1 a isenção do ganho de capital de pessoas físicas instituída pela

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1 a isenção do ganho de capital de pessoas físicas instituída pela
A ISENÇÃO DO GANHO DE CAPITAL DE PESSOAS FÍSICAS
INSTITUÍDA PELA LEI DO BEM E AS INDEVIDAS RESTRIÇÕES CRIADAS
PELA IN SRF 599/2005.
Donovan Mazza Lessa1
Daniel Serra Lima2
1. Contexto. A tributação do lucro imobiliário das pessoas físicas e a isenção
prevista na Lei do Bem.
É fato que nos últimos anos houve uma intensa valorização dos imóveis no
Brasil3, o que gerou um aquecimento no mercado imobiliário com um crescente
aumento no número de transações envolvendo pessoas físicas.
Em consequência, a tributação do ganho da capital auferido pelas pessoas físicas
nas alienações imobiliárias passou a atingir um maior número de contribuintes, e a
incidir sobre bases também mais elevadas.
Como se sabe, ganho de capital é a diferença entre o valor de alienação de um
bem e o seu custo de aquisição, sendo tributado à alíquota de 15% (vale conferir o art.
117 e seguintes do Regulamento do Imposto de Renda - Decreto 3.000 de 1999).
Assim, se um contribuinte adquire um imóvel em 01.01.2005 por R$
300.000,00, e aliena esse mesmo imóvel em 01.01.2010 por R$ 1.000.000,00, a
tributação do ganho de capital alcança R$ 105.000,004 (15% de 700.000,00).
A recente valorização imobiliária tornou muito frequentes situações como a
narrada acima, que importam em um custo tributário elevado para pessoas físicas donas
de único imóvel.
Atento a isso, o Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 252/2005 (que
ficou conhecida como “MP do Bem”) que criou uma série de medidas de estímulo à
economia com ênfase no setor imobiliário.
1
Mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Advogado no Rio de Janeiro.
Advogado no Rio de Janeiro.
3
Tal fato é público e notório, e levou o Brasil ao segundo lugar no ranking mundial de valorização
imobiliária (o primeiro lugar é ocupado pela Índia). Apenas na cidade do Rio de Janeiro a inflação do
preço dos imóveis alcançou 700% nos últimos dez anos. Fontes: http://exame.abril.com.br/ e
http://noticias.r7.com. Acesso em 11/07/2012.
4
Neste exemplo estamos desconsiderando os fatores de redução e custos como a corretagem.
2
1
Expirado o prazo de vigência da medida provisória, os incentivos fiscais por ela
criados foram reproduzidos no corpo da Lei 11.196/2005 (a “Lei do Bem”).
Especificamente em relação ao IRPF, referida lei isentou o ganho de capital auferido na
alienação de imóveis residenciais, desde que o contribuinte aplique o produto da venda
na aquisição de outro imóvel residencial (art. 39), além de um fator de redução para a
apuração do ganho de capital de bens imóveis das pessoas físicas (art. 405).
Assim dispõe o caput do art. 39, da Lei 11.196/05:
Art. 39. Fica isento do imposto de renda o ganho auferido por pessoa
física residente no País na venda de imóveis residenciais, desde que o
alienante, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contado da celebração
do contrato, aplique o produto da venda na aquisição de imóveis
residenciais localizados no País.
§1º No caso de venda de mais de 1 (um) imóvel, o prazo referido neste
artigo será contado a partir da data de celebração do contrato relativo à
1ª (primeira) operação.
§2º A aplicação parcial do produto da venda implicará tributação do
ganho proporcionalmente ao valor da parcela não aplicada.
§3º No caso de aquisição de mais de um imóvel, a isenção de que trata
este artigo aplicar-se-á ao ganho de capital correspondente apenas à
parcela empregada na aquisição de imóveis residenciais.
§4º A inobservância das condições estabelecidas neste artigo importará
em exigência do imposto com base no ganho de capital, acrescido de:
I - juros de mora, calculados a partir do 2º (segundo) mês subseqüente
ao do recebimento do valor ou de parcela do valor do imóvel vendido; e
II - multa, de mora ou de ofício, calculada a partir do 2º (segundo) mês
seguinte ao do recebimento do valor ou de parcela do valor do imóvel
vendido, se o imposto não for pago até 30 (trinta) dias após o prazo de
que trata o caput deste artigo.
