O mais pequeno país da América Latina adoptou o dólar como
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O mais pequeno país da América Latina adoptou o dólar como
DOSSIER Contradições O mais pequeno país da América Latina adoptou o dólar como moeda, mas só a parte mais rica da população terá ficado a ganhar. Os centros comerciais com lojas de marca abundam na capital, San Salvador, mas também subsistem os bairros de lata e a miséria. As desigualdades sociais acabam por texto Leonídio Paulo Ferreira* fotos Daniel Dal Bom e Lusa Mulheres e crianças deslocadas para um abrigo improvisado durante uma das frequentes tempestades tropicais que fustigam o Pacífico e 16 FÁTIMA MISSIONÁRIA JANEIRO 2009 DOSSIER salvadorenhas agravar a criminalidade e assim a tradição de violência persiste numa terra que na década de 80 foi palco de uma sangrenta guerra civil. Agora, as sondagens dizem que a antiga guerrilha Farabundo Marti pode ganhar as eleições legislativas e presidenciais de 2009. Seria uma viragem histórica atingem a costa de El Salvador e a dos países vizinhos O pico mais alto do vulcão Quezaltepeque, o Picacho com os seus 1960 metros de altitude, domina o horizonte a partir de San Salvador, uma cidade de dois milhões de habitantes com fama de ser uma das mais violentas da América Latina. As razões dessa violência percebem-se assim que se viaja até ao centro, um conjunto de casas degradadas onde são raros os vestígios de edifícios antigos porque os sucessivos terramotos os foram destruindo. No coração da cidade, a Plaza Barrios, surge a catedral, cuja versão actual data de 1999, e o palácio presidencial. Pouco mais. De resto, são pequenos comércios decadentes, centenas de vendedores ambulantes e um mercado de artesanato que funciona num antigo quartel e que é das poucas razões para os estrangeiros descerem até ao centro da capital salvadorenha. Sim, descer, porque San Salvador é uma cidade que funciona em dois níveis: a parte alta, com as suas Zona Rosa ou Colónia Escalon, cheia de centros comerciais e restaurantes luxuosos, e a parte baixa, a tal onde fica a Plaza Barrios e um palácio presidencial que não é habitado: António Saca, chefe do estado desde 2004, prefere obviamente viver lá no cimo, na metade da sua capital que JANEIRO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 17 DOSSIER Interior da igreja de El Salvador, de Valladolid. O cristianismo dos salvadorenhos tem as suas raízes em Espanha mais parece uma cidade média dos Estados Unidos, do que lá no fundo, onde existe a América Latina no seu pior. “Evite sempre o centro. Não é seguro para os estrangeiros. Lá estão os ‘mañosos’ e as ‘maras’”, adverte Nelson, funcionário de um pequeno hotel da Colónia Escalon. Os ‘mañosos’ são os ladrões que a qualquer momento podem puxar de uma arma e exigir a carteira a alguém. Os ‘maras’, bem mais perigosos, são os membros de bandos armados que têm ligações a vários países da região e aos Estados Unidos. Aliás, o grande problema actual da violência em El Salvador (o jornal “La Prensa Gráfica” noticiava 17 assassinatos num fim-de-semana), explica um diplomata europeu, são “os jovens expulsos dos Estados Unidos e que vêm parar a um país que não conhecem”, referindo-se aos delinquentes de Los Angeles e outras cidades, filhos de imigrantes salvadorenhos, e que por não terem nacionalidade americana são, depois de cumprirem pena, expulsos para o país dos seus pais, de onde partiram crian- O mais pequeno país da América Latina Localização Situada na América Central, a república de El Salvador é o único país da região que não é banhado pelo mar das Caraíbas. O seu litoral é todo no Oceano Pacífico, enquanto as fronteiras terrestres são com a Guatemala e as Honduras. Montanhoso mas fértil, o território está pejado de vulcões, alguns dos quais tiveram erupções recentes. Área 21 041 quilómetros quadrados. População 6,9 milhões. Capital San Salvador Língua oficial Espanhol. Religião Católicos 57,1 por cento, protestantes 21,2 por cento, testemunhas de Jeová 1,9 por cento, mórmones. Esperança média de vida Homens 69 anos, mulheres 75 anos Moeda Dólar americano e cólon salvadorenho. Exportações Café, açúcar, camarão, têxteis, químicos, electricidade. Rendimento médio por habitante 2850 dólares. 