Análise de obrAs literáriAs

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Análise de obrAs literáriAs
Análise de obras literárias
EQUADOR
miguel Sousa Tavares
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CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP
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SumÁrio
1.
Contexto social e HISTÓRICO................................................... 43
2.Estilo literário da época.......................................................... 45
3.O AUTOR.................................................................................................. 47
4.
A OBRA..................................................................................................... 49
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5.Exercícios............................................................................................ 64
EQUADOR
miguel Sousa Tavares
Equador
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1. Contexto social e HISTÓRICO
Embora publicada recentemente, a obra Equador não traduz o momento
social e histórico da sociedade portuguesa. Na verdade, o autor escreve o romance
depois de uma intensa pesquisa histórica, que recua para o início do século XX.
Este fato dá ao livro um caráter histórico. O próprio autor diz numa entrevista
que não quis, de maneira nenhuma, estabelecer paralelo com o que se passa hoje em dia.
Acontece que o país continua o que era: o país mais atrasado da Europa, mais iletrado,
mais provinciano a nível de (sic) mentalidades. Mesmo a elite é provinciana, tirando os
que saíram, os que se exilaram. Quando Eça escreve trinta anos antes dos acontecimentos
do meu livro sobre o país, ele tem a percepção aguda do provincianismo de Portugal porque
viveu lá fora muitos anos. É alguém que vê Portugal de fora. No O primo Basílio tem
uma frase que acho genial. Põe o primo Basílio, que vivia em Paris a exclamar: “Que
pasmaceira de terra em que não há onde comer uma asa de perdiz e beber uma taça de
champanhe à meia-noite”. No tempo em que decorre o meu livro, achavam que decapitando a monarquia, por golpes de mágicos, o país fechado sobre si mesmo, definitivamente
provinciano, passava a ser diferente. Não aconteceu. (...) Portanto, a constatação de que
o país então era igual a hoje é um bocado engraçada, muita gente me fala nisso a partir
do meu livro. Eu não a quis intencional. Portugal era assim, o que eu li sobre a altura
mostrava-o. O autor ainda expõe que eram muitas informações. É rara a página que
não tem, de uma forma que passa quase despercebida ao leitor, uma ou duas coisas que
foram resultado de um grande trabalho de investigação. (...) as raças continuam, só que
muito mais degradadas. Visitei quase todas as raças de S. Tomé e depois fui checar as que
já existiam (...). Felizmente mantiveram os nomes.
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Miguel Sousa Tavares
A partir das palavras do próprio autor, percebe-se que o romance retrata
o período (histórico e verídico) em que a colônia portuguesa S. Tomé e Príncipe
produzia cacau e, apesar de já ter abolido a escravidão, 1867, continuava utilizando mão de obra escrava, sem que os proprietários das roças admitissem tal
fato. As potências europeias impunham sanções para os que continuassem a
praticar “tal desumanidade”.
Concomitantemente à questão da mão de obra na produção do cacau em
S.Tomé e Príncipe, em 1876, foi fundado o Partido Republicano em Portugal. A
proliferação das ideias republicanas aumentam a crise da monarquia. Depois do
atentado a D. Carlos, que resultou também na morte do seu filho herdeiro Luís
Felipe, o movimento republicano se acentuou, chegando até a ridicularizar a
monarquia. Em 3 de outubro de 1910, foi deflagrada a revolta republicana. Com
a adesão de alguns navios de guerra, o governo rendeu-se e os republicanos
proclamaram a República.
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Equador
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2.Estilo literário da época
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Miguel Sousa Tavares
Escrita recentemente, a obra Equador está situada no pós-Modernismo.
Acontece, porém, que não é apenas o momento no qual foi publicada a obra que
caracteriza o seu estilo literário. Há de ser considerada uma série de fatores que
interferem nesta questão.
Julgando o conteúdo da obra, percebem-se fortes e claros aspectos da escola
romântica. O amor, a solidão, a utopia, o nacionalismo – presentes na personagem
principal – são típicos do Romantismo. Por outro lado, julgando a questão social,
o trabalho escravo (pós-abolição), a denúncia do modo com o qual o português
conduzia a sua colônia, os interesses comerciais, prioridade dos portugueses e
dos ingleses, a obra descamba para o Realismo, ou melhor pós-Realismo.
Sem dúvida, ainda podem ser encontrados trechos com indícios do Naturalismo: “Amaram-se assim no chão de areia, junto aos animais. Como os
animais fazem.”
Portador de um estilo simples, claro e minucioso nas descrições, Miguel
Sousa Tavares não constrói Equador preso a uma escola apenas ou obedecendo
aos seus cânones. Ele vai além disso, na tentativa de alcançar o seu propósito:
“eu tinha de dosar a parte histórica, a amorosa, a descritiva, o ambiente, a intriga
política. Sempre quis escrever um romance, contar uma história bem contada (...)
Sou um contador de histórias mais do que um escritor. Escritor é um adjetivo
pesado, quase uma categoria socioprofissional.”
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Equador
3.O AUTOR
Miguel Sousa Tavares nasceu no Porto. Filho da poetisa Sophia de Mello
Breyner Andersen, foi advogado antes de tornar-se um dos mais conhecidos
jornalistas de Portugal e aproximar-se da escrita literária.
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Colunista do jornal Público, colaborador da revista Máxima e comentarista
da RTP, Miguel Sousa Tavares é um dos jornalistas mais famosos e controvertidos
de Portugal. Dono de opiniões fortes, trava polêmicas em vários campos: política,
literatura, esportes e outros. Sua bibliografia é bem diversificada. Há livro de
viagem (Sul – Viagens), crônicas (Anos perdidos), ficção com um pé na reportagem
(Não te deixarei morrer, David Crockett), romance com um pé na História (Equador).
Seu primeiro livro a ser lançado no Brasil – pela Nova Fronteira – é exatamente
Equador, cujo protagonista é Luís Bernardo, o nobre que, em 1905, no ocaso da
monarquia portuguesa, assumiu o posto de governador da colônia de São Tomé
e Príncipe, mudando por completo a vida da ilha e a sua própria vida. Sousa Tavares é, ainda, um apaixonado por futebol, sendo torcedor fanático do Porto.
Equador é o seu primeiro romance, fruto de uma longa maturação e investigação histórica, inspirado num período complexo da história portuguesa, o
início do século XX e últimos anos da monarquia.
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Miguel Sousa Tavares
obras
Equador (Oficina do Livro)
Anos perdidos (Oficina do Livro)
Não te deixarei morrer, David Crockett (Oficina do Livro)
Sul – Viagens (Relógio D’Água)
O segredo do rio (Relógio D’Água)
Um nómada no oásis (Relógio D’Água)
O dia dos prodígios (Europa – América)
Antes do enredo... uma dose de humor...
Slogan para a Bienal do livro:
Livro não enguiça
E já que se fala de livros. Alguns deles
Millôr
Equador – Equador, do jornalista romancista e “tevêman” português Miguel
Souza Tavares, já vendeu mil exemplares. Merecidos. Se passa no Equador, não o país, a
linha imaginária. São Tomé e Príncipe, pra ser exato. Belo romance, bem urdido, e tem
sexo como tudo na vida. As três mulheres do romance, a burguesa de Lisboa, a inglesa
ultramoderna chegada das índias e a criada, negra de fazer inveja às mulheres “populares”
de Jorge Amado – que nunca entendeu que a beleza é uma aristocracia em si mesma –,
são de carne e osso. E muito tesão.
Ah, o livro também tem problemas sociais, violência de escravocratas contra escravos. Mas é, sobretudo, um romance romântico. Se é que me entendem.
Revista Veja, 18/maio/2005
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Equador
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4.A OBRA
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Miguel Sousa Tavares
Equador é um retrato brilhante da sociedade portuguesa nos últimos dias da monarquia, que traça um paralelo entre os serões mundanos da capital e o ambiente duro e
retrógrado das colônias.
