estado , mercado e o desenvolvimento do setor elétrico
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ESTADO, MERCADO E O DESENVOLVIMENTO DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO RICARDO CARNEIRO Tese apresentada ao Doutorado em Ciências Humanas – Sociologia e Política, da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor. Orientadora: Laura da Veiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Belo Horizonte 2000 Carneiro, Ricardo Estado, mercado e o desenvolvimento do setor elétrico brasileiro. Ricardo Carneiro. - Belo Horizonte, 2000. p. 400 Orientadora: Laura da Veiga Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais. 1. Energia elétrica - Brasil. 2. Desenvolvimento econômico-Brasil. 3. Política energética - Brasil. I. Veiga, Laura. II. Universidade Federal de Minas Gerais. III. Título. CDU 631.31 (81) AO PROF. OLAVO BRASIL DE LIMA JÚNIOR (EM MEMÓRIA) DEDICO ESTE TRABALHO A LENA, GABRIEL, JULIANO E ALFREDO, QUE DÃO SENTIDO AO ESFORÇO REALIZADO. i AGRADECIMENTOS A REALIZAÇÃO DESTE ESTUDO FOI FAVORECIDA POR INSTITUCIONAIS QUE RECEBI AO LONGO DO PERCURSO. IMPORTANTES APOIOS ASSIM, MEUS PRIMEIROS AGRADECIMENTOS VÃO PARA A FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, POR ME PERMITIR DEDICAÇÃO EXCLUSIVA AO CURSO DE DOUTORADO DURANTE A FASE DE INTEGRALIZAÇÃO DE CRÉDITOS E EXAME DE QUALIFICAÇÃO, E PARA O IGUAL PERÍODO. CNPQ, PELA CONCESSÃO DE BOLSA EM ESTENDO O AGRADECIMENTO À ELETROBRÁS E AO CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL, PELO ACESSO A INFORMAÇÕES E DOCUMENTOS DE ENORME RELEVÂNCIA NO DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA. OLAVO BRASIL DE LIMA JÚNIOR FOI O PRIMEIRO ORIENTADOR DO TRABALHO, CONTRIBUINDO DE FORMA DECISIVA PARA O DELINEAMENTO DA PESQUISA, COM SUGESTÕES VALIOSAS NA CONSTRUÇÃO DO ESQUEMA INTERPRETATIVO, ALÉM DE CRÍTICAS E OBSERVAÇÕES SEMPRE OPORTUNAS À SUA APLICAÇÃO AO OBJETO DE ESTUDO. LAURA DA VEIGA DEU SEQUÊNCIA À ORIENTAÇÃO, ESTIMULANDO-ME A LEVAR EM FRENTE A ELABORAÇÃO DA TESE. REVELOU-SE UMA INTERLOCUTORA AO MESMO TEMPO FIRME E EQUILIBRADA, DESEMPENHANDO PAPEL FUNDAMENTAL NO BALIZAMENTO DOS RUMOS DO TRABALHO, A DESPEITO DA RELATIVA “ARIDEZ” DA TEMÁTICA INVESTIGADA. NÃO PODERIA DEIXAR DE RECONHECER TAMBÉM A RELEVANTE CONTRIBUIÇÃO DE FÁTIMA ANASTASIA, QUE PARTICIPOU DA PRÉ-DEFESA DA TESE. SEUS COMENTÁRIOS REPRESENTARAM SUBSÍDIOS DE GRANDE IMPORTÂNCIA PARA O APRIMORAMENTO DO TRABALHO, EMBORA TENHAM ME FALTADO CONDIÇÕES OBJETIVAS PARA INCORPORÁ-LOS EM TODA SUA EXTENSÃO. A LENA, GABRIEL, JULIANO E ALFREDO AGRADEÇO A PACIÊNCIA E A COMPREENSÃO QUE TIVERAM FACE AO ENCURTAMENTO DO TEMPO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR, A PRESENÇA APENAS “VIRTUAL” IMPOSTA PELA ÁRDUA TAREFA DE ELABORAÇÃO DO TRABALHO. ii RESUMO O TRABALHO ANALISA A EVOLUÇÃO DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE NO BRASIL, DE SUAS ORIGENS NOS ANOS FINAIS DE SÉCULO XIX AOS DIAS ATUAIS , ENFATIZANDO AS TRANSFORMAÇÕES QUE ORGANIZACIONAIS AO LONGO DO TEMPO. SE PROCESSAM EM SEUS ARRANJOS SUSTENTA QUE O DESENVOLVIMENTO SETORIAL ESPELHA A DINÂMICA DAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE OS AGENTES ATUANTES NA ÁREA, DE UM LADO, E O ARCABOUÇO REGULATÓRIO DA ATIVIDADE, DE OUTRO, ONDE INTERVÊM ASPECTOS RELEVANTES DO CONTEXTO, CUJA INFLUÊNCIA INCIDE TANTO SOBRE AS NECESSIDADES POTENCIAIS E EFETIVAS DE SUPRIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA QUANTO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE MOBILIZAÇÃO DE RECURSOS COM TAL FINALIDADE. SALIENTA QUE A TRAJETÓRIA PERCORRIDA É MARCADA POR DETERMINADAS INFLEXÕES DE ROTA, QUE GUARDAM ESTREITA RELAÇÃO COM MUDANÇAS OCORRIDAS NA FORMA E NO CONTEÚDO DA ATUAÇÃO DO ESTADO NO SETOR. IDENTIFICA E DESCREVE QUATRO PERÍODOS COM CARACTERÍSTICAS DISTINTAS EM TERMOS DA CONFIGURAÇÃO OBJETIVA ASSUMIDA PELA ATIVIDADE. O SETOR SE ORGANIZA ORIGINALMENTE EM TORNO DA CONCESSÃO DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO À INICIATIVA PRIVADA, COM BAIXO GRAU DE REGULAÇÃO E DE CONTROLE ESTATAL, SOB RESPONSABILIDADE DAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVAS LOCAIS E REGIONAIS. SOFRE, A SEGUIR, UMA MUDANÇA NO SENTIDO DA CENTRALIZAÇÃO DO PODER CONCEDENTE, CONJUGADA COM A INTRODUÇÃO DA PRÁTICA DO CONTROLE TARIFÁRIO , LEVANDO À RETRAÇÃO DOS INVESTIMENTOS PRIVADOS E À FORMAÇÃO E EXPANSÃO DE CONCESSIONÁRIAS PÚBLICAS. A ETAPA SUBSEQUENTE SE TRADUZ NO PROGRESSIVO ALARGAMENTO E NA INTENSIFICAÇÃO DA INTERVENÇÃO PÚBLICA NA ÁREA, CULMINANDO NA PLENA ESTATIZAÇÃO DO SETOR. POR FIM, HÁ UMA ESPÉCIE DE RETORNO ÀS ORIGENS DO PROCESSO, COM A REINSERÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA ATIVIDADE, TENDO COMO PRINCIPAIS VETORES AÇÕES ARTICULADAS DE DESREGULAMENTAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO. iii SUMÁRIO I. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 001 II. ARCABOUÇO TEÓRICO E A TRAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO ................................................................................................................. 005 1. ...........................................................................................................................................A s Premissas e Proposições Centrais da Teoria da Escolha Racional ................ 012 2. ...........................................................................................................................................E scolha Racional, Interação Social e Teoria dos Jogos ....................................... 018 3. ...........................................................................................................................................A s Críticas mais Usuais à Teoria da Escolha Racional e suas Interfaces com as Análises Institucionais .................................................................................... 025 4. ...........................................................................................................................................I nstituições e Mudanças Institucionais: As Interpretações Neoinstitucionalistas ............................................................................................ 033 5. ...........................................................................................................................................A tores e Instituições no Campo da Economia: O Papel do Mercado ................... 046 6. ...........................................................................................................................................E stado, Política Pública e Governo ........................................................................ 057 7. ...........................................................................................................................................M ercado, Estado e o Papel da Democracia ............................................................ 072 8. ...........................................................................................................................................P roposições Analíticas ........................................................................................... 078 III. DAS ORIGENS DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE À EMERGÊNCIA DO ESTADO REGULADOR ................................................................................................ 092 1. A Organização dos Serviços de Eletricidade e o Caráter Descentralizado da Regulamentação da Atividade ............................................................................. 097 1.1 Capital nacional e externo da exploração dos serviços de eletricidade ............. 102 1.2 Expansão horizontal e concentração de capital: crescimento e diferenciação das empresas energéticas ............................................................................... 106 1.3 Aprofundamento do movimento de oligopolização e consolidação da hegemonia do capital externo no setor ............................................................ 110 2. ...........................................................................................................................................A Emergência do Estado Regulador: A Reinstitucionalização do Sistema e os Efeitos sobre sua Dinâmica Produtiva ................................................................. 118 2.1 A natureza objetiva das mudanças na institucionalidade do setor elétrico propostas nos anos trinta ................................................................................. 123 iv 2.2 A transição para a nova institucionalidade do setor elétrico: o Código de Águas .............................................................................................................. 129 2.3 Estímulo à geração hidrelétrica e controle tarifário: a tensão intrínseca à concepção do novo marco regulatório do setor ................................................ 135 2.4 A disputa em torno das novas regras tarifárias: um conflito sem vencedores definitivos ........................................................................................................ 143 3. O Avanço do Processo de Reordenamento Institucional do Setor e a Crescente Deterioração dos Serviços de Eletricidade ........................................ 151 3.1 O caráter adaptativo da atuação do CNAEE e a gradativa flexibilização dos dispositivos regulatórios do Código de Águas .................................................. 155 3.2 Crise energética: racionamento e a emergência da empresa pública nos serviços de eletricidade ................................................................................... 161 4. IV. O Esgotamento de um Ciclo e a Necessidade de Reorganização Produtiva do Sistema Elétrico ............................................................................................... 172 DO ESTADO REGULADOR AO ESTADO EMPRESÁRIO ............................................ 176 1. O “imobilismo” do Governo Dutra e o Agravamento do Estrangulamento Energético do País ................................................................................................ 181 1.1 Agravamento do déficit de energia, racionamento e expansão das empresas energéticas estaduais ...................................................................................... 185 1.2 A discussão de saídas para a crise energética e a indefinição sobre os rumos do setor ................................................................................................ 191 2. O Segundo Governo Vargas e a Reestruturação Institucional do Sistema Elétrico .................................................................................................................. 195 2.1 ..................................................................................................................................D a regulação à intervenção direta: a concepção geral das reformas setoriais pretendidas pela administração varguista ........................................................ 197 2.2 ..................................................................................................................................A s medidas de curto prazo e seus efeitos a médio e longo prazos ..................... 202 2.3 ..................................................................................................................................A s medidas de médio e longo prazos: os projetos de reordenamento institucional do setor ........................................................................................ 206 2.4 ..................................................................................................................................O s limites do possível: a tumultuada trajetória dos projetos do PNE e da Eletrobrás no Congresso ................................................................................. 216 3. O Avanço e Consolidação do Intervencionismo Estatal e a Mudança de Escala dos Empreendimentos Hidrelétricos: O Governo Kubitschek ................ 221 v 3.1 ..................................................................................................................................O Plano de Metas e o caráter estratégico dos investimentos em energia elétrica ............................................................................................................ 223 3.2 ..................................................................................................................................A s metas de expansão do sistema elétrico e o aprofundamento do processo de estatização ................................................................................................. 229 3.3 ..................................................................................................................................D a viabilidade técnica à viabilidade política: o difícil caminho na transição para uma racionalidade sistêmica .................................................................... 239 3.4 ..................................................................................................................................A emergência de novos interesses e conflitos em torno dos investimentos hidrelétricos ..................................................................................................... 249 4. V. A Sobreposição do Estado Empresário ao Estado Regulador ........................... 257 ESTATIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO OPERACIONAL E PLANEJAMENTO CENTRALIZADO ........................................................................................................... 262 1. Consolidação da Hegemonia Estatal e Adequações Institucionais nos Anos Iniciais da Década de Sessenta ........................................................................... 267 1.1 A criação da Eletrobrás e a busca de soluções para o estrangulamento tarifário do setor .............................................................................................. 269 1.2 O avanço descentralizado no sentido da interligação operacional dos serviços de eletricidade ................................................................................... 279 2. ...........................................................................................................................................R umo à Autarquização das Atividades Setoriais: As Reformas Financeiras e Institucionais do Período 1964/1967 .................................................................... 283 2.1 O realinhamento tarifário e os impactos sobre as atividades do sistema .......... 286 2.2 O avanço no sentido da interligação do sistema e a consolidação da Eletrobrás ........................................................................................................ 291 2.3 A reacomodação do sistema às mudanças institucionais do setor e o avanço do movimento de estatização .......................................................................... 297 3. O Avanço da Operação Interligada e a Consolidação do Novo Modelo Institucional do Setor Elétrico .............................................................................. 303 3.1 ..................................................................................................................................A pressão sobre a capacidade de atendimento do sistema e o avanço da integração operacional .................................................................................... 306 3.2 ..................................................................................................................................E xpansão, especialização produtiva e tendência à “federalização” do setor ....... 315 4. ...........................................................................................................................................A Maturação das Reformas Setoriais e a Consolidação do Sistema Nacional de Eletrificação ..................................................................................................... 321 vi 4.1 Itaipu e a consolidação da integração operacional do sistema ......................... 323 4.2 Planejamento centralizado e megaempreendimentos hidrelétricos: a nova racionalidade decisória do setor ...................................................................... 332 5. ...........................................................................................................................................C rise e Esgotamento do Modelo Institucional Desenhado nos Anos Sessenta e Setenta ............................................................................................................... 341 5.1 O ajuste recessivo e a fragilização do planejamento setorial ............................ 343 5.2 A crescente importância das questões sócio-ambientais os impactos nos processos decisórios do setor .......................................................................... 350 6. Crise e Esgotamento do Modelo de Planejamento Centralizado no Setor ......... 354 VI. CONCLUSÕES .............................................................................................................. 359 VII. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 382 vii I. INTRODUÇÃO A economia capitalista, como enfatiza Przeworski, caracteriza-se pela coexistência de “dois mecanismos mediante os quais os recursos [produtivos] são alocados para usos diversos e distribuídos para os consumidores: o mercado e o Estado” (1995: 7). São mecanismos com lógicas de funcionamento distintas, às quais tendem a se associar resultados alocativos e distributivos também distintos. A dinâmica de mercado se expressa num processo autônomo e descentralizado de interações entre os indivíduos, tendo como suportes a garantia de direitos de propriedade e a liberdade de iniciativa. O fundamento primário da atuação do Estado, por sua vez, é a autoridade de que se reveste enquanto forma de poder político soberano e legitimamente constituído na sociedade. Ancorado em tal poder, o Estado desempenha um duplo papel correlativamente ao mercado. De um lado, responde pela definição e pelo efetivo cumprimento das regras do jogo que ordenam e disciplinam as múltiplas interações materializadas no mercado, assegurando e, ao mesmo tempo, influenciando sua fruição. De outro, promove uma alocação direta de recursos na produção de bens e serviços, em sintonia com prioridades estabelecidas pela agenda pública, “concorrendo” com o mercado. Em consequência, “há no capitalismo”, recorrendo novamente a Przeworski, “uma tensão permanente entre o mercado e o Estado” (1995: 7), o que faz, da demarcação da fronteira entre ambos, um dos temas mais controversos da literatura política contemporânea. Essa tensão se observa, em particular, no âmbito da prestação dos serviços de eletricidade no Brasil. A trajetória percorrida pela evolução do setor, de suas origens aos dias atuais, é permeada por uma série de transformações na relação que se estabelece entre mercado e Estado, refletidas nos arranjos organizacionais e na dinâmica de alocação de recursos da atividade. Apreender a natureza cambiante de tal relação e interpretá-la constituem o objeto deste trabalho, que se subdivide em duas partes principais. A primeira delas é dedicada à discussão das premissas metodológicas, dos conceitos e das proposições teóricas que irão nortear a abordagem do fenômeno sob investigação. A segunda 1 parte concentra-se no desenvolvimento propriamente dito do argumento analítico, em consonância com o esquema interpretativo traçado. O capítulo II condensa o esforço realizado no sentido do delineamento do arcabouço teórico-metodológico que sustenta a investigação pretendida, onde se procura articular categorias e processos analíticos destacados por matrizes ou vertentes teóricas distintas . Após algumas considerações preliminares acerca da temática que constitui o objeto de estudo, o enfoque converge para o tratamento de questões entendidas como cruciais ao desenvolvimento do trabalho. O ponto de partida é a abordagem da escolha racional, examinando-se suas premissas centrais, sua estrutura lógica e as críticas mais usuais à sua aplicação na análise dos fenômenos sociais concretos, especialmente nos campos da política e da economia. Em seguida, desloca-se o foco para as contribuições teóricas neoinstitucionalistas, que enfatizam o papel das instituições como regras do jogo para o processamento das múltiplas interações dos indivíduos na sociedade. O próximo passo é a discussão de mercado e de Estado como mecanismos alternativos de coordenação de interesses e de alocação de recursos do capitalismo contemporâneo. Completando o conjunto das questões elencadas, as teorias da democracia são brevemente sumarizadas, onde são destacados aspectos relacionados à formação da agenda pública e à autonomia decisória do Estado. Ao final do capítulo, retorna-se à problemática investigada, promovendose uma sistematização das principais hipóteses e proposições que serão desenvolvidas na análise empreendida no trabalho. A segunda parte desdobra-se em três capítulos, cada um deles contemplando uma etapa específica da trajetória evolutiva das atividades elétricas no país, cuja demarcação se faz em função da natureza objetiva da relação que se estabelece entre mercado e Estado no âmbito do setor. O capítulo III corresponde ao estágio inicial de organização e expansão dos serviços de eletricidade em território nacional, caracterizado pela prevalência de uma dinâmica de mercado, e que se estende das últimas décadas do século XIX até o limiar dos anos quarenta. O capítulo IV recobre o período que vai dos anos 2 quarenta à transição para os anos sessenta, tendo como traço distintivo essencial o forte avanço do intervencionismo estatal na área, com o correlato estreitamento do campo de atuação da iniciativa privada. Por fim, o capítulo V compreende o período de plena estatização do setor, com a responsabilidade pela prestação do serviço sendo integralmente assumida por empresas públicas, num processo que alcança o apogeu na transição dos anos setenta e se esgota na segunda metade da década de oitenta. A forma como se processa o desenvolvimento do argumento analítico é comum aos três capítulos. No início de cada um deles, é feita uma síntese da análise realizada, com o intuito de proporcionar uma visão geral da evolução setorial ocorrida no período. A seguir, procede-se a uma abordagem mais detalhada da trajetória percorrida, com ênfase nos arranjos organizacionais e produtivos da atividade e suas transformações no tempo, em conexão com as mudanças ocorridas na relação entre mercado e Estado. A parte final é dedicada a considerações acerca da transição de uma etapa a outra, centradas nos fatores determinantes da inflexão de rota, isto é, da redefinição dos rumos do caminho que vinha sendo percorrido. O capítulo VI aglutina as conclusões do trabalho, que se articulam em torno de dois eixos principais de abordagem. A parte inicial retoma a discussão de questões centrais ao desenvolvimento do argumento analítico, orientada no sentido da promoção de um balanço crítico da investigação realizada, onde se procura sistematizar os resultados de maior relevância teórica e empírica. Na sequência, procede-se a um breve exame do desenvolvimento do setor a partir da transição dos anos oitenta, que assinala a abertura de um novo estágio na trajetória evolutiva da atividade. Toma forma então um processo abrangente de reconfiguração dos arranjos organizacionais e produtivos prevalecentes na área, fundado na redução do intervencionismo estatal, em estreita sintonia com a agenda das reformas de recorte liberal adotada pelo país a partir dos anos noventa. 3 A análise empreendida no âmbito do trabalho apoia-se no levantamento de informações realizado junto a três fontes principais de pesquisa. A primeira delas é representada pela ampla produção acadêmica dedicada ao estudo da formação social brasileira, em suas várias dimensões, onde se salientam, evidentemente, as investigações focadas nos serviços de eletricidade. Outra importante fonte de informações consiste na pesquisa de cunho documental, com destaque para os instrumentos jurídico-normativos relacionados, direta ou indiretamente, ao ordenamento e controle das atividades setoriais e para os planos e programas de investimento na expansão do sistema propostos pela administração pública. A terceira e, provavelmente, a mais importante fonte de pesquisa remete ao Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Além de um expressivo esforço de aglutinação, sistematização e análise de informações referentes ao desenvolvimento do setor, consolidados em relatórios de pesquisa, o Centro dispõe de um acervo importante de depoimentos de personalidades que participaram, em diferentes momentos da história, da formulação e da implementação das iniciativas estatais na área. O acesso a tais depoimentos, em sua ampla maioria inéditos, proporcionou subsídios valiosos à estruturação do desenvolvimento do argumento analítico, notadamente no que se refere à interpretação da lógica decisória subjacente às ações governamentais no setor. 4 II. O ARCABOUÇO TEÓRICO E A TRAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO O setor elétrico brasileiro – entendido como o conjunto das atividades de geração, transmissão e distribuição ou comercialização final de eletricidade – vem sendo marcado por profundas transformações em suas estruturas organizacionais e produtivas ao longo da última década. São mudanças que têm, como orientação geral, o incremento da eficiência técnica e econômica na prestação do serviço (Castelo Branco, 1996), fundado na privatização e na concorrência de mercado. Tal processo, contudo, não é específico ao país, nem fica circunscrito à área de energia elétrica. Quanto ao primeiro aspecto, cabe observar que, desde meados dos anos setenta, reformas setoriais foram empreendidas ou estão em andamento em diversas partes do mundo, especialmente nos continentes europeu e americano (Rosa et al, 1998). Quanto ao segundo, salienta-se que a reestruturação em curso na atividade se inscreve no marco mais geral das reformas de cunho liberalizante que começaram a ser implementadas timidamente pelo país nos anos finais da década de oitenta, focadas no Estado e nas funções que este desempenha no campo da economia (Cano, 1993; Sola et al., 1995; Bresser Pereira, 1996; Cruz, 1997; Diniz, 1997), para se intensificarem na década de noventa. Deve-se ressaltar, contudo, que outras transformações igualmente expressivas já ocorreram na área, conformando uma trajetória onde se observam períodos de maior ou menor dinamismo entremeados por redesenhos na institucionalidade do setor. Das origens da prestação do serviço no país, que remontam ao final do século XIX, até o período contemporâneo, tanto as bases técnicas e econômicas da atividade quanto as regras, mecanismos e procedimentos que disciplinam e orientam seu funcionamento e reprodução no tempo experimentaram modificações substantivas, influenciando-se reciprocamente. De cerca de 12 MW na virada do século XIX, a potência instalada brasileira salta para mais de 50 mil MW nos anos noventa, o que se faz acompanhar de progressiva ampliação das plantas geradoras e da extensão das 5 linhas de transmissão. Essencialmente privadas, na fase mais inicial de estruturação da atividade, e bastante numerosas, chegando a somar várias centenas nos anos vinte e trinta, as empresas atuantes na área tornam-se hegemonicamente públicas a partir dos anos sessenta, não ultrapassando algumas poucas dezenas nas duas últimas décadas. De sistemas elétricos isolados, sob controle de empresas verticalmente integradas, isto é, com atuação simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e distribuição de energia, o setor avança no sentido da interligação operacional, fundada no intercâmbio de eletricidade, abrindo espaço para a emergência de especializações produtivas e a conformação de arranjos organizacionais mais complexos, construídos em torno de integrações horizontais e verticais entre empresas, de âmbito regional. Em conexão às transformações na materialidade das relações produtivas setoriais, processam-se alterações também abrangentes nos pilares de sustentação da atividade. Vale dizer, a legislação básica que define papéis e funções e especifica as regras a serem observadas pelos agentes atuantes no setor, de um lado, e os mecanismos de arbitragem e resolução de conflitos e de coordenação de interesses, de outro, passam por mudanças e aprimoramentos que, ao mesmo tempo, refletem e influenciam os rumos de seu desenvolvimento. Podem ser citados, aqui, como ilustrações, a promulgação do Código de Águas, nos anos trinta, e a criação da Centrais Elétricas Brasileira S.A. (Eletrobrás), nos anos sessenta, ambas por iniciativa do governo federal. A dinâmica do desenvolvimento setorial não pode ser dissociada das características e transformações do contexto sócio-econômico em sentido amplo, que influenciam, direta ou indiretamente, as oportunidades e os estímulos a investimentos na área – as necessidades objetivas que se colocam, do ponto de vista da sociedade, no tocante à prestação de serviços de eletricidade -, e os meios ou recursos passíveis de serem mobilizados em seu aproveitamento – as opções ou alternativas de ação com vistas ao atendimento de tais necessidades. Quanto ao primeiro aspecto, ganha saliência o caráter pervasivo que a eletricidade vai progressivamente adquirindo no decorrer do século XX, em 6 estreita articulação com os fenômenos da urbanização e da industrialização que marcam a evolução histórica contemporânea dos países de um modo geral e do Brasil em particular. De um lado, a modernização dos processos produtivos amplia as possibilidades de uso da energia elétrica; de outro, a tendência à concentração populacional em centros urbanos cada vez maiores e mais adensados e a acelerada expansão e diversificação da atividade industrial criam condições efetivas para o incremento de sua utilização e consumo. O crescimento extensivo e intensivo da demanda de mercado, provocado por fenômenos dessa natureza, está na base do salto na potência instalada do país, anteriormente mencionada. Quanto ao segundo, inovações tecnológicas aplicáveis à geração, transmissão e mesmo à distribuição de energia viabilizam e estimulam a modernização e o aumento da eficiência técnica e econômica na prestação do serviço. A “descoberta da corrente alternada e (...) [o] desenvolvimento de turbinas com grande capacidade de geração” (Rosa et al., 1998: 109) constituem exemplos de tais inovações, ensejando e fomentando o aproveitamento de economias de escala e de escopo e, por extensão, a reconfiguração dos arranjos produtivos do setor. A estruturação dos serviços de eletricidade no país e as transformações que se processam na dinâmica de funcionamento da atividade no decorrer do tempo constituem o objeto de estudo deste trabalho. A abordagem do tema implica considerar dois planos distintos, porém interligados, de análise. O primeiro corresponde à descrição, de uma perspectiva histórica, das linhas gerais da trajetória de desenvolvimento do setor, com o intuito de se apreender a natureza concreta de seus arranjos organizacionais e produtivos e as mudanças neles ocorridas. Duas hipóteses principais orientam a reconstrução histórica empreendida. Uma delas é que o caminho percorrido espelha a dinâmica das relações que se estabelecem entre os agentes atuantes na área, de um lado, e a o arcabouço regulatório que ordena e controla a prestação do serviço, de outro, onde intervêm aspectos relevantes do contexto, que afetam o conjunto de oportunidades e de restrições abertas a estes mesmos agentes. A interveniência 7 do contexto, por sua vez, tem a ver com fatores que atuam tanto do lado da demanda de energia quanto do lado da oferta. Sob a ótica da demanda, adquirem saliência aspectos relacionados à dinâmica do desenvolvimento sócio-econômico, como os movimentos de urbanização e industrialização, que repercutem sobre as necessidades potenciais e efetivas de consumo de eletricidade. Sob a ótica da oferta, cabe destacar questões que influenciam, direta ou indiretamente, as possibilidades de mobilização de recursos tecnológicos, financeiros e organizacionais pela atividade. A outra é que o processo de desenvolvimento setorial apresenta períodos caracterizados por transformações abrangentes no perfil dos agentes, na lógica decisória e nos produtos da alocação de recursos na área, conformando arranjos organizacionais e produtivos distintos daqueles anteriormente prevalecentes. Dito de outra forma, trata-se de uma trajetória evolutiva não linear, marcada por determinadas inflexões de rota que se manifestam ao longo do percurso. O segundo plano de abordagem remete à construção de um argumento analítico capaz de proporcionar explicações que sejam ao mesmo tempo teoricamente fundamentadas, no sentido de se referenciarem em supostos e proposições definidas externamente ao fenômeno investigado, e consistentes, no sentido de permitirem uma interpretação sistemática e coerente do mesmo. Essa opção metodológica implica demonstrar, quando da descrição da evolução setorial, que determinados cursos de ação revelavam-se mais factíveis que outros à luz dos supostos e proposições analíticas previamente definidos, onde se atribui papel decisivo à natureza cambiante da regulação estatal relativa à atividade. Em termos mais específicos, o caminho percorrido pelo desenvolvimento setorial e as inflexões nele ocorridas guardam estreita relação com a forma e o conteúdo objetivo da atuação do Estado no setor, envolvendo tanto as funções que este desempenha enquanto responsável pela definição e garantia do cumprimento das regras do jogo – o Estado regulador -, quanto as de alocar diretamente recursos na área – o Estado empresário. 8 A investigação pretendida envolve, portanto, considerações a respeito de três dimensões analíticas principais, estreitamente interrelacionadas. A primeira tem a ver com os agentes atuantes no setor, salientando-se a lógica decisória referente às estratégias que adotam no desenvolvimento de suas atividades e, especificamente, no tocante à alocação de recursos na expansão do sistema. Adere-se aqui ao suposto básico da escolha racional, onde se enfatizam a intencionalidade do agente e a busca de eficiência na promoção de seus interesses e na consecução dos objetivos que persegue. A segunda refere-se aos mecanismos e regras de ordenamento e controle do funcionamento da atividade que balizam as decisões dos agentes e as condutas que adotam, assegurando a acomodação de interesses e , com ela, a cooperação necessária à prestação do serviço à sociedade. A discussão dessa temática converge para uma reflexão sobre a forma como os arranjos institucionais influenciam os interesses, as motivações, as decisões e os produtos das ações humanas nos diversos campos de atividade, e são por eles influenciados. A terceira e última dimensão analítica guarda relação com as interfaces entre o desenvolvimento da atividade e configuração objetiva do contexto onde esta se inscreve. As oportunidades abertas ou ao alcance dos agentes setoriais no tocante à alocação de recursos que fazem e o espectro dos interesses incorporados nas decisões que tomam são contingentes da forma como se estruturam e se processam as interações no ambiente em sentido amplo. São questões que conduzem inevitavelmente ao papel desempenhado pelo Estado na dinâmica dos processos produtivos das sociedades capitalistas modernas, numa discussão que passa por suas relações com o mercado e avança na direção da democracia. Em consonância com a opção metodológica acima descrita, procedese a seguir ao delineamento geral dos principais conceitos e proposições que fundamentam a construção do argumento analítico. Sua elaboração se referencia numa revisão da literatura sócio-política que trata de tais temáticas, empiricamente orientada para as questões pertinentes à abordagem do fenômeno investigado. Como o corpus teórico constituído em torno da reflexão sobre a ação 9 e a ordem social – temas que estão no cerne da investigação pretendida – é não apenas extenso mas eclético, sendo marcado por divergências ao mesmo tempo ontológicas e epistemológicas, não há como escapar ao imperativo de se restringir o leque das vertentes interpretativas consideradas nem de se proceder a uma simplificação do tratamento de determinadas questões, sem perder de vista, contudo, a preocupação com a coerência e consistência da análise empreendida. A atenção é dirigida inicialmente para a formulação teórica da escolha racional - ponto de partida para a análise da ação no campo da economia - onde se procura examinar suas premissas ou pressupostos básicos, salientando a concepção lógica das proposições que nelas se apoiam. A abordagem realizada enfatiza a aplicação do suposto da racionalidade às interações sociais, o que implica introduzir a interdependência decisória e, com ela, a consideração tanto de situações que envolvem a formação de alianças e coalizões, ancoradas em interesses comuns ou convergentes, quanto situações que envolvem disputas entre interesses divergentes. Isto remete à teoria dos jogos, que desenvolve conceitos e técnicas analíticas, de fundamentação matemática, para a discussão da influência recíproca das condutas estratégicas dos agentes nas circunstâncias onde os resultados das ações de cada um deles não dependem apenas de suas próprias decisões, mas das decisões dos demais. O passo seguinte consiste na realização de um balanço das críticas mais recorrentes à aplicação do instrumental analítico da escolha racional e da teoria dos jogos à discussão das interações humanas que se processam no mundo real, em especial no campos da política e da economia. Esse balanço é utilizado para construir uma ponte entre a escolha racional e a análise institucional, entendidas e tratadas como enfoques distintos mas não excludentes sobre a conduta assumida pelos agentes nas situações concretas onde sua ação se desenvolve. Avança-se, então, na direção de uma reflexão a respeito das instituições e de como operam correlativamente à ação, tendo como referência 10 contribuições teóricas que se inscrevem na vertente neoinstitucionalista1. Procurase, num primeiro momento, demarcar o campo analítico de aplicação do conceito de instituição, o que converge para a adoção de uma definição onde assume o significado básico de “regras do jogo” para a dinâmica das interações sociais. Num segundo momento, a atenção se volta para a discussão de aspectos relacionados à conformação dos desenhos institucionais, conduzida a partir de dois ângulos principais de abordagem. De um lado, o enfoque recai no processo de formação e diferenciação das instituições, envolvendo considerações referentes às razões que motivam as mudanças, à forma como se materializam e aos fatores nos quais se sustentam. De outro, a ênfase se concentra nos efeitos ou implicações derivados de tais mudanças sobre a conformação da arena decisória de um dado setor ou campo de atividade, o perfil e a composição dos atores que nele se inscrevem e as ações que desenvolvem, em conexão à difusão destes efeitos no ambiente em sentido amplo. O último bloco de questões remete ao exame da estruturação dos arranjos organizacionais que fundamentam o processo de alocação dos recursos produtivos da sociedade e a distribuição de seus resultados, tendo como referências polares as noções de mercado e Estado. Discute-se, inicialmente, a concepção de mercado enquanto mecanismo de coordenação de interesses, a lógica competitiva e descentralizada das interações que nele se processam e a “eficiência” dos produtos dela derivados. Essa abordagem converge para uma sistematização das críticas mais recorrentes ao funcionamento dos mercados no mundo real, evidenciando problemas tratados como “imperfeições” e “falhas” da alocação de recursos que promovem. Procedimento similar se aplica à concepção de Estado, onde se busca apreender a forma como se organiza e opera, enfatizando aspectos relacionados à eficiência e eficácia no desenvolvimento da 1 Ver, a respeito, DiMaggio, J. P. and Powell, W. W., Introduction. In: Powell, W. W. and DiMaggio, J. P. (ed. ), The new institutionalism in organizational analysis. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. 11 atividade governativa. Ganha saliência, no âmbito dessa discussão, o exame da relação entre Estado e mercado, que assume, ao mesmo tempo, caráter complementar e conflitivo. Numa ponta, o Estado assegura o suporte institucional para a alocação de recursos que se processa no mercado; na outra, compete com o mercado na alocação destes mesmos recursos, segundo uma lógica distinta e com resultados também distintos. Cria-se, dessa forma, uma tensão entre ambos, cuja mediação se referencia nas instituições constitutivas da democracia. Isto leva ao direcionamento do foco analítico para uma abordagem das concepções dominantes de democracia nas sociedades capitalistas modernas, os instrumentos e procedimentos sobre os quais se apoia e a influência que exerce sobre os fluxos dos eventos relevantes do sistema social. 1. As premissas e proposições centrais da teoria da escolha racional Partindo do postulado básico do individualismo metodológico - a proposição de que, para “explicar um fenômeno social, é necessário descobrir suas causas individuais” (Boudon, 1995: 33) -, a teoria da escolha racional pode ser tomada, numa primeira aproximação, como a aplicação do instrumental da economia neoclássica , mais especificamente, a suposição do comportamento racional do indivíduo enquanto agente econômico – o denominado homo economicus - a outros campos das ciências humanas. Essa suposição expressa a idéia de que, “quando defrontadas com vários cursos da ação, as pessoas comumente fazem o que acreditam que levará ao melhor resultado global” (Elster, 1994: 38), ou seja, escolhem a alternativa mais afim com seus interesses e objetivos. O modelo analítico da escolha racional envolve um conjunto de supostos sobre a ação humana e, consequentemente, sobre o indivíduo enquanto ator social. As premissas básicas são a intencionalidade na busca de resultados e a racionalidade na definição da conduta a ser adotada tendo em vista este propósito (Reis, 1994; Elster, 1994). Em conexão com tais premissas, Elster argumenta que “as ações são explicadas por oportunidades e desejos - pelo que 12 as pessoas podem fazer e pelo que querem fazer” (1994: 30). Os desejos estimulam a ação ou, como afirma Laver, “motivam as pessoas a agirem numa particular direção” (1997: 18), dentre as opções abertas às mesmas. Os desejos remetem a interesses e preferências que são próprios ao indivíduo ou agente, ainda que, em diversas circunstâncias, comuns ou compartilhados por outros agentes. Interesses e preferências são decisivos no direcionamento de sua conduta quanto aos objetivos a serem alcançados, isto é, aquilo que quer fazer. Introduz-se aqui o suposto de intencionalidade, expressando a idéia de que o indivíduo define objetivos a serem perseguidos e age em busca de sua realização (Reis, 1984). A intencionalidade é fundamental na transformação das preferências e desejos em propósitos e, por extensão, no desencadeamento da ação. A materialização dos desejos, por sua vez, envolve a mobilização de recursos, entendidos como tudo aquilo que pode ser usado como suporte ou sustentação à ação. A capacidade de mobilizar recursos assume, sob essa ótica, papel estratégico para o ator, determinando a amplitude das alternativas de ação ao seu alcance. Tal capacidade remete à dotação de recursos específica de cada indivíduo, que é não apenas limitada, mas desigualmente distribuída entre os mesmos. A dotação de recursos tem implicações em duas direções principais: possibilita aos indivíduos fazerem determinadas coisas e, ao mesmo tempo, cria constrangimentos a que possam fazer outras (Laver, 1997). Vale dizer, a uma desigual distribuição de recursos corresponde uma capacidade também diferenciada de agir. A suposição de racionalidade intervém no quadro analítico da ação fazendo a ligação entre o que os indivíduos querem fazer e o que eles podem fazer. Racionalidade é indissociada de intencionalidade e se refere à avaliação que o agente faz a respeito da forma como deve agir para alcançar os objetivos a que se propõe. Orientada para o resultado da ação - a consecução dos objetivos pretendidos - e apoiada nos recursos passíveis de serem mobilizados, a escolha racional assume um caráter instrumental (Reis, 1984; Elster, 1994; Laver, 1997). Implica selecionar, dentro do campo daquilo que é possível fazer, a conduta que 13 expresse, do ponto de vista do agente, uma articulação adequada dos recursos disponíveis com vistas aos propósitos visados. A questão de selecionar dentre as alternativas de conduta ao alcance do indivíduo aquela que se configura como a mais indicada vai ser resolvida analiticamente através do recurso à idéia de eficiência. Conforme Reis, o modelo analítico da escolha racional “inclui (...) a preocupação com a eficiência” (1988: 4), significando que, ao articular os recursos disponíveis com o intuito de alcançar os objetivos a que se propõe, o agente procura a melhor forma possível para sua realização. A orientação no sentido da eficiência constitui, como afirma Reis (1988), elemento indispensável para a caracterização da ação como racional. A esse respeito, Elster afirma que “as ações são avaliadas e escolhidas não por elas mesmas, mas como meios mais ou menos eficientes para um fim ulterior” (1994: 38). O atributo de racionalidade traduz a escolha de uma estratégia ou curso de ação que mais efetivamente atende aos desejos e propósitos dos atores (Laver, 1997). Cabe retomar então a referência feita por Elster às oportunidades como componente do quadro explicativo da ação. As oportunidades podem ser entendidas como o elemento que vai determinar, dentro do campo das alternativas de ação que estão ao alcance do agente - as várias possibilidades alternativas de articulação dos recursos sob seu controle -, aquelas que são factíveis, isto é, que podem efetivamente ser adotadas. “As oportunidades são objetivas, externas” (Elster, 1994: 37) aos agentes. Atuam coercitivamente sobre os mesmos, restringindo o conjunto das ações exequíveis, portanto, passíveis de serem avaliadas e implementadas numa dada situação concreta. Isto equivale a dizer que a idéia de racionalidade não se sustenta em si mesma (Reis, 1988): à medida que se refere ao comportamento do agente em um ambiente, assume inescapavelmente uma configuração contextual. Ambientes com características distintas ou mudanças em aspectos relevantes do ambiente influenciam de forma decisiva a conduta do agente. Ações vistas como opção racional num dado 14 contexto podem deixar de ser a escolha mais adequada ou sequer estarem abertas à avaliação do agente num ambiente distinto. Toma forma aqui um primeiro e importante ponto de conexão da abordagem da escolha racional com as perspectivas analíticas que enfatizam os aspectos estruturais ou institucionalizados da organização social como condicionantes da ação. O aspecto incisivo a esse respeito é que a ação não se desenvolve num plano vazio de significados, mas num quadro social de referência objetivamente estabelecido, que cabe ao agente reconhecer e incorporar em sua conduta. Assim, “encontrar os melhores meios para os fins dados” - a escolha racional - pode ser entendida como “um modo de adaptar-se otimamente às circunstâncias” (Elster, 1994: 41), o que, em princípio, aponta para uma aparente convergência entre a escolha racional e as interpretações sociológicas normativas, na linha de pensamento associada a Durkheim, que enfatiza os aspectos ligados ao consenso e à integração social. No entanto, ao contrário das abordagens de fundamentação normativa, para a escolha racional a adequação da conduta do indivíduo às circunstâncias do ambiente não implica que a realidade social objetiva que este expressa vá determinar plenamente o comportamento ou ação adotada (Elster, 1994). Embora influenciada pelo contexto, a ação representa, acima de tudo, uma escolha do indivíduo, derivada da avaliação que faz a respeito das estratégias que estão abertas ao mesmo, tendo em vista os objetivos que pretende alcançar. Dito de outra forma, a conduta adotada expressa uma opção do agente, o que significa, em essência, uma deliberação autônoma. Racionalidade envolve necessariamente autonomia premissa central para a escolha racional -, “pois admitir a busca de objetivos sem esta autonomia redundaria em reduzir a ação intencional às condições próprias do comportamento estimulado ou condicionado, onde o sujeito atuante desaparece como tal” (Reis, 1988: 27). Trata-se de um cálculo fundado no raciocínio lógico, onde são considerados os custos, os benefícios e os riscos envolvidos na ação (Laver, 1997). Implica dizer que o indivíduo sabe ou acredita saber o que está fazendo e o que espera obter do comportamento que adota, 15 expressando um componente ativo da racionalidade (Reis, 1988; Giddens, 1989; Elster, 1994) O caráter contextual da ação - o ambiente como quadro de referência para as decisões do indivíduo - implica um elemento de cognição, necessário à identificação das opções de conduta factíveis ao mesmo nas circunstâncias de imersão da ação. O modelo analítico da escolha racional ganha assim um novo componente, mais especificamente, a capacidade cognitiva do agente, que vem conferir instrumentalidade ao processo decisório sobre as condutas a serem adotadas. Ação racional deve ser vista, portanto, como ação informada, no sentido de o agente buscar um “diagnóstico lúcido da situação (...) onde esta supostamente ocorre” (Reis, 1988: 4), o que supõe capacidade de percepção e interpretação das oportunidades associadas às circunstâncias onde a atuação é desenvolvida. O acesso, controle e processamento de informações instrumentalizam a escolha da alternativa de conduta que o agente considera mais eficaz dentre o espectro de opções compatíveis com seus propósitos e recursos e factíveis com as restrições do contexto. Se ação racional é ação informada, torna-se possível argumentar, como o faz Reis (1988), que quanto mais informado e, consequentemente, quanto mais lúcido for o diagnóstico da situação que conforma o quadro de referência da ação, maior o grau de racionalidade envolvido no comportamento do ator. Em decorrência, é razoável falar em diferentes níveis de racionalidade, refletindo graus variados em que os aspectos relevantes da realidade objetiva na qual a ação está imbricada são percebidos e processados pelo agente. Graus variados de racionalidade, por sua vez, podem ser vinculados à eficiência na escolha da forma de agir frente aos propósitos visados. Em outros termos, oportunidades não percebidas e não consideradas na avaliação feita pelo agente ou percebidas de forma equivocada têm reflexos sobre o grau de adequação da conduta selecionada ou mesmo sobre a natureza dos resultados obtidos. “A pessoa pode deixar de perceber certas oportunidades e por isso não escolher o melhor meio disponível de realizar o seu desejo. Inversamente, se acreditar que certas opções 16 não exequíveis sejam exequíveis, a ação pode ter resultados desastrosos” (Elster, 1994: 37) O processamento de informações que fundamenta a racionalidade da escolha, por sua vez, está relacionado ao comprometimento ou engajamento efetivo do agente com os propósitos da ação, traduzindo o fato de que “os fins ou objetivos devem estar estabelecidos de maneira suficientemente clara e consistente”(Reis, 1988: 27). Esse comprometimento com os resultados da ação remete às características do indivíduo enquanto agente, suas preferências e objetivos mais gerais, orientadores de uma conduta que lhe é própria, no sentido de uma identidade pessoal que se manifesta no curso de suas atividades ao longo do tempo (Reis, 1988). Nos termos em que a questão é tratada por Laver (1997), para ser capaz de selecionar, dentre o conjunto de oportunidades de ação abertas à sua escolha, aquela que mais efetivamente atende a seus desejos, o indivíduo deve ser capaz de ordenar ou hierarquizar suas preferências, de forma a poder comparar as alternativas com as quais se defronta. Tem-se aqui um segundo ponto possível de conexão com as abordagens institucionais, já que é inescapável a referência aos condicionantes sociais - normas, valores e instituições de diferentes naturezas - na formação das preferências e dos traços de uma identidade pessoal. Em sua formulação mais ortodoxa, associada aqui à análise desenvolvida pela teoria econômica neoclássica, a escolha racional negligencia essa conexão, tomando as preferências do agente como dadas. A formação das preferências não é problematizada, conformando uma evidente simplificação de seu modelo analítico - aspecto a ser retomado e enfatizado mais à frente. Até esse ponto, o esquema analítico da escolha racional foi tratado em termos da relação que se estabelece entre o ator e o ambiente, onde, em síntese, suas preferências e objetivos são tomados como dados e o curso da ação como influenciado, em algum nível, por fatores estruturais do contexto objetivo onde a ação se inscreve, também dado. No entanto, aquilo que o indivíduo deseja pode ser, e frequentemente o é, objeto de desejo de outros indivíduos ou ter 17 implicações, de distintas naturezas, sobre interesses dos mesmos, fazendo-se necessário introduzir, no quadro de referência da ação, as implicações derivadas da interação social. Sob esse ponto de vista, intencionalidade e comportamento orientado para resultados são melhor descritos como busca de interesses (Reis, 1988). Refletindo a interdependência das decisões, o comportamento do ator adquire configuração de ação estratégica: o processo decisório deve levar em consideração também os interesses e a conduta dos demais atores (Elster, 1989; Reis, 1984). Vale dizer, as decisões são feitas em função de um conjunto de oportunidades e constrangimentos que expressam as opções abertas ao indivíduo, cujo escopo, por sua vez, “é constrangido, e mesmo modelado, pelos conjuntos de oportunidades dos outros na sociedade” (Mercuro e Medema, 1997: 115). 2. Escolha racional, interação social e teoria dos jogos Os desdobramentos derivados da interação social têm a ver com as interferências dos objetivos, preferências, interesses e ações de uma pluralidade de indivíduos entre si. As questões de maior relevância analítica referem-se a situações onde as preferências dos indivíduos e as decisões que tomam motivadas pelas mesmas dizem “respeito não apenas aos que têm tais preferências, mas também a outras pessoas” (Ricker e Ordeshook, 1971, citado por Reis, 1984: 113). Dessa interseção resultam implicações em três direções principais: preferências ou interesses divergentes, preferências cuja realização têm efeitos secundários ou laterais sobre terceiros, e preferências ou interesses convergentes, cuja realização envolve outras pessoas. As preferências ou interesses divergentes levam a situações onde a realização dos objetivos de determinado agente defronta-se com a existência de outros agentes com objetivos contrários e possivelmente incompatíveis. Como a ação racional é movida pelo interesse próprio - o indivíduo “age de modo a beneficiar-se” (Elster, 1994: 119) -, a conduta adotada pelo agente com vistas à consecução de seus objetivos tende a criar constrangimentos e, no extremo, a 18 bloquear a possibilidade de outros agentes também perseguirem seus interesses. Em consequência da interferência recíproca associada à concorrência ou ao conflito de interesses, os elementos decisivos na delimitação daquilo que os indivíduos podem fazer não vão se restringir mais apenas aos recursos que mobilizam e aos constrangimentos associados ao contexto institucional onde a ação se inscreve, mas também às restrições determinadas pelos objetivos perseguidos por outros agentes e as correspondentes ações que adotam com este propósito. A natureza do conflito, a forma como se manifesta e suas implicações vão depender do grau efetivo de engajamento dos indivíduos com os objetivos visados, isto é, de como tais objetivos se colocam frente às respectivas preferências, fundamento da intencionalidade que move a ação, bem como da capacidade do indivíduo em controlar as opções de ação abertas àqueles que podem criar constrangimentos ou restrições às suas decisões. Isto remete a um processo de coerção mútua que tem, como elemento central, o poder relativo do indivíduo de se impor sobre os outros indivíduos, expressando sua capacidade de fazer escolhas independentemente do consentimento dos demais (Mercuro e Medema, 1997; Laver, 1997). A resolução ou solução dos conflitos guarda relação, portanto, com o balanço de forças e a capacidade coativa dos diferentes indivíduos, que se fundamentam, em última instância, na criação e garantia de direitos, institucionalizados, nas sociedades contemporâneas, sob a forma de lei – aspecto a ser retomado mais à frente, quando da discussão do papel das instituições correlativamente à ação. As consequências não pretendidas da ação dizem respeito a interferências involuntárias da conduta de um determinado agente sobre si próprio e, em especial, sobre outros agentes, não diretamente envolvidos com os propósitos originais visados pelo agente responsável pela ação. Tratados como “externalidades” (Reis, 1984; Elster, 1994; Papandreou, 1994), esses efeitos podem ser positivos ou negativos, dependendo do fato de serem convergentes ou divergentes frente aos interesses e preferências dos indivíduos sobre os quais incidem. Em geral, tendem a ser pouco expressivos vis-à-vis os resultados 19 originalmente pretendidos pela ação (Elster, 1994). No entanto, vem se tornando cada vez mais evidente, sobretudo no campo da economia, que a manifestação daquilo que é percebido como “interdependências externas nas relações entre os agentes (...) tem crescido rapidamente” (Papandreou, 1994: 2). A justaposição ou o efeito de agregação das externalidades atua no sentido de intensificar sua expressividade, tornando-as analiticamente relevantes no quadro de referência da ação, o que se aplica, em particular, às externalidades negativas. Dentre outras implicações, tais externalidades criam dificuldades adicionais para lidar com o problema da resolução dos conflitos de interesse, acima mencionado. A questão central aqui é o fato de as externalidades serem “ubíquas e recíprocas – qualquer (re)definição, (re)alocação, ou mudança no grau de coação fundada em direitos beneficia alguns interesses e prejudica outros; a externalidade se mantém, sendo meramente redistribuída” (Mercuro e Medema, 1997: 116). Dito de outra forma, não existem soluções no sentido de evitar que se manifestem, mas apenas resoluções para situações objetivamente configuradas, com benefícios ou prejuízos sendo “canalizados numa particular direção através da delimitação legal de direitos” (Mercuro e Medema, 1997: 116). Por último, as preferências ou interesses comuns de um determinado conjunto indivíduos ou agentes, derivadas das condições objetivas de sua inserção na organização social, estão na origem da transição da ação individual para a ação coletiva, isto é, da formação dos atores coletivos. Dado o caráter intencional da ação, seria de se esperar, como implicação lógica, que indivíduos com interesses convergentes agissem na promoção de tais interesses, através de um processo natural e abrangente de cooperação. No entanto, Olson (1965) mostrou o caráter problemático dessa cooperação, argumentando a respeito da inconsistência lógica envolvida na extrapolação da premissa relativa ao comportamento individual para o comportamento coletivo. Partindo do suposto da racionalidade, o autor afirma que os indivíduos não agem “naturalmente para a promoção do interesse comum” (Reis, 1984: 116). Ao contrário, tendem a agir como “free rider”, à medida que podem se beneficiar do resultado da ação 20 coletiva, sem o envolvimento pessoal de recursos em sua realização. O desdobramento mais geral da proposição olsiana é que a ação coletiva só se realiza na presença de coerção externa ou do que denomina “incentivos separados”, isto é, estímulos que incidam de forma seletiva em termos individuais, criando interesses específicos na “participação na ação coletiva mas independentes” (Reis, 1984: 116) dos resultados coletivos em si mesmos. A resolução do dilema olsoniano, no entanto, pode se processar através da consideração de aspectos como a existência de coordenação e a apreensão da ação como um fluxo no tempo, entre outros (Laver, 1997) – questão que também será retomada mais à frente. Ao caráter interdependente da ação associa-se portanto uma multiplicidade de situações onde o aspecto saliente é a interferência recíproca dos objetivos de determinados indivíduos e das correspondentes ações que adotam em torno de sua promoção sobre os objetivos e as ações de outros, quer sejam atores propriamente individuais ou coletivos, e quer seja tal interferência intencional ou involuntária. Para lidar analiticamente com “as interações intencionais entre indivíduos intencionais” (Elster, 1989: 181), quaisquer que sejam sua natureza, a teoria dos jogos se introduz em conexão com a suposição da escolha racional. A teoria dos jogos consiste fundamentalmente na aplicação do raciocínio lógico-dedutivo na abordagem do processo de tomada de decisões nos diversos campos das relações sociais, sempre que a situação supuser a presença de comportamentos orientados para a eficácia na busca de resultados e envolver conflitos de interesse. Seu esquema analítico tem três elementos principais: os atores, em número e natureza variada; as preferências, interesses e dotações de recursos potencialmente mobilizáveis por tais atores, que determinam os objetivos e o espectro das ações ao alcance dos mesmos; e as regras do jogo, que delimitam o espectro das ações factíveis no contexto concreto da interação. 21 Dada a suposição de racionalidade, cada ator procura adotar, dentre o conjunto de ações ou estratégias factíveis, aquela que melhor atenda a seus interesses. Nesse processo de escolha da estratégia a ser adotada, deve levar em consideração a conduta dos demais atores, já que as estratégias são interdependentes. Isto implica não apenas que a “escolha de cada um depende da escolha de todos” (Elster, 1989: 184), mas também que “o ganho de cada um depende da escolha de todos” (1989: 183) - característica central dos jogos. Se as decisões são interdependentes, a informação requerida para se proceder à escolha racional da conduta a ser adotada passa a envolver, além dos aspectos relevantes da situação que conformam as regras do jogo, os recursos, as preferências e as informações manipuladas pelos demais atores, bem como “a estrutura de recompensas que mapeia” (Elster, 1989: 184) as opções individuais e os respectivos resultados. A solução do jogo corresponde, em termos teóricos, ao conjunto de estratégias para o qual os diferentes atores tenderiam naturalmente a convergir caso dispusessem de informações perfeitas. A essa concepção de solução se associa a idéia de equilíbrio, expressando o “conjunto de estratégias em que a estratégia de cada ator é ótima vis-à-vis as dos outros” (Elster, 1989: 184): os planos dos atores - seus objetivos e as estratégias que adotam - são consistentes entre si (Elster, 1994). Existindo apenas um ponto de equilíbrio, este se configura como solução automática, significando, na terminologia da teoria dos jogos, a noção de que nenhum ator ganha com a deserção ou a não-cooperação. Nestas circunstâncias, a consistência das estratégias adotadas deriva naturalmente da racionalidade dos atores, sendo entendida e tratada como solução eficiente. No entanto, existindo mais de um ponto de equilíbrio, o jogo não tem solução univocamente determinada. Torna-se necessário então proceder a uma seleção coletiva da melhor alternativa, o que exige mediação ou coordenação - elemento que se coloca além dos limites analíticos da teoria dos jogos. O aspecto incisivo aqui, contudo, é que, existindo ou não soluções univocamente determinadas, não há como escapar à natureza complexa da noção de eficiência, ou seja, o que 22 “está subsumido ou inscrito no conceito” (Mercuro e Medema, 1997: 118). Como será discutido mais à frente, um resultado que é tratado como eficiente só o é face ao arranjo institucional que estabelece as regras do jogo, e, portanto, face aos valores dominantes e à distribuição de poder na tomada de decisões determinadas por este mesmo arranjo institucional. Dentre os vários modelos passíveis de serem considerados, uma primeira e importante distinção é entre jogos com dois ou mais de dois atores. O modelo fundamental é o jogo de dois atores com soma zero. Neste caso, os interesses são divergentes e o ganho de um restringe a possibilidade do ganho do outro. São jogos operacionalmente mais simples e sempre têm solução (Elster, 1989), embora nem sempre fique clara qual a solução mais adequada (Przeworski, 1988). Se o jogo não é de soma zero, significando que o total dos ganhos e sua distribuição dependem do conjunto de estratégias adotadas, a opção racional sob a ótica de cada ator isoladamente não corresponde necessariamente à solução ótima do ponto de vista coletivo. Em outros termos, os planos dos atores podem não ser consistentes entre si. O jogo conhecido como Dilema do Prisioneiro constitui a ilustração mais recorrente de interações onde a estratégia dominante, correspondente à opção que tenderia a ser feita por indivíduos motivados buscando maximizar o interesse próprio, conduz a resultado inferior a resultado alternativo “que poderia ser alcançado se cada um deles se comportasse de forma diferente” (Laver, 1997: 47). Envolvendo mais de dois atores, os jogos exigem considerações analíticas bem mais complexas e nem sempre têm solução (Elster, 1989). No entanto, são passíveis de serem reduzidos ao modelo fundamental do jogo de dois atores, adotando-se para tanto determinadas transformações simplificadoras, como a formação de coalizões fusão de vários atores em um ator coletivo. Outra distinção essencial tem a ver com o fato de o jogo ser ou não iterativo. “Quando as mesmas pessoas interagem ao longo de um determinado período de tempo, a possibilidade de cooperação é muito maior que quando elas têm uma única interação” (Laver, 1997: 51). O aspecto saliente aqui é a 23 emergência, no plano analítico, de uma série de estratégias não factíveis de serem consideradas caso a interação não se reproduzisse no tempo. Tratadas como estratégias condicionais, no sentido de a opção de conduta a ser adotada num dado momento levar em consideração escolhas feitas anteriormente ou que poderão ser feitas no futuro, implicam alterações expressivas não apenas na natureza dos cursos de ação abertas ao indivíduo, mas também nos resultados passíveis de serem alcançados. A aplicação da estratégia Tit-for-Tat ao jogo do Dilema do Prisioneiro, na linha das análises desenvolvidas por autores como Taylor (1976) e Ostrom (1992), é ilustrativa de tais mudanças, mostrando que, quando existe iteração, é possível, em determinadas circunstâncias, equacionar o problema da ação coletiva subjacente ao mesmo (Laver, 1997). Ao mesmo tempo em que contribui para evidenciar a multiplicidade de estratégias passíveis de serem adotadas nas interações sociais e, com ela, a complexidade de se alcançar resultados que traduzem soluções eficientes para os atores envolvidos no processo, a consideração da possibilidade da iteração é importante no sentido de ressaltar o papel das normas e dos mecanismos de coordenação na promoção de tais resultados (Laver, 1997). Com a iteração, a combinação de ações que conduzem ao equilíbrio no jogo alarga-se enormemente, trazendo à cena um novo tipo de problema, mais especificamente, o da escolha de um dentre os vários caminhos possíveis de serem trilhados, numa situação que supõe cooperação recíproca. Soluções baseadas na imposição de conduta – o papel das normas – ou na negociação entre os atores relevantes – o papel dos mecanismos de coordenação e de articulação de interesses – surgem como alternativas plausíveis para lidar com a questão, numa discussão onde o recurso às análises propriamente institucionais revela-se de grande utilidade. 24 3. As críticas mais usuais à teoria da escolha racional e suas interfaces com as análises institucionais Fundado no individualismo metodológico e nos supostos da racionalidade e da intencionalidade do comportamento humano, o esquema analítico da escolha racional dispõe de uma espécie de instrumento universal de análise - “universal tool kit”, na designação de Steinmo e Thelen (1992) - passível de ser aplicado, em princípio, à abordagem de virtualmente qualquer interação social onde esteje envolvida a preocupação com a promoção de interesses, individuais ou coletivos. Tal esquema tem evidentes vantagens metodológicas, onde se sobressaem sua lógica dedutiva e a parcimônia de seus pressupostos (Steinmo e Thelen, 1992; Laver, 1997). Se isto é verdade, também o é o fato de se defrontar com uma série de críticas, formuladas sob diferentes ângulos de abordagem, e que se dirigem tanto a esses mesmos pressupostos quanto aos produtos das análises que neles se apoiam. Um primeiro conjunto de questões remete às simplificações subjacentes à formulação e ao desenvolvimento de seu modelo analítico. Um segundo conjunto de questões, dirigidas mais diretamente à teoria dos jogos, refere-se aos vários problemas operacionais encontrados quando de sua aplicação ao estudo de interações sociais mais complexas, envolvendo aspectos relacionados tanto à natureza quanto à interpretação dos resultados obtidos. Dentre as críticas mais recorrentes às premissas analíticas da escolha racional, encontram-se as restrições interpostas à adesão ao princípio do individualismo metodológico. Formuladas de perspectivas teóricas diversas, como o marxismo e a sociologia durkheimiana, são reiteradas em período recente pelo novo institucionalismo. O que se critica aqui é sobretudo o “reducionismo behaviorista”, derivado da postura de se buscar a interpretação dos fenômenos sociais a partir das consequências agregadas ou não pretendidas das ações de indivíduos ou grupos de indivíduos (March e Olsen, 1989, Steinmo e Thelen, 1992; Laver, 1997). Outra questão também polêmica está relacionada à centralidade ou primazia conferida à busca de resultados, isto é, ao caráter 25 instrumental que a ação assume no modelo da escolha racional. A essa primazia é contraposta a representação do comportamento referida ao “desenvolvimento de um senso de propósito, direção, identidade e pertencimento” (March e Olsen, 1989: 6), na linha das abordagens que enfatizam aspectos relacionados a “costumes, convenções e códigos de conduta” (Mercuro e Medema, 1997: 131), entre outros. Tal crítica é dirigida mais especificamente ao utilitarismo de suas interpretações, que tratam a ação e, por extensão, os eventos sociais como resultados de decisões baseadas estritamente no cálculo dos agentes (March e Olsen, 1989). O contraponto teórico se fundamenta no argumento de que, em grande parte das situações, o comportamento humano deriva primariamente de regras definidas no plano da sociedade que o indivíduo procura seguir (Powell e DiMaggio, 1991) - o indivíduo visto mais como “rule-following satisficers” que propriamente “rational maximizers”, conforme descrição analítica de Steinmo e Thelen (1992). Trata-se, em suas linhas gerais, de críticas que podem ser inscritas no contexto mais amplo do confronto de paradigmas que caracteriza o debate sociológico contemporâneo, contrapondo abordagens micro e macrossociológicas2, cujo exame escapa aos propósitos deste trabalho. É suficiente aqui registrar o reconhecimento, por parte de autores que aderem à escolha racional, das limitações de seu instrumental analítico para dar conta das múltiplas dimensões dos fenômenos sociais e da consequente necessidade de articulá-lo com uma ontologia propriamente sociológica, que enfatize o papel das normas e das instituições de diferentes naturezas (Reis, 1988; Elster, 1989), isto 2 A reflexão sobre a ação e a ordem social, comum a um grande número de disciplinas (Friedberg, 1989; Alexander, 1987; Ahrne, 1990 ), pode ser esquematicamente dividida em duas perspectivas principais de abordagem. O ponto de partida, de um lado, são argumentos caracterizados pela ênfase nos indivíduos e o direcionamento do enfoque analítico para a interação que estabelecem entre si, designados comumente como construções microssociológicas. De outro, têm-se argumentos voltados à interpretação da organização e dinâmica de funcionamento da sociedade, onde a ênfase analítica converge para as instituições e o papel que estas exercem sobre as condutas dos indivíduos (Knorr-Cetina, 1981, Alexander, 1987) – as instituições como fatores de ordem, previsibilidade e estabilidade social -, dando forma às denominadas construções macrossociológicas. 