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Alejo Carpentier Consciência e identidade da América Consciência e identidade da América Alejo Carpentier CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Vértice, 1987. p.35-41: Consciência e identidade da América. (Tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina) Comentário e hipertextos: Aimée González Bolaños (FURG) Tradução do comentário e dos hipertextos: Liliam Ramos (UFRGS) CONSCIÊNCIA E IDENTIDADE DA AMÉRICA1 Aos latino-americanos da minha geração coube um estranho destino que por si só bastaria para diferenciá-los dos europeus; nasceram, cresceram, amadureceram, em função do concreto armado... Enquanto o europeu nascia, crescia, amadurecia, entre pedras seculares, velhas edificações modificadas ou anacronizadas somente por alguma tímida inovação arquitetônica, o latino-americano nascido nos albores deste século de inventos prodigiosos, mutações, revoluções, abria os olhos no âmbito de cidades que, quase que totalmente estagnadas durante o século XVII ou XVIII2, com um baixíssimo aumento de população, começavam a agigantar-se, a estender-se, a espalhar-se, a elevar-se, ao ritmo das misturadoras de concreto. A Havana que percorri na minha infância era ainda parecida à de Humboldt; o México que visitei em 1926 era ainda o de Porfírio Diaz; a Caracas que conheci em 1945 era ainda muito semelhante à Caracas descrita por José Martí. E, de repente, eis que nossas modorrentas capitais se tornaram cidades de verdade (anárquicas em seu desenvolvimento repentino, anárquicas em seu traçado, excessivas, desrespeitosas em seu afã de demolir para substituir), e o nosso homem, consubstanciado com a cidade, torna-se homem-cidade, homem-cidade-do-século-XX, quer dizer: homem-História-do-século-XX, em povoados que rompem com seus valores tradicionais, passam, em poucos anos, pelas tremendas crises de adolescência e começam a firmar-se com características próprias, ainda que em atmosfera caótica e desacertada. O latino-americano viu surgir, nesta época, uma nova realidade, realidade da qual foi juiz e parte, criador e protagonista, espectador atônito e ator principal, testemunha e cronista, denunciante ou denunciado. "Nada do que me cerca me é alheio3" poderia dizer, parafraseando o humanista renascentista. "Isto foi eu que fiz, aquilo eu vi construir; aquilo mais adiante me prejudicou ou eu amaldiçoei. Mas fiz parte do espetáculo - seja como ator principal, testemunha e cronista, denunciante ou denunciado. "Nada do que me cerca me é alheio" poderia dizer, parafraseando o humanista renascentista. "Isto foi eu que fiz, aquilo eu vi construir; aquilo mais adiante me prejudicou ou eu amaldiçoei. Mas fiz parte do espetáculo - seja como ator principal, seja como corista, ou como coadjuvante"... Mas, montado o cenário, colocadas as bambolinas, pendurados os telões, é preciso ver, agora, o que vai ser reapresentado - comédia, drama ou tragédia - no vasto teatro de concreto armado. 1 Discurso pronunciado por Alejo Carpentier na Aula Magna da Universidade Central da Venezuela, a 15 de maio de 1975, por ocasião da homenagem que lhe renderam a própria Universidade, o Ateneu de Caracas, a Associação de Escritores Venezuelanos e a Associação Venezuelana de Jornalistas. (Nota do comentarista) 2 Carpentier, a partir de diversas etapas de sua vida, alude à temporalidades históricas do século passado, patentes em três importantes cidades latino-americanas: Havana, de sua infância (primeiros anos do século XX) é ainda de Alejandro de Humboldt (1769 - 1859), eminente naturalista alemão que viaja por todo o continente americano entre 1799 e 1804. Pela sua extraordinária visão de natureza de Cuba foi chamado "seu segundo descobridor"; Cidade do México, que visita pela primeira vez em 1926, continua sendo de Porfirio Díaz (1830 - 1915), figura marcante da história política mexicana. Seu governo autoritário, conhecido como "porfirato" (1876 - 1911) desemboca na eclosão da Grande Revolução Mexicana (1910). Caracas é onde vive a partir de 1945, e está muito próxima da escrita por José Martí (1853 - 1995), principal personalidade da história revolucionária cubana, que durante a primeira metade de 1861, reside na Venezuela. 