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Alejo Carpentier
Consciência e identidade da América
Consciência e identidade da América
Alejo Carpentier
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Vértice, 1987. p.35-41: Consciência
e identidade da América. (Tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina)
Comentário e hipertextos: Aimée González Bolaños (FURG)
Tradução do comentário e dos hipertextos: Liliam Ramos (UFRGS)
CONSCIÊNCIA E IDENTIDADE DA AMÉRICA1
Aos latino-americanos da minha geração coube um estranho destino que por si só bastaria para
diferenciá-los dos europeus; nasceram, cresceram, amadureceram, em função do concreto
armado... Enquanto o europeu nascia, crescia, amadurecia, entre pedras seculares, velhas
edificações modificadas ou anacronizadas somente por alguma tímida inovação arquitetônica, o
latino-americano nascido nos albores deste século de inventos prodigiosos, mutações, revoluções,
abria os olhos no âmbito de cidades que, quase que totalmente estagnadas durante o século XVII
ou XVIII2, com um baixíssimo aumento de população, começavam a agigantar-se, a estender-se,
a espalhar-se, a elevar-se, ao ritmo das misturadoras de concreto. A Havana que percorri na
minha infância era ainda parecida à de Humboldt; o México que visitei em 1926 era ainda o de
Porfírio Diaz; a Caracas que conheci em 1945 era ainda muito semelhante à Caracas descrita por
José Martí.
E, de repente, eis que nossas modorrentas capitais se tornaram cidades de verdade (anárquicas
em seu desenvolvimento repentino, anárquicas em seu traçado, excessivas, desrespeitosas em
seu afã de demolir para substituir), e o nosso homem, consubstanciado com a cidade, torna-se
homem-cidade, homem-cidade-do-século-XX, quer dizer: homem-História-do-século-XX, em
povoados que rompem com seus valores tradicionais, passam, em poucos anos, pelas tremendas
crises de adolescência e começam a firmar-se com características próprias, ainda que em
atmosfera caótica e desacertada.
O latino-americano viu surgir, nesta época, uma nova realidade, realidade da qual foi juiz e
parte, criador e protagonista, espectador atônito e ator principal, testemunha e cronista,
denunciante ou denunciado. "Nada do que me cerca me é alheio3" poderia dizer, parafraseando o
humanista renascentista. "Isto foi eu que fiz, aquilo eu vi construir; aquilo mais adiante me
prejudicou ou eu amaldiçoei. Mas fiz parte do espetáculo - seja como ator principal, testemunha e
cronista, denunciante ou denunciado.
"Nada do que me cerca me é alheio" poderia dizer, parafraseando o humanista renascentista.
"Isto foi eu que fiz, aquilo eu vi construir; aquilo mais adiante me prejudicou ou eu amaldiçoei. Mas
fiz parte do espetáculo - seja como ator principal, seja como corista, ou como coadjuvante"... Mas,
montado o cenário, colocadas as bambolinas, pendurados os telões, é preciso ver, agora, o que
vai ser reapresentado - comédia, drama ou tragédia - no vasto teatro de concreto armado.
1
Discurso pronunciado por Alejo Carpentier na Aula Magna da Universidade Central da Venezuela, a 15 de maio de 1975, por ocasião
da homenagem que lhe renderam a própria Universidade, o Ateneu de Caracas, a Associação de Escritores Venezuelanos e a Associação
Venezuelana de Jornalistas. (Nota do comentarista)
2
Carpentier, a partir de diversas etapas de sua vida, alude à temporalidades históricas do século passado, patentes
em três importantes cidades latino-americanas: Havana, de sua infância (primeiros anos do século XX) é ainda de Alejandro de
Humboldt (1769 - 1859), eminente naturalista alemão que viaja por todo o continente americano entre 1799 e 1804. Pela sua
extraordinária visão de natureza de Cuba foi chamado "seu segundo descobridor"; Cidade do México, que visita pela primeira vez em
1926, continua sendo de Porfirio Díaz (1830 - 1915), figura marcante da história política mexicana. Seu governo autoritário, conhecido
como "porfirato" (1876 - 1911) desemboca na eclosão da Grande Revolução Mexicana (1910). Caracas é onde vive a partir de 1945, e
está muito próxima da escrita por
José Martí (1853 - 1995), principal personalidade da história revolucionária cubana, que durante a primeira metade de 1861, reside na
Venezuela.