18 FÁTIMA MISSIONÁRIA JANEIRO 2009 Guatemala Honduras Nicarágua DOSSIER O catolicismo chegou a El Salvador no século XVI, com a conquista da região pelo espanhol Pedro de Alvarado ças ou onde nem sequer nasceram. A relação com os Estados Unidos tem marcado a história de El Salvador desde o século XIX. Independentes de Espanha em 1821, os salvadorenhos escolheram depois o seu caminho próprio em 1840, abandonando uma espécie de federação centro-americana. Pouco a pouco a influência dos Estados Unidos, aqui como no resto da região, foi-se impondo, com uma clara preferência por regimes militares que contrariassem a influência dos movimentos de camponeses ou de operários. Uma primeira revolta importante, liderada por Farabundo Marti, foi esmagada nos anos 30. Depois, durante a década de 80, El Salvador tornou-se célebre a nível mundial pela sua guerra civil, com os militares apoiados pelos Estados Unidos de um lado e a guerrilha marxista Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti do outro. De repente, o mais pequeno país da América Latina (menor do que o Alentejo) tornava-se palco de um dos típicos conflitos da Guerra Fria e de tal forma mítico que o realizador Oliver Stone lhe dedicou um filme intitulado simplesmente de “Salvador” e onde denunciava os grupos paramilitares de direita. A guerra civil terminou em 1991, quase ao mesmo tempo que a tensão Washington-Moscovo, mas a influência dos Estados Unidos persiste, primeiro que tudo porque El Salvador necessita das remessas de divisas dos seus emigrantes em terras do Tio Sam, depois porque desde 2001 o dólar americano substituiu a todos os níveis o cólon como moeda salvadorenha (oficialmente coexistem). Prova da ligação extrema aos Estados Unidos, El Salvador tem até hoje tropas no Iraque, com o presidente António Saca, neto de palestinianos, a querer provar a sua aliança a Washington. Num país onde o catolicismo é muito forte e que tem no assassinado bispo Óscar Romero um símbolo de luta a favor dos pobres, a presença americana sente-se também através da ofensiva dos missionários protestantes e cerca de um quinto dos 6,9 milhões de salvadorenhos segue já outras correntes cristãs. O catolicismo chegou a El Salvador no século XVI, com a conquista da região pelo espanhol Pedro de Alvarado, nascido em Badajoz e que, apesar de casado com uma nobre castelhana, teve vários filhos de uma princesa índia. “Somos quase todos mestiços de espanhol com índio”, diz uma jornalista do “El Mundo”, um dos jornais de San Salvador. O povo indígena mais importante do território quando chegaram os conquistadores europeus era o Pipil (os seus vestígios podem ser vistos no Museu Nacional de Antropologia David J. Guzman e existem também ruínas interessantes fora da capital, como em Tazumal), próximo dos maias. Depois do final da guerra civil, os salvadorenhos têm tentado reconstruir o seu país, o que foi facilitado pela pa- cificação dos vizinhos, sobretudo Guatemala e Honduras. Com este último, El Salvador teve uma curta guerra em 1969 que foi motivada pela expulsão de salvadorenhos, mas que como começou após um jogo entre as selecções dos dois países ficou conhecida como a “Guerra do Futebol”, título, aliás, de um livro do jornalista polaco Ryszard Kapucinski. A nível político interno, a luta tem sido entre o partido Arena, de direita, e a Farabundo Marti, com vantagem até agora para o primeiro, que elegeu sempre o presidente e conseguiu igualmente controlar o governo através de várias alianças. Mas as sondagens publicadas nos jornais mostram que nas eleições previstas para 2009, a antiga guerrilha pode ganhar em toda a linha. Muitos salvadorenhos estão revoltados com a persistente pobreza e sobretudo com os contrastes dentro da própria sociedade. Existem bairros de lata onde a miséria é total, mas ao mesmo tempo existem centros comerciais como o Gran Via, em San Salvador, parecido com o FreePort de Alcochete, onde quem tiver abundância de dólares pode jantar em restaurantes com preços europeus ou fazer compras em lojas das marcas mais prestigiadas. *jornalista do Diário de Notícias Francisca Gonzalez, de 89 anos, fugiu da seca para a Nicarágua, com a família JANEIRO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 19 DOSSIER Da conquista espanhola à demo pós-guerra civil San Salvador funciona a dois níveis: a parte alta, com as ricas e luxuosas Zona Rosa ou Colónia Escalon, e a parte baixa pobre e degradada 1524 O espanhol Pedro de Alvarado conquista o território que hoje é El Salvador. 1540 A resistência indígena é esmagada e El Salvador torna-se numa colónia espanhola. 1821 El Salvador integra as Províncias Unidas da América Central, das quais fazem também parte a Costa Rica, Honduras e Nicarágua. 1840 El Salvador conquista a independência total. 1859 O presidente Gerardo Barrios introduz o cultivo do café. 1932 Mais de 30 mil pessoas perdem a vida na repressão de uma re- volta dos agricultores liderada por Agustine Farabundo Marti. 1961 O Partido da Conciliação Nacional (PCN, de direita) chega ao poder após um golpe militar. 