3 Carpentier alude à célebre expressão de Terencio (190? - 159 a.C.) em sua obra teatral El verdugo de si mismo: "Hombre soy: nada humano me es ajeno (Homo sum: nihil a me alienum puto" (I, I, 25), atualizada pelo humanismo renascentista e de significativa recorrência em toda cultura posterior como expressão de máxima solidariedade humana. Alejo Carpentier Consciência e identidade da América E aí que está o verdadeiro problema: com que autores poderemos contar? Quem serão estes autores?... E para começar... quem sou eu, que papel serei capaz de desempenhar e, acima de tudo, que papel me cabe desempenhar?... Eterno reviver do "conhece-te a ti mesmo4". Mas, de um "conhece-te a ti mesmo", que se formula num mundo - o que circunda nossas ambiciosas e irreverentes cidades modernas - que, para ser honestos, conhecíamos muito mal até agora e que só agora (de poucos anos para cá: meio século apenas) estamos começando a conhecer profundamente. Está longe o tempo em que os famosos e envaidecidos "cientistas" de Porfírio Diaz, nas comemorações do centenário da independência mexicana, proclamavam que estavam resolvidos todos os enigmas do nosso passado pré-colombiano. Está longe o tempo em que contemplávamos nossos grandes homens do passado do ponto de vista único de uma devoção que excluía qualquer enfoque crítico, do imediato e do contingente... Está longe o tempo em que víamos nossa História como uma mera crônica de ações militares, quadro de batalhas, intrigas palacianas, ascensões e quedas, em textos que ignoravam o fator econômico, étnico, telúrico, de todas aquelas realidades subjacentes, de todas aquelas pulsões soterradas, de todas as pressões e apetites estrangeiros - para ser exato, imperialistas - que faziam da nossa história uma história diferente das demais histórias do mundo. História diferente desde o começo, já que esta terra americana foi o teatro do mais sensacional encontro étnico registrado nos anais do planeta: encontro do índio, do negro e do europeu de tez mais ou menos clara, destinados, no futuro, a misturar-se, entremisturar-se, estabelecer simbioses de culturas, de crenças, de artes populares, na mais tremenda mestiçagem já vista... "Temos que ser originais" - costumava dizer Simón Rodríguez5, mestre do Libertador... Mas, quando pronunciava estas palavras, não tinha que fazer o menor esforço para ser original - pois já éramos originais de direito e de fato, muito antes que o conceito de originalidade nos fosse dado como meta. Não incorre em vão convencimento americanista quem afirmar hoje, com perfeito conhecimento de causa que, antes que os conquistadores espanhóis o contemplassem sem o entender, exibiase no Templo de Mitla6, no México, o mais perfeito apogeu de uma arte abstrata longamente amadurecida - arte abstrata que não resultava de uma mera intenção de ornamentação geométrica, simétrica e reiterada, mas sim da disposição perfeitamente intencional de composições abstratas, de idêntico tamanho, nunca repetidas, vistas, cada uma como um valor plástico completo, independente e fechado. Não é preciso ser guiado por um excessivo amor à nossa América, para reconhecer que nas pinturas que adornam o templo de Bonampak7, em Yucatán, apresentam-se diante de nós figuras humanas em escorços de uma audácia desconhecida pela pintura européia da mesma época - escorços que se assemelham, embora muito anteriores, ao de um Cristo de Mantegna8, por exemplo. E tem mais: só agora estamos começando a nos aprofundar na maravilhosa poesia náhuatl9 e estamos começando a perceber a 4 "Conhece-te a ti mesmo", inscrição do templo de Apolo em Delfos e imperativo moral de Sócrates (470 - 399 a.C.), altamente representativo de linhas principais de desenvolvimento do pensamento grego e a tradição clássica. 5 Simón Rodríguez (1771 - 1854), citado por Carpentier em numerosos ensaios, é um ilustre pedagogo venezuelano, professor de Simón Bolívar, de pensamento avançado que desde muito cedo defende a legitimidade de nossa cultura. Assim, em 1840 afirma: "A América não há de imitar servilmente, e sim ser original. A língua, os tribunais, os templos e os violões enganam o viajante. Fala-se, disputa-se, reza-se e toca-se à espanhola, mas não como na Espanha." 