§5º O contribuinte somente poderá usufruir do benefício de que trata
este artigo 1 (uma) vez a cada 5 (cinco) anos.
5
Art. 40. Para a apuração da base de cálculo do imposto sobre a renda incidente sobre o ganho de capital
por ocasião da alienação, a qualquer título, de bens imóveis realizada por pessoa física residente no País,
serão aplicados fatores de redução (FR1 e FR2) do ganho de capital apurado.
§ 1o A base de cálculo do imposto corresponderá à multiplicação do ganho de capital pelos fatores de
redução, que serão determinados pelas seguintes fórmulas:
I - FR1 = 1/1,0060m1, onde "m1" corresponde ao número de meses-calendário ou fração decorridos entre
a data de aquisição do imóvel e o mês da publicação desta Lei, inclusive na hipótese de a alienação
ocorrer no referido mês;
II - FR2 = 1/1,0035m2, onde "m2" corresponde ao número de meses-calendário ou fração decorridos entre
o mês seguinte ao da publicação desta Lei ou o mês da aquisição do imóvel, se posterior, e o de sua
alienação.
§ 2o Na hipótese de imóveis adquiridos até 31 de dezembro de 1995, o fator de redução de que trata o
inciso I do § 1o deste artigo será aplicado a partir de 1o de janeiro de 1996, sem prejuízo do disposto no
art. 18 da Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988.
2
Da leitura do dispositivo acima verifica-se que a isenção exonera o pagamento
de IRPF sobre ganho de capital auferido na venda de imóvel residencial desde que o
contribuinte aplique o produto da venda na aquisição de outro imóvel residencial no
prazo de 180 dias.
Não há qualquer outra condição exigida pela lei para o gozo do benefício que
não seja a reaplicação do valor auferido com a venda no prazo estipulado.
Como observado por Ricardo Lacaz Martins6, a isenção prevista tem forte
caráter indutor, pois incentiva a aquisição de novos imóveis residenciais com o fruto da
venda dos bens de mesma natureza. É a conclusão a que se chega analisando a
exposição de motivos da Medida Provisória 252/2005:
“As propostas de que tratam os itens 24 a 26 têm o objetivo de reduzir
os custos tributários, de modo a dinamizar o mercado imobiliário, e
estimular o financiamento de imóveis e a construção de novas
unidades”.
Ou seja, o Estado abre mão da arrecadação tributária destinando o recurso do
imposto para benefício do próprio contribuinte, desde que ele fomente o mercado de
imóveis residenciais aplicando o lucro auferido na aquisição de novo imóvel.
2. A interpretação restritiva da Receita Federal sobre a matéria.
No intuito de regulamentar a isenção, a Receita Federal editou a Instrução
Normativa nº 599/2005 que, dentre outras restrições, assim estabeleceu no seu art. 2º,
§11º:
Art. 2º Fica isento do imposto de renda o ganho auferido por pessoa
física residente no País na venda de imóveis residenciais, desde que o
alienante, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contado da celebração
do contrato, aplique o produto da venda na aquisição, em seu nome, de
imóveis residenciais localizados no País.
(...)
§11. O disposto neste artigo não se aplica, dentre outros:
I - à hipótese de venda de imóvel residencial com o objetivo de quitar,
total ou parcialmente, débito remanescente de aquisição a prazo ou à
prestação de imóvel residencial já possuído pelo alienante;
II - à venda ou aquisição de terreno;
6
MARTINS, Ricardo Lacaz. “Tributação da Renda Imobiliária”. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 3.
3
III - à aquisição somente de vaga de garagem ou de boxe de
estacionamento.
(...)
§ 12. A inobservância das condições estabelecidas neste artigo
importará em exigência do imposto com base no ganho de capital,
acrescido de:
I - juros de mora, calculados a partir do segundo mês subseqüente ao do
recebimento do valor ou de parcela do valor do imóvel vendido; e
II - multa de ofício ou de mora calculada a partir do primeiro dia útil do
segundo mês seguinte ao do recebimento do valor ou de parcela do
valor do imóvel vendido, se o imposto não for pago até trinta dias após
o prazo de 180 (cento e oitenta) dias de que trata o caput deste artigo.
