguagem, pela simbolização. Algo do real, inicialmente no encontro com o primeiro Outro, é simbolizado por um jogo de cadeias
simbólicas. Num outro momento, o real faz intrusão no simbólico justamente para
dar a esse simbólico um certo basta. O pênis comparece como "real" e avesso à
primeira posição do sujeito. Algo do real emerge sendo estritamente real, e
recusando-se a um jogo significante, que vem produzir uma brecha, uma cunha no
simbólico. Este momento é diferente do início em que o real desaparece através
do jogo de presença-ausência; constitui um ponto de virada na estrutura, o que nos
possibilita pensar o tempo da castração simbólica, diferente do primeiro tempo
conhecido como frustração.
Essa reviravolta na estrutura faz com que o sujeito esteja agora ancorado no real,
e não esteja submetido a uma cadeia fugidia de significantes. O herdeiro do
complexo de Édipo é o supereu como estrutura do real, como aquilo que não
desliza. O supereu encarna a lei e o gozo na forma de um paradoxo; é o resto real
na travessia por uma estrutura simbólica. Esse resto é o resíduo dos investimentos
do Isso, das escolhas objetais interditadas do complexo de Édipo. Há, em Hans,
um articulador na descoberta da função do pênis como real, não apenas o falo
imaginário de satisfação do Outro, senão um elemento real que faz obstáculo tanto
ao imaginário quanto ao simbólico, ou seja, um elemento real que o confronta com
sua posição de ser sexuado. Nesse sentido não permite todos os deslizamentos; há
algo equivalente a uma certa limitação na estrutura do fantasma, um centramento
na estrutura do fantasma de elementos reais — completamente diferente do
primeiro tempo da análise em que o jogo imaginário permitira que ele imaginasse
tudo e deslizasse nas cadeias significantes de uma construção mítica. É o momento
que aponta a uma resolução do caso, é o momento em que chega o bombeiro para
fazer a operação de ressituar os elementos nessa estrutura, e é isto que está sendo
anunciado no finar da análise.
É essencial não descuidar do modo de incidência da castração na estrutura. Para
isso foi necessário algo fundamental: o encontro com o pai enquanto real, alguém
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LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
Sobre o fantasma
que não seja apelo de presença e ausência aniquilante do simbólico — um pai que,
de alguma forma, como real para a criança, não seja equivalente ao primeiro
parceiro que é a mãe enquanto simbólico; é alguém que resiste a esse aníquilamento
que o simbólico produz. Daí pensarmos o tempo da castração como sendo sustentado pelo pai real comportanto um objeto imaginário, porque sempre é em torno
do pênis imaginarizado que a questão se dá — seja que possa perdê-lo, seja que
possa utilizá-lo. Essa operação traz uma insuficiência ao fantasma, que irá se
articular ao objeto enquanto imaginário. A importância do pai real está no fato de
que o sujeito que tem um pênis real precisa que um Outro lhe ofereça a função
desde o simbólico, ou seja, ele só poderá utilizar esse pênis real se ele estiver
articulado a uma cadeia de lei e a uma cadeia simbólica. É o que faz com que o
sujeito que porta o pênis real tenha uma dívida simbólica com o pai, porque quem
o constitui como um órgão de gozo é o pai real; é um pai que tem que se fazer
suporte de uma não desaparição, pois tem que estar ali para dar a esse órgão real
uma função simbólica. O sujeito estabelece com o pai a dívida impossível de pagar,
o órgão só passa a ter significação se lhe é dado pelo Outro.
Isto é para indicar que o progresso e a saída, no caso de Hans, se dá a partir de
uma análise onde se permitiu um tempo de construção, uma estruturação mítica
utilizando os elementos imaginários, mas desde a perspectiva de um exercício de
uma operação simbólica. Nessa operação, o que o sujeito irá encontrar é o elemento
de real irredutível que terá relação com a castração.