26 é, de se estabelecer uma ligação mais estreita da ação com a ordem social e suas transformações no tempo. Outra restrição importante tem a ver com a natureza simplificadora de seus pressupostos, com implicações decisivas sobre o alcance, consistência e acuidade das interpretações obtidas. O aspecto central, sob esse ponto de vista, diz respeito ao fato de as preferências do indivíduo serem tomadas como dadas, numa postura similar àquela adotada pela análise econômica neoclássica. É sobre esse tipo de tratamento dado às preferências que recai, como reconhecem Przeworski (1988), Steinmo e Thelen (1992) e Laver (1997), a objeção mais incisiva à escolha racional. Tal objeção é usada, em particular, com o intuito de inviabilizar a premissa básica de racionalidade do comportamento humano e, com ela, a própria sustentação teórica de seu esquema interpretativo. Frente a esse tipo de crítica, Przeworski argumenta que “uma vez formadas as preferências, as pessoas as têm e atuam a partir delas num determinado instante de tempo” (1988: 10). Não haveria assim, de um ponto de vista prático, maiores contradições entre a formação social das preferências e o suposto da racionalidade. Em outras palavras, o fato de a escolha racional não problematizar a formação das preferências não implica necessariamente que seu instrumental analítico, através do qual se busca resgatar a lógica do cálculo do agente no contexto onde se dá a ação, seja inadequado para os objetivos a que se propõe - a compreensão da conduta do agente sempre que se admite, como característica do comportamento, a intencionalidade (Reis, 1988). No entanto, se não inviabiliza a suposição de racionalidade, como o quer Przeworski, não há como escapar à imposição de se reconhecer os evidentes limites teóricos associados à idéia de preferências dadas e não social e politicamente construídas, feitas anteriormente. Subjacente a preferências dadas existe, como salienta Samuels (1981), um contexto institucional objetivo, resultado, por sua vez, de um processo de escolhas humanas anteriores, deliberadas ou não. Além disso, as preferências podem se alterar e de fato se alteram ao longo do tempo, refletindo, entre outros fatores, desdobramentos das condutas dos agentes em 27 suas interações sociais. A implicação que aparenta ser inevitável aponta para a necessidade de se conciliar o instrumental analítico da escolha racional com perspectivas teóricas que enfatizam o papel dos direitos, normas e instituições de diferentes naturezas, isto é, com abordagens que se inscrevem no campo da análise institucional. O movimento no sentido de incorporar ao modelo analítico da escolha racional o processo de formação social das preferências pode ser observado, em particular, dentro do campo do novo institucionalismo, por uma vertente designada por Steinmo e Thelen (1992) como “rational choice institucionalism”. De acordo com tal variante teórica, as preferências dos atores, referidas a uma situação de interação concretamente definida, seriam influenciadas em algum nível por determinações derivadas dos processos institucionais e políticos que estruturam o contexto objetivo da ação (North, 1990; Bates, 1992; Willianson, 1993). No entanto, a consideração analítica dessa influência acaba se restringindo, a rigor, à escolha da estratégia ou curso de ação face ao conjunto de oportunidades e restrições determinadas e, em certo sentido, sancionadas pelo arranjo institucional prevalecente. É possível argumentar, entretanto, seguindo a variante do novo institucionalismo designada como “historical institucionalism” , que não apenas as estratégias que adotam, como enfatiza a vertente do “rational choice institucionalism”, mas também os objetivos e interesses visados seriam condicionados por elementos institucionalizados do contexto (Steinmo e Thelen, 1992). Em outras palavras, as escolhas básicas dos diferentes atores quanto aos interesses a serem perseguidos, e não apenas o curso da ação a ser adotado tendo em vista tais interesses, seriam influenciadas pelas instituições (Powell e DiMaggio, 1991) que, ao mesmo tempo, bloqueariam determinadas opções de objetivos e condutas estratégicas e favoreceriam outras. Adotando-se a perspectiva teórica de que as preferências, objetivos e estratégias dos atores são endógenos ao modelo analítico, no sentido de que devem ser problematizados, torna-se inescapável reconhecer, como afirmam Steinmo e Thelen, que “a menos que se saiba alguma coisa sobre o contexto, 28 assunções mais amplas sobre o comportamento orientado para a busca do interesse próprio (self-interested behavior) tornam-se vazias” (1992: 9). Isto não implica negar, como Steinmo e Thelen reconhecem, a premissa da escolha racional de que os atores agem estrategicamente movidos pela intenção de promover seus interesses e objetivos. O aspecto saliente que se quer ressaltar é convergente com considerações feitas anteriormente de que apenas a suposição da intencionalidade e racionalidade pode ser insuficiente, por si só, para produzir análises compreensivas e empiricamente orientadas sobre os fenômenos sociais investigados. Em termos mais específicos, é necessário o prévio delineamento do arranjo institucional estabelecido para definir hipóteses sobre quais interesses os atores procuram maximizar e “porque enfatizam certos objetivos em detrimento de outros” (Steinmo e Thelen, 1992: 9), de forma a que se possa fazer proposições que sejam úteis, e não formulações abstratas, a respeito dos cursos de ação mais prováveis numa dada situação. A partir dessas considerações, pode-se afirmar que o aspecto crucial para a aplicação do instrumental analítico da escolha racional tem a ver com o fato de que, embora influenciados pelo contexto institucional, os objetivos e as estratégias adotadas pelo agente com vistas à consecução de seus interesses representam uma escolha baseada em sua percepção e avaliação dos estímulos e constrangimentos institucionais a que está submetido. Resgatar a lógica de seu processo decisório supõe, portanto, ter clareza sobre quais informações relativas ao contexto são relevantes no tocante ao delineamento da conduta que adota, o que depende de suas preferências e interesses. Abrem-se aqui duas alternativas principais para lidar com a questão: atribuir preferências e interesses aos agentes, reduzindo as informações relevantes essencialmente àquelas que dizem respeito às ações ou condutas factíveis com as oportunidades e restrições do contexto; ou deduzir tais preferências e interesses, bem como as estratégias correlatas, à luz das oportunidades e constrangimentos derivados do contexto, o que altera significativamente o espectro das informações a serem consideradas. Entendendo que a segunda opção representa um esquema analítico mais completo e flexível, 29 impõe-se a constatação de que a escolha racional não pode prescindir de elementos interpretativos que são próprios ao campo da análise institucional. O que se quer enfatizar é que a combinação dos supostos da intencionalidade e da racionalidade do agente proporciona uma ferramenta analítica extremamente útil para se tentar apreender como a esfera da ação se articula, através do processo de tomada de decisões, com o ambiente institucional - o “universal tool kit” referido por Steinmo e Thelen (1992). No entanto, tal ferramenta só se torna heuristicamente relevante a partir do momento que se dispõe de informações consistentes a respeito da conformação objetiva do ambiente institucional e da natureza da influência que este exerce correlativamente à ação, o que requer avançar além dos postulados e das proposições analíticas da escolha racional. Isto pode ser observado, em especial, nos esforços desenvolvidos no sentido da aplicação da teoria dos jogos à análise das interações concretas de atores sociais, que se defrontam com dificuldades tanto de ordem conceitual quanto operacional, onde o recurso à análise institucional tende a se revelar de extrema utilidade. Uma primeira restrição aos resultados analíticos da aplicação da teoria dos jogos está relacionada à idéia de equilíbrio que fundamenta a determinação das estratégias eficientes correspondentes aos diferentes atores. A questão central é que “mesmo assumindo o comportamento maximizador, voltado para o interesse próprio” (Steinmo e Thelen, 1992: 9), na linha do modelo de concorrência perfeita da economia neoclássica, podem existir, dependendo do tipo de jogo, isto é, da natureza da interação, mais de um ponto de equilíbrio; portanto, mais de uma solução eficiente. Tal situação pode ser observada inclusive em jogos mais simples, com apenas dois atores. À medida que não há uma única solução maximizadora do interesse próprio, o que significa dizer que existem estratégias alternativas levando a resultados igualmente eficientes, impõe-se inevitavelmente a constatação de que a teoria dos jogos não pode prescindir, nestes casos, do recurso a outros métodos de análise para explicar qual solução “será ou foi escolhida” (Steinmo e Thelenn, 1992: 9). Przeworski 30 generaliza esse tipo de argumento salientado que “as análises formais que se apoiam na teoria dos jogos permanecerão não convincentes enquanto os conceitos de equilíbrio que empregam não forem descritivos de condições históricas específicas” (1988: 21). Como afirmam Mercuro e Medema, " a determinação de uma particular solução eficiente remete a uma escolha normativa e seletiva a respeito de quais interesses serão contemplados, quem irá ganhar e quem perderá" (1997: 119), ou seja, constitui um resultado fundado em elementos explicativos de natureza institucional. Uma segunda e importante restrição se refere às dificuldades operacionais que tendem a ser encontradas na aplicação do instrumental analítico da teoria dos jogos a interações estratégicas mais complexas, em particular àquelas “que envolvem menos que muitos mas sempre mais que dois atores” (Przeworski, 1988: 20). As implicações de tais restrições podem ser sintetizadas na postura assumida por Przeworski, que se declara cético sobre as perspectivas dessa utilização, “pelo menos enquanto a teoria dos jogos não sair de sua infância matemática” (1988: 21). Sem descurar da importância atribuída pelo autor ao aprimoramento da base matemática da teoria, não há como negligenciar que isto, por si só, não elimina as dificuldades operacionais em lidar com a complexidade envolvida em situações onde há grande número de atores e na qual a combinação de objetivos, interesses e estratégias factíveis pode revelar-se incomensurável. A alternativa para enfrentar o problema passa tanto pelo refinamento do instrumental matemático, como o quer Przeworski, quanto pela ampliação do escopo da articulação entre o suposto da racionalidade e os recursos proporcionados pela análise institucional. Ao se considerar, como propõe o novo institucionalismo, que não apenas os objetivos e as estratégias dos atores são influenciados pelas instituições, mas que a própria situação da interação é por elas estruturada, através da mediação que fazem das relações de conflito e cooperação entre estes mesmos atores (Steinmo e Thelen, 1992), a análise institucional tende a se constituir num instrumento fundamental à aplicação da teoria dos jogos, qualquer 31 que seja o grau de avanço em seu aparelhamento matemático O aspecto decisivo a destacar aqui é que, a partir do recurso a interpretações de cunho institucional, torna-se possível estabelecer hipóteses consistentes a respeito de quais atores, objetivos e recursos são mais relevantes (Rothstein, 1992) nas diversas situações de interação que conformam a vida em sociedade. Assim, “alguns potenciais participantes, questões, pontos de vista ou valores” vão ser “ignorados ou suprimidos” (Schattscheneider, 1960; citado por March e Olsen, 1989), permitindo reduzir substancialmente o espectro das escolhas ou estratégias factíveis a serem consideradas no desenvolvimento da análise. Desdobramento do processo, situações complexas podem ser “reduzidas” a seus elementos mais essenciais sem comprometimento da clareza e consistência teórica. A respeito dessas “simplificações”, March e Olsen afirmam que “as instituições (...) são simultaneamente uma afronta ao senso da racionalidade compreensiva e um instrumento primário para se aproximar dela” (1987: 17). Em síntese, a suposição da escolha racional, num esquema analítico que considera as preferências, os interesses e os objetivos dos atores como dados pode se revelar pouco útil à interpretação do fenômeno sob investigação, à medida que não proporciona fundamentos teóricos para avançar muito além de um indivíduo abstrato que age racionalmente em busca da promoção do próprio interesse. No entanto, se inscrita num modelo analítico onde se considera a influência de fatores institucionais sobre a formação, transformação e ordenamento das preferências, bem como sobre a seleção de objetivos e os recursos passíveis de serem mobilizados pelos agentes, pode se revelar de extrema utilidade, dando suporte à formulação de proposições de fundamentação lógica para a explicação ou compreensão dos processos sociais. A análise institucional torna disponíveis elementos para tratar objetivamente de interesses, estratégias e distribuição de recursos entre os atores, possibilitando uma conexão potencialmente mais coerente entre a ação e contexto onde esta se desenvolve “a bridge between the men who make history and the circumstances under wich they are able to do so” (Rothstein, 1992: 35). Cabe direcionar, portanto, a atenção 32 no sentido da abordagem dos processos de mudanças institucionais e das implicações de tais mudanças sobre as interações sociais. 4. Instituições e mudanças institucionais: as interpretações neoinstitucionalistas No modelo analítico até aqui discutido, a ação pode ser entendida como expressão da interação entre atores ou grupos de atores tendo em vista a promoção de objetivos ou interesses em torno dos quais se mobilizam, desenrolando-se num dado ambiente. As ações dos diferentes atores envolvidos na interação refletem suas preferências e dotação de recursos, sendo influenciadas por forças emanadas desse mesmo ambiente, que estrutura concretamente a situação da busca da promoção de interesses. O arcabouço institucional estabelecido proporciona os elementos indispensáveis à compreensão de como as diferentes variáveis que fundamentam a ação se articulam na conformação da conduta dos atores, com as instituições sendo tratadas como variável independente, exógenas à construção do argumento interpretativo. Da perspectiva de uma análise estática, não há, em princípio, problemas metodológicos de maior relevância em considerar as instituições como variável independente. Em tais circunstâncias, o que se coloca consiste, a rigor, na especificação dos aspectos relevantes do desenho institucional relativo à situação de interação. No entanto, da perspectiva de uma análise que considera o evolver das interações no tempo – caso do fenômeno investigado no âmbito deste trabalho - é inegável reconhecer que as instituições podem se alterar, com implicações conexas sobre a configuração dos atores, seus interesses e preferências, os recursos que mobilizam e o processo decisório relativo à conduta que adotam. Em consequência, torna-se relevante tratar as instituições como parte do problema a ser explicado. O esquema analítico é inegavelmente enriquecido caso se disponha de fundamentação teórica para lidar com o dinamismo institucional, isto é, a construção de argumentos a respeito da 33 formação, reprodução e transformação das instituições, de um lado, e dos efeitos potencializados pelos rearranjos institucionais, de outro. A discussão dessa temática, que se referencia em abordagens inscritas no novo institucionalismo, requer o prévio delineamento do que se entende por instituição, cuja conceituação é objeto de interpretações portadoras de significados ou conteúdos muito diferenciados. De um lado, têm-se definições que enfatizam o papel das instituições como regras do jogo, associando-as sobretudo a constrangimentos para a interação entre os indivíduos (North, 1990), o que inclui desde direitos de propriedade a normas e convenções sociais , passando por contratos de diferentes naturezas (Matthews, 1986) estabelecidos em função da melhor fruição das relações sociais ou, mais especificamente, da redução dos denominados custos de transação3. De outro, surgem definições que apontam para uma associação entre instituição e organização em sentido amplo (Jepperson, 1991), abrangendo desde arranjos corporativos que se materializam em firmas ou empresas a formas associativas com desenhos e propósitos variados, como sindicatos, partidos políticos etc. A despeito do reconhecimento da relevância acadêmica de um exame mais detido de tais divergências, não se pretende desenvolver maiores esforços em sua realização, até porque entende-se que a ambiguidade existente não expressa necessariamente visões contraditórias, refletindo, ao contrário, a abrangência dos campos de aplicação do conceito. Sobre a questão, DiMaggio e Powell afirmam que instituição tende a assumir significados distintos nas diferentes disciplinas que lhe são afetas, fazendo com que seja “mais fácil obter acordo sobre o que não é do que sobre o que é “ (1991: 1). 3 Custos de transação representam os custos subjacentes à materialização de uma dada interação, envolvendo aspectos relacionados à sua preparação, operacionalização e garantia do cumprimento do produto dela derivado (Wittman, 1999). 34 Registrada a ambiguidade do conceito, cabe especificar a definição que mais se ajusta à interpretação do fenômeno investigado. Tendo em vista esse propósito, adere-se aqui à concepção de instituição proposta por Jepperson, cujo significado básico é a de um “padrão ou ordem social (...)” relacionado a “(...) sequências de interação padronizadas” (1991: 145). Em outras palavras, instituições traduzem “arcabouços de programas ou regras estabelecendo identidades e prescrevendo roteiros de atividades para tais identidades” (Jepperson, 1991: 146). São portadoras, ao mesmo tempo, de oportunidades e constrangimentos, ou, num sentido mais formal, de direitos e obrigações, e estão referidas a um contexto ou realidade concreta. Introduzem, portanto, um elemento de estabilidade e previsibilidade na conduta dos indivíduos enquanto atores sociais, moldando, em certo sentido, o que é pertinente ou não nas interações que se processam nos diversos campos de atividade. Como tal, influenciam as preferências e os recursos passíveis de serem mobilizados pelos atores, sejam eles individuais ou coletivos, através de “algum conjunto de recompensas ou vantagens e sanções ou prejuízos “ (Jepperson, 1991: 145), cujos efeitos incidem sobre as escolhas estratégicas que estes fazem e os resultados que alcançam. March e Olsen ampliam esse tipo de argumento, afirmando que as instituições influenciam não apenas os interesses e a distribuição de recursos entre os atores, mas “criam novos atores e identidades, suprindo critérios de sucesso e fracasso, provisionando regras para comportamento adequado, e dotando alguns indivíduos, em detrimento de outros, de autoridade ou outro tipo de recurso” (1989: 164), que lhes conferem vantagens na materialização de suas preferências. De acordo com essa conceituação, as instituições não dependem da agência ou da intervenção deliberada de alguém para se manterem, sendo sistematicamente reiteradas ou reproduzidas no tempo, “a menos que uma ação coletiva bloqueie, ou um choque ambiental rompa, o processo reprodutivo” (Jepperson, 1991: 145). Como sequências de interação padronizadas ou prescrições de conduta, sua reprodução tem a ver principalmente com seu 35 enraizamento no ambiente. Essa idéia pode ser melhor apreendida recorrendo-se ao conceito auxiliar de institucionalização, que expressa a transformação de uma dada prática ou sequência de interações padronizadas numa referência socialmente construída, e reconhecida enquanto tal, para os processos decisórios dos atores nas relações que estabelecem entre si. Além de sublinhar o papel das instituições como fator de ordem e previsibilidade, a noção de institucionalização chama a tenção também para a questão da solidez destes mesmos efeitos. Isto permite falar a respeito de diferentes níveis de institucionalização, onde o elemento analítico relevante consiste na exposição e vulnerabilidade das instituições face à intervenção social (Jepperson, 1991), traduzindo o grau de aderência de que são objeto. Em outras palavras, as instituições tendem a ser consideradas ou não pelos atores dependendo da percepção que estes têm em relação às mesmas, envolvendo aspectos como a avaliação que fazem quanto aos riscos, custos e possibilidades de ganhos advindos de comportamentos que se ajustam ou que contrastam com o padrão ou ordem estabelecida. A vulnerabilidade de uma dada instituição à contestação ou à intervenção social tem a ver principalmente com a forma como se integra ao arcabouço institucional ao qual se vincula, com a articulação com outras instituições e com a posição que ocupa nesta relação. A estabilidade das instituições e sua contraface, as transformações nos arranjos institucionais, não podem ser dissociadas, portanto, da mediação de interesses e da coordenação social que promovem (Jepperson, 1991), provisionando os elementos através dos quais os atores ordenam suas preferências, definem seus objetivos e selecionam suas estratégias de ação. É importante examinar, assim, de forma um pouco mais detida, o tratamento dado pelas abordagens neoinstitucionalistas aos processos de reconfiguração institucional, o formato que assumem, como e porque ocorrem, em conexão às implicações deles derivadas. Um ponto de partida para a discussão da questão é proporcionado pela tipologia proposta por DiMaggio (1988) e Jepperson (1991) referente à natureza das mudanças que se processam na institucionalidade de uma dada sociedade. 36 Tal tipologia identifica quatro modalidades principais de redesenho institucional: a formação de novas desinstitucionalização instituições, o desenvolvimento (“deinstitutionalization”) e a institucional, a reinstitucionalização (“reinstitutionalization”). A primeira traduz a saída de uma “situação de entropia social, ou de padrões de comportamento não reprodutivos” (Jepperson, 1991: 152) através da introdução de referências ordenadoras no plano da sociedade para o desenvolvimento das interações sociais, facilitando a percepção dos atores nelas envolvidos no tocante às alternativas que lhes são factíveis e suas potenciais consequências, fundamentando as decisões que tomam num dado campo de atividade. Pelo segundo se entende o aprimoramento ou aperfeiçoamento institucional, “a partir e dentro de uma matriz institucional” (Lima Júnior, 1997: 114), conformando um processo gradual ou incremental de mudança na institucionalidade estabelecida, sem ruptura com a mesma. O terceiro pode ser tomado como oposto ao primeiro, enquanto o quarto e último traduz uma “ruptura com o arranjo institucional prevalecente, seguida da implantação de novas instituições que diferem significativamente do conjunto já existente” (Lima Júnior, 1997: 114), contrastando com o segundo. A tipologia é importante no sentido de permitir uma visão geral referente à natureza das mudanças nas instituições, mas não proporciona elementos para a explicação do porque ocorrem e como se processam. Deslocando a atenção nessa direção, surgem duas linhas principais de interpretação, não mutuamente exclusivas. A primeira enfatiza a lógica da adaptação ou adequação na dinâmica das mudanças institucionais, tendo como referência a relação estabelecida entre as instituições e seu ambiente. De acordo com tal enfoque, as mudanças institucionais tendem a refletir modificações mais amplas no contexto institucional - o ambiente - do qual são parte integrante. A segunda considera a possibilidade da formação ou transformação intencional das instituições, enfatizando o caráter deliberado - o cálculo estratégico - envolvido no processo de mudanças institucionais (March e Olsen, 1989; Steinmo e Thelen, 1992). Em ambas as perspectivas, que podem ser e são combinadas, o que está 37 em jogo são as funções que as instituições cumprem no tocante à definição das situações concretas da interação entre os atores, cujos efeitos se expressam nos resultados destas mesmas interações. Dentro da primeira linha de abordagem, o tipo de interpretação mais recorrente consiste em tratar os rearranjos institucionais como expressão de um realinhamento face a modificações no contexto sócio-econômico e político mais amplo que integram (Steinmo e Thelen, 1992). Instituições adquirem aqui forte conotação de comportamento ou condutas socialmente sancionadas, reproduzindo-se de forma relativamente espontânea, através “de processos sociais relativamente auto-ativados” (Jepperson, 1991: 145). As mudanças institucionais vão ocorrer, assim, em resposta a perturbações no ambiente - a noção de instituição é, vale relembrar, relativa a um contexto -, processando-se no sentido da preservação de uma certa consistência entre o que as instituições representam enquanto portadoras de um senso de ordem, estabilidade e previsibilidade e as características mutáveis de tal ambiente. Sob esse ângulo de abordagem, as mudanças podem ser derivadas tanto de uma ruptura mais abrupta no ambiente, quanto de um processo evolutivo mais gradual. No primeiro caso, a instabilidade do ambiente configura uma situação de crise - conflito aberto e relativamente generalizado de interesses -, que impõe uma redefinição institucional abrangente, podendo envolver o desaparecimento de instituições anteriormente existentes, a emergência de novas instituições e a transformação de outras, numa espécie de resposta à entropia social. No segundo caso, as mudanças podem ser tratadas como expressão de um mecanismo de feedback: os resultados das práticas e das condutas dos atores em suas interações sociais concretas, ao mesmo tempo em que refletem o arranjo institucional existente, têm efeitos externos de natureza estruturante sobre este mesmo ambiente, que vão implicar à frente readaptações institucionais. Este tipo de mudança, mais frequente, traduz uma evolução cumulativa, apoiada principalmente em processos de aprendizado - “experiential learning” (March e Olsen, 1989: 59). Aos distintos graus de racionalidade envolvidos na seleção da 38 conduta estratégica adotadas pelos atores sociais (Reis, 1988; Elster, 1994) associa-se a interveniência de mecanismos de “tentativa e erro” (March e Olsen, 1989): ao longo do tempo, determinados cursos de ação tendem a ser reiterados em função dos resultados obtidos, tornando-se institucionalizados. Por sua vez, modificações ocorridas num dado campo de atividade podem ser amplificadas ou estendidas a outros campos através de um processo de “contágio”, isto é, de imitações que se processam no ambiente institucional (March e Olsen, 1989) O processo de evolução das instituições, contudo, não significa e não pode ser identificado como um argumento a favor da “eficiência da história”. Nem toda mudança é necessariamente positiva, no sentido de a “seleção” realizada assegurar padrões de conduta ou “regras que sejam ótimas em qualquer ponto arbitrário do tempo” (March e Olsen, 1989: 54). A esse respeito, March e Olsen afirmam que as transformações derivadas da experiência e do contágio podem produzir “adaptações mais lentas ou mais rápidas que o apropriado face às circunstâncias do ambiente, ou mesmo equivocadas” (1989: 56). Além disso, a adaptação das instituições ao ambiente também não constitui necessariamente um processo de curso obrigatório. Não apenas a adaptação não precisa ser, e em diversas circunstâncias não é, instantânea, como podem ocorrer resistências às mudanças, ao invés de aceitação passiva às mesmas (March e Olsen, 1989). A consideração desse aspecto implica transitar, em algum nível, para o plano do deliberativo ou intencional nas transformações institucionais. O ponto central aqui é o caráter entrelaçado de interesses e intenções nas relações que se estabelecem entre atores, instituições e ambiente. Desse entrelaçamento podem resultar procedimentos voltados a influenciar o processo de adaptação ou adequação institucional, levados a efeito tanto pelos atores relevantes num dado campo de atividade, quanto pelas instâncias decisórias que conformam a esfera pública, isto é, as agências e os organismos do aparato estatal, cuja discussão será retomada mais à frente. Em consonância com esse enfoque, Steinmo e Thelen apontam três vias principais de redesenho institucional, expressando diferentes encadeamentos 39 causa-efeito em relação à dinâmica das interações sociais, todas partindo de alterações no ambiente em sentido amplo. “Primeiro, perturbações intensas no contexto sócio-econômico ou político podem produzir uma situação na qual instituições previamente latentes se tornam salientes” (1992: 16), numa espécie de aprofundamento de seu grau de institucionalização. A emergência de tais instituições reflete oportunidades criadas pela instabilidade ou maior fluidez dos constrangimentos impostos pelo ambiente institucional, que favorecem a ação no sentido estrito de uma intervenção na ordem social, racionalmente aproveitadas por determinados atores para melhorarem suas posições num dado campo de atividade ou para se inserirem em outros. Em particular, as perturbações ambientais podem ser deliberadamente produzidas pela ação, tendo em vista interesses associados às mudanças institucionais, seja no sentido da redução de constrangimentos ou da criação de condições mais favoráveis de atuação (March e Olsen, 1989). “Segundo, mudanças no contexto sócio-econômico ou no balanço do poder político podem produzir uma situação em que instituições antigas são colocadas a serviço de novos propósitos, como ocorre quando novos atores entram em cena perseguindo seus novos objetivos através das instituições existentes” (Steinmo e Thelen, 1992: 16). Novamente aqui, é possível argumentar a respeito de ações voltadas a influenciar as transformações institucionais, ”estimulando ou inibindo processos previsíveis de adaptação“ (March e Olsen, 1989: 35), pelas perspectivas de ganho delas advindas. Por último, “mudanças exógenas podem determinar um redirecionamento nos objetivos ou estratégias perseguidos dentro das instituições - isto é, mudanças (...)” em que “(...) os atores adotam novos objetivos dentro das instituições existentes” (1992: 17). O que se passa, nesse caso, é uma modificação na relação entre atores e instituições especificamente determinados, com as instituições atendendo a novos propósitos dos atores, redefinidos em função de mudanças não deliberadas e não previsíveis ocorridas no ambiente institucional mais amplo. Deslocando-se o foco do dinamismo institucional deflagrado por perturbações ou transformações no ambiente ou contexto mais geral para o plano 40 da intencionalidade ou do deliberativo, onde a ênfase remete a relações de causalidade fundadas primariamente nas preferências e interesses dos atores, individuais e coletivos, vão ser encontradas duas vias principais de interpretação dos processos de mudanças das instituições. A primeira relaciona-se à competição entre os atores em torno do desenho institucional estabelecido, direcionada à construção de novas instituições ou à transformação das instituições existentes. A segunda tem a ver com a relação entre as instituições e o ambiente em sentido amplo, onde as mudanças espelham, em algum nível, a configuração objetiva deste último, sendo introduzidas em função da coerência ou ajustamento entre ambos e suas implicações sobre os resultados das interações sociais. A primeira vertente parte da premissa de que as instituições não são importantes apenas no sentido de influenciar em a conduta dos atores numa dada situação, criando constrangimentos para determinados interesses e cursos de ação a ela referidas, e favorecendo outros. São também importantes em termos da influência que exercem sobre as ações futuras dos atores (Steinmo e Thelen, 1992; Rothstein, 1992). Assim, à medida que influenciam, em algum nível, os objetivos que podem ser alcançados, tanto no presente quanto no futuro, bem como os recursos que podem ser mobilizados e as estratégias factíveis para alcançá-los, as instituições se tornam, elas próprias, objeto de interesse dos atores. Em outras palavras, as instituições podem ser “deliberadamente criadas por agentes (...) racionais e orientados para resultados” (Levi, 1990; Tsebelis, 1990; citados por Rothstein, 1992: 34). O ponto saliente aqui é a idéia de um conflito de interesses relativo às instituições pelas vantagens diferenciais que proporcionam para determinados interesses e, consequentemente, para determinados atores, individuais ou coletivos, no atual e “futuro jogo do poder” (Rothstein, 1992: 35), cujo desdobramento é a ação política, deliberada e intencional, em torno do arranjo institucional estabelecido. Sob essa ótica, a escolha das instituições - a construção ou reconstrução institucional - pode ser entendida como um “equivalente sofisticado da seleção de políticas” (Rothstein, 41 1992: 35), tendo em vista o conjunto de oportunidades e constrangimentos que são portadoras. Vale dizer, a esfera dos esforços dirigidos à construção e transformação institucional, ou da ação política em sua forma construtiva, aparece em algum nível como sendo também a esfera do deliberativo e intencional no plano da política (Reis, 1988), o que significa introduzir interesses e poder na agenda institucional. A consideração desse aspecto implica tratar a questão da construção e transformação das instituições como um campo próprio para a aplicação da ação estratégica na análise institucional, isto é, um campo apropriado para a aplicação do “universal tool kit” da escolha racional. As mudanças institucionais ocorreriam através de um processo de barganha e negociação, expressando “o resultado do conflito entre indivíduos ou grupos representando interesses distintos” (March e Olsen, 1989: 59). A segunda vertente engloba mudanças que expressam esforços deliberados no sentido do aprimoramento ou adequação do desenho institucional prevalecente, tendo em vista o papel que as instituições desempenham como regras do jogo nas interações sociais, onde a questão central remete à eficiência dos resultados obtidos ou perseguidos num dado campo de atividade. March e Olsen apontam três modalidades principais de redesenho institucional afinadas com essa perspectiva de abordagem. A primeira guarda relação com propósitos de “resolução de problemas”, em que as mudanças refletem a “escolha entre alternativas com base em alguma regra decisória de comparação entre as mesmas em termos das consequências esperadas sobre objetivos predeterminados” (1989: 59). A segunda se assemelha a um modelo de evolução fundado na introdução e seleção de mudanças institucionais, prevalecendo aquelas que se revelam mais apropriadas face ao ambiente em que se inscrevem, numa seleção fundada em algum critério ou princípio de adequação. A terceira e última pode ser vista como um processo de aprendizado experimental (“experiential learning”), onde as instituições são selecionadas a partir da avaliação dos resultados obtidos, sendo mantidas as que se “mostram bem sucedidas no passado e abandonadas” (1989: 59) aquelas mal sucedidas. 42 As considerações anteriores permitem uma visão global do amplo espectro de possibilidades de mudanças na institucionalidade de uma dada sociedade, onde a ênfase recai em aspectos relacionados a porque e como ocorrem. Powell (1991) analisa a questão a partir de um ângulo distinto – a racionalização dos processos de interação social -, centrando a discussão nas fontes de dinamismo institucional. O autor sugere quatro lógicas principais de reconfiguração institucional: “(1) the exercise of power, (2) complex interdependencies, (3) taken-for granted assumptions, and (4) path-dependent development process” (1991: 191). Na primeira, as mudanças resultam de iniciativas tomadas por atores ou organismos com poder suficiente para impor suas decisões no campo em que atuam, qualquer que seja a fonte de tal poder, assumindo nítida configuração intencional. Ganham saliência aqui as transformações institucionais patrocinadas pela intervenção estatal, e que se ancoram, portanto, num poder de base legal ou constitucional. A segunda repercute o caráter entrelaçado das instituições dentro de um dado ambiente, onde alterações em um ou mais aspectos do arcabouço institucional tendem a provocar ou exigir modificações em outras dimensões do mesmo, levando a processos de causação indireta ou de multicausalidade, que podem combinar intencionalidade e adaptação. A terceira envolve mudanças percebidas e tratadas como naturais ou legítimas dentro de um determinado campo de atividade, tendo como característica mais saliente o fato de não exigirem ou dependerem de nenhum esforço deliberado no sentido de sua introdução – condição em que “não são questionadas ou contrastadas com possíveis alternativas” (Jepperson, 1991: 192), o que lhes confere características essencialmente adaptativas. A quarta e última engloba mudanças dentro de uma trajetória de longo prazo, condicionadas por desdobramentos não pretendidos de decisões tomadas anteriormente por um ou mais agentes, combinando, como a segunda, intencionalidade e adaptação. Como mostram diversas análises desenvolvidas no campo da economia e da política (March e Olsen, 1984; David 1986; Arthur, 1988, 1989; Scott, 1991; Krugman, 1997), a “dependência de trajetória” reveste-se de particular importância por salientar o poder explicativo de fatores circunstanciais ou 43 históricos na interpretação dos rearranjos institucionais, em conexão à dinâmica das relações organizacionais e produtivas da sociedade. Em termos mais específicos, a influência que o arcabouço institucional prevalecente num dado momento exerce sobre o evolver das interações sociais tende a interpenetrar o dinamismo institucional subsequente através dos produtos dessas mesmas interações sociais. Se o arcabouço institucional é suscetível a mudanças cuja materialização pode se processar, como visto, por razões e caminhos os mais variados, os resultados delas decorrentes não são necessariamente eficientes sob a ótica da racionalização das interações sociais (March e Olsen, 1989), nem tampouco estáveis, no sentido da vulnerabilidade a novas mudanças. Determinados rearranjos institucionais podem ter curta duração ou sequer serem plenamente implementados. Outros, por sua vez, podem desencadear novas e imprevisíveis transformações com efeitos retroativos sobre o desenho original, afetando sua consistência ou coerência e, por extensão, sua própria estabilidade. A ocorrência de tais fenômenos tende a manifestar, segundo Powell (1991), em três situações principais: a imitação mal sucedida, a institucionalização incompleta e a reconfiguração do campo organizacional. Processos de imitação mal sucedidos caracterizam-se pelos resultados insatisfatórios das mudanças introduzidas, envolvendo duas circunstâncias principais (Powell, 1991). A primeira delas tem a ver com tentativas de transposição de arranjos institucionais de um ambiente a outro em que surgem inconsistências relacionadas à configuração diferenciada de aspectos ou dimensões relevantes destes mesmos ambientes. A segunda guarda relação à reprodução de arranjos institucionais estabelecidos num dado campo de atividade em outro, dentro de um mesmo ambiente institucional, defrontando-se com problemas similares, isto é, a heterogeneidade existente entre tais campos. Em ambos os casos, os novos desenhos institucionais não conseguem obter a necessária adesão dos interesses que 44 lhes são afetos, tendo como desdobramentos mais recorrentes sua “difusão parcial (...) ou a emergência de novo arranjo de caráter híbrido” (Powell, 1991: 199). Institucionalização incompleta aparece associada, em geral, a intentos reformistas relativamente abrangentes que esbarram, quando de sua implementação, na resistência de interesses afetados pelas mudanças, de um lado, e na ausência de poder ou autoridade suficientemente sólida para conferirlhes materialidade, de outro. Isto se aplica, em especial, a processos de reinstitucionalização fundados na intervenção estatal, com desdobramentos em duas direções principais. Primeiro, regras, práticas ou padrões de conduta podem ser introduzidos mas não aplicados, ou então aplicadas por “um curto período, tão rápido quanto o esgarçamento de sua fonte de suporte normativo” (1991: 199). Segundo, a aplicação das mudanças propostas pode se dar de forma parcial ou espaçada no tempo, com implicações de difícil previsão e, em diversas circunstâncias, adversas ao que se queria alcançar. Da aplicação parcial podem resultar não só a frustração dos efeitos originariamente esperados, como também a indução de novas mudanças, não pretendidas nem antecipadas, criando constrangimentos adicionais à complementação do esforço reformista. Por fim, o autor chama a atenção para a ocorrência de processos de intensa transformação institucional, que designa como recomposição do campo organizacional. São situações em que a ocorrência de mudanças estruturais num dado campo de atividades, determinadas por fatores externos ou internos ao mesmo, põe em movimento novas mudanças, num rearranjo institucional dinâmico onde se combinam elementos de natureza adaptativa e intencional. De um lado, interesses constituídos em tal campo podem se mobilizar no sentido da defesa das posições que ocupam, através iniciativas voltadas à preservação ou ao restabelecimento de “regras e práticas favoráveis ao status quo” (Powell 1991: 200). De outro, novos atores que surgem em função das alterações introduzidas no formato institucional podem se mobilizar no sentido da consolidação ou da melhoria de suas posições, através de iniciativas que buscam influenciar o curso das mudanças, em conformidade com seus interesses. 45 5. Atores e instituições no campo da economia: o papel do mercado A interação estratégica entre agentes motivados e racionais, anteriormente discutida, tem como um de seus principais cenários a dinâmica de funcionamento da economia capitalista, cujo traço central é a propriedade privada dos recursos produtivos da sociedade, sobre a qual se estrutura a atividade produtiva e a distribuição dos resultados alocativos dela derivados. Como um sistema econômico onde “os meios de produção e a capacidade de trabalhar” – fatores básicos do processo produtivo – “são propriedade privada” (Przeworski, 1991: 140), a alocação produtiva destes recursos no capitalismo vai se dar em consonância com as preferências e os interesses daqueles que os controlam. De acordo com a concepção utilitarista da economia neoclássica, tal alocação é orientada para a maximização dos interesses particulares dos agentes, definidos em estreita conexão com valores ou objetivos de natureza material (Reis, 1994), o que fundamenta a associação recorrente entre produção capitalista e eficiência econômica. A forma como os recursos produtivos são alocados e os resultados distribuídos, por sua vez, remetem à idéia de mercado. Em particular, mercado é o mecanismo por excelência de coordenação de interesses do sistema capitalista de produção, o que se expressa no caráter indistinto e intercambiável dos termos “economia capitalista” e “economia de mercado”. Do ponto de vista teórico, mercado pode ser entendido como a instância onde indivíduos com necessidades e preferências específicas e dotados de recursos também específicos buscam a consecução de seus interesses através da troca ou barganha voluntária que fazem entre si. A noção central que, ao mesmo tempo, sustenta e sintetiza sua lógica como mecanismo de coordenação é o conceito de equilíbrio, discutido no âmbito da abordagem relativa à teoria dos jogos. De acordo com a visão da economia neoclássica, o equilíbrio de mercado traduz uma situação em que os planos dos agentes “são consistentes entre si” (Elster, 1994: 125), significando que todas as possibilidades de ganho advindos da troca ficam exauridas (Przeworski, 1989; Mercuro e Medema, 1997). Nessa situação de equilíbrio, conhecida como Ótimo de Pareto, 46 as expectativas dos agentes estariam satisfeitas de forma tal que ninguém poderia “melhorar sua situação sem piorar a de outro” (Przeworski, 1993: 213). O mercado procederia, assim, a um ajustamento espontâneo, descentralizado e racionalmente motivado das preferências e interesses dos agentes. O argumento construído para explicar tal ajustamento se baseia na metáfora da “mão invisível” formulada pelo liberalismo clássico (Powell, 1991; Carson, 1992; Vincent, 1995), onde se enfatiza o fato de a coordenação ser um resultado coletivo não pretendido da busca intencional da consecução dos interesses particulares pelos diferentes agentes, através do meios a seu alcance e com base nos recursos que estes controlam. Vale dizer, “todo indivíduo pretende apenas seu próprio ganho, e nisso, como em muitos outros casos, ele é orientado por uma mão invisível a fim de promover um fim que não fazia parte de suas intenções” (Adam Smith, citado por Nozick, 1991: 33/34). Uma explicação de mão invisível, como salienta Nozick, “mostra que o que parece ser produto do trabalho intencional de alguém não foi produzido pela intenção de ninguém” (1991: 34). Os resultados alocativos do mercado seriam, portanto, não apenas imprevistos, no sentido de não antecipados, como desvestidos de qualquer deliberação ou propósito coletivo. Como um mecanismo de coordenação fundado na busca racional e motivada de interesses, o mercado asseguraria, na visão liberal, uma alocação eficiente dos recursos produtivos na sociedade e, com ela, o bem estar social – entendidos como resultados que se colocam na fronteira do equilíbrio Paretiano. Conforme Przeworski, o modelo formulado pela teoria neoclássica “é simples: indivíduos sabem que têm necessidades e recursos e eles livremente produzem e trocam bens e serviços. Em condições de equilíbrio, todas as expectativas dos indivíduos estão satisfeitas e todos os mercados estão claros” (1993: 212), o que engloba suas preferências referentes tanto a produtos quanto a fatores de produção, em especial, trabalho. O ajustamento se processa através do sistema de preços que não apenas refletiriam as preferências e interesses dos diversos agentes “e a escassez relativa de bens e serviços” (Przeworski, 1993: 212), mas 47 informariam as possibilidades de ganhos que podem ser aproveitadas. A noção de eficiência como atributo do mercado teria, assim, duas dimensões principais: uma do lado dos resultados alocativos, outra do lado da dinâmica do processo produtivo propriamente dito. A primeira expressaria o fato de os recursos produtivos serem utilizados de uma maneira socialmente desejável, significando que seria produzido aquilo que a sociedade quer e necessita, em quantidade e preços que revertem em benefício do interesse coletivo, o que sintetiza a concepção de bem estar social do liberalismo clássico (Vincent, 1995). Vale dizer, apesar de não refletir uma deliberação coletiva, o produto do mercado seria eficiente sob a ótica social, já que derivado primariamente das preferências dos indivíduos. A segunda, o fato de a busca racional e motivada de interesses particulares representar uma “regra geral que qualquer um pode usar; portanto nenhuma pessoa ou grupo específico seria sistematicamente favorecido” (Tsebelis, 1990: 104). Dito de outra forma, o mercado seria não apenas neutro “entre os desejos das pessoas” (Nozick, 1991: 104), coordenando as ações dos agentes de forma descentralizada, mas incorporaria forte princípio igualitário – a igualdade de tratamento -, fundado em oportunidades plenamente abertas para a iniciativa autônoma e voluntária dos diferentes agentes. Para Reis, esse “princípio latentemente igualitário do mercado constituiria o fundamento crucial do capitalismo” (1994: 117). No entanto, ao se transitar da abstração teórica para a realidade concreta das sociedades contemporâneas, a idéia de eficiência como atributo do mercado tende a se deparar com uma série de problemas ou limitações – convencionalmente tratadas como “imperfeições”, quando referidas a seu funcionamento ou dinâmica operacional, e “falhas”, quando referidas aos resultados obtidos (Carson, 1992) – não perceptíveis de imediato em sua concepção lógica. O reconhecimento de tais problemas leva autores como Przeworski a afirmar que “a noção de que o mercado por si próprio é capaz de alocar eficientemente recursos é puramente hortativa” (1993: 215), no sentido de impregnado de forte conteúdo ideológico. Para corroborar o argumento de 48 Przeworski, é suficiente salientar que o elemento crucial da economia capitalista – a propriedade privada dos meios de produção – se fundamenta em direitos estabelecidos em lei, o que confere aos resultados alocativos obtidos, quaisquer que sejam, uma dimensão normativa ou valorativa. Vale dizer, tratar a alocação produtiva de mercado como eficiente supõe, no mínimo, considerar aprioristicamente eficiente a configuração assumida pelos direitos de propriedade, que determinam, em última instância, “as estruturas de incentivos e constrangimentos” (Mercuro e Medema, 1997: 133) sobre as quais se sustentam as escolhas e as ações dos agentes econômicos. Torna-se relevante examinar, portanto, as críticas mais usuais que se fazem à dinâmica de mercado. As denominadas imperfeições de mercado aparecem associadas a limitações observadas nas premissas básicas de seu funcionamento enquanto mecanismo de coordenação de interesses e alocação de recursos que, conforme ressaltam Mercuro e Medema, tendem a ser “muito mais numerosas e severas que aquelas consideradas pela teoria econômica neoclássica” (1997: 130). As mais comumente assinaladas (Levacic, 1991; Carson, 1992; Przeworski, 1993; Elster, 1994; Vincent, 1995) têm a ver com desigualdades de poder entre os agentes, deficiências de informação e condutas típicas do Leviathan Hobbesiano (Papandreou, 1994). Quanto ao primeiro aspecto, as implicações são evidentes, já que a assimetria de poder, cujo paroxismo vai ser observado na formação de monopólios, oligopólios e cartéis, é flagrantemente contrária ao princípio “latentemente” igualitário que caracterizaria a dinâmica de mercado. Conforme Levacic, a alocação eficiente de recursos pelo mercado se fundamenta na idéia de que os preços refletem os custos de oportunidade dos bens e serviços produzidos. “Se isto não ocorre por falta de competição, cria-se a possibilidade de os agentes definirem preços acima do menor custo de produção alcançável” (1991: 41), maximizando seus interesses em detrimento dos interesses dos consumidores de tais bens ou serviços. As deficiências de informação entre os agentes, por sua vez, vão se refletir sobre a qualidade das decisões tomadas, estando na base de grande parte dos problemas identificados como falhas do 49 mercado. Dada a presença de informações imperfeitas, o conjunto de oportunidades e constrangimentos efetivamente percebido e avaliado pelos diferentes agentes revela-se muito mais estreito que aquele determinado pelo contexto, afetando as escolhas que fazem ou deixam de fazer e, por extensão, os resultados alocativos do mercado. Por último, o mercado não dispõe de mecanismos capazes de assegurar o compromisso dos agentes com cumprimento das regras do jogo, mais especificamente a cooperação e a lealdade nas transações realizadas (Carson, 1992), nem condutas pautadas pela consideração ou respeito ao interesse público. Qualquer direcionamento objetivo às condutas dos agentes – “as possibilidades e os limites das transações” (Mercuro e Medema, 1997: 131) – remete, como já discutido, ao plano das instituições, virtualmente ausente das considerações da teoria neoclássica. Já as falhas podem ser entendidas, numa primeira aproximação, como expressão de disfunções nas “propriedades de auto-regulação usualmente atribuídas ao mercado” (Elster, 1994: 104). A esse respeito, Przeworski observa que “o argumento a favor dos mercados como alocadores eficientes de recursos depende da premissa de que os mercados são completos ou, em outras palavras, de que existe um mercado para cada estado contingente da natureza” (1993: 213). À medida que tal premissa não se sustenta na realidade, seja porque alguns mercados são insuficientemente estruturados, seja porque simplesmente não existem, os sinais enviados através dos preços “deixam de sumariar todos os custos de oportunidade, o que implica que nem todos os agentes estão operando com a mesma informação” (1993: 213). Além disso, a dinâmica da alocação de recursos pelo mercado deixa de incorporar interesses potencialmente relevantes de agentes que não participam do processo decisório ou do conjunto da sociedade, implicando “distorções” nos custos e benefícios concretamente avaliados. Tais problemas são expressão das denominadas externalidades, já abordadas anteriormente, que traduzem, na caracterização feita por Bator, “uma situação onde alguns custos e benefícios paretianos mantêm-se externos aos cálculos custo-benefício descentralizados em termos de preços” (1958: 362; 50 citado por Papandreou, 1994: 33). Dessas considerações impõe-se como conclusão que “a alocação resultante deixa margem para a melhora” (Przeworski, 1993: 213). Determinados bens e serviços não vão ser fornecidos pelo mercado, caso dos denominados “bens públicos”, alguns serão produzidos em escala socialmente insuficiente ou subótima e outros em quantidades excessivas, afastando-se do ótimo paretiano. No entanto, a questão provavelmente mais polêmica que se coloca de um ponto de vista empírico sobre a dinâmica das interações que se processam no mercado tem a ver com a eficiência, sob a ótica do bem estar social, dos resultados dela decorrentes. O princípio da igualdade dos agentes - entendida como liberdade de iniciativa, trazendo com ela a igualdade de oportunidades -, enfatizado pela economia neoclássica, não tem correspondência do lado dos resultados alocativos provenientes do mercado. Ao contrário, o produto agregado das ações de agentes racionais buscando a consecução de seus interesses pode ser profundamente desigual em termos distributivos. Da perspectiva do funcionamento do mercado, qualquer resultado que se coloque sobre a curva de Pareto é igualmente eficiente: sua dinâmica operacional não internaliza considerações ou princípios valorativos de natureza moral a respeito dos resultados produzidos. Sobre a questão, Dahl afirma que “uma alocação de recursos que é maximamente eficiente é perfeitamente consistente com um número indefinido de distribuições de renda diferentes, que vão da igualdade perfeita à desigualdade mais profunda” (1993: 229). Significa dizer que a eficiência de mercado não se vincula a um padrão distributivo socialmente desejável, ainda que teoricamente possam ser convergentes. Dessa forma, se existe algum propósito ou deliberaçao coletiva de proceder a uma seleção entre as várias alternativas de distribuição “eficientes”, é necessário avançar além do livre funcionamento do mercado e introduzir, exogenamente a ele, algum critério ou princípio de justiça social. A ênfase da economia neoclássica recai na operação do mercado – a livre manifestação das preferências e a busca do interesse próprio -, não em seus 51 resultados que, a rigor, vão ser considerados eficientes a priori por traduzirem uma alocação “eficiente” de recursos. O contexto social objetivo, com suas desigualdades na distribuição de recursos, ainda que produto das relações pretéritas processadas no mercado, é incorporado ao modelo analítico apenas como condicionante do comportamento do agente, delimitando o campo de suas opções ou alternativas no tocante àquilo que pode mobilizar. Tendo em vista a centralidade conferida à idéia de autonomia e liberdade de iniciativa do agente, a abordagem neoclássica abstrai-se das consequências sociais derivadas da livre operação do mercado. Não há, na estrutura lógica do esquema interpretativo, fundamentação teórica para a busca de uma maior equalização entre os indivíduos ou, mais propriamente, para a redistribuição do bem estar da sociedade. Não só redistribuição não é requerida, mas, o que é mais importante, caso princípios de redistribuição de qualquer natureza viessem a ser adotados, estes entrariam inevitavelmente em conflito com a soberania do agente, sua autonomia e liberdade de iniciativa, e comprometeriam a eficiência alocativa do mercado (Nozick, 1991). De certa forma, é como se a autonomia da escolha no plano do indivíduo bloqueasse a possibilidade da escolha no plano coletivo4. Outra crítica importante direcionada à eficiência alocativa do mercado refere-se à questão do crescimento econômico. Os ciclos econômicos – a alternância de períodos de expansão e contração de toda atividade produtiva de um país ou conjunto de países (Carson, 1992) – são uma clara evidência de que 4 Da perspectiva de autores liberais que defendem mercados concorrenciais minimamente regulados ou não regulados, como Nozick (1991), a justiça distributiva, entendida como “uma tentativa de melhorar o sofrimento e os infortúnios sociais seria uma interpretação equivocada de justiça” (Vincent, 1995: 51). Tal autor critica e rejeita quaisquer princípios de redistribuição, que denomina de “princípios correntes de justiça” ou “princípios de resultado final”, à medida que introduziriam distorções nos resultados do mercado, interferindo sobre a autonomia decisória do agente. Esse tipo de lógica argumentativa, contudo, convenientemente esquece a importância dos direitos de propriedade na performance econômica e nos resultados distributivos do mercado. “Primeiro, direitos de propriedade determinam tanto o controle como os benefícios e os custos da utilização dos recursos (...) entre os indivíduos (...) Segundo, direitos de propriedade definem o conjunto de atores dentro de um sistema econômico (...)” (Mercuro e Medema, 1997: 133), demarcando o espectro de condutas factíveis aos mesmos, isto é, das escolhas que podem fazer. Da conjunção desses fatores advém que os direitos de propriedade, qualquer que seja seu conteúdo objetivo, afetam de forma decisiva “a distribuição de poder e riqueza dentro de um sistema econômico” (Mercuro e Medema, 1997: 133), influenciando a natureza dos resultados distributivos da dinâmica de mercado. 52 o funcionamento do mercado não garante necessariamente um incremento sustentado da produção e, por extensão, do bem estar social. Como afirma Przeworski, “mercados competitivos não são suficientes nem para alocar recursos eficientemente nem para gerar crescimento” (1993: 215). De forma similar aos problemas relacionados à distribuição dos resultados produtivos, não haveria como escapar também aqui da constatação da “necessidade de alguma intervenção (...) exógena ao mercado para gerar crescimento” (1993: 215). Esse argumento é endossado por autores neoinstitucionalistas da denominada “escolha pública”, para os quais a maximização da riqueza ou produção de uma dada sociedade não pode ser dissociada das regras do jogo que dão suporte à interação estratégica entre os agentes econômicos, onde salientam os direitos de propriedade. Em termos mais específicos, a estrutura de preços, custos e lucros que informa as decisões dos agentes no mercado “não constitui uma espécie de fenômeno natural, sendo, ao contrário, determinada pela estrutura de direitos estabelecida na sociedade” (Mercuro e Medema, 1997: 118), o que remete à esfera de atuação do Estado. Assim, embora corporifique o espaço por excelência de manifestação das preferências e da busca dos interesses dos agentes, fundamento da idéia de auto-regulação implícita na noção de mão invisível, a operacionalização do mercado não pode prescindir da ação do Estado. Ainda que em termos mínimos, como preconizado por determinados autores liberais (Mill, 1962; Hayek, 1972, 1978; Nozick, 1991), a intervenção estatal revela-se necessária para assegurar a autonomia e igualdade dos agentes, suporte da deliberação livre e voluntária que fazem entre si5. Além disso, as interações dos agentes econômicos supõem condições que assegurem não apenas a livre manifestação das preferências nas transações de mercado, mas também o cumprimento dos resultados dela 5 A autonomia individual que fundamenta a liberdade de iniciativa no mercado supõe o controle efetivo pelos agentes dos recursos que mobilizam, bem como dos bens que produzem a partir de suas ações ou atividades, o que remete ao direito de propriedade. Isto é explicitamente reconhecido pela doutrina liberal, para o qual direito de propriedade deve ser entendido como uma extensão dos direitos naturais do indivíduo. A esse respeito, Vincent afirma que “a partir de John Locke, a questão da propriedade tem sido intimamente relacionada à liberdade” (1995: 48), levando a que, em determinadas concepções, a propriedade privada seja identificada como a própria personificação da liberdade individual. 53 decorrentes, o que aponta para a idéia de contrato. Nos termos em que a questão é formulada por Beethan, “o mercado requer, para seu funcionamento, (...) um sistema uniforme de legislação garantindo a segurança da propriedade e o contrato” (1993: 189), o que só pode ser assegurado por uma instância que se coloca acima dos indivíduos, representada pelo Estado6. Dito de outra forma, “os contratos somente prevalecem porque se fazem cumprir pela ação de uma força exógena” (Przeworski, 1991: 42) ao mercado. Das considerações anteriores resulta que a mão invisível do mercado não pode prescindir do Estado. Recorrendo a Reis, “se o mercado é inequivocamente o lugar da busca generalizada de interesses, ele se distingue também pelo fato de que tal busca se dá em condições que pressupõem a operação subjacente de um princípio de solidariedade e a adesão a normas que a regulam sem degenerar em situação hobbesiana de fraude e eventualmente de beligerância generalizada” (1993: 120), ou seja, sem cair no estado de natureza. A presença do Estado revela-se necessária no sentido de assegurar condições para que a livre iniciativa – entendida como requisito indispensável à alocação intertemporal eficiente de recursos – possa se expressar, proporcionando suporte institucional para o processo de produção e de distribuição dos resultados alocativos obtidos, bem como de depurar o mercado daquilo que Reis (1993) denomina de elementos de “contaminação”, de forma a que as transações entre os agentes sejam pautadas pelo respeito a certas considerações de interesse público. A assimetria de poder entre os agentes, expressa na constituição de 6 A necessidade da intervenção pública para assegurar a segurança dos agentes, em particular os direitos de propriedade, é enfatizada pela doutrina liberal como uma das atribuições centrais do Estado. Em termos mais específicos, a garantia da proteção aos indivíduos configura-se como função constitutiva do próprio Estado. A propósito da questão, Nozick mostra que uma forma de Estado – o Estado mínimo, em sua formulação teórica, ou o Estado guarda-noturno do liberalismo clássico – com as atribuições de prestar segurança aos indivíduos, “nasceria da anarquia na forma representada pelo estado de natureza, mesmo que ninguém tivesse essa intenção ou tentasse criá-lo” (1991: 11). Linha similar de raciocínio é utilizada pela escola da escolha pública para vincular a função de assegurar o cumprimento dos contratos ao Estado. Mercuro e Medema sumarizam o argumento, afirmando que, dadas as “dificuldades de desenhar contratos fechados em si mesmos para a execução de transações complexas, é do interesse das partes e/ou da sociedade desenvolverem instituições com tal propósito” (1997: 135). Sob essa ótica, a existência de uma estrutura formal definindo direitos e obrigações a serem observadas e cumpridas nas relações entre os agentes atuaria tanto no sentido de facilitar a realização das transações, reduzindo a margem de riscos e incertezas imbricadas nas mesmas, quanto de estimular a promoção de atividades e negócios mais complexos, rebaixando sensivelmente os custos de transação. 54 monopólios e oligopólios, representa um dos principais problemas a serem “depurados”, à medida que distorcem o princípio igualitário do mercado, o que leva Reis a afirmar que “a rigor, um mercado oligopolístico ou, com mais razão, monopolístico não é um mercado“ (1994: 119). As relações entre mercado e Estado, contudo, não se restringem ao suporte institucional que o segundo assegura para o funcionamento do primeiro. As imperfeições e falhas do mercado, em sentido amplo, e os aspectos relacionados às desigualdades sociais e ao crescimento econômico, em termos mais específicos, conferem saliência ao papel da política, ou das instituições públicas, como instrumento voltado à promoção de resultados socialmente mais eficientes que aqueles obtidos “como o produto agregado de indivíduos buscando a realização de seus interesses privados” (Elster, 1989: 103). Em conexão com essa visão, o Estado se introduz como uma instância de coordenação de interesses operando com uma lógica distinta da lógica de mercado e produzindo resultados alocativos também diferenciados, cujo fundamento é a separação institucional entre propriedade e autoridade – aspecto assinalado por Przeworski (1995) como elemento crucial da organização da economia capitalista. Em outras palavras, o Estado constitui a instância com competência para corrigir ou eliminar as imperfeições e falhas da operação do mercado, onde se destaca a promoção da justiça social7. O capitalismo é marcado, portanto, pela coexistência de dois mecanismos de coordenação de interesses operando sobre uma mesma base de recursos, o que torna inevitável a existência de uma tensão permanente entre ambos (Przeworski, 1995), suscitando, em particular, interpretações onde “a expansão de um é vista como se fazendo necessariamente em detrimento do outro” (Reis, 1994: 119). 7 A busca da justiça social significa, simplificadamente, promover uma seleção, através de algum critério político, entre as várias distribuições potencialmente eficientes, movendo-se “ao longo da fronteira do ótimo de Pareto assim que (...) alcançado” (Elster, 1989: 104). 55 A despeito da visão liberal, para a qual redistribuição e mercado são contraditórios em termos dos próprios princípios básicos que estruturam os conceitos, o propósito de reduzir as desigualdades, melhorando o padrão distributivo da sociedade, tem sido responsável por grande parte dos esforços feitos pelo Estado no âmbito da economia, seja regulando as atividades dos agentes privados ou atuando diretamente no campo na produção. Como salienta Dahl, “isto não quer dizer que os resultados desses esforços tenham produzido uma distribuição de renda mais equitativa (...) nem (...) que os métodos escolhidos tenham sido necessariamente os mais eficientes dentre os disponíveis; pelo contrário, eles com frequência podem ser altamente ineficientes, ineficazes ou mesmo perversos” (1993: 229). No entanto, apesar das inescapáveis dificuldades operacionais e dos resultados não necessariamente satisfatórios8, interessa ressaltar, recorrendo novamente a Dahl, que se “a distribuição de renda existente é injustificada, então é razoável tentar-se obter uma distribuição mais justificável mediante a intervenção governamental” (1993: 229). O mesmo se pode afirmar em relação à questão do crescimento econômico, enquanto garantia mesmo de uma ordem social mais justa. Trata-se aqui de um compromisso mais efetivo com os direitos sociais do indivíduo enquanto cidadão, entendidos como pré-requisitos para a plena manifestação da individualidade e da liberdade no mundo real. Sob essa ótica, o Estado deve se envolver diretamente na promoção de uma vida melhor para o conjunto da sociedade, ou seja, desempenhar um papel mais ativo no sentido de proporcionar aos indivíduos as condições necessárias para o desenvolvimento de suas potencialidades. Equivale a dizer que a liberdade enquanto princípio básico de ordenamento social, como o quer o 8 A transposição da idéia de igualdade do plano da abstração teórica para o plano da empiria levanta uma série de dificuldades de natureza operacional, qualquer que seja o princípio de justiça social adotado. Santos (1986) é categórico nesse sentido, argumentando sobre a inviabilidade de se aplicar um único critério de justiça, seja qual for, como princípio de ordenamento social e de definição de políticas públicas. “Em termos mais específicos, nem o princípio utilitarista em suas versões contemporâneas, nem princípios fundados em teorias sobre direitos absolutos, nem o princípio rawlsiano que busca maximizar a posição relativa das camadas mais baixas da população (...), nenhum deles, se aplicado uniformemente a todas as áreas sociais problemáticas, produz resultados consistentes” (1986: 25). 56 pensamento liberal, só pode ser sustentada na prática a partir da garantia pelo Estado da materialização de um patamar mínimo de igualdade sócio-econômica9. Essas e outras questões relativas ao papel desempenhado pelo Estado frente “às várias dimensões da vida econômica e social”, como ressalta Przeworski, estão no centro “das controvérsias políticas contemporâneas” (1995: 8). O foco da atenção será direcionado, assim, para o exame de como o Estado opera, tanto no que se refere a garantir as condições necessárias à materilização das interações sociais, assegurando o respeito à lei e a preservação da ordem, quanto, e principalmente, no tocante a “regular ou gerenciar a produção, (...) e a providenciar bens e serviços em uma base distinta do princípio de mercado” (Dunleavy e O’Leary, 1987) – temáticas que perpassam o desenvolvimento do argumento analítico relativo à trajetória do setor elétrico. 6. Estado, política pública e governo Um ponto de partida para a discussão relativa ao Estado, o que é e como atua, consiste na especificação do conceito mesmo de Estado. O tratamento analítico que parece proporcionar uma melhor fundamentação para uma interpretação substantiva de sua natureza e manifestação no mundo real consiste em considerar o que autores como Vincent (1987) e Dunleavy e O’Leary (1987) ressaltam como suas dimensões constitutivas básicas, mais especificamente, a dimensão formal ou organizacional e a dimensão funcional. São dimensões estreitamente entrelaçadas, no sentido de que aquilo que o Estado faz ou se propõe a fazer não pode ser dissociado de sua efetiva capacidade de intervenção. 9 Conforme Vincent, “o significado e a importância do Estado dependem do aprimoramento de seus membros; desse modo, em um sentido relevante, ele continua individualista e comprometido com a liberdade individual” (1995: 59). 57 Do ponto de vista organizacional, a concepção moderna de Estado aparece intrinsecamente associada à emergência do Estado-Nação, - fenômeno que se manifesta na Europa Ocidental para se disseminar gradativamente em escala mundial. Estabelecendo-se como uma forma de poder político exercido sem descontinuidades na sociedade (Vincent, 1987), o Estado apresenta determinadas características que o tornam distinto das demais formas de poder político nela existentes. Dentre tais características, cabe assinalar a noção da soberania de poder, que remete a um território fisicamente delimitado, bem como do monopólio da força como enquanto fundamento último deste poder. Além disso, há um relativo consenso quanto a constituir um elemento indispensável à existência mesmo da sociedade, o que implica reconhecê-lo como fator não só de ordenamento mas de coesão social. A perspectiva funcional tem a ver com sua capacidade de atribuir e alocar valores e de exercer o controle social, ancorada no recurso, direto ou indireto, à sanção coercitiva. Caminha-se aqui na direção das ações ou atividades desempenhadas pelo Estado, que traduzem, na prática, o conteúdo substantivo do poder que este expressa. Isto remete à noção de política pública, em torno da qual se articulam as duas dimensões consideradas. No exame dessa relação, adquirem saliência a forma como o poder político é organizado e exercido, os princípios que norteiam a atuação pública e as consequências ou desdobramentos da intervenção estatal para o conjunto do corpo social. Seguindo a definição proposta por Swason (1971), entende-se por política pública um “sistema de regras atribuindo autoridade social à promoção de fins coletivos, com a instituição de agentes para a intervenção e regulação coletiva” (citado por Jepperson e Meyer, 1991: 206). A primeira parte do enunciado realça o compromisso com os interesses da coletividade que está na base dos processos decisórios e das funções que o Estado desempenha. Numa sociedade capitalista, um aspecto de suma importância, conforme Przeworski (1995), gira em torno do papel adequado para o Estado vis-à-vis o mercado, suscitando debates conexos relacionados à efetiva sintonia entre a intervenção 58 pública e os interesses representativos da sociedade, o grau de autonomia na tomada de decisões e questões afins. A segunda ressalta a relação estreita que se estabelece entre o governar - entendido no sentido mais convencional do termo, isto é, o poder ou autoridade para imprimir um direcionamento objetivo às ações ou interações sociais - e o aparelhamento estatal para o exercício desta mesma autoridade, onde se destacam questões relacionadas à capacidade de implementar as decisões tomadas na esfera pública e de garantir adesão às mesmas. Direcionando a atenção para as questões associadas à relação entre Estado e mercado e à “autonomia do político”, sobressai, de imediato, o caráter controverso que tais temas assumem na literatura política contemporânea. Tratase de resultado até certo ponto esperado ou previsível, à medida que as formulações teóricas no campo da política, em particular as discussões referentes ao Estado, não são pautadas por preocupação estrita com a explicação dos fenômenos analisados, mas envolvem “recomendações, valoração normativa e prescrições” (Vincent, 1987: 41), o que claramente limita pretensões de uma convergência interpretativa mais geral. Isto não implica, contudo, a inexistência de pontos em comum ou convergentes, ainda que parciais. Essa proposição encontra respaldo em Przeworski, que aponta três "posições teóricas básicas" em torno das quais gravitariam as diversas interpretações a respeito da natureza objetiva da ação estatal: " os Estados respondem às preferências dos cidadãos, os Estados procuram realizar seus próprios objetivos, e, finalmente, os Estados agem segundo o interesse dos que possuem riqueza produtiva. Na primeira visão, (...) os governos são perfeitos agentes do público. Na segunda (...), os Estados são instituições autônomas em relação à sociedade (...) - os governos traçam políticas que refletem os valores e os interesses dos administradores estatais. Na terceira (...), os Estados são tão constrangidos pela economia (...), que os governos não podem empreender quaisquer ações contrárias a esses interesses" (1995: 8/9). 