6 Mitla (Oaxaca, México), antiga cidade sagrada dos zapotecas. Os mixtecas desenvolveram uma brilhante cultura nela a partir do século X de nossa era. Suas ruínas mostram cinco edifícios muito compridos que formam uma praça. Estes edifícios têm muros verticais e carecem de janelas ou subdivisões internas. O mais significativo são os relevos que cobrem os muros sem interrupção ou preenchendo os seios regulares de uma sinuosidade retilíneo. Trata-se de relevos totalmente abstratos, de rica decoração geométrica, muito variados, realizados por meio de pequenas peças de grande repercussão, como um mosaico. Mitla foi considerada uma necrópole onde eram guardados os restos mortais de sacerdotes e chefes guerreiros. É um conjunto arquitetônico da maior relevância. 7 O Templo de Bonampak (Yucatán, México) é um tesouro da arte mundial. Descoberto em 1945, no centro da selva tropical, seu nome quer dizer, em língua maia, "muros pintados". O Templo das Pinturas compreende três salas cujos muros estão por pinturas que datam do século VIII da nossa era. Estes caras-de-pau representam um nutrido desfile de fiéis e músicos com tambores e trompetes, rendendo tributos ao Sumo Sacerdote. Figura também uma cena de revestimento ritual e outra de apresentação de um príncipe, todos eles rodeados por animais aquáticos, atributos do deus da chuva. As figuras são de grande realismo, individualizadas ou detalhadas, sobretudo na expressão dos movimentos. Nada simbólicas ou hieráticas, permitem penetrar na vida dos sacerdotes - reis e dos que lhes rodeavam com uma linguagem pictórica de notável dinamismo e excelência formal. 8 Andrea de Mantegna (1431 - 1506), pintor italiano do Quattrocento. Renomado por seus retratos originais e a representação vigorosa de temas sacros. Entre estes últimos se destaca o Cristo muerto (aproximadamente 1501), de inusitada perspectiva, sentimento patético e tensão emocional, todo ele altamente expressivo do caráter renovador de suas concepções pictóricas renascentistas. 9 Principal idioma falado pelos índios mexicanos. (N do T.) O chamado "tronco náhuatl" é formado por um conjunto de povos pré-hispânicos assentados no México centras, dos quais se destacam os astecas, e que falavam a mesma língua. Criadores de uma poderosa poesia, esta será recuperada em parte pelo trabalho de Bernardino de Sahagún e, em nossa época, graças à tarefa crítica de Angel María Garibay e Miguel León Portilla. Nezahualcóyotl (1402 Alejo Carpentier Consciência e identidade da América singular e profunda essência filosófica das grandes cosmogonias e dos mitos originais da América. E tem mais. Sem citarmos exemplos que poderiam se multiplicar ao infinito, desde o tempo da Conquista e da Colônia, vemos afirmar-se, de mil maneiras, a originalidade e a audácia do homem americano em obras de caráter muito diferente. É aqui, nesse nosso continente, onde nunca chegaram o romântico e o gótico, onde a arquitetura barroca encontrou suas expressões mais diversas e completas - no México, por todo o espinhaço Andino - com o emprego de materiais policrômicos, o uso de técnicas aperfeiçoadas pelo artesão índio, que os arquitetos europeus desconheciam. É aqui, nesta terra, onde, com as ininterruptas sublevações de índios e negros (desde os primórdios do século XVI), com os Comuneros de Nova Granada10, com a gesta de Túpac Amaru, até o tempo das nossas grandes lutas pela independência11, se assistiu às primeiras guerras anticoloniais - pois foram fundamentalmente guerras anticoloniais - da história moderna... E, indo aleatoriamente sem me deter nesta ou naquela mostra de nossa originalidade, caberia lembrar, neste ano que se denominou "Ano da mulher", que o primeiro documento energicamente feminista, firmemente feminista (documento onde se reivindica para a mulher o direito de acesso à ciência, ao ensino, à política, a uma igualdade de condição social e cultural oposta ao "machismo" que muito se vê em nosso continente...), esse