3
Carpentier alude à célebre expressão de Terencio (190? - 159 a.C.) em sua obra teatral El verdugo de si mismo: "Hombre soy: nada
humano me es ajeno (Homo sum: nihil a me alienum puto" (I, I, 25), atualizada pelo humanismo renascentista e de significativa
recorrência em toda cultura posterior como expressão de máxima solidariedade humana.
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E aí que está o verdadeiro problema: com que autores poderemos contar? Quem serão estes
autores?... E para começar... quem sou eu, que papel serei capaz de desempenhar e, acima de
tudo, que papel me cabe desempenhar?... Eterno reviver do "conhece-te a ti mesmo4". Mas, de
um "conhece-te a ti mesmo", que se formula num mundo - o que circunda nossas ambiciosas e
irreverentes cidades modernas - que, para ser honestos, conhecíamos muito mal até agora e que
só agora (de poucos anos para cá: meio século apenas) estamos começando a conhecer
profundamente. Está longe o tempo em que os famosos e envaidecidos "cientistas" de Porfírio
Diaz, nas comemorações do centenário da independência mexicana, proclamavam que estavam
resolvidos todos os enigmas do nosso passado pré-colombiano. Está longe o tempo em que
contemplávamos nossos grandes homens do passado do ponto de vista único de uma devoção
que excluía qualquer enfoque crítico, do imediato e do contingente... Está longe o tempo em que
víamos nossa História como uma mera crônica de ações militares, quadro de batalhas, intrigas
palacianas, ascensões e quedas, em textos que ignoravam o fator econômico, étnico, telúrico, de
todas aquelas realidades subjacentes, de todas aquelas pulsões soterradas, de todas as pressões
e apetites estrangeiros - para ser exato, imperialistas - que faziam da nossa história uma história
diferente das demais histórias do mundo. História diferente desde o começo, já que esta terra
americana foi o teatro do mais sensacional encontro étnico registrado nos anais do planeta:
encontro do índio, do negro e do europeu de tez mais ou menos clara, destinados, no futuro, a
misturar-se, entremisturar-se, estabelecer simbioses de culturas, de crenças, de artes populares,
na mais tremenda mestiçagem já vista... "Temos que ser originais" - costumava dizer Simón
Rodríguez5, mestre do Libertador... Mas, quando pronunciava estas palavras, não tinha que fazer
o menor esforço para ser original - pois já éramos originais de direito e de fato, muito antes que o
conceito de originalidade nos fosse dado como meta.
Não incorre em vão convencimento americanista quem afirmar hoje, com perfeito conhecimento
de causa que, antes que os conquistadores espanhóis o contemplassem sem o entender, exibiase no Templo de Mitla6, no México, o mais perfeito apogeu de uma arte abstrata longamente
amadurecida - arte abstrata que não resultava de uma mera intenção de ornamentação
geométrica, simétrica e reiterada, mas sim da disposição perfeitamente intencional de
composições abstratas, de idêntico tamanho, nunca repetidas, vistas, cada uma como um valor
plástico completo, independente e fechado. Não é preciso ser guiado por um excessivo amor à
nossa América, para reconhecer que nas pinturas que adornam o templo de Bonampak7, em
Yucatán, apresentam-se diante de nós figuras humanas em escorços de uma audácia
desconhecida pela pintura européia da mesma época - escorços que se assemelham, embora
muito anteriores, ao de um Cristo de Mantegna8, por exemplo. E tem mais: só agora estamos
começando a nos aprofundar na maravilhosa poesia náhuatl9 e estamos começando a perceber a
4
"Conhece-te a ti mesmo", inscrição do templo de Apolo em Delfos e imperativo moral de Sócrates (470 - 399 a.C.),
altamente representativo de linhas principais de desenvolvimento do pensamento grego e a tradição clássica.
5
Simón Rodríguez (1771 - 1854), citado por Carpentier em numerosos ensaios, é um ilustre pedagogo venezuelano, professor de
Simón Bolívar, de pensamento avançado que desde muito cedo defende a legitimidade de nossa cultura. Assim, em 1840 afirma: "A
América não há de imitar servilmente, e sim ser original. A língua, os tribunais, os templos e os violões enganam o viajante. Fala-se,
disputa-se, reza-se e toca-se à espanhola, mas não como na Espanha."