Nova Fronteira
O título
Equador: linha que divide a Terra em hemisfério norte e sul. Linha simbólica
de demarcação de fronteira entre dois mundos. Possível contração da expressão
“é com a dor” (“é-cum-a-dor”, em português antigo).
Uma breve síntese
Quando, naquela manhã chuvosa de dezembro de 1905, Luís Bernardo
foi chamado por el-rei d. Carlos a Vila Viçosa, não imaginava o que o futuro lhe
reservava.
Não sabia que teria de trocar a sua vida despreocupada na sociedade cosmopolita de Lisboa por uma missão tão patriótica quanto arriscada na distante
ilha de S.Tomé.
Não esperava que o cargo de governador e a defesa da dignidade dos
trabalhadores das roças o lançassem numa rede de conflitos de interesses com a
metrópole. E não contava que a descoberta do amor mudasse sua vida.
Síntese do enredo
Luís Bernardo Valença tem 37 anos, é solteiro e descomprometido com as
mulheres. Abandonou o curso de direito em Coimbra, aos 22 anos, e regressa
a Lisboa, onde herda a Companhia Insular de Navegação, empresa com três
navios e 35 empregados. Vive com uma velha governanta. Segue uma rotina,
é bem relacionado, espirituoso, inteligente, bom conversador. Interessa-se pela
questão ultramarina e publica dois artigos sobre o assunto, que provocam acaloradas discussões entre europeus e africanistas. Isto ocorre em 1905 – início
do século XX.
Interessara-se pela Questão Colonial, lera tudo sobre a Conferência de Berlim e,
quando a questão ultramarina começou a ser objecto de apaixonadas discussões públicas,
ainda como sequela a do Ultimatum inglês, publicara dois artigos no Mundo, que foram
amplamente citados e discutidos pela sua análise de uma rara frieza e equilíbrio, por entre
o furor patriótico e antimonárquico dominante nos espíritos, em contraste com a aparente
condescendência do senhor d. Carlos. Defendia ele um colonialismo moderno, de matriz
mercantil, centrado na exploração efectiva das coisas que Portugal tivesse capacidade para
levar a cabo, através de empresas vocacionadas para a actividade em África, geridas com
espírito profissional e “atitude civilizacional”, e não mais “entregue aos desígnios dos que,
aqui não sendo ninguém, lá se comportam como sobas, piores do que os que encontraram,
e não como europeus, idos da civilização do progresso, ao serviço do seu país.
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Equador
Os seus artigos foram objecto de acaloradas discussões entre “europeus” e “africanistas” e a fama de que se beneficiou então aliciou-o a ir mais além, publicando um
opúsculo, no qual reuniu os números referentes aos últimos dez anos de comércio de importação das colónias de África, para sustentar a sua conclusão de que esse comércio era
incipiente para a Europa, insuficiente para as necessidades do país e, logo, um profundo
e instalado desperdício.
É convocado para um almoço com el-rei d. Carlos, por meio do seu secretário particular, o conde de Arnoso. Comparece e é surpreendido com um convite
para que assuma o posto de governador das ilhas S.Tomé e Príncipe, colônias
de Portugal, na África.
No percurso em que vai ao encontro do rei, conhecem-se particularidades
sobre Luís Bernardo, e o enfoque é dado ao seu envolvimento com Matilde
– mulher casada, prima do amigo João Forjaz.
O rei explica a Luís Bernardo a situação delicada em que Portugal estava
no que diz respeito às relações com a Inglaterra. Portugal é acusado pela Inglaterra de empregar “mão de obra escrava recrutada em Angola”, concorrendo
deslealmente com as colônias inglesas.
– Bom, parece que depende do ponto de vista, depende do que se entende por mão
de obra escrava. Em rigor, nós chamamos-lhes contratados, mas o problema está em que
todos os anos, em média, são contratados três mil trabalhadores para as roças de S. Tomé
e Príncipe e os barcos que os levam regressam vazios. Isto, para os ingleses, é sinônimo
de escravatura: se os trabalhadores são recrutados em Angola e não regressam, é porque
não são livres. Só faltou chamarem-nos negreiros. O ministro das Colônias explicou ao
embaixador que os ditos “escravos” eram pagos, melhor tratados e bem melhor alojados
do que os trabalhadores das roças inglesas em África ou nas Antilhas e que, em termos
de saúde, não havia melhor garantia do que o facto de várias roças terem o seu próprio
hospital, inteiramente equipado, coisa impensável em toda a África. Mas não serviu de
nada: acicatada pela Associação de Comerciantes de Liverpool, a imprensa inglesa caiu
em cima de nós, sem tréguas.
Além disso, há um relatório nas mãos do ministro inglês, entregue por
Joseph Burtt, que estivera nas ilhas. O embaixador português em Londres firma
um acordo com o ministro inglês para que este não divulgue o relatório. Portugal,
por sua vez, aceita a nomeação de um cônsul inglês para S.Tomé.
Luís Bernardo, aceitando o cargo, teria três missões:
– O que eu espero de si — D. Carlos acentuou bem o “de si” — é que consiga três
coisas: que convença os roceiros de que devem aceitar todas as medidas que o novo governador
entenda tomar para que o cônsul inglês não tenha razões para confirmar o relatório do senhor
Burtt. Segundo, que faça isso com a necessária ponderação, de forma a não lançar a insurreição
nas ilhas e não pôr em causa a sua prosperidade. E, terceiro, que mantenha o inglês cordialmente a distância, dando-lhe a atenção indispensável, mas tornando-lhe perfeitamente claro
que quem manda ali é Portugal e o governador, que representa o país e o seu rei.
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Luís Bernardo, já intimamente decidido a dar uma resposta negativa, promete pensar na proposta e responder em uma semana.
De volta a Lisboa, é incentivado pelo amigo João a aceitar o convite e recebe
do Sr. Veríssimo uma boa oferta para a compra da sua empresa. Encontra-se com
Matilde e vive “noites quentes” ao seu lado.
Bernardo aceita o convite e parte no navio Zaire, numa manhã de março.
A decisão foi motivada principalmente pelo desafio que tinha de se mostrar
patriótico e corajoso.
Durante a longa viagem, faz parada de dois dias em Luanda. O governador
de Angola critica os ingleses.
— Os ingleses! Os hipócritas, os presumidos dos ingleses. Tão humanistas, tão
preocupados, que não distinguem um preto de um amarelo! Diga-me, ó Valença, algum
inglês algum dia terá fodido com uma preta? Não! Mas nós sim, caramba! Sabe como é
que estamos a povoar e a ocupar esta terra imensa de Angola? Não, não é com o Exército,
que toca e foge. Não é com famílias de colonos — quem é o louco que levaria a mulher e
os filhos para o meio do mato, onde não há nenhum sinal de vida civilizada? Não, nada
disso! Sabe como é que ocupamos isto?
Luís faz, ainda, reflexões:
Agora sentia-se preso de uma liquidescência física e mental, como se o calor, a
humildade, o cansaço da viagem e a estranheza do lugar não lhe permitissem ver claro
o que em Lisboa, entre amigos e conversas à mesa dos cafés, comentando as notícias dos
jornais e escutando as opiniões alheias, sempre lhe parecera cristalinamente óbvio. Ele
era, sempre fora e continuaria a ser, fosse o que fosse que o esperava no seu destino, um
homem de convicções feitas e inabaláveis naquilo que lhe parecia essencial: era contra
a escravatura, a favor de uma colonização feita por processos e métodos modernos e
civilizados — só isso garantia, em pleno século XX, o direito de posse que outrora se
justificara pela descoberta ou pela conquista. Acreditava que, como rezava a Constituição
americana, todos os homens nascem livres e iguais, e que só a inteligência, o talento e
o esforço — vá lá, a sorte também — poderiam fazer legitimamente a diferença. Isso, e
não a força, o arbítrio, a ignomínia. Mas, perguntava-se a si mesmo, o que incomodava
verdadeiramente a Inglaterra era a escravatura ou a protecção dos seus interesses comerciais nas colónias? Os ingleses, os franceses, os holandeses tratavam melhor os negros
do que os portugueses, ou tudo não passava de uma imensa hipocrisia através da qual o
mais forte ditava a sua lei?