documento se deve (em 1695) à portentosa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz12 - autora, diga-se de passagem, de poemas "negros" que, pelo tom, se antecipam de maneira incrível a certos poemas de Nicolás Guillén13, o grande poeta que vocês ouviram, há pouco, neste mesmo salão nobre. Mais, mais e mais se poderia falar de tudo isso. Sobram bons exemplos. Nossos libertadores, nossos mestres de pensamento, nos legaram milhares de páginas cheias de observações, de análises, de considerações, de advertências, que nos deixam atônitos por sua atualidade, pela sua vigência, pela sua aplicabilidade ao presente... E agora, que há pouco mais de um século, a obra de Marx nos abriu o vasto continente de uma história que anteriormente tínhamos apenas entrevisto; agora que, dispondo de um instrumental analítico que transformou a história em ciência, podemos considerar o passado sob novos ângulos, comprovando verdades que passaram desapercebidas pelos nossos antepassados, é que o homem-cidade-século-XX, o homem nascido, crescido, formado em nossas proliferantes cidades de concreto armado, cidades - 1472), senhor de Texcoco, legislador, arquiteto e governante por mais de 40 anos, é talvez uma das vozes mais originais desta poesia pela complexidade de seu pensamento e a expressividade de seu sistema metafórico. Em sua obra, além do simbolismo e estilização típicos da poesia náhuatl, pode-se encontrar uma reflexão sobre o sentido da vida, a morte e a missão da poesia, nela se abrindo um espaço para a dúvida e os inquietantes questionamentos existenciais. 10 Com a menção ao levantamento dos Comuneros (Populares) de Nova Granada em 1771 e a gestão de Túpac Amaru (José Gabriel Condorcanqui, 1743 - 1788) que em 1780 se rebelou em Tintai e conseguiu reunir um exército de 25.000 homens, Carpentier destaca as últimas e mais importantes rebeliões do século XVIII contra o poder colonial espanhol que anunciam as grandes guerras emancipadoras do século XIX. 11 Os principais centros das lutas pela independência entre 1810 e 1815 foram Venezuela, Nova Granada, o Rio da Prata e o virreinato 1 da Nova Espanha. Entre 1816 e 1825 é produzido um segundo auge revolucionário que alcançou uma dimensão continental como reaçãoà política ultra-reacionária da Espanha. Destacaram-se as grandes campanhas de Bolívar, também de Santander, San Martín e O'Higgins. O movimento de liberação anti-colonial, iniciado no Haiti (1971 - 1830), culminou com a independência das posses espanholas e o Brasil, com exceção de Cuba e Porto Rico que ficaram independentes em 1898. Apesar dos esforços de Bolívar, o império colonial espanhol fragmentou-se politicamente em uma série de repúblicas, dando passagem ao complexo processo de formação dos novos estados nacionais. 1 - Virreinato é uma forma de organização do poder político (e, é claro, todos os tipos de ordens de cunho sócio-econômico e cultural) que foi característico da dominação colonial na América hispana (outra forma foi a das capitanias gerais, como o caso de Cuba). É o caso de México e Peru, entre outros. (N. da Autora) 12 Sor Juana Inés de la Cruz (Juana de Asbaje, 1651 - 1695) é uma das grandes figuras do barroco americano. Sua escrita contribui decisivamente para o desenvolvimento das letras hispano-americanas pela sua relação original com a literatura espanhola dos Séculos de Ouro. Constitui uma complexa personalidade criadora, de notável profundidade reflexiva e sutileza de pensamento que se faz patente em distintos campos do trabalho intelectual e literário. Sua obra é formada por peças teatrais, poesia e os textos polêmicos Carta Atenagórica (1690) e Carta Respuesta a sor Filotea de la Cruz (1691), que Carpentier qualifica como "o primeiro documento energicamente feminista". Neste último, às voltas com um debate de aparência teológica que tem por primeiro referente seu comentário crítico de um semão do Padre Vieira, sor Juana Inés defende o direito da mulher à cultura com lógica irrebatível e uma audácia sem precendentes no contexto colonial dos virreinatos. Mexicana e não espanhola, Carpentier destaca também sua recepção de fontes culturais de ascendência africana que se fazem sentir em seus villancicos2 negros, ao que pudesse acrescentar seu conhecimento do náhuatl e a presença do índio em seus poemas populares. Assim pode apreciar nos villancicos da Assunção (1676) e os dedicados a san Pedro Nolasco (1677). 