6
Mitla (Oaxaca, México), antiga cidade sagrada dos zapotecas. Os mixtecas desenvolveram uma brilhante cultura nela
a partir do século X de nossa era. Suas ruínas mostram cinco edifícios muito compridos que formam uma praça. Estes edifícios têm
muros verticais e carecem de janelas ou subdivisões internas. O mais significativo são os relevos que cobrem os muros sem
interrupção ou preenchendo os seios regulares de uma sinuosidade retilíneo. Trata-se de relevos
totalmente abstratos, de rica decoração geométrica, muito variados, realizados por meio de pequenas peças de grande repercussão,
como um mosaico. Mitla foi considerada uma necrópole onde eram guardados os restos mortais de sacerdotes e chefes guerreiros. É
um conjunto arquitetônico da maior relevância.
7
O Templo de Bonampak (Yucatán, México) é um tesouro da arte mundial. Descoberto em 1945, no centro da selva
tropical, seu nome quer dizer, em língua maia, "muros pintados". O Templo das Pinturas compreende três salas cujos muros estão por
pinturas que datam do século VIII da nossa era. Estes caras-de-pau representam um nutrido desfile de fiéis e músicos com tambores e
trompetes, rendendo tributos ao Sumo Sacerdote. Figura também uma cena de revestimento ritual e outra de apresentação de um
príncipe, todos eles rodeados por animais aquáticos, atributos do deus da chuva. As figuras são de grande realismo, individualizadas ou
detalhadas, sobretudo na expressão dos movimentos. Nada simbólicas ou hieráticas, permitem penetrar na vida dos sacerdotes - reis e
dos que lhes rodeavam com uma linguagem pictórica de notável dinamismo e excelência formal.
8
Andrea de Mantegna (1431 - 1506), pintor italiano do Quattrocento. Renomado por seus retratos originais e a
representação
vigorosa de temas sacros. Entre estes últimos se destaca o Cristo muerto (aproximadamente 1501), de inusitada perspectiva,
sentimento patético e tensão emocional, todo ele altamente expressivo do caráter renovador de suas concepções pictóricas
renascentistas.
9
Principal idioma falado pelos índios mexicanos. (N do T.)
O chamado "tronco náhuatl" é formado por um conjunto de povos pré-hispânicos assentados no México centras, dos quais se destacam
os astecas, e que falavam a mesma língua. Criadores de uma poderosa poesia, esta será recuperada em parte pelo trabalho de
Bernardino de Sahagún e, em nossa época, graças à tarefa crítica de Angel María Garibay e Miguel León Portilla. Nezahualcóyotl (1402
Alejo Carpentier
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singular e profunda essência filosófica das grandes cosmogonias e dos mitos originais da
América.
E tem mais. Sem citarmos exemplos que poderiam se multiplicar ao infinito, desde o tempo da
Conquista e da Colônia, vemos afirmar-se, de mil maneiras, a originalidade e a audácia do homem
americano em obras de caráter muito diferente. É aqui, nesse nosso continente, onde nunca
chegaram o romântico e o gótico, onde a arquitetura barroca encontrou suas expressões mais
diversas e completas - no México, por todo o espinhaço Andino - com o emprego de materiais
policrômicos, o uso de técnicas aperfeiçoadas pelo artesão índio, que os arquitetos europeus
desconheciam. É aqui, nesta terra, onde, com as ininterruptas sublevações de índios e negros
(desde os primórdios do século XVI), com os Comuneros de Nova Granada10, com a gesta de
Túpac Amaru, até o tempo das nossas grandes lutas pela independência11, se assistiu às
primeiras guerras anticoloniais - pois foram fundamentalmente guerras anticoloniais - da história
moderna... E, indo aleatoriamente sem me deter nesta ou naquela mostra de nossa originalidade,
caberia lembrar, neste ano que se denominou "Ano da mulher", que o primeiro documento
energicamente feminista, firmemente feminista (documento onde se reivindica para a mulher o
direito de acesso à ciência, ao ensino, à política, a uma igualdade de condição social e cultural
oposta ao "machismo" que muito se vê em nosso continente...), esse documento se deve (em
1695) à portentosa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz12 - autora, diga-se de passagem, de
poemas "negros" que, pelo tom, se antecipam de maneira incrível a certos poemas de Nicolás
Guillén13, o grande poeta que vocês ouviram, há pouco, neste mesmo salão nobre.