Chega finalmente a S.Tomé e é recebido pelo secretário-geral do governo,
Agostinho de Jesus Júnior, o qual o apresenta aos demais brancos que o esperavam: o delegado, o vigário-geral, o monsenhor, o presidente da Câmara, o major
de artilharia, o comandante da guarnição, o capitão, o representante dos serviçais
negros das roças. Depois, vai em direção ao palácio do governador. Programa
um baile de apresentação oficial e, em seguida, um jantar.
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Equador
No palácio, conhece Sebastião, chefe dos criados, há 32 anos servindo os
governadores.
O baile ocorreu numa descontrolada ansiedade, afinal Bernardo demonstra
ser diferente dos outros: quebra protocolos, toma banhos de mar, passeia, ouve
música à noite. No jantar, houve claramente, por parte dos administradores das
roças, certa resistência. Bernardo pressente as dificuldades que surgirão para
cumprir sua missão.
— O que considera V. Exa. trabalho escravo?
Luís Bernardo não gostou, decididamente, do tom da interpelação dele, e
foi de arraso:
— O que eu — e comigo, a comunidade das nações e os tratados internacionais
— considero trabalho escravo poderá o senhor curador encontrar definido no que publiquei
sobre o assunto, e que decerto é já do seu conhecimento.
Mesmo de viés, notou com satisfação que o outro corara instantaneamente e ficara
de súbito hirto, acusando o golpe.
Prosseguiu:
— Trabalho escravo para o mundo inteiro — e incluindo, portanto, o governo
português — significa que um trabalhador está adstrito a um trabalho contra a sua
livre vontade.
— Então, meu caro, não temos cá trabalho escravo em S. Tomé — era outra vez o
conde de Souza Faro e Luís Bernardo começava a apreciar a faculdade que ele parecia ter
de intervir sempre para descomprimir o ambiente.
— Os serviçais das roças, ao contrário do que sucede em algumas colónias inglesas
ou francesas — o coronel Maltez debruçou-se sobre a mesa para marcar melhor a sua
intervenção —, não são embarcados à força, são todos pagos e com os salários mínimos
definidos por lei...
Luís Bernardo passa a visitar as roças. Começa pela roça Porto Alegre, na
qual ouviu o canto triste de lamento dos trabalhadores distantes de sua terra e
extenuados pelo trabalho. O almoço dos trabalhadores reduzia-se a farinha cozida e água. Em três semanas visitou muitas roças, conhecendo, inclusive, a ilha
inteira. Na roça Rio do Ouro, foi recebido pelo curador Germano Valente.
Mas, para sua surpresa, quando chegou à Rio do Ouro, num princípio de tarde,
o coronel não estava para o esperar: tinha tido necessidade, disseram-lhe, de se ausentar
para assuntos urgentes a tratar na cidade. Mais estranho ainda, deixara, em sua substituição, o curador Germano Valente, que nunca até então se dignara acompanhá-lo ou
estar presente em nenhuma das outras visitas que já fizera às roças. Luís Bernardo não
sabia exactamente o que pensar daquilo, mas parecia-lhe evidente que a ausência do coronel era um sinal de desconsideração pela sua pessoa: não havia, em S. Tomé, nenhum
assunto cuja urgência justificasse que um administrador de roça não recebesse pessoalmente um novo governador que, pela primeira vez, estivesse de visita à roça. Por outro
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Miguel Sousa Tavares
lado, a presença do curador, apenas naquela roça e em representação ou substituição do
administrador, parecia conter uma mensagem clara: a de que ambos estavam unidos em
algum possível conflito com o governador e que o curador respondia pessoalmente pelas
condições de trabalho naquela roça.
O curador não informa o governador dos números de contratos assinados,
e Bernardo envia o seu primeiro relatório ao ministro Ayres d’Ornellas, avaliando
a situação: as dificuldades, as desconfianças, as condições de vida.
É apresentado a David Jameson, jovem promissor, que não nasceu em
“berço de ouro”, mas ascendeu rapidamente. Ele será o cônsul inglês em S.Tomé,
solução encontrada para minimizar a punição a David, que, envolvendo-se em
jogo e endividado, empenha um castiçal pertencente ao patrimônio do governo.
Trará consigo sua esposa Ann, jovem bela e sedutora. Luís Bernardo e o casal logo
criarão laços de amizade, o que não agradará aos roceiros. João Forjaz visita o
amigo e torna-se também simpático ao casal inglês. Os laços se estreitam cada vez
mais com jantares e conversas. Luís e Ann envolvem-se numa intensa paixão.
Luís Bernardo promove um jantar para comemorar um ano de governo e, dos
120 convidados, apenas 40 comparecem. O casal inglês é hostilizado, e os roceiros
e ilustres habitantes deixam claras a desconfiança e a antipatia pelo governador.
O conde nunca levantara a voz, nunca parecera demasiado empolgado pelo que
dizia. Pelo contrário, falava quase com um tom de enfado de quem tem de explicar coisas
que são evidentes por si. E, ouvindo-o, Luís Bernardo sentia que ele tinha razão. Era uma
situação sem saída, uma armadilha perfeita. “De mal com os homens por amor d’el-rei,
de mal com el-rei por amor dos homens”.
— O que faria, então, você no meu lugar, Souza Faro?
— Não estou no seu lugar, felizmente.
— E se estivesse?
— Defendia-nos a nós, aos portugueses. Nenhum lugar na história lhe estará
reservado se, com razão ou sem ela, você tomar o partido de meia dúzia de comerciantes
ingleses de cacau que temem a concorrência destas miseráveis ilhas de Portugal.
Há uma situação inusitada. Luís Bernardo, assistindo a um julgamento de
dois negros, resolve ser o advogado destes. Todos no tribunal ficam estarrecidos,
e o governador não desiste de sua ideia. O constrangimento é geral e torna mais
grave uma crise já existente.
O desgaste do governador é notório. Evidencia a preocupação com o julgamento que dele era feito. A oportunidade da virada aparece com a visita do príncipe Luís
Filipe e do ministro Ayres Ornelas. Luís dedica-se a todos os detalhes para que esta
visita repercuta positivamente; envolve comerciantes, administradores das roças e
quem mais pode para sucesso da visita. Recupera-se da malária de que fora vítima
e dedica-se exclusivamente à visita real.
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Antes de o príncipe chegar, uma revolta, em Príncipe, exige a presença do
governador. Os trabalhadores da roça Infante D. Henrique rebelaram-se contra
as condições em que viviam e exigiam o afastamento do capataz e dos encarregados. Foram liderados pelo negro Gabriel, que fora agredido e detido. Os negros
negavam-se a trabalhar. Luís Bernardo informa-se sobre os motivos da revolta,
contorna o problema e leva o negro Gabriel para a casa de David.
— Gabriel...
Não houve qualquer reacção no rosto do outro, nada que indicasse sequer que tinha
ouvido chamar pelo seu nome.
— Gabriel, ouves-me? Sou o governador de S. Tomé e Príncipe. Estou aqui para
apurar o que se passou e fazer justiça a todos, brancos e pretos por igual. Não tens de
ter medo, porque ninguém mais te vai tocar e quem te fez isso vai pagar pelo que fez.