Temos, em Hans, uma análise em que o desenvolvimento dos mitos imaginários
é surpreendente, a partir da forma como Freud e a própria criança conduzem essa
análise. Há que ter um limite numa análise com crianças, para chegar a um término
e um progresso; não é suficiente ficar em uma estrutura mítica e imaginária. É
necessário que, desde um ponto do real em que o sujeito encontra seu lastro, possa
se fazer um certo furo no simbólico. É isso o que Lacan propõe.
Já na frustração há um desenvolvimento do imaginário articulado ao jogo
presença-ausência da mãe; mas é no momento em que algo do real faz furo no
simbólico, que se articula a questão da castração, e que se torna possível a passagem
e o progresso da análise.
Não é difícil para um analista de crianças, que não articule o campo dos três
registros, fascinar-se, e até se identificar com os jogos imaginários da criança. Há
um certo apelo dessa cena que se faz ante seus olhos, dessa corporeidade da análise
com crianças, desse brincar, dessa aparição dos desenhos, de todas as intervenções
dos outros na transferência — quer dizer, há um certo apelo à que isso se resolva
LETRA FREUDIANA - Ano X - n« 9
101
Sobre o fantasma
no imaginário. Há analistas que o resolvem entrando na análise como um parceiro,
como um irmão da criança, ou seja, operando estritamente no plano imaginário,
desconhecendo que em algum nível terão que introduzir algo estritamente da ordem
do real para que a análise tenha um fim e um término.
A direção é no sentido de fazer uma báscula onde se possa produzir o furo do
simbólico, esse furo que é a possibilidade de um término, por mais que esse término
seja ainda uma interrogação para o analista. Não é suficiente acompanhar as
construções míticas da criança. Foi assim que Freud operou, e assim Lacan o
destacou. Para isso, esse pai real não pode ser muito condescendente nem permissivo. É necessário que se encarne o pai real. O pai de Hans pôde encarná-lo
porque Freud estava atrás.
Não podemos esquecer que quando Hans lhe apresenta o caráter do desejo de
morte, o pai recua e prefere que o menino não lhe diga esse desejo, ou seja, o pai
de Hans quer ser um pai gentil, quer ser um pai que compreende seu filho; para o
menino não há outra saída senão construir uma importante fobia. É necessário um
"père sévère", um "semblante de", mesmo que o analista seja mulher.
A análise do caso Hans operou no fantasma uma certa desestabilização. Não se
sabe até onde se conseguiu a resolução plena, mas muita coisa avançou.
Passemos a algumas questões sobre psicanálise kleiniana. Sem dúvida, a análise
kleiniana tem o fantasma como essencial. Graças a essa articulação, Melaine Klein
considerou a realidade interna como sendo a fundamental e não caiu no que era a
corrente na época: tomar a realidade suposta externa, que levou aos desvios da
Psicologia do Ego. M. Klein tomou uma posição definida: a realidade é interna e
é o fantasma. Não cedeu à realidade externa, que era a corrente de sua antagpnista
Anna Freud, ou seja, fundou a psicanálise estritamente no fantasma. Isso trouxe
um desconhecimento — pensar que o fantasma fosse uma estrutura subjetiva,
correlativa da realidade interna, levou-a a desconhecer que o fantasma é uma
resposta ao campo do Outro. M. Klein analisou o fantasma como se fosse uma
propriedade do sujeito, que já estaria constituído de antemão, e que seria significável, de alguma forma, pela via de interpretação; e como se fantasma e fantasias
fizessem parte da realidade interna do sujeito. Ela não negava que este fantasma
tivesse relação com o Outro no sentido que havia uma projeção e introjeção. Mas
o que ela interpretava era uma propriedade subjetiva. O difícil de focalizar na teoria
kleiniana é que a realidade que o fantasma constitui, é uma realidade do campo do
Outro. Isso ocasionou desconhecimento e excessos na técnica kleiniana, chegando102
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
Sobre o fantasma
se mesmo a postular que a criança em análise é "órfã de pai e mãe", ou seja, ela é
o fantasma que desenvolve na transferência. Num certo sentido isto é interessante,
uma vez que o sujeito de que se tratava na análise era a criança, evitando-se, assim,
as confusões que se criaram com toda a proliferação de análise de família, de casal,
que acarretaram num desvio da posição analítica.