Mais, mais e mais se poderia falar de tudo isso. Sobram bons exemplos. Nossos libertadores,
nossos mestres de pensamento, nos legaram milhares de páginas cheias de observações, de
análises, de considerações, de advertências, que nos deixam atônitos por sua atualidade, pela
sua vigência, pela sua aplicabilidade ao presente... E agora, que há pouco mais de um século, a
obra de Marx nos abriu o vasto continente de uma história que anteriormente tínhamos apenas
entrevisto; agora que, dispondo de um instrumental analítico que transformou a história em
ciência, podemos considerar o passado sob novos ângulos, comprovando verdades que
passaram desapercebidas pelos nossos antepassados, é que o homem-cidade-século-XX, o
homem nascido, crescido, formado em nossas proliferantes cidades de concreto armado, cidades
- 1472), senhor de Texcoco, legislador, arquiteto e governante por mais de 40 anos, é talvez uma das vozes mais originais desta poesia
pela complexidade de seu pensamento e a expressividade de seu sistema metafórico. Em sua obra, além do simbolismo e estilização
típicos da poesia náhuatl, pode-se encontrar uma reflexão sobre o sentido da vida, a morte e a missão da poesia, nela se abrindo um
espaço para a dúvida e os inquietantes questionamentos existenciais.
10
Com a menção ao levantamento dos Comuneros (Populares) de Nova Granada em 1771 e a gestão de Túpac Amaru (José Gabriel
Condorcanqui, 1743 - 1788) que em 1780 se rebelou em Tintai e conseguiu reunir um exército de 25.000 homens, Carpentier destaca
as últimas e mais importantes rebeliões do século XVIII contra o poder colonial espanhol que anunciam as grandes guerras
emancipadoras do século XIX.
11
Os principais centros das lutas pela independência entre 1810 e 1815 foram Venezuela, Nova Granada, o Rio da Prata e o virreinato
1 da Nova Espanha. Entre 1816 e 1825 é produzido um segundo auge revolucionário que alcançou uma dimensão continental como
reaçãoà política ultra-reacionária da Espanha. Destacaram-se as grandes campanhas de Bolívar, também de Santander, San Martín e
O'Higgins. O movimento de liberação anti-colonial, iniciado no Haiti (1971 - 1830), culminou com a independência das posses
espanholas e o Brasil, com exceção de Cuba e Porto Rico que ficaram independentes em 1898. Apesar dos esforços de Bolívar, o
império colonial espanhol fragmentou-se politicamente em uma série de repúblicas, dando passagem ao complexo processo de
formação dos novos estados nacionais.
1 - Virreinato é uma forma de organização do poder político (e, é claro, todos os tipos de ordens de cunho sócio-econômico e
cultural) que foi característico da dominação colonial na América hispana (outra forma foi a das capitanias gerais, como o caso de
Cuba). É o caso de México e Peru, entre outros.
(N. da Autora)
12
Sor Juana Inés de la Cruz (Juana de Asbaje, 1651 - 1695) é uma das grandes figuras do barroco americano. Sua escrita contribui
decisivamente para o desenvolvimento das letras hispano-americanas pela sua relação original com a literatura espanhola dos Séculos
de Ouro. Constitui uma complexa personalidade criadora, de notável profundidade reflexiva e sutileza de pensamento que se faz
patente em distintos campos do trabalho intelectual e literário. Sua obra é formada por peças teatrais, poesia e os textos polêmicos
Carta Atenagórica (1690) e Carta Respuesta a sor Filotea de la Cruz (1691), que Carpentier qualifica como "o primeiro documento
energicamente feminista". Neste último, às voltas com um debate de aparência teológica que tem por primeiro referente seu
comentário crítico de um semão do Padre Vieira, sor Juana Inés defende o direito da mulher à cultura com lógica irrebatível e uma
audácia sem precendentes no contexto colonial dos virreinatos. Mexicana e não espanhola, Carpentier destaca também sua recepção de
fontes culturais de ascendência africana que se fazem sentir em seus villancicos2 negros, ao que pudesse acrescentar seu
conhecimento do náhuatl e a presença do índio em seus poemas populares. Assim pode apreciar nos villancicos da Assunção (1676) e
os dedicados a san Pedro Nolasco (1677). 2 - Villancico é um tipo de composição típica (e de estrutura métrica) que aparece no século
XV, muito tocada nos séculos XVI e seguintes, com metros de 8 ou 6 sílabas, uso de estribilhos, de tema amoroso ou devoto.