Como se verifica, a interpretação da Receita Federal a respeito dos art. 39 da Lei
11.196/2005 e 2º, §11º, inciso I da IN 599/2005 veda, entre outras, a isenção para as
situações em que o contribuinte vende sua propriedade imobiliária e aplica o valor
recebido no pagamento de saldo devedor de outro imóvel já possuído ou cuja promessa
de compra e venda já esteja celebrada.
Em primeiro lugar, pode-se destacar que a interpretação do Fisco sobre o tema
vai de encontro à própria ratio da Lei que concedeu a isenção, que, conforme visto
linhas acima, visa fomentar o mercado imobiliário. Para esse efeito, em tese, é
defensável que se permita a aplicação do produto da venda para quitação de débitos na
aquisição de um outro único imóvel cuja negociação já foi iniciada (ou concluída).
Basta pensar no caso em que uma família já possui um apartamento e se depara
com uma boa oportunidade de compra de um imóvel melhor, mas não tem
disponibilidade imediata de caixa. Neste caso, o contribuinte celebra o contrato de
compra do novo imóvel com pagamento a prazo, contando que irá quitar a dívida com o
produto da venda do apartamento que já possui.
Nesses casos, a RFB, com amparo na IN SRF 599/2005, entende que o produto
da venda do primeiro imóvel residencial não foi aplicado na compra de outro imóvel,
porque o segundo apartamento já teria sido adquirido. No entender do Fisco não teria
sido respeitada a cronologia exigida pela Lei para o gozo da isenção (primeiro a venda e
depois a aplicação do produto na compra de outro imóvel residencial).
Ora, apesar de ter adquirido o segundo imóvel residencial antes de formalizada a
venda do primeiro imóvel, se o contribuinte aplicar todo o produto da venda para
amortizar o saldo devedor do novo imóvel, restará plenamente atendida a finalidade
econômica pretendida pela Lei 11.196/05: o fomento do mercado imobiliário.
4
Ultrapassando o aspecto político da questão, a Lei 11.196/05 apenas condiciona
o aproveitamento da isenção para que se aplique o produto da venda na aquisição de
imóveis residenciais localizados no País no prazo de 180 dias. E só.
Não há qualquer vedação da utilização do produto da venda para quitação ou
redução do saldo devedor de aquisição imobiliária celebrada anteriormente.
Isso demonstra, por si só, a total ilegalidade da IN 599/2005, que criou condição
para fruição do benefício fiscal não prevista na Lei 11.196/05, qual seja, de que o
produto da venda do imóvel seja aplicado na aquisição de novo imóvel.
Como se sabe, a função dos atos infra legais é apenas esclarecer o que já existe
em lei e criar normas para operacionalizar suas disposições, e não criar direito novo, ou
impor limitações não previstas no texto legal. É o que assevera Roque Antônio
Carrazza7:
“Cremos necessário acrescentar que não é tarefa do regulamento
reproduzir os termos da lei tributária, mas, apenas, iluminar seus
mandamentos, para facilitar-lhes a boa aplicação. (...) Logo, o
regulamento tem a função de simplesmente aclarar a lei que o exige.
Deve determinar-lhe o verdadeiro sentido, sem, entretanto, introduzirlhe disposições novas. Por aí vemos que o regulamento não pode criar
dever novo ou proibição nova, mas apenas tornar plenamente aplicável
a lei tributária que o veicula. Tenhamos sempre presente que o
regulamento agrega concreção à lei, mas jamais amplia – tampouco
cerceia – direitos.”
A doutrina especializada8 já se manifestou no sentido de que a IN 599/2005:
“estabeleceu restrições que não tem amparo na Lei 11.196/2005 – como
impossibilidade de utilização do produto da venda de um imóvel na quitação de
parcelas de dívida de outro imóvel adquirido em data anterior (...) vício que torna
absolutamente ilegal a disciplina veiculada pela IN SRF 599/2005.”