59 São posições que não aparecem em forma pura, mas que se interpenetram, refletindo, numa mesma vertente teórica, o entrelaçamento entre a percepção do que é e do que deveria ser, ou seja, entre o empírico e o normativo. Isto pode ser observado, em particular, em interpretações desenvolvidas por variantes contemporâneas do pensamento liberal e do marxismo. As formulações teóricas correspondentes a quatro dessas variantes – pluralismo, neopluralismo, neoliberalismo ou nova direita (new right) e neomarxismo (Dunleavy e O’Leary, 1987; Held, 1987) - proporcionam uma visão abrangente das principais divergências e dos pontos em comum no tocante à interpretação da ação do Estado, embora, evidentemente, não esgotem as alternativas de abordagem do tema. O pluralismo caracteriza-se pela centralidade atribuída ao controle da sociedade sobre a formulação da agenda pública e, através dela, sobre o exercício do poder do Estado. Esse papel é atribuído aos grupos de interesse, de diferentes matizes, que se estruturam de forma autônoma e descentralizada no âmbito das sociedades contemporâneas. Na visão pluralista, o fator crucial para que os indivíduos, enquanto cidadãos, consigam promover seus objetivos é a existência de múltiplos grupos organizados, de tipos e tamanhos variados, mobilizando-se na defesa dos interesses que estão na base de sua estruturação (Held, 1987). A dispersão e a multiplicidade de interesses concorrentes, formando uma rede de pontos de pressão política não coordenados e relativamente pequenos, assegurariam um direcionamento geral para a política pública capaz de evitar a influência excessiva de determinados interesses, individuais ou coletivos, sobre o conjunto da sociedade – idéia que se aproxima da concepção de mercado da economia neoclássica. Vale dizer, a concorrência entre múltiplos grupos sociais tornaria “o sistema político, ou estado, (...) quase que indistinguível do fluxo de barganhas e das pressões competitivas de interesses” (Held, 1987: 177). De forte conteúdo normativo, a concepção pluralista mostrou-se suscetível a críticas, tanto teóricas quanto, e especialmente, de fundamentação empírica, como a de negligenciar as assimetrias de poder associadas à diferenciação social 60 característica de qualquer formação social complexa e a de supor que a existência de grupos de pressão é suficiente em si mesma para assegurar uma adequada incorporação dos múltiplos interesses coletivos na agenda pública10. Essas críticas são endossadas pela vertente neopluralista, para a qual a formulação da política pública não só pode como tende a ser desviada no sentido de determinados grupos de interesse, melhor organizados e com maior capacidade de mobilização de recursos. Dentre os grupos em posição privilegiada, ou seja, com maior poder de influência, vão ser encontradas as grandes corporações econômicas, bem como setores ou órgãos do aparato estatal. Além da assimetria entre os grupos de interesse, o Estado contemporâneo ainda se defrontaria, na concepção neopluralista, com o imperativo de considerar as necessidades impostas pelo processo de acumulação capitalista, que atuariam no sentido de reduzir a amplitude das opções políticas governamentais. Em termos mais específicos, a promoção dos investimentos privados, vistos como indispensáveis ao crescimento econômico e à estabilidade do desenvolvimento, cria determinadas exigências que não podem ser negligenciadas pelo Estado, sob o risco do caos econômico e da corrosão da própria legitimidade do governo. Trata-se de uma visão onde o “Estado deve seguir uma agenda política que de qualquer maneira é favorável a ou (...) viesada para o desenvolvimento do sistema da empresa privada e do poder corporativo” (Held, 1987: 185). Se o Estado tende a ser capturado por determinados interesses da sociedade, mais especificamente, interesses do capital, a "solução" 10 A propósito da questão, Held argumenta que, ao contrário da posição pluralista, “a existência de muitos centros de poder dificilmente garante que o governo vá: (...) ouvir a todos igualmente; (...) fazer outra coisa que não seja entender-se com os líderes de tais grupos; (...) ser suscetível à influência de qualquer um que não aqueles que ocupam posições de poder; (...) e assim por diante” (1987: 181). Além desses aspectos, não há como escapar daquilo que Bohman (1996) denomina de “dilema liberal”, traduzindo o fato de assuntos ou temas de interesse geral, isto é, de todos os indivíduos e grupos da sociedade não serem necessariamente do interesse de cada grupo específico. 61 que os neopluralistas preconizam para neutralizar ou, pelo menos, atenuar o problema, aponta em direção oposta à dos pluralistas11. A alternativa que propõem converge para um novo padrão de relação entre Estado e sociedade, fundado em mecanismos de “accountability”, capazes de favorecer o acompanhamento e a pressão dos grupos em torno do conteúdo e da implementação da agenda pública. Como o neopluralismo, o neoliberalismo reconhece a existência, na definição agenda pública das sociedades contemporâneas, de dificuldades para a incorporação dos interesses dos grupos sociais que se apoiam em bases frágeis de recurso, de um lado, e de uma posição privilegiada dos interesses das grandes corporações, de outro (Held, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987). Diverge da interpretação neopluralista, contudo, no tocante à capacidade de o aparelho estatal promover uma mediação e harmonização eficiente dos interesses dos diversos grupos constitutivos da sociedade. Salienta, a esse respeito, que o processo de tomada de decisões na formulação da política pública tende a ser caracterizado por “insumos distorcidos”, como o acordo entre grupos com interesses distintos (“vote-trading”), a defesa de interesses locais ou paroquiais (“pork barrel politics”) e o ativismo politico (“politicians activism”), entre outros aspectos (Dunleavy e O’Leary, 1987). Além de não escapar a tais distorções, o Estado seria tensionado no sentido do crescimento sistemático de suas funções e ações, o que o levaria a avançar sobre a esfera da iniciativa privada, tornando-se uma ameaça à mesma, na linha da tese do “Estado sobrecarregado”, formulada para lidar com a crise experimentada pelas principais economias ocidentais no 11 Ao contrário do pluralismo, que enfatiza a atuação dos grupos de interesse da sociedade, o neopluralismo internaliza, em parte, tal responsabilidade no próprio Estado. Salienta, a esse respeito, a importância da profissionalização e especialização da administração pública, de forma a assegurar a eficiência e eficácia da gestão governamental. Caberia a uma tecnocracia socializada pelo treinamento profissional (Dunleavy e O’Leary, 1987) rebalancear as pressões que se colocam sobre o Estado, tendo, como diretriz geral, a maximização do bem estar social. Trata-se, contudo, de "solução" que suscita problemas de outra natureza, mais precisamente, a definição de eficiência sob a ótica social, ou seja, a definição do que exatamente deve ser maximizado. Como observam Mercuro e Medema, considerações a respeito da maximização do bem estar social requerem uma "prévia especificação normativa sobre os objetivos adequados para a sociedade" (1997: 191). 62 final dos anos sessenta e início do anos setenta12. Fundada nessa avaliação pessimista da atuação do Estado, a visão normativa do neoliberalismo aponta em direção oposta à do neopluralismo. Preconiza não o aprimoramento da gestão pública, mas a redução da interferência estatal tanto no campo econômico quanto social (Held, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987), num retorno ao Estado mínimo das origens do pensamento liberal, embora não exatamente ao Estado guardanoturno, restrito essencialmente à defesa do direito de propriedade. Trata-se, mais precisamente, de uma proposição que advoga a restauração do papel do mercado como instância mediadora primária da sociedade, onde caberia ao Estado, conforme Hayek (1978), o desempenho de duas funções básicas: “prover uma estrutura para o mercado e prover serviços que o mercado não pode fornecer” (citado por Netto, 1995: 194). Partindo de premissas teóricas marxistas, autores como Pierson (1986), Paterman (1970, 1985) e Macpherson (1977) chegam a conclusões relativamente próximas às do neopluralismo e mesmo às do neoliberalismo no tocante à definição da agenda pública e ao desenvolvimento da ação governamental. Em síntese, reconhecem que o Estado não é imparcial frente aos múltiplos interesses presentes na sociedade, já que estaria comprometido com a defesa dos interesses das grandes corporações econômicas e, como tal, “inescapavelmente preso à manutenção e reprodução das desigualdades da vida diária” (Held, 1987: 231). As causas dessa parcialidade estariam relacionadas a deficiências no controle da sociedade sobre o Estado, cujo subproduto seria a manifestação de uma tendência à sua hipertrofia, traduzida na proliferação de políticas públicas que, mesmo apresentando recorte social, serviriam apenas para promover ajustes relativamente pequenos na estrutura das desigualdades sociais 12 Desenvolvido originalmente com base em premissas pluralistas, o argumento que sustenta tal interpretação está centrado no aumento das expectativas sociais associadas a melhorias no padrão de vida da população ocorrida no pós-guerra. Ao serem canalizadas para o Estado, essas expectativas tendem a provocar uma contínua expansão da esfera pública que, por sua vez, irá corroer “progressivamente a esfera da iniciativa privada” (Held, 1987: 210). De um lado, as demandas sociais não seriam adequadamente priorizadas pelo aparato governamental, ocasionando um aumento desnecessário na oferta de bens e serviços públicos. De outro, haveria um processo natural de degeneração no tempo das instituições públicas, numa espécie de “entropia institucional”, provocando disfunções e dificuldades de controle da intervenção estatal. 63 características das sociedades capitalistas modernas. No enfrentamento de tais problemas, defendem a idéia da ampliação da participação direta da população nos processos decisórios relativos às questões de interesse coletivo. Apontam, portanto, na mesma direção da concepção pluralista de “apropriação” do Estado pela sociedade, distinguindo-se dela, no entanto, quanto aos fundamentos do processo. Enquanto o pluralismo se apoia numa organização espontânea e descentralizada dos interesses relevantes da sociedade, a posição desses autores confere saliência a uma ação deliberada e sistemática no sentido do fomento à participação, o que passa pelo próprio Estado, dando forma ao que Held (1987) designa como uma espécie de “pluralismo social”, com a promoção de reformas que “abram caminho à socialização da economia e do poder” (Netto, 1995: 199). Se, da perspectiva funcional, as interpretações acerca do Estado são, como visto, controversas, da perspectiva organizacional observa-se uma maior convergência interpretativa, até porque as abordagens tendem a ser pautadas por forte conteúdo descritivo. A concepção de Estado, sob esse prisma analítico, se aproxima mais estreitamente da idéia de governo, traduzindo um conjunto complexo de instituições formalmente encarregadas de formular e implementar as ações ou atividades que conformam a política pública num sentido amplo, onde se inclui, em particular, o próprio arcabouço legal que rege a vida em sociedade (Vincent, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987). Isto se materializa na estruturação de um aparato técnico-operacional próprio, constituído por organismos e agências especializadas, de desenho variado, tendo como suporte pessoal recrutado e treinado para o desempenho de funções organizadas em consonância com uma concepção burocrática de administração, no sentido weberiano do termo. O fundamento primário desse aparato técnico-operacional, por sua vez, é a “capacidade de extrair recursos monetários da sociedade para financiar suas atividades” (Dunleavy e O”Leary, 1987: 2), dando forma àquilo que se designa como poder fiscal do Estado. 64 Avançando além dos aspectos formais da organização do Estado, sobre os quais há razoável consenso, as questões que despertam maior interesse sob a ótica da investigação pretendida dizem respeito à eficiência e eficácia da ação estatal, cuja discussão comporta dois ângulos principais de abordagem. O primeiro tem a ver com a relação entre aquilo que o Estado faz ou se propõe a fazer e o que está capacitado a fazer, isto é, entre suas dimensões funcional e organizacional. O segundo, com a gestão governamental propriamente dita, em conexão à capacidade de execução das decisões que conformam as políticas ou programas de governo. Embora não exista, como já mencionado, consenso sobre o papel mais adequado para o Estado nas sociedades contemporâneas, é inegável que o escopo de sua intervenção tende a se alterar ao longo do tempo, em resposta a transformações de larga envergadura nas relações econômicas e sociais que se processam tanto no ambiente internacional quanto no ambiente específico de cada país. Se as primeiras interferem principalmente sobre o conjunto de oportunidades e constrangimentos que se colocam para a formulação e implementação de políticas voltadas à promoção do crescimento econômico num dado período ou conjuntura histórica, as segundas tendem a ter implicações de maior amplitude, repercutindo diretamente na conformação da agenda pública e na dinâmica da atividade governativa. Mudanças mais profundas nas funções do Estado supõem reformulações conexas em seu aparato organizacional numa acepção ampla, isto é, em suas instituições, estrutura burocrática e mecanismos de gestão. Ganham saliência aqui as idéias de crise e de reforma do Estado. A primeira traduz o descolamento entre aquilo que o Estado se propõe a fazer ou o que se espera que faça e sua capacidade de execução, na linha da tese da crise fiscal do Estado, formulada por O’Connor (1973) para tratar dos desequilíbrios estruturais nos orçamentos públicos das economias capitalistas nos anos sessenta e início do anos setenta. A segunda expressa processos mais gerais de reordenamento da substância das ações ou políticas públicas em conexão a seu desenho organizacional, como as proposições surgidas nos anos setenta, 65 preconizando uma “revisão dos compromissos e procedimentos que davam sustentação ao Welfare State” (Nogueira, 1995: 168) nas principais economias capitalistas desenvolvidas, e no denominado “consenso de Washington” que fundamenta as políticas neoliberais adotadas em diversos países da América Latina e da Europa Oriental a partir de meados dos anos oitenta (Willianson, 1990; Bresser Pereira et al., 1996; Sola e Paulini, 1995). Se a natureza cambiante das funções do Estado sinaliza para transformações conexas em seu aparato organizacional, tal processo não é automático nem necessariamente harmonioso, o que remete à discussão anterior a respeito da dinâmica institucional. Como ressaltam March e Olsen, as “instituições mudam, mas a idéia de elas que podem ser transformadas intencionalmente da forma que se queira é muito mais problemática” (1989: 56). Isto abre espaço para a emergência de descompassos entre as diretrizes e o conteúdo objetivo das políticas públicas, que especificam o escopo das ações de governo, e o desenho do aparato estatal encarregado de implementá-las, levando a desajustes ou inconsistências no desenvolvimento da atividade governativa propriamente dita, o que vai se refletir no desempenho governamental. A implementação de mudanças intencionais nas instituições tende a provocar uma série de ações e reações, nem sempre antecipadas ou pretendidas, trazendo consequências que só podem ser claramente apreendidas a posteriori e que, em diversas circunstâncias, escapam ao controle do agente deflagrador do processo. Em outras palavras, não é apenas a definição de políticas adequadas para a sociedade que constitui uma questão complexa sob a ótica do Estado, também o é a moldagem de sua estrutura organizacional e operativa. Primeiro, como ocorre com os indivíduos em suas interações sociais, as ações do Estado estão submetidas a regras de ordenamento coletivo estabelecidas em lei, cuja referência última é o texto constitucional. Tais regras definem, em particular, a margem de autonomia e os limites da capacidade de fazer escolhas por parte dos núcleos ou instâncias decisórias do governo (Mercuro e Medema, 1997). A introdução de novas políticas e/ou a redefinição do 66 escopo da atuação governamental podem exigir tanto modificações nos dispositivos legais que regem a atividade pública, quanto implicar uma reacomodação ampla de interesses, frequentemente difusos e, em diversas circunstâncias, associados ao próprio aparato estatal. Recorrendo novamente a March e Olsen, o propósito de introduzir mudanças institucionais mais complexas “tipicamente exige tempo e o controle deliberado sobre o processo depende da persistência” (1989: 66) da disposição de implementá-las, de forma a evitar desvios de rota. Como discutido anteriormente, os resultados obtidos não correspondem necessariamente aos pretendidos, numa dinâmica com efeitos ou produtos variados, onde, em diversas circunstâncias, sequer as motivações originais são preservadas. As mudanças podem ser apenas parcialmente implantadas, afetando em algum grau a consecução dos propósitos visados, ou mesmo frustrando o alcance dos mesmos, como tende a ocorrer quando determinada função é criada sem que o arranjo organizacional para desempenhála o seja. Alternativamente, podem ser implantadas de forma espaçada no tempo, afetando “as preferências em nome das quais foram introduzidas, e [provocando] a emergência de novas intenções” (March e Olsen, 1989: 66), que se transformam em fatores intervenientes do processo. Ao longo do percurso, os objetivos originais podem ser abandonados ou revistos, o que frequentemente ocorre quando há alterações no controle do poder estatal, repercutindo sobre os rumos da trajetória que vinha sendo percorrida. Por fim, mudanças podem ser introduzidas mas não implementadas, o que se dá principalmente quando o balanço de forças políticas, desfavorável às mesmas, é suficientemente forte para mobilizar recursos capazes de bloqueá-las. Segundo, as atividades das agências, corporações e da burocracia que conferem organicidade ao Estado, como já mencionado, são suscetíveis a determinadas inconsistências ou disfunções que influenciam, em algum grau, os objetivos que perseguem e a forma como atuam, refletindo-se nos produtos da 67 política pública e, por extensão, no desempenho governamental13. Uma das questões mais enfatizadas a esse respeito tem a ver com a busca do interesse próprio pelo aparato estatal, em detrimento da promoção do “interesse público”, subjacente à alocação dos recursos orçamentários mobilizados pelo governo. Vários modelos de análise do fenômeno burocrático associam “poder, prestígio, tamanho do orçamento da organização, estabilidade no trabalho, gratificação, salário futuro, e condições de trabalho” (Mercuro e Medema, 1997: 93) à conduta ou atividade desenvolvida no âmbito do setor público (Levacic, 1991). Tendo em vista os inevitáveis conflitos entre interesses próprios das organizações ou agências estatais e interesse da coletividade, o desempenho do governo, visto sob a ótica da eficiência social, acaba sendo afetada ou restringida. Outro aspecto saliente guarda relação com a ingerência direta de interesses constituídos da sociedade nos processos decisórios e nas ações estatais, refletindo interlocuções assimétricas ou privilegiadas com as organizações públicas. Interessa reter aqui a visão relativamente consensual entre as principais vertentes teóricas de interpretação do Estado de que “os produtos do processo de barganha política são frequentemente a ineficiência alocativa ou o fracasso na promoção da justiça social” (Levacic, 1991: 47). Menos salientes, mas também importantes, são as questões relacionadas à difusão e processamento de informações referentes às decisões de governo dentro do próprio aparato estatal. De um lado, as intenções e os objetivos perseguidos pela política pública são múltiplos, frequentemente ambíguos e não necessariamente congruentes entre si. De outro, o aparato estatal opera com informações parciais, nem sempre consistentes e oportunas, afetando tanto a percepção 13 por parte da burocracia Em sistemas onde a ação é estruturada de forma burocrática, como no Estado, as organizações devem “especificar internamente tanto a autoridade (a relação com as instâncias estatais) quanto a atividade (a conversão da autoridade estatal em ação organizacional)” (Jepperson e Meyer, 1991: 224). Essa especificidade abre espaço para a manifestação de inconsistências ou distúrbios entre as decisões de governo e as ações implementadas sob a égide do Estado, o que é amplamente reconhecido pela literatura política contemporânea. 68 responsável pela implementação das atividades governamentais acerca dos objetivos ou linhas de ação definidas como prioritárias, quanto o acompanhamento e avaliação por parte das instâncias ou núcleos decisórios do governo sobre os resultados das políticas públicas (Levacic, 1991; Laver, 1997). As noções de governabilidade e de governança surgem na literatura política contemporânea como categorias auxiliares na análise da eficiência e da efetividade da ação estatal. A primeira tem a ver, conforme Diniz, com “as condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício de poder em uma dada sociedade” (1997: 196). A segunda guarda relação com a “capacidade da ação estatal na implementação das políticas e na consecução das metas coletivas” (Diniz, 1997: 196). Governabilidade pode ser identificada à capacidade de o governo garantir sustentação política às ações ou projetos que conformam a agenda pública ou, mais especificamente, à capacidade de gerar adesão e endosso político às suas decisões (Grindle e Tomaz, 1991; Silva, 1993; Nogueira, 1995). Assegurar sustentação às decisões da política pública remete, por sua vez, à negociação ou articulação de alianças e coalizões, de forma a evitar que as iniciativas governamentais fiquem submetidas “à instabilidade, à flutuação e ao risco não calculado” (Pasquino, 1985: 139; citado por Nogueira, 1995: 174), isto é, à interveniência de fatores circunstanciais que, em extremo, podem inviabilizar a própria atividade governativa. A ênfase na governabilidade reflete assim a preocupação com seu oposto, a não governabilidade, onde adquirem saliência duas questões principais, ambas associadas à relação entre Estado e sociedade. De um lado, o que se coloca é a complexidade das atividades canalizadas para a esfera pública, fruto das transformações cada vez mais abrangentes e intensas nos processos sociais e produtivos contemporâneos, tornando “mais difíceis e fatigosos os processos e procedimentos” (Nogueira, 1995: 174) da negociação e da decisão política. De outro, o aspecto saliente é o grau de autonomia política do governo na formulação e implementação de suas decisões, a base de apoio que dispõe para legitimar suas ações ou, alternativamente, para impô-las de forma 69 coercitiva. Como observa Diniz, “não há fórmulas mágicas para garantir a governabilidade, já que diferentes combinações institucionais podem produzir condições favoráveis à sua existência” (1997: 196), sejam elas num sistema democrático ou num regime autoritário. Governança, por sua vez, guarda correspondência com aspectos relacionados à capacidade de coordenação e comando do governo no tocante ao cumprimento de suas atribuições e, sobretudo, na alocação eficiente dos recursos institucionais e financeiros que controla. A discussão dessas questões passa, numa primeira vertente, por considerações acerca do modelo administrativo burocrático, na concepção weberiana, baseado na hierarquia decisória e de comando, na divisão de trabalho, na impessoalidade e na especialização profissional no desempenho das atividades (Weber, 1979). Definidos com vistas a assegurar a eficiência administrativa em organizações complexas, especialmente na esfera pública, os princípios organizacionais burocráticos têm sido criticados, por ampla literatura política, como portadores de disfunções que afetam a execução das ações programadas e a consecução dos objetivos propostos, levando apenas ao controle e não à eficiência operacional preconizada por Weber14. São problemas que tendem a se acirrar em ambientes caracterizados tanto pela multiplicidade de interesses em jogo quanto, e principalmente, pela rapidez e profundidade das transformações que neles se processam. Tais características pressupõem maior flexibilidade e capacidade de interlocução, além de sistemática atualização das práticas de gestão, indo de encontro à rigidez e à padronização subjacentes aos arranjos burocráticos. O afastamento das práticas burocráticas, por sua vez, abre espaço para a captura do Estado por determinados interesses, internos ou externos ao mesmo, o que permite argumentar a respeito da existência de uma espécie de trade off entre 14 Beetham sumariza os principais problemas levantados acerca da aplicação de tais princípios, centrando o enfoque no que denomina de “patologia” da manifestação das disfunções burocráticas. Reproduzindo o autor: “aderência a normas pode se transformar em inflexibilidade (...). Impessoalidade produz indiferença burocrática e insensibilidade. Hierarquia desestimula responsabilidade e iniciativa” (1991: 133). 70 controle e eficiência, em associação ao grau efetivo de aplicação dos princípios organizacionais do modelo burocrático. Outra abordagem da questão remete ao paralelismo com a dinâmica de funcionamento do mercado, o que fundamenta a idéia de falhas e imperfeições nas ações de governo. Os principais aspectos assinalados aqui dizem respeito às dificuldades operacionais no tocante à coordenação das políticas públicas, repercutindo sobre a eficiência na alocação de recursos. Levacic afirma, a esse respeito, que a ocorrência de deficiências de coordenação é inevitável, “dados os problemas na obtenção de informações acerca dos efeitos das medidas de política e a impossibilidade de adoção de decisões altamente centralizadas sobre todo o espectro de responsabilidades do Estado” (1991: 45) nas complexas e multifacetadas sociedades capitalistas modernas. Informações imperfeitas, como no mercado, afetariam o processo decisório das ações de governo e, consequentemente, os produtos delas derivados. A inviabilidade de decisões centralizadas, por sua vez, criaria dificuldades de articulação das múltiplas atividades e atribuições do governo, traduzidas em problemas como a dispersão de esforços e a sobreposição de ações, comprometendo, de um lado, a compatibilização dos objetivos que conformam a agenda pública e, de outro, a eficiência dos resultados obtidos. Em síntese, o Estado desempenha papel crucial na conformação e na dinâmica das relações sociais e produtivas da sociedade. Define e legitima objetivos e metas coletivas, “padroniza e distribui recursos (...), e desenvolve e mantém sistemas de controle burocrático” (Powell, 1991: 188) que afetam a forma de organização, as expectativas e as decisões dos atores que operam nos vários campos de atividade. Enquanto tal, é visto como instrumento para corrigir as imperfeições e falhas de mercado, orientando a atuação dos agentes privados em prol da promoção do desenvolvimento e do bem estar social. No entanto, a intervenção estatal não fica imune a ocorrência de imperfeições e falhas, que se manifestam nos resultados da política pública. Coloca-se então, como questão política central para as sociedades modernas, a demarcação do campo de atuação da instância pública socialmente desejável, o que significa promover um 71 balanço adequado entre a preservação da liberdade de iniciativa e da autonomia decisória dos indivíduos e a obtenção de uma ordem social mais justa ou equilibrada. A idéia de democracia intervém nesse contexto, traduzindo a estruturação de um processo decisório de natureza política para referenciar, nas preferências e interesses representativos da sociedade, a definição do conteúdo substantivo da agenda pública a ser implementada pelo governo. 7. Mercado, Estado e o papel da democracia A demarcação da fronteira entre o público e o privado não é tarefa simples mas, ao contrário, polêmica e complexa, à medida que “não há nenhuma norma rigorosamente definida” (Vincent, 1995: 58) ou consensual para distinguir entre estes dois domínios. Em termos concretos, a fronteira é objeto de disputa, sendo estabelecida e ao mesmo tempo permanentemente tensionada por lutas políticas que se travam em torno dos múltiplos e conflitantes interesses existentes na sociedade. A questão central que se coloca aqui é a criação de mecanismos para impor limites à autonomia decisória do Estado e assegurar proteção contra a ameaça que representa para o domínio do privado. A preocupação em especificar limites concretos à esfera de atuação do Estado, de forma a preservar a soberania da esfera privada (Przeworski, 1995), está no cerne da concepção de democracia prevalecente nas sociedades capitalistas contemporâneas, fortemente calcada na tradição do pensamento liberal (Vincent, 1994; Green, 1999). Na concepção liberal, se há limitações à intervenção pública, “estas são arquitetadas dentro do Estado” (Vincent, 1994: 58). A democracia cumpriria o papel de instrumentalizar a sociedade no sentido de interagir com o processo de organização e funcionamento do Estado, com vistas a assegurar uma gestão pública que não só garanta as liberdades fundamentais dos indivíduos, sobre as quais se estrutura a idéia de mercado, mas que seja compatível com as aspirações e interesses destes mesmo indivíduos como uma coletividade. Em consonância com tais propósitos, assume um significado processual, isto é, de 72 produzir um tipo específico de governo – o governo democrático -, caracterizado por refletir a manifestação das preferências dos indivíduos em sua formação e consequente operação. Enquanto procedimento ou método de produção do governo, a democracia se sustenta em dois princípios operacionais básicos: a realização periódica de eleições competitivas, quando se dá a disputa pelo controle do poder de decisão política, e a regra da maioria, através da qual o poder é legitimamente conferido a quem obtém a maior proporção dos votos da população. Essa visão de democracia como método para a formação de governos representativos é enfatizada, em particular, por Schumpeter (1984). Partindo de uma crítica à concepção clássica de democracia15, o autor argumenta que o povo, entendido como o conjunto dos membros de uma dada sociedade, não deveria decidir sobre temas políticos relevantes do ponto de vista coletivo, mas apenas sobre quem iria governá-lo16. A concepção de democracia como método para a formação do governo, consoante a interpretação schumpeteriana, é importante no sentido de ressaltar aspectos cruciais do funcionamento dos sistemas políticos democráticos: a criação de oportunidades para que se processe a alternância no controle do poder público, calcadas em regras competitivas formalmente estabelecidas, e a legitimação institucional de tal poder. A realização de eleições periódicas, contudo, não é suficiente, por si só, para assegurar uma adequada manifestação e incorporação dos interesses representativos da sociedade na definição da agenda pública, nem que os objetivos e metas democraticamente selecionados sejam efetivamente cumpridos (Held, 1987; Przeworski, 1995). O reconhecimento dos limites e imperfeições das instituições representativas da democracia liberal leva autores como Dahl (1989) a considerá-la um ideal teórico, difícil de ser 15 Tal noção de democracia remete à cidade-estado ateniense, significando a manifestação direta das preferências dos cidadãos, reunidos em assembléia (Green, 1999), onde a participação dos indivíduos corresponderia à manifestação de uma vontade coletiva ou vontade do povo. 16 Essa forma de interpretação guarda analogia com a noção de mercado, o que é enfatizado pelo próprio Schumpeter. Em outros termos, o processo de competição eleitoral seria equivalente “à competição entre firmas no mercado, exceto que o prêmio pelo sucesso não é o aumento dos lucros, mas o poder político, e a penalidade para o fracasso não é a falência, mas a exclusão do governo” (Beetham, 1993: 193). É como se os eleitores estivessem escolhendo entre candidatos e proposições políticas oferecidas no mercado eleitoral, de forma similar a consumidores escolhendo os produtos no mercado de consumo final. 73 alcançado na prática. Ganha saliência aqui a preocupação com o aprimoramento institucional do processo político com vistas a aproximá-lo o máximo possível do ideal democrático, dando forma ao que o autor designa como poliarquia. Tendo em vista esse propósito, Dahl (1989) procura especificar as condições necessárias para que a aplicação da regra da maioria – princípio fundamental do método democrático – possa refletir a manifestação das preferências dos indivíduos, sem estabelecer distinções políticas relevantes entre eles. Na interpretação do autor, isto exige, de um lado, a garantia das liberdades políticas básicas preconizadas pelo liberalismo – liberdade de expressão, de associação e de voto -, expressas sobretudo no direito de participar de eleições e no governo; de outro, que as eleições seja competitivas. Para tanto, o requisito básico é que os diferentes indivíduos tenham iguais oportunidades para formular suas preferências e manifestá-las publicamente, sem discriminação de conteúdo e de origem, o que passa pelo adequado acesso a informações e pela existência de canais para a realização do debate público relativa a temas de interesse coletivo. A democracia ou, mais propriamente, a poliarquia expressa um grau mínimo de preenchimento de determinados requisitos institucionais quanto à participação e ao debate público, entendidos como condições necessárias à aproximação do ideal democrático de plena liberdade e igualdade política. No entanto, como observa Przeworski, “uma democracia processualmente perfeita no campo político não resolve os problemas derivados da desigualdade econômica”(1995: 134). Dito de outra forma, apesar de necessária, a garantia de condições institucionais para a participação política não é suficiente em si mesma para a igualdade política em sentido pleno. Afim de que igualdade política não seja apenas formal, é necessário que as oportunidades que se oferecem à participação política dos indivíduos “não estejam condicionadas de maneira decisiva por sua inclusão neste ou naquele grupo ou categoria social determinada – isto é, por fatores de adscrição” (Reis, 1993: 122) que afetem a capacidade de influenciarem o processo de deliberação democrático. Isto aponta na direção da 74 construção de uma cidadania real, cujo conteúdo incorpora, além dos direitos civis e políticos do liberalismo clássico, os direitos sociais, na linha da cidadania expandida de Marshall. Em conexão com essa idéia, toma forma uma noção distinta de democracia – a democracia substantiva – impregnada de forte conteúdo de justiça social. Da perspectiva da democracia substantiva, os direitos sociais do indivíduo são tratados como pré-requisito para a efetiva expressão de seus interesses e para a manifestação de suas preferências no mundo real. Traduzem o entendimento de que os indivíduos, como cidadãos, devem ter asseguradas suas necessidades básicas, compatíveis com uma vida digna em sociedade, indispensáveis a que possam desenvolver plenamente suas potencialidades, “correspondendo a direito decorrente da inserção igualitária na comunidade” (Reis, 1993: 129). A consecução desse desiderato político implica o envolvimento do Estado no sentido da promoção do bem estar social, o que supõe alargar sua esfera de atuação, quer de cunho regulatório ou de provisão direta de bens e serviços, numa interferência mais incisiva sobre a dinâmica de mercado, orientada para o incremento da produção e a redistribuição de renda. A idéia de democracia nas sociedades capitalistas modernas pode ser associada, portanto, a visões distintas e, em princípio, contraditórias da relação entre mercado e Estado. Ao mesmo tempo em que se apoia nos princípios básicos de liberdade e autonomia decisória do indivíduo, o que requer controlar o intervencionismo do Estado, a democracia aponta para valores de igualdade ou justiça social, cuja promoção envolve a intervenção deste mesmo Estado. A democracia seria permeada, portanto, pelo compromisso com a conciliação dos princípios de liberdade e igualdade ou, alternativamente, de mercado e Estado. Nos termos em que a questão é abordada por Reis, “não se trata, (...) antes de mais nada de conter o Estado”, como encontrado nas posições liberais ou neoliberais mais extremadas, “mas sim de construí-lo de forma adequada” (Reis, 1993: 139). Para tanto, o que se requer é o desenho de instituições políticas permeáveis aos múltiplos interesses presentes na tessitura da organização social, 75 em conexão ao suporte público aos grupos oprimidos ou em desvantagem na sociedade (Young, 1993). Sob a ótica da investigação pretendida, a questão de maior relevância tem a ver com relação que se estabelece entre a vigência de uma ordem democrática e a atividade governativa, envolvendo aspectos afetos às noções de governabilidade e governança. Prevalece, no exame dessa temática, a concepção de democracia como um conjunto de regras e procedimentos institucionalizados que organizam o debate político em torno da agenda pública, conferindo “a todos uma oportunidade de lutar por seus respectivos interesses” (Przeworski, 1993: 29) e de influenciar, por meio de eleições, a formação e renovação periódica do governo (Hirst, 1992). O papel central que desempenha é o de permitir a manifestação dos interesses representativos da sociedade e de promover negociações ou deliberações em torno destes interesses, levando a resultados ao mesmo tempo incertos, já que dependentes do balanço de forças políticas, e aceitos ou legitimados pelos diferentes atores sociais, a partir de sua adesão às regras do jogo democrático. Assim compreendida, a democracia se converte num instrumento de legitimação e, simultaneamente, de controle das ações do governo. Isto pode ser lido tanto como uma forma de fazer com que a intervenção pública corresponda às necessidades, interesses e preferências da população, quanto como uma forma de limitação ou contenção externa do exercício do poder político. No entanto, como observa Przeworski, “os dirigentes estatais podem ter vontade de agir independentemente de influências externas. Em vez de responder a demandas, o Estado pode ofertar políticas autonomamente, seja no autointeresse dos próprios governantes, seja no interesse público, conforme a interpretação dos governantes” (1995: 43). São fatores que potencializam uma tensão entre a atividade governativa e as instituições da democracia, com implicações sobre a governabilidade. Em termos mais específicos, os constrangimentos ou obstáculos impostos por uma ordem democrática à implementação das decisões de governo, emanados em especial do Legislativo 76 (Przeworski, 1995; Sartori, 1996) podem criar um ambiente de confronto político, estimulando transgressões nos “limites estabelecidos pelo quadro legal, institucional e constitucional em vigor” (Diniz, 1997: 191) e, no extremo, conduzir a uma ruptura com a própria institucionalidade democrática, substituída por uma ordem autoritária. As relações que se estabelecem entre democracia e governança, por sua vez, comportam considerações em duas direções principais. A primeira tem a ver com o aprimoramento da qualidade das decisões tomadas na esfera pública e da gestão governamental. Conforme Hirst, “tornar o governo mais permanentemente obrigado a prestar contas e sensível à pressão e ao debate público pode de fato ajudar a tornar o processo de formulação e execução da política mais coerente e eficaz” (1992: 41). O aspecto saliente aqui é que a participação social e o debate público são fatores que contribuem seja para a redução da defasagem entre governantes e governados (Diniz, 1997) - tornando as políticas públicas mais inclusivas, isto é, maximizando seu teor universalista -, seja para a ampliação do leque de opções a serem consideradas pelo governo, favorecendo o aumento da eficiência dos objetivos propostos e das estratégias de ação com vistas à sua consecução. A segunda guarda relação com as dificuldades de coordenação e de administração do jogo de interesses num sistema democrático. De um lado, o que se coloca é a própria capacidade do aparato estatal de apreender e de agregar as preferências da população na definição dos objetivos, metas e instrumentos da política pública (Przeworski, 1995; Diniz, 1997). A esse respeito, Hirst ressalta que “a influência efetiva sobre o governo depende de organização. Porém, interesses organizados podem agir de diferentes modos, e alguns dos resultados, embora evidenciem forte disputa política, não asseguram a coordenação ou a continuidade na política” (1992: 43). A resultante do processo pode ser tanto aquilo que o autor denomina de “balcanização” da política, comprometendo a própria racionalidade governativa, ou a manifestação recorrente de estrangulamentos na condução das ações governamentais e, no extremo, a paralisia decisória. De outro, surgem problemas 77 relacionados a “manter as instituições políticas especializadas responsivas às demandas democráticas e [a] (...) satisfazer os objetivos democraticamente escolhidos, referentes à alocação de recursos escassos” (Przeworski, 1995: 133), sem culminar na hipertrofia do aparato estatal. Implica a difícil tarefa de administrar os conflitos de interesse e, simultaneamente, assegurar uma gestão eficaz dos recursos passíveis de serem mobilizados, o que requer não apenas o adequado aparelhamento técnico da administração estatal, mas o compromisso efetivo com o interesse público. 8. Proposições analíticas A revisão da literatura política realizada nos tópicos anteriores permite identificar duas lógicas principais na conformação dos arranjos organizacionais relativos à alocação de recursos e à distribuição de seus resultados nas sociedades capitalistas modernas. A primeira alternativa enfatiza a racionalidade e o utilitarismo da conduta dos indivíduos em suas interações sociais, deduzindo a dinâmica dos processos alocativos da busca motivada do interesse próprio. A segunda alternativa centra o foco explicativo na racionalização das atividades humanas, tendo como fundamento primário a influência de fatores de ordem institucional, que definem, em algum nível, o que deve ser feito e como fazê-lo, especificando objetivos a serem perseguidos, meios ou recursos passíveis de serem mobilizados e os atores relevantes nas diversas situações de interação. O aspecto crucial a ser ressaltado é que tais lógicas não são contraditórias mas interdependentes, expressando forças estruturantes de natureza distinta que se combinam para moldar e dar consistência aos fenômenos sociais concretos. A primeira vertente interpretativa, fortemente influenciada pela teoria econômica neoclássica, confere à noção de mercado papel central na agregação das preferências dos indivíduos, tratando-o como uma espécie de arena onde recursos escassos são alocados entre usos alternativos consoante princípios de otimização da satisfação ou “utilidade” que esta utilização proporciona a quem os controla. Como mecanismo de alocação de recursos, o mercado sumariza todos 78 os custos e benefícios do espectro de opções potencialmente abertos aos indivíduos através da estrutura de preços relativos da economia, que espelha, por sua vez, a manifestação da “disposição a pagar” e da “disposição a receber” nas transações que realizam entre si envolvendo transferências de controle sobre recursos e produtos. A formação das preferências não é problematizada pela teoria neoclássica, no suposto implícito de que o próprio mercado estrutura tais preferências, provisionando informações que instrumentalizam as escolhas básicas que os indivíduos podem fazer. Trata-se evidentemente de uma simplificação analítica, à medida que as opções potencialmente abertas aos indivíduos não são convergentes mas específicas de cada um deles, no sentido de dependerem da capacidade efetiva que têm de participarem das transações que se processam no mercado. Essa participação tende a refletir muito mais o que o indivíduo é e pode fazer do que aquilo que o indivíduo quer, denotando que as “preferências são socialmente construídas, não apenas socializadas mas socialmente estruturadas” (Friedland e Alford, 1991: 234). Explicações fundadas na lógica competitiva de mercado passam, portanto, por considerações analíticas a respeito de quem participa nas transações que nele se processam e das condições objetivas que cercam tal participação. A inserção nas atividades produtivas não pode ser dissociada da capacidade de mobilizar recursos dos diferentes indivíduos e do valor potencial de tais recursos no âmbito do próprio mercado. Isto remete, de um lado, ao estoque de recursos ou à riqueza material da sociedade e, de outro, à forma como se dá sua distribuição entre os indivíduos que a compõem. O nível de riqueza guarda relação com o grau de desenvolvimento das forças produtivas, onde intervêm fatores como a capacidade de acumulação de capital e a incorporação de novas tecnologias de produção, enquanto a estrutura distributiva é fortemente condicionada pelos direitos de propriedade e pelos resultados da política pública. As condições objetivas sob as quais a ação se desenvolve têm a ver fundamentalmente com a complexidade dos interesses em jogo, a configuração 79 das regras que normatizam a competição em torno da promoção de tais interesses e a aderência às mesmas. A segunda vertente interpretativa centra o foco analítico nos fatores de natureza institucional, tratados como fundamento primário do ordenamento das interações sociais, onde se salienta o papel coordenador do Estado no tocante à dinâmica de alocação de recursos da sociedade ou, mais especificamente, sua capacidade de imprimir direcionamentos objetivos aos arranjos organizacionais que sustentam o processo produtivo em sentido amplo. De acordo com essa linha de argumentação, calcada em contribuições teóricas neoinstitucionalistas, as instituições representam o arcabouço regulatório que disciplina e orienta o desenvolvimento das atividades humanas e sua reprodução no tempo – as regras do jogo – estabelecendo padrões de constrangimentos e oportunidades socialmente construídos e incorporados nas condutas dos indivíduo enquanto atores sociais. A influência que exercem não se restringe à demarcação da amplitude do espectro de opções de escolha potencialmente abertas aos indivíduos nas situações concretas de interação, como postula a escolha racional, impondo limites ao que pode ser feito, numa ponta, e definindo o que não pode deixar de ser feito, na outra. Ao contrário, as instituições influenciam também o processo de formação e diferenciação dos atores sociais, criando ou reconfigurando funções e papéis em campos de atividade formalmente estruturados, conjugado à especificação de requisitos a serem preenchidos no desempenho dos mesmos. Além disso, afetam a forma como os recursos são distribuídos e transformados em capacidade de ação, rebalanceando a correlação de forças ou poder de barganha dos atores sociais. A regulação estatal se insere nesse circuito como um vetor crucial de institucionalização da atividade humana. A forma como o Estado influencia a dinâmica produtiva no capitalismo combina iniciativas ao longo de dois eixos principais, com interfaces diferenciadas frente ao mercado. No primeiro, o Estado define códigos e outros dispositivos legais, especificando a regulamentação básica que rege a apropriação e a alocação dos recursos produtivos, e cria agências e mecanismos operacionais 80 para zelar por seu efetivo cumprimento, mediatizando os conflitos de interesses que surgem em torno de tais questões. É a regulação estatal, estabelecendo regras e requisitos técnicos para o desenvolvimento das atividades econômicas que confere materialidade ao mercado enquanto mecanismo para a busca da eficiência nos processos alocativos da sociedade. Em resumo, a operação do mercado, fundada na competição de interesses, supõe um conjunto de regras básicas que instrumentalizem o ordenamento das preferências e assegurem a convergência das expectativas dos agentes quanto à efetividade daquilo que foi contratado nas transações que fazem. No segundo, o Estado não só influencia a dinâmica alocativa do mercado através do uso articulado de incentivos e restrições à atuação dos agentes que nele operam, como o suplementa, provisionando bem e serviços em bases organizacionais distintas do mesmo. A concepção de Estado se aproxima aqui da idéia de governo, assumindo o significado de uma autoridade societal formalmente constituída, com atribuição e competência de responder pela formulação e implementação da política pública. A ingerência estatal na dinâmica de mercado implica sobrepor à lógica competitiva deste último a lógica institucional imbricada na política pública, que pode ser, e frequentemente o é, multivariada. As iniciativas governamentais afinadas com tal propósito assumem formatos e conteúdos os mais diversos. Envolvem desde a imposição de barreiras seletivas à atuação num dado campo de atividade ou setor produtivo a incentivos de diferentes naturezas – transferência de recursos, créditos em condições favorecidas, garantia de aquisição da produção, proteção contra concorrência etc -, passando por controles de preços, controles da margem de lucros e proteção contra práticas oligopolísticas ou monopolísticas, entre outros mecanismos regulatórios. A “mão invisível” do mercado cede espaço para a interveniência da ação coordenadora do Estado, cuja influência incide sobre as preferências, a capacidade de mobilizar recursos e as decisões dos agentes privados, inviabilizando determinados cursos de ação e favorecendo outros. A inserção direta do Estado na esfera da produção, por sua vez, aparece associada comumente a “falhas” da coordenação 81 de mercado, cujos exemplos mais eloquentes são os denominados bens “públicos” e “semi-públicos ou sociais” – estes últimos, atividades com efeito externo positivo de elevada expressividade, como os serviços de saúde e educação. O governo propõe e legitima metas de produção, institui fontes de recursos e mecanismos para seu financiamento e cria aparatos organizacionais para implementá-las. São circunstâncias em que a lógica institucional tende a deslocar, parcial ou integralmente, a lógica competitiva do mercado. Se as duas lógicas são interdependentes, as questões centrais para a investigação pretendida têm a ver com a discussão de qual delas prevalece num dado momento, o realinhamento na articulação entre ambas que se processa ao longo do tempo histórico e os fatores explicativos das mudanças ocorridas. Um ponto de partida para o tratamento dessas questões é a relação que se estabelece entre mercado e liberdade ou autonomia decisória dos indivíduos. Vale dizer, a alocação de recursos através da coordenação de mercado se baseia na liberdade de iniciativa, isto é, na possibilidade efetiva da realização de trocas e transações sem impedimentos de maior relevância. Como visto anteriormente, o grau de autonomia decisória dos agentes econômicos depende das regras do jogo instituídas, das quais derivam as oportunidades e os constrangimentos que defrontam nas situações concretas de interação. Impõe-se assim a conclusão de que a prevalência ou não da lógica competitiva de mercado num dado campo de atividade é contingente da conformação objetiva do arcabouço regulatório que dá suporte às transações que nele se realizam ou, mais precisamente, da margem de manobra que este confere aos agentes privados no tocante às escolhas básicas que fazem, onde se inclui a própria possibilidade de participar do processo produtivo. A agenda dos assuntos críticos para o desenvolvimento do trabalho converge portanto para a temáticas relacionadas à dinâmica institucional do setor, enfatizando o papel desempenhado pelo Estado, tanto no que se refere à regulamentação quanto à alocação direta de recursos na área. Sumarizando o argumento, em setores econômicos formalmente estruturados, como o é a prestação dos serviços de eletricidade no país, os 82 arranjos organizacionais e produtivos são modelados, em algum nível, por dispositivos legais que prescrevem requisitos técnicos a serem preenchidos pelos agentes atuantes na área e normas operacionais a serem observadas no desenvolvimento da atividade. Isto leva ao direcionamento do foco analítico para a regulação estatal, percebida como fonte primária de conformação da institucionalidade do setor e, consequentemente, das mudanças que nela se processam. Em termos mais específicos, a regulamentação básica que rege a alocação de recursos na área e a capacidade do poder público de conferir-lhe efetividade representam dimensões estruturantes do processo de institucionalização setorial, significando que tal processo não pode ser dissociado daquilo que se passa no âmbito das decisões e iniciativas do governo relativas à atividade. Aponta-se aqui para os processos políticos constitutivos da atividade governativa, cujos fatores explicativos, conforme discutido anteriormente, “estão enraizados em concepções cambiantes acerca do que o Estado é, o que pode e o que deve fazer” (Friedland e Alford, 1991: 236). O espectro das alternativas de políticas passíveis de serem adotadas pela administração pública – aquilo que esta pode fazer – é condicionado tanto por fatores de ordem técnica e operacional quanto institucional. Na primeira vertente, intervêm variáveis como o tamanho, a estrutura organizacional, os instrumentos e os recursos mobilizáveis pelo governo. Na segunda, a variável de maior relevância tem a ver com autonomia no exercício do poder de governar. Essa autonomia decisória, por sua vez, não pode ser tratada como um atributo do Estado, mas depende da estrutura societal ou, mais especificamente, dos limites institucionais, de fundamentação legal, que esta impõe às iniciativas governamentais nos diversos campos de atividade. Tais limites, vale ressaltar, guardam estreita relação com a vigência ou não de uma ordem democrática e de seu grau de enraizamento na sociedade, no sentido de que a democracia estabelece mecanismos e procedimentos formais para a legitimação das políticas implementadas pelo governo. 83 O tratamento analítico do que deve ser feito pelo poder público constitui assunto teoricamente complexo, à medida que não se prende apenas ao plano técnico, isto é, à resolução de problemas materiais relacionados à alocação eficiente de recursos, sendo permeado, ao contrário, por considerações tanto de natureza normativa quanto empírica. Um primeiro conjunto de questões diz respeito às distintas visões sobre o papel mais apropriado para o Estado frente ao mercado. De forte matiz ideológico, tais visões são marcadas por profundas divergências no tocante à extensão e à intensidade do intervencionismo público na economia, conforme discussão empreendida anteriormente. Um segundo conjunto de questões tem a ver com a permeabilidade da agenda pública aos interesses representativos da sociedade. A forma como esses interesses são percebidos e incorporados pelo processo de formulação e implementação das políticas públicas depende, em larga medida, do grau em que os procedimentos e instrumentos da democracia interpenetram a atividade governativa. Ademais, a vigência de uma ordem democrática ou, mais especificamente, a realização de eleições periódicas é importante no sentido de criar oportunidades para que se processe a alternância no controle do poder estatal, cujos efeitos repercutem na definição das prioridades e estratégicas políticas de governo. Qualquer que seja, contudo, o conteúdo objetivo daquilo que o Estado se propõe a fazer, a implementação e os resultados de suas iniciativas num dado setor ou atividade não são necessariamente congruentes com os propósitos originalmente visados. Primeiro, as ações propostas podem se defrontar, e frequentemente se defrontam, com resistências, de intensidade variada e variável no tempo, interpostas por diferentes interesses afetas às mesmas, com desdobramentos também variados. A mobilização desses interesses pode retardar ou bloquear, ainda que parcialmente, a materialização das intenções governamentais, sobretudo quando estão envolvidas mudanças nas regras do jogo, ou ainda levar a alterações no conteúdo do que foi proposto, numa dinâmica que tende a espelhar o balanço das forças em conflito. Intervém aqui a capacidade de coordenação do governo – um dos aspectos centrais da idéia de 84 governança -, que o credencia à obtenção de uma maior probabilidade de êxito na consecução dos objetivos e metas traçadas pela política pública. Segundo, as ações implementadas podem ter consequências não antecipadas nem pretendidas pelo governo, com desdobramentos em duas direções principais. De um lado, o que se coloca é a revisão daquilo que foi proposto e, no extremo, sua própria suspensão. De outro, o poder público pode ser levado a adotar medidas complementares às ações originalmente propostas, ou a optar por cursos de ação de natureza distinta. Em síntese, os arranjos organizacionais e produtivos de um dado setor econômico, como a prestação dos serviços de eletricidade, tendem a assumir características diferenciadas no tempo e no espaço, em estreita articulação com a configuração objetiva de seu arcabouço regulatório, onde se salienta o espaço que este confere à lógica competitiva de mercado. A conformação original do campo de atividade é contigente das circunstâncias históricas de sua criação ou, mais precisamente, de aspectos estruturais do ambiente no qual se inscreve. A partir de então, sua dinâmica evolutiva se dá “de acordo com trajetórias divergentes e velocidades variadas” (Powell, 1991: 195), mas que continuam a ser sistematicamente influenciadas por algum tipo de feito contextual, dentro do que se designa como dependência de trajetória, significando que as decisões e os cursos de ação adotados no tempo t+1 repercutem os impactos das escolhas básicas feitas no tempo t sobre a conformação do ambiente onde a ação se inscreve. As alternativas de trajetória se distinguem no tocante ao sentido do processo evolutivo, que tanto pode avançar rumo a uma maior prevalência da lógica competitiva de mercado quanto para a redução da mesma. Os termos polares dessa evolução são, de um lado, a idéia de livre mercado, calcada na mínima regulação estatal e, de outro, a estatização do processo produtivo, expressando o deslocamento da iniciativa privada pela alocação direta de recursos por parte do poder público. Inflexões ou redirecionamentos no sentido da trajetória guardam relação com mudanças mais radicais na concepção do que o Estado pode fazer, potencializados, entre outros elementos, por movimentos de 85 reinstitucionalização e/ou por transições no controle do poder governamental. A velocidade das mudanças, por sua vez, tem a ver com a interveniência de fatores de natureza diversa, cujos efeitos repercutem sobre a estrutura de constrangimentos e oportunidades que se colocam para a alocação de recursos na área. Do ponto de vista dos constrangimentos, cabe destacar situações de institucionalização incompleta ou de conflito em torno de mudanças nas regras do jogo. Do ponto de vista das oportunidades, salienta-se a ocorrência de inovações tecnológicas, abrindo possibilidades para ganhos de eficiência alocativa, fundadas principalmente no aproveitamento de economias de escala e de escopo. Tendo como referência o aporte teórico-metodológico resultante da discussão anterior, cabe definir hipóteses de trabalho com vistas à descrição e interpretação da dinâmica do desenvolvimento das atividades elétricas no país, de suas origens ao período contemporâneo. O cerne do argumento analítico consiste, em essência, na proposição de que a trajetória evolutiva do setor compreende quatro fases ou etapas com características distintas em termos da configuração dos arranjos organizacionais e produtivos prevalecentes na área, espelhando padrões diferenciados de articulação entre a lógica competitiva do mercado e a lógica institucional imbricada na regulação estatal em sentido amplo, aos quais se associam resultados também distintos sob a ótica dos serviços prestados à sociedade. O caminho percorrido pode ser visualizado no Desenho1: o setor parte de uma situação caracterizada pela prevalência da lógica de mercado, em conexão a um baixo grau de institucionalização da prestação do serviço; avança a seguir na direção de um arcabouço regulatório muito mais abrangente e complexo, que implica uma redução drástica na autonomia decisória dos agentes privados atuantes na área; sofre posteriormente uma inflexão no sentido do progressivo intervencionismo estatal, que culmina na plena estatização da atividade; e retoma, por fim, a trilha do mercado, através da redução da intervenção estatal e da concomitante criação de condições institucionais convergentes com a operação do jogo competitivo protagonizado pela iniciativa privada. A transição de uma etapa a outra, por sua vez, guarda estreita relação 86 com mudanças que se processam na concepção dominante acerca do que o Estado deve fazer, envolvendo tanto suas funções de ordenamento e controle quanto de alocação direta de recursos. São mudanças cuja explicação remete aos efeitos combinados de uma particular conjunção de fatores de heterogeneidade institucional, que só podem ser apreendidos a partir de uma abordagem de cunho histórico. Desenho 1 T RAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR ELÉTRICO B RASILEIRO Regulação + 2º estágio Intervenção - + 1º estágio 3º estágio 4º estágio 87 A primeira etapa corresponde à fase inicial de estruturação da prestação dos serviços de eletricidade como um novo campo de atuação e valorização para o capital no país, que tem, como traços marcantes, o baixo grau de institucionalização do arcabouço regulatório que irá dar suporte e sustentação à organização e funcionamento do setor, em conexão com o reduzido intervencionismo estatal na área. Refletindo a descentralização político-administrativa vigente no Brasil à época, a formação do novo campo de atividade vai se fundamentar primariamente em contratos de concessão firmados entre empresas energéticas constituídas pela iniciativa privada e as administrações públicas municipais, num arranjo que assegurava não apenas ampla margem de autonomia decisória mas mercados cativos a tais empresas. Esse formato institucional, associado à dispersão populacional, favorece a fragmentação de agentes na área, estimulando a constituição de um número expressivo de empresas verticalmente integradas, isto é, com atuação simultânea nos segmentos de geração, transmissão e distribuição de energia. O evolver do processo segue uma lógica decisória estritamente econômica, onde os investimentos se fazem em função do aproveitamento de oportunidades de negócio, o que envolve, em particular, disputas intercapitalistas em torno do controle das áreas com maior potencial de mercado. Ganha saliência aqui o progressivo adensamento urbano-industrial determinado pela dinâmica do desenvolvimento nacional, desencadeando um movimento de concentração e centralização de capital na área, apoiado na introdução de novas tecnologias produtivas e na concomitante apropriação de ganhos de escala, que converge no sentido da oligopolização setorial. A segunda etapa se caracteriza como um período de reconfiguração do campo organizacional da atividade, envolvendo mudanças abrangentes no perfil dos agentes, nos processos decisórios e nas relações produtivas do setor. O vetor do processo é a promoção, por iniciativa do governo federal, de uma ampla revisão no arcabouço institucional que ordena e disciplina a prestação do serviço, envolvendo a centralização do poder concedente, transferido para a 88 esfera da União, e a introdução de critérios e parâmetros mais rigorosos de fixação de tarifas, o que se inscreve no âmbito de uma reestruturação mais geral na vida política brasileira e, especificamente, na relação entre Estado e sociedade. A implementação das novas regras esbarra na resistência interposta por interesses constituídos na área, que se mobilizam no sentido da preservação do status quo, com implicações em duas direções principais, estreitamente interligadas. De um lado, o que se tem é um redesenho institucional incompleto, refletindo a incapacidade governamental de aglutinar uma base de apoio político suficientemente sólida para proceder ao detalhamento operacional das novas regras e conferir-lhes efetividade. De outro, há uma retração dos investimentos na ampliação da capacidade de atendimento do sistema, espelhando uma conduta defensiva adotada pelas concessionárias face aos riscos e incertezas associadas às disputas em torno das regras do jogo. Subproduto do processo, a expansão da oferta de energia elétrica tende a se descolar da demanda, delineando um quadro de déficit energético. O enfrentamento desse problema, por sua vez, irá desembocar no crescente intervencionismo estatal na área. Numa vertente, são introduzidas medidas de racionamento do consumo, num gerenciamento ad hoc do estrangulamento energético, com vistas à minimização de seus efeitos perversos sobre os diversos usuários do sistema. Noutra, e mais importante, a esfera pública passa a promover investimentos na área, atuando no vácuo aberto pela retração da iniciativa privada, com a organização de empresas energéticas estatais, tanto de âmbito estadual quanto federal. Vale dizer, o Estado empresário vai gradualmente se sobrepondo ao Estado regulador e, em simultâneo, deslocando a lógica de mercado. A terceira etapa constitui um período pautado pelo acirramento e consolidação do processo de estatização da atividade, que coincide com um aprofundamento, sem precedentes históricos, do intervencionismo estatal na economia. A responsabilidade pela prestação do serviço e a realização de investimentos na expansão do sistema são assumidas pela esfera pública, com o 89 concomitante deslocamento da iniciativa privada do setor. Isto envolve não apenas a reconfiguração do perfil dos agentes atuantes na área, o que se traduz na formação de uma rede de empresas energéticas de âmbito estadual e na criação de novas empresas energéticas federais, mas um redesenho em profundidade de seus arranjos organizacionais e produtivos, em conexão com mudanças nos critérios decisórios relativos à aplicação de recursos em projetos setoriais. O vetor principal dessas transformações é a interligação operacional do sistema, potencializando a apropriação de ganhos de escala e economias de escopo, fundadas no intercâmbio de energia, cuja viabilização se apoia na incorporação de novas tecnologias de geração e de transmissão de energia. O avanço na direção da operação interligada, por sua vez, supõe uma articulação das ações e dos programas de expansão das empresas, em consonância com uma racionalidade sistêmica. Isto envolve, de um lado, uma adequação do arcabouço institucional de disciplinamento e controle da atividade às exigências técnicas da operação interligada, através da definição de regras e procedimentos padronizados para a atuação das empresas e da criação de mecanismos de coordenação, de concepção colegiada. De outro, adere-se à sistemática do planejamento centralizado na promoção de investimentos na expansão do sistema, com vistas à otimização dos aproveitamentos de geração, o que irá convergir para a implantação de mega empreendimentos hidrelétricos. Subproduto da estatização, as ações de caráter regulatório tendem a ser internalizadas na esfera da produção. O Estado empresário se sobrepõe e, de certa forma “absorve” o Estado regulador. A quarta e última etapa, ainda em aberto, caracteriza-se como um novo processo de reconfiguração institucional do setor, tendo como vetores principais a redução do intervencionismo estatal na atividade, através da privatização de empresas públicas, tanto estaduais quanto federais, e a introdução da concorrência nos segmentos de geração e de distribuição - neste último, de escopo limitado -, em conexão ao livre acesso à rede de transmissão de energia. Tal processo envolve 90 um movimento articulado de desregulamentação, desvestindo os serviços de eletricidade do caráter estatizado prevalecente na etapa anterior, e de definição de novas regras e obrigações a serem cumpridas pelas empresas nos diversos segmentos do sistema, suficientemente flexíveis para estimular a reinserção da iniciativa privada na área. São mudanças que não podem ser dissociadas das reformas de cunho liberalizante que vêm sendo implementadas no país ao longo dos anos mais recentes e que trazem, em seu bojo, a ressurgência e revitalização da função reguladora do Estado na atividade, desvinculando-a da função empresarial, progressivamente esvaziada. A lógica estatal volta a ceder espaço para a lógica competitiva de mercado, numa espécie de retorno às origens do processo, embora com uma conformação organizacional e produtiva muito mais densa e complexa, tendo como suporte mecanismos também mais refinados de ordenamento e controle por parte da esfera pública. Os próximos capítulos procuram examinar, de forma mais detalhada, a natureza das relações que se estabelecem entre os arranjos institucionais da atividade, os agentes atuantes na área e os padrões de ação que adotam, explorando a influência exercida por aspectos estruturais do ambiente em sentido amplo. Esse procedimento é adotado para as três primeiras etapas, onde cada uma delas constitui objeto de um capítulo específico. A quarta etapa, que se encontra em curso, é tratada de forma mais sucinta, sendo abordada no âmbito das conclusões do trabalho. 91 III. DAS ORIGENS DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE À EMERGÊNCIA DO ESTADO REGULADOR Descoberta nos anos iniciais do século XIX, a eletricidade se manteve, durante várias décadas, circunscrita ao campo do conhecimento científico. Sua incorporação à dinâmica dos processos organizacionais e produtivos da sociedade moderna somente se dá no último quarto do século, refletindo a influência do entrelaçamento de progresso técnico e transformações na vida econômica e social17 que embasam a denominada segunda “Revolução 18 Industrial” . Indústria manufatureira, iluminação pública e transporte urbano surgem então como principais campos de aplicação produtiva, ensejando a difusão do consumo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) e, com ela, a organização e rápida consolidação dos serviços de eletricidade. A introdução da produção industrial de energia elétrica no Brasil se dá quase que em simultâneo ao processo em curso nas principais economias capitalistas, tendo como fundamento a importação de tecnologia. No entanto, a difusão interna do consumo de eletricidade e, consequentemente, a estruturação da prestação do serviço não apresentam o mesmo dinamismo observado no plano internacional. Numa sociedade de características agrárias e com ocupação populacional rarefeita e dispersa, o avanço inicial da atividade se faz de forma relativamente lenta, através da implantação de empreendimentos de pequeno porte em pontos isolados do território nacional. Ao final do século XIX, o parque gerador brasileiro ainda se revelava muito embrionário, com capacidade instalada pouco superior a 12 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Magalhães, 2000). 17 Sob a ótica técnica, avanços no tocante à geração e transmissão da energia elétrica permitem superar constrangimentos que se colocavam à sua produção em escala industrial. Sob a ótica da dinâmica societal, o aprofundamento dos movimentos de urbanização e industrialização favorece sua utilização em escala comercial. Desses processos resulta a transformação da eletricidade em mercadoria, dando forma a uma nova área para a valorização do capital (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). 18 A Segunda Revolução Industrial ocorreu nas últimas décadas do século XIX, fundamentando-se no desenvolvimento e uso produtivo do motor elétrico e do motor de explosão (Sandroni, 1994). 