1969 El Salvador ataca as Honduras após a expulsão de milhares de imigrantes ilegais salvadorenhos daque- Sinais de Belém em terras americanas António Saca, presidente de El Salvador, tem raízes na Palestina, com a sua família a ter imigrado para El Salvador no início do século XX. Mas o mais curioso é que o seu rival derrotado nas eleições de 2004, o ex-guerrilheiro Schafik Handal, também conhecido como comandante Simon, é igualmente originário da chamada Terra Santa. Os seus avós, tal como os de Saca, vieram de Belém, a pequena cidade pales- tiniana onde fica a Igreja da Natividade e recordada por todo o mundo cristão como o local de nascimento de Jesus Cristo, há dois mil anos. Entre palestinianos, libaneses e sírios, calcula-se que cerca de cem mil descendentes de árabes vivam hoje em El Salvador. Na sua maioria cristãos, são conhecidos, como em toda a América Latina, pela designação de “turcos”, porque quando as suas famílias imigraram viajaram 20 FÁTIMA MISSIONÁRIA JANEIRO 2009 com o passaporte emitido pelo Império Otomano, que até 1918 dominou boa parte do Médio Oriente. Gente trabalhadora, a primeira geração apostou forte no comércio para ganhar a vida, enquanto a segunda geração investiu na educação. Hoje, os árabes fazem parte da elite salvadorenha, dando desde muitos políticos até vários dos empresários mais importantes desse país centro-americano. DOSSIER mocracia le país. Segue-se uma breve guerra. 1977 As actividades da guerrilha Frente de Libertação Nacional Farabundo Marti ganham maior dimensão à medida que se multiplicam os relatos de violações dos direitos humanos pelo exército e esquadrões da morte. O general Carlos Romero é eleito presidente. 1979-81 Cerca de 30 mil pessoas são mortas por esquadrões da morte de extrema-direita, apoiados pelo Governo. 1979 O general Romero é afastado através de um golpe de oficiais reformistas que instalam no poder uma junta de civis e militares. Esta não consegue controlar a violência política apoiada pelo exército. 1980 O arcebispo de San Salvador e activista dos direitos humanos Óscar Romero é assassinado. José Napoleon Duarte torna-se no primeiro presidente civil desde 1931. 1981 França e o México reconhecem a guerrilha Farabundo Marti como uma força política legítima. O Governo continua a receber apoio dos Estados Unidos e a apoiar por sua vez os esquadrões da morte. 1982 A Aliança Nacional Republicana (Arena), de extrema-direita, vence umas legislativas marcadas pela violência. 1984 Duarte ganha as presidenciais. 1986 Presidente inicia uma tentativa de diálogo com a Farabundo Marti. 1989 Intensificação dos ataques da Farbundo Marti. Alfredo Cristiani, candidato da Arena, vence umas presidenciais marcadas por suspeitas de fraude. 1991 A Farabundo Martin torna-se partido político e assina acordo de paz com a Arena, apoiado pela ONU. 1993 Governo amnistia os implicados por uma comissão da ONU sobre as violações dos direitos humanos. 1994 Armando Calderon Sol, da Arena, eleito presidente. O bispo dos pobres O tiro atingiu Óscar Romero no coração quando o bispo de San Salvador celebrava a missa na capela do hospital La Divina Providencia na capital salvadorenha, a 24 de Março de 1980. Mas a homilia que ditou a morte do religioso fora proferida na véspera. Nesse dia, Monseñor Romero, como era conhecido entre os fiéis, ousara apelar aos soldados para porem fim à repressão que ensanguentava El Salvador. “Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem que contrarie a vontade de Deus”, exclamou do púlpito. Um claro apelo à revolta dos militares que ditou a morte do homem que ficou para a história do seu país como 1999 Francisco Flores, da Arena, derrota o ex-guerrilheiro Facundo Guardado nas presidenciais. 2001 Um forte sismo mata 1200 pessoas. 2004 António Saca, da Arena, eleito presidente. 2005 Reabertura da investigação ao massacre de centenas de agricultores o bispo dos pobres. Nascido em 1917 numa família numerosa de Ciudad Barrios, recuperou de forma inexplicável de uma doença quando tinha apenas sete anos. Dos pais herdou a fé profunda e bons conhecimentos de carpintaria. Mas foi no seminário jesuíta de San Salvador que confirmou a sua vocação. Apanhado pela II Guerra Mundial em Roma, onde estudava, recusou fugir, ao contrário de muitos colegas. De volta a El Salvador, acabou anos mais tarde por se ver envolvido numa guerra financiada civil atroz entre um regime apoiado pelos estados Unidos e uma guerrilha marxista. Mas os seus apelos a uma intervenção internacional encontraram pouco eco e ficaram sem resposta. Crente na ressurreição, Romero costumava dizer: “Se eles me matarem, renascerei no povo salvadorenho”. Talvez por isso, quase três décadas após a sua morte, ainda seja uma das figuras mais amadas do país. E são muitos os líderes internacionais que sempre que visitam San Salvador lhe prestam homenagem junto ao seu túmulo. Em finais de Outubro, quando a capital salvadorenha acolheu a Cimeira Ibero-Americana, pelo menos os presidentes da Bolívia, Evo Morales, e do Paraguai, o ex-bispo Fernando Lugo, se lembraram de Monseñor Romero. em 1981; uma das maiores atrocidades de uma guerra civil que fez 70 mil mortos. Em Outubro, a erupção do Ilamatepec leva milhares a fugir. 2008 San Salvador acolhe durante três dias a Cimeira Ibero-Americana, com a presença de líderes de 22 países, incluindo Portugal. JANEIRO 2009 FÁTIMA MISSIONÁRIA 21