Concordamos integralmente com a afirmação acima.
Não há no art. 39 da Lei 11.196/2005 qualquer vedação à aplicação do produto
da venda de imóveis residenciais no pagamento do saldo devedor de outro imóvel
residencial único adquirido anteriormente pelo contribuinte. Assim, manifestamos
7
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 23ª ed. São Paulo: Malheiros,
2007, p. 370.
8
ZANUTO, José Maria. “Incidência do Imposto de Renda sobre Ganhos de Capital Resultantes da
Alienação de Bens” in Revista Dialética de Direito Tributário nº 174. São Paulo: Dialética, março/2010,
p. 91.
5
repúdio a essa interpretação que, a nosso ver, está equivocada tanto do ponto de vista
político quando do ponto de vista jurídico.
3. Momento da aquisição do bem imóvel: remissão aos institutos de direito
civil.
Admitindo-se, para fins de argumentação, que a IN SRF 599/2005 não teria
inovado no mundo jurídico e que a isenção alcançaria apenas o lucro imobiliário
reinvestido em novos imóveis residenciais adquiridos dentro do prazo de 180 dias a
contar da alienação, é preciso enfrentar as seguintes questões: a) a isenção alcançaria o
ganho de capital auferido e reaplicado em imóveis residenciais que já são de
propriedade do contribuinte (registrados no RGI)? b) a norma exonerativa incidiria nos
casos em que o produto da venda foi aplicado para quitação de contrato de promessa de
compra e venda de imóvel cuja propriedade (registro no RGI) ainda não tenha sido
transferida para o contribuinte?
As respostas a essas indagações passam pelo significado de aquisição, que não
foi definido no art. 39 da Lei 11.196/2005, mas tem seus contornos apresentados pela
doutrina civilista e pelo Novo Código Civil.
Quanto à primeira pergunta, embora nosso entendimento, a partir da finalidade
da lei e da inexistência de vedações explícitas, seja no sentido de que a isenção deva ser
reconhecida mesmo no caso em que o alienante já é proprietário de outro imóvel e usa o
produto da venda para quitá-lo, reconhecemos que a interpretação da IN SRF 599/2005
(se válida for) é no sentido de que a exoneração fiscal não se aplica.
Já no caso da segunda pergunta, a situação é radicalmente diferente.
Antes de expor nosso entendimento, devemos registrar que a Receita Federal,
em sede de Solução de Consulta, entendeu que nos casos em que o contribuinte, mesmo
sem ser proprietário (registro no RGI), celebra promessa de compra e venda de um
segundo imóvel, e posteriormente aliena a primeira propriedade imobiliária e aplica o
valor de venda no pagamento da segunda, também estaria afastada a isenção do art. 39
da Lei 11.196/2005. É conferir:
ALIENAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL ISENÇÃO
A pessoa física que adquire um outro imóvel, construído ou em
construção, a partir da data de assinatura do contrato particular firmado
6
com a construtora ou agente financeiro tem a propriedade de dois
imóveis, não podendo, na venda de um deles, fazer jus à isenção do
único imóvel alienado por valor igual ou inferior a R$ 440.0000,00.
Quando o produto da alienação de imóvel residencial for utilizado par a
quitação, total ou parcial, de débito remanescente de aquisição a prazo
ou à prestação de imóvel residencial já possuído pelo alienante, não se
aplica a isenção prevista no art. 39 da Lei nº 11.196, de 2005.
APURAÇÃO DO GANHO DE CAPITAL Nas alienações ocorridas a
partir de 16 de junho de 2005, para efeito de apuração do ganho de
capital podem ser aplicados os fatores de redução previstos no art. 40 da
Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005. (Solução de Consulta nº
318, de 29 de agosto, de 2006)
ALIENAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL. ISENÇÃO
Está isento do imposto de renda o ganho de capital auferido por pessoa
física que alienar imóvel residencial, e no prazo de 180 (cento e oitenta)
dias contados da data da celebração do contrato aplicar o produto da
alienação na aquisição de outro imóvel residencial.