2 - Villancico é um tipo de composição típica (e de estrutura métrica) que aparece no século XV, muito tocada nos séculos XVI e seguintes, com metros de 8 ou 6 sílabas, uso de estribilhos, de tema amoroso ou devoto. Destacam-se os dedicados ao nascimento de Jesus e, por conseqüência, vinculados ao Natal. Santa Teresa e Sor Juana Inés de la Cruz são autoras de villancicos clássicos. 13 Nicolás Guillén (1902 - 1989) marca nos anos 30, com Motivos de son, o auge de uma poesia nesgrista em Cuba. A partir deste livro, sua criação enriquece e se universaliza progressivamente. Considerado um dos grandes poetas cubanos e da língua espanhola no século XX, realiza um significativo suporte ao desenvolvimento de uma poesia que concede a identidade de nossa cultura em sua integração das fontes africanas e espanholas. Alejo Carpentier Consciência e identidade da América da América Latina, tem o dever incontestável de conhecer os clássicos americanos, de relê-los, de meditar sobre eles, para encontrar suas raízes, suas árvores genealógicas de palmeira, de apamate ou de ceiba14, para tentar saber quem é, o que é e que papel deverá desempenhar, absolutamente identificado consigo mesmo, nos vastos e turbulentos cenários, onde, atualmente, estão sendo representadas as comédias, os dramas, as tragédias - sangrentas e multitudinárias tragédias - do nosso continente. Homem que cresceu com a Havana do século XX, homem que viu crescer a Caracas do século XX - homem que viu crescer esta universidade, que viu construir-se o stábile de Calder que se abre permanentemente sobre nossas cabeças neste anfiteatro, não saberia agradecer com palavras de mero protocolo a demonstração de afeto e estima que me oferecem aqui esta noite. Dizer que estou emocionado é pouco. Melhor e mais válido é dizer que esta noite ficará escrita com maiúsculas na cronologia de minha existência, agora que acabo de dobrar o temível cabo dos setenta anos no reino deste mundo... E é inútil dizer que agradeço profundamente a meu amigo Aléxis Márquez Rodríguez15 pelas palavras que sobre mim, minha trajetória e obra, acaba de pronunciar. E lhe agradeço mais ainda, se levarmos em conta que disse coisas, sobre mim, que pertencem a categoria daquelas coisas que um escritor não pode dizer sobre si mesmo, tendo que esperar que a sagacidade crítica de outros sublinhe certos fatos que têm uma enorme importância para a pessoa, objeto da crítica. Ressaltou Aléxis Márquez Rodríguez, para minha satisfação, confessoo, que nos meus escritos - desde os da minha primeira juventude - observa-se uma certa unidade de propósitos e anseios. Quer dizer que pouco me distanciei de uma trajetória ideológica e política que já se tinha firmado em mim quando, lá por 1925, escrevi um artigo sobre o admirável romance soviético de Vsevolod Ivanov, O trem blindado 14-6916, onde dizia o que poderia repetir agora se tivesse que expressar meu pensamento, minhas convicções ante o processo e as contingências da época que estamos vivendo agora... É certo - e me orgulho disso - que tive uma visão precoce da América e do futuro da América (me refiro, é claro, àquela América que José Martí chama "Nossa América17")... Mas... Tinha eu muito mérito nisso?... Não acredito. Tive sorte, isso sim. A grande sorte de ter me encontrado, quando cheguei a Havana, cheio de ambições juvenis, depois de uma infância no campo, com homens que pude imediatamente considerar - apesar de sua juventude - como verdadeiros mestres. E esses mestres foram o admirável Julio Antonio Mella18, que, precocemente amadurecido pelas agitações universitárias da época, fundou, em 1925, com Carlos Balinto, o Partido Comunista de Cuba; Rubén Martínez Villena19, magnífico poeta que um belo dia renunciou a toda glória literária para dedicar-se a uma luta determinante no processo revolucionário que conduziu à queda e