92 A prestação dos serviços de eletricidade como um novo campo ou área produtiva se estrutura originariamente em torno de contratos firmados entre empresas privadas e municipalidades. De um lado, a existência de uma demanda latente atrai a atenção do capital para um segmento produtivo emergente e promissor, que a vigência de uma ordem liberal (Faoro, 1975) delegava à iniciativa privada. De outro, a descentralização político-institucional que caracterizava o regime federalista então prevalecente no país favorece a atuação das administrações locais como poder concedente de serviços de utilidade pública. O processo é deflagrado em 1883, com a organização e operação de um sistema de iluminação pública na cidade de Campos – Rio de Janeiro, adquirindo contornos operacionais mais sólidos com a criação, em 1888, da Companhia Mineira de Eletricidade (CME), visando ao suprimento energético da cidade de Juiz de Fora – Minas Gerais (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Magalhães, 2000). A partir dessas iniciativas pioneiras, as atividades de geração e comercialização de energia tendem a se disseminar gradativamente por outros pontos do território nacional, no rastro das oportunidades de negócio proporcionadas pelos traços de desenvolvimento urbano-industrial que se delineavam, ao final do século XIX, na sociedade brasileira. Ao longo das primeiras décadas do século XX, ganha corpo no país um processo autônomo e descentralizado de expansão dos serviços de eletricidade, com a formação de um amplo e heterogêneo conjunto de empresas energéticas, organizadas tanto por capital interno quanto externo, atuando em mercados de âmbito local ou microrregional. Desse movimento resulta o esboço de uma atividade constituída por pequenas “ilhas elétricas” - estruturas produtivas verticalmente integradas e operacionalmente segmentadas - e, o que é mais relevante, sem um controle ou fiscalização mais efetiva por parte do poder público. Pouco aparelhado e impregnado pela orientação não intervencionista do liberalismo então dominante, o poder estatal pautava suas ações no campo econômico, de um modo geral, e na esfera do setor elétrico, em particular, pelo compromisso com a garantia de condições remuneradoras para o capital, que 93 dispunha de relativa autonomia não apenas para estabelecer a tarifa da energia, mas para decidir sobre questões relativas a quando e em que circunstâncias oferecer o serviço. À exceção de eventuais imposições estabelecidas nos contratos de concessão, não existiam mecanismos político-institucionais voltados a assegurar a qualidade dos serviços prestados à população, numa adesão tácita ao suposto de eficiência alocativa do mercado, isto é, de que as decisões das empresas concessionárias, movidas por seus interesses, seriam convergentes com as preferências e necessidades da sociedade. O contínuo adensamento da demanda por eletricidade, que se intensifica a partir dos anos vinte, espelhando o crescimento da produção industrial e o avanço da urbanização da sociedade brasileira, não só estimula a aceleração do ritmo de expansão da atividade como acirra a disputa intercapitalista pela captura das melhores áreas de mercado. Na ausência de um aparato regulatório minimamente estruturado para lidar com a questão, a capacidade de mobilização de recursos dos agentes constitui a variável estratégica do processo, onde o aspecto relevante tem a ver com a distinção entre empresas de capital nacional e de capital externo. Se, de um lado, o acesso irrestrito à prestação do serviço assegurava igualdade de oportunidades a ambas, de outro, o maior porte econômico, conjugado a perspectivas mais favoráveis na obtenção de empréstimos e financiamentos no exterior, criava condições assimétricas no aproveitamento de tais oportunidades, beneficiando as últimas frente às primeiras. Sem barreiras institucionais relevantes à concentração e centralização de capital, grupos estrangeiros tendem a impor sua presença no setor, através de agressivas políticas de aquisição e fusão de empresas estabelecidas na área, numa dinâmica que irá convergir para arranjos produtivos de conformação oligopolística (Rosa et al, 1998). Iniciado timidamente em meados da segunda década do século XX, o movimento de oligopolização do sistema se aprofunda no decorrer da década de vinte, tendo à frente os grupos Light e American & Foreign Power Company (Amforp) - o primeiro controlado por capital canadense e o último pertencente à Eletrical Bond and Share Corporation, 94 de nacionalidade americana. Na transição para os anos trinta, os principais mercados e a maior parte da capacidade instalada de geração já estavam sob domínio dessas duas corporações estrangeiras (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A acelerada concentração de capital traz, como subproduto, a erosão da funcionalidade da regulação em bases locais, à medida que instâncias administrativas municipais revelavam-se inadequadas no tocante a assegurar aos usuários do sistema a necessária proteção contra práticas abusivas de empresas concessionárias que haviam se tornado demasiado grandes e poderosas para impor preços e condições da oferta do serviço. Esse descompasso entre o arcabouço de ordenamento e controle da atividade e a conformação objetiva assumida por suas relações organizacionais e produtivas, contudo, não conduz, por si só, a mudanças na institucionalidade do setor. Como discutido no primeiro capítulo, evidências de que o aprimoramento do desenho institucional é pertinente não fazem do mesmo um processo natural, na linha da eficiência da história, típica das construções analíticas aderentes ao funcionalismo. Tais mudanças somente vão se processar no âmbito das reformas políticas e institucionais ocorridas a partir da Revolução de 30, que rompem não apenas com o forte federalismo da Primeira República, mas também com o acentuado liberalismo que pautava a condução da atividade governativa no país. É nesse ambiente reformista aberto pela Revolução de 30 que se dá a definição de uma nova legislação para o ordenamento dos serviços de eletricidade, consubstanciada no Código de Águas. Promulgado em 1934, por iniciativa do Executivo federal, o Código corporifica um esforço deliberado de reinstitucionalização das atividades elétricas, introduzindo mudanças em duas dimensões básicas do arcabouço regulatório prevalecente na área. Numa vertente, procede à centralização do poder concedente, até então disperso ou pulverizado entre estados e municípios, criando uma autoridade nacional com competência para propor e implementar políticas para o setor e para lidar com o disciplinamento e a resolução de conflitos relacionados à geração e à 95 comercialização de energia. Na outra, atualiza e padroniza os dispositivos de acompanhamento e controle da prestação do serviço, impondo limites à dispersão de preços praticados pelas empresas, através da adoção de critérios rigorosos para a fixação das tarifas elétricas. Por sua abrangência, a reinstitucionalização setorial determinada pelo Código afeta em profundidade os interesses, a lógica operacional e a dinâmica de acumulação de capital do sistema. Além de pautadas por forte viés nacionalizante, são mudanças que incidem sobre a rentabilidade e a autonomia decisória das concessionárias, subordinando-as de forma muito mais incisiva a considerações de interesse público. A medida de maior impacto e, por extensão, mais polêmica ou controversa tem a ver com a nova sistemática de fixação das tarifas de energia19, que não apenas aumentava em muito a margem de riscos e incertezas da atividade, já que escapavam ao controle das empresas, como, e principalmente, restringia as possibilidades de ganho na prestação do serviço, repercutindo sobre a atratividade econômica do negócio. Não é de estranhar, assim, o fato de as reformas institucionais propostas virem a suscitar reações contrárias dos principais interesses constituídos do sistema. A partir da promulgação do Código, as disputas intercapitalistas pela captura de posições favoráveis no mercado de energia elétrica, que vinham caracterizando a dinâmica evolutiva do setor, tendem a ser deslocadas por disputas em torno da nova sistemática tarifária, contrapondo as grandes empresas concessionárias ao governo federal. A reação aos intentos reformistas, comandada por Light e Amforp – os grupos mais diretamente afetados pelas mudanças nas regras do jogo - irá combinar iniciativas tanto no campo jurídico quanto no campo político-institucional. No primeiro, tais iniciativas 19 No arranjo anterior ao Código, a ampliação da capacidade instalada de geração estava atrelada à avaliação pelas empresas das margens de retorno econômico advindas da implantação dos novos empreendimentos, tendo como variável central o valor a ser cobrado pela energia em nível do consumidor final. Em outras palavras, as tarifas estabeleciam um elo primário entre a oferta corrente de eletricidade e sua expansão futura. 96 convergem para a arguição da legitimidade constitucional da ruptura de contrato imposta pelo Código, dentro de uma estratégia de caráter nitidamente protelatório, onde se buscava retardar a transição para a nova institucionalidade. No segundo, concentram-se em torno da regulamentação operacional dos vários dispositivos deixados em aberto pela nova legislação, numa tentativa de minimizar os impactos das mudanças através de influência exercida sobre o encaminhamento da matéria. Das disputas relacionadas aos propósitos governamentais de promover uma ampla revisão na institucionalidade do setor, sem vencedores definitivos, irão resultar dois tipos principais de desdobramentos, que se influenciam reciprocamente. O primeiro tem a ver com o incremento da complexidade das tarefas de implementação das propostas reformistas, implicando tanto o gradualismo na adoção das mudanças preconizadas pelo Código, quanto a exposição do conteúdo substantivo das mesmas a injunções dos interesses corporativos afetos à questão. O segundo consiste na retração dos investimentos na expansão do sistema, refletindo a conduta defensiva do capital face a mudanças nas regras do jogo que influenciam, de forma decisiva, o conjunto de oportunidades e constrangimentos referentes à alocação de recursos na área. Essas dificuldades enfrentadas na instauração de um Estado regulador de recorte moderno nas atividades elétricas, por sua vez, trazem à cena o risco de estrangulamentos no suprimento energético, o que não só abre espaço como estimula a organização de empresas públicas de eletricidade, cuja resultante será a formação de um esboço de Estado empresário no setor. 1. A organização dos serviços de eletricidade e o caráter descentralizado da regulamentação da atividade Iniciada no último quartil do século XIX, a implantação de sistemas de geração e distribuição de energia elétrica no país se acelera ao longo das primeiras décadas do século XX. O número de unidades geradoras e o universo de localidades atendidas com serviços regulares de eletrificação se multiplicam, 97 num movimento estreitamente vinculado à dinâmica dos processos de urbanização e crescimento industrial que se esboçavam à época (Lima, 1984; Corsi, 1996; Lorenzo, 1997). Refletindo essa articulação, a maior parte das centrais elétricas instaladas tende a se concentrar nos estados do Rio de Janeiro e, principalmente, de São Paulo. A forma como se estruturam os arranjos produtivos e organizacionais da atividade espelha escolhas racionais dos agentes econômicos à luz das oportunidades e constrangimentos do contexto, numa dinâmica típica de mercado. Sob a ótica técnico-produtiva, delineia-se no período a opção pela fonte hidráulica, que irá se transformar, desde então, num traço marcante da matriz energética brasileira. O predomínio das fontes térmicas ao final do século XIX será completamente revertido nas primeiras décadas do século XX, com as centrais hidrelétricas tornando-se responsáveis pela quase totalidade da produção (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Müller, 1995). Abundância de recursos hídricos e facilidades de acesso a tecnologias de geração hidráulica já consolidadas nos países capitalistas centrais sinalizavam na direção da hidreletricidade como alternativa econômica mais eficiente no tocante aos investimentos produtivos do setor, com a solução térmica prevalecendo basicamente em situações onde o potencial hidráulico revelava-se modesto ou, o que é mais recorrente, de aproveitamento complexo ou oneroso (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Ao mesmo tempo em que a dispersa e abundante dotação de recursos hídricos imprime um direcionamento técnico no sentido da hidreletricidade, a presença de um mercado consumidor relativamente restrito e pulverizado apontava para a conformação de uma estrutura produtiva fragmentada, organizada em base local ou microrregional. A fase inicial de constituição do sistema elétrico brasileiro tende a se caracterizar, assim, pela criação de expressivo número de empresas energéticas verticalmente integradas, com atuação simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e distribuição. Esse formato organizacional, contudo, não pode ser interpretado 98 apenas e tão somente em função de imperativos de racionalidade econômica, mas como efeito de condicionantes de ordem institucional. A propósito da questão, cabe registrar que os arranjos organizacionais e produtivos do setor foram construídos num contexto institucional marcado pela fluidez e diversidade regulatória, refletindo a conjugação de dois aspectos principais. O primeiro refere-se ao fato de o aparato jurídico-legal para lidar com o ordenamento e controle da atividade surgir em concomitância com a própria emergência da atividade como um novo campo de valorização para o capital. O segundo tem a ver com a descentralização político-administrativa do país no período, que assegurava ampla autonomia decisória aos estados e municípios frente à União no tocante à concessão e gerenciamento da exploração de serviços de utilidade pública, entre os quais os “nascentes” serviços de eletrificação. Durante a vigência da denominada “Primeira República” ou “República Velha”, que se estende da última década do século XIX aos anos trinta, o papel do Estado no campo sócio-econômico será pautado por postura nãointervencionista, consoante a concepção liberal da Constituição de 189120. Conforme Nogueira (1998), a “organização política prevalecente no período (...) estava cortada por um liberalismo mais negativo e defensivo, que obviamente não se dedicava à prestação de serviços ou a maiores esforços de coordenação, pouco dependendo, assim, de aparatos administrativos mais consistentes” (1998: 90). Isto se aplica, em particular, ao ordenamento das atividades de geração e comercialização de energia. Inspirada em princípios de direito comum, a legislação que irá reger a exploração de tais serviços orienta-se no sentido de convalidar “um regime meramente contratual entre os concessionários e os poderes concedentes” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990: 13), concentrados nas instâncias administrativas locais e regionais. 20 A atuação do governo centrava-se na gestão das principais variáveis macroeconômicas, salientando-se a preocupação com a estabilidade cambial, o equilíbrio das finanças públicas e a garantia de remuneração ou retorno econômico das atividades produtivas relacionadas ao setor externo ( Lima, 1984; Corsi, 1996, Ianni, 1977; Draibe, 1985) 99 A despeito da percepção do papel estratégico assumido pela produção e uso de energia elétrica ter motivado, na transição para o século XX, iniciativas da União voltadas ao ordenamento e controle da atividade, pouco se avançou nesta direção sob a ordem liberal e federativa prevalecente na Primeira República. Dentre tais iniciativas, a de maior relevância foi, sem dúvida, a tentativa de instituir uma regulamentação federal sobre a matéria, consubstanciada na elaboração do Código de Águas da República (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1990). Referenciado na “legislação européia, principalmente a francesa e a italiana, sobre a propriedade e o aproveitamento das águas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990: 18), o projeto de estatuto legal trazia, como principais inovações, o instrumento da desapropriação das correntes fluviais, quando necessária à prestação de serviços de utilidade pública, e a ampliação do domínio público sobre os recursos hídricos. A primeira atenuava os constrangimentos derivados do direito de acessão21, consagrado pela Constituição de 1891, à instalação de usinas geradoras em águas sob domínio privado, enquanto a segunda aprofundava o controle estatal sobre a utilização dos mananciais hídricos, junto com uma presença mais incisiva da União no tratamento da matéria. São inovações que não interessavam aos grandes proprietários de terra nem às instâncias administrativas subnacionais, o que dificultava em muito as possibilidades de obtenção de sucesso na busca do apoio político necessário à aprovação no Congresso. Encaminhado em 1907 à apreciação do Legislativo, a proposta de codificação irá passar por várias legislaturas sem sequer entrar na pauta de votação (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1990). Como se verá mais à frente, somente após as mudanças políticas catalisadas pela Revolução de 30 é que “a regulamentação e o controle das atividades de energia elétrica impuseram-se definitivamente no quadro das funções da União” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990: 14). 21 A Carta Constitucional de 1891 consagrava o direito de acessão, incorporando ao direito de propriedade do solo as riquezas do subsolo, os cursos e as quedas d’água (Lima, 1984). Assim, ao adquirirem as terras circundantes aos cursos ou quedas d’água, as empresas concessionárias passavam a dispor de autonomia decisória sobre o uso do recurso hídrico, incluindo o aproveitamento da força hidráulica. 100 Sem êxito na tentativa de definir regras mais abrangente e padronizadas para o disciplinamento das atividades do setor, que esbarra numa correlação de forças políticas desfavorável à sua implementação, o campo da ação regulatória do poder central, durante a República Velha, tende a ficar restrito, em essência, à produção e uso de energia elétrica associada a serviços públicos sob responsabilidade direta da União22. A regulamentação da matéria se fez através do Decreto no 5.407, de dezembro de 1904, que estabelece regras para a concessão de aproveitamentos hidrelétricos vinculados ao suprimento da demanda de energia da administração federal, e do Decreto nº. 5.642, de agosto do ano seguinte, autorizando “isenções de direitos, direito de desapropriação de terrenos e benfeitorias indispensáveis às instalações e execução dos serviços” (Schwartzman, 1982: 588) necessários à construção de tais empreendimentos. No entanto, o quadro de um vazio institucional relativo ao tratamento da questão – à exceção do Rio de Janeiro, nenhum estado da federação desenvolve esforços no sentido da definição de legislação específica regulamentando a atividade dentro de seus territórios (Schwartzman, 1982; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1990) -, os contratos de concessão, previstos no decreto federal, acabam por se constituir, na prática, o instrumento básico de ordenamento do sistema elétrico brasileiro. Representam, por default, o elemento central na conformação da natureza e “regime de exploração dos serviços de eletricidade” (Lima,1984: 16) em todo o território nacional, até meados dos anos trinta. Em síntese, sob a égide do federalismo prevalecente na República Velha, a concessão dos serviços de eletricidade escapa ao campo decisório da União, que apenas esporadicamente atua como poder concedente (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990), para ser endereçada à esfera administrativa dos estados e municípios. Sem uma demarcação mais clara de competências, estabelece-se uma espécie de “divisão de trabalho” em que os governos estaduais tendem a exercer, de forma quase que exclusiva, o papel de poder concedente 22 em matéria de aproveitamentos Conforme prescrito na Lei nº 1.145, de dezembro de 1903. 101 hidrelétricos e, por consequência, o disciplinamento das atividades de produção, enquanto os municípios assumem a concessão da prestação dos serviços de distribuição, tornando-se responsáveis, na prática, pelo controle sobre a comercialização final da energia (Lima, 1984; Mielnik e Neves, 1988; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990). A resultante global consiste na ausência de padronização de princípios e critérios para o exercício da função regulatória, numa situação em que cada contrato de concessão tende a encerrar, em si mesmo, o regime de ordenamento da atividade. 1.1 Capital nacional e externo na exploração dos serviços de eletricidade O fato de a prestação dos serviços de eletricidade se estruturar primariamente em bases municipais desempenha papel decisivo na conformação inicial dos arranjos organizacionais e produtivos do setor. De um lado, abre espaço para a criação de expressivo número de agentes operando na área, já que a entrada na atividade se dá através de um processo descentralizado de negociação com as municipalidades. De outro, contribui para a diversidade de perfis produtivos destes mesmos agentes, refletindo tanto o tamanho e a densidade diferenciadas das áreas de mercado, quanto a ausência de regras e critérios padronizados no disciplinamento da prestação do serviço – contexto onde se incluem aspectos como prazos de concessão e procedimentos ou critérios para a fixação de tarifas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Sob características predominantemente rurais, a sociedade brasileira já apresentava, nas primeiras décadas do século, um ensaio de urbanização e produção industrial capaz de viabilizar um processo sustentado de crescimento do consumo de energia elétrica. Tanto pelo lado da geração quanto da comercialização existiam perspectivas favoráveis de negócio para a iniciativa privada. A percepção de tais oportunidades irá atrair não apenas o interesse do capital nacional, mas também do capital externo. O primeiro tende a se orientar na direção da montagem de sistemas elétricos para o atendimento de centros 102 urbanos de pequeno a médio porte, menos exigentes no tocante à mobilização de recursos, enquanto o segundo concentra a atenção nos centros urbanos com maior potencial de retorno econômico. Numa dinâmica típica de mercado, a inserção do capital nacional nas atividades elétricas se inscreve numa estratégia de diversificação produtiva adotada por um empresariado em formação no país, atento a novas e rentáveis alternativas de investimento. De um lado, a dimensão pouco expressiva da demanda – o uso da energia vincula-se, em essência, à iluminação pública e ao consumo de pequenas indústrias manufatureiras em mercados de configuração local – atuava no sentido de rebaixar os custos de implantação e operação dos sistemas de geração e distribuição de eletricidade, facilitando a entrada no negócio. De outro, a margem relativamente reduzida dos riscos e incertezas na prestação do serviço, assegurada por contratos de concessão com longos prazos de vigência, aumentava a atratividade da atividade e, por extensão, estimulava a aplicação de recursos na área. A influência conjunta desses fatores põe em marcha um processo relativamente abrangente de formação de empresas energéticas de âmbito municipal, organizadas por iniciativa de empresários vinculados a diferentes segmentos da economia (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), num movimento que se reveste de maior intensidade em São Paulo, espelhando o dinamismo e pujança do desenvolvimento sócioeconômico regional, puxado pela expansão da cafeicultura (Perissinotto, 1997; Versiani, 1996; Negri, 1996; Magalhães, 2000). Assim é que, ao final da primeira década do século, o estado já contava com expressivo número de cidades “regularmente atendidas por empresas de energia elétrica” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 45), destacando-se frente ao restante do país. A entrada do capital internacional na atividade se dá à mesma época e pode ser entendida à luz da confluência de circunstâncias históricas específicas dos ambientes externo e interno. No primeiro, a consolidação da indústria energética e o acirramento da concorrência nos mercados das economias capitalistas centrais (Lorenzo, 1997; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 103 1988) estimulavam a internacionalização dos investimentos produtivos na área, tendo como resultado a inclusão das economias periféricas na rota de um capital em busca de alternativas de valoração (Szmrecsányi e Suzigan, 1996). No segundo, as oportunidades econômicas proporcionadas por centros urbanos de maior porte, onde se destacam as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, conjugadas ao tratamento favorável a investimentos externos assegurado pela política pública, funcionavam como fatores de atração do interesse de investidores internacionais (Lima, 1985; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Corsi, 1996). Sob a égide de uma orientação liberal, a intervenção governamental no campo econômico buscava, em essência, favorecer a dinâmica de acumulação de capital no país através do apoio à iniciativa privada23. No que concerne ao setor elétrico, sua atuação pautava-se principalmente pela garantia de taxas de retorno atraentes (Baer, 1995; Vilela e Suzigan, 1975), através da possibilidade de utilização da denominada “cláusula-ouro”24 na fixação das tarifas. A trajetória do grupo Light pode ser tomada como emblemática do processo de inserção do capital externo no sistema, e se inicia com a constituição, no Canadá, da São Paulo Traction, Light and Power Company Limited - mais tarde, São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited -, com propósitos de explorar não apenas a produção e comercialização de energia elétrica, mas também a implantação e operação de transporte urbano, serviços telegráficos e telefonia no território brasileiro. Cabe observar que a atuação simultânea em outros serviços de utilidade pública constituía um traço recorrente das empresas organizadas à época pelo capital estrangeiro para atuar na área energética, dentro de uma estratégia em que se buscava compensar, através da diversificação produtiva, os constrangimentos econômicos decorrentes do tamanho relativamente reduzido das áreas de mercado. Criada ao final do século XIX, a empresa recebe autorização para funcionar no país em 1899, por decreto 23 Entre outras ações, “ o Estado (...) concedia privilégios, fazia concessões especiais para a administração de ferrovias e portos, assegurava o fornecimento de materiais e garantia o pagamento de juros (Faoro, 1975: 206)”. 24 Pelo critério da cláusula-ouro, as concessionárias de capital externo podiam reajustar as tarifas de energia com base nas variações cambiais. 104 da Presidência da República, obtendo, pouco depois, concessão para prestar serviços de eletrificação na capital paulista (Müller, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Apoiando-se na adoção de uma política empresarial agressiva, o grupo canadense irá assumir, num curto espaço de tempo, o monopólio do fornecimento de energia e da exploração dos serviços de bondes elétricos da cidade, deslocando empresas concorrentes (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), através da aquisição de suas concessões e controle acionário. Com posição consolidada em São Paulo, a Light parte para a captura do mercado do Rio de Janeiro, então capital federal e principal centro urbano nacional, organizando, para tanto, uma segunda subsidiária no país, a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited. Autorizada a funcionar em 1905, a nova empresa adota estratégia similar àquela praticada pela subsidiária paulista, isto é, o avanço sobre a concorrência. Em pouco tempo, assume o controle monopolístico não apenas das atividades de eletrificação, mas também da distribuição de gás da cidade, absorvendo a concessionária de tais serviços – a Societé Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, de capital belga (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, além de obter, do poder público, concessão para atuar na área de transporte urbano e telefonia. Assim, sob o impulso das oportunidades econômicas proporcionadas pela implantação e operação de serviços de iluminação pública e transporte urbano nas principais cidades brasileiras, bem como pelo atendimento a uma incipiente demanda industrial, toma forma, ao longo da primeira década do século XX, o esboço de um setor elétrico de configuração dual no país. De um lado, constitui-se expressivo número de pequenas empresas energéticas eminentemente locais, controladas por capital nacional. De outro, surgem algumas poucas empresas de maior porte, com predominância de capital externo, centradas nas áreas urbanas de maior densidade e com melhor potencial de crescimento. Esse desenho organizacional embrionário que é, vale ressaltar, fruto de uma dinâmica de mercado onde não existem barreiras relevantes à entrada na 105 atividade, irá adquirir contornos mais nítidos ao longo da década seguinte, quando se processa um duplo movimento: a aceleração do ritmo de formação de novas empresas de âmbito local e a conformação de tendência à concentração e à centralização de capital no setor, com a estruturação de empresas de âmbito microrregional. 1.2 Expansão horizontal e concentração de capital: crescimento e diferenciação das empresas energéticas Durante os anos que antecedem à Primeira Guerra Mundial e, especialmente, a partir dela, o ritmo de expansão da demanda de energia elétrica se acelera, com desdobramentos similares sobre a estrutura de prestação do serviço. Tal processo guarda estreita relação com a dinâmica das transformações na base material dos processos sócio-econômicos então experimentados pelo país, associadas, por sua vez, ao progressivo avanço dos movimentos de urbanização e da produção industrial. De um lado, a incorporação de inovações tecnológicas nas atividades econômicas, decorrente do uso crescente da mecanização e da renovação do aparelho produtivo, em combinação com mudanças nos padrões de consumo, catalisadas pela modernização da vida urbana, contribuem para a intensificação do uso da eletricidade (Lorenzo, 1997). De outro, a emergência de novos núcleos urbanos e a ampliação dos já existentes, conjugadas ao alargamento do parque manufatureiro, atuam no sentido do adensamento e crescimento extensivo das áreas de mercado. As oportunidades de negócio abertas pela expansão da demanda de eletricidade não apenas estimulam a entrada de novos agentes na atividade, como fomentam mudanças nos arranjos organizacionais e produtivos do setor. Na primeira vertente, há uma rápida multiplicação do número de empresas concessionárias de âmbito local, com a implantação de sistemas elétricos num conjunto ampliado de cidades brasileiras, principalmente na Região Centro-Sul, com destaque para o interior de São Paulo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). Na segunda, delineia-se um incipiente movimento 106 de concentração e centralização de capital, com a formação de empresas de âmbito microrregional. Por suas características de produção com rendimentos crescentes de escala, os serviços de eletricidade constituem aquilo que a literatura econômica designa como “monopólio natural”, isto é, segmentos produtivos com forte tendência à concentração de capital. A trajetória percorrida pelo desenvolvimento setorial em diversos países da Europa Ocidental e, especialmente, nos Estados Unidos, ilustra bem o processo (Chandler, 1990). A expansão das estruturas de mercado ou, mais precisamente, das áreas de concessão para a prestação do serviço revelava-se, portanto, uma espécie de caminho natural para o aumento da eficiência operacional e, por extensão, da rentabilidade ou lucratividade das empresas atuantes na área. Apesar de recente e pouco estruturado, o sistema elétrico brasileiro começa a avançar nessa direção já em meados da segunda década do século XX, quando se inicia um redesenho dos arranjos organizacionais e produtivos do setor, fundado na centralização empresarial. Numa circunstância em que as regras do jogo prevalecentes impunham a municipalização da atividade, qualquer iniciativa no sentido da ampliação das áreas de atuação das empresas - condição para a aceleração do ritmo de crescimento da receita operacional e para o aproveitamento de ganhos de escala -, passava pela obtenção do controle da concessão da exploração do serviço em cidades circunvizinhas. Abriam-se, aqui, dois caminhos ou variantes, não mutuamente exclusivos, passíveis de serem seguidos pelas empresas. O primeiro se fundamentava no progressivo alargamento de seu sistema, com a extensão de sua rede de transmissão e distribuição para municípios contíguos, numa dinâmica de criação e ocupação de novos mercados. O segundo, na aquisição do controle acionário e incorporação de empresas já instaladas, com a integração e fusão de mercados (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 107 A forma como o processo se desenrola e os resultados dele decorrentes refletem a prevalência de uma dinâmica típica de mercado. De um lado, o estado de São Paulo, em rápido movimento de adensamento urbano25 e diversificação econômica (Cano, 1977; Negri, 1996; Lorenzo, 1997) tende a se constituir no locus principal da transição de sistemas estritamente locais para sistemas de âmbito regional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). De outro, a capacidade de mobilização de recursos das empresas atuantes na área, na ausência da ação coordenadora e disciplinadora da instância pública, acaba por se constituir na variável central do rearranjo organizacional e produtivo em curso, funcionando, ao mesmo tempo, como potencial e restrição na disputa pelo controle de posições estratégicas no mercado. Refletindo um balanço de forças que pendia favoravelmente às empresas de capital externo vis-à-vis as de capital nacional, o grupo Light será o protagonista das principais ações de concentração produtiva do período, consolidando-se, desde então, como a mais importante concessionária dos serviços de eletricidade do país. Com atividades sedimentadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, a Light estende suas ações para o interior paulista, organizando para tanto uma nova subsidiária, a São Paulo Eletric Company Limited, criada formalmente em 1911. No ano seguinte, será constituída a holding do grupo - a Brazilian Traction, Light and Power Limited (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) – com o intuito de coordenar operações e planos de investimento cada vez mais ambiciosos e complexos. São iniciativas que se encaixam dentro de uma estratégia corporativa com propósitos bem definidos - a captura de um mercado de âmbito regional, aglutinando municípios do eixo Rio-São Paulo -, para se afirmar como líder do sistema. Tal controle revelava-se crucial para a empresa não apenas por potencializar o crescimento sustentado de suas atividades mas, o que é mais importante, por favorecer a racionalização e o aumento de sua 25 O crescimento da população em cidades com mais de trinta mil habitantes no estado de São Paulo é cerca de 7.400% entre 1872 e 1920 (Lorenzo, 1997). 108 eficiência alocativa e operacional, através da apropriação de ganhos de escala na atividade geradora, como evidenciado na cronologia de seus investimentos produtivos. De um lado, abre espaço para o melhor aproveitamento do sistema implantado, através da gradativa ampliação da potência instalada de plantas hidrelétricas já construídas. Assim, a usina Edgard de Souza, inaugurada em 1901 para atender ao mercado da cidade de São Paulo, recebe novas unidades geradoras saltando dos 2 MW de potência originais para 16 MW em 1916. O mesmo se passa com a usina de Fontes, inaugurada em 1908 com vistas ao suprimento da cidade do Rio de Janeiro, cuja produção passa de 24 MW para cerca de cerca de 45 MW em 1913. De outro lado, viabiliza a construção de projetos de maior porte, portadores de melhor relação custo/benefício. É suficiente salientar, a esse respeito, que o primeiro empreendimento hidrelétrico projetado e construído pela São Paulo Eletric Company Limited – a usina de Itupiranga -, que entra em operação em 1914, parte de uma produção inicial da ordem de 37,5 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Estímulos econômicos induzem também a expansão das atividades produtivas de empresas controladas pelo capital nacional, que avançam no sentido de crescente interiorização dos serviços, fomentando a integração horizontal e vertical do sistema. Uma das principais frentes desse movimento guarda relação com o surto de desenvolvimento da economia paulista, decorrente da expansão das lavouras exportadoras de café (Cano, 1977; Negri, 1996). No rastro das oportunidades potencializadas pelo complexo cafeeiro, é desencadeada uma série de arranjos operacionais e organizacionais em prol da apropriação de ganhos de escala, tendo como face mais visível e principal motor a aquisição e fusão de pequenas concessionárias de caráter local. São ilustrativas do processo as trajetórias percorridas por empresas como a Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL e a Empresa de Eletricidade de São Paulo e Rio, que chegam ao limiar dos anos vinte controlando extensas áreas de mercado. Ainda que menos expressivos, processos similares tendem a ocorrer no Rio de Janeiro, onde a Companhia Brasileira de Energia Elétrica – CBEE passa a concentrar a 109 prestação do serviço nas principais cidades do estado não atendidas pela Light, e em outras unidades da federação, caso de Minas Gerais, onde a CME e a Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina assumem características de empresas de âmbito microrregional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 1.3 Aprofundamento do movimento de oligopolização e consolidação da hegemonia do capital externo no setor A intensificação do ritmo de crescimento urbano-industrial do país nos anos vinte, puxada pela expansão e diversificação da economia de São Paulo (Suzigan, 1986; Lorenzo, 1997; Negri, 1996; Cano, 1977), implica o aumento da pressão sobre os serviços de eletricidade, criando novas e ampliadas oportunidades para a alocação de recursos na área. Tal processo traz, como subproduto, um aprofundamento das transformações organizacionais e produtivas ensaiadas pelo setor ao longo da década anterior. A tendência à concentração e centralização empresarial ganha contornos mais incisivos, sofrendo uma inflexão no sentido da formação de um duopólio, sob domínio do capital externo. Por sua vez, a rápida ampliação da demanda e o movimento de integração produtiva se combinam para induzir avanços, ainda que parciais, na direção de plantas geradoras de maior porte, viabilizando a adoção de padrões tecnológicos mais modernos e a concomitante apropriação de ganhos de escala. Pela posição estratégica que já conquistara no mercado brasileiro, a Light se credencia como um dos principais beneficiários do crescimento acelerado do consumo de energia elétrica ocorrido no período. Aproveitando as oportunidades abertas pela expansão da demanda (Lorenzo, 1997, Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995), a empresa adota uma estratégia voltada à consolidação de seu domínio sobre o mercado do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, intensificando a aquisição e incorporação de concessionárias locais e microrregionais estabelecidas na área. Numa ação bem sucedida, que não se defronta com nenhum tipo de barreira regulatória capaz de dificultar ou impedir 110 suas iniciativas com vistas à concentração da propriedade, passa a controlar, ao final da década de vinte, a prestação do serviço na quase totalidade das cidades situadas na região do Vale do Paraíba, tanto em território paulista quanto fluminense. Em outras palavras, a área mais dinâmica e de maior potencial de desenvolvimento econômico-social do país à época (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) se transforma rapidamente em monopólio da empresa. Essa integração de mercado promovida pela Light, através da ação coordenada de suas subsidiárias, irá viabilizar um novo salto no padrão tecnológico e na escala de seus projetos produtivos, traduzido no aumento do porte dos novos empreendimentos hidrelétricos lançados pela empresa. As usinas de Cubatão ou Henry Borden, com potência inicial de 56 MW, e dos Pombos, com 73 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), ambas passíveis de ampliação, são evidência do processo. Construídas em meados dos anos vinte, representam um marco na trajetória do desenvolvimento do setor elétrico brasileiro, sinalizando uma transição no perfil técnico dos investimentos em geração. Em termos mais específicos, o “tamanho ótimo” das centrais hidrelétricas tende a se deslocar da faixa de 10 a 50 MW - “inaugurado” pela própria Light com a usina de Itupiranga -, para a faixa de 50 a 150 MW, possibilitando expressivos ganhos de eficiência econômica, na forma de rebaixamento do custo médio da energia gerada. Isto se faz acompanhar de movimento no sentido de um relativo descolamento espacial entre produção e consumo de energia, implicando a concomitante reconfiguração dos investimentos em transmissão, que apontam na direção de linhas de média distância, viabilizadas, por sua vez, pelos avanços tecnológicos consubstanciados na descoberta e aplicação da corrente alternada (Rosa et al, 1988). Os impactos do rápido incremento do consumo de eletricidade não se restringem às atividades do grupo Light, que estrutura um sistema de âmbito regional, recobrindo o eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Num processo autônomo e descentralizado, consoante a dinâmica de mercado, “o movimento de expansão e 111 centralização dos grupos nacionais (...) de energia elétrica” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 60), que se iniciara timidamente na década anterior, adquire maior velocidade e consistência, resultando na aceleração dos rearranjos organizacionais e produtivos do setor. Como anteriormente, o fenômeno reveste-se de maior intensidade no interior de São Paulo, refletindo a estreita conexão espacial entre a expansão da atividade e o processo de desenvolvimento urbano-industrial. Sem barreiras institucionais relevantes à concentração de capital, algumas empresas atuantes na área, como a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e a Companhia Força e Luz de Ribeirão Preto, aproveitam-se de sua maior solidez econômico-financeira para adquirir e incorporar concessionárias de menor porte, assumindo configuração regional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). Esse crescimento dos grupos nacionais, contudo, será não apenas estancado mas revertido nos anos finais da década de vinte, com a entrada de um novo e forte concorrente, a Amforp, pertencente ao grupo Bond and Share. Atuando desde o início do século em diversas nações da América Latina, a empresa americana decide colocar o Brasil na rota de suas operações, atraída pela percepção de oportunidades de negócio proporcionadas por uma economia já razoavelmente estruturada e com perspectivas favoráveis de crescimento. O caráter relativamente “tardio” dessa decisão, contudo, irá influenciar não só a estratégia que adota, mas a forma como organiza suas atividades no país. O primeiro aspecto se traduz na aquisição e fusão de empresas já existentes como caminho mais rápido para a penetração no setor e a captura de mercados capazes de assegurar margens satisfatórias de retorno econômico aos investimentos. O segundo, na constituição de uma estrutura organizacional formada por uma rede de concessionárias sob o controle de uma holding, num ajuste entre suas operações e o caráter espacialmente disperso das áreas onde passa a atuar. De fato, ao voltar sua atenção para o país, o grupo Bond and Share se defronta com o monopólio da Light no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e os demais 112 mercados com melhor potencial econômico repartidos por um amplo e heterogêneo conjunto de empresas pertencentes, em sua ampla maioria, ao capital nacional. A inserção no setor, em tais circunstâncias, passava necessariamente pela compra do controle acionário de concessionárias preexistentes e sua reaglutinação em novas empresas. Assim, concentrando suas ações no interior paulista e capitais de estados não atendidas pela Light – áreas com perspectivas relativamente favoráveis de retorno e à margem da concorrência da principal empresa estabelecida na atividade -, a Amforp irá promover, no limiar dos anos trinta, um vigoroso movimento de concentração empresarial no setor. Dado o primeiro passo nessa direção com a aquisição, em 1927, do controle acionário da CPFL, num curto espaço de tempo organiza subsidiárias em diversas partes do território nacional, numa extensa faixa que vai do Sul ao Nordeste (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). No entanto, em contraste com a estratégia empresarial seguida pela Light, a expansão do grupo Bond and Share se faz principalmente de forma horizontal, não implicando avanços expressivos no sentido da verticalização organizacional e produtiva. Apesar de relativamente amplas, as áreas de mercado que se tornam concessão da empresa26 caracterizavam-se pela dispersão espacial, criando constrangimentos técnicos e econômicos à interligação operacional na prestação do serviço. A possíveis ganhos de eficiência na atividade geradora, fundados no aumento do porte dos empreendimentos hidrelétricos, contrapunham-se acréscimos nos custos e perdas de energia na transmissão, em função do alargamento das distâncias entre produção e consumo, estreitando as oportunidades abertas à integração sistêmica. Destas dificuldades interpostas à centralização empresarial irá resultar um desenho 26 As áreas de mercado sob concessão da Amforp incluíam diversas capitais estaduais, como Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte e Vitória. 113 organizacional fragmentado, composto por expressivo número de subsidiárias de âmbito regional, operando sistemas isolados, como “ilhas elétricas” (Rodrigues e Dias, 1993). Para coordená-las, será constituída uma holding, as Empresas Elétricas Brasileiras (EEB), mais tarde transformada em Companhia Auxiliar de Empresas de Energia Elétrica (CAEEB) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Num ambiente onde o Estado adota uma postura não intervencionista, a ação da Bond and Share, por sua contundência, irá repercutir na própria trajetória de desenvolvimento do setor. De um lado, acelera e aprofunda a tendência à oligopolização, impulsionando-a no sentido da formação de um duopólio. De outro, imprime orientação objetiva às mudanças no regime de propriedade em curso na área, acentuando, numa escala sem precedentes, a hegemonia do capital externo sobre o capital nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1984). O estado de São Paulo ilustra bem o processo de concentração empresarial e correlata derrocada do capital nacional frente ao capital externo ocorrida no período: ao final da década de vinte, cerca de 90% da produção estadual de energia elétrica estava nas mãos de Light e Amforp (Lorenzo, 1997), com a fração restante distribuindo-se por pequenas concessionárias de âmbito local e microrregional. Sem condições técnicoeconômicas de resistir ao acirramento da concorrência, os principais grupos nacionais com atuação no território paulista foram rapidamente deslocados do setor. O quadro não é muito diferente nas demais unidades da federação: “em 1930, praticamente todas as áreas mais desenvolvidas do país e também aquelas que apresentavam maiores possibilidades de desenvolvimento haviam caído (...) sob o virtual monopólio das duas grandes empresas estrangeiras” (Centro da Memória da Eletricidadade no Brasil, 1988: 65). Num resultado característico da alocação de recursos através do mercado, onde prevalece uma lógica decisória voltada ao lucro, apenas áreas sem potencial relevante de retorno econômico para o grande capital, em especial aquelas localizadas em espaços mais isolados 114 dos estados das regiões Norte/Nordeste, tendem a ficar à margem da atuação da Light e Amforp. Ao mesmo tempo que afasta investimentos das grandes empresas, a natureza dispersa e, consequentemente, a baixa densidade sócio-econômica dos espaços periféricos favorece a proliferação de agentes nas atividades do setor. Assim, ao lado da Light, Amforp e de algumas poucas empresas de porte microrregional, organiza-se no país um expressivo contigente de pequenas concessionárias elétricas vinculadas a mercados locais. São exatamente essas pequenas empresas locais, atuando em áreas de reduzida margem de retorno, sem estímulo suficiente para atrair o interesse dos grupos de maior poder econômico, o vetor principal da ampliação da cobertura do sistema. De fato, acompanhando a evolução do número de localidades atendidas por serviços de eletricidade, que salta de apenas 24 em 1900, para 1.770 em 1930, o número de concessionárias também cresce de forma exponencial, passando de 11 para 1.009 em igual período. A relação média de apenas 1,5 localidade atendida por concessionária, referente ao ano de 1930 (Quadro 1), sintetiza com nitidez o forte componente de horizontalidade então prevalecente nos interstícios dos mercados das empresas estrangeiras. Defrontando-se com áreas de mercado de tamanho e densidade muito reduzidas, o amplo conjunto de concessionárias locais fica condicionado à montagem de pequenas redes de produção e distribuição. As dificuldades que se colocavam para o aproveitamento de economias de escala e de escopo se traduzem na existência, em 1930, de 1.211 unidades de geração de energia, entre hidrelétricas e térmicas, para 1.770 localidades atendidas (Quadro 1). À exceção da Light e, secundariamente, da Amforp, cujas áreas de mercado permitiam investimentos em empreendimentos de maior porte, os sistemas operados pelas demais empresas se baseavam essencialmente em micro ou pequenas centrais elétricas. Esse resultado fica cristalizado na capacidade 115 Quadro 1 Localidades Atendidas por Serviços de Eletricidade, Número de Empresas Concessionárias, Número de Usinas e Capacidade Instalada de Geração no Brasil - 1900/1930 Especificação 1900 1930 No de Localidades Atendidas 24 1.770 No de Empresas Concessionárias 11 1.009 Total de Usinas Implantadas 11 1.211 Total de Usinas Hidrelétricas 5 708 12,1 778,8 Total da Capacidade Instalada das UHE (MW) 5,5 630,1 Localidades Atendidas/Empresa Concessionária 2,2 1,5 Capacidade Instalada/Empresa Concessionária (MW) 1,1 0,9 Capacidade Instalada Média das UHE (MW) 1,1 1,1 Total da Capacidade Instalada (MW) Fonte: dados básicos: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Panorama do setor de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988. instalada média de geração - apenas 0,9 MW por concessionária no ano de 1930 –, inferior inclusive à média correspondente a 1900, da ordem de 1,1 MW. Em termos específicos da geração hidráulica, a capacidade instalada média das usinas implantadas situava-se em 1,1 MW; mesmo patamar observado em 1900 (Quadro 1). Numa trajetória moldada em processo, as progressivas transformações organizacionais e produtivas do sistema elétrico e, especialmente, o aprofundamento do movimento de oligopolização da atividade a partir da segunda metade dos anos vinte, tendem a subverter , sob a ótica do consumidor ou usuário do serviço, a racionalidade, consistência e legitimidade de um modelo de regulação baseado em contratos de concessão de longa duração atreladas às esferas decisórias dos estados e, principalmente, dos municípios. Em termos mais objetivos, a crescente complexidade do controle e da fiscalização das ações 116 desenvolvidas por empresas operando em escala regional e sem concorrência sinalizava para a necessidade de mudanças nas regras e nos mecanismos de disciplinamento e controle vigentes, sob a responsabilidade de instâncias administrativas sem competência ou poder político para lidar adequadamente com a questão. É ilustrativa da situação a atuação da Light, que utiliza seu poder de monopólio nos dois principais centros urbanos do país para “manipular (...) tarifas, (...) forçar manobras especulativas e, eventualmente, até corromper autoridades e instituições” (Lorenzo, 1997: 177). Conforme relato de Lorenzo, referente à cidade de São Paulo, tais comportamentos, “percebidos pela população e parte da imprensa, (...) eram alvos de muitos problemas e críticas (...) que passaram a fazer parte integrante” (1997: 177) de sua história. A centralização da dinâmica regulatória surge, em tais circunstâncias, como um passo necessário à readequação das regras e mecanismos de controle do setor às características concretas assumidas pelas bases materiais de organização da atividade. Não se tratava, contudo, de um processo de materialização automática, até porque o avanço em tal direção esbarrava nos constrangimentos político-institucionais derivados da diluição de poder subjacente ao federalismo vigente na Primeira República. O encaminhamento da questão estava condicionado, portanto, à introdução de mudanças mais abrangentes na ordem constitucional do país, envolvendo as funções e a distribuição de poder entre os diferentes níveis de governo. Isto irá ocorrer no âmbito do processo reformista deflagrado pela denominada Revolução de 3027, que altera em profundidade a ordem política e institucional vigente (Draibe, 1985; Diniz, 1997; Nogueira, 1998). 27 A Revolução de 30 corresponde, em síntese, ao movimento político-militar que rompeu com a ordem política e institucional da Primeira República, instaurando um governo provisório, sob o comando de Getúlio Vargas. 117 2. A emergência do Estado regulador: a reinstitucionalização do sistema e os efeitos sobre sua dinâmica produtiva Os anos trinta assinalam a abertura de uma nova etapa na trajetória do desenvolvimento do país, marcada por profundas transformações na instância pública e em suas relações com a sociedade. Toma forma no período aquilo que a literatura especializada designa como processo de efetiva organização e consolidação política, jurídica e administrativa do Estado brasileiro moderno (Nogueira, 1998; Draibe, 1985; Perissinoto, 1994; Diniz, 1997). São mudanças sintonizadas com as transformações nas várias dimensões da vida nacional que vinham se desenrolando ao longo das décadas anteriores, puxadas pelos movimentos de urbanização e diversificação da base produtiva. Vale dizer, a crescente diferenciação do tecido social, com a expansão do operariado e dos segmentos médios urbanos, e a emergência de novos interesses econômicos, sobretudo no âmbito da indústria e da prestação de serviços, apontavam para o alargamento das funções do Estado, quer no tocante à expansão e garantia de direitos de cidadania, quer no disciplinamento e correção das imperfeições e falhas do mercado referentes à alocação dos recursos produtivos da sociedade. A face mais visível do processo eram descompassos e desajustes na gestão pública, “opondo o governar ao aparato administrativo e comprometendo toda a performance governamental” (Nogueira, 1998: 89). A reconfiguração do arcabouço jurídico-normativo do país vai ser implementada em conexão com as mudanças no ambiente político-institucional decorrentes da “Revolução de 30”, catalisada, por sua vez, pelas repercussões internas do aprofundamento do ciclo recessivo da economia capitalista mundial ao final dos anos vinte (Baer, 1995; Draibe, 1985, Nogueira, 1998; Corsi, 2000). No rastro da “Crise de 29” 28 , o produto industrial brasileiro sofre um recuo de cerca de 5% em 1930, a importação de bens de capital cai em quase 50% e o déficit fiscal experimenta substancial elevação (Saretta, 1987), sinalizando o colapso de 28 A “Crise de 29” é identificada ao crash da Bolsa de Valores de Nova York, dando a partida para a grave crise econômica das principais economias capitalistas mundiais ocorrida nos anos trinta 118 uma política econômica de recorte liberal ou não-intervencionista seguida, em linhas gerais, pelos vários governos que se sucederam ao longo da Primeira República. Desestabiliza-se, em simultâneo, a hegemonia dos interesses agroexportadores, ancorados em oligarquias regionais, o que abre espaço para uma transição na estrutura do poder, favorável aos interesses urbano-industriais em emergência na sociedade brasileira29. Ao longo do processo, as funções e a estrutura administrativa do Estado serão profundamente alteradas (Draibe, 1985; Corsi, 1996), pari passu à redefinição dos rumos do crescimento econômico do país (Baer, 1995; Ianni, 1977). Sob a ótica institucional, as reformas empreendidas no período se articulam em torno de dois eixos principais que convergem para a efetiva construção das estruturas organizacionais daquilo que se pode chamar de Estado-Nação brasileiro. O primeiro corresponde ao movimento de centralização político-administrativa da atividade governativa, numa ruptura com o acentuado federalismo nas relações entre União, estados e municipalidades vigente na República Velha. Como assinala Draibe, “o Estado seguirá federativo na sua forma, mas os núcleos de poder local e regional serão subordinados cada vez mais ao centro das decisões cruciais” (1980: 60). O segundo tem a ver com a ampliação do intervencionismo estatal em praticamente todas as esferas da vida nacional, em especial no campo econômico (Baer, 1995; Ianni, 1977; Santos, 1963; Corsi, 2000). O Estado não apenas se legitima, mas se capacita para desempenhar papéis relevantes na regulamentação sócio-econômica e no fomento ao crescimento industrial, bem como para atender às crescentes demandas da sociedade, sobretudo dos novos segmentos sociais em formação e expansão nos centros urbanos. 29 Iniciadas ainda nos primeiros anos da administração Getúlio Vargas - designados historicamente como “Governo Provisório” - a concepção geral das transformações estruturais na dinâmica do desenvolvimento sócio-econômico do país somente será sistematizada anos mais tarde, na denominada “Carta de São Lourenço”. Esboço de um plano de ação governamental, onde foram traçadas as diretrizes básicas da política pública, o documento vai assinalar também a explicitação do comprometimento do Estado com os propósitos da promoção da industrialização da economia brasileira. 119 O empenho em promover a centralização do poder e o aumento do intervencionismo estatal irá culminar num amplo processo de reaparelhamento e modernização da administração federal, conduzido “sob fortes impulsos de burocratização e racionalização” (Draibe, 1985: 62). Isto se materializa, de um lado, na organização de um complexo conjunto de institutos, autarquias e conselhos técnicos que passam a desempenhar uma gama variada de funções até então inexistentes ou implementadas de forma incipiente; de outro, na formulação, aprimoramento e consolidação da regulamentação básica para o controle e disciplinamento dos processos sociais e produtivos de maior relevância para a coletividade. A resultante da atividade reformista será a montagem de um novo aparato de regulação e intervenção estatal, introduzindo profundas alterações na natureza e na qualidade dos instrumentos e mecanismos normativos e operacionais herdados da Primeira República (Fausto, 1981; Draibe, 1985; Lima, 1984; Nogueira, 1998). Sob a ótica econômica, o aspecto mais saliente consiste na progressiva reorientação do eixo do desenvolvimento nacional no sentido da industrialização, em detrimento das atividades primário-exportadoras, com rebatimentos conexos na formulação da agenda pública. Embora não existam, na historiografia brasileira, elementos capazes de estabelecer, de forma rigorosa, associação mais imediata entre os motivos que impulsionaram a realização da Revolução de 30 e os interesses de algum grupo hegemônico específico, há, no entanto, razoável consenso entre autores contemporâneos (Corsi, 1996, Baer, 1995; Draibe, 1985) quanto ao realinhamento de forças dela decorrente. Um dos principais pontos de convergência é o reconhecimento da centralidade do esforço industrializante no balizamento da política pública que será implementada pelos novos gestores do poder estatal (Santos, 1987). Como descreve Calabi, “o Estado, fortalecido pela Revolução e agindo de forma centralizada, assume gradativamente as funções de principal industrialização” (1983: 95). 120 articulador do processo de Se é incontestável, o alinhamento da política pública ao esforço de industrialização não se expressa, de imediato, como uma concepção objetiva e sistematizada de estratégia de desenvolvimento nacional perseguida pelo Estado, traduzindo, ao contrário, uma orientação moldada em processo. Em termos mais específicos, pode ser entendido como a resultante de uma forma de atuação onde a agenda pública se ajusta a aspectos conjunturais do ambiente, numa espécie de administração do presente condicionada por injunções de interesses e pressões de diferentes grupos, segmentos ou setores da sociedade nacional (Mendonça, 1990; Corsi, 1996). Assim, num primeiro momento, a ação estatal tende a privilegiar o enfrentamento dos problemas econômicos decorrentes do estrangulamento externo, provocado pela abrupta queda na receita exportadora, que afeta a capacidade de importação do país e o abastecimento do mercado interno. Esse mesmo estrangulamento externo, contudo, tem efeitos indiretos noutra direção, induzindo um movimento autônomo de reestruturação no suprimento da demanda por bens e serviços da sociedade brasileira, notadamente no tocante a produtos manufaturados. Vale dizer, favorecida pela redução circunstancial da concorrência da mercadoria importada, a indústria nacional inicia um ciclo de rápido crescimento, no curso do qual irá emergir como atenuante natural aos efeitos deletérios da desarticulação do comércio exterior e da perda de dinamismo da base exportadora, até então eixo central do processo de acumulação da economia (Negri, 1996; Cano, 1977), contrapondo-se, em particular, ao risco de uma depressão generalizada (Baer, 1995). Com o esvaecimento dos constrangimentos provocados pela variável externa, fruto da recuperação das exportações, o foco da intervenção governamental vai sendo gradativamente reorientado para a construção dos alicerces da industrialização (Nogueira, 1998; Draibe, 1985). Independemente das controvérsias em torno do tema, o compromisso com a promoção do desenvolvimento industrial irá perpassar a política pública como um todo, assumindo contornos objetivos nas reformulações que serão introduzidas nos mercados de fatores de produção, capital e trabalho (Baer, 1995; 121 Corsi, 1996; Calabi, 1983). Como enfatizado por Draibe, a reconfiguração da ação estatal “pós anos trinta afeta todos os interesses da sociedade nacional, mas os contempla assumindo-os na sua natureza concreta, particular e desigual” (1985: 62). Incrustando-se progressivamente num aparato institucional de regulação, controle e intervenção em construção, os interesses relacionados ao setor industrial, seus conflitos e contradições passam a ser metamorfoseados em interesse nacional, para se configurarem em elementos centrais no balizamento da intervenção governamental e das reformas implementadas pelo novo regime. A transição que se processa na forma e no conteúdo da ação estatal implica, em particular, a “ampliação da autoridade pública sobre os recursos considerados estratégicos” (Draibe, 1985: 60) ao desenvolvimento nacional e à industrialização em particular, onde se inclui o potencial hidráulico, com profundas repercussões sobre a geração de energia e prestação dos serviços de eletricidade. O esforço de reconfiguração da institucionalidade do setor elétrico que será empreendido pelo governo, contudo, não traduz um processo harmonioso nem equilibrado, mas gradual e contraditório, além de sujeito a paralisações e retrocessos, numa dinâmica que repercute e acompanha a trajetória mais ampla das reformas implementadas no e pelo Estado. Arranjos administrativos e instrumentos normativos e operacionais vão ser criados, redefinidos e atualizados, expressando a forma específica como os múltiplos interesses direta ou indiretamente afetos à questão, em especial os interesses das grandes concessionárias de energia, seus conflitos e contradições, se materializam nas decisões e ações do poder público. Entra-se aqui num novo estágio, onde os aspectos de maior relevância na moldagem da trajetória evolutiva percorrida pelo setor deixam de ser as ações das empresas no tocante ao aproveitamento das melhores oportunidades de negócio com vistas à maximização de seus lucros e passam a ser as disputas em torno das mudanças nas regras do jogo propostas e implementadas pelo Executivo federal. 122 2.1 A natureza objetiva das mudanças na institucionalidade do setor elétrico propostas nos anos trinta Como observa Draibe, a organização e consolidação de um Estado articulado nacionalmente, que estará no cerne da ação governativa pós trinta, exigia, em particular, um grau consistente de codificação, capaz de assegurar-lhe suporte institucional para “exprimir-se como poder unificado” (1985: 94) sobre a estrutura social e econômica do país. Isto implicava completar, atualizar e padronizar uma legislação dispersa e incipiente, conferindo-lhe formatos e conteúdos sintonizados com as mudanças nas relações de poder e o estágio de modernização alcançado pela sociedade brasileira. A disposição e o compromisso com a implementação das reformas convergem para a criação de comissões legislativas voltadas à elaboração de um novo arcabouço jurídico-normativo para os processos sócio-econômicos de maior abrangência e relevância. Dentre as temáticas tratadas como prioritárias no âmbito desse esforço de ordenamento legal estará o regime de apropriação e uso produtivo das águas, cuja tentativa anterior de codificação, como visto anteriormente, não lograra êxito junto ao Congresso. O contexto em que se dá a reinserção do tema na agenda pública, contudo, é claramente distinto daquele correspondente ao início do século, o que irá requerer uma atualização do conteúdo da proposta original de codificação, tornada obsoleta face às transformações sócio-econômicas ocorridas no país e, especificamente, no desenvolvimento das atividades do setor. De um lado, os avanços tecnológicos, a crescente difusão do uso da eletricidade – cada vez mais central nos processos sociais e produtivos da vida nacional - e a tendência à oligopolização em curso na atividade se combinavam para estimular a estruturação de mecanismos mais rigorosos de fiscalização e controle das empresas atuantes na área, com o intuito de assegurar não só a qualidade dos serviços como proteção aos consumidores, na linha dos processos ocorridos ou em andamento nos países mais industrializados da Europa Ocidental e nos Estados Unidos (Rosa et al. , 1998; Lima, 1995). De outro, a forte prevalência 123 conquistada pela geração hidráulica na matriz energética brasileira conferia ao domínio público sobre os recursos hídricos importância crucial no disciplinamento da indústria de eletricidade. O controle sobre o acesso e uso produtivo das águas, até então parcial e fragmentado entre as diversas esferas de poder políticoadministrativo, constituía instrumento lógico e indispensável para qualquer tentativa mais abrangente de resguardar o interesse público no desenvolvimento da atividade. Sintonizados com os novos tempos, o discurso governamental (Lima, 1985; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) e os trabalhos da subcomissão legislativa encarregada formalmente da elaboração do anteprojeto de codificação sinalizavam para alterações em profundidade no regime de regulação do acesso e aproveitamento produtivo dos recursos hídricos, trazendo como principal inovação exatamente a ênfase conferida à exploração dos serviços de eletricidade frente às demais possibilidades de uso das águas. São mudanças que gravitavam em torno de duas tendências principais, ambas convergindo para o reforço da autoridade estatal no âmbito das atividades do sistema. A primeira delas consiste na padronização e amplificação do controle e fiscalização exercido sobre as operações das concessionárias do setor, onde a questão mais polêmica consistia na definição do papel da União correlativamente aos estados, que colocava em posições divergentes governo federal e subcomissão legislativa. Enquanto o primeiro defendia a plena centralização do poder regulatório, a segunda pendia para um arranjo intermediário, similar ao modelo americano – utilizado como uma das principais referências no desenvolvimento dos trabalhos (Lima Sobrinho, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, com o poder concedente concentrado nos estados e a União se responsabilizando pela arbitragem dos conflitos de interesse na prestação dos serviços (Lima, 1995, depoimento). A segunda expressa a adoção de um enfoque nacionalizante no tratamento da matéria: numa circunstância de acentuada hegemonia do capital externo, produção e distribuição de energia elétrica passaram a ser percebidas e tratadas pelo poder público como estratégicas não 124 só para o desenvolvimento econômico, mas para a segurança e defesa nacional. Tal postura era explícita por parte do governo federal, mas não consensual na subcomissão (Rangel, 1988, depoimento, Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), e refletia uma clara mudança de postura por parte das forças políticas vitoriosas na Revolução de 30, que viam nos recursos naturais, sobretudo nos recursos hídricos e minerais, um patrimônio da Nação, a ser controlado e utilizado em prol do desenvolvimento e bem estar da sociedade brasileira. No entanto, independentemente de qual posição viria a prevalecer, a proposta de codificação que estava em discussão era portadora de uma redefinição radical no ordenamento das atividades do setor. Apesar de manter a exploração dos serviços de eletricidade como campo preferencial da iniciativa privada, introduzia novas regras tanto no segmento de geração, onde restringia a liberdade de ação, discriminando o capital estrangeiro, quanto no segmento de distribuição, onde estabelecia critérios mais rigorosos de proteção ao consumidor, impondo controles rígidos sobre a margem de remuneração ou retorno da atividade. São mudanças decorrentes de uma deliberação autônoma do Estado, motivada pela busca de resultados mais eficientes, sob a ótica social, na prestação do serviço, e que afetavam em profundidade os interesses constituídos do sistema, cujas decisões de investimento, como visto anteriormente, haviam sido tomadas historicamente num contexto institucional de reduzida interferência estatal. Era de se esperar, portanto, que suscitassem reações contrárias de tais interesses, principalmente das grandes empresas estrangeiras. Embora de forma cuidadosa, tanto Light quanto Amforp alinhavam-se entre os principais opositores das reformas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). As tensões políticas em torno do projeto em elaboração e discussão na subcomissão legislativa, sinalizando dificuldades que poderiam comprometer, ainda que parcialmente, a viabilização dos intentos reformistas, vão induzir o governo a adotar medidas acauteladoras no encaminhamento da matéria, o que se traduz na antecipação de decisões com o intuito de evitar desvios de rota no 125 caminho a ser trilhado e de lhe assegurar vantagens nas futuras disputas políticas relacionadas à questão. Assim, em setembro de 1931, é promulgado o DecretoLei nº. 20.395, suspendendo “todos os atos de alienação, oneração, promessa ou começo de alienação ou transferência de qualquer curso perene ou queda d’água” (Lima, 1984: 32). Vale dizer, novas concessões ou transferência de concessões já obtidas por qualquer empresa ficavam condicionadas, a partir de então, à prévia autorização da administração federal. Além de restringir drasticamente a autonomia decisória das empresas no tocante a direitos de propriedade referentes ao acesso e uso produtivo dos potenciais hídricos, o decreto introduz outras importantes modificações em relação ao formato institucional prevalecente. De um lado, o Estado brasileiro assume “de fato, a propriedade e o domínio sobre as riquezas naturais” (Lima, 1995: 21), rompendo com o direito de acessão, numa inovação prenunciadora das novas bases contratuais, fundadas em relações de direito público, que se pretendia introduzir na exploração dos serviços de eletricidade. De outro, a União se afirma como poder concedente dos aproveitamentos hidrelétricos, avançando sobre atribuições até então a cargo dos estados e, circunstancialmente, de municípios, credenciando-se, sob o ponto de vista legal, a exercer o controle sobre a expansão e reorganização interna do setor. A iniciativa governamental não deixa maiores dúvidas a respeito de suas motivações, que remetem, em última instância, a propósitos de redução do grau de imprevisibilidade que tende a caracterizar qualquer reestruturação intencional mais abrangente na ordem institucional de uma dada sociedade (March e Olsen, 1989; Lima Júnior, 1997). A primeira tem a ver com o enraizamento das reformas, numa espécie de “dependência de trajetória” forjada de forma intencional ou deliberada, através da antecipação de mudanças afinadas com o conteúdo objetivo do projeto de codificação em elaboração e que atuavam no sentido de tornar o processo irreversível. Observa-se, a esse respeito, que o decreto governamental se limita a impor, numa escala significativamente ampliada, o domínio público sobre os recursos hídricos, com ênfase nos 126 potenciais hidráulicos, deixando em aberto a definição de princípios, critérios e procedimentos necessários ao desempenho da função regulatória, que só será tratada no âmbito do próprio Código. Em outras palavras, legitima a autoridade do poder central sobre o conjunto dos agentes atuantes na área de geração de energia hidrelétrica, mas não instrumentaliza o exercício desta mesma autoridade. A segunda se expressa no bloqueio da possibilidade de as empresas concessionárias procurarem se antecipar aos futuros constrangimentos advindos do Código, tomando decisões conflitantes com as diretrizes e dispositivos que seriam por ele estabelecidas. Essa linha de interpretação é endossada pela justificativa que embasa a proposição do decreto, onde se salienta a necessidade de o Estado evitar a ocorrência de “operações, reais ou propositadamente simuladas, que dificultem, oportunamente, a aplicação das novas leis o Código de Águas ou frustrem a salva-guarda do interesse do país” (Decreto-Lei nº 20.395). Embora não formalmente explicitada, uma das preocupações centrais do governo federal tem a ver com a contenção da acelerada tendência à concentração e centralização empresarial em curso na área, comandada por Light e Amforp (Saes, 1979; Lima, 1995), como denotam os dispositivos extremamente restritivos à expansão da atuação de grupos ou empresas não-nacionais nas atividades do setor que serão introduzidas, pouco depois, pelo Código. O “congelamento” dos direitos sobre aproveitamentos hidráulicos pode ser visto como uma solução provisória para o descompasso entre o sentido de urgência imbricado na política pública e o timing relativamente lento que tende a caracterizar a dinâmica de mudanças institucionais que envolvem alterações na ordem constitucional. Novo avanço na direção da implementação das reformas setoriais prenunciadas no decreto somente ocorrerá cerca de dois anos após sua edição, com a estruturação de um organismo específico para responder pelas ações do governo federal na área. Essa iniciativa não é isolada, no sentido de não se restringir à atividade, mas se inscreve no âmbito de um movimento mais amplo de (re)organização do aparato estatal de regulação da exploração das riquezas 127 naturais consideradas estratégicas ao desenvolvimento nacional – os recursos hídricos e minerais (Draibe, 1985; Nogueira, 1998). Reforça-se aqui o argumento anterior de que as mudanças na institucionalidade do setor constituem uma deliberação autônoma do governo federal, cuja implementação se faz de forma gradual, em consonância com as transformações que vão se processando no ambiente político-institucional do país em sentido amplo. A competência para tratar da questão foi atribuída à Diretoria de Águas, administrativamente vinculada ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ambos criados em 1933 e inscritos na estrutura ou sistema operacional do Ministério da Agricultura que, por fatores circunstanciais, se colocara à frente do processo30. Essa “inconsistência” organizacional e operativa – energia elétrica e extração mineral escapam, em princípio, ao campo de domínio econômico da agricultura - pode ser lida como expressão dos limites da racionalidade da própria atividade reformista deflagrada pela Revolução de 30 (Draibe, 1985; Nogueira, 1998). Reflete, em particular, não só o caráter incompleto das mudanças mas a forte influência de constrangimentos derivados do ambiente em sentido amplo, que implicam a articulação das estruturas emergentes a arranjos organizacionais pretéritos, numa dinâmica permeada por múltiplas injunções políticas e relações de poder imbricadas na administração pública. Não se trata, necessariamente, de uma opção pela melhor solução, mas pela solução satisfatória, dentro de uma sistemática de aprimoramento progressivo, moldado em processo, onde intervêm múltiplas variáveis, não antecipadas a priori. Criada pelo Decreto nº 23.016, de julho de 1933, a Diretoria de Águas posteriormente transformada em Serviço de Águas – assume a responsabilidade pela implementação da política pública no tocante à “exploração de energia hidráulica, irrigação, concessões e legislação de águas” (Lima, 1984: 33). Tratase, novamente aqui, de iniciativa que se antecipa ao reordenamento mais geral da institucionalidade do setor elétrico, mas sem efeitos práticos imediatos sobre as 30 Juarez Távora, titular do Ministério da Agricultura à época, estava diretamente envolvido nas discussões relacionadas ao Código de Águas e de Mineração, atuando como representante formal do governo no processo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) 128 atividades das empresas atuantes na área. As diretrizes, normas e regras básicas necessárias ao exercício das funções regulatórias atribuídas à Diretoria de Águas somente serão definidas no ano seguinte, com a promulgação do Decreto nº. 24.643, de julho de 1934, instituindo o Código de Águas. 