CONTAGEM DO PRAZO PARA AQUISIÇÃO DO OUTRO
IMÒVEL
Estabelecendo a lei que, para efeitos de incidência do tributo, considerase alienação a operação que importa a transmissão ou promessa de
transmissão a qualquer título, de imóveis, ainda que através de
instrumento particular, e que a data da alienação será aquela em que foi
celebrado o contrato inicial da operação imobiliária, o Instrumento
Particular de Compromisso de Venda e Compra acompanhado do
recibo de quitação, constitui documento hábil para comprovação da data
de aquisição do outro imóvel residencial. (SOLUÇÃO DE CONSULTA
Nº 206 de 15 de Junho de 2009)
Como se observa, a linha de raciocínio do Fisco é a de que, com a promessa de
compra e venda, o contribuinte já é possuidor (em sentido lato) do imóvel. Por esta
razão, a isenção não seria aplicável, pois esta alcançaria apenas os imóveis adquiridos
após a venda do primeiro imóvel.
De plano, vale registrar o equívoco conceitual cometido pela autoridade fiscal
tanto na redação da IN quanto na solução de consulta acima relatada. É que, ao usar o
termo “possuidor”, na verdade o que se pretende dizer é proprietário (no sentido de
aquisição).
Com a devida vênia, posse é um instituto jurídico delimitado, e que não se
confunde com o direito de propriedade. Possuidor (art. 1196 do CC), como se sabe, é
aquele que tem de fato o exercício de um ou alguns dos poderes inerentes à propriedade.
Já a propriedade é o direito usar, fruir ou dispor de uma coisa. Assim, o locatário de um
imóvel, apesar de ser justo possuidor, não é o proprietário.
7
Por estas razões, tem-se que a interpretação da IN – se válida for – seria no
sentido de apenas vedar a implementação do benefício no caso em que o particular já
tenha adquirido (e aí se entenda propriedade) de novo imóvel antes da venda daquele
que gerou o ganho de capital.
No entanto, a Receita Federal, em interpretação que a nós parece distorcida de
sua própria Instrução Normativa, defende que a vedação ao benefício estende-se ao caso
em que o particular já tenha pactuado promessa de compra e venda de outro imóvel,
pois parte do pressuposto de que ele já será “possuidor” (em sentido amplo) deste novo
imóvel.
De plano, já se pode apontar o equívoco do órgão fiscal de igualar a mera posse
ou promessa de compra a uma aquisição de bem imóvel, que pressupõe a transferência
de propriedade nos termos do direito civil.
Para avançar no tema, é preciso definir o termo “aquisição” a que se refere a IN
SRF 595/2005, para que não seja a ele atribuído um conceito equivocado de modo a
ampliar à restrição à isenção concedida pela Lei nº 11.196/2005.
Aquisição é ação de adquirir algo. Contudo, no caso de propriedade imóvel, a lei
civil estabelece requisitos formais para que a aquisição imobiliária ocorra. As formas de
aquisição de propriedade imóvel estão elencadas no Capítulo II do Código Civil, que
podem ser (i) por usucapião (quando há posse), (ii) por registro público, ou (iii) por
acessão. Dentre as hipóteses de aquisição de propriedade imobiliária admitidas pela lei
civil, a única possível para o caso proposto seria através de Registro Público, conforme
dispõe o art. 1.245, do CC:
“Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro
do título translativo no Registro de Imóveis.
§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a
ser havido como dono do imóvel.”
Como se sabe, a promessa de compra e venda não transfere a propriedade do
imóvel, razão pela qual não se pode considerar adquirido um imóvel apenas com a
realização da promessa de compra e venda.
A promessa de compra e venda, contrato típico que é, gera apenas a obrigação
do promitente vendedor de transferir a posse e a propriedade ao promitente comprador,
8
em um momento futuro estipulado no contrato. Confira-se a lição de Carlos Roberto
Gonçalves9:
“No direito brasileiro, como já foi dito, a compra e venda não é contrato
translativo, pois o vendedor apenas promete transferir a posse e a
propriedade ao adquirente. O contrato gera obrigações, mas não produz
o efeito de transferir a propriedade. O vendedor não a transfere e, sim,
promete transferir.”