Preciso que fales comigo a sós e me contes o que se passou. Ouves-me? Percebes o que
te estou a dizer?
Seguiu-se um grande silêncio, sem que ele desse quaisquer sinais de reagir. Luís
Bernardo pensou que devia estar em coma ou num estado de inconsciência que o impedia
de entender o que lhe diziam. Mas, de repente, percebeu que ele o fixava com o único olho
aberto fazendo um ligeiro movimento de cabeça, indicando que o percebia. Luís Bernardo
levantou-se e deu ordens ao major Benjamim para que dois soldados o transportassem
para onde pudessem falar a sós.
Ocorre a bem-sucedida visita do príncipe D. Felipe. O ministro Ayres ouviu
de David a comprovação de haver, na Ilha, trabalho escravo. O ministro critica
a atuação do governador e seu envolvimento com Ann. Não aceita o pedido de
demissão de Luís Bernardo.
Abatido moralmente, com o fracasso praticamente aceito, Luís tenta construir um hospital. Tudo é impedido pelas notícias que chegam. Os relatórios de
David condenaram a existência de mão de obra escrava, o que gerou um sério
abalo nas relações comerciais entre Portugal e Inglaterra. Luís Bernardo está cada
vez mais acuado e é chantageado pelo procurador João Patrício, que o ameaça:
se ele não convencesse David a enviar um relatório favorável, seria preso por
adultério, juntamente com Ann.
Derrotado, Luís decide partir levando Ann. Sai para convencer a amante
a partir, mas a flagra em pleno ato sexual com o negro Gabriel.
E isso foi mais forte do que ele. O ciúme é irracional: alimenta-se do seu próprio
sofrimento e é como se só conseguisse saciar-se e acalmar-se quando tudo o que de pior
imaginou se torna real e nítido e visível. O ciúme é uma dúvida doentia que cresce como
um cancro e a que só a certeza de já não haver lugar para dúvidas pode trazer, pelo menos, o bálsamo de pôr fim a essa angústia, a esse enxovalho de viver permanentemente
à procura dos sinais da traição. Quanto mais chocante for a evidência, quanto mais real
for o real da traição, mais o ciúme se sente recompensado, redimido, quase digno de respeito. Por isso, ele deu consigo a percorrer os passos que lhe faltavam até poder espreitar,
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Miguel Sousa Tavares
através das cortinas, para dentro do quarto. E, passo após passo, aproximou-se então do
seu encontro com o destino, ao qual viera.
Ann estava deitada de costas na cama, inteiramente nua, o cabelo espalhado em
desalinho pela almofada, a cara ligeiramente corada, de olhos cerrados e um dedo dela
própria enfiado na boca, o seu peito fantástico erguido apontado ao tecto, as pernas abertas,
uma delas pendente sobre a borda da cama. Gemia baixinho e o seu corpo agitava-se ao
ritmo com que ele a ia penetrando!
Sem rumos ou perspectivas, Luís suicida-se, deixando duas contas, sob
responsabilidade de Sebastião: uma para o secretário particular do rei, outra para
o amigo João. Parte de sua fortuna fica para Sebastião e Doroteia.
No epílogo da obra, mencionam-se os assassinatos do príncipe Filipe e do
seu pai, D. Carlos.
Há também a referência às cartas deixadas por Luís Bernardo, ao boicote
do cacau produzido em S.Tomé e Príncipe e à nomeação de David para chefe
de governo do Ceilão.
Caro amigo Bernardo de Pindela
Não recusará este meu pedido, feito a título póstumo, de fazer chegar esta carta
directamente às mãos de Sua Majestade, sem mais nenhuma intermediação.
Queria ainda que soubesse que muitas vezes, ao longo destes sofridos dois anos em
S.Tomé e Príncipe, me lembrei das palavras que me disse em Vila Viçosa, querendo reforçar
o pedido de el-rei para que eu viesse a aceitar o encargo que ele me cometeu: “Que mais
de grandioso poderá levar você da vida?” A resposta é esta: deixei aqui a minha vida; que
mais de grandioso poderia eu dar a el-rei?
Creia-me, com respeito e a amizade de sempre,
Luís Bernardo Valença
(...)
Em 22 de maio de 1908, O Século, na sua secção de noticiário das colónias, dava
conta de que o cônsul da Inglaterra em S. Tomé e Príncipe, David Jameson, tendo sido
dada por finda a sua comissão, fora colocado na chefia do governo provincial de Colombo,
no Ceilão, embarcando, na companhia da sua mulher, no HMS Sovereign of the Seas,
pela rota do Cabo.
Em 14 de março de 1909, as firmas inglesas Cadbury Bros, de Bournville, J.S. Fry
& Co, de York, e Rowtree & Co, de Bristol, em nome de todas as companhias inglesas
importadoras de cacau, decretaram oficialmente o boicote às importações provenientes
da colónia portuguesa de S. Tomé e Príncipe.
Personagens
Luís Bernardo Valença – 37 anos, solteiro, advogado. Vivia com uma velha governanta. Convidado a ser governador de S. Tomé e Príncipe, parte para
a África. Apaixona-se pela esposa do cônsul David (Ann) e, desiludido no amor
e na missão da qual foi incumbido pelo rei, suicida-se.
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Matilde – Prima de João Forjaz. Casada, tem dois filhos. Com Luís Bernardo, Matilde mantém uma breve relação de paixão e risco, até ele partir para
S. Tomé.
João Forjaz – Amigo e confidente de Luís Bernardo. Serve de intermediário
para a relação entre Luís e Matilde. Motiva o amigo a partir para S. Tomé.
D. Carlos de Bragança – Rei de Portugal; vive um mau momento: “Não
havia dia em que a imprensa republicana não se assanhasse contra o rei, a rainha,
os príncipes, a instituição real. D. Carlos abria os jornais e via-se atacado por todos
os lados, caricaturado, ridicularizado, pura e simplesmente ofendido”. “Era rei
de um reino onde se sentia só e atraiçoado por todos os lados”.
Bernardo de Pindela (o Conde de Arnoso) – Secretário particular do rei
D. Carlos. “Um dos integrantes do célebre grupo dos “Vencidos da Vida”, que
tanto agitava a vida intelectual do país uns anos antes e que lhe dera a inesperada
honra de o visitar no seu Escritório da Insular...”. Faz o convite a Luís Bernardo
para comparecer à Corte.
D. Luís Felipe – Príncipe real, filho de D. Carlos. Jovem, 20 anos, chega
a visitar S. Tomé e Príncipe, com o ministro Ayres d’Ornellas e Vasconcelos.
“D. Luís Felipe tinha feito há pouco 20 anos, mas o seu rosto era quase o de um
miúdo de 17 anos, com o sangue do centro da Europa denunciado nos seus olhos
azuis e no cabelo aloirado”.
Agostinho de Jesus Júnior – Secretário-geral do governo e secretário do
governador. “Visivelmente, era um desses portugueses que tinham vindo para a
África por ambição e sonho e que por aqui se quedavam, domesticadas todas as
ambições e transformados os sonhos num olhar fugidio à impossível distância que
os separava da pátria”. “... ele odiava aquela terra desde o primeiro instante em que
lá pousara pé e não houvera um só dia, um só dia, na eternidade daqueles catorze
anos, em que não tivesse olhado o mar antes de se deitar, pensando se o destino
lhe consentiria essa felicidade de voltar um dia por onde viera”. Luís Bernardo
não conta com o apoio de Agostinho: “Fora um imbecil (Luís), um idiota completo:
confiança a quem, manifestamente, a não merecia nem desejava”.
Antônio Vieira – “um jovem dos seus trinta anos”. Delegado do governo
na ilha do Príncipe. Durante uma rebelião, em Príncipe, fica evidente que Vieira
não está disponível para ajudar o governador Luís Bernardo.