fuga do ditador Gerardo Machado, em 1933; Juan Marinello20, hoje mais ativo e enérgico que nunca, apesar de ter dobrado, faz tempo, o cabo dos setenta anos - totalmente entregue ao serviço da Revolução com que sempre tinha sonhado - e que me revelou a grandeza e a profundidade da obra martiana que (é triste ter que reconhecer isso) era muito pouco conhecida na Cuba dos anos 20, por ainda não existirem edições 14 Palmeira, apamate e ceiba nomeiam, em cada caso, árvores de diferentes regiões do Continente (representativamente Brasil, Venezuela e Cuba). A ceiba em Cuba é poderosamente unida, como árvore sagrada, a cultos sincréticos de origem africana. Estas árvores foram tematizadas pela literatura e pela arte latino-americana. 15 Alexis Márquez Rodríguez, professor e ensaísta venezuelano, é autor de contribuidores estudos carpenterianos, focalizados na maior parte nas concepções e práticas do barroco e do real maravilhoso americano. 16 Em seu artigo sobre o romance El tren blindado 14 - 69 (1922) de Vsevolod Ivanov, Carpentier reconhece, a poucos anos de sua publicação, a autenticidade de uma literatura nova, não somente por sua forma, e sim na ordem das idéias ao fundir os propósitos estéticos e sócio-políticos. Valoriza na narrativa de Ivanov a preocupação pelo essencial, pelo dinamismo de sua montagem quase cinematográfica e os diálogos de real incoerência. Sua crítica resulta previsível e sagaz ao analisar este tipo de escrita com a visão de uma arte integralmente de vanguarda. 17 A expressão "nossa América" aparece desde 1875 e 1878, quando José Martí vive exilado no México e na Guatemala. Como indica Roberto Fernández Retamar, em seu ensaio "Nossa América: cem anos", tal expressão implica a existência de outra América que não é nossa e a partir de 1884 chamará explicitamente "a América européia". Certamente o conceito não permanece invariável. Em contato com uma acumulação de experiências históricas e vitais transcendentes, chegará ao ápice de sua expressão no ensaio "Nossa América", escrito em 1890 e publicado em 1891, texto que pode ser encontrado neste CD-ROM. 18 Julio Antonio Mella (1903 - 1929), dirigente revolucionário cubano, de transcendentes projeções anti-imperialistas e americanistas na luta contra a tirania de Gerardo Machado (1871 - 1939) e o domínio neo-colonial norte-americano. Na opinião de alguns estudiosos da obra de Alejo Carpentier, constitui uma das fontes para a criação do personagem "El estudiante", em O recurso do método (1974). 19 Rubén Martínez Villena (1899 - 1934) figura chave no desenvolvimento da luta revolucionária em Cuba durante os anos 20 e 30, assim como no fim da tirania machadista (1925 - 1933). Intelectual de vínculos orgânicos com o povo e poeta de singular expressão. 20 Juan Marinello Vidaurreta (1898 - 1977), um dos críticos literários e homem dos pensamentos mais significativos da tradição marxista cubana do século XX. Devem destacar-se seus valiosos estudos sobre José Martí. Alejo Carpentier Consciência e identidade da América satisfatórias nem completas dessa obra... Com tais mestres estive e com eles aprendi a pensar. E é interessante lembrar que já em 1927, pude assinar com tais homens um manifesto premonitório, onde nos comprometíamos a trabalhar: pela revisão dos valores falsos e ultrapassados; pela arte vernácula e, em geral, pela arte nova em suas diversas manifestações; pela reforma o ensino público; pela independência econômica de Cuba e contra o imperialismo ianque; contra as ditaduras políticas unipessoais no mundo, na América, em Cuba; pela cordialidade e união latinoamericanas. Ao assinar este documento21 não nos atrevíamos a sonhar que viveríamos para ver realizados tais anseios, que nos pareciam extremamente distantes, remotos contrariados de antemão acreditavam muitos - por uma fatalidade geográfica, e que veríamos cumprir-se no início de 1959, com o triunfo da Revolução Cubana, e a reafirmação desse triunfo na decisiva e transcendental batalha de Playa Girón22, primeira grande vitória de uma nação de nossa América mestiça (como a chamou, mais de uma vez com orgulho, José Martí) contra o mais temível