Os efeitos da promessa de compra e venda são, portanto, meramente
obrigacionais. Ainda que o compromisso tenha sido registrado no RGI, (usualmente
utilizado para conferir maior garantia que a compra e venda será efetuada), o promitente
comprador possui desde então tão somente direito real à aquisição do imóvel (art. 1.417,
do CC), o que não se confunde com direito real propriamente dito, ou seja, com a
aquisição do imóvel.
Tanto o é que, em caso de inadimplemento do contrato por parte do promitente
vendedor, o promitente comprador tem a faculdade de propor ação de adjudicação
compulsória, requerendo judicialmente o suprimento de vontade do promitente
vendedor para que transfira a propriedade do imóvel, mediante transcrição do registro
(art. 1.418, CC). Somente com este registro é que haverá a transferência de propriedade
e aquisição, do ponto de vista jurídico, do imóvel.
A doutrina de Caio Mário da Silva Pereira10 resume o que foi dito acima:
“Não se deve confundir, todavia, o contrato preliminar de compra e
venda com o direito real respectivo. O primeiro é o ato causal do
segundo. Melhor dito: o primeiro (o contrato) pode tornar-se causa
geradora do direito real”.
Portanto, tem-se que, no caso em que o contribuinte apenas firmou promessa de
compra e venda, não se pode dizer que ele já adquiriu o imóvel objeto deste contrato.
Ainda que possa ter a posse (caso, evidentemente, esta já tenha sido transferida),
propriedade ainda não haverá.
Por consequência, como a própria IN 595/05 fala em aquisição e não em simples
posse (que é um direito precário e não implica a propriedade, salvo no usucapião), a
9
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. III. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 226.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol IV: direitos reais. Rio de Janeiro,
Forense, p. 446.
10
9
conclusão é de que a isenção sobre o ganho de capital na alienação do primeiro imóvel
deve ser reconhecida, mesmo quando o seu produto seja utilizado para quitação de outro
imóvel objeto de contrato de promessa de compra e venda pactuada antes da venda do
primeiro imóvel.
4. Da peculiar situação da compra de imóvel na planta: inafastabilidade da
isenção da Lei nº 11.196/2005.
Já vimos acima que a simples promessa de compra e venda assinada antes da
venda do imóvel do contribuinte não afasta o benefício fiscal, pois não há que se falar
em aquisição imobiliária sem o registro no RGI.
Se isto já ocorre com imóveis prontos e aptos para habitação (entregue pelo
construtor e com habite-se concedido pelo Município), com muito maior razão deve ser
reconhecida a isenção nos casos em que o produto da venda é utilizado na quitação de
imóvel ainda em construção.
De fato, situação frequente é a do particular que, diante do lançamento de um
empreendimento imobiliário que lhe interesse, pactua com a construtora promessa de
compra e venda do imóvel ainda ser construído, de forma parcelada. E, igualmente
comum, são os casos em que este mesmo particular quita (ou amortiza parcialmente) o
seu saldo devedor com o produto da venda de seu único imóvel, realizada
posteriormente à promessa de compra e venda do imóvel na planta.
Nesta hipótese, não pode haver a mínima dúvida quanto à isenção do ganho de
capital prevista na Lei nº 11.196/2005.
É que a IN 595/95 (novamente, se válida for), com a interpretação dada pela
Receita Federal afastaria o benefício fiscal para os casos em que o ganho de capital seja
aplicado na quitação de imóveis que tenham sido objeto de promessa de compra
anterior.
Ocorre que, no caso da promessa de compra e venda de unidade imobiliária, o
imóvel simplesmente ainda não existe!
Ora, ainda que se entenda que no caso da celebração de promessa de compra e
venda o contribuinte já tem a posse do imóvel objeto do contrato, em se tratando de
intenção de compra de imóvel na planta não há como defender essa conclusão por um
10
motivo óbvio: o imóvel objeto do contrato de intenção de compra sequer existe, pois
ainda não foi construído!
Como é possível, então, ter-se a posse de algo que não existe?