José do Nascimento – Subprocurador de Príncipe. Durante a rebelião dos
negros na roça Infante D. Henrique, recebe ordens de Antônio Vieira para ficar
na cidade, pois este achava a presença de José prejudicial ao acalmar dos ânimos.
Por querer cumprir o seu dever, é perseguido pelo delegado Antônio Vieira, pelo
administrador Leopoldo Costa e pelo curador Germano Valente.
Germano André Valente – Curador-geral de S. Tomé e Príncipe, representante oficial dos serviços negros nas roças. “... magro como um ramo seco, de olhar
escondido e meia dúzia de palavras de boas-vindas, cuidadosamente pensadas”.
21
Miguel Sousa Tavares
Mostra-se contra o governador e, embora represente os interesses dos negros,
alia-se aos roceiros.
David Jameson – “... não tinha nascido em berço de ouro. Na verdade
tinha feito todo o seu caminho graças à sua persistência, ao seu valor e ao
seu esforço”. “As gravuras, aquarelas e desenhos da Índia que o pai recebia
tinham-no fascinado desde pequeno e a ideia mítica do Raj foi se tornando aos
poucos uma obsessão, um projeto, um destino, que, por volta dos seus 18 anos,
já não havia força nem razão que conseguissem contrariar”. “Finalmente, a sua
persistência foi recompensada: numa fria manhã de dezembro, com a bruma
marítima ainda envolvendo Edimburgo, o correio trouxe-lhe a tão ansiada conta
do Indian Bureau. Fora colocado em Bangalore, no sul da Índia, no estado de
Mysore, como terceiro oficial de ligação ao governo local”. “Finda a comissão, os
seus bons serviços, assim como o seu conhecimento da língua e do meio local e
a sua jovem ambição, não passaram despercebidos nos relatórios internos e ele
foi chamado a Delhi para ser colocado no governo central do vice-rei...”. “Onde
chegava, ele era a voz do vice-rei, que, por sua vez, era a voz da própria rainha,
que, por seu lado, representava todo o Império Britânico”. “Aos 29 anos de idade, David Jameson já era alguém, um nome passado de boca em boca...”. “Foi
então que Ann o conheceu (...) Mas, para Ann, o futuro não passava pela Índia,
mas sim pela Inglaterra”. “A sua programada distância [Ann], o seu aconselhado
recato desabaram, como um castelo de areia, sob o efeito da fúria, da ambição,
da vida, que jorravam do olhar, da voz, dos gestos, da descontrolada veemência
que irradiava dela”. “Ele era um jogador compulsivo de cartas, um vício largamente alimentado nas noites do clube dos oficiais ingleses em Bangalore”. “Em
menos de dois meses, e sob a ameaça de um escândalo latente, Ann (...) e David
(...) estavam casados”. David foi promovido a governador de Assam e Bengali
Nordeste: “Um mês após a sua chegada já tinha identificado todos os problemas
prementes e tomado o pulso da situação”. “Tudo ele sonhara e tudo tinha. Tinha,
aliás, bem mais do que alguma vez ousara sonhar”. Envolvido em jogo, David
vende peças do palácio do governo (castiçais) para pagar a dívida. “Em Delhi,
David Jameson apresentou-se ao serviço no governo-geral, onde foi recebido
por um diretor-geral...”. “Três anos depois, voltava a entrar naquele gabinete, de
onde a Índia era governada e de onde então saíra com a indescritível sensação
de fazer parte do restrito escol dos que tinham como destino governar a Índia”.
David é enviado a S. Tomé e Príncipe como cônsul, para investigar a situação
dos negros e enviar um relatório à Inglaterra.
Torna-se amigo de Luís Bernardo. O adultério cometido pela mulher abala
a relação dos amigos. Envia um relatório a Londres, no qual ele ressalta o esforço
do governador para impedir a continuidade da mentalidade escravocrata na ilha.
Em 1908, ele é nomeado chefe do governo provisório provincial no Ceilão.
Ann Rhys-More – Esposa de David. Filha de família inglesa. Cede ao encanto que sente por Luís Bernardo: os dois mantêm um caso. Apaixonam-se.
22
Equador
AOL-11
— Sim, Luís, eu posso deixar o David por ti. Sei que posso fazê-lo, sei que te amo o
suficiente para o fazer, sei que esse é o meu desejo mais profundo de todos os dias e de todas
as noites, como tu dizes. Mas não posso fazer agora. Há uma diferença entre deixá-lo ou
abandoná-lo? Posso deixá-lo quando ele terminar a comissão aqui, quando o seu castigo
tiver chegado ao fim e, na Índia ou na Inglaterra, quando possa retomar uma vida decente
e ser de novo uma pessoa respeitada e admirada pelas suas qualidades.
Luís a convida a ir embora com ele. Ela confessa a própria confusão, “da
mistura de sentimentos”.
No final do romance, Luís a flagra em pleno ato sexual com o negro Gabriel.
João Patrício – O procurador régio: “pele amarelada e a cara desagradável
comida de bexigas”. Aliado a Germano Valente, Maltez e Leopoldo, ameaça Luís
Bernardo e o chantageia: se Bernardo não convencer David “a enviar um relatório
a Londres dizendo que o repatriamento dos serviçais, ao abrigo da lei de 1903,
se está a processar normalmente”, ele o prenderá por adultério.
Jerônimo Carvalho – Presidente da Câmara de S. Tomé, por nomeação do
ministro do Ultramar. Mantém com o governador boa relação.
Maria Augusta da Trindade – Proprietária da roça Nova Esperança, viúva, “mulher dos seus trinta e muitos anos visivelmente dotada de atributos que
o vasto decote de seu berrante vestido verde abundantemente documentava”.
Envolve-se sexualmente com Luís Bernardo e critica sua atitude de defender dois
escravos no tribunal, como advogado.
Mário Maltez – Proprietário da roça Rio de Ouro, a maior da ilha. É hostil
com o governador e exerce domínio e influência sobre os demais roceiros.
Souza Faro – “Era uma espécie de decano, em antiguidade, em linhagem
e em conhecimento da colônia. Desde o jantar de gala do ano anterior, Luís Bernardo tinha sentido alguma empatia pelo conde, administrador da Água Izé e,
antes disso, secretário das Obras Públicas em S. Tomé”.
Empregados do Palácio do Governo:
•
Sebastião – “todo fardado de algodão branco com botões dourados reluzentes, avançou um preto alto, de ombros largos, aparentando cerca de 60 anos,
com o cabelo já quase todo branco a rarear”. Empregado fiel e solidário.
•
Mamoun – “o cozinheiro”, casado com Sinhá, ajudante da cozinha.
•
Doroteia – “criada de quarto e de fora, encarregada também das roupas
do governador, uma jovem beldade negra, com corpo de palmeira e olhar
escondido e envergonhado”. Demonstra uma afeição maior do que o normal pelo governador.
•
Tobias – “cocheiro e moço de estrebaria”.
•
Vicente – “um garoto, afilhado de Sebastião”, “moço de fretes e topa
a tudo”.
23
Miguel Sousa Tavares
Soveral – Embaixador português na Inglaterra, “talvez o estrangeiro
mais influente na corte e na imprensa inglesa”. Chama a atenção do rei para as
campanhas desenvolvidas pelas companhias de cacau inglesas, contra S. Tomé
e Príncipe.
Gabriel – Líder da rebelião ocorrida em Príncipe, na roça Infante D. Henrique. Depois de resolvido o impasse, é levado por Luís para a casa de David,
onde fica como criado. No final, é flagrado com Ann.
Foco narrativo
O romance é narrado em 3ª pessoa. O narrador é onisciente e conduz o
leitor às ideias da sociedade e da monarquia de Portugal no início do século XX.