2.2 A transição para a nova institucionalidade do setor elétrico: o Código de Águas Dentro do processo mais geral de reordenamento político-institucional da vida nacional implementado pós Revolução de 30, o anteprojeto do Código de Águas, desenvolvido pela subcomissão legislativa, entra na agenda dos trabalhos da Assembléia Constituinte, instalada em novembro de 193331. No entanto, apesar de objeto de intensos debates, a proposta de codificação estava longe de ser consensual, e dificilmente o poderia ser, à medida que as mudanças preconizadas no regime de concessão e nas regras e procedimentos de controle e fiscalização da prestação dos serviços alteravam em profundidade o conjunto de oportunidades e constrangimentos referentes ao desenvolvimento da atividade, repercutindo sobre as preferências e os interesses dos múltiplos atores afetos à questão, em especial o capital atuante na área. Além da reação mobilizada pelo lobby nada desprezível das grandes concessionárias do sistema, com destaque para a Light, o projeto galvanizava também resistências junto a um amplo e heterogêneo conjunto de forças políticas, que incluía, entre outros, parlamentares contrários ao incremento do intervencionismo estatal na economia (Lima Sobrinho, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). As dificuldades encontradas na aglutinação de uma base sólida de apoio político à aprovação da proposta de codificação acabaram influenciando a 31 Ao assumir o poder, em novembro de 1930, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, nomeando interventores para os governos dos estados. Após dois anos marcados por instabilidade institucional e tensão política, foram convocadas eleições para a Assembléia Constituinte, que, instalada em 1933, concluiu seus trabalhos em 1934. 129 forma de encaminhamento da questão. Em termos mais específicos, procurando escapar aos riscos e incertezas das negociações com e no Congresso, o governo federal aproveita-se de oportunidades proporcionadas pelas condições sistêmicas do que contexto em que opera, mais especificamente, do poder de propor e aprovar leis que a institucionalidade vigente assegurava ao Executivo, para promulgar o Código de Águas por decreto. Além de “agilizar a introdução dos novos princípios reguladores da exploração dos recursos hídricos” (Lima, 1984: 34) – os atos do governo, anteriores à Constituição, estavam isentos de apreciação judicial (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1993) - a adoção desta via processual permitia bloquear ingerências dos vários interesses afetos à matéria no delineamento final do conteúdo do novo estatuto legal. É verdade que a tais ganhos se contrapunham custos de ordem política e institucional, relacionados à legitimidade das mudanças junto ao poder legislativo e à sociedade de um modo geral. No entanto, ainda que intangíveis ou de difícil avaliação, são custos que não se prenunciavam muito elevados, tendo em vista dois traços marcantes na moldagem do desenho institucional expresso pela nova legislação. Primeiro, o esboço de parte substantiva das mudanças institucionais determinadas pelo Código, como visto anteriormente, já havia sido antecipado por decretos governamentais expedidos em concomitância aos trabalhos da subcomissão legislativa. Segundo, as bases jurídicas do novo regime de ordenamento das atividades elétricas, onde se concentravam as principais inovações, vão estar em harmonia com os princípios e diretrizes gerais do texto constitucional que será promulgado pouco depois – a Constituição de 34. Essa convergência se evidencia em aspectos cruciais do esforço de construção institucional empreendido, quais sejam, a ampliação do intervencionismo estatal e a centralização do poder decisório na esfera federal. De fato, ao reforçar as atribuições da administração pública no campo econômico, a Constituição convalida a criação pelo Código de dispositivos e instrumentos mais abrangentes e complexos de supervisão, fiscalização e controle das atividades produtivas do sistema elétrico. Sintonia similar se manifesta na concentração da gestão dos novos mecanismos de regulação na esfera administrativa da União, esvaziando 130 competências anteriores de estados e municípios. Além disso, ambos adotam orientação nacionalista no disciplinamento da apropriação produtiva dos recursos naturais do país, tratados como estratégicos ao desenvolvimento nacional. Referendando o arcabouço geral do anteprojeto desenvolvido no âmbito da subcomissão legislativa, o Código de Águas confere centralidade à geração de energia frente às demais alternativas de uso dos recursos hídricos, como irrigação e navegação, introduzindo, em simultâneo, uma nova concepção de prestação dos serviços elétricos. A percepção da importância estratégica da eletricidade na dinâmica dos processos sociais e produtivos das sociedades contemporâneas32 leva à atribuição de precedência aos interesses nacionais sobre interesses regionais e locais no tocante ao disciplinamento de sua produção e distribuição, reforçando a subsunção dos interesses econômicos dos agentes atuantes na área a considerações de interesse coletivo. Vale dizer, impõe uma reconfiguração na dinâmica de funcionamento do sistema, descolando-o de condicionantes e variáveis locais e regionais para atrelá-lo a condicionantes e variáveis de âmbito nacional, tornando-o, ao mesmo tempo, mais permeável à injunção da política pública. Isto envolve a ampliação da capacidade de coordenação e comando do Estado na área, de um lado, e a redefinição dos parâmetros balizadores da prestação dos serviços de eletricidade, de outro. A ampliação da autoridade estatal no campo das atividades elétricas terá, como fundamento primário, a redefinição do regime jurídico de domínio sobre os recursos hídricos. A acentuada preponderância das fontes hidráulicas como traço marcante da indústria elétrica brasileira fazia, como já mencionado, do controle sobre as mesmas caminho natural para o controle sobre o setor. O fulcro 32 O governo federal já tinha, à época, uma clara percepção da importância de uma padronização das normas de concessão dos aproveitamentos hidrelétricos. A posição de Gustavo Capanema – então Ministro de Educação e Saúde – a esse respeito é bastante esclarecedora. Analisando a inexistência de uma legislação nacional para a regulação dos serviços de eletricidade, afirma que “inúmeros contratos, profundamente lesivos aos interesses da nossa economia e ao bem estar de nosso povo, foram celebrados, por muitos governos Estaduais e Municipais, em quase todo o País, para fornecimento de energia elétrica” (Schwartzman, 1982:589) 131 do processo será a distinção feita pelo Código entre propriedade do solo e propriedade das quedas d’água e outras fontes de geração hídrica. Consolidando a ruptura com o direito de acessão, determinada pelo decreto nº 20.395, anteriormente citado, a nova legislação afirma que “a propriedade superficial não abrange a água, (...) nem a respectiva energia hidráulica, para o efeito de seu aproveitamento industrial” (Decreto nº. 24.643), abrindo espaço para sua incorporação “ao patrimônio da Nação, como patrimônio inalienável e imprescritível” (Decreto nº 24.643). Desdobramento imediato das mudanças, os empreendimentos hidrelétricos passam a ficar compulsoriamente condicionados à necessidade de prévia manifestação do poder público, ampliando numa escala sem precedentes o controle estatal sobre a geração de energia. Em termos operacionais, as fontes hidráulicas de maior relevância econômica – definidas como aquelas com potência geradora superior a 150 kW – vão ser vinculadas ao regime de concessão e as demais ao regime de autorização33. Na normatização da matéria prevalece a posição defendida pelo governo federal quando das discussões no âmbito da subcomissão legislativa, que se traduz na transferência do poder concedente para a esfera da União, consolidando decisão também prenunciada pelo Decreto nº. 20.395. Em sintonia com o redesenho na correlação das forças políticas que se processa pós Revolução de 30, a competência dos estados no tocante a regulação e controle da atividade geradora é drasticamente esvaziada, ficando limitada a aproveitamentos hidráulicos de pequeno a médio porte – definidos como aqueles com potência inferior a 10 MW (Decreto nº. 24.643) -, mesmo assim sob supervisão da administração federal. Tal centralização constitui elemento crucial na moldagem do novo arcabouço regulatório do setor. De um lado, legitima a prevalência da autoridade nacional sobre as instâncias decisórias regionais e locais; de outro, reforça a capacidade de coordenação, comando e controle estatal na relação com as empresas atuantes na área, dando suporte institucional 33 A concessão se aplicava aos aproveitamentos hidráulicos destinados a serviços públicos, enquanto a autorização dizia respeito a aproveitamentos para uso estrito do permissionário (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 132 ao governo para imprimir direcionamentos objetivos à atividade e para desempenhar, com maior eficácia, suas atribuições de zelar pela qualidade dos serviços prestados à sociedade. O maior controle estatal sobre as atividades elétricas encontra aplicação imediata no próprio Código. Numa inflexão radical em relação à flexibilidade assegurada pela sistemática regulatória anterior, o novo estatuo legal limita as autorizações e concessões dos aproveitamentos hidráulicos apenas “a brasileiros ou empresas organizadas no Brasil” (Decreto nº. 24.643), resguardando direitos adquiridos das empresas atuantes na área. As novas regras não apenas introduzem barreiras seletivas à entrada no segmento de geração, discriminando o capital externo, mas, o que é mais importante, bloqueiam, de certa forma, as possibilidades de expansão dos sistemas pertencentes a empresas ou grupos estrangeiros já estabelecidos no setor. Tais restrições ganham contornos ainda mais incisivos com a proposição, por dispositivo do mesmo Código, da criação de lei especial para promover “a nacionalização progressiva das quedas d’água julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar da nação” (Decreto nº. 24.643). Além de afinadas com os princípios nacionalistas presentes na Constituição de 34 – razão mais geral para sua adoção -, são medidas congruentes com os propósitos de contenção e progressiva reversão da tendência à oligopolização em curso na área, comandada por Light e Amforp. As mudanças introduzidas no regime de concessão dos aproveitamentos hidráulicos, por sua vez, fundamentam a definição de princípios, normas e critérios padronizados para o disciplinamento das atividades de distribuição ou comercialização final de energia, pondo fim à diversidade regulatória advinda da estrutura fragmentada do poder concedente até então prevalecente. O Código transfere a competência para fixar o valor das tarifas para o Serviço de Águas (ex-Diretoria de Águas), rompendo com a sistemática anterior, que remetia o tratamento da matéria ao contrato celebrado entre a concessionária e o respectivo poder concedente - estados e, sobretudo, municípios. Além de 133 implicar a perda da autonomia decisória que tais contratos frequentemente asseguravam às empresas, essa medida cria condições para a redução da dispersão dos preços praticados pelo setor, num processo que converge para a imposição de limites normativos à margem de retorno na prestação do serviço. Explicita-se aqui o significado objetivo de “interesse público” subjacente ao esforço reformista comandado pelo governo: a proteção dos consumidores cativos frente ao poder monopolista das concessionárias. Seguindo o modelo adotado pela legislação americana34, critérios rigorosos de fixação de tarifas e mecanismos complexos de monitoramento e fiscalização das atividades elétricas vão ser instituídos com o finalidade de “impedir lucros que não sejam razoáveis” (Decreto nº 24.643). Assim, numa reforma que passa ao largo de qualquer modificação substantiva no arranjo organizacional e produtivo historicamente estabelecido na área, o Código é portador de mudanças radicais nas regras do jogo da atividade, afetando a estrutura de propriedade e redefinindo o modus operandi do sistema. São mudanças que têm, como traço saliente, a tentativa de conciliar dois objetivos de direção oposta ou potencialmente conflitivos entre si, vistos sob a ótica das empresas atuantes no setor. De um lado, consolida a prevalência da geração de energia frente a formas concorrentes de aproveitamento das águas, favorecendo a economicidade dos projetos hidrelétricos e, com ela, o rebaixamento do custo médio ou unitário da ampliação da capacidade de atendimento do sistema. De outro, reforça o controle público sobre as tarifas de energia, com o intuito de garantir proteção aos consumidores, na tentativa de repassar os ganhos de produtividade na geração para os usuários do serviço. 34 Promulgada pouco antes, a legislação americana serviu de referência para os legisladores brasileiros. (Rosa et. al., 1998) 134 2.3 Estímulo à geração hidrelétrica e controle tarifário: a tensão intrínseca à concepção do novo marco regulatório do setor O novo arcabouço de ordenamento e controle da apropriação produtiva dos recursos hídricos é fortemente viesado no sentido da geração de energia elétrica, privilegiando-a face aos demais usos potenciais da água. Assim, a despeito de adotar, como postulado básico, o propósito de permitir “a todos usar de quaisquer águas públicas” (Decreto nº 23.016), o Código não se ocupa com a efetiva proteção deste direito, transformando-o em mero enunciado. Apenas aproveitamentos com fins de geração foram objeto de regulamentação pelo novo estatuto legal. Todos os demais usos alternativos – navegação, pesca e derivações para fins agrícolas, industriais e de saneamento básico etc - ainda que citados, viram-se remetidos, de um modo geral, à normatização através de legislação especial. Vale dizer, o Código de Águas assume, na prática, configuração de um código de eletricidade. Ao mesmo tempo que reflete a importância estratégica atribuída pelo governo à eletricidade para o processo de desenvolvimento e modernização do país, a orientação seguida pelo Código atua no sentido de reforçar e legitimar a preponderância da geração energética no aproveitamento produtivo dos recursos hídricos. Em outras palavras, a natureza parcial ou incompleta do arcabouço institucional de disciplinamento dos usos múltiplos das águas favorece a atividade geradora, eximindo as empresas concessionárias da necessidade de considerar as interferências sócio-ambientais ocasionadas pelos empreendimentos hidrelétricos como variável relevante de sua dinâmica decisória. A rigor, à exceção de interesses resguardados por direitos de propriedade, todos os demais efeitos indiretos ou laterais potencializados pelos investimentos produtivos do setor assumem configuração de “externalidades”, não implicando, enquanto tal, custos ou encargos financeiros adicionais para o empreendedor. Sem amparo nos dispositivos gerais do Código, os usos múltiplos também não irão encontrar proteção nos dispositivos específicos referentes ao ordenamento das atividades 135 elétricas, que não provêm instrumentos para lidar adequadamente com a questão, como demonstra um exame um pouco mais detido da nova legislação. Em primeiro lugar, a latitude daquilo que é institucionalmente tratado como efeito externo dos aproveitamentos hidrelétricos revela-se muito restrita. De fato, conforme diretrizes e regras estabelecidas pelo Código para a exploração dos potenciais hidráulicos, os projetos de geração deveriam “obedecer às prescrições técnicas regulamentares, podendo ser alterados no todo ou em parte, ampliados ou restringidos, em vista da segurança, do aproveitamento racional do curso d’água ou do interesse público” (Decreto nº. 24.643). A especificação dos interesses extra-setoriais a serem formalmente considerados no processo de concessão, contudo, apresenta escopo parcial e particularizado, abrangendo, em essência, aspectos relacionados a “alimentação e (...) necessidades das populações ribeirinhas; (...) salubridade pública; (...) navegação; (...) irrigação; (...) proteção contra inundações; (...) conservação e livre circulação do peixe; (...) escoamento e rejeição das águas (Decreto nº. 24.643). Questões afetas à preservação dos patrimônios natural, artístico e cultural, de um lado, e à dinâmica das relações sociais em sentido amplo, de outro, sequer foram tangenciadas pela nova legislação. Em segundo lugar, e não menos importante, o Código também não avança no sentido da estruturação de instrumentos ou mecanismos operacionais capazes de dar efetividade à já restrita proteção institucional aos interesses conflitivos com os investimentos do setor. No arranjo operacional proposto, o exercício da função regulatória foi atribuída ao Serviço de Águas, a quem caberia “examinar e instruir técnica e administrativamente os pedidos de concessão ou autorização para a utilização da energia hidráulica e para produção, transmissão, transformação e distribuição de energia hidrelétrica” (Decreto nº. 24.643). Em conformidade com o rito processual estabelecido, interesses extra-setoriais só poderiam adquirir materialidade se internalizados nas “exigências” ou condicionantes relativas aos pedidos de concessão. Ao se examinar a questão, contudo, observa-se que a especificação dos requisitos legais a serem cumpridos 136 pelo requerente da concessão tende a limitar drasticamente a capacidade de ingerência do poder concedente. Em termos mais específicos, os elementos prescritos para o requerimento de aproveitamentos hidrelétricos35 se atêm a aspectos relacionados à viabilidade técnico-financeira do empreendimento - as características do projeto de engenharia, os custos da obra e a capacidade operacional de mobilização de recursos da empresa -, bem como à observância da restrição, introduzida pelo próprio Código e referendada pela Constituição de 34, à atuação do capital externo na área. Atendem basicamente a propósitos de segurança e economicidade do investimento, preocupando-se a rigor com a adequação do projeto de engenharia da obra aos parâmetros técnicos convencionais, de forma a evitar riscos de rompimento da barragem, e com a racionalidade na seleção da alternativa de aproveitamento - localização do eixo do barramento, arranjo físico geral da obra e nível operativo do reservatório – tendo em vista a eficiência da atividade geradora, isto é, a minimização do custo unitário da energia produzida. Sem amparo de normas ou critérios sistematizados de tratamento, a observância de questões relacionadas às interfaces dos empreendimentos hidrelétricos com as múltiplas dimensões do ambiente tornava-se portanto contingente de definições ad hoc do conteúdo específico de “interesse público” no processo de análise do requerimento da concessão do aproveitamento. Em princípio, isto poderia se dar de duas formas principais: a primeira, como uma deliberação autônoma do órgão responsável pela concessão - o Serviço de Águas -; a segunda, como resultado da pressão de segmentos ou grupos sociais afetados pela implantação do projeto. Ambas, no entanto, apresentavam perspectivas pouco favoráveis de materialização, dadas as restrições impostas pelo próprio arcabouço de regulação. 35 Tais elementos consistem no “respectivo projeto, elaborado de conformidade com as instruções estipuladas e instruído com os documentos e dados exigidos no regulamento a ser expedido sobre a matéria e especialmente, com referência: a) à idoneidade moral, técnica e financeira e à nacionalidade do requerente; b) à constituição e sede da pessoa coletiva que for o requerente; c) exata compreensão - 1) do programa e objeto atual e futuro do requerente; 2) das condições das obras civis e das instalações a realizar; d) ao capital atual e futuro a ser empregado na concessão” (Decreto nº 24.643). 137 Quanto à primeira alternativa, o Código cerceava qualquer ação mais efetiva do poder concedente, ao conferir prevalência aos interesses do sistema elétrico vis-à-vis os interesses conflitivos com os empreendimentos do setor. Os princípios ordenadores da matéria não deixam dúvidas a esse respeito, garantindo ao empreendedor, “além das regalias e favores constantes das leis fiscais e especiais (...)”, [o direito de] “(...) desapropriar nos prédios particulares e nas autorizações preexistentes os bens, inclusive as águas particulares sobre que verse a concessão e os direitos que forem necessários, de acordo com a lei que regula a desapropriação por utilidade pública, ficando a seu cargo a liquidação e pagamento das indenizações” (Decreto nº. 24.643). Vale dizer, os dispositivos legais não só tornavam compulsórios os impactos ocasionados a terceiros pelos aproveitamentos hidrelétricos, reduzindo-os a perdas materiais terras, benfeitorias etc – como asseguravam, através do rito da desapropriação, autonomia decisória às empresas na definição do valor das indenizações dos prejuízos a serem ressarcidos, bem como na especificação da forma como o pagamento seria feito. Os inegáveis avanços institucionais associados à transformação de relações contratuais de direito privado em relações de direito público patrocinados pelo Código não apenas não protegiam como, de certa forma, penalizavam os interesses da população diretamente afetada pela implantação dos projetos hidrelétricos, ao flexibilizar os direitos de propriedade sobre os quais residia, em princípio, seu poder ou capacidade de barganha. A segunda alternativa, por sua vez, ficava na dependência de dois fatores básicos: a capacidade e disposição de mobilização dos segmentos sociais atingidos na defesa de seus interesses, e a existência de canais para a mediação dos conflitos potencializados pelos empreendimentos hidrelétricos. De um lado, o reduzido escopo dos “direitos” assegurados em lei restringia drasticamente a possibilidade da obtenção de ganhos concretos por parte da população afetada. De outro, o arranjo operacional estabelecido pelo Código, além de centralizado, não abria espaço para a manifestação e a negociação dos interesses desta mesma população, o que elevava os custos de transação incorridos em eventuais 138 (re)ações frente às perdas impostas pelo projeto. São aspectos que se combinavam para desestimular iniciativas de contestação à obra e mesmo de barganha relativas à indenização proposta pela concessionária. A leitura que se pode fazer é que o enquadramento institucional favorável aos aproveitamentos hidráulicos reflete uma ação intencional do governo e atende, em última instância, a propósitos de incremento da eficiência da atividade geradora. Ao restringir os custos indiretos dos empreendimentos hidrelétricos à indenização de perdas materiais respaldadas em direitos de propriedade, o Código promove uma “socialização” dos demais efeitos externos deles decorrentes, contribuindo para o rebaixamento dos custos de expansão do sistema e, consequentemente, da energia produzida. Constitui, além disso, fator de estímulo à apropriação de ganhos de escala, encorajando iniciativas no sentido da implantação de plantas geradoras progressivamente maiores, ao reduzir os riscos da ocorrência de um crescimento exponencial dos custos relacionados às interferências sobre o meio ambiente em sentido amplo, o que irá se materializar ao longo das décadas subsequentes. Em outras palavras, o Código se antecipa no tempo à ampliação da escala dos empreendimentos hidrelétricos e favorece avanços nesta direção que, como se verá mais à frente, chegará ao paroxismo com a construção da usina de Itaipu, um mega empreendimento com capacidade geradora de 12 mil MW. É oportuno ressaltar, a propósito da questão, que esse viés institucional não implicava, de imediato, problemas sociais ou políticos de maior relevância relacionados à arbitragem de conflitos de interesses em torno do uso produtivo dos recursos hídricos. De um lado, o porte reduzido dos aproveitamentos hidráulicos, instalados quase sempre em pequenos cursos d’água, praticamente eliminava a possibilidade de as usinas geradoras se defrontarem com atividades concorrentes que pudessem constituir empecilho à sua implantação. De outro, os projetos hidrelétricos requeriam em geral áreas de extensão média muito reduzida, comprometendo parcelas pouco representativas das superfícies territoriais dos municípios onde se localizavam. Acresce-se, 139 ademais, a inexistência de pressão ou concorrência significativa pelo uso da terra, refletindo a predominância de um padrão de ocupação espacial de baixa densidade – corolário do reduzido grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas do país à época. Pode-se afirmar, portanto, que as interferências dos aproveitamentos hidrelétricos tendiam a ficar circunscritas, em larga medida, às variáveis naturais - alagamento de recursos de solo e subsolo e alterações na dinâmica dos cursos d’água, repercutindo sobre o equilíbrio de ecossistemas locais e/ou microrregionais. Envolviam, em essência, interesses difusos, sem embasamento legal e sem maior ressonância na sociedade, o que atenuava ou diluía o “déficit” institucional do Código no tocante aos impactos sócio-ambientais ocasionados pelos investimentos do setor. Dada a reduzida magnitude dos conflitos de interesse potencializados pela construção das usinas, sua resolução prescindia, de certa forma, da mediação de mecanismos formalmente constituídos, podendo ser encaminhada, com relativa fluidez, através da interação direta entre empreendedor e população atingida. Como se verá, essa situação somente será modificada a longo prazo, quando a progressiva ampliação da escala das plantas geradoras altera de forma substantiva a natureza e a intensidade das interferências sobre o meio. No entanto, embora convergente, em princípio, com os interesses do desenvolvimento da atividade, a sistemática instituída para a concessão dos aproveitamentos hidrelétricos não atende a propósitos de instrumentalizar aumentos de rentabilidade ou retorno econômico para as empresas do setor. O controle normativo das tarifas, que será introduzido pelo mesmo Código, bloqueia tal possibilidade, inviabilizando a incorporação automática dos ganhos derivados do rebaixamento dos custos de produção de energia elétrica à margem de lucro das concessionárias. A “socialização” dos custos das interferências sobre o meio ambiente, patrocinada pelo novo estatuto legal, tende a ser revertida em prol dos usuários dos serviços de eletricidade, em detrimento das prestadoras de tais serviços: dado o perfil integrado das empresas, o que elas “ganham” no segmento da produção, “perdem” no segmento da distribuição. 140 Os propósitos de conciliar eficiência econômica e social que norteiam o esforço de codificação da atividade demandam uma complexa regulação da fixação das tarifas de energia. Vale dizer, as novas bases tarifárias tinham de expressar um equilíbrio entre a qualidade dos serviços prestados à sociedade, traduzida no suprimento de energia a preços razoáveis, e as necessidades concretas de financiamento da atividade, consubstanciado na garantia da “estabilidade financeira das empresas” (Decreto nº. 24.643). A primeira parte da equação implicava estabelecer o mínimo valor máximo para as tarifas, de forma a impedir a realização de sobrelucros ou lucros excedentes, lesivos ao consumidor. A segunda, o máximo valor mínimo, de forma a assegurar receitas operacionais compatíveis não apenas com a cobertura dos gastos correntes da atividade, mas com sua reprodução ampliada. A acomodação de tais objetivos irá convergir para a adoção de uma concepção de política tarifária baseada no custo de prestação do serviço. De acordo com essa concepção, a tarifa elétrica seria formada pelas despesas de operação e as reservas para depreciação dos investimentos, acrescidas de uma margem de retorno sobre o estoque de capital da empresa. O tratamento operacional da matéria, por sua vez, vai envolver a combinação de dois princípios básicos, um de natureza técnica, outro de natureza normativa. O primeiro consiste na adoção do conceito de custo histórico - o valor original dos investimentos realizados menos sua depreciação no tempo - como critério para o cálculo do capital das empresas e, consequentemente, da rentabilidade auferida na prestação do serviço, numa adesão a procedimentos consagrados pelas legislações setoriais americana e inglesa (Mielnik e Neves, 1988; Lima, 1984; Schwartzman, 1982). O segundo se expressa na disposição de conferir “justa remuneração” à prestação do serviço (Decreto nº. 24.643), o que supunha, em particular, uma avaliação consistente sobre as expectativas e, especialmente, a “disposição a receber” das empresas concessionárias. Trata-se de tarefa que se antecipava de difícil implementação, tendo em vista tanto aspectos técnicoadministrativos quanto políticos. 141 Sob a ótica técnica, a implantação da nova sistemática tarifária requeria não só o detalhamento operacional da matéria como a padronização dos registros contábeis das concessionárias, já que o valor de seus ativos imobilizados constituía a base para o cálculo da remuneração da prestação do serviço. Para se ter uma idéia do esforço a ser empreendido nessa direção, basta mencionar a existência, à época, de centenas de empresas atuando na área, de porte e perfil extremamente variados, e, por extensão, com padrões de gerência e controle também muito desiguais (Cotrim, 1989, depoimento). Do ponto de vista administrativo, o ponto fulcral era o aparelhamento estatal para o desempenho da função, numa circunstância em que não existia nenhum arranjo regulatório pretérito com tal atribuição. É suficiente observar aqui o fato de a Divisão de Águas, que irá assumir esse papel, ter sido criada quase que em simultâneo à promulgação do Código. As mudanças nos dispositivos legais que disciplinam a atividade vão se defrontar também com problemas de outra natureza, relacionadas a resistências interpostas pelos interesses constituídos do setor, repercutindo sobre a capacidade governamental de manter o controle sobre a condução do processo reformista e os resultados objetivos dele derivados. Se o tratamento favorecido que o Código confere à geração de energia elétrica no aproveitamento dos recursos hídricos não suscita maiores controvérsias ou resistências à sua adoção, seja porque não provocava, de imediato, custos percebidos como relevantes pela sociedade ou setores representativos dela, seja pelo baixo grau de organização e desenvolvimento das atividades potencialmente concorrentes pelo uso das águas, o mesmo não se aplica às novas regras tarifárias. Ao afetarem as expectativas das empresas no tocante às oportunidades de ganho na prestação do serviço, suas preferências e margem de autonomia decisória, os dispositivos de fixação dos preços da energia a serem cobrados ao consumidor tendem a colocá-las em pólo diametralmente oposto ao do governo. Cria-se um ambiente de instabilidade e incertezas na área que repercute sobre as decisões de investimento das empresas, com efeitos perversos sobre 142 a expansão do sistema e, consequentemente, sobre a qualidade do serviço prestado à sociedade. A trajetória do desenvolvimento do setor será marcada, a partir de então, por fortes conflitos de interesse, no cerne dos quais estarão Light e Amforp, e por marchas e contramarchas na intervenção estatal. 2.4 A disputa em torno das novas regras tarifárias: um conflito sem vencedores definitivos A nova política de fixação de tarifas não tinha aplicação automática, dependendo da especificação de regras e parâmetros a serem utilizados no tratamento da matéria. Apesar de promulgado por decreto, o Código deixara em aberto, isto é, para encaminhamento via legislação especial, “uma série de pontos básicos da nova sistemática tarifária, como o valor das taxas de remuneração e depreciação do capital, a forma de apuração desses valores (...) e a padronização da contabilidade das empresas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 85). São circunstâncias que tornavam inevitável a negociação com o Legislativo, expondo os propósitos reformistas do governo às exigências do jogo político. Além de condicionante da adoção dos dispositivos instituídos, a regulamentação revelava-se crucial no tocante ao delineamento da natureza concreta dos impactos incidentes sobre as oportunidades de ganho e a autonomia decisória das empresas do setor, levando-as a se mobilizarem com vistas a fazerem valer seus interesses no encaminhamento do processo. As principais iniciativas em tal direção serão protagonizadas pelas grandes empresas de capital estrangeiro, mais fortemente afetadas pelas alterações propostas nas regras do jogo. Movidas por uma lógica empresarial estrita, Light e Amforp vão marcar “posição em torno de uma reformulação integral dos princípios” (Lima, 1995: 25) e critérios para a fixação de tarifas. As disputas em torno da questão terão, como eixo central, a adoção do princípio de custo histórico no processo de avaliação do estoque de capital investido e, por extensão, na determinação do lucro bruto auferido na prestação do serviço. Conforme Lima, as ações desenvolvidas assumem “as mais variadas formas, mas 143 o objetivo era, acima de tudo, a derrocada do princípio de custo histórico” (1995: 25/26). A adoção do princípio de custo histórico teve, por principal fonte de inspiração, a legislação americana (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Ferraz, 1993, depoimento; Lima, 1995, depoimento), onde sua aplicação não enfrentara problemas de maior relevância junto às empresas atuantes na área. A realidade econômica daquele país, contudo, apresentava características distintas da brasileira. Enquanto a primeira pautava-se pela estabilidade dos preços, experimentando, inclusive, tendência à deflação ao longo de toda a década de trinta, na segunda o traço marcante era a presença de inflação, ainda que mantida sob controle (Ferraz, 1993, depoimento; Baer, 1995). Isto fazia uma enorme diferença: no caso de deflação, a aplicação do custo histórico elevava o valor a ser atribuído ao patrimônio das empresas e, com ele, a remuneração obtida na prestação do serviço; no caso de inflação, passava-se exatamente o contrário. Contextos distintos, como visão, influenciam os resultados das ações adotadas e, por extensão, as preferências dos atores afetas às mesmas. Fundadas no argumento de que a aplicação do princípio de custo histórico era “inaceitável para um país que apresentava acentuada instabilidade monetária “ (Lima, 1995: 25/26), Light e Amforp defendem sua substituição pelo princípio do custo de reprodução – o valor presente dos investimentos caso fossem realizados no momento de sua avaliação (Mielnik e Neves, 1988), considerado mais pertinente a um ambiente inflacionário, “apostando” no acirramento do confronto com o governo. Buscando se impor como interlocutoras no tocante ao detalhamento operacional das novas bases regulatórias, tais empresas partem para disputas no campo jurídico, onde questionam a legalidade do Código. Trata-se de ação que, independente da decisão judicial em si mesma, se presta ao propósito de criar constrangimentos políticos para a adoção de soluções não negociadas ou, mais especificamente, de soluções impostas via decreto do Executivo, como ocorrera com a promulgação do próprio Código. 144 A aplicação da nova política tarifária não dependia apenas da resolução dos problemas operacionais relacionados aos dispositivos pendentes de regulamentação. Ao contrário, supunha também a prévia revogação das regras anteriores, o que passava, formalmente, pela revisão dos contratos de concessão em vigor. Na tentativa de escapar aos riscos que se prenunciavam elevados no tocante à obtenção de uma adesão espontânea à sua realização, o Código caminho no sentido de torná-la obrigatória, impondo sanções ou penalizações para posturas refratárias à medida, estabelecendo, em suas disposições transitórias, que sem ela as concessionárias não poderiam “fazer ampliações ou modificações em suas instalações, nenhum aumento nos preços, nem novos contratos de fornecimento de energia” (Decreto nº. 24.643). O recurso à penalização como instrumento para induzir a “cooperação” das empresas do sistema, contudo, não terá a eficácia presumida pelo governo. Longe de eliminar o conflito, a opção pela via coercitiva conduz a resultados opostos aos pretendidos. Se interessava ao governo acelerar a transição para as novas bases tarifárias, o mesmo não se aplica às grandes concessionárias de energia, em especial a Light, que se encontrava numa posição relativamente confortável para adotar uma estratégia não cooperativa. “Com o mercado em franca expansão, era grande a possibilidade de o consumo [de eletricidade] acompanhar este crescimento, traduzindo-se em receitas cada vez maiores, ainda que aprisionadas pelo problema tarifário” (Lima, 1995, depoimento). Vale dizer, a ampliação da demanda compensava, de certa forma, os efeitos perversos da redução do valor real das tarifas advinda da corrosão inflacionária. Assim, enquanto a capacidade instalada do sistema suportasse o incremento do consumo, prescindindo da realização de novos investimentos, as penalizações impostas pelo Código não tinham implicações sensíveis sobre os retornos econômicos obtidos na prestação do serviço. Trata-se de resultado que exerce influência sobre a formação das preferências das empresas concessionárias, contribuindo para a não aceitação passiva da imposição das mudanças - decisão que se constitui numa das 145 principais manifestações do dissenso em torno das reformas institucionais do setor. Embora assinado anteriormente à Constituição, o decreto instituindo o Código de Águas acabou por ser publicado em data posterior à mesma, “levando a que diversas personalidades jurídicas e políticas e ainda representantes das concessionárias estrangeiras contestassem sua constitucionalidade, com base no argumento de que, após a promulgação da nova Carta, a Assembléia Constituinte transformara-se em Câmara ordinária, devendo a nova lei ser submetida a esta Casa” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1993: 90). Oportunidades abertas pelo contexto, como preconizado pela escolha racional, tendem a ser aproveitadas pelos atores de acordo com seus interesses. Apoiadas no argumento jurídico da inconstitucionalidade do Código (Lima, 1984; Schwartzman, 1982), Light, Amforp e outras concessionárias de menor porte questionam a obrigatoriedade da revisão de contratos por ele determinado e se recusam a promovê-la (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A adoção deste procedimento permite bloquear ou, mais precisamente, postergar a implementação das reformas, a despeito da ocorrência de eventuais avanços no tocante à regulamentação dos dispositivos tarifários. O questionamento da legitimidade afeta a autoridade governamental, fragilizando sua capacidade de impor decisões – constrangimento que só será efetivamente removido em 1938, com o parecer do Supremo Tribunal Federal contrário à arguição de constitucionalidade (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O impasse em torno da regulamentação dos dispositivos tarifários e da revisão dos contratos de concessão terá custos tanto para as empresas quanto para o governo e, indiretamente, para o conjunto da sociedade brasileira, na condição de usuária final do sistema. Para as primeiras, implica o congelamento de preços e o relativo engessamento de suas atividades, dadas as restrições à realização de novos investimentos produtivos, afetando as expectativas e as possibilidades de ganho na prestação dos serviços. Para o segundo, o imperativo de buscar sustentação política para suas decisões, abrindo espaço para desvios 146 de rota, com desdobramentos imprevisíveis no tocante ao êxito na execução do conjunto das medidas propostas. Por fim, para a sociedade significa sobretudo o aumento dos riscos da ocorrência de déficits no suprimento de energia. Reagindo à não cooperação das empresas no tocante à revisão dos contratos, o governo federal procura preservar sua autoridade na área, aplicando as sanções previstas no Código, o que se traduz na fixação das tarifas de energia elétrica ao nível histórico correspondente à data de sua promulgação (Lima, 1984). A despeito dos baixos índices inflacionários então prevalecentes, os efeitos potencializados pela medida sobre a rentabilidade do setor não podem ser negligenciados. Se, no curto prazo, não apresentavam magnitude muito expressiva, pelas razões anteriormente discutidas, no médio a longo prazo tendiam a conduzir à progressiva corrosão da margem de lucro das concessionárias, à medida que aumentos nos custos operacionais da atividade não podiam ser repassados aos preços cobrados ao consumidor. A dissonância entre os intentos reformistas do governo e os interesses constituídos do setor irá trazer, em sua esteira, substancial refluxo na alocação de recursos na expansão do sistema, sobretudo no segmento de geração. Ajustando-se às restrições legais, Light e Amforp se limitam a dar sequência à implantação de projetos já decididos ou em andamento, que se configuravam como tecnicamente irreversíveis ou inadiáveis do ponto de vista econômico. Por sua vez, sem oportunidades atraentes e viáveis de inversão, à medida em que atuavam em áreas periféricas aos principais mercados, as empresas nacionais não promovem alterações sensíveis em suas decisões de investimento comparativamente aos anos iniciais da década, que se mantêm secundárias face às iniciativas das concessionárias estrangeiras. Assim, além de circunscrito a empreendimentos de pequeno porte, o lançamento de novos projetos hidrelétricos irá apresentar forte declínio, evidenciado na acentuada queda no número de decretos de concessão de aproveitamentos hidráulicos expedidos nos anos subsequentes à promulgação do Código (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 147 Subproduto do processo, o refluxo nas decisões de investimento das empresas repercute diretamente no desempenho agregado do setor. A despeito de experimentar variação positiva da ordem de 60,2% na década de trinta (Quadro 2), o ritmo de expansão da potência instalada do sistema fica muito aquém daquele obtido na década anterior, com crescimentos médios de, respectivamente, 4,9% e 7,8% ao ano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Mais importante, esse resultado só não foi ainda mais desfavorável em função da ampliação da capacidade instalada de usinas hidrelétricas de propriedade da Light, através do aumento do número de unidades geradoras. De fato, na primeira metade da década, a potência do parque de geração do país manteve-se praticamente inalterada, com acréscimo de apenas 7,4% no período (Quadro 2). Na segunda metade, a entrada em operação de novos grupos geradores nas usinas Henry Borden, Ilha dos Pombos e Fontes, todas pertencentes à Light, permitiu incrementos na produção da ordem de 298 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Caso se desconsidere a ampliação de tais usinas, fruto da maturação de projetos programados ainda nos anos vinte, isto é, de decisões anteriores à promulgação do Código, a taxa média de crescimento da produção de energia hidrelétrica referente aos anos trinta cai para módicos 1,2% ao ano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 148 Quadro 2 Evolução da Capacidade Instalada de Geração de Energia Elétrica no Brasil, por Fonte Hidráulica, em anos selecionados Período: 1930-40 Ano Potência - (MW) Índice de Crescimento 1930 630,1 100,00 1931 646,1 102,54 1932 650,0 103,16 1933 658,3 104,48 1934 665,3 105,59 1935 676,7 107,40 1936 745,7 118,35 1937 754,7 119,78 1938 946,9 150,28 1939 952,.0 151,09 1940 1.009,3 160,18 Fonte: Dias, R. F. (coord.) Panorama do Setor de Energia Elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 99 Contrastando com a oferta, a demanda de energia elétrica vai apresentar intenso crescimento no período, impulsionada pelo movimento de urbanização e, principalmente, pela aceleração do avanço da atividade industrial. Salienta-se, a esse respeito, que à exceção dos dois primeiros anos da década, quando a economia brasileira como um todo sente os efeitos da crise externa (Baer, 1996), o desempenho da indústria revela-se bastante favorável, crescendo à elevada taxa média de 11,2% ao ano entre 1933 e 1939 (Negri, 1996). O comportamento do consumo nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo ilustra bem o dinamismo da demanda: a energia consumida em tais mercados mais do que dobra nos anos trinta, expandindo-se à expressiva taxa média de 8,7% ao ano (Lima , 1984; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 149 O descolamento entre a ampliação da capacidade de oferta e os requisitos da demanda de energia elétrica sinaliza claramente para os distúrbios provocados pelas mudanças no arcabouço de regulação da atividade sobre a lógica de funcionamento do setor. Ao contrário das décadas anteriores, as oportunidades econômicas potencializadas por um mercado consumidor em rápida expansão revelam-se insuficientes, por si só, para alavancar os investimentos produtivos das concessionárias, gerando uma segunda ordem de problemas: o risco da ocorrência de déficits no suprimento energético. Essas respostas insatisfatórias do lado da produção conferem saliência à questão da consistência e viabilidade das reformas, comportando duas leituras principais no tocante aos rumos do processo. De um lado, o que se colocava era o relativo esgotamento do modelo organizacional do setor face ao reordenamento institucional determinado pelo Código que, se enfrentado diretamente, implicaria o avanço do intervencionismo estatal sobre a esfera produtiva. De outro, o fraco desempenho da ação governativa na implementação das mudanças propostas, cujo enfrentamento passava por um reforço de sua capacidade operacional, aparelhando-a para o adequado cumprimento de suas atribuições. São opções estratégicas com estruturas diferenciadas de custos e benefícios sob a ótica agregada do setor. A primeira supunha um esforço de mobilização de recursos por parte do poder público, trazendo, em contrapartida, maior previsibilidade e confiabilidade quanto à expansão do sistema. A segunda prescindia de tal esforço, mas ampliava a margem de incertezas acerca dos resultados obtidos. Novamente aqui, as preferências sobre o curso da ação a ser adotada sofrem a influência de fatores objetivos do contexto. Os rumos das reformas setoriais repercutem, em larga medida, as mudanças políticoadministrativas deflagradas pela instauração do Estado Novo36.Em termos mais específicos, a opção governamental 36 converge para a superação dos O golpe de Estado que dá origem ao denominado Estado Novo, instaurando um regime político autoritário no pais, é anunciado por discurso proferido por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 (Corsi, 2000). 150 estrangulamentos técnico-operacionais que vinham dificultando a implementação das novas diretrizes e normas instituídas pelo Código para o disciplinamento das atividades do sistema. O aspecto que se quer ressaltar é que a alternativa selecionada – a concentração de esforços no reforço da autoridade pública na área – guarda estreita sintonia com os princípios gerais preconizados pela Constituição de 37 - outorgada pelo novo regime – para o balizamento da intervenção estatal na economia. 3. O avanço do processo de reordenamento institucional do setor e a crescente deterioração dos serviços de eletricidade O surto reformista desencadeado pela Revolução de 30 entra num novo e decisivo estágio com o advento do Estado Novo, implantado sob o comando de Getúlio Vargas. A instauração de uma ordem autoritária, justificada em nome da segurança interna e da consolidação do esforço de construção da Nação (Schwartzman, 1992; Corsi, 1996, 2000; Skidmore, 1998; Nogueira, 1998), vai dar suporte ao incremento do inervencionismo estatal na economia, “intimamente articulado ao projeto de industrialização que” (Draibe, 1985: 83) tende a orientar, de forma muito mais incisiva, a ação do governo. Trata-se de um Estado que reafirma o compromisso com a dinâmica capitalista, mas a subordina ao propósito de desenvolvimento nacional, em torno do qual irá gravitar a formulação e implementação da política pública. O papel preconizado para o Estado e o padrão de relacionamento a ser mantido com o capital privado são explicitados, em seus contornos gerais, no capítulo da ordem econômica da nova Constituição promulgada pelo regime autoritário implantado por Vargas. De acordo com o texto constitucional, “a intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados 151 pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estímulo ou da gestão direta” (Constituição de 1937). De um lado, reitera-se a precedência da iniciativa privada na esfera da produção, sublinhando os limites da atuação do Estado no campo econômico. De outro, enfatiza-se a importância do intervencionismo estatal como força integradora dos processos produtivos, capaz de induzir os agentes econômicos a agirem de um modo que leve em consideração os interesses coletivos, isto é, os “interesses da Nação”. Cabe ressaltar, por oportuno, que a afirmação dos interesses nacionais preconizada pelos princípios básicos da ordem econômica tem aplicação imediata no próprio texto constitucional, consubstanciada no cerceamento de investimentos externos em áreas consideradas vitais para o desenvolvimento econômico do país, como o sistema elétrico. Assim, as restrições à atuação do capital nãonacional nas atividades de geração de energia, instituídas pelo Código de Águas e referendadas pela Constituição de 34, são não apenas endossadas mas aprofundadas pela Constituição de 37, que veta, de forma explícita, a possibilidade da implantação de qualquer empreendimento hidrelétrico por empresas estrangeiras. De acordo com os novos dispositivos constitucionais, a concessão de aproveitamentos hidráulicos só poderia ser dada a brasileiros ou empresas constituídas por acionistas brasileiros (Constituição de 1937), e não mais a empresas organizadas no país, como estabelecido na Constituição de 1934. Abstraindo-se desse enfoque nacionalizante que, como se verá mais à frente, acabará sendo revisto em função de contingências enfrentadas pela política setorial, mais especificamente, o estrangulamento na oferta de energia, a demarcação da fronteira entre as esferas pública e privada subjacente ao texto constitucional evidencia a preocupação em conciliar eficiência econômica na alocação dos fatores de produção, entendida e tratada como produto das competições individuais - a dinâmica de mercado -, com eficiência social dos resultados produzidos, derivada da ação normatizadora do Estado sobre as 152 iniciativas individuais - a regulação da dinâmica de mercado. Além disso, e mais importante, a Constituição estabelece também uma hierarquia entre os dois propósitos, conferindo primazia ao segundo frente ao primeiro. Em conexão a tal hierarquização, não só legitima a autoridade do Estado sobre as relações econômicas de mercado, de forma a assegurar que os interesses dos agentes econômicos sejam congruentes com os “interesses da Nação”, como abre espaço para sua inserção direta no campo da produção, subordinando-a, no entanto, ao fracasso ou insuficiência da ação regulatória. A ênfase no papel do Estado enquanto força integradora dos processos econômicos e a preservação da esfera da produção como um campo de domínio preferencial da iniciativa privada são fatores que convergem para a necessidade de se conferir efetividade ao reordenamento institucional do setor previsto no Código. Como visto anteriormente, a ausência de avanços objetivos na regulamentação dos dispositivos tarifários pendentes de legislação especial e o impasse na revisão dos contratos de concessão vinham bloqueando, na prática, a capacidade do governo em resguardar o interesse público no desenvolvimento das atividades do sistema. Numa circunstância em que o Estado não estava fazendo o que deveria fazer, impunha-se capacitá-lo para o adequado cumprimento de suas atribuições, o que passava não só pela consolidação do arcabouço legal, mas pelo reforço do aparato administrativo encarregado das ações de controle e fiscalização dos serviços prestados pelas empresas concessionárias. Se essa era a percepção do problema, as ações a serem implementadas com vistas a seu equacionamento já estavam prescritas em lei, o que facilitava a tomada de decisões. De fato, a despeito de ter atribuído ao Serviço de Águas as responsabilidades de concessão dos aproveitamentos hidrelétricos e de controle e fiscalização das concessionárias de energia, o Código de Águas previa, em suas disposições gerais, a estruturação de um aparato administrativo mais sólido e complexo para o exercício da função regulatória, sob a forma de um “conselho federal de forças hidráulicas e energia 153 elétrica” (Decreto nº 24.643). Nos termos legais, caberia ao novo organismo: “a) o exame das questões relativas ao racional aproveitamento do potencial hidráulico do país; b) o estudo dos assuntos pertinentes à indústria da energia elétrica e sua exploração; c) a resolução, em grau de recurso, das questões suscitadas entre a administração, os contratantes ou concessionários de serviços públicos e os consumidores” (Decreto nº 24.643) – atribuições que lhe conferiam status de uma autoridade nacional com legitimidade para conduzir as reformas e as iniciativas setoriais do governo. Movido pelos resultados insatisfatórios da atuação do Serviço de Águas, o governo federal decide reforçar sua capacidade de comando e coordenação na área, dando concretude ao arranjo operacional previsto no Código. Surge assim, no âmbito mais geral da ampla reforma administrativa implementada a partir da instauração do regime do Estado Novo (Draibe, 1985; Nogueira, 1998), o Conselho Nacional das Águas e Energia (CNAE). Criado por força do Decreto-Lei nº 1.285, de maio de 1939, e transformado, pouco depois, em Conselho Nacional de Água e Energia Elétrica (CNAEE), através do DecretoLei nº. 1.699, de outubro do mesmo ano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), o novo órgão se subordina diretamente à Presidência da República, sinalizando para a disposição governamental de reverter o fraco desempenho que vinha pautando o encaminhamento das reformas institucionais do setor (Mielnik e Neves, 1988; Lima, 1984). Refletindo os propósitos que cercam sua criação, o CNAEE não apenas assume a coordenação das atividades de fiscalização e controle dos serviços de geração e distribuição de energia elétrica, até então sob responsabilidade do Serviço de Águas – transformado em organismo de apoio técnico-operacional ao mesmo, com a denominação de Divisão de Águas -, mas centraliza a responsabilidade pela política setorial do governo. Dentre suas múltiplas atribuições, a tarefa mais imediata consistia em completar a transição para a nova institucionalidade do sistema, promovendo o detalhamento operacional da legislação tarifária ainda pendente de regulamentação e 154 procedendo ao encaminhamento de ações com vistas à superação do impasse em torno da revisão dos contratos de concessão determinada pelo Código. Além da complexidade imbricada no cumprimento de tal tarefa, a dinâmica decisória e as ações do novo órgão tendem a ser fortemente influenciadas por circunstâncias objetivas do contexto em que opera, caracterizado pelo crescente descompasso entre oferta e demanda de eletricidade, o que irá repercutir nos resultados concretos de sua atuação. 3.1 O caráter adaptativo da atuação do CNAEE e a gradativa flexibilização dos dispositivos regulatórios do Código de Águas Às condicionantes internas de natureza político-institucional que vinham provocando, desde a primeira metade dos anos trinta, retraimento dos investimentos privados na expansão do sistema, vieram se somar, ao final da década, constrangimentos relacionados ao ambiente externo, decorrentes da deflagração da Segunda Guerra Mundial (Lima, 1984; Mienilk e Neves, 1988; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Corsi, 2000). Os distúrbios ocasionados pelo conflito armado na dinâmica das relações comerciais e financeiras internacionais tornaram “praticamente inviável a importação de equipamentos e a obtenção de empréstimos (...), necessários à expansão da capacidade produtiva do parque elétrico brasileiro” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 14). Esse novo cenário reflete-se sobre a atuação do CNAEE, influenciando em profundidade suas prioridades de intervenção, num processo onde a preocupação com o risco de escassez de energia tende a se impor sobre questões relacionadas à complementação das reformas institucionais do setor. Com isto, a regulamentação do Código de Águas, que deveria se constituir num dos focos centrais da atenção do órgão, até porque condição necessária ao efetivo desempenho de suas atribuições enquanto agência de regulação e controle das atividades do sistema, será gradativamente deslocada para plano secundário. Em outras palavras, mudanças imprevistas no ambiente afetam a forma como são percebidos os problemas a serem enfrentados, a 155 definição e a hierarquização de objetivos e, por extensão, as decisões relativas aos cursos de ação e sua implementação. Assim, numa adaptação contingente a um contexto que sinalizava crescentes dificuldades no suprimento energético dos principais mercados nacionais, a atuação do CNAEE irá se articular em torno de dois eixos principais: a administração da escassez de energia e o estímulo à retomada dos investimentos na expansão do parque gerador. A primeira vertente converge para a adoção de medidas voltadas a uma maior racionalização na prestação do serviço sob a perspectiva agregada do setor. A segunda se fundamenta na progressiva remoção ou flexibilização das restrições impostas pelos dispositivos de regulação e controle instituídos pelo Código à atuação das concessionárias estabelecidas na área, em especial aquelas controladas pelo capital externo. O passo inicial com vistas ao enfrentamento do quadro de estrangulamento no suprimento energético que se esboçava na entrada dos anos quarenta aponta na direção da otimização no aproveitamento do potencial instalado de geração do país e suas futuras ampliações, o que supunha a adoção de uma abordagem integrada ou sistêmica no desenvolvimento da atividade. Premido pela crise no atendimento da demanda por eletricidade, que assumia caráter iminente na cidade de Campinas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), o governo federal edita, em junho de 1939, o Decreto-Lei nº. 345, através do qual são definidas regras e procedimentos para o intercâmbio de energia no âmbito do setor, cuja coordenação fica sob responsabilidade do CNAEE. Buscava-se, com a medida, promover a formação de arranjos entre as empresas em prol da apropriação de ganhos de eficiência deles decorrentes, sinalizando para a interligação operacional dos serviços de eletricidade que irá nortear, mais à frente, a dinâmica evolutiva do sistema. Num resultado de causação indireta e não pretendido, contudo, a principal implicação do decreto será assinalar um primeiro e importante recuo do governo federal no confronto que vinha travando com as concessionárias em torno da aplicação do Código de Águas, já que a compra e venda de energia abria espaço para que estas 156 ampliassem suas capacidades de atendimento, independentemente da revisão ou não de seus contratos de concessão. De um ponto de vista prático, sua promulgação pouco irá contribuir para melhorias efetivas nas condições de fornecimento de eletricidade, pelo menos no curto a médio prazo. De fato, a criação de regras para o intercâmbio de energia não proporcionava, por si só, soluções adequadas nem suficientes para a reversão da tendência à deterioração cada vez mais visível da qualidade dos serviços de eletricidade do país. Primeiro, o excedente na capacidade instalada de geração de energia então existente se restringia, a rigor, ao sistema controlado pela Light (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Além de espacialmente concentrado – a atuação da Light, vale lembrar, estava circunscrita ao eixo RioSão Paulo -, tal excedente vinha se esgotando rapidamente face ao “notável incremento no consumo industrial de energia elétrica, aliado à igualmente acentuada elevação do consumo comercial” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 27) nas áreas atendidas pelas subsidiárias do grupo, numa circunstância em que as possibilidades técnicas de expansão da potência instalada das usinas de seu parque gerador também estavam se exaurindo, até porque já haviam sido amplamente aproveitadas no decorrer dos anos trinta. Por sua vez, a inexistência de linhas de transmissão de longa distância, cuja implantação não era tecnicamente viável, bloqueava, de partida, qualquer perspectiva de a Light vir a fornecer energia para mercados que não fossem relativamente próximos àqueles onde atuava. Segundo, os mercados que apresentavam problemas mais emergenciais de suprimento de energia remetiam, em sua ampla maioria, às concessionárias controladas pelo grupo Amforp, que operavam sistemas isolados, dispersos por diversos estados brasileiros. Ao contrário da Light, o parque de geração da Amforp era constituído basicamente por pequenas hidrelétricas, que não apresentavam maiores oportunidades para a ampliação de potência (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Terceiro, como as empresas de capital estrangeiro estavam impedidas, por lei, de lançarem novos empreendimentos hidrelétricos, 157 apontava-se, ainda que implicitamente, para a gradativa transferência da responsabilidade pelo atendimento do incremento do consumo de eletricidade da sociedade brasileira para empresas ou grupos nacionais. A materialização dessa especialização produtiva, contudo, defrontava-se com constrangimentos de natureza econômica e institucional, que praticamente bloqueavam as possibilidades de que viesse a ocorrer. Na dimensão econômica, o aspecto mais saliente é o fato de a capacidade de mobilização de recursos das concessionárias sob controle de grupos nacionais, constituídas basicamente por empresas de pequeno porte – a ampla maioria das empresas com perspectivas mais favoráveis de expansão havia sido adquirida na segunda metade dos anos vinte pela Amforp -, não estar à altura dos requisitos da crescente demanda de energia do país. Na dimensão institucional, cabe registrar duas questões principais. De um lado, os riscos e incertezas associados ao caráter incompleto das mudanças introduzidas pelo Código de Águas, ainda pendente de regulamentação, atuavam no sentido de afastar o interesse do capital nacional do setor. De outro, a decisão de não promover a revisão dos contratos de concessão imposta pelo mesmo Código não ficara circunscrita aos grupos Light e Amforp (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Ao contrário, diversas empresas nacionais seguiram o mesmo caminho e viam-se, portanto, legalmente impedidas de implantar novos empreendimentos hidrelétricos. Os resultados insatisfatórios no tocante à reversão dos crescentes riscos de ocorrência de estrangulamento energético vão levar a que a flexibilização das constrições legais do Código, iniciada com o decreto, seja progressivamente alargada. Movimento neste sentido virá pouco depois, com a edição do Decreto-Lei nº. 2.059, de maio de 1940, autorizando a expansão das instalações produtivas do sistema, independentemente da revisão dos contratos (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). Com a medida, o governo renunciava parcialmente à aplicação de sanções às empresas setoriais como forma de induzir a adesão às novas regras tarifárias, que, além de não atender aos propósitos visados, estava afetando os investimentos em geração de 158 energia. O recuo mais incisivo na direção da suspensão dos obstáculos incidentes sobre os investimentos hidrelétricos, contudo, ocorrerá dois anos mais tarde, com o levantamento das restrições que haviam sido impostas à atuação das empresas de capital externo, o que irá exigir, inclusive, alterações no texto constitucional, que tinha não apenas covalidado mas acentuado as constrições introduzidas pelo Código. Isto se faz através da promulgação da Lei Constitucional nº. 6, datada de maio de 1942, suspendendo o tratamento discricionário às empresas estrangeiras, que voltam a receber permissão para implantarem novos aproveitamentos hidrelétricos no país (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Vale dizer, dificuldades enfrentadas no equacionamento da pressão exercida pela demanda de eletricidade nos principais mercados do país, dentro do enquadramento institucional consubstanciado no Código, influenciam as preferências e decisões do governo federal, que se vê constrangido a renunciar à orientação nacionalizante que procurara impor às atividades do setor. Se a alocação de recursos na expansão do sistema por parte das empresas de capital nacional não corresponde às necessidades dos usuários dos serviços de eletricidade, a “saída” é recorrer novamente ao capital externo, o que supunha assegurar-lhe, como anteriormente, igualdade de tratamento no segmento de geração. A concentração de esforços no gerenciamento dos problemas relacionados à escassez de energia tende a se refletir também sobre o timing do encaminhamento das ações com vistas à regulamentação e aplicação dos dispositivos tarifários do Código. Em termos mais específicos, somente cerca de dois anos após a criação do CNAEE serão tomadas decisões concretas relativas à matéria, materializadas no Decreto-Lei nº. 3.128, datado de março de 1941. Com a edição de tal decreto, o governo federal finalmente estabelece princípios e critérios para a mensuração do valor a ser atribuído aos investimentos realizados pelas empresas em máquinas, instalações e equipamentos, necessária à operacionalização do princípio do custo histórico, bem como a margem de remuneração da atividade, fixada em 10% sobre o total do ativo imobilizado 159 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No entanto, a despeito dos inegáveis avanços obtidos, continuaram em aberto questões como a especificação de regras para o cálculo da depreciação do capital, além da definição de normas e procedimentos para a padronização da contabilidade das empresas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Cotrim, 1989, depoimento). Incompleta ou parcial, a regulamentação acaba por se manter como empecilho à transição para o novo regime tarifário. A persistência do impasse no tratamento operacional da matéria, num cenário de progressivo agravamento do déficit energético, irá convergir para a adoção de uma postura contemporizadora por parte do governo federal no confronto que vinha travando com as principais concessionárias do setor. Em termos mais específicos, a exigência legal de revisão dos contratos de concessão anteriores à promulgação do Código é formalmente abandonada por força do Decreto-Lei nº. 5.764, publicado em agosto de 1943. Além de sancionar os diversos contratos em vigor, tal decreto autorizava, ainda que “a título precário”, o reajustamento das tarifas de energia, enquanto não fossem celebrados novos contratos com a União. Com a medida, o governo não apenas “regularizava” aumentos de preços que já haviam sido realizados à sua revelia por diversas concessionárias (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; 1996), como “legitimava” novos reajustes tarifários, a título de recomposição das margens de retorno da atividade. Consolidando o afastamento em relação à via coercitiva adotada originalmente na condução das reformas institucionais do setor, o mesmo decreto permitia que os reajustamentos se fizessem com base em critérios de “semelhança e razoabilidade” (Decreto-Lei nº. 5.764), o que significava abrir mão, pelo menos transitoriamente, do princípio de custo histórico, substituído por uma negociação caso a caso, a ser conduzida pelo CNAEE. Mais importante, como o processo demandava complexos acompanhamentos dos custos incorridos pelas concessionárias na prestação do serviço, que escapavam à capacidade técnica e operacional do órgão, acabava ocorrendo, na prática, a transferência do poder decisório em matéria tarifária às próprias empresas. Conforme Lima, “o que se 160 fazia geralmente – e que se tornou um expediente permanente do setor elétrico muito utilizado pelas concessionárias – era lançar mão da contribuição previdenciária, do aumento de salários e da desvalorização cambial para justificar o pleito de uma revisão tarifária. Agora, planilha de custos, plano de contas ... só depois de 1950” (1995, depoimento) A preocupação do poder público em minimizar os efeitos perversos derivados da deterioração das condições operacionais do sistema no tocante à disponibilidade de energia elétrica tende a influenciar, portanto, os rumos das reformas institucionais do setor a partir dos anos finais da década de trinta. Sem capacidade de comando e implementação suficiente para impor suas decisões às principais empresas estabelecidas na área, especialmente Light e Amforp, o governo federal abandona ou suspende procedimentos e normas regulatórias introduzidas pelo Código cuja adoção é vista como potencial fator de desestímulo à realização de investimentos na expansão do parque gerador nacional. Subproduto do processo, a legislação dos serviços de eletricidade, como salienta Lima, se transforma num “emaranhado de dispositivos sem qualquer organicidade ou princípio básico” (1984: 45), refletindo os efeitos combinados de regulamentações parciais e intervenções tópicas. Os resultados obtidos, contudo, não são suficientes para evitar a necessidade de se recorrer a medidas de ajuste do lado da demanda, mais especificamente, ao racionamento de energia, o que se faz acompanhar dos primeiros ensaios na direção da intervenção direta do Estado nas atividades elétricas. 