Se o possuidor, nos termos da Lei Civil11, é todo aquele que exerce alguns dos
direitos inerentes à propriedade (usar, gozar e dispor da coisa), resta evidente que o
promitente comprador de imóvel na planta não pode ser considerado como tal. Na
verdade, ele tem mera expectativa de posse do imóvel quando o mesmo for construído.
Até então, o direito do promitente comprador é meramente obrigacional em face da
construtora que se incumbiu de edificar a área.
Portanto, diante desta absoluta impossibilidade fática, não se pode considerar
que aquele que assinou promessa de compra e venda de imóvel na planta (mesmo que
tenha pago o seu preço integral) seja possuidor e muito menos proprietário de imóvel
algum. Ora, e se, por qualquer razão, o imóvel não for construído? Se a construtora falir
ou a licença para construção for revogada?
No plano poético, o promitente comprador é proprietário de um sonho,
proprietário da sua própria projeção mental daquilo que um dia será – se nenhum
contratempo houver - a sua casa.
No plano jurídico, o promitente comprador é credor de uma obrigação de fazer,
que, se não for adimplida, implicará indenização em espécie. Não é ele detentor de um
direito real, mas sim um direito obrigacional, porque, repita-se, a res não há.
Em suma, temos absoluta convicção de que a isenção prevista no art. 39 da Lei
nº 11.196/2005 se aplica ao ganho de capital auferido pelo particular que utilize os
recursos da alienação de seu imóvel para a quitação (ou amortização) do saldo devedor
de contrato de promessa de compra e venda de imóvel na planta, mesmo que este
contrato tenha sido celebrado antes da alienação.
5. O posicionamento do Poder Judiciário sobre a IN SRF 595/2005.
11
Código Civil:
“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes à propriedade.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do
poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
11
Vale destacar que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já se debruçou sobre
a questão.
De acordo com o relatório da sentença, na hipótese o contribuinte vendeu imóvel
residencial em 23.09.2008 por R$ 350.000,00, e utilizou parte do produto da venda para
adquirir a propriedade de outro imóvel residencial. Ocorre que, para esse imóvel, já
existia compromisso de compra e venda celebrado em 2007.
Assim, receando sofrer autuação, o contribuinte ajuizou mandado de segurança
pleiteando a declaração de invalidade da IN SRF 595/2005 e a autorização judicial para
aplicar o produto da venda do imóvel alienado na amortização do saldo devedor de
outros imóveis sem qualquer limitação.
Foi concedida parcialmente a segurança para, apesar de considerar legítima a IN
SRF 595/2005, entender que a mesma não se aplica aos casos em que há mera promessa
de compra e venda anterior, pois a celebração de tal contrato não configura aquisição de
propriedade.
A sentença foi mantida em acórdão de relatoria da Des. Vânia Hack de Almeida,
ementado nos seguintes termos:
“TRIBUTÁRIO. IRPF. IMPOSTO DE RENDA DA PESSOA FÍSICA.
GANHO DE CAPITAL. ISENÇÃO. ARTIGO 39 DA LEI Nº
11.196/2005. CARÁTER EXTRAFISCAL. IN SRF Nº 599/2005.
LEGALIDADE. ISENÇÃO PROPORCIONAL AO VALOR
APLICADO NA AQUISIÇÃO DE NOVO IMÓVEL RESIDENCIAL.
1. O artigo 39 da Lei nº 11.196/2005 instituiu isenção do imposto de
renda da pessoa física sobre ganhos de capital pela alienação de bens
imóveis desde que os valores obtidos fossem empregados na aquisição
de novo imóvel residencial localizado no País em até 180 dias a contar
da celebração do contrato.
2. O dispositivo legal tem evidente caráter extrafiscal e visa a fomentar
o mercado imobiliário e da construção civil, incentivando a aplicação
na compra de imóveis ao invés de, por exemplo, a utilização desses
recursos em outros investimentos de cunho financeiro ou especulatório.
3. Qualquer interpretação extensiva do disposto no artigo 39 da Lei nº
11.196/2005 que resultasse, por exemplo, em vantagem para o mercado
financeiro, iria de encontro à finalidade da norma de isenção.