Além disso, “leva” este mesmo leitor às ilhas de São Tomé e Príncipe, na África,
onde focaliza a questão da escravidão, mesmo depois da abolição.
Tempo
Predominam, na narrativa, o tempo cronológico e a narrativa linear,
no período entre dezembro de 1905 – O protagonista indo ao encontro do rei
D. Carlos – e 29 de janeiro de 1908 – dia do suicídio do protagonista. Depois
deste dia, a narrativa faz referência à morte do rei D. Carlos e do príncipe
D. Luís Felipe (1º de fevereiro de 1908), à nomeação de David Jameson como
chefe do governo provincial de Colombo, no Ceilão (22 de maio de 1908), e ao
boicote das firmas inglesas às importações provenientes da colônia portuguesa de
S. Tomé e Príncipe.
Espaço
Lisboa – Portugal, inicialmente. Posteriormente, a narrativa conduz o leitor
a S. Tomé e Príncipe. Para contextualizar a personagem David Jameson – cônsul
inglês em S. Tomé e Príncipe –, há uma rápida passagem pela Índia.
Linguagem
Há uma linguagem clara e objetiva. Em alguns momentos, a descrição é
utilizada para caracterizar ambientes e personagens. Na clareza e na descrição,
o texto aproxima-se do Realismo.
Comentário Jornalístico
Romance de estreia de Miguel Sousa Tavares, Equador é um livro de leitura
obrigatória. E, já agora, pretexto para uma pequena viagem sobre a produção literária
deste marco de referência do jornalismo português.
por Ricardo Simões
24
Equador
As crônicas de Miguel Sousa Tavares já nos habituaram ao seu estilo direto, numa
escrita simples e desenvolta, frontal e cativante.
Confesso que quando comecei a ler Equador não sentia receio de que este pudesse
ser um livro menor, uma espécie de “passo em falso” na carreira daquele que é, para mim,
a principal referência no mundo jornalístico português. Nem sempre estou de acordo com
as suas leituras da atualidade, mas penso que ninguém de bom senso lhe poderá negar uma
coragem e uma frontalidade que, parece-me, muita falta fazem ao povo português. Mas,
regressando a Equador, esse receio não existia, não porque não estivesse consciente de que
existe uma diferença enorme entre escrever crônicas (Anos perdidos), apontamentos de
viagens (Sul), notas do dia a dia (Não te deixarei morrer, David Crockett) e escrever
um romance, ainda mais tratando-se de um romance histórico com mais de 400 páginas.
As diferenças são evidentes e, dessa forma, é perfeitamente possível (e até natural) que
uma dada pessoa tenha um talento especial para escrever determinados tipos de textos e,
por outro lado, não ultrapasse a mediania no que a outras vertentes da escrita se refere.
No caso de Equador, esse receio não existia, simplesmente, porque ao longo dos anos me
habituei a descobrir em Miguel de Sousa Tavares a capacidade para, mesmo em diferentes
registros literários, cativar os seus leitores (nos quais, naturalmente, eu me incluo).
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Equador é romance passado no princípio do século XX, em Lisboa e S. Tomé e
Príncipe. Por um lado, é um retrato romanceado, mas fiel de uma parte da sociedade lisboeta dessa época. Por outro lado, relata com rigor histórico as nuances do colonialismo
português, nomeadamente no que a produção do cacau diz respeito, desmistificando a
ideia de que, pela sua brandura, esse colonialismo foi diferente do de outros países europeus. O que se compreende, a partir da leitura de Equador, é que em todas as formas
de colonialismo existe o elemento puro de exploração de um povo, mas, por outro lado,
existe também o elemento da comunhão entre as nacionalidades. Ou seja, os elementos
humanos fundem-se e, dessa fusão, surgem trocas culturais que são os laços que, verdadeiramente, unem povos que, ao longo do tempo, viram as suas histórias cruzarem-se,
nem sempre pelos melhores dos motivos. Equador não é uma crítica ao colonialismo,
nem é uma apologia do mesmo. É um retrato consciente do mesmo, tendo sempre em
conta que, se julgarmos pelos valores de hoje aquilo que aconteceu há mais de cem anos,
corremos sérios riscos de efetuarmos juízos desprovidos de sentido.
Por outro lado ainda, Equador é a história de um homem, Luís Bernardo, que
é nomeado para o cargo de Governador-Geral de S. Tomé e Princípe. Aqui se ligam as
vertentes históricas e pessoais da obra. Luís Bernardo é incumbido por El-Rei D. Carlos
da missão de estudar as condições de trabalho nas roças produtoras de cacau. Uma vez
que essas mesmas condições (nomeadamente se se trata de trabalho escravo ou não) serão
tema de um relatório de um enviado do governo inglês, e dado que esse relatório será
peça fundamental num eventual embargo britânico ao cacau proveniente de S. Tomé,
facilmente se conclui que Luís Bernardo terá que enfrentar alguns dos mais importantes
produtores de cacau portugueses, não sendo certo que, dada a instabilidade política que
à época grassava, tenha um apoio total de Lisboa na execução dessa tarefa.
25
Miguel Sousa Tavares
No plano pessoal, esta missão representa, para Luís Bernardo, o fim de uma vida
mundana na capital do Império e o princípio de um longo exílio numa ilha distante de
todas as partes do mundo. Será aqui que, para ele, o amor se revela. Mas, como em todas
as coisas na vida, também o amor nem sempre é certo. Um dos pontos mais fortes desta
obra, para mim, é precisamente o percurso individual (no sentido interior) do personagem
central, Luís Bernardo.
Por último, nada do que anteriormente escrevi faria sentido se a escrita de Miguel
Sousa Tavares não se revelasse no romance, como noutros gêneros, um caso ímpar de
fluidez, de um estruturamento lógico inigualável, de um equilíbrio tão perfeito que até
parece fácil de atingir.
Não é. Mas Miguel Sousa Tavares consegue-o.
Uma crítica histórica à obra
“Errare humanum est”: afinal o Miguel Sousa Tavares também é humano!
Sou uma eterna apaixonada do Miguel Sousa Tavares. Li tudo o que ele publicou,
exceto Sahara, a república da areia e Um nómada no óasis, porque estão ambos
esgotadíssimos e não os consigo encontrar. Gostei muito do Sul, que mistura poesia e
viagens; fiquei sensibilizada com O segredo do rio; adorei Não te deixarei morrer,
David Crockett (quem diz que o Miguel Sousa Tavares é um homem seco e amargurado nunca leu este livro!); achei interessante a compilação de artigos políticos de Anos
perdidos. Terça e sexta-feira são os meus dias preferidos da semana porque é nesses dias
que, respectivamente, aparece o Miguel na TVI às 20h e sai um artigo dele no Público.
E, quando soube que ele tinha acabado de lançar um romance histórico de 518 páginas,
fiquei tão feliz que não dormi até comprar o livro. Mas, depois de ler o livro e descobrir
que tinha vários erros de todos os tipos, fiquei bastante desiludida. Porque o meu Miguel
Sousa Tavares tinha sido sempre perfeito, intocável. Farta-se de criticar e destruir os outros,
mas ninguém o consegue atingir nem conseguiu até hoje, porque ele é sempre superior
e tem sempre razão, sabe tudo. Só que eu, agora, com o Equador, eu própria, tão nova
e atrevida, já lhe posso apontar falhas injustificáveis, infelizmente... Não tiram nada à
qualidade indiscutível da sua última obra (o livro está muitíssimo bem escrito e a história
é interessante e inovadora), mas fazem ver no escritor um defeito grave: o desleixo.