Destacam-se os dedicados ao nascimento de Jesus e, por conseqüência, vinculados ao Natal. Santa Teresa e Sor Juana Inés de la Cruz
são autoras de villancicos clássicos.
13
Nicolás Guillén (1902 - 1989) marca nos anos 30, com Motivos de son, o auge de uma poesia nesgrista em Cuba. A partir deste livro,
sua criação enriquece e se universaliza progressivamente. Considerado um dos grandes poetas cubanos e da língua espanhola no
século XX, realiza um significativo suporte ao desenvolvimento de uma poesia que concede a identidade de nossa cultura em sua
integração das fontes africanas e espanholas.
Alejo Carpentier
Consciência e identidade da América
da América Latina, tem o dever incontestável de conhecer os clássicos americanos, de relê-los, de
meditar sobre eles, para encontrar suas raízes, suas árvores genealógicas de palmeira, de
apamate ou de ceiba14, para tentar saber quem é, o que é e que papel deverá desempenhar,
absolutamente identificado consigo mesmo, nos vastos e turbulentos cenários, onde, atualmente,
estão sendo representadas as comédias, os dramas, as tragédias - sangrentas e multitudinárias
tragédias - do nosso continente.
Homem que cresceu com a Havana do século XX, homem que viu crescer a Caracas do século
XX - homem que viu crescer esta universidade, que viu construir-se o stábile de Calder que se
abre permanentemente sobre nossas cabeças neste anfiteatro, não saberia agradecer com
palavras de mero protocolo a demonstração de afeto e estima que me oferecem aqui esta noite.
Dizer que estou emocionado é pouco. Melhor e mais válido é dizer que esta noite ficará escrita
com maiúsculas na cronologia de minha existência, agora que acabo de dobrar o temível cabo
dos setenta anos no reino deste mundo... E é inútil dizer que agradeço profundamente a meu
amigo Aléxis Márquez Rodríguez15 pelas palavras que sobre mim, minha trajetória e obra, acaba
de pronunciar.
E lhe agradeço mais ainda, se levarmos em conta que disse coisas, sobre mim, que pertencem a
categoria daquelas coisas que um escritor não pode dizer sobre si mesmo, tendo que esperar que
a sagacidade crítica de outros sublinhe certos fatos que têm uma enorme importância para a
pessoa, objeto da crítica. Ressaltou Aléxis Márquez Rodríguez, para minha satisfação, confessoo, que nos meus escritos - desde os da minha primeira juventude - observa-se uma certa unidade
de propósitos e anseios. Quer dizer que pouco me distanciei de uma trajetória ideológica e política
que já se tinha firmado em mim quando, lá por 1925, escrevi um artigo sobre o admirável romance
soviético de Vsevolod Ivanov, O trem blindado 14-6916, onde dizia o que poderia repetir agora se
tivesse que expressar meu pensamento, minhas convicções ante o processo e as contingências
da época que estamos vivendo agora... É certo - e me orgulho disso - que tive uma visão precoce
da América e do futuro da América (me refiro, é claro, àquela América que José Martí chama
"Nossa América17")... Mas... Tinha eu muito mérito nisso?... Não acredito. Tive sorte, isso sim. A
grande sorte de ter me encontrado, quando cheguei a Havana, cheio de ambições juvenis, depois
de uma infância no campo, com homens que pude imediatamente considerar - apesar de sua
juventude - como verdadeiros mestres. E esses mestres foram o admirável Julio Antonio Mella18,
que, precocemente amadurecido pelas agitações universitárias da época, fundou, em 1925, com
Carlos Balinto, o Partido Comunista de Cuba; Rubén Martínez Villena19, magnífico poeta que um
belo dia renunciou a toda glória literária para dedicar-se a uma luta determinante no processo
revolucionário que conduziu à queda e fuga do ditador Gerardo Machado, em 1933; Juan
Marinello20, hoje mais ativo e enérgico que nunca, apesar de ter dobrado, faz tempo, o cabo dos
setenta anos - totalmente entregue ao serviço da Revolução com que sempre tinha sonhado - e
que me revelou a grandeza e a profundidade da obra martiana que (é triste ter que reconhecer
isso) era muito pouco conhecida na Cuba dos anos 20, por ainda não existirem edições
14
Palmeira, apamate e ceiba nomeiam, em cada caso, árvores de diferentes regiões do Continente (representativamente Brasil,
Venezuela e Cuba). A ceiba em Cuba é poderosamente unida, como árvore sagrada, a cultos sincréticos de origem africana. Estas
árvores foram tematizadas pela literatura e pela arte latino-americana.