Essa posição ética, que permitia conduzir as análises com firmeza, teve como
ponto essencial de desconhecimento não estimar que o sujeito era uma peça
fundamental no desejo do Outro. E se, por um lado, produzia uma separação e
estabelecia o lugar para uma clínica estritamente analítica, sustentava, por outro
lado, o desconhecimento de que o sujeito era resposta ao fantasma do Outro. A
análise, de alguma forma, estava autocentrada na criança e encontrava a sua
resolução num plano de transferência dual: o analista como espelho do que estava
sendo produzido na sessão analítica.
A criança poderia encontrar alguns pontos de verdade do seu inconsciente, mas
não terminaria sua análise localizada em relação ao desejo do Outro. De alguma
forma, tudo lhe aparece como criação de seu fantasma interno. Este é um risco da
posição kleiniana, e foi a essa questão que Lacan deu uma resposta definitiva nas
duas cartas à Genny Aubry, onde responde taxativamente sobre o que é a função
do fantasma e como é que a criança se articula nele.
Não se trata de perguntar dados sobre a história aos pais, na procura de encontrar
elos da cadeia perdida que é o desejo do Outro. Trata-se de pensar que o sujeito,
na transferência, articula sua relação primordial ao Outro, a esse desejo, tanto na
sua forma de fantasma enganoso, de engodo, quanto de pergunta por aquilo que o
Outro deseja. Isso o analista não pode deixar de escutar. Interpretar questões
relativas ao fantasma de destrutividade, agressividade, tangencia uma dimensão
do fantasma, mas a localização do sujeito na estrutura — na análise kleiniana —
não se consegue realizar.
Se há de se manter o termo "travessia de fantasma" em análise com crianças,
isso implicaria, em princípio, uma travessia do fantasma do Outro. A sua própria
construção fantasmática implica em que a criança atravesse o fantasma do Outro,
ou seja, se produza algo da ordem da separação do lugar que ela ocupava nesse
fantasma, uma separação da consistência que ela lhe dava com seu próprio corpo
a um gozo que, de fato, é inconsistente e que sabemos não haver.
Uma travessia do fantasma implica que o analista se pergunte, sob transferência,
em que lugar este sujeito está situado no fantasma do Outro. Não é a anamnese que
vai dar a resposta mas, à vezes, um esboço da questão se dá numa frase formulada
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pela mãe, na porta do consultório, e que também escutamos. Escutamos esse
discurso do Outro que opera transferencialmente.
Podemos situar, na estrutura, que é necessário operar uma separação. Dever-seia manter a noção de que, em análise com crianças, há uma travessia do fantasma,
que se acompanha de uma certa construção do fantasma do sujeito, mas que, antes
de mais nada, ele deve atravessar — ponto que permite aproximar o término de
análise — o lugar que ele foi chamado a ocupar no fantasma do Outro.
Nas duas cartas de Lacan à Genny Aubry, ela nos diz que a criança é tomada
como objeto da mãe e que, tanto na neurose quanto na perversão, ou na psicose, a
criança está chamada a revelar a verdade desse objeto a que tampona a falta
materna. Ela vem encarnar, corporificar o objeto a e, com isso, a falta da mãe se
mantém saturada e suturada. É necessário que a criança se descole do plano de
identificação a esse objeto, para que ela encontre o que causa o seu desejo, e que
não seja apenas o objeto que tampa um furo, impossível de tamponar, que é o furo
do Outro. Isso permitirá à mãe a possibilidade de ter acesso à verdade de seu desejo.