O pior de tudo no Equador são os anacronismos, que são os erros contra a cronologia, a atribuição a uma época de usos, noções, práticas que ela não conheceu. Exemplos
no livro: “(...) naquela chuvosa manhã de Dezembro de 1905 (...) o Mundo noticiava uma
crise aberta no Governo francês devido ao aumento dos custos de construção do Canal de
Suez, que o engenheiro Lesseps não se cansava de escavar (...)” – in Equador, pp. 11 e
12. O único problema é que o Canal de Suez foi inaugurado em 1869 e o Lesseps morreu
em 1894...! Miguel Sousa Tavares deve ter feito aqui confusão com o Canal de Panamá,
porque foi o Lesseps quem primeiro planeou a construção desse canal, em 1881, mas as
obras só foram retomadas em 1904, depois de uma interrupção de 16 anos por falta de
26
Equador
meios financeiros e grandes dificuldades técnicas. Outro anacronismo: “O último fimde-semana em Portugal fez questão de o ir passar ao Palace, no Bussaco, um dos seus
locais preferidos” (p.102). No livro, estamos no início de 1906; ora, o Bussaco Palace
Hotel, na Floresta do Buçaco (Mealhada), só foi construído em 1907 (sobre as ruínas de
um eremitério beneditino do século VI), e foi residência estival da Coroa (não um hotel)
até à República! E, finalmente (p.13), não se pode falar em telex em 1905 (só apareceu
em meados do século XX!).
Agora falemos de lacunas em geografia... Se situar S. João Baptista de Ajudá no Ghana
(p.101), em vez do Benim, é ignorância; dizer que Angola tem 330.000 km2 (p.118), em vez
de 1.246.700 km2, é abuso. Talvez as fronteiras em 1906 ainda não estivessem perfeitamente
definidas como hoje, mas duvido que no início do século Angola fosse um país quatro vezes
menor do que é hoje...! E, quanto a S. João Baptista de Ajudá, Ouidah (hoje), ser na Costa
do Benim, não tenho qualquer dúvida, pois já lá estive e visitei lá o Forte Português entre
outras coisas. S. Jorge da Mina é que fica na costa do Ghana! Já agora, para acabar, note-se
que quem gosta de fazer bem as coisas deve lembrar-se de que, em 1906, o Ghana chamava-se
Gold Coast, assim como o Benim tinha o nome de Dahomey.
Depois dos erros todos que já citei, pequenos erros históricos como o que a seguir
transcrevo já nem nos chocam ou parecem graves: “Bombaim, a porta de entrada dos
ingleses na Índia, só se tornara inglesa porque os portugueses a tinham oferecido à Inglaterra no dote de casamento de Catarina de Bragança com Jaime II (...)” – p. 243. D.
Catarina de Bragança, filha de D. João IV, casou com Carlos II Stuart, rei de Inglaterra
e da Escócia, a 30/05/1662 (e não com Jaime II)! Miguel Sousa Tavares fala também das
exportações inglesas de café e cacau do Gabão e da Nigéria (pp.40 e 56); porém, o Gabão
nunca foi colônia inglesa, mas sim francesa desde o século XIX (juntou-se ao Congo
francês em 1888). E acho difícil que a Inglaterra tivesse relações comerciais tão intensas
com uma colônia francesa em 1905...
Last but not least, porque absolutamente desnecessários e evitáveis, os erros de
precipitação ou falta de paciência para reler o que foi escrito: Miguel Sousa Tavares fala
em jantares semanais de amigos no Hotel Central à quinta-feira (pp. 18 e 303), ou quarta-feira (p. 69), segundo a sua inspiração; ou ainda dos navios “Catalina”, “Catarina” e
“Catavento” (p. 13) da Companhia Insular de Navegação, para depois falar mais longe
do “Catrineta” (pp. 79 e 80) como um dos navios, como se nada fosse...
“The past is a foreign country”, gosta de citar Miguel Sousa Tavares (cfr. Não te
deixarei morrer, David Crockett). Pois bem, Miguel, visite bem esse país estrangeiro
antes de voltar a escrever sobre o passado: aprenda a sua língua, as suas dimensões, a
sua história, a(s) sua(s) cultura(s), e não pense que o conhece só porque leu (a correr)
sobre ele... Se não for capaz disso, seja humilde, e continue a escrever sobre o presente,
pois escreve muito bem (isso ninguém pode negar!).
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Stéphanie Pinto da França Roux
27
Miguel Sousa Tavares
5. Exercícios
Questões de proposições múltiplas
Texto para as questões de 1 a 3
Afastou o jornal, com um profundo suspiro.
Definitivamente, e como dissera a João, faltava ali
qualquer coisa de grandioso: no país e na sua vida.
A ele, a política como modo de vida nunca o atraíra.
Costumava dizer que, na vida, ou se faz alguma coisa
de verdadeiramente importante ou é melhor não fazer
nada. Viver ao sabor da corrente, como ele fazia, saboreando
as coisas boas e agradáveis e evitando com destreza os alçapões, as prisões, os compromissos. Odiava a fé e os fanatismos, na religião como na política, na vida social como
no trabalho. Nada lhe parecia ainda verdadeiramente importante para o incomodar
seriamente, para trocar o conforto dos seus dias pelo desconforto da ambição. Muitos
intelectuais do seu tempo pensavam como ele mas pareciam sofrer esse vazio de causas
e de ambições como um mal: ele via-o como um privilégio.
TAVARES, Miguel Sousa. Equador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 85.
1.
O texto já levanta alguns caracteres que contribuirão para a construção do perfil
da personagem na obra, dentre os quais são verdadeiros:
(01)Sua desmedida ambição que o conduz a abdicar de qualquer princípio ético
na realização de sua tarefa.
(02) A adesão completa aos interesses dos roceiros de São Tome e Príncipe, o
que faz aumentar o conflito entre Portugal e Inglaterra.
(04) A dimensão utópica que marca a sua ação administrativa no arquipélago.
(08) A ética cavalheiresca e humanista que norteia a sua atitude ante os conflitos
com que se depara.
(16) A inapetência para as tarefas rotineiras, o que o conduz à omissão e ao
fracasso.
(32)O idealismo que lhe impõe a missão de transformar a realidade e o coloca
em choque com uma realidade adversa.
(64) A indiferença com que trata das tarefas inerentes à missão que se impôs por
puro sentimento de aventura.
2.
O texto e a obra Equador destacam uma personagem que:
(01) temendo enfrentar grandes desafios, aceita o cargo de governador de São
Tomé e Príncipe como garantia de comodidade de vida.
(02) por convicções megalomaníacas, aderiu inusitadamente à vida política do
seu país e se propôs a missão de transformar a nação.
28
Equador
(04) ponderando os fatos, as situações pessoais e as de seu país, termina por
assumir um papel decisivo na alteração de rumo de sua vida.
(08) mesmo admitindo a vida confortável e sem problemas que leva, inquieta-se
por buscar um sentido maior para a sua existência.
(16) consciente do vazio e da inutilidade da vida burguesa, tenta redimir-se pela
participação política e pela militância partidária.
(32) avaliando criticamente o país e sua vida pessoal, toma uma atitude que
poderá, a seu ver, trazer benefícios para ambos.
3.
Sobre o texto e seu contexto no romance, assinale as proposições corretas.
(01)O fragmento contextualiza social, cultural e politicamente a narrativa, cuja
extensão será condicionada à trajetória da personagem.
(02) Há identificação entre a condição existencial da personagem e o seu meio
social de origem, cujos valores serão expostos criticamente na narrativa.
(04)Os valores e pressupostos éticos que marcam a personagem no texto serão
os mesmos no decorrer da obra.
(08)No texto, a personagem se refere a “qualquer coisa de grandioso: no país e
na vida”. Isto será conseguido pela personagem no decorrer do romance.
(16) A frase: “Na vida, ou se faz alguma coisa de verdadeiramente importante,
ou é melhor não fazer nada” adquire o valor positivo e norteador na ação
subsequente da personagem.