dos imperialismos... ("O do gigante com botas de sete léguas que nos despreza" - e volto a citar Martí). Sei que alguns se surpreenderam quando, no início de 1959, encontrando-me tão feliz entre vocês, estando tão incorporado à vida venezuelana, tendo aprendido tanto sobre sua natureza, sobre sua história, sobre suas tradições tão profundamente latino-americanas, rompi com essa trajetória venezuelana de 14 anos, para regressar a meu país... Mas havia vozes que me chamavam. Vozes que tinham voltado a erguer-se sobre a terra que as tinha sepultado. Eram as vozes de Julio Antonio Mella, de Rubén Martínez de Villena, de Pablo de la Torriente Brau23, de tantos outros que tinham mergulhado numa longa, tenaz e cruenta luta. E eram as vozes vivas, bem vivas ainda, de Juan Marinello, de Nicolás Guillén, de Raúl Roa24 e de tantos outros que tinham entregue sua energia, sua experiência, seus conhecimentos, seu entusiasmo, à grande obra revolucionária que vinha em gestação desde a história transcendental e jornada de 26 de julho de 1953, com a tomada do Quartel de Moncada25, dirigida por aquele que, meses depois, interrogado sobre os motivos inspiradores de sua ação, responderia simplesmente: "Fomos guiados pelo pensamento de Martí". Ouvi as vozes que tinham voltado a soar, devolvendo-me à minha adolescência; escutei novas vozes que agora soavam e achei que era meu dever empregar a minha energia, a minha capacidade - se é que a tinha - a serviço da grande tarefa histórica latino-americana que se estava levando adiante em meu país. E essa tarefa estava profundamente enraizada na própria história de Cuba, em seu passado, no pensamento ecumenicamente latino-americano de José Martí, para quem nada que fosse latinoamericano lhe era alheio. Correspondia a uma tradição que remontava aos dias em que uma primeira tentativa de liberação de Cuba, através de uma guerra anticolonial contra o poderio espanhol, originou-se no seio de uma sociedade secreta que não por acaso ostentava o nome de "Os Raios e Sóis de Bolivar...26" Daí que diante da imagem de um passado cristalizado em ação presente, em realidade atual e tangível, tenha se intensificado de tal modo, na Cuba de hoje, não 21 Carpentier se refere à "Declaração" do grupo minorista em 1927 cuja assinatura o conduz à cadeia durante dois meses neste mesmo ano. O Minorismo, ativo entre 1923 e 1933 aproximadamente, foi um grupo intelectual de ativismo cultural e sócio-político projetadoà transformação das diferentes esferas da vida nacional e ao mesmo tempo propulsor de uma renovação estética conseqüente com esta posição de avançada. Nesta "Declaração", também conhecida como "Manifesto", redatada por Rubén Martínez Villena, assim se determina: "o grupo minorista, denominação que lhe deu um de seus componentes, pode ter este nome devido ao pequeno número de membros efetivos que o integram; mas foi, em todo caso, um grupo majoritário, no sentido de constituir o porta-voz, a tribuna e o índice da maioria da população". 22 A Batalha de Playa Girón (1961) representou uma formidável vitória do povo cubano e teve notáveis repercussões no âmbito americano. Mediante um governo popular, no qual também participaram as forças armadas do país, os invasores foram rapidamente derrotados. No dia 16 de abril e no calor desta histórica Batalha, foi proclamada a decisão de construir o primeiro estado socialista da América Latina. 23 Pablo de la Torriente Brau (1901 - 1936), personalidade relevante dos revolucionários pensamento político e cultura cubana, de participação ativa na luta política dos anos 20 e 30 em Cuba. Morre combatendo em defesa da República Espanhola. É também um notável escritor. Seus textos de reflexão, narrativos e depoimentos contribuem decisivamente à renovação das letras nacionais. 24 Raúl Roa (Cuba, 1909 - 1982), notável pensador, ensaísta e figura a vida revolucionária cubana. Foi ministro das Relações Exteriores de Cuba. 25 Carpentier está referindo-se ao discurso de Fidel Castro, conhecido pelo título de La historia me absolverá, no histórico julgamento aos assaltantes do Quartel Moncada em Santiago de Cuba e do Quartel de Bayamo (1953), ponto de partida para uma nova etapa da luta revolucionária cubana. Neste discurso, de forte e explícita orientação martiana, defende o direito do povo de fazer sua revolução e realiza uma ampla análise das condições de vida do povo cubano, ao par que expõe idéias profundas de transformação social. 