Lacan está atento a que o Outro não extravie seu desejo na criança, ou seja, se a
criança atravessar a posição que ocupava no fantasma do Outro, também a mãe
recuperará o lugar do seu desejo. Escutamos, na clínica, a queixa da mãe que sofre
com a criança, as limitações que ela padece, os desejos que ela cede, o extravio
que significa essa criança. Se uma análise operou, é na mãe que se sentirão os
efeitos imediatamente, e seus desejos estarão em outro lugar. Ela terá acesso ao
seu desejo justamente quando a criança deixar de ser a tampa de seu fantasma.
Se pensamos que o fantasma é do campo do Outro, deveríamos escutar os efeitos
de uma análise também no campo do Outro, especificamente na ressituação do
desejo do Outro que se opera por uma intervenção analítica. Isso é diferente de
pensar que o fantasma é propriedade do sujeito, o que a vertente kleiniana enfatiza
demais. Não quer dizer que não tenha seu valor, porém limitado.
Que ressituação espera Lacan que possa produzir uma análise com crianças?
Em primeiro lugar, que a mãe recupere a marca de sua falta — marca com a qual
essa criança foi gerada. Em segundo lugar, que o Nome-do-Pai se encarne,
enquanto lei, no desejo. Isto é o que se espera que a travessia da análise com
crianças possa produzir: essa ressituação essencial.
O fantasma é, justamente, a resposta a que não há relação sexual. Portanto, a
criança que está articulada num campo fantasmático já está inserida no campo da
não relação sexual. Há um certo deslizamento de "não há relação sexual" com o
fato de poder exercer o ato sexual. Aí teríamos que fazer a distinção entre
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Sobre o fantasma
relação-proporção-sexual e o ato sexual que pode acontecer a partir do momento
em que o sujeito ganha características sexuais secundárias. Mas não podemos fazer
essa superposição a não ser produzindo um certo risco. O fantasma é a articulação
lógica de que não há relação sexual. Não há relação sexual, não há relação
mãe-filho, como também não há relação analítica estritamente.
Há formas de dizer que não há relação. Se a criança responde ao fantasma da
mãe, é justamente porque não tem relação com ela; daí ter que fazer todas as
piruetas para imaginar, inventar uma relação. O "teatro privado" do fantasma é o
indicador de que não há relação sexual.
Portanto, não se poderia colocar o obstáculo de dizer que a criança não pode
atravessar o fantasma até certo ponto porque ela ainda não conhece a relação
sexual. De fato ela nunca poderá dizê-la, nem antes, nem depois. Portanto, seria
necessário logicamente avançar mais e não colocar isso como limitação. Não é um
limite, e sim uma limitação do analista.
No que diz respeito à produção de um saber, no tempo da construção, esse saber
seria em torno dos mitos em que o sujeito está situado. Mas esse saber é algo mais,
é um saber da posição que ele ocupa no fantasma do Outro. O tempo da construção
desse saber não pode ser atropelado — ele deve existir.
Se este tempo existe, o analista encontrará duas questões que mobilizarão a sua
posição. Em primeiro lugar, ele terá que suportar um tempo que é de profunda
repulsa e rejeição que a criança geralmente encena na transferência: o tempo em
que ela se separa da posição de ser um engodo do Outro. É o tempo em que a criança
não vem mais agradar o analista e, dessa maneira, tentar alienar-se no fantasma do
analista. Ela faz as mil e uma piruetas, como todo sujeito, mas encena de uma
maneira até grotesca os mil e um apelos para se sustentar na posição de querer
subornar o Outro no fantasma. É necessário que se produza um campo de rejeição
em que a criança expulse o analista e, se isto não acontece, não há uma pergunta
sobre essa análise—só há um engodo sustentado pela criança e pelo analista, e os
dois estão muito felizes. É necessário atravessar esse ponto de rejeição como
possibilidade de que o sujeito se descole do lugar fantasmático ocupado para o
Outro. É o que Freud chama á&Abstossung (repulsa) e não Austossung (repulsão).