15
Alexis Márquez Rodríguez, professor e ensaísta venezuelano, é autor de contribuidores estudos carpenterianos, focalizados na maior
parte nas concepções e práticas do barroco e do real maravilhoso americano.
16
Em seu artigo sobre o romance El tren blindado 14 - 69 (1922) de Vsevolod Ivanov, Carpentier reconhece, a poucos anos de sua
publicação, a autenticidade de uma literatura nova, não somente por sua forma, e sim na ordem das idéias ao fundir os propósitos
estéticos e sócio-políticos. Valoriza na narrativa de Ivanov a preocupação pelo essencial, pelo dinamismo de sua montagem quase
cinematográfica e os diálogos de real incoerência. Sua crítica resulta previsível e sagaz ao analisar este tipo de escrita com a visão de
uma arte integralmente de vanguarda.
17
A expressão "nossa América" aparece desde 1875 e 1878, quando José Martí vive exilado no México e na Guatemala.
Como indica Roberto Fernández Retamar, em seu ensaio "Nossa América: cem anos", tal expressão implica a existência de outra
América que não é nossa e a partir de 1884 chamará explicitamente "a América européia". Certamente o conceito não permanece
invariável. Em contato com uma acumulação de experiências históricas e vitais transcendentes, chegará ao ápice de sua expressão no
ensaio "Nossa América", escrito em 1890 e publicado em 1891, texto que pode ser encontrado neste CD-ROM.
18
Julio Antonio Mella (1903 - 1929), dirigente revolucionário cubano, de transcendentes projeções anti-imperialistas
e americanistas na luta contra a tirania de Gerardo Machado (1871 - 1939) e o domínio neo-colonial norte-americano. Na opinião de
alguns estudiosos da obra de Alejo Carpentier, constitui uma das fontes para a criação do personagem "El estudiante", em O recurso
do método (1974).
19
Rubén Martínez Villena (1899 - 1934) figura chave no desenvolvimento da luta revolucionária em Cuba durante os anos 20 e 30,
assim como no fim da tirania machadista (1925 - 1933). Intelectual de vínculos orgânicos com o povo e poeta de singular expressão.
20
Juan Marinello Vidaurreta (1898 - 1977), um dos críticos literários e homem dos pensamentos mais significativos da tradição
marxista cubana do século XX. Devem destacar-se seus valiosos estudos sobre José Martí.
Alejo Carpentier
Consciência e identidade da América
satisfatórias nem completas dessa obra... Com tais mestres estive e com eles aprendi a pensar. E
é interessante lembrar que já em 1927, pude assinar com tais homens um manifesto premonitório,
onde nos comprometíamos a trabalhar: pela revisão dos valores falsos e ultrapassados; pela arte
vernácula e, em geral, pela arte nova em suas diversas manifestações; pela reforma o ensino
público; pela independência econômica de Cuba e contra o imperialismo ianque; contra as
ditaduras políticas unipessoais no mundo, na América, em Cuba; pela cordialidade e união latinoamericanas.
Ao assinar este documento21 não nos atrevíamos a sonhar que viveríamos para ver realizados tais
anseios, que nos pareciam extremamente distantes, remotos contrariados de antemão acreditavam muitos - por uma fatalidade geográfica, e que veríamos cumprir-se no início de 1959,
com o triunfo da Revolução Cubana, e a reafirmação desse triunfo na decisiva e transcendental
batalha de Playa Girón22, primeira grande vitória de uma nação de nossa América mestiça (como
a chamou, mais de uma vez com orgulho, José Martí) contra o mais temível dos imperialismos...