(32) “Viver ao sabor da corrente, como ele fazia,” será também o princípio norteador de suas atitudes em São Tomé e Príncipe.
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Texto para as questões de 4 a 6
— Gabriel...
Não houve qualquer reação no rosto do outro, nada que indicasse sequer que tinha
ouvido chamar pelo seu nome.
— Gabriel, ouve-me? Sou o governador de S. Tomé e Príncipe. Estou aqui para
apurar o que se passou e fazer justiça a todos, brancos e pretos por igual. Não tens de
ter medo, porque ninguém mais te vai tocar e quem te fez isso vai pagar pelo que fez.
Preciso que fales comigo a sós e me contes o que se passou. Ouve-me? Percebes o que te
estou a dizer?
Seguiu-se um grande silêncio, sem que ele desse quaisquer sinais de reagir. Luís
Bernardo pensou que devia estar em coma ou num estado de inconsciência que o impedia
de entender o que lhe diziam. Mas, de repente, percebeu que ele o fixava com o único olho
aberto fazendo um ligeiro movimento de cabeça, indicando que o percebia. Luís Bernardo
29
Miguel Sousa Tavares
levantou-se e deu ordens ao major Benjamim para que dois soldados o transportassem
para onde pudessem falar a sós.
Ergueram-no em braços e levaram-no para debaixo de uma árvore afastada uns
vinte metros de onde o grupo estava. Sentaram-no encostado ao tronco e trouxera-lhe
água numa tigela, que ele bebeu a custo, ajudado por um dos soldados. Luís Bernardo
pegou num pequeno banco de madeira que ali estava e sentou-se à frente dele.
— Gabriel, ouves-me agora?
Ele fez que sim com uma ligeira inclinação de cabeça.
— Percebes o que te digo?
Novo assentimento de cabeça.
— O que se passou quando foste levado para falar com o administrador, o engenheiro Leopoldo?
Gabriel começou a falar, com grande dificuldade. O seu português era fluente,
mas as palavras saíam-lhe a custo da boca massacrada. Falava muito lentamente e de vez
em quando interrompia-se para beber água, ajudado por Luís Bernardo. Mas não tinha
muito para contar: tudo começou, explicou ele, quando o encarregado Joaquim Silva, o
mais temido e detestado por todos os serviçais, aplicou um violento golpe de chicote num
trabalhador, que não teria mais de onze anos, que, sob o sol inclemente, tinha abandonado
a sua tarefa para ir beber água. Os serviçais que assistiam àquilo ficaram revoltados e
cresceram para o encarregado, o qual se pôs a andar, voltando com o capataz Ferreira
Duarte e mais uns cinco brancos, todos armados de revólveres ou espingardas. O capataz ouviu as explicações dos serviçais, olhou as costas do miúdo marcadas pelo chicote e
limitou-se a ameaçá-los de que fariam o mesmo a todos; se não voltassem imediatamente
ao trabalho. Nessa noite, na senzala, os mais velhos reuniram-se a seguir ao jantar e ficou
decidido que, na manhã seguinte, quando a «forma» fosse mandada destroçar e seguir para
o trabalho, ninguém se mexeria do seu lugar e ele, Gabriel, ficava encarregado de pedir
que chamassem o administrador, a quem comunicaria que só voltariam para o trabalho
se o capataz e os encarregados Joaquim Silva e o Custódio «Pilão» fossem afastados das
suas funções. Pediria também que fosse chamado o curador à cidade para que eles lhe
apresentassem as queixas que tinham. Assim se fez, no dia seguinte, e quando o engenheiro Leopoldo chegou ao terreiro, mandou-o entrar para o seu escritório e aí disse-lhe que
estava disposto a ouvir as queixas que os serviçais tinham e a discutir a solução com ele,
Gabriel, mas não debaixo de um motim: só negociaria com ele se os convencesse a partir
para o trabalho, enquanto os dois ficariam a discutir. O Gabriel voltou lá fora para falar
com os seus camaradas, os quais eram de opinião que se tratava de uma armadilha, que
ele não deveria ficar e que se deveriam manter intransigentes na exigência da demissão
do capataz e dos dois encarregados. Finalmente, conseguiu convencê-los e eles partiram.
Então, levaram-no de volta para o escritório do administrador, que começou imediatamente a ameaçá-lo que quebraria o motim a tiro, se fosse necessário, tentando obrigá-lo
a assinar um documento em como declarava que os serviçais da roça se tinham revoltado
30
Equador
sem motivo algum. Ele recusou-se e começou logo a ser agredido por quatro ou cinco
brancos, armados de cassetetes e mocas, ali mesmo, em frente do engenheiro Leopoldo.
Ele tentou defender-se, mas em breve estava no chão e os golpes continuaram até perder
a consciência. E nada mais sabia: só dera acordo de si nessa manhã, fechado dentro de
uma dependência vazia, onde nem sequer havia uma janela.
TAVARES, Miguel Sousa, Equador.
AOL-11
4.
De acordo com o fragmento e o todo da obra, é possível afirmar que:
(01) a personagem principal – Luís Bernardo – decide, impensadamente e por
vaidade, aceitar o cargo de governador de S. Tomé e Príncipe.
(02) tornar-se governador de São Tomé e Príncipe dá a Luís Bernardo um sentido
novo à sua vida.
(04) Luís Bernardo é constantemente desafiado na ilha – tanto pelos roceiros
como pelos seus conflitos amorosos.
(08) alguns fatores determinam a partida de Luís para S. Tomé – um deles é a
influência do amigo João.
(16) a visão antiescravocrata do governador não impede que os roceiros mantenham a utilização de mão de obra escrava.
(32)Luís consegue várias vitórias diante dos roceiros, inclusive o desligamento
do curador Germano Valente.
5.
A respeito da estrutura da narrativa e dos recursos nela utilizados, pode-se
afirmar que:
(01) o narrador personagem, por presenciar todos os fatos, possui total domínio
da narrativa.
(02) a linguagem é clara e objetiva, aproximando-se do texto jornalístico.
(04) há, em alguns momentos, uso do discurso indireto livre e do fluxo de consciência.
(08) o tempo é predominantemente cronológico, com a maioria das ações lineares
e sucessivas.
(16) um recurso bastante utilizado em toda a obra é o flash-back, justificando o
presente com ações passadas.
(32) há um narrador onisciente que, embora seja de 3ª pessoa, é crítico e emite
pontos de vista.
(64) o número de personagens é restrito, tornando o enredo sem complicação
ou sem momentos de clímax.
31
Miguel Sousa Tavares
6.
Sobre a obra, é correto afirmar que:
(01) a solidão de Luís em S. Tomé faz com que ele se aproxime do cônsul inglês,
fato não aceito pelos roceiros.
(02) não aceitando qualquer tipo de escravidão, Luís acaba por ficar contra os
roceiros, dificultando a execução de suas missões.
(04) o fato de haver-se apaixonado pela esposa de David traz mais um conflito
à vida de Luís.
(08) o final trágico de Luís é produto de dois fracassos: o político e o amoroso.
(16) como a Inglaterra não boicota o cacau produzido na colônia portuguesa, é
possível dizer que o governador não fracassou totalmente.
(32) os maus-tratos que Luís dá aos seus serviçais fazem com que ele seja odiado
por Sebastião, Vicente e Doroteia.
(64) o assassinato do rei D. Carlos e do seu filho D. Felipe demonstram que a
monarquia está em seu final, e a República definitivamente se imporá.
GABARITO
1. 44 (04 + 08 + 32)
2. 44 (04 + 08 + 32)
3. 19 (01 + 02 + 16)
4. 30 (02 + 04 + 08 + 16)
5. 46 (02 + 04 + 08 + 32)
6. 79 (01 + 02 + 04 + 08 + 64)
32