3.2 Crise energética, racionamento e a emergência da empresa pública nos serviços de eletricidade Apesar de abrangente, o movimento de flexibilização dos dispositivos regulatórios do setor não teve, pelo menos no curto prazo, resultados sensíveis no tocante à retomada dos investimentos na expansão do sistema. É verdade que a concessão de novos aproveitamentos hidráulicos, que pode ser tomada como indicador da disposição de investir das empresas setoriais, apresenta forte 161 recuperação a partir do final da década de trinta, superando o impacto negativo provocado pela promulgação do Código de Águas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). De fato, o número de concessões, que somara apenas 25 decretos de concessão expedidos no período 1935-38, salta para 44 em 1939, para se situar numa média anual superior a 40 na primeira metade da década de quarenta (Schwartzman, 1982). No entanto, tal recuperação não teve correspondência quanto ao lançamento de novos empreendimentos hidrelétricos. Dificuldades na importação de máquinas e equipamentos necessários à implantação das plantas geradoras durante todo o conflito mundial, que motivaram inclusive a realização de estudos com vistas à implantação de uma estrutura de produção interna na área (Draibe, 1985; Cento da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), e a persistência da conduta defensiva adotada pelas principais concessionárias frente aos intentos reformistas do governo repercutem negativamente sobre as decisões de investimento do setor, resultando num baixo volume de recursos alocados na implantação de projetos de geração. Em consequência, a expansão da potência instalada do sistema, que vinha se fazendo em ritmo lento ao longo dos anos trinta, torna-se ainda menos expressiva na primeira metade da década de quarenta. No período 1940-45, o incremento da oferta de energia elétrica, além de se situar em modestos 7,0% sobre o total (Quadro 3), resulta basicamente da ampliação da usina de Fontes, localizada no Rio de Janeiro, de propriedade da Light (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Müller, 1995). Como já ocorrera na década anterior, as concessionárias do grupo Amforp pouco investiram, o que também se aplica às empresas de capital nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). 162 Quadro 3 Evolução da Capacidade Instalada de Geração de Energia Hidráulica no País, em Anos Selecionados Período: 1940-45 Ano Potência - (MW) Índice de Crescimento 1940 1.009,3 100,00 1941 1.019,0 100,96 1942 1.060,6 105,08 1943 1.067,1 105,73 1944 1.077,0 106,71 1945 1.079,8 107,00 Fonte: Villela, A. V. e Suzigan, W. Política de Governo e Crescimento da Economia Brasileira: 1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1975: 365. Em contraste com a oferta, o consumo de energia elétrica aumenta em ritmo significativamente mais elevado37 (Mielnik e Neves, 1988; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), puxado, entre outros fatores, pela demanda industrial, cujo nível de atividade vinha se expandindo a taxas anuais em torno de 8% desde o final da década de trinta (Negri, 1996). Esse descompasso entre as decisões de investimento das empresas concessionárias e a disposição a consumir dos usuários dos serviços de eletricidade tende a exaurir as possibilidades da adoção de “soluções” baseadas na ampliação do grau de utilização da capacidade instalada do sistema. A crise de suprimento energético assume contornos mais acentuados, influenciando os rumos da política setorial, que avança no sentido do racionamento do consumo. O primeiro e importante passo em tal direção ocorre em concomitância à autorização para a implantação de novos empreendimentos hidrelétricos por 37 É ilustrativo dessa expansão o comportamento dos mercados das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que apresentam um incremento do consumo da ordem de 51,5% sobre o total no período 1940-45 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), mais de sete vezes superior ao correspondente crescimento da oferta. 163 empresas estrangeiras, e se processa através da edição do Decreto-Lei nº 4.295, de maio de 1942, “fixando medidas de emergência transitórias relativas à indústria eletroenergética. Pelo decreto, o CNAEE ficava autorizado a propor, entre outras alternativas para reduzir o consumo, a instituição do horário de verão, então denominado horário especial, e ainda a determinar o acréscimo da capacidade instalada das concessionárias mediante o aparelhamento mais eficiente das instalações existentes” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,1996: 16). No entanto, num reconhecimento implícito das dificuldades defrontadas pelo governo na busca de soluções satisfatórias para o problema pelo lado da oferta, que refletem, em particular, o próprio limite de sua capacidade de influenciar as decisões de investimento das empresas concessionárias na direção almejada, o decreto sinaliza para a adoção de medidas de racionamento. Sobre a questão afirma que, se não fosse possível atender plenamente as necessidades de consumo, o que de fato irá acontecer, “o fornecimento seria racionado segundo a importância das correspondentes finalidades, adotando-se, em cada caso concreto, uma seriação preferencial estabelecida pelo CNAEE” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 17). As normas e a regulamentação básica para a implementação do controle do consumo, cujo gerenciamento fica a cargo do CNAEE, são definidas através do Decreto nº. 10.563, de outubro do mesmo ano, repercutindo o rápido agravamento da crise energética do país. O decreto governamental institui duas modalidades de racionamento, o racionamento de caráter preventivo e o corretivo. O primeiro procurava se antecipar à manifestação do estrangulamento energético, contemplando ações capazes de reduzir ao máximo a ocorrência de descontinuidades no fornecimento de eletricidade e de minimizar os efeitos perversos delas decorrentes. Sua implementação poderia se dar a partir de uma deliberação autônoma do CNAEE ou do exame que este faria de solicitações formais com vistas à sua adoção, originárias das próprias concessionárias ou da 164 representação pública das áreas afetas ao problema38. O segundo estava voltado a assegurar a prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses particulares no tocante ao suprimento energético em casos de excesso de demanda frente à capacidade instalada do sistema, com a definição de prioridades de atendimento. “A conveniência de sua implantação deveria se analisada e decidida pelas autoridades estaduais e municipais competentes (...), e eventualmente, caso não fossem tomadas as providências cabíveis ou se houvesse demora em fazê-lo, pelo CNAEE (...)” que, em qualquer circunstância, “(...) poderia aprovar no todo ou em parte as providências tomadas, ou então vetá-las” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 18). A configuração objetiva de um quadro de escassez de energia elétrica não motiva apenas a regulamentação de medidas de racionamento, catalisando também a deflagração de um movimento de redefinição do papel do Estado no setor. Em outras palavras, o desempenho insatisfatório da atuação das empresas concessionárias quanto à qualidade dos serviços prestados aos usuários dos serviços de eletricidade – as “falhas” de mercado - abrem espaço para a ampliação do intervencionismo estatal na área, num processo que vai desembocar nos primeiros ensaios de gestão direta das atividades do sistema. Assim, entrelaçado ao esforço dirigido à retomada dos investimentos privados na expansão do parque gerador, fundado na flexibilização dos constrangimentos legais que haviam sido determinados pelo Código de Águas, o governo federal toma iniciativas no sentido do planejamento setorial e, o que é mais importante, autoriza a organização de empresas públicas de energia elétrica. Da preocupação com a ameaça de colapso no fornecimento de energia resultam os primeiros estudos e iniciativas com vistas ao planejamento do setor, consubstanciados no Plano Nacional de Eletrificação. Elaborado por uma 38 A solicitação poderia ser feita por autoridades civis ou militares, “mediante o encaminhamento, ao Conselho, de um documento justificativo sobre a conveniência da medida, incluindo os dados necessários para facilitar os estudo daquele órgão” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 17) 165 “comissão técnica especial”39 constituída ao final de 1943, o plano destaca a importância da retomada do fluxo normal de aplicação de recursos na expansão do sistema, de forma a garantir um suprimento “abundante e barato de energia não somente aos centros (...) deficientemente atendidos como para a incrementação das indústrias química, metalúrgica, agrícola, de mineração e de transporte” (Conselho Federal de Comércio Exterior, 1947: 5), relacionando um conjunto de projetos, propostos pelas principais concessionárias, convergente com a consecução deste objetivo. Sua contribuição de maior relevância, contudo, não radica propriamente em tal programação de investimentos, que apresenta caráter meramente indicativo, espelhando, em particular, os limites da intervenção estatal numa atividade delegada ao capital privado40, mas nas diretrizes que propõe, onde são enfatizados aspectos cruciais à trajetória evolutiva do setor ao longo das décadas subsequentes: a primazia dos aproveitamentos hidrelétricos frente à geração térmica e a importância da estruturação de uma coordenação centralizada para lidar com a sistemática decisória relativa à expansão do sistema. A primeira expressa a reafirmação da opção estratégica pela fonte hidráulica na conformação da matriz energética brasileira, tendo como elemento fulcral o enorme potencial hídrico do país. Mesmo numa circunstância que exacerbava as vantagens técnico-econômicas das plantas geradoras baseadas em fontes térmicas – respostas produtivas mais ágeis e maior flexibilidade locacional -, o plano não deixa dúvidas quanto à primazia atribuída à geração hidrelétrica, não só por assegurar menor custo unitário na energia produzida, mas por envolver um fator produtivo sobre o qual o Estado exercia pleno domínio, o que facilitava suas tarefas de ordenamento e controle da prestação do serviço. A segunda sinaliza para um novo modelo de organização das atividades elétricas, 39 Organizada pelo Conselho Federal de Comércio Exterior, tal comissão era formada por técnicos da Divisão de Águas e do CNAEE e irá promover “um amplo debate com representantes dos principais grupos da indústria da eletricidade” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 92). 40 O Plano se restringe, a rigor, a promover uma sistematização das programações de investimentos das principais concessionárias, em especial Light e Amforp. 166 baseado na interligação operacional do sistema, num aprofundamento das proposições gerais contidas no já citado Decreto-Lei nº. 345. A integração das áreas de mercado, em arranjos de conformação regional41, passa a ser vista, desde então, como uma espécie de rota natural para o desenvolvimento do setor, ao favorecer tanto o melhor aproveitamento da capacidade instalada de geração, como salientado no texto do decreto, quanto a apropriação de economias de escala e de escopo, potencializando benefícios diretos e indiretos à sociedade, sob a forma de maior confiabilidade no suprimento energético e níveis mais baixos de preços cobrados ao consumidor (Lima, 1984). Por sua configuração de resultado socialmente almejado, a materialização de tais arranjos introduz uma componente de intencionalidade que escapa à lógica de funcionamento do mercado, significando que não seria necessariamente alcançada a partir das agregação das decisões autônomas e descentralizadas das empresas atuantes na área. Deficiências de informação sobre as oportunidades efetivas de ganhos associadas à interligação operacional do sistema e, principalmente, custos de transação elevados criavam dificuldades ao avanço em tal direção, cuja superação supunha a redefinição da atuação estatal no setor, corporificada numa presença muito mais incisiva da ação coordenadora do poder público na esfera da produção que aquela até então exercida pelo CNAEE. Dito de outra forma, o papel a ser cumprido não se atrelava mais apenas à regulação das relações entre as concessionárias e os usuários dos serviços de eletricidade, compreendendo também a articulação da interação entre estas mesmas concessionárias, tendo em vista objetivos e metas definidos pela política pública. Além disso, as deficiências na alocação de recursos pela iniciativa privada, se persistentes ou não reversíveis, poderiam motivar a própria inserção estatal nas atividades setoriais, como preconizado na Constituição de 37. 41 A estratégia proposta pelo plano consistia em “dividir o país em regiões geográficas autosuficientes em recursos energéticos, de acordo com as respectivas demandas de energia elétrica” (Lima, 1984: 48). 167 Essa inflexão no sentido do incremento do intervencionismo estatal na área, imbricada nas proposições gerais do Plano Nacional de Eletrificação, já vinha sendo timidamente ensaiada no âmbito das administrações estaduais, num movimento autônomo e descentralizado de entrada de novos atores nas atividades do sistema. O pioneirismo na adoção de tal caminho pode ser atribuído ao governo de Minas Gerais que inicia, em 1936, a construção da usina de Gafanhoto, com o intuito de fornecer energia elétrica ao projeto de implantação do distrito industrial de Contagem, localizado nas proximidades da cidade de Belo Horizonte (Campolina, 1981; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Mais do que uma opção lastreada em argumentos favoráveis aos investimentos públicos em detrimento dos privados, a iniciativa reflete uma imposição do descompasso entre os propósitos industrializantes da administração estadual e a limitada capacidade de atendimento do sistema operado pela Companhia Força e Luz de Minas Gerais (Lopes, 1991, depoimento), subsidiária do grupo Amforp, que detinha a concessão de prestação do serviço na capital do estado. Em termos mais específicos, a construção da usina constituía pré-requisito para a viabilização do distrito industrial, que supunha um suprimento regular e confiável de energia elétrica, incongruente com os serviços prestados pela concessionária, induzindo o governo a fazer aquilo que o capital privado não se sentia estimulado nem compromissado a fazer. Embora represente o principal empreendimento da administração estadual na área da geração de eletricidade, a usina de Gafanhoto não representa uma ação isolada. Ao contrário, em 1942, é inaugurada a usina de Pai Joaquim, com capacidade instalada de 3,7 MW, para abastecer a cidade de Uberaba – importante centro pecuário do estado – e, em 1944, entra em operação a usina de Santa Marta, com 2,4 MW, voltada ao atendimento da cidade de Montes Claros (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996; Lopes, 1991, depoimento) – principal núcleo urbano do norte do estado. Em ambos os casos, os investimentos espelham a falta de interesse da iniciativa privada na prestação do serviço em tais localidades, numa clara ilustração das dissonâncias entre a dinâmica de mercado e as necessidades que se colocam sob a ótica do interesse público. 168 É essa mesma preocupação em prover serviços de eletricidade em áreas à margem da cobertura dos sistemas organizados e geridos pelas concessionárias privadas que motiva, quase à mesma época, a adoção de iniciativas similares por parte da administração do estado do Rio de Janeiro. Através do Decreto-Lei nº. 1.509, datado de 1937, o governo fluminense obteve concessão do governo federal para a produção e distribuição de energia elétrica em municípios localizados na região norte do estado que, até então, não haviam atraído o interesse do capital. No entanto, dificuldades encontradas na mobilização de recursos financeiros enfrentadas pela administração estadual vão comprometer e retardar a realização dos investimentos programados. Apenas em 1939 foi dada a partida para a implantação do principal projeto setorial proposto a usina de Macabu -, cujas obras, conduzidas em ritmo lento e sujeitas a frequentes paralisações, sofreram expressivo atraso em relação ao cronograma originalmente previsto (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Apesar dos inúmeros problemas com os quais se defronta, a incursão do governo estadual no campo da produção hidrelétrica, iniciada a partir da concessão outorgada pelo Decreto-Lei nº. 1.509, não será interrompida, avançando, ao contrário, no sentido da institucionalização. Assim, próximo ao final do Estado Novo, o governo federal autoriza a criação da Empresa Fluminense de Energia Elétrica (EFEE), objeto do Decreto-Lei nº. 7.825, de agosto 1945 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1984). Mesmo vindo a se estruturar efetivamente apenas nos anos cinquenta, a EFEE é emblemática da tendência à formação de empresas energéticas estaduais que viria a se consolidar nas décadas posteriores, expressando um dos traços mais marcantes da trajetória de estatização do sistema elétrico brasileiro, como se verá nos próximos capítulos. A despeito do pioneirismo das administrações de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a iniciativa mais consistente e ordenada de inserção dos estados na área remete ao Rio Grande do Sul, o que tem a ver também com problemas relacionados a respostas insatisfatórias do capital privado às necessidades 169 energéticas da sociedade regional. Seguindo as linhas gerais do modelo institucional adotado em nível federal, o governo gaúcho irá criar um órgão coordenador das atividades do sistema elétrico - a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE) -, com as atribuições de promover a racionalização do aproveitamento do potencial energético e melhorar a qualidade dos serviços prestados à população. Na sequência, elabora um plano regional de eletrificação, tendo como estratégia básica a montagem de um sistema interligado de centrais elétricas no âmbito do estado (Lima, 1984; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O passo seguinte consiste na transformação da comissão em empresa, dando origem à Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), que passa a centralizar o gerenciamento dos contratos de concessão dos serviços de eletricidade no estado, até então sob responsabilidade dos municípios (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). A existência de uma empresa pública na área de energia e a premência de solucionar problemas localizados de fornecimento de energia (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996) vão convergir, por sua vez, no sentido de induzir o avanço do governo estadual sobre um campo de atuação até então exclusivo do capital privado - a realização de investimentos na geração de energia elétrica. Assim, dois anos após a aprovação do plano regional de eletrificação pelo CNAEE, é inaugurado o primeiro aproveitamento hidrelétrico sob responsabilidade do setor público no estado, representado pela usina de Passo do Inferno. Com capacidade instalada de 1,4 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), essa pequena central hidrelétrica assinala, junto com iniciativas congêneres dos governos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a abertura de uma nova etapa do processo de organização institucional do sistema elétrico brasileiro, caracterizada pela progressiva estatização das atividades do setor. O incipiente movimento de inserção estatal nas atividades produtivas do sistema elétrico, esboçado nas ações dos governos estaduais, ganha contornos mais nítidos com a criação da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), por iniciativa do poder público federal. Instituída através do 170 Decreto-lei nº. 8.031, de outubro de 1945, a nova empresa tinha como propósito mais imediato promover o aproveitamento do potencial energético da cachoeira de Paulo Afonso, situada na bacia do rio São Francisco, com vistas ao suprimento energético da região Nordeste que, à exceção das capitais dos estados e algumas poucas cidades de maior densidade econômica e populacional, não se revelava atraente para o capital42. Num contexto marcado por forte pressão da demanda por energia elétrica, a centralização da atividade geradora em grandes centrais hidrelétricas tende a adquirir crescente saliência enquanto instrumento de racionalização dos investimentos na expansão da oferta de eletricidade, para se consolidar gradativamente como estratégia dominante do setor. O descolamento entre geração e distribuição pode ser entendido como pressuposto da própria ampliação da potência das unidades geradoras, implicando, por sua vez, estruturas de mercado mais flexíveis, no sentido de mais permeáveis ao intercâmbio de energia entre as empresas prestadoras do serviço. O adensamento sócio-econômico da ocupação do espaço territorial, impulsionado pelas dinâmicas de urbanização e industrialização, de um lado, e os avanços tecnológicos na área de produção e transmissão de energia (Lopes, 1991, depoimento), “advindas da descoberta da corrente alternada e do desenvolvimento de turbinas com grande capacidade de geração” (Rosa et al., 1998: 109), de outro, criam oportunidades não apenas para ganhos de escala, mas para economias de escopo, estimulando novos arranjos organizacionais com vistas à sua apropriação. É nesta direção que irá avançar o intervencionismo cada vez mais intenso do Estado na área, fomentando a materialização de alterações no perfil técnico e econômico dos empreendimentos hidrelétricos e a interligação operacional do sistema. 42 A região era atendida basicamente por subsidiárias do grupo Amforp, concentradas nas principais cidades, e pequenas empresas de âmbito local, ficando quase que todo o vasto interior nordestino à margem dos serviços de eletricidade (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Prevista para gerar 600 MW, a usina de Paulo Afonso antecipa, sob a ótica técnico-produtiva, duas características cruciais que vão marcar, a partir de então, a trajetória evolutiva do setor: o progressivo aumento da escala dos projetos de geração e o concomitante descolamento espacial entre produção e distribuição de energia. 171 4. O esgotamento de um ciclo e a necessidade de reorganização produtiva do sistema elétrico A eficiência alocativa atribuída ao mercado como mecanismo de coordenação dos processos produtivos apoia-se, entre outros pressupostos, na existência de um ambiente de competição entre os agentes econômicos, fundada por sua vez na ausência de restrições relevantes à iniciativa individual. A forma como o setor elétrico se organiza historicamente no país não atendia tal requisito, bloqueando a possibilidade de disputa direta entre as empresas prestadoras de serviço. A repartição administrativa da estrutura da demanda, determinada pela adoção do sistema de concessão, assegurava às concessionárias exclusividade de atuação em suas respectivas áreas de mercado. Em condições de monopólio, respostas da oferta à expansão da demanda nem sempre são adequadas e oportunas, já que aumentos na produção não implicam necessariamente ganhos proporcionais em termos de receita e lucro (Abreu, 1995; Henderson e Quandt, 1973). Assim, a ampliação do potencial de atendimento do sistema dependia, de um lado, da avaliação da concessionária a respeito das oportunidades econômicas criadas pelo aumento de seu mercado de consumo e, de outro, de sua capacidade de mobilizar os recursos necessários à realização dos investimentos produtivos. Os estímulos de mercado revelavam-se insuficientes, por si só, para garantir a convergência entre as decisões das empresas, baseadas em critérios que refletiam sua condição de agente monopolista, e as necessidades objetivas da sociedade. Isto tinha implicações em duas direções principais, ambas relacionadas à qualidade dos serviços prestados, vistos sob a ótica do interesse público. Primeiro, abria espaço para a ocorrência de situações de escassez de energia, refletindo descompassos entre a expansão da oferta e da demanda. Embora tenham adquirido maior visibilidade apenas nos anos quarenta, indícios localizados de dificuldades no suprimento de energia elétrica começaram a se manifestar ainda na década de vinte, quando houve uma intensificação no ritmo de crescimento do consumo, em conexão com avanço da 172 produção industrial e do movimento de urbanização no período. Ocorreram à época os primeiros estrangulamentos no fornecimento de eletricidade, tendo como cenário a cidade de São Paulo (Lorenzo, 1997), que já se caracterizava como o centro urbano-industrial mais dinâmico da economia nacional (Negri, 1996). Segundo, os serviços de eletricidade se estruturavam em estreita relação com a distribuição da população e das atividades produtivas no território: áreas com menor densidade de ocupação sócio-econômica tendiam a ficar à margem do processo ou então eram atendidas de forma precária. A despeito da incorporação relativamente acelerada de mercados, sobretudo a partir dos anos vinte, apenas os espaços mais dinâmicos e com perspectivas mais favoráveis de crescimento, localizados em sua ampla maioria na região Centro-Sul, contavam, na altura dos anos quarenta, com sistemas de suprimento melhor aparelhados (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). As imperfeições e falhas do mercado estão na raiz da emergência do Estado regulador, ocorrida em meados dos anos trinta. Marco referencial do processo, a promulgação do Código de Águas redefine em profundidade o arcabouço institucional de funcionamento do sistema, introduzindo novas regras e princípios ordenadores para a atividade. Altera, em particular, os procedimentos e critérios até então utilizados na definição das tarifas de energia, rompendo com a relativa autonomia decisória das empresas concessionárias no tratamento da matéria. Como mostra ampla literatura especializada, discutida no capítulo anterior, mudanças mais abrangentes no desenho institucional tendem a suscitar reações dos interesses afetos à questão, favoráveis ou contrárias às mesmas, de consequências nem sempre previsíveis, podendo levar inclusive à inviabilização, ainda que parcial, de sua implementação. É exatamente isto que ocorre com as reformas propostas para o setor. O controle institucional das tarifas introduzido pelo Código, incidindo sobre o principal estímulo para a realização de investimentos na área – a margem de lucros – vai se constituir no ponto central das controvérsias em torno da nova legislação. A tentativa governamental de implantá-lo pela via coercitiva não será 173 bem sucedida, defrontando-se com a resistência das principais concessionárias atuantes na área, em especial Light e Amforp. Além de criar dificuldades adicionais às tarefas de encaminhamento das reformas setoriais, aumentando a margem de imprevisibilidade e de contingências nelas contidas, esse conflito de interesses tem implicações em outra direção, com efeitos retroativos sobre o conteúdo destas mesmas reformas. Num ambiente instável, de incertezas quanto às regras do jogo, há um retraimento natural das empresas energéticas no tocante à alocação de recursos na expansão do sistema, que se descola das exigências da demanda, cujo incremento se faz em ritmo relativamente acelerado. Premido pelo risco cada vez mais acentuado de déficit energético, o governo procura estimular a retomada dos investimentos na área, flexibilizando ou mesmo abrindo mão de dispositivos da nova legislação, o que vai se revelar insuficiente, por si só, para reverter o quadro. À regulação vem se somar, então, a intervenção direta do Estado na dinâmica de mercado, consoante os princípios ordenadores expressos na Constituição de 37, anteriormente comentados. Falhas objetivas das relações de mercado, entendidas aqui como suprimentos de energia elétrica aquém dos requisitos da demanda, conduzem a ações em duas direções principais, complementares entre si. De um lado, o Estado, através da ação coordenadora do CNAEE, procura controlar a demanda, ajustando o consumo de eletricidade à capacidade de atendimento do sistema. De outro, atua no sentido de ampliar a oferta de energia, através da formulação e implantação de empreendimentos hidrelétricos. São ações que não se atêm ao governo federal, mas que envolvem determinadas administrações estaduais, mais especificamente, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, numa combinação contingente de necessidades concretas no tocante ao fornecimento de eletricidade internalizadas nas respectivas agendas políticas e capacidade de mobilização de recursos compatível com sua viabilização. A organização de empresas energéticas sob controle público - CEEE, EFFE e Chesf- e a proposição de um projeto hidrelétrico de grande porte - a usina de Paulo Afonso – sinalizam para a emergência do Estado empresário no setor, que irá se sobrepor, 174 de forma gradativa, ao Estado regulador ao longo das décadas subsequentes. No evolver desse processo, serão alterados os arranjos produtivos, a conformação das áreas de mercado e a própria regulação das atividades do sistema elétrico brasileiro. 175 IV. DO ESTADO REGULADOR AO ESTADO EMPRESÁRIO A segunda metade da década de quarenta se caracteriza como um período de ampla reconfiguração dos ambientes externo e interno da qual resulta uma redefinição dos padrões de constrangimentos e oportunidades que influenciam o desenho das políticas, os interesses e os parâmetros decisórios dos processos econômicos e sociais do país de um modo geral e das atividades elétricas em particular. Ao término da Segunda Guerra, segue-se um processo de reordenamento das relações econômico-financeiras internacionais, tendo como peça central a assinatura do Acordo de Bretton Woods43 . A remontagem do sistema monetário, financeiro e cambial internacional, junto com a reconstrução das economias dos principais países envolvidos no conflito, impulsionada pelo Plano Marshall44, criam condições mais favoráveis à retomada dos fluxos de financiamento e investimento entre as nações e estimulam a rápida normalização e dinamização dos fluxos de bens e serviços (Gonçalves et al, 1998; Baer, 1995; Willianson, 1989; Draibe, 1985). Em sintonia com as transformações no contexto internacional, o regime do Estado Novo entra em colapso, abrindo espaço para a reinstauração de uma ordem democrática no país. À deposição de Getúlio Vargas da Presidência da República, segue-se um curto período de transição políticoadministrativa, culminando na formação de um governo democraticamente eleito e na elaboração de um novo texto constitucional – a Constituição de 46 (Draibe, 1985; Ianni, 1977; Leopoldi, 1997; Corsi, 2000). As mudanças ocorridas no campo político, contudo, significaram sobretudo o revigoramento das funções do 43 Expressa o resultado objetivo da Conferência Monetária e Financeira promovida pelas Organização das Nações Unidas, em julho de 1944, contando com a presença de representantes de 44 países. Realizada em Bretton Woods (New Hampshire/USA), a conferência levou à assinatura de diversos acordos voltados ao planejamento e estabilização das economias e das moedas dos principais países capitalistas, envolvendo a criação de organismos supranacionais de apoio creditício e fomento aos processos produtivos, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) (Gonçalves et al (org.), 1998). 44 Plano de recuperação da economia dos países da Europa Ocidental no pós-guerra, lançado em 1947 pelo então secretário de Estado americano George C. Marshall, e que foi executado no período 1948-51 (Sandroni, 1994). 176 Congresso, numa ruptura com a assimetria de poder existente nas relações com o Executivo, amplamente favoráveis a este último, não implicando, de imediato, transformações de fundo na moldura institucional de ordenamento das relações sociais e econômicas. Em que pese a adoção de uma orientação liberal (Saretta, 1997; Lima, 1984), a nova Constituição manteve o cerne do padrão intervencionista assumido pelo Estado pós 30, promovendo basicamente o que Draibe (1985) designa como “enquadramento democrático” de sua estrutura administrativa e de seus mecanismos e instrumentos de atuação. O aspecto incisivo a ser ressaltado, para efeitos da análise pretendida, é que, a despeito da preservação dos traços fundamentais do aparato intervencionista do Estado – as alterações de maior relevância se concentraram, a rigor, na neutralização dos principais dispositivos corporativos introduzidos pela Constituição de 37, e na atenuação da orientação nacionalista adotada pela Constituição de 3445 (Saretta, 1997; Lima, 1985; Draibe, 1985) -, sua mobilização para ações de desenvolvimento não é automática, mas pressupõe uma plataforma de governo capaz de imprimir um direcionamento consistente ao processo de alocação e distribuição de recursos da sociedade. Implica, mais especificamente, a proposição de objetivos e metas a serem alcançadas nos campos social e econômico, e a definição de políticas para sua consecução. As perspectivas de êxito, por sua vez, dependem não só da qualidade de tais políticas, mas da capacidade efetiva de adotar as decisões que dão sustentação às mesmas. Adquirem saliência aqui questões relacionadas ao exercício do poder público nas democracias presidencialistas, entre as quais o grau de autonomia decisória que cerca a atividade governativa e o desempenho do governo no tocante à mobilização de apoio aos projetos e ações relevantes de sua agenda política. 45 Esse “padrão reformista” se aplica também às atividades do setor elétrico. O texto constitucional referenda e incorpora os princípios e diretrizes normatizadoras estabelecidas pelo Código de Águas, sem avanços expressivos no tocante à regulamentação dos dispositivos que ainda se encontravam pendentes de legislação complementar (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 177 São circunstâncias que trazem, para o plano central de análise, a forma como se dá a concepção e implementação da política pública sob os novos governos democráticos e suas interfaces com os serviços de eletricidade. A dinâmica dessa interação, que é, vale ressaltar, contingenciada por elementos relevantes dos contextos externo e interno, está na raiz da inflexão que irá ocorrer na trajetória de desenvolvimento do setor. Partindo do papel essencialmente regulatório desenhado nos anos trinta, o Estado avança no sentido da intervenção direta nas atividades do sistema, para se consolidar, já no início dos anos sessenta, como o principal responsável pela expansão do parque gerador do país. Tal processo, contudo, não é linear, nem expressa mudanças imediatas perseguidas pela política pública. Ao contrário, a nova rota vai sendo modelada gradativamente, onde consequências de decisões tomadas num determinado momento tendem a influenciar, seja como constrangimento, oportunidade ou ambas, decisões tomadas mais à frente, dentro do que se denomina de dependência de trajetória. De fato, apesar de a crescente deterioração na prestação dos serviços de eletricidade sinalizar, desde meados dos anos quarenta, para o esgotamento do modelo de organização das atividades do sistema então prevalecente, mudanças mais efetivas no modus operandi do setor somente irão ocorrer no início dos anos cinquenta, em conexão ao retorno de Vargas ao poder. Contrastando com imobilismo ou inércia política que caracteriza a atividade governativa na administração imediatamente anterior, comandada pelo Presidente Dutra, o novo governo marca a retomada da aspiração à industrialização como condição ao progresso econômico e social do país. A viabilização do esforço industrializante, por sua vez, atua no sentido de conferir centralidade à superação do estrangulamento no suprimento energético que havia se agudizado durante a gestão Dutra. É exatamente o imperativo de se buscar soluções para o problema que motiva e impulsiona o intervencionismo estatal no setor. Numa situação em que a retração dos investimentos privados na área é percebida e tratada como estrutural pelos novos gestores da administração 178 federal, a responsabilidade pela adequação da capacidade de atendimento do sistema tende a convergir para a órbita pública. Se a inserção estatal na esfera da produção revelava-se indispensável, já que constituía a solução possível, ao alcance do governo, fazia-se necessário criar condições operacionais compatíveis com o desempenho eficiente da função. O atendimento a esse propósito converge para a proposição de uma ampla reformulação nas bases de funcionamento do setor, centrada na estruturação de novos mecanismos para o financiamento de investimentos na área, conjugados ao protagonismo conferido à empresa pública. Na dimensão financeira, as propostas envolvem a criação de um novo tributo, o Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), para alimentar o Fundo Federal de Eletrificação (FFE), e, na dimensão operacional, a constituição da Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás), com a atribuição de responder pela gestão da aplicação dos recursos públicos no sistema. São mudanças que enfrentam a reação dos interesses das grandes empresas estabelecidas na área, que se mobilizam contra a ameaça representada pelo incremento do intervencionismo estatal na atividade, e de uma ampla frente de oposição política ao Governo Vargas, que procura dificultar ou impedir, dentro das regras do jogo democrático, a viabilização de seus principais projetos de cunho reformista no campo da economia, entre as quais as iniciativas relativas ao setor elétrico (Leal, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Lima Sobrinho, 1988, depoimento). Assim, apenas as propostas referentes à reconfiguração das bases de financiamento da atividade conseguem obter apoio parlamentar suficiente à sua aprovação no Congresso. A criação da Eletrobrás, muito mais polêmica do ponto de vista das mudanças que engendra, só terá sua viabilidade política assegurada anos mais tarde, já na década de sessenta. O intervencionismo estatal nas atividades elétricas recebe outro importante e decisivo impulso na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek, que sucede Vargas à frente do Executivo federal. Tal resultado não reflete propriamente uma opção estatizante da nova administração, mas uma imposição de sua agenda de governo, centrada numa estratégia de crescimento acelerado, 179 tendo como suporte a articulação e solidificação de nexos objetivos entre o Estado e o capital privado46, interno e externo. A urgência de superar o estrangulamento estrutural na oferta de eletricidade, intensificado durante a gestão Vargas, como requisito para o êxito do projeto desenvolvimentista acentua a preocupação com o encaminhamento de soluções para o problema, influenciando a definição de objetivos e estratégias da política pública para o setor. Passando ao largo de qualquer compromisso com o avanço das propostas reformistas formuladas na administração varguista, a ação governamental é dirigida para a obtenção de resultados rápidos no tocante à adequação da capacidade de atendimento do sistema. A alternativa encontrada consiste na intensificação dos investimentos públicos na área, suprindo a lacuna deixada pelo refluxo da iniciativa privada. Subproduto do esforço industrializante, a participação das empresas públicas nas atividades de geração cresce de forma explosiva a partir da segunda metade dos anos cinquenta, assumindo hegemonia frente ao segmento privado. A reconfiguração organizacional e produtiva do setor, em rápido processo de estatização, se faz sem rupturas com o arcabouço jurídico-normativo estabelecido pelo Código de Águas. Estrutura-se, em consequência dessa orientação estratégica adotada por Vargas e mantida por Kubitschek, um sistema dual na dinâmica de funcionamento do sistema, com a responsabilidade pelo desenvolvimento da atividade, originalmente delegada à esfera privada, através do instrumento da concessão, sendo partilhada e progressivamente transferida para a esfera pública. O Estado empresário passa a se sobrepor ao Estado regulador, sinalizando a obsolescência do arranjo institucional vigente. Vale dizer, o avanço do intervencionismo estatal implica, na prática, a gradativa endogeneização do processo regulatório no âmbito do circuito decisório do próprio setor, prescindindo, em larga medida, da mediação dos mecanismos específicos de regulação existentes, num claro esvaziamento do papel do 46 A atuação empresarial do Estado centra-se prioritariamente em áreas ao mesmo tempo essenciais ao processo de acumulação de capital e que não correspondem aos interesses diretos da iniciativa privada, com destaque para a infra-estrutura básica (Dain, 1985; Draibe, 1985). 180 CNAEE, que passará, mais à frente, por uma redefinição formal de suas atribuições e forma de atuação. Em conexão às transformações na dinâmica de funcionamento do sistema, processam-se também mudanças nas características de seus investimentos produtivos, tendo como traço saliente o salto na escala técnica e econômica dos empreendimentos hidrelétricos, esboçado com a construção da usina de Paulo Afonso, para se consolidar com a implantação de Três Marias e Furnas – ambas iniciativas do Governo Kubitschek. Como efeito lateral da ampliação do porte das unidades geradoras, os impactos sócio-ambientais ocasionados pelos projetos do setor, até então negligenciáveis e negligenciados, tendem a adquirir crescente magnitude e complexidade, suscitando a reação e mobilização das comunidades atingidas. A emergência desses novos interesses e atores significa mais que a introdução de novas dificuldades a serem enfrentadas pelos investimentos do sistema. Assinala a materialização de uma dissonância entre as exigências dos processos reais e as práticas convencionalmente adotadas na negociação das perdas impostas à população, dando forma a um novo tipo de problema, que irá exigir o aprimoramento dos dispositivos regulatórios do setor, cuja materialização vai se dar apenas em meados dos anos oitenta. 1. O “imobilismo” do Governo Dutra e o agravamento do estrangulamento energético do país Embora o novo cenário internacional que emerge do pós-guerra sinalizasse para a diluição das restrições econômicas e financeiras externas impostas pelo conflito mundial à economia brasileira, não se observam, no curto a médio prazo, alterações de maior relevância em relação à situação anterior. De um lado, o esforço de reconstrução das economias européias e japonesa tende a polarizar os fluxos de capital no imediato pós-guerra, mantendo ou mesmo aprofundando as dificuldades encontradas pelo país no acesso a financiamentos e na atração de investimentos produtivos (Diniz, 1997; Saretta, 1997; Lima, 1995). 181 De outro, a flexibilização das restrições aos fluxos de bens e serviços esbarra no rápido esgotamento das reservas nacionais acumuladas durante o conflito mundial (Saretta, 1997; Baer, 1995; Gonçalves et al, 1998), limitando, em particular, a capacidade de se importar máquinas, equipamentos e insumos necessários à retomada de um ciclo sustentado de crescimento econômico. Com a restauração da ordem democrática e a concomitante convocação de eleições gerais para os cargos do Executivo, assume o poder o General Eurico G. Dutra, eleito para um mandato presidencial de cinco anos (1946-51). Embora a concepção intervencionista do Estado tenha sido preservada no tocante à moldura institucional, a forma e o direcionamento imprimidos ao exercício do poder político passam por sensíveis alterações sob o novo governo, em especial no campo econômico, comparativamente à administração varguista que o antecede. A despeito de divergências interpretativas quanto às diretrizes e propósitos gerais que nortearam a gestão pública no período (Ianni, 1977; Saretta, 1997; Draibe, 1985), há razoável consenso na literatura especializada que as ações implementadas significaram, na prática, uma relativa desmobilização do ativismo estatal prevalecente à época do regime do Estado Novo (Draibe, 1985; Saretta, 1997; Mendonça, 1990). De fato, em contraste com a condução da administração pública sob o comando de Vargas, a política econômica do Governo Dutra não se articula em torno de uma agenda desenvolvimentista, conferindo prioridade à estabilização do ambiente macroeconômico, congruente com a orientação liberal prevalecente entre os novos gestores do Executivo federal (Ianni, 1977, Saretta, 1997). Esse realinhamento da ação governativa implica, objetivamente, o deslocamento, para plano secundário, das questões relativas à promoção da industrialização e crescimento da economia, com desdobramentos sobre a dinâmica de funcionamento do aparelho estatal. De um lado, os organismos “potencialmente capazes de cumprir funções centralizadoras de coordenação e planejamento” (Draibe, 1985: 141), herdados da administração varguista, passam por um processo de esvaziamento de atribuições e da autonomia decisória, tornando, em 182 simultâneo, a gestão pública mais permeável a ingerências de interesses políticopartidários ou de segmentos incrustados no aparato burocrático do governo (Saretta, 1997; Lima, 1984). De outro, há um refluxo no acionamento de instrumentos de apoio e estímulo às atividades produtivas (Draibe, 1985; Saretta, 1997), corolário da ausência de objetivos concretos a serem alcançados no tocante à expansão da economia (Draibe, 1985). As atividades do sistema elétrico não escapam aos efeitos dessa reorientação imposta à política pública na gestão Dutra. Acompanhando a redução do intervencionismo estatal no campo econômico, toma forma um quadro de relativa “inércia” político-institucional no setor. Em termos mais específicos, a atuação governamental relacionada aos serviços de eletricidade vai se caracterizar, em essência, por iniciativas pontuais, pouco consistentes e de curto alcance operacional. Sob a ótica institucional, não se avança além da adoção de medidas ad hoc, como a concessão de autorização para aumentos da tarifa de energia, atendendo a pressões das empresas, em especial as grandes concessionárias de capital estrangeiro, que dispunham de um eficiente sistema de lobby junto ao governo e ao Congresso (Leal, 1988, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O quadro pouco se altera sob a ótica produtiva, em que pese a iniciativa governamental de propor uma programação de investimentos em geração de energia elétrica, incluída no âmbito do Plano Salte47. A intervenção mais significativa da administração Dutra no campo das atividades elétricas remete à criação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), dando partida para a construção da primeira etapa do 47 Elaborado em 1948, sob a coordenação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o plano sistematizava sugestões de diversos ministérios, enfatizando as áreas de saúde, alimentação, transporte e energia (Lafer, 1975). No tocante à área de energia, a programação proposta, além de composta por relação de projetos definida sem critérios consistentes e sistematizados de priorização (Saretta, 1977; Draibe, 1985), não contava com o necessário suporte institucional e financeiro à sua implementação (Lessa, 1975; Draibe, 1985; Lima, 1984). Apoiada numa combinação complexa e ineficaz de receita tributária e emissão de títulos públicos (Draibe, 1985), estava condenada, de partida, ao fracasso operacional. 183 aproveitamento hidrelétrico de Paulo Afonso. No entanto, além de representar uma ação isolada de governo, tal iniciativa traduz, na prática, a continuidade da implementação de projeto concebido durante o regime do Estado Novo48, e que fôra incluído no texto da Constituição de 46 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), sob pressão da mobilização de parlamentares e governadores nordestinos (Oliveira, 1987, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tratava-se, ademais, de investimento cuja concepção extrapolava os parâmetros decisórios do setor elétrico, guardando relação mais estreita com objetivos de desenvolvimento regional ou, mais especificamente, a tentativa de reproduzir, no vale do Rio São Francisco, a experiência americana do Tennessee Valley Authority (TVA)49, avaliada como exitosa por parcela significativa da representação política no Congresso (Lopes, 1991, depoimento; Ferraz, 1993, depoimento). A propósito da questão, cabe registrar a posição defendida explicitamente pelo CNAEE, que discordava da prioridade conferida à construção Paulo Afonso, por considerar mais emergencial a canalização de recursos para a expansão do parque gerador da região Sudeste (Lima, 1995), então marcado por crescente déficit energético. Restritas a intervenções tópicas e sem diretrizes consistentes no tocante aos rumos do desenvolvimento do sistema, as iniciativas do Governo Dutra na área de energia elétrica vão se revelar incongruentes com a dinâmica das transformações sócio-econômicas em curso no país. O resultado será a rápida deterioração na qualidade dos serviços prestados pelas empresas concessionárias, aprofundando tendências já delineadas ao longo do transcurso da Segunda Guerra Mundial. Sem ações mais efetivas do poder público no tocante ao incremento da capacidade de atendimento do sistema, o déficit no suprimento energético se dissemina rapidamente por diferentes regiões do país, tornando inevitável a adoção de medidas de racionamento (Centro da Memória da 48 A criação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) foi proposta através do Decreto-Lei 8.031, de 03 de outubro de 1945, tendo como objetivo o aproveitamento do potencial hidráulico da cachoeira de Paulo Afonso (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 49 Projeto implantado nos USA, na década de trinta, tendo por concepção o aproveitamento múltiplo das águas do rio Tennessee, o que envolvia geração de energia, irrigação e navegação (Lima, 1995). 184 Eletricidade no Brasil, 1996). Isto impõe inegáveis custos ao conjunto da sociedade nacional e contribui para reforçar mudanças institucionais e organizacionais no setor, corporificadas na ampliação da gestão direta das atividades de geração e distribuição de eletricidade tendo como protagonistas administrações estaduais, num processo que se iniciara timidamente nos anos finais do regime do Estado Novo. 1.1 Agravamento do déficit de energia, racionamento e expansão das empresas energéticas estaduais A despeito da ausência de uma política de apoio e fomento à expansão da economia por parte do Governo Dutra (Draibe, 1985; Mendonça, 1990), a atividade produtiva brasileira cresce a uma taxa média na faixa de 6,0% na segunda metade da década de quarenta. O desempenho do setor industrial revela-se ainda mais favorável, com incremento à taxa média de 7,9% ao ano no período (Saretta, 1996). Tratada como “industrialização espontânea” (Skidmore, 1975) ou “industrialização não intencional” (Lessa, 1975), esse desempenho espelha, em larga medida, o aproveitamento mais eficiente do aumento da capacidade instalada de produção que havia ocorrido durante o período do Estado Novo (Baer, 1995; Coutinho e Reichstul, 1977). Como seria de se esperar, o crescimento acelerado da indústria, que se faz acompanhar de concomitante avanço do processo de urbanização, traz, como subproduto, a intensificação da pressão da demanda sobre a oferta de energia elétrica. As respostas produtivas do sistema elétrico aos estímulos do mercado, contudo, serão parciais e insuficientes para garantir um ritmo adequado de expansão no suprimento energético. Embora favorecidos pela redução das dificuldades na importação de máquinas e equipamentos, decorrente da progressiva “normalização” dos fluxos internacionais de comércio após o término da Segunda Guerra, os investimentos em projetos hidrelétricos tendem a ficar muito aquém dos requeridos por uma demanda cujo crescimento se fazia não apenas de forma horizontal, pela incorporação de novos consumidores, mas 185 também de forma vertical, pela intensificação do uso de energia, tanto familiar quanto produtiva (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, Mielnik e Neves, 1988). Esse descompasso entre as decisões de investimento do setor e a disposição a consumir da sociedade pode ser atribuído, em larga medida, aos efeitos combinados de uma série de elementos dos contextos interno e externo sobre as motivações e condutas estratégicas das principais empresas atuantes na área. Um primeiro e importante conjunto de fatores tem a ver com o caráter incompleto das mudanças nos princípios e regras de funcionamento do sistema, em especial no tocante à política tarifária, que repercute sobre a margem de riscos e incertezas na realização de novos investimentos no setor. A despeito dos inegáveis avanços ocorridos durante o período do Estado Novo, continuava em aberto o detalhamento operacional de critérios e procedimentos indispensáveis à definição das tarifas a serem cobradas na prestação do serviço, em conformidade com os dispositivos do Código. As poucas inovações introduzidas pelo Governo Dutra tangenciaram o problema, sem implicar aportes expressivos para o aperfeiçoamento e a consolidação do esforço reformista iniciado nos anos trinta. De um lado, procedeu-se à eliminação do princípio constitucional de nacionalização progressiva das fontes de energia hidráulica (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), com o intuito de reposicionar a atividade de forma mais favorável no circuito dos fluxos internacionais de capital. De outro, promoveu-se a regularização dos aproveitamentos das quedas d’água já utilizadas quando da promulgação do Código de Águas, dispensando-os da outorga de concessão, independentemente da revisão dos contratos de prestação de serviços (Calabi et al., 1983), o que atua no sentido de situação de fato, “legitimar” uma mas pouco contribuindo para a redução da margem de incertezas e riscos para as empresas do setor. Um segundo conjunto de fatores guarda relação com as dificuldades enfrentadas pelas concessionárias no tocante ao financiamento de seus investimentos produtivos, numa circunstância em que a expansão do parque 186 gerador avançava no sentido de projetos com crescentes exigências de aporte de recursos. Embora tivesse levantado o “congelamento” imposto às tarifas de energia, o governo federal continuava exercendo controle sobre os reajustamentos de preço praticados pelas empresas, o que acabava repercutindo sobre a capacidade de autofinanciamento do sistema (Coutinho e Reichstul, 1977; Cotrim, 1987, depoimento; Bhering, 1988, depoimento). Por sua vez, o estreito mercado financeiro interno e, mais importante, a persistência do fechamento do mercado externo, cujos recursos estavam sendo drenados para o esforço de reconstrução das economias européias e japonesa (Lima, 1995; Saretta, 1997; Diniz, 1997), não favoreciam a obtenção de empréstimos pelo setor. Ainda que esses constrangimentos tenham motivado iniciativas no sentido da estruturação de fontes específicas de recursos para os projetos de expansão do sistema, consubstanciadas na proposta de criação de uma tributação sobre os serviços de eletricidade, sob a concepção de imposto único (Lima, 1985; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), não ocorreram, durante o Governo Dutra, os necessários avanços em sua operacionalização. Sem “estímulos” adequados de mercado e com dificuldades na mobilização de recursos, pouco se altera o quadro de retraimento das concessionárias privadas quanto ao lançamento de novos empreendimentos hidrelétricos50. Nas circunstâncias de uma contenção dos investimentos de tais empresas, o principal empreendimento hidrelétrico do período vai ser implantado pelo governo federal, através de um projeto isolado, representado pela construção da usina de Paulo Afonso, cuja viabilização, vale ressaltar, só foi possível em função de empréstimo externo contratado junto ao BIRD. Sem o lançamento de outros projetos produtivos de porte, a expansão da capacidade produtiva do 50 Num ambiente instável, de elevada margem de riscos e incertezas, o grupo Light concentra seus investimentos basicamente no aumento da potência instalada de usinas hidrelétricas já construídas estratégia que potencializava a redução, absoluta e relativa, do volume de recursos a serem mobilizados. Em São Paulo, foram ampliadas as instalações da usina Henry Borden; no Rio de Janeiro, as usinas Pontes e Ilha dos Pombos também receberam novos grupos geradores (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Os investimentos do grupo Amforp, por sua vez, ficaram restritos essencialmente à implantação de projetos hidrelétricos de pequeno porte (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996; Cotrim, 1988, depoimento), menos exigentes quanto ao aporte de capital. 187 sistema elétrico na segunda metade da década de quarenta se faz sustentada principalmente na introdução de novas unidades geradoras em usinas pertencentes à Light (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Apesar de expressivo, sobretudo se comparado com o desempenho da primeira metade da década e o da década anterior, o crescimento da potência instalada no período, da ordem de 7,0% ao ano, fica aquém do ritmo de expansão da demanda. Em consequência, a escassez de energia, cujos sinais vinham se manifestando de forma episódica ou localizada desde a transição dos anos trinta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), deixa de ser uma ameaça para se tornar uma realidade, assumindo caráter estrutural no período. O déficit no balanço energético se espraia pela maior parte país, afetando especialmente aos estados das regiões Sul e Sudeste (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Aspectos objetivos do contexto influenciam as preferências e as condutas estratégicas dos atores afetos aos mesmos. Sob esse prisma interpretativo, a instauração de um quadro de “crise” energética terá efeitos em duas direções principais: a efetiva “institucionalização” da prática de racionamento de energia elétrica e o estímulo ao avanço da ação estatal sobre a esfera da produção. O primeiro ganha materialidade na atuação do CNAEE, que concentra esforços no gerenciamento da escassez de energia, em detrimento de outras ações inscritas no amplo espectro de suas atribuições institucionais. O segundo se expressa no aprofundamento das iniciativas que vinham sendo esboçadas por governos estaduais em busca de padrões alternativos de organização das atividades produtivas do sistema capazes de assegurar maior eficiência social na prestação do serviço (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), impulsionadas, de certa forma, pelo “imobilismo” da administração federal. Como pano de fundo, assiste-se à inclusão do debate em torno do desenvolvimento do setor na agenda das principais questões de interesse nacional. O racionamento de energia elétrica, instituído na primeira metade da década de quarenta como uma medida de caráter preventivo, não chegou a ser 188 efetivamente implementado no período. A expectativa do governo era de que as medidas adotas com vistas à redução dos constrangimentos jurídicos e administrativos impostos pelo Código de Águas ao desenvolvimento das atividades do sistema permitissem uma retomada dos investimentos produtivos das concessionárias privadas. Os resultados insatisfatórios obtidos com tal estratégia, traduzidos no agravamento do déficit energético ocorrido no pósguerra, no entanto, tornaram inevitável o controle do consumo. Sem êxito na tentativa de promover a adequação da oferta face à não cooperação das empresas privadas com os propósitos da política pública, a saída, compulsória, recai na administração da demanda. Incorporado ao cotidiano da sociedade brasileira a partir da segunda metade dos anos quarenta, o racionamento vai se tornar prática corrente até meados da década de sessenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), quando o suprimento do mercado volta a se normalizar em função da maturação de investimentos produtivos que serão realizados pelo Estado. Em paralelo, as inserções das administrações estaduais na esfera produtiva do setor, que começaram a se esboçar em meados dos anos trinta como resposta ao relativo “desinteresse” das empresas concessionárias quanto à ampliação de seus sistemas de geração e distribuição (Cotrim, 1988, depoimento), ganham impulso a partir da segunda metade da década de quarenta, tendo como principais cenários Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Trata-se, em essência, de um aprofundamento de decisões anteriores, onde o poder público busca suprir, através da alocação direta de recursos, necessidades que considera essenciais no tocante à prestação do serviço. Em ambos os estados, o esforço empreendido em tal direção aparece associado a objetivos de expansão e diversificação da base industrial e de correção de desequilíbrios regionais traçados pelos respectivos governos, levando à realização de investimentos complementares ou suplementares aos deficientes sistemas gerenciados pela iniciativa privada (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996; Diniz, 1997). 189 O caráter estratégico assumido pelos investimentos em geração no âmbito da política pública de Minas Gerais, cujos primeiros sinais transparecem na construção da usina de Gafanhoto, adquire contornos institucionais mais sólidos e sistematizados quando da proposição do Plano de Recuperação Econômica e Fomento da Produção, elaborado na administração Milton Campos (1947-51). Com o plano, consolida-se a idéia de que a industrialização era indispensável à superação do atraso relativo da economia mineira frente aos estados mais dinâmicos da federação – São Paulo e Rio de Janeiro -, o que demandava a superação dos estrangulamentos existentes nas áreas de energia elétrica e transporte (Diniz, 1985,1997). Defrontado com o reduzido volume de recursos que vinham sendo canalizados pelas concessionárias privadas para a expansão dos serviços de eletricidade, o governo mineiro propõe-se a ampliar potência instalada do estado, através do aumento de sua participação na construção de hidrelétricas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Na consecução desse propósito, desenvolve um esforço de aparelhamento institucional que engloba, entre outros elementos, a criação do Departamento de Águas e Energia Elétrica de Minas Gerais, a estruturação do Fundo Estadual de Eletrificação e a elaboração do Plano de Eletrificação de Minas Gerais. Executado a partir da transição para os anos cinquenta, o plano contempla, como principal investimento produtivo, a implantação da usina de Salto Grande - empreendimento de médio porte, com capacidade de geração da ordem de 50 MW -, cujas obras se iniciam em 1949 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Num processo de crescente aprimoramento institucional, a inserção estadual nas atividades do sistema adquire contornos irreversíveis pouco mais à frente, na administração Juscelino Kubitschek (1951-55), quando se dá a criação das Centrais Elétricas de Minas Gerais (CEMIG) Movido por razões similares, o governo do Rio Grande do Sul caminha aceleradamente na direção da conquista de uma presença marcante no âmbito do sistema elétrico estadual. O Plano de Eletrificação gaúcho, aprovado pelo CNAEE em 1945, preconizava não apenas um papel central para a administração 190 estadual no tocante à realização de investimentos na produção e transmissão de energia, mas a progressiva transferência de concessões outorgadas à iniciativa privada, assim que expirados seus prazos de validade, para o domínio da CEEE. Dando materialidade a essa orientação, a empresa energética do estado expande-se rapidamente, passando a responder, já na segunda metade dos anos quarenta, por razoável parcela da capacidade instalada do parque gerador regional, para se transformar, em meados da década seguinte, numa das principais concessionárias do setor elétrico brasileiro (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). 1.2 A discussão de “saídas” para a crise energética e a indefinição sobre os rumos do setor A configuração estrutural assumida pelo déficit energético, decorrente da gradativa e sistemática deterioração da qualidade dos serviços prestados pelas concessionárias privadas, leva a que as questões relativas à atividade assumam crescente centralidade na pauta dos assuntos de interesse nacional, com o acirramento dos debates sobre os rumos do desenvolvimento do setor. O cerne das discussões, acompanhadas de perto pela imprensa nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), tende a gravitar em torno do papel mais apropriado para o poder público na área correlativamente ao capital: o ajuste negociado dos mecanismos de regulação, isto é, o aprimoramento das funções reguladoras do Estado, preservando o domínio da iniciativa privada no sistema, ou a alocação direta de recursos nas atividades do setor, com uma inserção estatal mais incisiva na esfera da produção (Saretta, 1977; Mielnik e Neves, 1988; Draibe, 1985; Lima Sobrinho; 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Um dos principais fóruns onde vai se dar a abordagem do problema e das possíveis alternativas de “saída” para a crise energética será a Comissão Técnica Mista 191 Brasileiro-Americana de Estudos Econômicos, mais conhecida como Missão Abbink51. Dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da comissão resultam, entre outros produtos, a elaboração de uma programação de investimentos na expansão do sistema, embora esta não seja exatamente sua contribuição de maior relevância. De fato, a programação proposta, além de se limitar à definição de metas referentes ao incremento da potência instalada do parque de geração nacional e da rede de transmissão sem o correspondente detalhamento técnico e operacional dos projetos selecionados, pouco difere de um endosso aos objetivos e ações definidas pelo Plano Salte (Lima, 1984), que havia sido encaminhado, quase à mesma época, pelo governo federal à apreciação do Congresso. O principal aporte aduzido pela Missão Abbink tem a ver com sua análise da trajetória e das perspectivas de desenvolvimento da atividade, onde são sistematizadas as questões que vão estar no centro dos processos decisórios relativos à formulação das políticas para o setor ao longo das décadas subsequentes: o caráter estratégico dos investimentos em geração de energia, de um lado, e a necessidade da estruturação de fontes de financiamento para a viabilização de tais investimentos, de outro. Quanto ao primeiro aspecto, os trabalhos desenvolvidos pela comissão caracterizam as atividades elétricas como uma das áreas “críticas” da economia brasileira. Em termos mais específicos, os problemas no suprimento de energia são percebidos e tratados como “gargalo” ou ponto de estrangulamento para o desenvolvimento nacional, e seu equacionamento, condição indispensável à 51 Constituída formalmente em 1948, dando continuidade ao processo de cooperação técnico-institucional entre os dois países, que se iniciara durante o período da Segunda Guerra Mundial com a denominada Missão Cooke, tal comissão tinha, como principais objetivos, a identificação e análise dos obstáculos ou constrangimentos que se interpunham ao crescimento da economia brasileira e a correspondente proposição de políticas capazes de assegurar a dinamização do desenvolvimento nacional (Calabi e al, 1983; Lima, 1984; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Repercutindo os debates em curso na sociedade, os problemas relacionados ao setor elétrico vão assumir posição de destaque em sua agenda de trabalho. 192 viabilização do processo de industrialização da economia (Calabi et al, 1983; Lima, 1984). No que se refere ao segundo aspecto, estabelecem uma relação direta entre as deficiências da infra-estrutura energética e as dificuldades encontradas no aporte de recursos para a promoção de investimentos produtivos na área. A expansão do sistema, segundo esse diagnóstico, esbarrava na baixa capacidade de acumulação das concessionárias, atribuída à perda de rentabilidade na prestação do serviço decorrente do controle tarifário imposto pelo Código de Águas, e na estreiteza do mercado financeiro interno, pouco desenvolvido e, como tal, incapaz de atender adequadamente os requisitos de financiamento do setor (Calabi et al, 1983; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Face a essa percepção do problema, a discussão de fontes de recursos para a viabilização dos projetos produtivos do setor merece atenção especial por parte da comissão, que sugere três opções, não mutuamente exclusivas, para sua resolução, todas subordinadas a uma visão “privatista” da prestação do serviço. A primeira consiste na revisão dos dispositivos de fixação de tarifas, com o intuito de recuperar sua função de principal mecanismo de financiamento dos investimentos das empresas. Recorrendo ao argumento do princípio de autofinanciamento, preconizado pelo próprio Código de Águas, a comissão propõe a adoção de aumentos reais nos níveis de preços então praticados pelo sistema, endossando aquela que se constituía na principal reivindicação das grandes concessionárias, em especial a Light (Cotrim, 1987, depoimento; Bhering, 1987, depoimento; Lima, 1984). A segunda proposição pode ser lida como um instrumento para contornar a incipiência da oferta de crédito por parte do mercado financeiro nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Baer, 1995; Draibe, 1985). Isto se expressa na sugestão da criação de um fundo específico para o financiamento dos empreendimentos setoriais, a ser alimentado por recursos oriundos da cobrança de uma taxa adicional à tarifa de energia, o que, na prática, traduzia um aumento indireto ou disfarçado nos preços cobrados ao consumidor. Tal proposta 193 contemplava a estruturação de uma espécie de “banco de eletrificação”, com a atribuição de gerenciar a aplicação dos recursos arrecadados pelo fundo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A terceira e última alternativa sugerida guardava relação de complementaridade com a segunda e se traduzia na captação de recursos no mercado financeiro externo, principalmente através da contratação de empréstimos junto a organismos como o BIRD e o Export Import Bank (Eximbank) – este último, órgão de fomento ao comércio exterior do governo americano (Lima, 1995). Em que pese a premência da resolução da crise energética experimentada pelo país, tendo em vista seus efeitos perversos para a sociedade, a segunda metade da década de quarenta vai terminar bsem avanços importantes no tocante à definição dos rumos a serem seguidos pelo desenvolvimento da atividade. De um lado, proposições de mudanças institucionais na linha sugerida pela Missão Abbink não tiveram ressonância imediata sobre a política setorial, dado o próprio “imobilismo” que marca a gestão pública no Governo Dutra. De outro, iniciativas como a criação da Chesf e o início das obras da usina de Paulo Afonso, no plano federal, e a construção de centrais hidrelétricas, no plano estadual, apesar de importantes enquanto manifestação de tendência, caracterizavam-se como intervenções insulares, respondendo a problemas regionais, o que as tornavam insuficientes, por si só, para imprimir uma conotação estatizante ao sistema. Em síntese, nenhuma das concepções polares de ordenamento do setor – a prevalência de uma lógica de funcionamento lastreada na iniciativa privada ou a estatização da prestação do serviço - consegue aglutinar, no período, força política suficiente para impor, seja através do Executivo ou do Legislativo, um direcionamento objetivo a um desenho institucional ao mesmo tempo incompleto e tensionado por mudanças. 194 2. O segundo Governo Vargas e a reestruturação institucional do sistema elétrico O retorno de Getúlio Vargas à Presidência da República, em pleito direto ocorrido em 1951, assinala a retomada do compromisso do governo federal com o propósito de promoção do desenvolvimento nacional, em estreita conexão com o esforço de industrialização (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Mendonça, 1990; Baer, 1996; Ianni, 1977). A materialização desse propósito irá exigir decisões concretas no tocante ao padrão de intervenção estatal nos processos sócioeconômicos de um modo geral, implicando significativas mudanças na formulação e implementação da política pública, comparativamente ao Governo Dutra. Dentre as questões que serão colocadas em primeiro plano na agenda pública incluemse os problemas relacionados ao suprimento energético (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997, Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Num endosso a diversos estudos e diagnósticos realizados ao longo dos anos quarenta, em especial os trabalhos da Missão Abbink, as deficiências dos serviços de eletricidade são percebidas como “ponto de estrangulamento” do desenvolvimento nacional e, por consequência, obstáculo a ser superado como requisito para o avanço industrial do país (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997). Isto se explicita, em particular, no texto da Mensagem Presidencial enviada ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa de 195152. De acordo com a análise formulada em tal documento, a condição “para que a eletricidade seja um elemento do progresso e permita o desenvolvimento industrial não é meramente (..) que seja barata, (...) [mas] sobretudo que seja abundante” (Vargas, 1952: 222). Além disso, e igualmente importante, o mesmo documento afirma que a “oferta de energia deve preceder e estimular a demanda” (Vargas, 1952: 222), traduzindo uma mudança radical de enfoque na concepção da política setorial. Não se trata apenas de assegurar a adequação da oferta à demanda - orientação até então dominante -, mas de fazer, dos investimentos na 52 As mensagens presidenciais ao Congresso representam, conforme Draibe (1985), peças centrais utilizadas pela administração varguista na apresentação e defesa de suas propostas de governo. 