("O do gigante com botas de sete léguas que nos despreza" - e volto a citar Martí).
Sei que alguns se surpreenderam quando, no início de 1959, encontrando-me tão feliz entre
vocês, estando tão incorporado à vida venezuelana, tendo aprendido tanto sobre sua natureza,
sobre sua história, sobre suas tradições tão profundamente latino-americanas, rompi com essa
trajetória venezuelana de 14 anos, para regressar a meu país... Mas havia vozes que me
chamavam. Vozes que tinham voltado a erguer-se sobre a terra que as tinha sepultado. Eram as
vozes de Julio Antonio Mella, de Rubén Martínez de Villena, de Pablo de la Torriente Brau23, de
tantos outros que tinham mergulhado numa longa, tenaz e cruenta luta. E eram as vozes vivas,
bem vivas ainda, de Juan Marinello, de Nicolás Guillén, de Raúl Roa24 e de tantos outros que
tinham entregue sua energia, sua experiência, seus conhecimentos, seu entusiasmo, à grande
obra revolucionária que vinha em gestação desde a história transcendental e jornada de 26 de
julho de 1953, com a tomada do Quartel de Moncada25, dirigida por aquele que, meses depois,
interrogado sobre os motivos inspiradores de sua ação, responderia simplesmente: "Fomos
guiados pelo pensamento de Martí". Ouvi as vozes que tinham voltado a soar, devolvendo-me à
minha adolescência; escutei novas vozes que agora soavam e achei que era meu dever empregar
a minha energia, a minha capacidade - se é que a tinha - a serviço da grande tarefa histórica
latino-americana que se estava levando adiante em meu país.
E essa tarefa estava profundamente enraizada na própria história de Cuba, em seu passado, no
pensamento ecumenicamente latino-americano de José Martí, para quem nada que fosse latinoamericano lhe era alheio. Correspondia a uma tradição que remontava aos dias em que uma
primeira tentativa de liberação de Cuba, através de uma guerra anticolonial contra o poderio
espanhol, originou-se no seio de uma sociedade secreta que não por acaso ostentava o nome de
"Os Raios e Sóis de Bolivar...26" Daí que diante da imagem de um passado cristalizado em ação
presente, em realidade atual e tangível, tenha se intensificado de tal modo, na Cuba de hoje, não
21
Carpentier se refere à "Declaração" do grupo minorista em 1927 cuja assinatura o conduz à cadeia durante dois meses neste mesmo
ano. O Minorismo, ativo entre 1923 e 1933 aproximadamente, foi um grupo intelectual de ativismo cultural e sócio-político projetadoà
transformação das diferentes esferas da vida nacional e ao mesmo tempo propulsor de uma renovação estética conseqüente com esta
posição de avançada. Nesta "Declaração", também conhecida como "Manifesto", redatada por Rubén Martínez Villena, assim se
determina: "o grupo minorista, denominação que lhe deu um de seus componentes, pode ter este nome devido ao pequeno número de
membros efetivos que o integram; mas foi, em todo caso, um grupo majoritário, no sentido de constituir o porta-voz, a tribuna e o
índice da maioria da população".
22
A Batalha de Playa Girón (1961) representou uma formidável vitória do povo cubano e teve notáveis repercussões no âmbito
americano. Mediante um governo popular, no qual também participaram as forças armadas do país, os invasores foram rapidamente
derrotados. No dia 16 de abril e no calor desta histórica Batalha, foi proclamada a decisão de construir o primeiro estado socialista da
América Latina.
23
Pablo de la Torriente Brau (1901 - 1936), personalidade relevante dos revolucionários pensamento político e cultura cubana, de
participação ativa na luta política dos anos 20 e 30 em Cuba. Morre combatendo em defesa da República Espanhola. É também um
notável escritor. Seus textos de reflexão, narrativos e depoimentos contribuem decisivamente à renovação das letras nacionais.
24
Raúl Roa (Cuba, 1909 - 1982), notável pensador, ensaísta e figura a vida revolucionária cubana. Foi ministro das Relações Exteriores
de Cuba.