26 Com o nome de "Rayos y Soles de Bolívar" é conhecida uma importante conspiração gestada em Cuba no calor das lutas independentistas latino-americanas e conta com este apoio. Esta conspiração, que organizou grupos revolucionários para lutar pela emancipação política da opressão colonial espanhola, foi descoberta e violentamente reprimida. Entre os condenados ao exílio esteve o grande poeta cubano José María Heredia (1803 - 1839), criador de uma poesia de altos valores nacionais e patrióticos. Alejo Carpentier Consciência e identidade da América só o estudo da história da pátria mas também da história do continente, convencidos que estamos de que nada do que é latino-americano pode nos ser indiferente, e que as lutas, as vitórias, os dramas, as quedas e os triunfos das nações irmãs do continente, são acontecimentos que nos concernem diretamente e nos trazem alegria ou tristeza, conforme se ofereçam ao mundo como motivo de gozo ou de desconsolo momentâneo. Não sei até que ponto os jovens latino-americanos de hoje se dedicam ao estudo sistemático, científico, de sua própria história. É provável que a estudem muito bem e saibam tirar fecundos ensinamentos de um passado muito mais presente do que se costuma acreditar, nesse continente, onde certos fatos lamentáveis costumam repetir-se, mais ao norte, mais ao sul, com cíclica insistência. Mas, pensem sempre - tenham sempre presente - que, no nosso mundo, não basta conhecer a fundo a história da pátria para adquirir uma verdadeira e autêntica consciência latino-americana. Nossos destinos estão ligados diante dos mesmos inimigos internos e externos, diante das mesmas contingências. Podemos ser vítimas de um mesmo adversário. Daí que a história de nossa América deva ser estudada como uma grande unidade, como a de um conjunto de células inseparáveis umas das outras, para chegar-se a entender realmente o que somos, quem somos, e que papel devemos desempenhar na realidade que nos circunda e dá um sentido a nossos destinos. Dizia José Martí, em 1893, dois anos antes da sua morte: "Nem o livro europeu, nem o livro ianque, nos darão a chave do enigma hispano-americano", acrescentando mais adiante: "Ë preciso ser, ao mesmo tempo, homem de sua época e homem de seu povo, mas deve-se ser antes de mais nada, o homem de seu povo". E para entender esse povo - esses povos, acrescentaria eu - é preciso conhecer sua história a fundo. Quanto a mim, a título de resumo das minhas aspirações presentes, citarei uma frase de Montaigne27 que sempre me impressionou pela sua beleza simples: "Não há melhor destino para o homem que o de praticar cabalmente seu ofício de homem". Esse ofício de homem, tentei praticá-lo da melhor maneira possível. Nisso estou e nisso continuarei, no seio de uma revolução que me fez encontrar a mim mesmo no contexto de um povo. Para mim terminaram os tempos de solidão. Começaram os tempos de solidariedade. Porque como bem disse um clássico: "Há sociedades que trabalham para o indivíduo. E há sociedades que trabalham para o homem". Homem sou e só me sinto homem quando meu palpitar, meu pulsar profundo, sincroniza-se com o pulsar de todos os homens que me rodeiam. 27 Michel de Montaigne (1533 - 1592), extraordinário escritor e pensador francês, viajante e ensaísta. Autor de Ensayos, livro de significativa originalidade genérica, temática e estilística que retoma toda a sua experiência vital e reflexiva. Seu pensamento, de notável projeção antidogmática, exercerá uma influência perdurável em toda a cultura posterior e particularmente na Ilustração francesa. Defensor do "conhece-te a ti mesmo" como ponto de partida para uma ação conseqüente com as convicções próprias e a natureza humana, estabelece vínculos profundos entre sua condição humana, posição que evidentemente Carpentier, em novos contextos, retoma.