195 infra-estrutura energética, suporte e estímulo ao desenvolvimento (Corsi, 1997; Leopoldi, 1997). Percebida como elemento estratégico para o êxito do processo de industrialização, a promoção de um salto de qualidade na infra-estrutura energética passava, no diagnóstico oficial, pelo aprofundamento do intervencionismo estatal na área, corolário das sérias dificuldades encontradas pelas empresas privadas em acompanhar, de forma satisfatória, o crescimento da demanda de eletricidade, em especial as necessidades de consumo do segmento produtivo. Em termos mais específicos, a deterioração que se observava na qualidade dos serviços de eletricidade só poderia ser revertida através da realização de investimentos públicos no sistema, ainda que complementar ao capital privado. Essa inflexão na atuação setorial do governo, por sua vez, implicava a reconfiguração das bases de organização da atividade, o que envolvia ações no campo institucional. Os caminhos potencialmente abertos à consideração governamental podem ser agrupados, para efeitos analíticos, em duas opções principais: a promoção de uma “reinstitucionalização” do setor, significando a transição para um arranjo institucional estruturado em torno de princípios e regras de funcionamento do sistema distintas das anteriores; ou o “aprimoramento institucional”, isto é, adaptações ou reformulações na institucionalidade vigente, respeitados os limites por ela impostos (Jepperson, 1991; Lima Júnior, 1997). A adoção da primeira alternativa supunha, concretamente, uma ruptura com o arranjo institucional estabelecido pelo Código de Águas, promulgado na gestão varguista anterior. Operando num contexto político redemocratizado, as ações do Executivo no campo institucional defrontavam-se com limites impostos pela divisão de poder com o Legislativo, o que dificultava, de partida, a introdução de revisões de fundo no arcabouço jurídico-administrativo do setor, aumentando a margem de riscos e incertezas quanto aos resultados da implementação dos intentos reformistas. Sem contar com uma sólida base de sustentação parlamentar (Leopoldi, 1997; Nunes, 1997, Ianni, 1977), a segunda alternativa 196 emergia como caminho mais indicado para o governo, à medida que minimizava os custos que se antecipavam elevados de uma reforma mais radical. Além disso, e mais importante, o Código de Águas ensejava oportunidades para alterações relativamente amplas no arranjo organizacional e produtivo do sistema, sem rupturas com o ordenamento institucional prevalecente. 2.1 Da regulação à intervenção direta: a concepção geral das reformas setoriais pretendidas pela administração varguista Independentemente da configuração objetiva das mudanças pretendidas na institucionalidade do setor, sua implementação exigia a obtenção do apoio do Legislativo, onde o governo não dispunha de maioria parlamentar. Com o intuito de “minimizar” as concessões ou compensações políticas que teria de fazer na negociação da matéria, a estratégia adotada pela administração varguista será orientada para a busca do maior grau possível de consenso quanto à necessidade do incremento do intervencionismo estatal na atividade, precedendo o encaminhamento propriamente dito das reformas, tendo como principal veículo as mensagens presidenciais enviadas ao Congresso. Afinados com os propósitos de gerar adesão e garantir sustentabilidade política às decisões, tais documentos procuram demonstrar, através de argumentos técnicos, não apenas a pertinência das propostas setoriais, sob a ótica do interesse público, mas sua adequação do ponto de vista legal e operacional, constituindo-se em recurso de convencimento político face à presumida resistência do Legislativo. O ponto de partida na “defesa” ou “legitimação” do incremento da intervenção estatal no setor pretendida pelo Executivo federal é a ênfase nos problemas provocados pelo estrangulamento energético para o conjunto da sociedade brasileira. Em sintonia com tal propósito, a Mensagem Presidencial de 1951 afirma que “a falta de reserva de capacidade e as crises de eletricidade representam processos de asfixia econômica de consequências funestas” (Vargas, 1952: 222), constituindo, portanto, obstáculos ao desenvolvimento 197 industrial e progresso social da nação. Aceita essa premissa, a ampliação da inserção do Estado na atividade não expressaria uma deliberação autônoma do governo, mas um imperativo legal, já que tanto o Código de Águas quanto a Constituição de 46 atribuíam ao poder público a responsabilidade pela adequada prestação dos serviços de eletricidade. A existência de razões válidas justificava mas por si só não assegurava, na visão do governo, a plena “legitimação” do avanço estatal sobre a esfera da produção. Com isto, a linha de argumentação será dirigida no sentido de mostrar que a realização de investimentos públicos na expansão do sistema constituía também a estratégia mais apropriada para a “solução” do problema, e não mera preferência por políticas de cunho estatizante. Para tanto, o discurso oficial recorre à “tese” da falta de opções ao alcance do poder público, isto é, da inexistência de outras alternativas satisfatórias de resolução do estrangulamento no suprimento de energia elétrica passíveis de serem implementadas pelo Executivo federal. De acordo com este raciocínio, a inserção do Estado nas atividades do setor seria, por exclusão, a alternativa mais adequada, já que a única factível. A validação desse argumento supunha “demonstrar” as reduzidas perspectivas de sucesso de qualquer ação governamental voltada a promover uma retomada dos investimentos produtivos das empresas privadas compatível com os requisitos da demanda. A retórica oficial vai se colocar aqui em posição diametralmente oposta a interpretações que associavam o descompasso entre crescimento da produção e do consumo de energia elétrica a constrangimentos institucionais criados pelo arcabouço de ordenamento e controle do setor à atuação das concessionárias. Para o governo, o problema teria raízes muito mais profundas e complexas, fundadas no próprio declínio do interesse do capital pelas atividades elétricas, circunstância em que não poderia ser equacionado através da mera revisão dos mecanismos regulatórios, como vinha sendo tentado até então, exigindo a intervenção direta no sistema. 198 O eixo central do argumento construído pelo Governo Vargas consiste em dissociar a insuficiência dos investimentos privados no sistema do desestímulo provocado pela redução dos níveis de retorno econômico da atividade determinada pelo controle das tarifas de energia53 – tese defendida no diagnóstico setorial elaborado pela Missão Abbink (Cotrim, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento). A forma como a questão é tratada no âmbito da Mensagem Presidencial de 1951 não deixa maiores dúvidas a esse respeito ao afirmar que, “apesar de lucrativas, as grandes empresas atuantes na área não têm atraído novos capitais em proporção conveniente e vêm retardando seu ritmo de expansão para não ultrapassar as possibilidades de autofinanciamento ou de obtenção de créditos com o apoio dos governos” (Vargas, 1952: 220). Vale dizer, a despeito das oportunidades para a obtenção de lucro proporcionadas pelo setor, as empresas atuantes na área vinham adotando uma postura conservadora no tocante à expansão do sistema, mantendo os investimentos dentro dos limites determinados pelo retorno econômico auferido com a prestação do serviço e recorrendo basicamente a financiamentos facilitados, em algum nível, pela interveniência do poder público. O embasamento ao argumento é essencialmente empírico e se apoia no paralelismo com os processos em curso nas principais economias capitalistas, que vinham passando, no pós guerra, por uma onda de nacionalização de empresas ligadas às atividades elétricas (Rosa et al, 1997). No texto da Mensagem Presidencial, o governo afirma que esse fenômeno seria derivado do “desinteresse do capital privado para serviços de utilidade pública” (Vargas, 1952: 220), do qual não escapariam nem mesmo os Estados Unidos. A emergência do Estado empresário na área, que se esboçava progressivamente no país, não expressaria, assim, uma singularidade brasileira, mas um movimento sintonizado 53 Ainda que reconhecendo a pertinência de se complementar a regulamentação dos dispositivos tarifários instituídos pelo Código de Águas, a interpretação oficial associava a retração da aplicação de recursos na geração de eletricidade a uma tendência mais geral de mercado no sentido do redirecionamento do capital para segmentos econômicos de lucros mais imediatos e amortização mais rápida e não aos efeitos do controle dos níveis de preços determinados pela política pública (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 199 com a dinâmica do capitalismo internacional. Numa situação em que, apesar de lucrativas, as grandes concessionárias privadas não proporcionavam respostas eficientes para o atendimento da demanda efetiva do mercado, os investimentos públicos surgiam como a solução possível para o problema, não constituindo, portanto, uma ingerência indevida num campo de atuação até então sob domínio da iniciativa privada. Num desdobramento lógico, o passo seguinte será a definição de parâmetros para a demarcação da fronteira produtiva entre as esferas privada e pública. Refletindo, mais uma vez, a preocupação com a viabilização política de suas iniciativas no setor, a diretriz geral proposta pelo governo para o encaminhamento do processo consiste em deixar a cargo do poder público basicamente “a responsabilidade de construir sistemas elétricos onde sua falta (...) representasse (...) maiores deficiências” (Vargas, 1952: 222). Dito de outra forma, a intervenção estatal não se processaria às expensas da iniciativa privada, mas em complemento à mesma, isto é, para suprir ineficiências ou lacunas de sua atuação. Assegurava-se formalmente precedência ao capital, sinalizando-se na direção de o espaço reservado às empresas estatais ser determinado, ainda que por via indireta, pelas próprias empresas privadas. A ênfase no caráter subsidiário atribuído aos investimentos públicos ganha relevância ao se observar que os maiores estrangulamentos no suprimento energético se concentravam nos principais centros urbano-industriais das regiões Sul e Sudeste (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Assim, a atuação empresarial do Estado tenderia a convergir, na prática, para áreas onde operavam as mais importantes concessionárias da Light e da Amforp - circunstância que transformava o avanço das empresas públicas numa ameaça concreta, e não apenas potencial, aos interesses destes grupos. Se a fricção com os principais interesses constituídos do setor prenunciava-se inevitável (Leite, 1988, depoimento; Lima Sobrinho, 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento), o governo procura reforçar previamente a base de legitimidade de suas decisões, atrelando-as à estrita observância dos 200 limites estabelecidos pelos princípios normatizadores do Código de Águas. Assim, além de orientados para as áreas com maiores problemas no suprimento energético, os investimentos estatais, como proposto na Mensagem Presidencial, seriam canalizados prioritariamente para as atividades de geração e transmissão de energia, onde se concentravam os estrangulamentos do sistema. Ademais, contemplariam sobretudo empreendimentos de grande porte que, por serem mais exigentes de recursos e apresentarem maior prazo de maturação, revelavam-se, em princípio, menos atraentes para o capital. Em síntese, não se pretendia, de acordo com o discurso oficial, concorrer com as empresas privadas nem avançar além daquilo que já vinha sendo feito, cabendo “ao governo federal (...) a iniciativa de grandes empreendimentos, de larga projeção nacional, como (...) a Usina de Paulo Afonso” (Vargas, 1952: 222-223). A implementação da política setorial não implicaria, portanto, uma ruptura com o capital privado, mas a estruturação de um sistema híbrido, no qual a intervenção estatal assumiria caráter supletivo às ações das concessionárias privadas já estabelecidas ou que viessem a se estabelecer na área. Num esforço adicional de cooptação de apoio político às suas proposições, o governo recorre, mais uma vez, ao paralelismo com o cenário internacional, salientando, na mesma Mensagem Presidencial ao Congresso, que, ao contrário da “tendência nacionalizadora nos principais países europeus, como a França e a Inglaterra” (Vargas, 1952: 220), o avanço do intervencionismo estatal, no caso brasileiro, teria caráter parcial, não expressando um fim em si mesmo, mas uma imposição da própria dinâmica do capital. Em termos mais específicos, a demarcação do espaço efetivamente ocupado pelo Estado nas atividades do sistema seria contingente e reflexivo da atuação das concessionárias privadas, isto é, da disposição e capacidade de inversão destas empresas face às exigências de uma demanda energética em constante expansão. A inflexão nas diretrizes setoriais da política pública proposta pelo governo supunha a criação de condições objetivas para a promoção dos investimentos públicos na expansão do sistema. Isto demandava, de um lado, a 201 ampliação das bases de financiamento do setor, com a instituição de fontes específicas de recursos para inversões na área, de forma a escapar aos constrangimentos da dependência em relação à programação orçamentária (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). De outro, fazia-se necessário o reaparelhamento administrativo do Executivo federal no tocante às atividades elétricas (Rangel, 1988, depoimento), já que a transição para um padrão de intervenção de recorte empresarial não se coadunava com um arranjo operacional estruturado em torno do exercício de uma função marcadamente regulatória. O timing das mudanças institucionais, como observa Sola (1998), é imprevisível e nem sempre coincide com o sentido de urgência imbricado nas políticas públicas. Esse aspecto será implicitamente reconhecido e incorporado na estratégia desenhada pela administração varguista para o setor. Refletindo a premência de proporcionar respostas ágeis para a pressão da demanda por energia elétrica, o governo se preocupa, em paralelo ao esforço de estruturação dos mecanismos e instrumentos operacionais que irão dar suporte ao incremento de suas ações empresariais na área, com a adoção de medidas voltadas à busca de resultados mais imediatos sob a ótica produtiva. As ações com vistas à consecução desse propósito convergem para a otimização do aproveitamento de recursos passíveis de serem mobilizados, no curtíssimo prazo, para investimentos no sistema, numa apropriação contingente de oportunidades proporcionadas pelo contexto internacional, mais especificamente, o acesso a linhas de financiamentos de organismos como o Banco Mundial (BIRD). 2.2 As medidas de curto prazo e seus efeitos a médio e longo prazos Num endosso tácito a proposição feita pela Missão Abbink, a contratação de empréstimos junto ao BIRD e Eximbank é percebida pelo governo como a alternativa mais plausível para suprir, no curto prazo, a insuficiência de recursos que vinha dificultando a promoção de investimentos em projetos hidrelétricos. No entanto, ao contrário da comissão, a administração varguista 202 atribui centralidade ao Estado no processo, o que seria, na interpretação oficial, congruente com contingências do contexto internacional54. Além de constituir elemento facilitador da captação de recursos externos para investimentos na área, a intermediação pública representaria uma espécie de pré-requisito para o incremento da atração de capital para outras atividades produtivas do pais. O intervencionismo estatal atenderia, portanto, não apenas a interesses do sistema elétrico, estrito senso, mas do conjunto da economia nacional, numa retórica onde se evidencia, mais uma vez, a preocupação com a legitimação das decisões do Executivo federal para o setor. A implementação da estratégia de captação de recursos no exterior será centralizada pelo governo federal na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos de Desenvolvimento Econômico (CMBEU), num arranjo operacional típico de processos de adaptação da ação às circunstâncias do contexto. Instalada formalmente em julho de 1951, isto é, pouco depois da posse de Vargas na Presidência da República, a comissão55 pode ser entendida como uma extensão dos trabalhos desenvolvidos pela Missão Abbink, no sentido de ter sido constituída com o propósito de conferir efetividade à recomendação, feita por esta última, de o país recorrer ao capital externo para o financiamento de investimentos de interesse nacional56. Tratava-se, a rigor, de uma forma de mediação técnica entre o governo brasileiro e as agências de financiamento, que supria a lacuna de um aparato interno com competência e capacidade operacional para desempenhar com eficiência o papel de interlocutor externo. 54 A respeito da questão, o discurso governamental desenvolvido na Mensagem Presidencial ao Congresso afirma que, “em face da experiência do pós-guerra na finança mundial, (...) deve-se esperar mais da cooperação técnica e financeira de caráter público, até porque a maior aplicação de capitais privados pressupõe a existência de condições que só podem ser criadas mediante inversões públicas em setores básicos, tais como energia e transporte” (Vargas, 1952: 220). 55 Conforme Draibe, “a missão era composta por cem técnicos de ambos os países e estruturou-se em comissões e subcomissões, cobrindo praticamente todas as áreas de atividade econômica” (1985: 159). 56 Cabe notar que, quando de sua instalação, “a CMBEU já contava com a garantia do Banco Mundial e do Eximbank para a concessão de crédito aos projetos formulados na comissão, até o valor de US$ 250 milhões” (Leopoldi, 1997: 37). 203 Poucos projetos foram idealizados pela própria comissão: sua principal atribuição consistia em promover uma análise de pré-viabilidade de projetos de investimento na área de infra-estrutura básica que se candidatavam a tais financiamentos, reelaborando ou complementando-os, se pertinente, de forma a adequá-los às exigências técnicas e financeiras dos organismos internacionais (Leite, 1988, depoimento; Cotrim, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento). A existência de uma intensa demanda represada ou latente por financiamento no setor elétrico irá se explicitar com clareza no âmbito dos trabalhos da CMBEU. A partir de uma triagem técnica de projetos apresentados pelas principais empresas atuantes na área, a comissão define uma programação de investimento em geração de energia elétrica para o período 1952-57 que representava um incremento da ordem de 683 MW na potência instalada do país, significando um acréscimo de cerca de 30% na capacidade de atendimento do sistema (Lima, 1995). Numa sinalização do vigor do movimento de estatização que vinha se delineando no vácuo criado pelo retraimento das concessionárias privadas, mais da metade dos recursos programados dizia respeito a projetos públicos, tanto no nível federal – em essência, a continuidade das obras da usina de Paulo Afonso -, quanto, e principalmente, estadual, onde se destacavam empreendimentos hidrelétricos da Cemig, CEEE e Uselpa (Lima, 1995), esta última pertencente ao governo paulista (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Adotada com o intuito de proporcionar respostas mais imediatas frente aos constrangimentos financeiros enfrentados na realização de investimentos em infra-estrutura básica, a captação de empréstimos externos supunha contrapartida de recursos nacionais, implicando, portanto, a necessidade de uma concomitante ampliação das fontes internas de financiamento. Assim, num singular efeito de retroação, a concessão de empréstimos pelas agências internacionais vai exigir, em sua viabilização, a estruturação de um esquema financeiro interno com vistas à integralização dos recursos requeridos pela implementação dos projetos aprovados. Essa “exigência” será atendida 204 através do Programa de Reaparelhamento Econômico57 (Draibe, 1985; Lima, 1995), num arranjo circunstancial e provisório recorrente na dinâmica institucional brasileira (Baer, 1996; Tavares, 1977; Sodré, 1975), fundado na busca de atalhos no encaminhamento de soluções para os problemas mais prementes da agenda pública. Instituído pela Lei nº. 1.474, de novembro de 1951, o programa buscava, em essência, prover fundos para projetos considerados estratégicos pelo governo federal – no caso, investimentos em infra-estrutura básica -, fundamentando-se na cobrança de taxas adicionais restituíveis sobre o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e sobre as reservas e lucros das empresas (Draibe, 1985; Lima, 1995). A adoção da estratégia de captação de recursos externos terá também efeitos indiretos importantes noutra direção, contribuindo para a implantação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Criado através da Lei nº. 1.628, de junho de 1952, o novo organismo pode ser entendido como uma resposta à necessidade de estruturação de um organismo tecnicamente capacitado para lidar com o gerenciamento dos recursos do Programa de Reaparelhamento Econômico e a administração e controle da implementação dos projetos selecionados pela CMBEU58. Numa acepção mais ampla, materializava o esboço de uma agência nacional de fomento às atividades produtivas, emblemática do relativo amadurecimento do Estado intervencionista e comprometido com a promoção do desenvolvimento econômico, cujos contornos vinham se delineando desde os anos trinta (Gouvêa, 1994; Draibe, 1985; Beloch e Abreu, 1984; Martins, 1985; Baer, 1996). É nessa condição que o órgão assume a responsabilidade pela coordenação e controle dos investimentos públicos na expansão do sistema elétrico programados pela administração varguista. Atuando 57 Idealizado pelo governo federal com o intuito de provisionar recursos para projetos em setores considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional, entre os quais os investimentos do sistema elétrico (Draibe, 1985; Lima, 1991) 58 Segundo Lucas Lopes (1991, depoimento), a criação do BNDE partiu de proposição da CMBEU, que considerava indispensável a existência de um agente financeiro responsável pela administração dos recursos da contrapartida interna aos empréstimos externos e pela garantia do reembolso dos mesmos. 205 no vácuo institucional até então existente de um organismo com a atribuição específica de responder por tais ações, o BNDE avança na direção da gradativa incorporação de novas e importantes funções na área para se constituir, a partir da segunda metade dos anos cinquenta, numa espécie de “banco da eletricidade” (Draibe, 1985; Lima, 1995). Materializa, em certo sentido, sugestão proposta no âmbito dos trabalhos da Missão Abbink, cumprindo um papel que o levará, mais à frente, a uma posição de confronto com a implementação das reformas institucionais formuladas para o setor, num resultado não antecipado nem pretendido pelo governo. 2.3 As medidas de médio e longo prazos: os projetos de reordenamento institucional do setor Em conexão ao esforço de revitalização dos investimentos na expansão do sistema, alicerçada na captação de recursos externos, o Governo Vargas irá desenvolver esforços no sentido da promoção de uma reestruturação mais profunda nas bases financeiras e institucionais do setor, buscando equacionar, numa perspectiva de longo prazo, a crise energética vivenciada pelo país, de forma a atender as expectativas de forte crescimento da demanda de eletricidade, decorrente de um novo ciclo de industrialização que se esperava alcançar sob o impulso da ação coordenadora do Estado. Como visto, a consecução de tais propósitos passava, sob a ótica oficial, pelo aprofundamento da inserção estatal na geração de energia elétrica. Isto exigia, de um lado, provisionar fontes sólidas e previsíveis de recursos para o financiamento dos projetos a serem implantados pela administração pública; de outro, criar uma estrutura de planejamento e gerenciamento da aplicação de tais recursos, capaz de assegurar a racionalização do processo decisório e a eficácia nos resultados obtidos. O atendimento ao primeiro requisito vai se traduzir na proposta de geração de recursos através da cobrança de um tributo específico para as atividades elétricas, compondo um fundo vinculado estritamente a aplicações na 206 área. Para lidar com o segundo bloco de questões, serão propostas a criação de uma empresa estatal para coordenar as ações estatais na esfera da produção, representada pela Eletrobrás, e a adoção da sistemática do planejamento setorial, sob a forma de um plano nacional de eletrificação, nos moldes das iniciativas pioneiras dos governos dos estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. À frente do processo estará não o CNAEE, mas a Assessoria da Presidência da República, que funcionava, ainda que informalmente, como núcleo central da articulação e formulação da agenda política do Governo Vargas (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Leite, 1988, depoimento). Vale dizer, nas circunstâncias de um Estado insuficientemente aparelhado no tocante à capacidade de comando e gestão, a despeito dos consideráveis avanços ocorridos pós anos trinta (Draibe, 1985; Nogueira, 1998), as questões estratégicas relativas aos serviços de eletricidade tendem a escapar ao controle do aparato técnico-administrativo com competência formal para responder pela formulação e implementação da política setorial, sendo capturadas pelo organismo que passa a reunir os atributos de agência encarregada de dar coerência e coordenar as ações de governo em sentido amplo. Submetida aos princípios constitucionais de uma democracia presidencialista, a reconfiguração do padrão de intervenção estatal nas atividades do sistema elétrico pretendidas pelo Executivo federal, que supunha mudanças substantivas na institucionalidade do setor, estava condicionada à negociação no e com o Legislativo. Se as deficiências na prestação dos serviços de eletricidade favoreciam, em princípio, a mobilização de apoio político aos intentos reformistas do governo, não evitavam, contudo, sua exposição a ingerências de interesses afetos à questão, capazes de provocar desvios em relação aos propósitos pretendidos ou mesmo de frustrar, ainda que parcialmente, sua efetiva implementação. Os riscos e incertezas no tocante à tramitação da matéria no Congresso não eram estranhos à Assessoria da Presidência (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Lima, 1995), até porque o histórico de resistência das grandes concessionárias, especialmente a Light, à introdução de 207 qualquer mudança institucional que criasse constrangimentos a suas atividades (Leite, 1988, depoimento; Cotrim, 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento) não deixava maiores dúvidas a respeito. A isto se somava a esperada fricção junto a parlamentares com posições contrárias ao incremento do intervencionismo estatal na economia, num reforço à já expressiva bancada de oposição a Vargas no Legislativo (Draibe, 1985, Nunes, 1997; Leopoldi, 1997). A prévia percepção das dificuldades a serem enfrentadas confere saliência à mobilização dos meios políticos de execução das reformas, mais especificamente à necessidade de se buscar formas de encaminhamento e de articulação política capazes de aumentar a probalidade de sucesso na implementação das propostas de mudanças formuladas para o setor. A propósito da questão, a dinâmica do processo de negociação dos projetos governamentais referentes à área de exploração de petróleo59, que haviam suscitado forte reação política quando de sua apreciação no Congresso (Leopoldi, 1997), acabou servindo, conforme Rangel (1988, depoimento), como uma espécie de ensaio ou laboratório para a tomada de decisões relativas às atividades elétricas. Assim, referenciando-se nos subsídios proporcionados por tal processo, a estratégia adotada pela Assessoria Econômica consiste, em essência, na opção por uma negociação gradual ou em etapas, e não em bloco, das medidas que compunham a política setorial, sem prejuízo de sua consistência global. As propostas de reconfiguração institucional do sistema serão desdobradas em quatro projetos de lei, com a configuração formal de projetos isolados e fechados em si mesmos (Leopoldi, 1997; Lima, 1995), numa tentativa do governo de descaracterizar a extensão e o alcance de seus intentos reformistas (Leite, 1988, depoimento; Magalhães, 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Na avaliação da Assessoria, além de aumentar a opacidade das mudanças setoriais, o que 59 A proposta de criação da Eletrobrás teve, como modelo, a lei que criara a Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobrás), constituída como uma sociedade de economia mista com participação majoritária do governo federal, com o intuito de explorar as jazidas brasileiras de petróleo e de responder por seu refino (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Sandroni, 1994). 208 contribuiria para reduzir as tensões ou pressões em torno das mesmas, o encaminhamento em separado dos diversos projetos no Congresso era vista como uma forma de minimizar o risco de as dificuldades na aprovação de proposições potencialmente mais polêmicas se estenderem às menos polêmicas, o que poderia ocasionar, inclusive, o fracasso global das negociações (Leite, 1988, depoimento; Magalhães, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997). Obedecendo à estratégia traçada, os projetos com menor potencial de fricção e, portanto, com maior probabilidade de aprovação no Congresso deveriam, e vão, anteceder aqueles cuja tramitação se prenunciava mais complexa e, consequentemente, mais lenta. Além de reduzir os riscos da ocorrência de rejeição por “contágio” e, com ela, de rejeição em bloco, essa forma de negociação criava condições, em princípio, para a antecipação da implementação das proposições com menor grau de fricção junto ao Legislativo (Rangel, 1988, depoimento), dentro de uma sistemática de avanço gradual das mudanças estruturais propostas para o sistema. Assim, baseada em expectativas quanto às reações políticas que seriam suscitadas pelas reformas (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento), a Assessoria da Presidência define uma ordem de encaminhamento na qual os projetos relacionados à expansão das bases de financiamento do sistema vão preceder as propostas mais diretamente associadas ao incremento do intervencionismo estatal na esfera da produção. Dentro do ordenamento processual definido pela Assessoria, o primeiro projeto de reforma encaminhado à apreciação do Congresso consiste na proposta de instituição do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), cuja arrecadação deveria compor, junto com outras receitas fiscais, um fundo específico vinculado a aplicações na área de energia elétrica, com a denominação de Fundo Federal de Eletrificação (FFE) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima , 1984). Em sintonia com as diretrizes gerais da política setorial, antecipadas na Mensagem Presidencial de 1951, os recursos do Fundo seriam destinados estritamente a investimentos de empresas públicas (Lima, 1995; Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Além disso, ainda que voltados 209 prioritariamente à geração e transmissão de energia, os financiamentos contemplavam também projetos na área de produção de material elétrico pesado (Lima, 1995; Leite, 1988, depoimento), num resultado que expressava, em particular, a subordinação das decisões relativas ao setor aos objetivos mais amplos da política desenvolvimentista do governo (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Rangel, 1988, depoimento), que procurava apoiar segmentos da indústria de base considerados estratégicos para o país. Na avaliação da Assessoria, o projeto não deveria suscitar resistências expressivas junto ao Legislativo (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1991, depoimento). Primeiro, a própria Constituição de 46 já previa a criação de tributo sobre o consumo de energia elétrica, nos moldes do IUEE, conferindo, de partida, forte respaldo político à proposta governamental. Vale lembrar que sua criação chegara a ser cogitada no período da administração Dutra, sinalizando a existência de razoável consenso em torno da matéria. Segundo, a repartição da receita arrecadada com o imposto, proposta no projeto, destinava 60% do total para estados e municípios, ficando a União com apenas 40% do total, o que contribuía para capitalizar apoio de parlamentares comprometidos com a defesa de interesses locais e regionais, de forte presença no Congresso (Lima Júnior, 1997). Terceiro, apesar de sua concepção estatizante, o FFE favorecia, ainda que de forma indireta, os interesses das grandes empresas privadas do setor. Na condição de detentoras da concessão da exploração dos serviços de eletricidade nos principais mercados do país, os grupos Light e Amforp representavam canais naturais de comercialização final da energia que viria a ser gerada pelas empresas públicas, com o suporte financeiro do fundo (Leopoldi, 1997; Magalhães, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento). Dispondo dessa alternativa, poderiam reduzir os investimentos próprios em produção para concentrá-los no segmento de distribuição, reconhecidamente o mais rentável do sistema (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Além desses aspectos favoráveis, as perspectivas de sucesso no encaminhamento do projeto acabaram sendo reforçadas por um fator acidental, 210 mais especificamente, a dissolução da CMBEU, por decisão unilateral do novo governo americano60, em simultâneo à sua tramitação no Congresso. Os problemas decorrentes dessa decisão, que tende a afetar a contratação de empréstimos no exterior (Lima, 1995; Leopoldi, 1997), especialmente junto ao Eximbank, dificultando ou mesmo inviabilizando a implantação de projetos hidrelétricos já decididos, vieram tornar ainda mais emergencial a estruturação de fontes internas de recursos para o financiamento dos investimentos do setor. Enviada ao Congresso em maio de 1953, a proposta de criação do IUEE e FFE será aprovada através da Lei nº. 2.308, de agosto de 1954 (Lima, 1995), poucos dias após o falecimento do Presidente Vargas. O segundo projeto setorial formulado pela Assessoria tinha caráter complementar ao primeiro, especificando a forma de distribuição da receita do IUEE entre estados e municípios, bem como os procedimentos básicos para a administração do FFE. Tratava, portanto, de questões politicamente mais complexas e polêmicas, à medida que potencializava conflitos concernentes à obtenção de mais ou menos recursos, onde aumentos de ganhos para qualquer um dos potenciais beneficiários dos recursos, fossem eles estados ou municípios, implicavam necessariamente sacrifícios ou perdas de outros, numa situação típica de jogo de soma zero. Sua aprovação passava, portanto, pela acomodação dos múltiplos interesses locais e regionais imbricados na matéria, num processo de concessões progressivas em busca de acordo. Tal processo se prenunciava demorado face ao “comportamento distributivo-extrativista” que, conforme Lima Júnior (1997), tende a permear as negociações estabelecidas no e com o Congresso brasileiro ao longo da história política contemporânea do país. Num resultado já esperado pelo Executivo federal (Leite, 1988, depoimento; 60 Os entendimentos intergovernamentais com vistas à constituição da CMBEU tiveram início ao final do Governo Dutra, embora sem caráter oficial. Retomadas oficialmente pelo Governo Vargas, as negociações foram concluídas em abril de 1951, com a instalação formal ocorrendo pouco depois, em julho de 1951. Mudanças na política interna americana levaram à ruptura do acordo de cooperação em julho de 1953 (Centro da Memória da Eletricidade, 1991), embora os trabalhos da comissão tenham se estendido “oficiosamente” até dezembro de 1953 (Leite, 1988, depoimento). 211 Magalhães, 1987, depoimento), o conflito de interesses em torno dos critérios objetivos de repartição da receita arrecadada com o novo tributo irá demandar um esforço muito maior de negociação que aquele exigido em sua criação. Assim, enviado à apreciação do Congresso em agosto de 1953, a proposta governamental de regulamentação só será aprovada mais de três anos depois, já no Governo Kubitschek, através da Lei nº. 2.944, de novembro de 1956 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), com a incorporação de várias alterações em relação à proposta original (Lima, 1995). O atraso na tramitação e aprovação dos projetos referentes à ampliação das bases de financiamento do sistema irá se refletir sobre a implementação da estratégia traçada pela Assessoria da Presidência de descaracterizar a existência de um conjunto mais amplo e integrado de mudanças no padrão de intervenção estatal no setor. Como observa Diniz, “o movimento do real comporta sempre algum grau de imprevisibilidade e de contingência” (1997: 194), exigindo adaptações ou correções de rumo que podem significar o abandono de cursos de ação previamente selecionados. De certa forma, é isto que se passa com a condução das reformas setoriais: os outros projetos que completavam a política traçada pelo Governo Vargas para a área de energia elétrica vão ser encaminhados ao Congresso antes da aprovação das propostas anteriores. Assim, em abril de 1954, seguem para a apreciação do Legislativo o projeto de lei nº. 4.277/54, contendo a programação de investimentos na expansão do sistema elaborada pela administração varguista, corporificada no Plano Nacional de Eletrificação (PNE), e o projeto de lei nº. 4.280/54, propondo a criação das Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Rangel, 1988, depoimento). Independentemente dos resultados objetivos de sua implementação que, como se verá mais adiante, não logrará êxito, o PNE contribui para explicitar, ainda que de forma não intencional, a inadequação operacional do aparato governamental existente frente à pretendida ampliação do escopo do intervencionismo estatal nas atividades do setor elétrico. Reproduzindo situação 212 já ocorrida na gestão presidencial de Dutra, quando acabou desempenhando papel apenas secundário na elaboração da programação de investimentos para a área de energia elétrica proposta no âmbito do Plano SALTE, o CNAEE também não teve participação efetiva na formulação do plano varguista. Ao mesmo tempo que reflete, esse fato atua no sentido de reforçar a “especialização funcional” do órgão no desempenho de atividades essencialmente regulatórias, nas quais vinha se concentrando desde sua criação. Com uma estrutura operacional relativamente pequena (Bhering, 1987, depoimento), o CNAEE não estava nem se considerava adequadamente capacitado para lidar com o planejamento e coordenação dos investimentos na expansão do sistema (Pereira, 1975; citado por Lima, 1984), num resultado que “legitima”, sob a ótica da eficiência das ações de governo, a proposta de constituição da Eletrobrás, que vinha exatamente ao encontro do preenchimento de tal lacuna. Em linha similar de raciocínio, pode-se associar ao PNE outro importante efeito secundário, que é o de conferir contornos mais objetivos à reconfiguração das relações entre o poder público e a iniciativa privada no campo das atividades elétricas pretendidas pelo governo. Afinado com as diretrizes setoriais propostas na Mensagem Presidencial de 1951, caberia às empresas públicas a realização dos investimentos mais exigentes de recursos e de prazos mais longos de retorno para o capital aplicado (Draibe, 1985; Lima, 1984). Às empresas privadas competiria sobretudo a alocação de recursos no segmento de distribuição, onde demonstravam maior eficácia operacional (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento), até porque mais rentáveis, e no qual desfrutavam de evidentes vantagens competitivas, decorrentes do controle monopolístico sobre os principais mercados assegurado por contratos de 213 concessão em vigor61. Outra contribuição importante do PNE no tocante à demarcação das funções empresariais do Estado vis-à-vis a iniciativa privada tem a ver com o segmento de produção de material elétrico pesado. Sua programação contemplava projetos na área da produção de máquinas e equipamentos para as atividades elétricas (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Lima, 1995), que, embora relativamente secundários sob o prisma financeiro, cumpriam uma dupla finalidade. De um lado, proporcionavam referências estratégicas para o capital privado, apontando para as oportunidades de mercado potencializadas pela pretendida dinamização dos investimentos na expansão do sistema elétrico. De outro, sinalizavam para a disposição do Estado em assumir a responsabilidade pela implantação de empreendimentos na área - tratada como condição de viabilidade e garantia do sucesso do programa energético proposto (Draibe, 1985) -, caso as respostas produtivas da iniciativa privada, por desinteresse ou dificuldades de mobilização de recursos, não fossem satisfatórias. A criação da Eletrobrás, por sua vez, impunha-se como desdobramento lógico da ampliação e aprofundamento da intervenção estatal nas atividades produtivas do sistema. O incremento dos investimentos públicos em geração e transmissão de energia, projetado no PNE, implicava o desempenho de funções de recorte empresarial relativamente incongruentes com o perfil institucional do CNAEE. Definida pelo Governo Vargas como “o instrumento de ação prática de 61 De acordo com essa “divisão de trabalho”, cerca de 70% da programação financeira do plano tem a ver com investimentos na área de geração, compreendendo projetos que representavam um incremento da ordem de 5.000 MW na oferta de energia elétrica do país ao longo do período 1955-65 (Lima, 1995). Numa sinalização de que a estatização não constituía um fim em si mesmo, mas uma opção estratégica que se subordinava ao propósito de promover a adequação da capacidade de atendimento do sistema às necessidades do desenvolvimento nacional – a projeção da ampliação da potência instalada se faz com base nas expectativas de incremento da demanda, tendo, como componente central, o consumo industrial (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Rangel, 1988, depoimento) -, o Plano não contemplava apenas iniciativas das empresas públicas, incorporando também os projetos de expansão das concessionárias privadas atuantes na área (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Salienta-se, a esse respeito, que cerca de 31% das metas de produção de energia e 26% dos recursos programados referiam-se a empreendimentos dos grupos Light e Ampforp (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). 214 que carece o poder público para enfrentar eficazmente o problema de produção e transmissão de energia elétrica “ (Presidência da República, 1953; citado por Draibe, 1985: 204), a empresa cristraliza os intentos de adequação do aparato estatal, de forma a dotá-lo de capacidade técnica e operacional capaz de assegurar o êxito na condução de uma política setorial que apontava para a crescente participação das empresas públicas nos serviços de eletricidade. Concebida como empresa pública de âmbito nacional - similar ao modelo adotado na constituição da Petrobrás (Leite, 1988, depoimento; Magalhães, 1987, depoimento) – caberia à Eletrobrás centralizar a responsabilidade pela concepção e implementação da política governamental para o setor elétrico, desempenhando uma amplo espectro de funções que englobava desde o planejamento do sistema até a promoção de investimentos na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). Como agência de planejamento, responderia pela coordenação dos programas de expansão das empresas publicas, articulando-as com as atividades das concessionárias privadas (Rangel, 1988, depoimento; Magalhães, 1987, depoimento). Como agência responsável pelos empreendimentos produtivos da administração federal, assumiria a configuração de uma companhia “holding”, criando e controlando empresas tipicamente energéticas, na linha da Chesf, ou de produção de máquinas, equipamentos e materiais elétricos, em associação ou não com o capital privado (Lima, 1995; Draibe, 1985). Ao contrário dos projetos do IUEE e do FFE que, de certa forma, complementavam ou aprimoravam as bases de sustentação da atividade sem interferências diretas nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, o mesmo não se aplica à proposta do PNE e, principalmente, à da Eletrobrás, portadoras de profundas mudanças no padrão de intervenção estatal na área. Do exercício de uma função essencialmente regulatória, o Estado estaria transitando para uma configuração empresarial, o que teria inevitáveis impactos sobre interesses e práticas institucionalizados do sistema. Era natural, portanto, que catalisassem reações adversas de matizes, motivações e intensidades diferenciadas, em 215 especial a oposição dos grupos Light e Amforp, mais diretamente ameaçados pelo avanço das empresas públicas. Num prenúncio das dificuldades a serem enfrentadas, “o projeto propondo a criação da Eletrobrás (...) seguiu para o Congresso (...), já sob intenso bombardeio, vindo da imprensa, do próprio Congresso e das companhias estrangeiras que atuavam no setor” (Leopoldi, 1997: 59). 2.4 Os limites do possível: a tumultuada trajetória dos projetos do PNE e da Eletrobrás no Congresso Como temia a Assessoria da Presidência, os projetos do PNE e, principalmente, da Eletrobrás suscitaram resistência política muito maior que as propostas do IUEE e do FFE (Leite, 1988, depoimento; Magalhães, 1987, depoimento; Leopoldi, 1997). Tal resistência terá, como um de seus principais suportes, os grupos Light e Amforp, numa reação esperada a mudanças que significavam ameaças concretas à hegemonia que haviam conquistado ao longo das décadas anteriores e lutavam para preservar. A materialização da presença do Estado no núcleo das atividades produtivas do sistema tinha implicações não apenas no sentido de restringir o campo de atuação para o capital privado como um todo mas, o que é mais importante, de romper com a situação de quase monopólio das grandes concessionárias estrangeiras nos principais mercados do país (Leopoldi, 1997; Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Contando com assessorias jurídicas de reconhecida competência (Lopes, 1991; Cotrim, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Bhering, 1987, depoimento), tais empresas dispunham de sólido esquema de articulação política para a defesa de seus interesses, com forte penetração no Congresso, na mídia e em instituições de representação do empresariado, como o então importante Sindicato das Indústrias de Energia Elétrica do Estado de São Paulo (Leopoldi, 1997; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Leite, 1988, depoimento). 216 A essas reações vieram se somar focos de resistência incrustados na própria administração pública, numa manifestação objetiva das dificuldades que tendem a permear a implementação e o controle de processos intencionais de transformação institucional (March e Olsen, 1989; Lima Júnior, 1997; Diniz, 1997). Tal resultado reflete os efeitos combinados de dois fatores principais, ambos relacionados à complexa tarefa de coordenar o jogo de interesses que se desenrola dentro da esfera pública. O primeiro, de ordem mais geral, tem a ver com problemas de unidade e coerência da ação governativa em sentido amplo, associados, por sua vez, à fragmentação ou descentralização de poder e relativa autonomia decisória de organismos que compõem o aparelho estatal. O segundo, de natureza mais específica, com a dinâmica das mudanças ocorridas nos arranjos organizacionais e produtivos do sistema elétrico, espelhando consequências não pretendidas nem antecipadas da estratégia adotada pela Assessoria da Presidência no encaminhamento dos projetos que compunham a política setorial do governo. Num resultado contingente da estratégia de negociação seguida pela Assessoria da Presidência, a tramitação das propostas do PNE e da Eletrobrás no Congresso vai se dar sob condições institucionais que refletem a aprovação do IUEE e do FFE. As mudanças no padrão de financiamento do setor determinadas pela aprovação de tais projetos implicaram não apenas a introdução de um novo conjunto de oportunidades e constrangimentos para as escolhas estratégicas dos agentes atuantes na área, mas a reconfiguração destes mesmos agentes. Além do BNDE, as empresas estaduais de energia adquirem papel mais saliente no desenvolvimento do atividade, ainda sob hegemonia da iniciativa privada, a despeito do progressivo refluxo de seus investimentos na área. Redefine-se, com os novos atores, a estrutura de interesses e preferências imbricados no sistema, num dinamismo institucional que tende a criar dificuldades adicionais à viabilização política tanto do PNE quanto da Eletrobrás. Por dispositivo da legislação que instituiu o IUEE e o FFE, anteriormente mencionada, o BNDE ficou incumbido da administração dos 217 recursos arrecadados, atuando em nome da Eletrobrás enquanto a mesma não fosse efetivamente criada (Lima, 1995; Rangel, 1988, depoimento). Deste arranjo operacional transitório irá resultar mais que o mero reforço do papel de agência gestora dos financiamentos públicos para investimentos na expansão do sistema (Lima, 1995) que o banco passara a desempenhar em conexão com a implementação da programação setorial definida no âmbito dos trabalhos desenvolvidos pela extinta CMBEU. Processa-se, na prática, sua transformação no organismo responsável pelas ações do governo federal na área de energia elétrica, o que acabará gerando uma tensão entre os interesses próprios da corporação e a aprovação dos projetos do PNE e, sobretudo, da Eletrobrás. De fato, se aprovado, o PNE daria contornos oficiais às prioridades de investimento para o sistema elétrico, estreitando, em consequência, a margem efetiva de autonomia decisória do BNDE no tocante à aplicação de recursos na área, o que incluía, em particular, os recursos do FFE, cuja administração lhe fora transitoriamente atribuída. As implicações da criação da Eletrobrás seriam ainda mais restritivas para a atuação setorial do banco, ao bloquear-lhe a possibilidade de continuar exercendo a coordenação e o controle sobre os investimentos públicos na atividade que, além de tratada como prioritária pelo governo, contava com fonte específica de recurso. Assim, numa conduta defensiva contra ameaças à posição estratégica que circunstancialmente assumira dentro do setor, o órgão vai se aproveitar da relativa autonomia decisória proporcionada por uma intitucionalidade ao mesmo tempo incompleta e em processo de mudança para se alinhar, ainda que sob o véu da informalidade (Lopes, 1991, depoimento; Bhering, 1987, depoimento), às forças contrárias ao êxito da tramitação das propostas do PNE e da Eletrobrás pelo Congresso (Leite, 1988, depoimento; Richer, 1995, depoimento; Leopoldi, 1997; Lima, 1995). Outro importante desdobramento institucional da criação do IUEE e FFE será o estímulo à inserção dos governos estaduais nas atividades produtivas do sistema. Pela legislação aprovada no Congresso, o repasse aos estados da parcela da receita arrecadada com o novo tributo – correspondente a 50% do total 218 – ficava condicionada à elaboração de planos regionais de eletrificação, a serem submetidos à apreciação e aprovação do CNAEE (Lima, 1995). O interesse no acesso aos recursos, de um lado, e os requisitos estabelecidos para tal acesso, de outro, convergem no sentido de impulsionar a estruturação montagem de empresas energéticas de cunho regional por todo o país62 :em meados dos anos sessenta, praticamente todos os estados brasileiros passam a contar com concessionárias próprias de energia. Numa cadeia de causação que escapa ao controle do poder central, o aprofundamento da presença dos governos dos estados nas atividades produtivas do sistema irá introduzir novos problemas ou dificuldades na tramitação e apreciação do PNE no Congresso. De um lado, contribui para acirrar disputas regionais em torno do conteúdo programático do plano, o que, obviamente, aumenta a complexidade da engenharia política necessária à sua aprovação. De outro, e mais importante, tende a reforçar as forças que se opunham ao mesmo dentro do próprio setor. De fato, ao definir os objetivos, metas e prioridades de investimento na área, o plano estreitava as possibilidades abertas à negociação de financiamentos para projetos de interesse regional, não previstos em sua programação. Essas restrições afetavam principalmente as empresas energéticas de estados da Região Centro-Sul, melhor estruturadas e vinculadas a mercados de consumo mais dinâmicos, entre as quais se sobressai a Cemig. Contando não apenas com um plano de eletrificação relativamente consistente, mas com capacidade técnico-operacional para levar em frente sua execução (Campolina, 1997; Lopes, 1991, depoimento), a empresa assume posicionamento francamente contrário à aprovação do PNE (Bhering, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Lopes, 1991, 1995, depoimentos), face à dissonância entre suas prioridades de investimento e as prioridades definidas pelo plano. 62 Em outras palavras, as iniciativas pioneiras do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, cristalizadas, respectivamente, na CEEE e na Cemig, que surgiram em resposta à insuficiência dos investimentos das concessionárias privadas na expansão dos parques geradores destes mesmos estados, tendem a se espraiar por outras unidades da Federação. Catalisados por fatores de ordem institucional, processos até então circunscritos a algumas poucas administrações estaduais se generalizam, conformando uma espécie de movimento de “estadualização” do sistema (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) 219 O projeto da Eletrobrás também não interessava às principais concessionárias estaduais (Leite, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997, Lima, 1995), já que as atribuições da nova empresa supunham um maior alinhamento e subordinação das prioridades regionais a objetivos e estratégias definidas ao nível nacional. Como no caso do PNE, tal restrição afetava com maior intensidade os estados ou, mais precisamente, as concessionárias estaduais que dispunham, dentro do arranjo institucional estabelecido, de melhores condições para influenciar os processos decisórios relativos à alocação dos recursos disponibilizados para o setor, onde, mais uma vez, a Cemig assume maior saliência. Bem aparelhada e contando com canais informais de acesso ao núcleo decisório do BNDE (Leal, 1988, depoimento; Leite, 1988, depoimento) que, vale lembrar, era o gestor dos recursos do FFE, a estatal mineira se habilitava a disputar, com maior probabilidade de sucesso, financiamentos para seus programas de expansão. Não é de se surpreender, portanto, que tenha se constituído, também aqui, num dos principais focos de oposição, dentro da esfera pública, à aprovação da proposta de organização da Eletrobrás (Lopes, 1991, depoimento; Bhering,1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento). A confluência de um amplo e heterogêneo espectro de forças, que aglutinava desde reações contrárias à maior presença do Estado na área, centradas nos grupos Light e Amforp, a reações à centralização decisória, cujo principal expoente era a Cemig, passando pela defesa de interesses corporativos, tipificada pelo BNDE, criou severas dificuldades para a negociação dos projetos do PNE e da Eletrobrás. Frustrando os resultados da estratégia traçada pela Assessoria, o primeiro sequer chegou a ser formalmente incluído na pauta de votação do Congresso, vindo a se transformar, em essência, num mero documento de referência técnica para os processos decisórios do setor, destituído de qualquer conteúdo normativo (Lima, 1995). O segundo, por sua vez, sofreu sucessivas práticas dilatatórias e obstrucionistas por parte do Legislativo (Lima, 1984; Rangel, 1988, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), logrando ser aprovado somente no decorrer na 220 década de sessenta, num contexto onde a estatização das atividades elétricas, em estágio bastante avançado, irá ensejar condições mais favoráveis de mobilização de apoio político à sua viabilização. 3. O avanço e consolidação do intervencionismo estatal e a mudança de escala dos empreendimentos hidrelétricos: o Governo Kubitschek O êxito apenas parcial na implementação dos projetos que compunham a política traçada pelo Governo Vargas não impediu, contudo, a ocorrência de uma rápida reconfiguração nas bases organizacionais e produtivas do sistema, convergente com as diretrizes gerais desta mesma política. A ampliação da presença estatal no núcleo operacional das atividades elétricas, que estava no cerne das reformas setoriais varguistas, se processa de forma acelerada, adquirindo contornos irreversíveis num curto espaço de tempo. Em termos mais específicos, de uma participação apenas residual no início dos anos cinquenta, as empresas públicas passam a controlar, em meados dos anos sessenta, a maior parte da capacidade instalada de geração elétrica do país (Quadro 4). A rápida reversão nas participações das esferas pública e privada na estrutura produtiva do sistema reflete os efeitos combinados de um duplo movimento. De um lado, ressalta-se a persistência do retraimento dos grupos Light e da Amforp que, premidos por um contexto adverso, continuaram limitando seus investimentos quase que exclusivamente à expansão da capacidade de geração das usinas já construídas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), cujas possibilidades de aproveitamento, por razões técnicas, vinham se estreitando progressivamente para se aproximarem da completa exaustão. De outro, e mais importante, ocorre a intensificação das ações produtivas das empresas estatais, estaduais e federais, a partir da segunda metade dos anos cinquenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), no vácuo aberto pelo refluxo do capital privado. 221 Quadro 4 Distribuição da Capacidade Instalada de Geração de Energia Elétrica, por Categoria de Produtor, no Brasil, em Anos Selecionados Ano Público - % Privado - % Autoprodutor -% Total MW % 1955 17,1 71,4 11,5 3.148,5 100,0 1960 22,9 66,3 10,8 4.800,1 100,0 1965 54,6 33,6 11,8 7.411,0 100,0 Fonte: Lima, J. L. Estado e Energia Elétrica no Brasil: o setor elétrico no Brasil, das origens à criação da Eletrobrás (1890-1962). São Paulo: IPE/USP, 1984. A consolidação do intervencionismo estatal na área reflete, em larga medida, a relativa convergência do conteúdo objetivo das plataformas de governo nas gestões presidenciais de Vargas (1951-54) e de Juscelino Kubitschek (195661), centradas na promoção da industrialização e modernização da economia nacional, sob o comando do Estado (Draibe, 1985; Baer, 1996; Nogueira, 1998). Ponto nevrálgico da dinâmica do desenvolvimento econômico, a garantia de um suprimento adequado de energia elétrica surge com um requisito a qualquer perspectiva de êxito na condução do processo, imprimindo um traço de continuidade à política setorial, a despeito da transição de poder ocorrida no controle do Executivo federal. Os investimentos das empresas estatais em ambos os governos se fazem movidos pelo propósito de evitar que o estrangulamento energético viesse a comprometer o esforço dispendido na direção do crescimento e diversificação da produção industrial do país, em torno do qual se articula a agenda pública no período. A orientação comum, contudo, não significa nem pode ser entendida como continuidade nas estratégias ou linhas de ação das políticas setoriais implementadas nas gestões presidenciais de Vargas e Kubitschek. Ao contrário, enquanto o primeiro concentra esforços na esfera institucional, buscando criar condições financeiras e operacionais capazes de permitir a otimização e o 222 crescimento sustentado dos investimentos produtivos na área, o segundo se caracteriza por iniciativas na esfera da produção, enfatizando soluções capazes de assegurar respostas imediatas para as metas e prioridades estabelecidas pela política pública. Como resultado dessa mudança de enfoque, o avanço da estatização na área de energia elétrica não apenas se antecipa à aprovação dos projetos do PNE e da Eletrobrás pelo Congresso, mas se faz conjugado a um relativo esvaziamento da política do Executivo federal com vistas à agilização da tramitação de tais projetos. 3.1 O Plano de Metas e o caráter estratégico dos investimentos em energia elétrica O projeto desenvolvimentista traçado e perseguido pelo Governo Kubitschek propunha promover a implantação, concentrada no tempo, de uma estrutura industrial diversificada e de perfil avançado no país (Draibe, 1985; Leopoldi, 1991; Faro e Silva, 1991; Lafer, 1975; Baer, 1996). A consecução desse desiderato político implicava o desafio de implementar, no curto espaço de um mandato presidencial, um amplo conjunto de investimentos em novos segmentos industriais - o avanço no sentido dos setores de bens intermediários e de capital (Faro e Silva, 1991; Oliveira, 1977; Lafer, 1975; Ianni, 1977) - e de assegurar, em simultâneo, o suporte infra-estrutural requerido pela ampliação e dinamização da economia nacional (Lafer, 1977; Draibe, 1985). As possibilidades de êxito na condução de tal estratégia suponham, por sua vez, o preenchimento de dois requisitos básicos. De um lado, dependiam da existência de capacidade efetiva de formular e adotar as decisões necessárias e adequadas à promoção do salto industrial pretendido. De outro, de autonomia decisória suficientemente ampla para permitir a imposição de um direcionamento objetivo à intervenção estatal na economia, isto é, a possibilidade de o governo preservar a coerência e consistência da política pública face às contingências associadas ao jogo de interesses da sociedade e, especialmente, às relações com o poder Legislativo. 223 Quanto ao primeiro aspecto, salienta-se o fato de o segundo Governo Vargas ter empreendido um aprofundamento do processo de aparelhamento técnico e administrativo do Estado orientado exatamente para o fortalecimento de sua capacidade de intervenção na economia (Lessa, 1964; Draibe, 1985; Ianni, 1977; Gouvêa, 1994; Viana, 1981; Nunes, 1997). O Governo Kubitschek tende a receber, portanto, como herança da gestão anterior, um amplo conjunto de instrumentos, mecanismos e arranjos organizacionais de perfil relativamente avançado e complexo, convergentes com os propósitos de implementação de uma agenda desenvolvimentista, o que contribui para reduzir e facilitar suas tarefas no plano político-institucional. Com isto, pôde se limitar, a rigor, a promover adaptações e complementações no desenho organizacional e nos mecanismos e instrumentos operacionais controlados pelo Estado, numa sistemática de ajustes voltados à superação de questões específicas que se colocavam ou poderiam se colocar como constrangimento à consecução das propostas e programas do governo. Ganha destaque, aqui, a preocupação de reforçar a capacidade de comando do Executivo federal, que será “solucionada” através do recurso à centralização do processo decisório governamental. Num sistema capitalista como o brasileiro, as possibilidades concretas de desencadear um processo de transformação com o alcance pretendido pelos novos gestores do poder central dependiam fundamentalmente da capacidade de comando e coordenação do Executivo federal no tocante ao gerenciamento eficaz da economia (Nogueira, 1998). Sem a coesão interna ao aparelho estatal e a articulação de alianças e adesões com interesses relevantes da sociedade, capazes de dar sustentação política às decisões da administração pública (Lima Júnior, 1997; Diniz, 1997), dificilmente se lograria êxito na promoção dos objetivos e metas almejados pelo projeto desenvolvimentista que se pretendia implementar. A preocupação de qualificar o aparato da administração federal para o desempenho das ações de desenvolvimento e a disposição de evitar os custos políticos de mudanças institucionais mais profundas, que poderiam comprometer ou, pelo menos, postergar a obtenção dos resultados visados pela política pública 224 convergem para a criação Conselho do Desenvolvimento, instituído formalmente pelo Decreto nº. 38.744, de fevereiro de 1956. Emblemático da busca por soluções capazes de proporcionar respostas mais rápidas à viabilização dos propósitos e decisões governamentais – a preferência por “atalhos” ou saídas “convenientes” face às restrições do contexto, assinalada como uma das características marcantes da administração Kubitschek (Draibe, 1985; Diniz, 1997; Nogueira, 1998) -, o Conselho do Desenvolvimento irá acumular ampla gama de prerrogativas anteriormente dispersas por outros órgãos ou instituições sob controle do poder central, assumindo feição de uma espécie de agência nacional encarregada do planejamento e coordenação da intervenção estatal na economia. Mimetizando , em linhas gerais, o esquema operacional que havia sido utilizado pela extinta CMBEU (Leopoldi, 1991), o Conselho introduz um novo estilo de gestão governamental, fundado na estruturação de núcleos técnicos e gerenciais – os denominados grupos de trabalho e grupos executivos (Leopoldi, 1991; Faro e Silva, 1991; Draibe, 1985) -, para responder pela concepção e implementação das ações nas áreas ou setores produtivos priorizados pela política pública. Esse arranjo institucional instrumentaliza a articulação do governo federal com o capital privado, nacional e internacional, em torno de objetivos específicos do projeto industrializante, estabelecendo metas de produção, instrumentos de política, e mecanismos de gerenciamento e de acompanhamento (Lopes, 1991, depoimento; Leopoldi, 1991). Tratava-se, conforme Cotrim (1987, depoimento; 1995), de um arranjo flexível, de elevado grau de informalidade, que se apoiava e, na prática, acabava se confundindo com o BNDE . Lucas Lopes63 é enfático a esse respeito, afirmando que “o BNDE e o Conselho do Desenvolvimento formavam uma unidade” (1991: 172, depoimento), no sentido de o primeiro assegurar organicidade ao último. Isto acaba por conferir ao banco papel crucial na 63 Lucas Lopes era o presidente do BNDE e também o secretário geral do Conselho do Desenvolvimento. 225 implementação da política desenvolvimentista: junto com o desempenho da função de agência de financiamento aos investimentos em áreas estratégicas da economia, tende a centralizar também, sob a roupagem do Conselho do Desenvolvimento, a responsabilidade pela formulação e articulação dos programas ou ações do governo federal relacionadas ao esforço de industrialização. O êxito na implementação das ações governamentais, no entanto, requer, como observa Diniz, “além dos instrumentos institucionais e dos recursos financeiros controlados pelo Estado, a mobilização dos meios políticos de execução” (1997: 195). No contexto do regime democrático então prevalecente, o processo decisório governamental estava formalmente condicionado ao suposto de amparo legal, que entrelaçava as ações do Executivo e do Legislativo. Ganha saliência aqui a natureza concreta da relação entre os dois poderes estabelecida pela Constituição de 46, onde as atribuições prescritas para o segundo, em especial o controle sobre o orçamento público, deixavam um espaço de manobra relativamente restrito para o primeiro (Nunes, 1997). Conforme Santos (1979, tese de doutoramento; citado por Nunes, 1997), “mesmo políticas de curto prazo tinham de ser autorizadas pelo legislativo antes de entrar em vigor, e a execução de políticas era seguida de perto por atentas comissões do legislativo”. A consecução dos objetivos de uma agenda política que se propunha a promover, sob o comando do Estado, transformações rápidas e profundas na estrutura produtiva do país prenunciava, portanto, dificuldades nas tarefas de gestão, associadas às fricções na relação entre poder Executivo e Congresso. Frente à questão, o Executivo dispunha, a rigor, de duas opções estratégicas principais: criar uma sólida base de sustentação política no Congresso ou tentar neutralizar as ingerências do Legislativo, aproveitando-se das possibilidades abertas dentro das regras constitucionais estabelecidas para ampliar, ao máximo, sua margem de autonomia decisória. Dada a ênfase conferida à efetividade no tocante à consecução dos objetivos e metas definidas pela política pública (Lafer, 1975; Draibe, 1985; Faro e Silva, 1991; Benevides, 226 1976; Nunes, 1997), a segunda alternativa emerge como aquela que aparentava ser a mais indicada ou de perspectivas mais favoráveis de sucesso. De um lado, evitava ou, pelo menos, atenuava as dificuldades e os custos, em termos de tempo e recursos mobilizados, de construir e manter maiorias políticas sob sistemas multipartidários como o brasileiro. De outro, minimizava os riscos do obstrucionismo parlamentar que constituem um traço característico no funcionamento das democracias presidencialistas (Sartori, 1996; Lima Jr., 1997). É nessa direção que irá convergir a sistemática decisória da administração Kubitschek, deliberadamente orientada para a seleção de ações mais apropriadas às oportunidades e constrangimentos do ambiente políticoinstitucional, entendidas e tratadas como aquelas com maior probabilidade de sucesso na obtenção dos resultados perseguidos pela agenda pública. Isto se materializa na prevalência daquilo que Draibe designa como “soluções mais convenientes” (1985: 245), ou seja, formas de intervenção com menor potencial de fricção junto ao Congresso e aos interesses organizados da sociedade afetos às questões em consideração. Buscava-se contornar ou superar, nos limites permitidos pela fluidez e opacidade do ordenamento jurídico-normativo prevalecente, os fatores de constrangimento que se interpunham ou poderiam se interpor às iniciativas governamentais, avançando pela linha de menor resistência. Para evitar negociações relacionadas às prioridades estabelecidas pelo poder central, recorria-se, sempre que necessário, “a expedientes pouco ortodoxos, ajustes marginais, esquemas provisórios e de curto fôlego (...)”, numa “improvisação pragmática de saídas” (Draibe, 1985: 245), lançando mão de arranjos informais para escapar, sem ruptura da legalidade, às restrições constitucionais e ao controle do Legislativo. Subproduto dessa mesma opção estratégica, que tende a conferir maior centralidade à racionalidade técnica frente à negociação política nos processos decisórios do governo, a sistemática do planejamento, que vinha sendo objeto de ensaios anteriores, vai se transformar num importante instrumento da gestão pública. O Plano de Metas, elaborado pelo Conselho do Desenvolvimento 227 em estreita colaboração com o BNDE (Lopes, 1991, depoimento; Cotrim, 1987, depoimento), sintetiza os esforços desenvolvidos em tal direção durante a administração Kubitschek. Ao mesmo tempo que sistematiza as diretrizes e metas mobilizadoras da política pública, conferindo maior visibilidade aos objetivos e setores prioritários estratégicos da agenda industrializante, contribui para assegurar a consistência e a coerência das ações estatais no campo econômico. Partindo do apreciável conjunto de estudos, documentos e projetos setoriais já produzidos, o plano irá propor uma ambiciosa programação de investimentos em novos segmentos industriais e na correlata expansão da infra-estrutura básica (Leopoldi, 1991; Faro e Silva, 1991; Draibe, 1985), que se configuram nos vetores do pretendido salto do país rumo a uma economia de perfil avançado e moderno. A relativa fragilidade dos mecanismos institucionais de financiamento aos investimentos produtivos, tanto privados quanto públicos, impunha, como tarefa essencial à viabilização do Plano, a identificação de fontes de recursos à altura das exigências das metas traçadas, passíveis de serem mobilizadas de imediato, isto é, sem a necessidade de recorrer a reformas monetária ou fiscal de maior profundidade. Como analisado por diversos autores (Draibe, 1985; Baer, 1996; Lafer, 1975; Faro e Silva, 1991; Nunes, 1997), a estratégia geral que será adotada pelo Governo Kubitschek vai se orientar no sentido da solidificação de nexos solidários entre o Estado e o capital privado, externo e interno. Numa ponta, o Estado assume o papel de articulador e aglutinador de interesses da iniciativa privada, criando oportunidades de negócios em setores produtivos novos e dinâmicos, lastreadas numa variada gama de estímulos econômicos, principalmente incentivos de natureza fiscal e creditícia. Na outra, passa a participar mais ativamente como empresário, promovendo investimentos em setores da indústria básica e na expansão e melhoria da infra-estrutura econômica, indispensáveis ao êxito do esforço industrializante, mas pouco atraentes para o capital privado. Esse intervencionismo estatal na esfera produtiva irá adquirir particular intensidade no campo das atividades do sistema elétrico (Draibe, 1985; Faro e Silva, 1991; Lima, 1995; Leopoldi, 1991), com a 228 aceleração do avanço das empresas públicas, federais e estaduais, sobre os espaços abertos pela insuficiência dos investimentos privados, que tendem a se descolar de vez das exigências de uma demanda em forte expansão (Faro e Silva, 1991, Lima, 1995). 