25
Carpentier está referindo-se ao discurso de Fidel Castro, conhecido pelo título de La historia me absolverá, no histórico julgamento
aos assaltantes do Quartel Moncada em Santiago de Cuba e do Quartel de Bayamo (1953), ponto de partida para uma nova etapa da
luta revolucionária cubana. Neste discurso, de forte e explícita orientação martiana, defende o direito do povo de fazer sua revolução e
realiza uma ampla análise das condições de vida do povo cubano, ao par que expõe idéias profundas de transformação social.
26
Com o nome de "Rayos y Soles de Bolívar" é conhecida uma importante conspiração gestada em Cuba no calor das lutas
independentistas latino-americanas e conta com este apoio. Esta conspiração, que organizou grupos revolucionários para lutar pela
emancipação política da opressão colonial espanhola, foi descoberta e violentamente reprimida. Entre os condenados ao exílio esteve o
grande poeta cubano José María Heredia (1803 - 1839), criador de uma poesia de altos valores nacionais e patrióticos.
Alejo Carpentier
Consciência e identidade da América
só o estudo da história da pátria mas também da história do continente, convencidos que estamos
de que nada do que é latino-americano pode nos ser indiferente, e que as lutas, as vitórias, os
dramas, as quedas e os triunfos das nações irmãs do continente, são acontecimentos que nos
concernem diretamente e nos trazem alegria ou tristeza, conforme se ofereçam ao mundo como
motivo de gozo ou de desconsolo momentâneo.
Não sei até que ponto os jovens latino-americanos de hoje se dedicam ao estudo sistemático,
científico, de sua própria história. É provável que a estudem muito bem e saibam tirar fecundos
ensinamentos de um passado muito mais presente do que se costuma acreditar, nesse
continente, onde certos fatos lamentáveis costumam repetir-se, mais ao norte, mais ao sul, com
cíclica insistência. Mas, pensem sempre - tenham sempre presente - que, no nosso mundo, não
basta conhecer a fundo a história da pátria para adquirir uma verdadeira e autêntica consciência
latino-americana. Nossos destinos estão ligados diante dos mesmos inimigos internos e externos,
diante das mesmas contingências. Podemos ser vítimas de um mesmo adversário. Daí que a
história de nossa América deva ser estudada como uma grande unidade, como a de um conjunto
de células inseparáveis umas das outras, para chegar-se a entender realmente o que somos,
quem somos, e que papel devemos desempenhar na realidade que nos circunda e dá um sentido
a nossos destinos. Dizia José Martí, em 1893, dois anos antes da sua morte: "Nem o livro
europeu, nem o livro ianque, nos darão a chave do enigma hispano-americano", acrescentando
mais adiante: "Ë preciso ser, ao mesmo tempo, homem de sua época e homem de seu povo, mas
deve-se ser antes de mais nada, o homem de seu povo". E para entender esse povo - esses
povos, acrescentaria eu - é preciso conhecer sua história a fundo.
Quanto a mim, a título de resumo das minhas aspirações presentes, citarei uma frase de
Montaigne27 que sempre me impressionou pela sua beleza simples: "Não há melhor destino para
o homem que o de praticar cabalmente seu ofício de homem". Esse ofício de homem, tentei
praticá-lo da melhor maneira possível. Nisso estou e nisso continuarei, no seio de uma revolução
que me fez encontrar a mim mesmo no contexto de um povo. Para mim terminaram os tempos de
solidão. Começaram os tempos de solidariedade. Porque como bem disse um clássico: "Há
sociedades que trabalham para o indivíduo. E há sociedades que trabalham para o homem".
Homem sou e só me sinto homem quando meu palpitar, meu pulsar profundo, sincroniza-se com o
pulsar de todos os homens que me rodeiam.
27
Michel de Montaigne (1533 - 1592), extraordinário escritor e pensador francês, viajante e ensaísta. Autor de Ensayos, livro de
significativa originalidade genérica, temática e estilística que retoma toda a sua experiência vital e reflexiva. Seu pensamento, de
notável projeção antidogmática, exercerá uma influência perdurável em toda a cultura posterior e particularmente na Ilustração
francesa. Defensor do "conhece-te a ti mesmo" como ponto de partida para uma ação conseqüente com as convicções próprias e a
natureza humana, estabelece vínculos profundos entre sua condição humana, posição que evidentemente Carpentier, em novos
contextos, retoma.