Não esqueçamos que, para Freud, o que impulsionava uma análise era o desprazer
e o ódio, nunca o amor. O amor suporta, permite que a análise continue, mas não
é o promotor da mudança de posição. Em psicanálise com crianças é comum haver
acordos de discreto encanto e aí, nesse ponto, não há análise.
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Sobre o fantasma
O encontro com o analista se torna estranho para a criança, e emerge na cura
um momento de resistência máxima. E como se a criança se recusasse ao fantasma
do Outro: "o que o Outro quer de mim?" É o momento em que poderá localizar-se
enquanto sujeito na estrutura. E esse momento deve ser sustentado para que se
possa dizer a frase "Eu te demando que tu me recuses aquilo que eu te ofereço".
Que a criança possa articular isso em transferência; que ela possa fazer uma recusa
àquilo que o Outro lhe oferece, e que ela possa dizer "não" ao jogo imaginário
fálico. Quando ela diz "não" a esse jogo, certamente está presentificando algo do
real na transferência. Talvez seja este ponto de báscula que permita ao fantasma
irromper no real, não sendo só uma proliferação imaginária. Daí a crítica a uma
psicanálise que se proponha a brincar com a criança. O brincar pode intervir, mas
apenas como certo suporte para uma gramática pulsional. Que o analista não tenha
gozo comprometido com isso, e que saiba que está escutando uma cadeia associativa a uma distância.
É necessário que se construa esse campo de repulsa para que se passe a outro
tempo de transferência que é justamente o da constatação de uma perda. Ou seja,
uma criança virá a perder, como todo sujeito—mas na criança isto é peculiarmente
forte — o objeto que já estava perdido. No final da análise ela terá perdido
definitivamente sua mãe. Teríamos que pensar se todos os analistas de crianças
querem ser tão "cruéis" e permitir que, no final, a criança tenha perdido a mãe.
Com os adultos somos menos humanistas. Com crianças há um certo anteparo de
que venha a constituir a mãe como objeto perdido. Esse tempo de perda é essencial
para uma saída: é a possibilidade de que o objeto a seja um objeto que também
cause o desejo na criança; que ele venha a fazer-se sede do objeto perdido em
análise.
A experiência dos analistas de crianças é muito dramática e radical, porque
quando a análise acontece em torno dos 6, 7 ou 8 anos de idade, transcorrido um
tempo, o sujeito já não lembra nada do que aconteceu. A Psicanálise com crianças
pode ser a experiência mais radical no sentido de colocar em jogo o recalque
originário que aspira até a representação do próprio analista. Um adulto pode
lembrar-se da análise que fez. Uma criança pode até esquecer que fez uma análise.
Ou seja, se um analista está chamado a ser perdido, é justamente em análise com
crianças, porque ele cai sob o efeito do recalque originário. Quando Hans retorna
a falar com Freud, já não sabia mais o que tinha acontecido, embora Freud tivesse
operado essencialmente na construção do sujeito.
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Caberia, então, a pergunta se essa experiência não é tão radical na medida em
que toca o ponto em que ela acontece quando ainda o sujeito está constituindo-se
no seu recalque originário. A psicanálise com crianças implica numa verdadeira
experiência de destituição subjetiva no analista; é disso que o analista se protege
querendo sustentar alguns objetos que são chamados a serem aspirados pelo
recalque. Devemos, no entanto, saber que há uma travessia. A travessia do
fantasma é a operação de uma separação. E o analista está aí para que isso aconteça.
NOTAS
1. Transcrição da intervenção no Seminário de Psicanálise com crianças na
Escola Letra Freudiana, em março de 1992.
2. LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Jorge Zahar
Editor, p. 196,
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