4. A IN SRF nº 599/2005 não inovou no mundo jurídico, mas apenas
interpretou o dispositivo legal ao esclarecer que a isenção não se aplica
em caso de o valor da venda ser vertido para a quitação total ou parcial
de débito remanescente de imóvel já possuído pelo alienante.
5. Legalidade da norma infralegal. Interpretação gramatical e
teleológica.
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6. O contrato de compromisso de compra e venda não transmite a
propriedade do bem imóvel, de forma que não pode ser
considerado como marco da "aquisição" referida na lei.
7. Comprovado que apenas parte do valor da venda foi utilizado na
aquisição de imóvel nas condições exigidas pela lei, a isenção deve
ser calculada proporcionalmente sobre essa parcela do ganho de
capital.” (APELREEX 200872000121222, VÂNIA HACK DE
ALMEIDA, TRF4 - SEGUNDA TURMA, 07/04/2010)
Apesar de não concordarmos integralmente com os termos do acórdão (pois
reputamos ilegal a IN SRF 595/2005), consideramos que o direito foi corretamente
aplicado ao caso, já que foi reconhecida a isenção do ganho de capital em relação às
parcelas utilizadas na aquisição do novo imóvel dentro do prazo de 180 dias.
5. Conclusão.
Por todo o exposto, chegamos a algumas conclusões sobre a matéria.
A primeira é que o art. 39 da Lei 11.196/2005 impõe apenas duas condições para
o gozo da isenção de ganho de capital: (i) que seja auferido na alienação de imóvel
residencial; (ii) que o produto da venda seja aplicado em 180 dias na aquisição de outro
imóvel residencial.
Não vemos qualquer restrição quanto ao momento da aquisição do segundo
imóvel, que pode ser anterior, desde que o produto da venda do primeiro imóvel seja
aplicado para pagamento do novo imóvel no prazo de 180 dias.
Para a Receita Federal, entretanto, em interpretação equivocada da IN 595/05,
além dos requisitos acima, a receita da venda do imóvel deve ser aplicada na aquisição
de imóveis celebrada após a alienação e dentro do prazo de 180 dias. Além disso, a
Receita Federal considera alienação a promessa de compra e venda ou a posse a
qualquer título, sendo irrelevante o registro de imóveis.
Assim, no entender do Fisco, se o contribuinte celebrar promessa de compra e
venda de um imóvel A (sem adquirir a propriedade), e posteriormente vender um
imóvel B, e aplicar a receita venda na compra do imóvel A no prazo de 180 dias, o
contribuinte teria que recolher IRPF sobre o ganho de capital no valor de 15%.
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A nosso ver, no entanto, a IN SRF 595/2005 é ilegal, pois ao estabelecer que a
isenção só será concedida para a aquisição de novos imóveis em 180 dia após a venda,
extrapola os limites da norma regulamentada, qual seja, o art. 39 da Lei 11.196/2005.
Ainda que se considere válida a referida instrução normativa, entendemos
incorreta a interpretação dada pela Receita Federal, no sentido de que vedar o benefício
fiscal nos casos em que o particular tenha assinado promessa de compra e venda antes
da alienação de imóvel. Pela tradicionalíssima regra do direito civil, a simples promessa
de compra e venda não transfere a propriedade, razão pela qual o particular não pode ser
considerado proprietário de imóvel se ainda houve registro no RGI. Em virtude disto, a
isenção deve ser reconhecida, pois não se está diante de caso em que o particular seja
proprietário de dois imóveis (o anterior e o novo objeto de compra e venda), o que
afastaria a isenção.
Com ainda maior vigor, entendemos que a isenção não poderá ser rechaçada nos
casos de promessa de compra e venda de imóvel na planta pactuada antes da venda do
imóvel do particular, pois nesta hipótese, o novo imóvel ainda não existe. O promitentecomprador, ao fim e ao cabo, é credor de uma obrigação de fazer, e não titular de um
direito real sobre propriedade imóvel.
Logo, mesmo às luzes do equivocado entendimento da Receita Federal sobre a
ilegal IN 595/05, a isenção do IRPF sobre o ganho de capital na alienação do imóvel
próprio deve ser garantida ao particular, ainda que seja aplicado para pagamento de
outro imóvel em construção objeto de promessa de compra e venda.
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