3.2 As metas de expansão do sistema elétrico e o aprofundamento do processo de estatização As transformações estruturais da economia pretendidas pelo Governo Kubitschek supunham, entre outros requisitos, neutralizar os constrangimentos associados à insuficiência no suprimento energético sobre a dinâmica das atividades produtivas. Impondo-se como princípio unificador da política pública, a promoção do esforço industrializante tende a condicionar, portanto, os rumos da atuação do poder central no âmbito do sistema elétrico. Em termos mais específicos, a definição de objetivos e metas produtivas a serem alcançados no setor – o que é necessário fazer – vai se fundamentar em projeções da demanda de energia, levando-se em conta as expectativas de expansão da atividade industrial. Dessa sistemática decisória irá resultar a proposta de elevação da capacidade instalada do parque de geração nacional do patamar de 3.491 MW, correspondente a 1956, para 5.194 MW em 1960 e, por fim, para 8.255 MW em 1965 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), traduzindo um crescimento à expressiva taxa média de 10% ao ano no período. Em sintonia com a orientação pragmática que norteia a gestão governamental na administração Kubitschek, a estratégia adotada com vistas à viabilização do salto projetado na potência instalada do sistema será pautada pela opção por mecanismos e formas de ação capazes de proporcionar respostas produtivas mais rápidas e eficazes face às oportunidades e constrangimentos do contexto. A implicação mais imediata dessa diretriz estratégica consiste no desatrelamento do esforço de investimento a ser feito no setor de compromissos mais efetivos com a promoção de avanços no plano político-institucional, o que terá evidentes impactos sobre os projetos da Eletrobrás e do PNE. Sem o apoio e 229 a mobilização política do Executivo (Lopes, 1991, depoimento), a tramitação de tais projetos no Congresso fica praticamente paralisada (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Em primeiro lugar, nenhum dos dois projetos era necessário à consecução dos objetivos em torno dos quais se articulava a política setorial do Governo Kubitschek. De um lado, o papel a ser cumprido pela Eletrobrás não apenas podia como vinha sendo desempenhado pelo BNDE, que se encontrava técnica e administrativamente aparelhado para gerenciar a aplicação de recursos na área de energia elétrica (Lima, 1988; Rangel, 1991, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Lopes, 1991, depoimento). De outro, a programação de investimentos na expansão do sistema definida no âmbito do Plano de Metas se sobrepunha e esvaziava o significado instrumental da programação do PNE. Em segundo lugar, e mais importante, são projetos que potencializavam mais problemas que facilidades para a viabilização das metas traçadas para o setor. De fato, qualquer vinculação formal das ações governamentais à aprovação das propostas da Eletrobrás e do PNE significaria condicioná-las a um processo de negociação reconhecidamente complexo e demorado (Lopes, 1991, depoimento), dadas as restrições que vinham suscitando dentro e fora do Congresso (Rangel, 1988, depoimento; Lima, 1995; Leite, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997), anteriormente comentadas. No caso do PNE, as implicações não ficavam circunscritas apenas ao atraso que tal vinculação poderia provocar na execução dos projetos programados para o setor, em função do tempo que seria dispendido nas negociações com vistas à sua aprovação. Ao contrário, após aprovado, o Plano atuaria no sentido de instrumentalizar o controle do Legislativo sobre as inversões públicas na área, estreitando, em consequência, a margem de autonomia decisória do Executivo na definição de prioridades de investimento. Não é de se estranhar, portanto, o posicionamento diferenciado que o governo tende a assumir frente ao mesmo, comparativamente ao projeto da Eletrobrás. A neutralidade política que procura manter em relação ao último, pelo menos do 230 ponto de vista formal (Lopes, 1991, depoimento), não se estende ao primeiro (Lopes, 1991, 1995, depoimentos; Cotrim 1988, 1995, depoimentos; Bhering,1995, depoimento). Interessado em neutralizar os constrangimentos operacionais advindos da consolidação, sob a forma de lei, de uma programação moldada segundo preferências e critérios que escapavam a seu controle, a administração Kubitschek recorre a argumentos centrados na fragilidade técnica do PNE para se mobilizar, ainda que de forma oblíqua, no sentido de solapar as já reduzidas possibilidades de sucesso de sua tramitação no Congresso (Lopes, 1991, depoimento). Deixando deliberadamente à margem qualquer iniciativa mais efetiva no tocante à complementação do processo de negociação política das propostas setoriais varguistas, que não atendiam aos novos objetivos traçados para o sistema, o Governo Kubitschek concentra sua atenção na definição dos meios e das estratégias de ação para a consecução do pretendido acréscimo de 4.764 MW na potência instalada do país – o salto de 3.491 MW em 1956 para 8.255 MW em 1965, anteriormente mencionado. Dentro de uma lógica decisória pautada pelo privilegiamento de soluções com maior probabilidade de sucesso, o eixo primário no desenho daquilo que o Estado deveria fazer consiste na realização de uma análise da programação de investimento em geração das diversas empresas concessionárias, tanto públicas quanto privadas64, com o intuito de identificar e selecionar propostas técnica e economicamente exequíveis. Desse mapeamento, conduzido pelo Grupo Técnico de Energia Elétrica (GTENE) – subordinado formalmente ao Conselho de Desenvolvimento – irá resultar uma relação de projetos que somavam uma produção da ordem de 3.664 MW , correspondendo a 76,9% da meta total estabelecida para o setor (Quadro 5). Do crescimento projetado para a demanda, um mercado potencial da ordem de 1.100 MW (Quadro 5) estava a descoberto de projetos de investimento previamente definidos, isto é, não contava com alternativas já desenhadas de atendimento. 64 Incluem-se aqui as propostas dos diversos planos regionais de eletrificação e do PNE, os trabalhos da CMBEU e os programas de expansão das empresas privadas. 231 Explicita-se aqui a principal questão a ser enfrentada no tocante a proporcionar respostas minimamente satisfatórias às exigências ou pressões advindas da dinâmica do desenvolvimento nacional: a cobertura do descompasso entre a disposição de investir das empresas – 3.664 MW - e os requisitos de investimento considerados necessários para assegurar o suprimento corrente do mercado de energia – 4.764 MW -, representando 23,1% do total programado (Quadro 5). Quadro 5 Expansão da Potência Instalada de Energia Elétrica, por Grupo de Empresas, conforme Programação do Plano de Metas (1957-1965) Potência Tipo de (MW) (%) Privada 1.031 21,7 Pública Federal 1.146 30,8 Pública Estadual 1.167 24,4 Sub-total 3.664 76,9 Projetos não definidos 1.100 23,1 Total Geral 4.764 100,0 Empresa Fonte: Brasil. Presidência da República. Conselho do Desenvolvimento, Plano de Desenvolvimento Econômico (citado por Lima, J. L . Políticas de governo e desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos 80 (1934-1984). Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995: 70) Chama a atenção, no âmbito da programação proposta pelo GTENE, a acentuada prevalência dos investimentos públicos frente aos privados, respectivamente, 72% e 28% do total. Como se trata, em essência, de mera consolidação e sistematização de projetos preexistentes, que denotam, por sua vez, a disposição de investir das principais empresas energéticas, impõe-se a conclusão óbvia de que a acentuada ampliação do espaço ocupado pela esfera pública nas atividades produtivas do sistema, materializada no período, não pode ser atribuída a uma orientação estatizante do Governo Kubitschek. Trata-se, ao contrário, de resultado que reflete os rumos de um percurso moldado ao longo 232 dos anos anteriores, num típico processo de dependência de trajetória determinado, em última instância, pela retração dos investimentos das grandes concessionárias privadas. Como argumenta a literatura do novo institucionalismo (Powell, 1991; Jepperson, 1991), os resultados de decisões que são tomadas, ou deixam de ser tomadas, no tempo t influenciam a conformação objetiva do contexto, com consequentes efeitos sobre os interesses, as preferências e os atores relevantes num dado campo de atividade, repercutindo nas decisões que serão tomadas no tempo t+1. A deterioração da prestação dos serviços de eletricidade, subproduto da alocação insuficiente de recursos por parte das concessionárias privadas, acabou motivando a criação e a expansão de empresas públicas, que foram gradativamente alargando sua participação na implantação de novas plantas geradoras. Constrangido a fazer aquilo que o mercado não vinha fazendo de forma satisfatória, o Estado assume crescentes funções empresariais na área, em detrimento do capital. Vale dizer, a programação inscrita no Plano de Metas se limita, a rigor, a sancionar um direcionamento objetivo modelado pela própria dinâmica institucional e econômica do setor. Além da prevalência da intervenção estatal sobre a iniciativa privada, a programação setorial proposta no Plano de Metas apresentava outra característica marcante. Estruturada primariamente sobre as intenções de investimento das empresas – 76,9% da meta total programada (Quadro 5) -, nem todos os projetos selecionados pelo GTENE contavam com esquemas de financiamento formalmente assegurados. Em termos mais específicos, apenas 68,3% do total tinha suporte financeiro previamente definido, com a parcela restante, 31,7% do total, dependendo de viabilização financeira (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Assim, se o principal desafio emanado do plano era a alavancagem de novos projetos compatíveis com o cumprimento das metas traçadas para a expansão do sistema, a tarefa essencial que se colocava no tocante à possibilidade de obtenção de resultados satisfatórios em 233 sua implementação consistia no reforço ou ampliação das fontes de recursos para inversões na área. Numa circunstância em que a programação proposta se apoia primariamente nas decisões autônomas de investimentos das empresas atuantes na área, a estratégia seguida pelo GTENE com vistas ao enfrentamento do problema de insuficiência de recursos para a implantação do conjunto de projetos propostos converge inicialmente para o incremento da receita própria do sistema. O caminho que vai se configurar como o mais indicado para a questão, sob a ótica da racionalidade técnica então dominante no núcleo decisório do governo (Cotrim, 1987, depoimento), passava pela revisão das regras tarifárias - principal reivindicação tanto da Light quanto da Amforp (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) – e que interessava não apenas às empresas privadas, mas também às estatais (Cotrim, 1987, depoimento). Além de criar condições mais favoráveis à implementação dos investimentos decididos do setor, através do aumento da capacidade de autofinanciamento das empresas, a adoção de tal medida atuava também no sentido de estimular novos investimentos na área, face à melhoria da rentabilidade econômica da atividade. A intenção de promover alterações na sistemática tarifária se materializa no projeto de lei nº. 1.898, enviado pelo Executivo federal à apreciação do Congresso em setembro de 1956. As inovações propostas compreendiam desde a atualização do valor atribuído aos investimentos realizados pelas concessionárias - base do cálculo tarifário, conforme dispositivos do Código de Águas -, que passaria a ser corrigido monetariamente, de acordo com a inflação, à elevação de 10% para 12% da taxa de remuneração da prestação do serviço, passando pela flexibilização das regras e condições exigidas para a promoção de alterações nas tarifas (Cotrim, 1987, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). São mudanças que não apenas implicavam a efetiva derrubada do princípio do custo histórico, mas que restringiam sensivelmente o escopo e o alcance do controle público sobre a periodicidade e intensidade dos reajustes de preços praticados pelo setor (Centro 234 da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Trazia novamente à cena, portanto, temas que sempre estiveram no cerne das controvérsias em torno da política de fixação de tarifas instituída pelo Código e que, mais uma vez, vão suscitar polêmicas e resistências no Congresso. A oposição às medidas, contudo, assume outra configuração política, em sintonia com o argumento neoinstitucionalista de que as preferências dos atores são contigentes de aspectos relevantes do contexto. Se, anteriormente, as principais resistências se aglutinavam em torno de posições refratárias ao incremento do intervencionismo estatal no setor, o projeto governamental tende a encontrar maior fricção junto a parlamentares identificados com a corrente nacionalista (Cotrim, 1995, depoimento; Lima, 1995), para os quais as mudanças propostas iriam beneficiar sobretudo aos interesses dos grupos Light e Amforp, que ainda mantinham posição destacada no tocante à distribuição de energia elétrica (Cotrim, 1987, depoimento). Espelhando a diretriz estratégica de privilegiar soluções pela linha de menor resistência (Draibe, 1985), as fricções suscitadas pelo projeto no âmbito do Congresso (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995) vão conduzir a um recuo tático no encaminhamento da matéria. Após tentativas frustradas de negociação com o Legislativo (Cotrim,1987, depoimento; Lima, 1995), o governo desiste da intenção de promover uma reforma mais abrangente na política tarifária. A linha de atuação será deslocada então da revisão dos dispositivos tarifários instituídos pelo Código para a conclusão do processo de regulamentação destes mesmos dispositivos, num trade off entre o alcance ou impacto das mudanças e a agilidade em sua implementação65. As preferências e as condutas estratégicas dos atores, como mostram as abordagens neoinstitucionalistas, são fortemente influenciadas não apenas pelos constrangimentos, mas também pelas oportunidades proporcionadas pelo contexto. Além de escapar à necessidade de esforços no sentido da viabilização política, já que poderia ser feita através do recurso ao poder de decretar conferido 235 ao Executivo pelo arcabouço constitucional vigente, a opção pela regulamentação via-se circunstancialmente favorecida pela existência de um anteprojeto referente à matéria que o CNAEE havia elaborado ao longo dos anos anteriores. Aproveitando-se de tal anteprojeto, fruto de uma decisão relativamente autônoma tomada dentro da burocracia estatal, o governo pôde formular, num prazo relativamente curto, proposta abrangente de regulamentação dos serviços de eletricidade (Cotrim, 1987, depoimento), que será colocada em vigor através do Decreto nº. 41.019, de fevereiro de 1957 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Cotrim, 1987, depoimento). A despeito de significar um recuo no tocante ao escopo e intensidade das mudanças originalmente pretendidas pela administração Kubistchek na sistemática tarifária - a taxa de remuneração foi mantida em 10% sobre o valor dos investimentos das empresas e a aplicação do princípio do custo histórico preservada - o decreto reveste-se de importância ao eliminar, em definitivo, os constrangimentos institucionais que ainda persistiam quanto à promoção de reajustes nos preços da energia elétrica com base nos dispositivos instituídos pelo Código, criando condições mais favoráveis para o incremento de receita do setor. No entanto, apesar de sinalizar para melhorias na rentabilidade operacional das atividades elétricas, a promulgação do decreto vai se revelar insuficiente, por si só, para influenciar, de forma sensível, a disposição de investir das concessionárias privadas. De um lado, as regras e procedimentos para o reajuste das tarifas, embora ampliassem a autonomia decisória das empresas no tratamento da matéria, não deixavam muita margem de manobra para elevações substanciais nos preços cobrados ao consumidor. Além de periodicidade trienal, a revisão tarifária de preços continuava submetida ao controle e fiscalização do CNAEE, tendo como referência os custos de prestação do serviço (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). De outro, a regulamentação ocorre num momento em que o avanço da concorrência estatal na esfera da produção se 65 A revisão das regras tarifárias, nos termos da iniciativa frustrada do governo, somente será realizada nos anos sessenta, quando as condições do contexto institucional tornam-se mais favoráveis à sua implementação. 236 prenunciava irreversível, o que se evidencia, com nitidez, na composição dos investimentos programados pelo Plano de Metas (Quadro 5). A esses aspectos, somava-se ainda o fato de o potencial hidráulico dentro das áreas de concessão da Light e mesmo da Amforp já se encontrar praticamente esgotado (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Vale dizer, mesmo que se dispusessem a investir, tais empresas teriam que caminhar na direção de aproveitamentos cada vez mais distantes de seus mercados de consumo, com evidentes impactos nos custos de transmissão e, por extensão, no montante de recursos a serem mobilizados, o que, obviamente, atuava como fator de desestímulo à alocação de recursos na área. Na ausência de perspectivas favoráveis de dinamização do lançamento de novos projetos produtivos por parte das grandes concessionárias privadas, a promoção dos investimentos necessários ao cumprimento das metas de expansão do sistema estabelecidas no Plano de Metas pela política setorial convergia, por exclusão, para a esfera de atuação das empresas públicas. Se não existiam alternativas factíveis sob a ótica do mercado, o caminho possível era o incremento do intervencionismo estatal na área. A magnitude do esforço de investimento a ser feito, no entanto, supunha uma capacidade de mobilização de recursos que ultrapassava em muito o incremento de receita operacional potencializado pela regulamentação dos dispositivos tarifários do Código (Cotrim, 1987, depoimento). Os limites no potencial de autofinanciamento do sistema implicavam, portanto, a necessidade de se recorrer ao aporte de recursos extrasetoriais. Para lidar com o problema, a estratégia desenhada pelo GTENE consistiu, em essência, na alavancagem de fontes complementares de financiamento para os projetos produtivos do setor, passíveis de serem mobilizados no curto prazo, conjugada à otimização na aplicação de tais recursos. A alternativa percebida pelo GTENE como técnica e politicamente viável para alavancar recursos para o setor remete a uma combinação de fontes de financiamento externa e interna. A primeira vertente corresponde à retomada da contratação de empréstimos junto às agências internacionais de fomento que, 237 como visto anteriormente, fora interrompida durante a administração varguista, com a dissolução da CMBEU. Num esforço diplomático bem sucedido junto ao governo americano, a administração Kubitschek consegue reabrir o canal de negociação com o Eximbank e intensificar as relações com o Bird, o que permitirá obter recursos não apenas para projetos que haviam sido examinados pela CMBEU, mas também para novos investimentos no sistema (Lopes, 1991, depoimento; Cotrim, 1987, depoimento). A segunda se traduz na imposição de um direcionamento objetivo à atuação do BNDE, levado a assegurar suporte financeiro para empreendimentos setoriais priorizados pelo Executivo. As circunstâncias de uma unicidade de comando 66 facilitavam a materialização desse alinhamento operacional, que não é automático nem se produz de forma espontânea no âmbito da burocracia estatal, permitindo que decisões tomadas no núcleo central de planejamento do governo, isto é, no Conselho do Desenvolvimento e nos grupos técnicos sob sua coordenação, fossem transmutadas em prioridades do banco, sem fricções institucionais de maior relevância. Contraface da ênfase na otimização do uso da base relativamente estreita de recursos passíveis de serem mobilizados na implementação dos investimentos do setor, a busca de soluções de maior eficiência alocativa converge para a priorização de “potenciais de elevada capacidade, cujo aproveitamento oferecesse mais econômicas condições de realização” (Secretária Geral do Conselho do Desenvolvimento, 1957; reproduzido de Cotrim, 1994, Anexo IV). Aponta-se aqui na direção da apropriação de ganhos de escala, como forma de rebaixar ao máximo o custo unitário de geração. A resultante da adoção dessa lógica decisória será a concentração de esforços na construção das usinas hidrelétricas de Furnas e Três Marias, que irão assinalar, ao mesmo tempo, uma sensível mudança no perfil dos projetos de geração e a consolidação do protagonismo das empresas públicas nas atividades produtivas do sistema. 66 A secretaria geral do Conselho do Desenvolvimento e a presidência do BNDE eram ocupadas simultaneamente por Lucas Lopes. 238 Fatores circunstanciais, mais especificamente, a pressão da demanda por eletricidade e as dificuldades defrontadas no financiamento dos projetos necessários à adequada expansão do sistema vão determinar não só o aprofundamento do intervencionismo estatal na área, mas um novo salto na escala ótima das plantas geradoras, que se deslocam para patamares acima de 1.000 MW. 3.3 Da viabilidade técnica à viabilidade política: o difícil caminho na transição para uma racionalidade sistêmica As principais dificuldades no suprimento energético do país, como visto, se concentravam nos estados do Centro-Sul do país, para os quais se estimava a ocorrência, no início dos anos sessenta, de um déficit da ordem de 1.000 MW, caso não fossem promovidos investimentos complementares aos projetos programados pelas concessionárias atuantes na área (Cotrim, 1994). Dando materialidade a uma das críticas mais recorrentes encontradas na literatura política e econômica acerca da eficiência alocativa do mercado, os resultados agregados das decisões autônomas das empresas atuantes na área não se revelavam convergentes com a trajetória que se delineava para o consumo de eletricidade da região, isto é, com os interesses dos usuários dos serviços por elas prestados. Os possíveis caminhos no tocante ao encaminhamento de soluções para o problema podem ser sintetizados, a rigor, em duas alternativas principais, ambas envolvendo o protagonismo estatal. A primeira passava por um processo de negociação junto às empresas energéticas com vistas ao ajustamento de suas decisões de investimento às exigências do incremento esperado da demanda; a segunda, pela ampliação da oferta através de empreendimentos hidrelétricos implantados pelo poder público. A adoção da primeira alternativa supunha uma capacidade de coordenação e comando capaz de submeter as lógicas decisórias dos principais interesses constituídos do setor a uma lógica institucional sistêmica, para a qual o governo não estava adequadamente aparelhado. O arcabouço institucional 239 estabelecido pelo Código de Águas não proporcionava ao Executivo federal instrumentos que lhe permitissem impor sua autoridade sobre a atuação das empresas concessionárias, no sentido de forjar um alinhamento de seus planos de expansão aos objetivos e metas traçados pela política pública. Sem tais instrumentos, os custos da negociação com vistas à obtenção da cooperação dessas mesmas empresas poderiam ser excessivamente elevados e os resultados não atenderem aquilo que se buscava alcançar. São questões que faziam da segunda alternativa uma opção mais razoável, com perspectivas mais favoráveis de êxito. De um lado, assumir diretamente a responsabilidade pelos investimentos permitiria ao governo minimizar a margem de riscos e incertezas subjacentes à sua realização, decorrente do maior controle do processo advindo da centralização decisória. De outro, criava condições para a adoção de soluções econômicas mais eficientes, de menor custo da energia gerada, através da ampliação das oportunidades para ganhos de escala na expansão do sistema. Aproveitamentos hidrelétricos de grande porte, como Furnas e Três Marias, emergem nesse contexto como alternativa mais eficaz, do ponto de vista técnico-econômico, para o incremento da potência instalada da região Sudeste. Adotar tal solução, contudo, tinha repercussões importantes sobre os interesses e as práticas que conferiam materialidade ao setor. O sentido básico das mudanças transparece na exposição de motivos, relativa à matéria, encaminhada pelo Conselho do Desenvolvimento à Presidência da República, onde se afirma que “a concentração de recursos e de esforços em obras maciças do porte de Três Marias e Furnas enseja resultados mais rápidos e frutíferos do que a dispersão das atenções e dos recursos por grande número de obras de pequeno vulto” (Conselho do Desenvolvimento, 1957; reproduzido por Cotrim, 1994, Anexo IV). Se permitia atender de forma mais eficiente às necessidades de expansão do sistema, como argumentava o governo, não havia como descurar as interfaces da implantação de grandes projetos de geração com os planos de expansão das principais concessionárias atuantes na área, tanto no que se refere à 240 comercialização final da energia a ser produzida quanto no tocante à concorrência pelos recursos passíveis de serem mobilizados para investimentos na atividade. O suposto de racionalidade técnica não permitia, assim, qualquer presunção de encaminhamento não-problemático na inclusão de um aproveitamento com o porte de Furnas na relação de investimentos que compunham a programação setorial do Plano de Metas. Num reconhecimento implícito do conflito de interesses que seria suscitado pela construção da usina, o governo federal, através do GTENE, vai recorrer a uma sistemática decisória fechada, de defesa contra possíveis ingerências das empresas atuantes na área, para assegurar a priorização do projeto. A adoção de tal estratégia, que permitia evitar desvios de rota em relação aos objetivos que se pretendia alcançar, não pode ser dissociada, por sua vez, das facilidades proporcionadas pelo esquema centralizado e informal de poder que funcionava em estreito vínculo com a Presidência da República (Draibe, 1985; Nunes, 1977; Benevides, 1991; Lafer, 1977). É este arranjo informal, abrindo espaço para o que Benevides (1991) denomina “administração de notáveis”, isto é, a autonomia decisória conferida a pessoas que ocupavam posições-chave na estrutura “paralela” e efetiva do comando da administração federal que possibilita a transformação da usina de Furnas e, junto com ela, Três Marias, em prioridades setoriais e, mais importante, a superação dos obstáculos institucionais e econômicos que serão defrontados em sua implementação. Descoberto de forma acidental no início dos anos cinquenta, o aproveitamento de Furnas vinha sendo estudado pela Cemig 67 , embora sem perspectivas ou intenção de construção imediata (Cotrim, 1994). Com potencial superior a 1.000 MW, equivalente a cerca de 1/3 da capacidade instalada do parque energético brasileiro no período (Centro da Memória da Eletricidade no 67 Para desenvolver os estudos com vistas ao aproveitamento do potencial hidráulico de Furnas, a Cemig contratou uma empresa especializada - a International Engineering Company, sediada nos USA (Cotrim, 1994). 241 Brasil, 1988), a usina ultrapassava, em muito, a demanda do mercado da empresa, além de exigir investimentos incompatíveis com suas reais possibilidades de mobilização de recursos. Por sua escala produtiva, Furnas só poderia ser construída à época como um empreendimento que transcendesse o âmbito estadual ou, mais precisamente, como um projeto de abrangência regional. A oportunidade para que isto ocorra acaba sendo criada por um fator circunstancial, que escapa ao controle da empresa: a necessidade da promoção de pesados investimentos em geração para evitar o colapso que se avizinhava no suprimento energético do mercado da região Centro-Sul, diagnosticada no âmbito da programação setorial do Plano de Metas. Sob o peso das influências pessoais de John R. Cotrim, na condição de coordenador do GTENE, e de Lucas Lopes, na condição de secretário geral do Conselho do Desenvolvimento e presidente do BNDE, o aproveitamento de Furnas vai ser deslocado da esfera decisória estadual para a federal, o que o levará a se transformar na iniciativa mais marcante do Governo Kubitschek no setor elétrico. O relato de Cotrim, pautado por forte vezo personalista, é elucidativo a esse respeito: “o projeto de Furnas foi concebido por mim, quando diretor técnico da Cemig, foi estudado por mim, como membro do Conselho do Desenvolvimento, e foi também aprovado por mim na condição de coordenador do GTENE. E o Lucas Lopes, que era o presidente da Cemig na época do estudo, era o presidente do BNDE e do Conselho do Desenvolvimento na hora de tomarmos a decisão” (1995: 115, depoimento). Refletindo, por sua vez, o canal direto de comunicação entre este núcleo decisório e a Presidência da República, a construção da usina, proposta pelo Conselho em exposição de motivos datada de fevereiro de 195768 , será declarada, por despacho presidencial do mesmo dia, como “de alta prioridade no plano de obras governamentais”69, o que determina e “legitima” sua inclusão no Plano de Metas. 68 Exposição de Motivo 010/57, do Conselho do Desenvolvimento. Despacho PR. 13.480-57 da Presidência da República, datado de 25 de fevereiro de 1957 e publicado no Diário Oficial de 07 de março de 1957. 69 242 Produto de uma decisão fechada do núcleo central do poder, a priorização de Furnas acabou se dando sem a prévia definição dos meios para transformá-lo em realidade. Da construção à distribuição final da energia a ser gerada, todos os parâmetros operacionais do empreendimento ainda se encontravam em aberto (Cotrim, 1994), o que compreendia tanto aspectos técnico-administrativos quanto de natureza política. Essa circunstância tornava sua viabilização fortemente dependente da capacidade de formulação e execução por parte do governo federal. As tarefas a serem realizadas com vistas à implantação da usina englobavam desde o detalhamento técnico do projeto à construção propriamente dita da obra, passando pela mobilização de recursos financeiros e pela busca de soluções adequadas para os problemas associados às suas interfaces com as atividades das empresas atuantes na área. O encaminhamento do processo irá seguir o estilo consagrado pelo Governo Kubitschek, fundamentando-se na opção por ações percebidas como mais eficazes ou convenientes face às oportunidades e aos constrangimentos do contexto. O alinhamento a uma conduta estratégica fundada no pragmatismo tecnocrático se manifesta já na definição do agente responsável pelo empreendimento. Como a administração federal não estava adequadamente aparelhada para o desempenho da tarefa (Cotrim, 1994) – a Chesf fora constituída para atuar na bacia do rio São Francisco -, a criação de uma nova empresa energética com a finalidade precípua de construir a usina surge como caminho mais indicado a ser seguido. Além de proporcionar resposta efetiva e imediata ao problema, essa opção tinha, a seu favor, o fato de favorecer o acesso aos recursos do FFE, proporcionado pela legislação que disciplinava sua aplicação. Em termos mais específicos, tal legislação permitia ao BNDE, na condição de gestor do Fundo, “subscrever ações de sociedades de economia mista controladas pela União atuantes na área de energia elétrica (...), bem como conceder-lhes empréstimos, (...) por conta da futura Eletrobrás” (Cotrim, 1994: 104). São dispositivos que não apenas conferiam expressiva margem de 243 autonomia decisória à atuação empresarial do governo federal na área, como também asseguravam, de partida, fonte potencial de financiamento para o investimento, através de antecipação de receita do FFE. Assim, num arranjo emblemático das soluções pouco ortodoxas do período, para responder pela implantação do empreendimento será proposta a constituição da Central Elétrica de Furnas S. A. (FURNAS), na condição de subsidiária da Eletrobrás, cujo projeto ainda não fora aprovado pelo Congresso e sequer contava com apoio efetivo do governo federal. É também na condição de subsidiária da Eletrobrás que a nova empresa irá levantar empréstimos junto ao BNDE para o financiamento da construção da usina. Viabilizados com base no esquema informal de poder, mais especificamente o envolvimento pessoal de Lucas Lopes com o projeto, tais empréstimos se fundamentam na antecipação de receita futura da Eletrobrás, num procedimento que, embora legal, terá efeitos secundários extremamente gravosos para a mesma. Em outras palavras, o comprometimento prévio de receita vai implicar, quando da efetiva constituição da Eletrobrás que, como se verá mais à frente, se dará no início dos anos sessenta, severos constrangimentos financeiros a seu funcionamento (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Richer, 1995, depoimento; Cotrim, 1995, depoimento). Concebida como instrumento para lidar com o problema da inexistência de um agente previamente credenciado para responder pela construção da usina, a criação da nova empresa e, com ela, a viabilidade da própria solução proposta se defrontavam com determinados constrangimentos de natureza operacional, derivados da segmentação das áreas de mercado em torno das quais se organizava a dinâmica de funcionamento do sistema. Numa atividade verticalmente integrada, isto é, onde cada empresa gerava a própria energia que comercializava, os principais centros de consumo da região Sudeste, que deveriam absorver a produção de Furnas, estavam quase que integralmente repartidos entre algumas poucas concessionárias estaduais - Cemig, em Minas Gerais; Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa) e Companhia Elétrica do Rio 244 Pardo (Cherp), em São Paulo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) - e subsidiárias dos grupos Light e Amforp. Esse fato tornava inevitável a busca de entendimento ou acordo prévio com tais empresas, com vistas à distribuição da energia a ser gerada. Assim, se o fechamento do processo decisório permitira assegurar a priorização do projeto no âmbito da programação setorial do Plano de Metas, a viabilização de sua implementação não podia prescindir da negociação com as concessionárias afetas à questão. Num processo que se prenunciava no mínimo complexo, dada a diversidade de interesses envolvidos, a estratégia de negociação seguida pelo governo federal com o intuito de garantir o apoio e a adesão ao empreendimento terá, como principal moeda de troca, a participação societária na empresa a ser organizada, convenientemente constituída como uma companhia de capital misto e, através dela, no próprio projeto. Num aparente paradoxo, a posição que vai se revelar mais refratária à construção de Furnas remete ao governo de Minas Gerais (Cotrim, 1987, depoimento; Bhering, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento), exatamente onde se localizava o aproveitamento hidrelétrico. Embora estivesse desenvolvendo o projeto de engenharia da usina, a Cemig não a tratava como prioritária, à medida que a maior parte da energia gerada, caso a obra fosse construída, teria de ser exportada para outras regiões (Cotrim, 1994), dada a dimensão relativamente estreita do mercado mineiro. A preferência da estatal mineira recaía na implantação de Três Marias – usina de menor porte, cuja produção atenderia basicamente à demanda do próprio estado -, ainda que não tivesse planos imediatos de construí-la, até porque os recursos que dispunha para investimentos já estavam comprometidos com outros projetos hidrelétricos considerados de maior prioridade em seu plano de expansão. A firme disposição do governo federal em levar em frente a implantação de Furnas, contudo, irá levar a uma mudança contingente na conduta estratégia da empresa, sendo percebida como uma oportunidade para viabilizar financeiramente Três Marias. Assim, numa negociação que vai se revelar bem sucedida sob a ótica de seus interesses 245 corporativos, a Cemig condiciona o apoio a Furnas a uma solução satisfatória para Três Marias (Cotrim, 1994; Lopes, 1991, depoimento). Premido pelo interesse na obtenção de respostas rápidas no tocante à construção de Furnas, o governo federal assume compromisso com a implantação simultânea de Três Marias, aproveitando o fato de tal empreendimento ter sido concebido originalmente pela Comissão do Vale do São Francisco (Codevasf), com características de um projeto de fins múltiplos70. No acordo que será celebrado com o governo estadual, a construção da barragem ficaria a cargo da União, a despeito de não existirem recursos previamente assegurados para a o projeto, cabendo à Cemig apenas a instalação dos equipamentos de geração elétrica da usina (Cotrim, 1994; Lopes, 1991, depoimento). Dentro do pragmatismo que caracteriza a gestão pública no Governo Kubitschek, o financiamento das obras será viabilizado, mais uma vez, através de uma saída improvisada: a concessão de empréstimo pelo BNDE, lastreado em antecipação de receita orçamentária da Codevasf (Cotrim, 1994). Subproduto da negociação de Furnas, Três Marias se antecipa “no tempo para os propósitos e a dimensão do mercado da Cemig” (Campolina, 1981: 92), num arranjo que lhe é extremamente favorável e que pode ser entendido como a compensação “cobrada” por sua cooperação com o governo federal. Como contrapartida dessa “combinação engenhosa” , na expressão de Lopes (1991, depoimento), que transforma Três Marias num “projeto muito barato” (Cotrim, 1994: 77) para a empresa, a Cemig é levada não apenas a se engajar mas a colaborar de forma efetiva com o processo de construção de Furnas, enquanto a empresa responsável pelo projeto não estivesse formalmente implantada. Assim, atendendo a solicitação do governo federal, assume a responsabilidade institucional pelo empreendimento junto ao CNAEE, com o intuito de acelerar a tramitação burocrática da concessão do aproveitamento e a liberação legal da área requerida pela obra, além de dar andamento aos trabalhos 70 Entre outras finalidades, a barragem de Três Marias visava o controle de enchentes e a regularização da vazão no médio e baixo curso do rio (Cotrim, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento). 246 de detalhamento do projeto de engenharia da usina (Cotrim, 1994). Esse arranjo institucional permitirá que, ao entrar em atividade, a nova empresa encontre o projeto num estágio avançado de maturação ou, mais precisamente, em condições de início imediato da obra (Cotrim, 1994). As negociações junto à administração pública de São Paulo compreendem, em princípio, questões relativamente menos complexas que aquelas tratadas com Minas Gerais. Ao contrário dos entendimentos com a Cemig, onde estavam em jogo aspectos relacionados à implantação propriamente dita da obra que, vale lembrar, constituía um projeto concebido originalmente pela empresa, o envolvimento das concessionárias paulistas no empreendimento se prendia, a rigor, à participação na distribuição da energia a ser gerada pela usina. No entanto, numa postura “oportunista” similar à adotada pelo poder público mineiro, o governo paulista condiciona sua adesão a Furnas ao apoio da União à construção das usinas de Urubupungá e Caraguatatuba (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) - obras consideradas prioritárias no âmbito do plano de eletrificação do estado e que não dispunham de fontes de financiamento. Interessado na resolução rápida do problema, o governo federal cede parcialmente à pressão. Inclui tais projetos entre as prioridades setoriais do Plano de Metas (Cotrim, 1994), sem a prévia definição da origem dos recursos necessários à viabilização dos mesmos. Numa saída conveniente, remove o obstáculo imediato que se interpunha à consecução de seus propósitos, criando compromissos a serem equacionados no futuro, embora sem maiores garantias de que viessem a ser, e de fato não serão, cumpridos. Se, para as concessionárias estaduais de Minas Gerais e de São Paulo, a usina de Furnas era percebida fundamentalmente como concorrente na disputa dos recursos públicos vinculados a investimentos em geração – os recursos do FFE -, para Light e Amforp, que não tinham, por restrição legal, acesso a esta fonte de financiamento, representava uma possível alternativa no enfrentamento das dificuldades que vinham encontrando quanto ao suprimento da crescente demanda de suas áreas de mercado (Cotrim, 1994, 1987, depoimento). 247 O interesse na energia a ser gerada pelo projeto, contudo, não implicava, por si só, uma adesão automática à participação no empreendimento, já que constrangimentos de ordem financeira tendiam a bloquear qualquer compromisso mais efetivo com a construção da obra. De fato, ambas estavam envolvidas na execução dos respectivos programas de expansão, o que praticamente exauria, no curto prazo, suas capacidades de mobilização de recursos (Cotrim, 1994; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No entanto, ainda que contribuindo apenas marginalmente com o financiamento da obra, interessava ao governo federal a inserção formal da Light e da Amforp no empreendimento, tendo em vista os arranjos relativos à distribuição da energia a ser gerada, onde inevitavelmente teriam de ser envolvidas, face à amplitude dos mercados que controlavam no eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Além disto, tal participação era vista como elemento de facilitação na contratação de empréstimos junto ao Eximbank e BIRD71, sem os quais dificilmente o projeto poderia ser viabilizado. Refletindo o entrelaçamento de interesses, a “saída” encontrada pelo governo consistiu na minimização do capital inicial da empresa que se pretendia criar para conduzir a implantação da usina. Furnas será constituída, assim, com capital relativamente pequeno - uma “empresa piloto”, na descrição de Cotrim (1994) -, de forma a neutralizar os constrangimentos financeiros que dificultavam a adesão dos grupos estrangeiros ao projeto. O caráter circunstancial do arranjo estabelecido se explicitará pouco à frente. Sem condições de acompanhar os sucessivos aumentos de capital da nova empresa, realizados pari passu aos avanços na implementação da obra, as participações acionárias da Light e da Amforp na sociedade irão cair de forma rápida para se tornarem quase que simbólicas antes mesmo do término da construção da barragem. 71 Conforme Cotrim (1994), a participação da Light era importante no sentido de atestar, no processo de avaliação da viabilidade da UHE Furnas feita pelo BIRD, a necessária capacidade técnica na implantação da obra. 248 Equacionados os problemas de natureza operacional, as obras de Furnas foram iniciadas em 1958, com recursos originários do FFE e de financiamentos do BIRD e do BNDE. A entrada em operação da usina se dará em 1963, num quadro de forte pressão da demanda. Sem enfrentar constrangimentos institucionais de maior relevância, a construção de Três Marias se fez em ritmo ainda mais acelerado. Financiadas por uma combinação de recursos orçamentários da Comissão do Vale do São Francisco e empréstimos do BNDE, as obras da barragem foram concluídas já em 1959, embora a usina só tenha entrado em operação no ano de 1962 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 3.4 A emergência de novos interesses e conflitos em torno dos investimentos hidrelétricos Por suas características técnicas e produtivas, Três Marias e, principalmente, Furnas representam um marco na trajetória do desenvolvimento das atividades elétricas no país. De um lado, consolidam a tendência à mudança de escala das plantas geradoras, esboçada com a construção de Paulo Afonso e as sucessivas ampliações de usinas da Light. De outro, sinalizam para a reconfiguração dos arranjos organizacionais do setor, dando o primeiro e decisivo impulso para a ruptura com a segmentação das áreas de mercado e a correlata verticalização das empresas prestadoras do serviço, cuja resultante será a progressiva interligação do sistema em redes regionalizadas e, mais à frente, em nível nacional. A mudança na escala produtiva dos empreendimentos hidrelétricos traduz a passagem de projetos baseados em barragens de pequena altura e reduzidos volumes de acumulação de água, associados ao aproveitamento de quedas naturais, para projetos que envolvem a construção de grandes barragens, com a acumulação de expressivos volumes de água. Do processo resultam profundas transformações nas interferências sobre o ambiente em que os projetos se inscrevem, repercutindo sobre a natureza e intensidade dos conflitos de 249 interesse potencializados pelos investimentos exponencial da área inundada pelo reservatório 72 do setor. O crescimento multiplica os danos patrimoniais ocasionados pelas usinas e amplia significativamente o conjunto populacional afetado, conferindo expressividade a questões até então sem maior relevância ou representatividade na dinâmica decisória do setor. Esse processo se dá em conexão com um movimento de dissociação espacial entre a produção e o consumo de energia. O vínculo territorial entre os benefícios e os custos sócioeconômicos associados às plantas geradoras, que existia quando da prevalência de projetos de pequeno porte, tende a ser rompido. Enquanto os custos preservam características espacialmente difusos. locais e regionais, Amplificados pela os benefícios mudança na tornam-se escala dos empreendimentos, os interesses impactados adquirem configuração de processos sociais concretos, referidos a uma dada territorialidade. Em contraposição, os benefícios se desterritorializam para serem confundidos, a rigor, com os interesses imbricados nas ações da empresa responsável pelo investimento. A despeito de sua maior expressividade, as mudanças na materialidade dos distúrbios sócio-ambientais provocados pelos investimentos do setor não se fazem acompanhar de qualquer alteração no enquadramento institucional, que remete, em última instância, aos dispositivos do Código de Águas, discutidos no capítulo anterior. O aprimoramento do arcabouço regulatório, no sentido da incorporação das transformações que ocorrem na dinâmica dos processos sociais e econômicos não é automático, como sugere uma leitura funcionalista, na linha da eficiência da história. Ao contrário, sua ocorrência depende da percepção da questão por parte dos interesses relevantes da sociedade e, o que é mais importante, do balanço de forças políticas favoráveis ou opostas à mesma. A ênfase na eficiência econômica dos investimentos em geração, prevalecente na esfera decisória do poder público, tende a bloquear, de partida, a introdução de inovações no tratamento da matéria. 72 Como ilustração, registra-se que a extensão dos espelhos d’água formados por Três Marias e 2 2 Furnas supera 1.000 km , contra apenas 16 km de Paulo Afonso (Müller, 1995). 250 Sem amparo de legislação específica, o que se consubstancia como impacto dos projetos hidrelétricos é contingente da dinâmica de negociação entre a empresa responsável pelo empreendimento e os segmentos sociais afetados, balizada, em essência, pelos direitos de propriedade, em conjunção a uma jurisprudência dominante estabelecendo ressarcimento financeiro aos prejuízos passíveis de indenização. Sob a ótica da concessionária, não há porque alterar a postura convencional de buscar a liberação da área requerida pela construção da usina ao menor custo possível e em prazo compatível com o cronograma da obra (Eletrobrás, 1991). Sob a ótica dos atingidos, apenas danos à propriedade encontram respaldo legal. Dentro das regras do jogo então prevalecentes, a consideração, no processo decisório relativo aos aproveitamentos hidrelétricos, de quaisquer interesses, individuais ou coletivos, não redutíveis a danos patrimoniais respaldados em lei dependia, de um lado, da capacidade de mobilização e pressão política em defesa dos mesmos e, de outro, das concessões que a empresa empreendedora se vê constrangida e está disposta a fazer enquanto responsável pelo projeto. Na ausência de mecanismos de intermediação de interesse minimamente estruturados para lidar com a questão, os resultados do processo tendem a ser fortemente viesados no sentido da prevalência da lógica decisória da empresa, de minimização do custo de implantação do empreendimento, o que transparece, com clareza, na construção de Furnas. A área inundada pela usina, segundo os estudos realizados no projeto executivo da obra, “estender-se-ia a uma distância de 240 km da barragem, no Rio Grande, e a 170 km no Rio Sapucaí, (...) cobrindo (...) cerca de 1.600 km2, na qual estavam compreendidos 32 municípios, (...) mais de 5.000 propriedades rurais, além de (...) pontes, estradas, zonas urbanas, (...), cemitérios, etc” (Cotrim, 1994: 116). A magnitude das terras, benfeitorias e equipamentos públicos atingidos e as interferências sobre os processos sócio-econômicos historicamente estruturados, contudo, não foram suficientes para induzir mudanças sensíveis nos parâmetros e critérios decisórios consagrados pela práxis do setor. A gestão 251 sócio-ambiental em Furnas segue procedimentos convencionais do sistema, focados essencialmente na liberação da área necessária ao empreendimento pela via da indenização monetária dos bens patrimoniais atingidos, com a estrita observância das determinações legais. Para tanto, busca-se bloquear qualquer discussão mais abrangente relativa às interferências da construção da usina na região, com o intuito de manter a configuração concreta dos impactos sócioambientais por ela ocasionados circunscrita à esfera dos direitos de propriedade. Na tentativa de contornar ou esvaziar iniciativas de natureza coletiva contrárias ao investimento, evita-se, ao limite, a interlocução com os interesses constituídos da área, o que inclui as Prefeituras e as Câmaras de Vereadores dos municípios com terras inundadas, restringindo-se deliberadamente a divulgação de informações oficiais sobre o projeto. Em complemento, adota-se tratamento individualizado no encaminhamento do processo desapropriatório, com a negociação caso a caso do valor das indenizações a serem pagas aos proprietários atingidos. É isto que se apreende da descrição feita por John R. Cotrim a respeito da conduta estratégica adotada no processo de implementação do empreendimento. Segundo Cotrim (1994), a formalização pelo governo federal da intenção construir a usina e o desenvolvimento dos trabalhos de campo necessários ao detalhamento final do projeto de engenharia da obra suscitaram crescente apreensão nas comunidades potencialmente atingidas, repercutindo junto a parlamentares com base política na região. Num contexto marcado pela circulação de informações parciais e conflitantes sobre questões cruciais para os segmentos sociais afetados - extensão e localização das terras inundadas, critérios de indenização, reconstrução de equipamentos e instalações públicas etc -, acaba ganhando corpo um amplo movimento que aglutina prefeitos, lideranças locais, e proprietários rurais e urbanos dos diversos municípios impactados no sentido de evitar a implantação do projeto ou, pelo menos, de negociar alternativas de aproveitamento com menores custos sociais e econômicos para a população da área. A possibilidade da adoção de solução técnica menos impactante não apenas era perfeitamente plausível, como chegara a ser 252 examinada, ainda que em caráter exploratório73. Se adotada, permitiria redução substancial na extensão das terras inundadas e, consequentemente, na abrangência e intensidade dos distúrbios sócio-ambientais provocados pela construção da usina. Em contrapartida, provocaria queda na potência instalada, e “perder-se-ia uma das principais vantagens da barragem de Furnas, tal como originalmente concebida, ou seja, a criação de um reservatório plurianual de regularização que, além do próprio projeto, beneficiaria todas as demais usinas situadas a jusante, existentes ou por construir. Em virtude desse conjunto de fatores, essa alternativa havia sido desconsiderada desde o início” (Cotrim, 1994: 118). Vale dizer, numa decisão unilateral, os responsáveis pelo projeto não se dispunham a sacrificar parte da energia a ser gerada em troca de redução dos custos impostos à sociedade local e regional, independente de qualquer análise mais aprofundada da natureza concreta de tais custos. A ausência de informações oficiais e de canais formais de interlocução tende a acentuar a insegurança e insatisfação na área, reforçando a mobilização social contrária à obra. A percepção de que reação estava “assumindo proporções preocupantes, com repercussões na Assembléia Legislativa Estadual e no Governo do Estado de Minas Gerais, bem como no próprio Congresso Nacional” (Cotrim, 1994:118), leva o governo federal a sair do imobilismo tático em que se mantinha, agendando uma reunião com as lideranças e autoridades políticas locais e regionais. Realizado em Alfenas-MG, em fevereiro de 1957, o evento contou com a presença de “numerosos proprietários da região, prefeitos, deputados estaduais e federais que faziam política na área” (Cotrim, 1991: 120). Sem respostas concretas para questões referentes à forma de tratamento dos variados impactos potencializados pelo empreendimento - emblemático do caráter secundário atribuído à questão pela práxis do setor -, os representantes do governo se limitaram, em essência, a prometer “tratamento justo e humano a 73 Conforme Cotrim, “durante os estudos para o projeto de Furnas, fôra detectada (...) uma alternativa (...) que consistia no aproveitamento do mesmo desnível escalonadamente, por meio de uma barragem mais baixa no canyon, cujo represamento se estenderia até pouco além da confluência do Rio Sapucaí, sem atingir quase nada, seguido de barragens mais baixas em cada um dos rios Grande e Sapucaí, a montante de sua confluência” (1994: 118). 253 todos os interessados, porque não era (...) intenção transformar uma obra de importância nacional numa desgraça regional” (Cotrim, 1994:122). A explicitação da inexistência de “soluções (...) para a maioria dos problemas” (Cotrim, 1994:123) que seriam provocados pela construção da usina contribuiu para reforçar a oposição ao empreendimento. Esse sentimento se materializa na elaboração de um “memorial dirigido ao Presidente da República” (Cotrim, 1994:123/124), solicitando a suspensão da obra. O apelo direto à interferência da Presidência, contudo, não tinha nenhuma perspectiva concreta de êxito74, até porque a decisão de iniciar de imediato a implantação da usina já estava tomada pelo governo, em caráter irreversível, sendo deliberadamente omitida aos participantes da reunião, por conveniência política75. Transcorrida menos de uma semana da reunião de Alfenas, será dada a partida definitiva à construção da obra, às expensas dos interesses e preferências locais e regionais. A imposição dos interesses do projeto sobre os interesses e preferências da população impactada irá marcar também o processo de desapropriação das terras necessárias à construção da usina, conduzido de forma a garantir a possibilidade “de se encher o reservatório no tempo programado, sem maiores traumas, com toda a área a ser inundada desimpedida” (Cotrim, 1994:151). O obstáculo representado pela ocupação sócio-econômica assentada em nível local será removido, dentro do cronograma estabelecido para a obra, seguindo os procedimentos usuais do setor, mais especificamente, 74 O encaminhamento dado ao memorial ilustra, com nitidez, a forma pragmática adotada pelo governo com o intuito de contornar obstáculos à consecução de seus objetivos. Conforme relato de Cotrim, o documento foi “entregue ao Presidente, que o fez protocolar na minha presença (...). Só que essa entrega foi feita de forma tão casual que o Presidente sequer pôde dar atenção ao documento, tão cercado estava de pessoas que solicitavam incessantemente a sua atenção. Pelo visto, ele, pessoalmente, jamais chegou a ler esse memorial, pois nunca me falou a respeito. Eu também não cobrei. Missão cumprida, mas não perseguida” (1994:124). Após o rito formal, consoante procedimentos convencionais da burocracia, a tentativa das comunidades locais de incluírem seus interesses no processo decisório relativo ao projeto é neutralizada, informalmente, no âmbito da própria Presidência da República. 75 O relato de Cotrim não deixa dúvidas a respeito da conduta oportunista adotada na ocasião: “mal sabiam aquelas pessoas, pois em momento algum deixamos transpirar esse fato, que na manhã seguinte iríamos a um encontro com o Presidente em Petrópolis, para presenciar sua aprovação dos Atos Constitutivos da Companhia” (1994:124) responsável pelo projeto. A criação formal da empresa ocorre três dias após aprovada, em “reunião solene do Conselho do Desenvolvimento, presidida pelo Presidente Kubitschek, (...), presentes todos os ministros de Estado” (Cotrim, 1994:132), num claro atestado da disposição e urgência em dar concretude ao empreendimento. 254 através de negociações individualizadas da indenização de danos ao patrimônio, com base em critérios definidos de forma unilateral pela empresa (Cotrim, 1987, depoimento). Na ocorrência de impasse, transferia-se a decisão para a esfera do judiciário. Sistemática similar será adotada na relocação ou recomposição do patrimônio público afetado pela usina. Reduzindo os impactos a perdas materiais e tratando-os em consonância com o estrito cumprimento da lei, a empresa não encontra maiores dificuldades em concluir o processo indenizatório dentro do prazo previsto (Cotrim, 1994). Soluções unilaterais serão novamente utilizadas para contornar obstáculos ao enchimento do reservatório, programado pela empresa para o início de 1963, de forma a aproveitar a estação chuvosa. Essa programação se faz desvinculada de qualquer medida acauteladora quanto à efetiva desocupação da área a ser inundada. Numa interpretação estrita dos dispositivos legais, as ações até então desenvolvidas haviam se limitado, a rigor, ao cumprimento formal do rito desapropriatório, transferido toda a responsabilidade do deslocamento para a própria população atingida. Sequer os casos pendentes de decisão judicial mereceram tratamento ou atenção especial. Reagindo a situação, o governo do estado76 se opõe ao fechamento da barragem, o que ameaçava atrasar em pelo menos um ano a entrada em operação da usina (Cotrim, 1987, depoimento). Esse obstáculo vai ser contornado recorrendo-se mais uma vez ao que Draibe designa como “improvisação pragmática de saídas” (1985: 245). Numa ação pouco ortodoxa, as comportas da usina serão fechadas em sigilo, evitando qualquer possibilidade de reação, dado que o fechamento revelava-se tecnicamente irreversível. Em outras palavras, a empresa impõe suas preferências e interesses à administração estadual, aproveitando-se, para tanto, da relativa autonomia decisória assegurada pela ausência de ordenamento normativo para a matéria. Cotrim não deixa dúvidas sobre o pragmatismo da decisão: “como legalmente, a rigor, o fechamento não dependia da aprovação do governo estadual, era uma 76 Havia um atrito político entre o governo mineiro, sob o comando de Magalhães Pinto, e Furnas (Cotrim, 1988, depoimento), motivado pela disputa entre esta empresa e a Cemig em torno do aproveitamento de Estreito, localizado imediatamente a jusante da usina em construção (Richer, 1995, depoimento). 255 mera cortesia informá-lo previamente, nós fomos em frente. Fizemos a coisa de surpresa” (1988, depoimento). Se o governo estadual não consegue se credenciar como interlocutor da empresa, não é de se estranhar o fato de as autoridades municipais e a população da área também terem sido completamente ignoradas. A estratégia adotada na operacionalização do fechamento das comportas segue uma lógica excludente, por princípio, dos interesses afetos à questão. Como discutido pela teoria dos jogos, a negociação só é necessária e, portanto, só ocorre quando um ator tem capacidade de bloquear ou interferir sobre a ação do outro. Caso contrário, não existe interação e sim imposição das decisões tomadas, como mostra, mais uma vez, o relato de Cotrim, segundo o qual a ação da empresa foi “bem planejada, bem pensada e bem fundamentada” (1988, depoimento), de forma a minimizar os riscos de insucesso da programação traçada. O eixo básico da estratégia adotada consiste na promoção de várias simulações de fechamento, com o propósito deliberado de encobrir a real intenção da empresa, dificultando eventuais reações ao processo77 .Concluída essa fase preparatória, “um belo dia, nos os responsáveis pela operação deslocamos para lá e tomamos as providências e, numa madrugada, fechamos rapidamente a barragem” (Cotrim, 1987, depoimento). Como a formação do lago do reservatório, dada sua dimensão, se processa de forma lenta, o deslocamento da população remanescente, que não saíra por conta própria da área de inundação, pôde ser feito a posteriori, sem maiores consequências sociais (Cotrim, 1987, depoimento) ou, numa interpretação mais apropriada, sem implicações ou custos políticos de maior relevância para a empresa. O alagamento das terras, como descreve Cotrim, “não chegou a afetar ninguém: chegou a bichos, macacos e coisas assim, a fauna ...” (1987, 77 Em complemento, articula-se um esquema emergencial para prestar “socorro a ocupantes eventuais da área que ainda não tivessem saído a tempo, contra a subida da água” (Cotrim, 1987, depoimento), centrada no acionamento, se necessário, de apoio militar. 256 depoimento). Sem referência institucional, tais impactos eram negligenciáveis, isto é, não representavam nada além de uma consequência inevitável e não pretendida dos investimentos do setor. Vale dizer, a ausência de uma legislação específica para o enquadramento dos distúrbios ocasionados pelos empreendimentos hidrelétricos conferia às empresas atuantes na área não apenas autonomia decisória para determinar aquilo que vai ser considerado socialmente relevante, assegurando-lhes poder de veto informal face a reivindicações das comunidades locais e regional impactadas, como negava, de partida, qualquer materialidade às interfaces com o meio natural. 4. A sobreposição do Estado empresário ao Estado regulador O imediato pós-guerra introduziu, como visto, mudanças nos contextos externo e interno envolvendo variáveis relevantes para a dinâmica das atividades elétricas no país. No primeiro, diluíram-se os principais constrangimentos à aquisição de máquinas e equipamentos necessários aos investimentos do setor e surgiram fontes alternativas de financiamento à expansão do sistema, com destaque para a criação do BIRD. No segundo, o aspecto mais significativo tem a ver com o retorno a uma institucionalidade democrática, implicando o revigoramento do poder do Legislativo e a alternância no controle político do Executivo. São transformações convergentes com a retomada dos investimentos produtivos das grandes concessionárias privadas, sinalizando perspectivas de uma reversão do refluxo no lançamento de projetos de geração e transmissão de energia ocorrido a partir da promulgação do Código de Águas. O aspecto mais evidente a esse respeito eram as melhorias nas possibilidades de mobilização de recursos tecnológicos e financeiros pelo sistema advindas do novo cenário internacional. Da restauração da ordem democrática, por sua vez, resultavam não só maior estabilidade e previsibilidade no tocante às regras do jogo, refletindo a redução no grau de autonomia decisória do Executivo, que se via submetido a maior controle por parte do Legislativo, como também a ampliação da 257 capacidade de ingerência das empresas sobre a condução da política setorial do governo. Vale lembrar aqui a enorme capacidade de mobilizar recursos políticos demonstrada pelos grupos Light e Amforp. A influência de tais fatores sobre as preferências das empresas atuantes na área, contudo, não será suficiente, por si só, para induzir alterações sensíveis nas escolhas estratégicas que fazem relativas à programação de investimentos na expansão do sistema. Sem revisões de maior profundidade na sistemática tarifária introduzida pelo Código de Águas, ainda pendente de regulamentação, persiste a conduta defensiva de restringir a alocação de recursos na atividade a projetos com relação benefício/custo muito favorável, onde se salienta a ampliação da potência instalada de usinas hidrelétricas já implantadas. Estímulos econômicos associados a uma demanda por eletricidade em rápido crescimento não irão implicar, assim, respostas à altura pelo lado da oferta. O descompasso entre a disposição a consumir da sociedade e a disposição a investir das concessionárias acentua a deterioração da qualidade dos serviços prestados, da qual emerge um novo tipo de problema: a ocorrência de estrangulamentos no suprimento energético. Numa relação de causação indireta, não antecipada nem pretendida, a intenção governamental de corrigir as “imperfeições” na dinâmica de funcionamento do mercado, assegurando maior proteção ao consumidor contra o poder monopolista dos grandes grupos empresariais que haviam se estabelecido no sistema, além de não obter êxito, trouxe, como subproduto, a ocorrência de “falhas” nos resultados produzidos por este mesmo mercado. Internalizado na agenda pública, o enfrentamento do déficit no suprimento energético passa a constituir, a partir de então, o elemento central no balizamento das ações estatais na área, o que não significa, evidentemente, uma orientação intertemporal comum na formulação e implementação da política setorial. A alternância no controle do poder público determinada pela restauração da institucionalidade democrática abre espaço para a promoção de mudanças periódicas na orientação imposta à atividade governativa nos diversos campos 258 onde a presença do Estado se manifesta. É isto que tende a ocorrer no segmento elétrico, com a sucessão no comando do Executivo implicando formas distintas de percepção e de encaminhamento de “soluções” para o estrangulamento na capacidade de atendimento do sistema. O traço de continuidade que permeia a concepção e implementação das iniciativas setoriais dos governos formados no pós guerra irá refletir, em essência, os efeitos da dependência de trajetória ou, mais especificamente, a influência que os resultados de decisões tomadas numa dada administração exerce, como constrangimento ou oportunidade, sobre as escolhas feitas na administração seguinte. No Governo Dutra, o alinhamento a uma orientação política de recorte liberal desempenha um papel decisivo na conformação dos rumos seguidos pela intervenção estatal, impregnando, em particular, as ações que serão desenvolvidas no setor elétrico. Assim, a despeito das crescentes dificuldades em assegurar um suprimento regular e confiável de eletricidade apontarem na direção de um desempenho operacional e produtivo insatisfatório das concessionárias atuantes na área, a atividade continuará sendo percebida e tratada como um campo preferencial da iniciativa privada. As tentativas de lidar com as “falhas” de mercado vão se aglutinar em torno do propósito de minimizar a intensidade do problema e os efeitos sociais perversos dele decorrentes. De um lado, busca-se reduzir os constrangimentos que vinham inibindo os investimentos no sistema, através da flexibilização de determinados dispositivos regulatórios estabelecidos pelo Código. De outro, procura-se ajustar o consumo à capacidade efetiva de atendimento do parque gerador, com a adoção de medidas de racionamento. Subproduto da relativa ineficácia da estratégia adotada pela administração federal, ganha corpo, em paralelo, um movimento no sentido do alargamento da inserção produtiva de governos estaduais no sistema, que se iniciara nos anos trinta. O retorno de Vargas à Presidência da República assinala uma inflexão na política setorial do governo. A resolução do estrangulamento energético, que havia se agravado face à ineficácia das medidas adotas na gestão Dutra, adquire 259 caráter estratégico à medida que se colocava como requisito à viabilização da agenda desenvolvimentista e industrializante definida pela nova administração. Entre a alternativa de tentar estimular a retomada dos investimentos privados, que passava necessariamente por uma revisão abrangente nas regras do jogo instituídas pelo Código de Águas, de resultados de difícil previsão, e a alternativa de intensificar a realização de investimentos públicos na expansão do sistema, a escolha do governo irá recair na segunda. Tal escolha implicava o aparelhamento estatal para o desempenho eficaz de suas ampliadas funções empresariais na área. Em conexão com esse propósito, as ações setoriais do Executivo federal vão se concentrar num esforço de construção institucional voltado à criação de mecanismos de financiamento para a implantação de projetos de geração e transmissão de eletricidade, conjugada à montagem de um aparato burocrático capaz de responder pela coordenação e gerenciamento da aplicação dos recursos, estabelecendo diretrizes e prioridades para o setor. São ações com forte efeito estruturante sobre a conformação do campo organizacional da atividade, promovendo uma demarcação institucional mais nítida das esferas de atuação das empresas públicas e privadas no sistema. A lógica estatal imbricada nas primeiras e a lógica econômica associada às últimas se justapõem, num arranjo produtivo que cristaliza transformações cujo delineamento vinha se processando progressivamente ao longo dos anos anteriores. A ascensão de Juscelino Kubitschek à Presidência da República, sucedendo Getúlio Vargas dentro das regras democráticas vigentes, desencadeia mudanças nos rumos das ações governamentais no setor elétrico. A nova administração aprofunda o intervencionismo estatal na área, mas o faz de forma claramente distinta da orientação seguida na gestão anterior. Premido pelo interesse de neutralizar os constrangimentos que o estrangulamento energético criava à viabilização da estratégia de diversificação produtiva e crescimento acelerado da economia em torno da qual estrutura sua agenda política, o Governo Kubistchek opta por “soluções” capazes de proporcionar respostas rápidas no tocante à expansão do sistema. Essa escolha tem implicações em duas direções 260 principais, com efeitos não pretendidos sobre a dinâmica evolutiva da atividade. De um lado, o Executivo federal é levado a empreender um acentuado esforço de investimento na ampliação do parque gerador, de forma a assegurar, em tempo hábil, uma oferta compatível com o salto que se projetava para o consumo de energia em função das metas de incremento da produção nacional estabelecidas pela política pública. De outro, recorre a improvisações institucionais e medidas transitórias ou de curto fôlego com vistas à efetividade de suas iniciativas na área, o que envolve, em particular, passar ao largo de qualquer compromisso com a continuidade das negociações com o Legislativo das propostas setoriais formuladas na gestão varguista. Ao final dos anos cinquenta, o campo organizacional das atividades elétricas apresenta conformação bastante diferenciada daquela observada em meados da década anterior. As escolhas políticas feitas pelos governos que se sucederam ao longo do período, balizadas por contextos distintos e movidas por lógicas decisórias, preferências e interesses também distintos, moldaram uma trajetória onde o Estado empresário vai gradativamente adquirindo contornos institucionais e operacionais mais sólidos e se sobrepondo ao Estado regulador. Isto se traduz, concretamente, na coexistência de dois modelos de organização da atividade que se interpenetram e exercem influências recíprocas, ambos incompletos e em transformação. Fundamentado na iniciativa privada e nas regras estabelecidas pelo Código de Águas, não plenamente regulamentadas, o primeiro se caracterizava por uma dinâmica evolutiva que vinha passando por uma espécie de “congelamento”, com sinais de retração. O segundo apresentava uma dinâmica oposta, com a formação de novas empresas, estaduais e federais, e a rápida expansão das já existentes, em conexão a iniciativas voltadas à construção de uma institucionalidade capaz de dar suporte ao ampliado intervencionismo estatal na área. 261 V. ESTATIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO OPERACIONAL E PLANEJAMENTO CENTRALIZADO Como visto no capítulo anterior, a estatização das atividades do sistema elétrico, que vinha avançando progressivamente desde meados dos anos quarenta, tende a se consolidar na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek, em conexão com a estratégia de crescimento e modernização da economia adotada no período. Em termos mais específicos, a necessidade de assegurar o suprimento energético para um mercado urbano-industrial em acelerada expansão, numa circunstância de retração dos investimentos produtivos das grandes concessionárias privadas, praticamente não deixava alternativa de resolução do problema a não ser o incremento dos investimentos públicos na área. As funções empresariais do Estado se alargam e passam a se sobrepor às funções propriamente regulatórias, cujos resultados não estavam atendendo às expectativas das instâncias decisórias do governo. Em sintonia com a orientação geral da gestão pública à época, as ações adotadas pelo governo federal na área de energia elétrica foram pautadas pela seleção de soluções com menor potencial de fricção junto ao ambiente, isto é, capazes de proporcionar respostas mais rápidas no tocante às metas de expansão propostas para o sistema. Isto exigiu, de um lado, recorrer a fontes de recursos extra-setoriais, autofinanciamento das complementando empresas a limitada concessionárias com capacidade de transferências orçamentárias e contratação de empréstimos externos. De outro, passar ao largo de qualquer intento reformista mais abrangente, restringindo as iniciativas no campo político-institucional basicamente a medidas necessárias à resolução de problemas que emergiam pari passu ao avanço do intervencionismo estatal. Se teve êxito quanto à obtenção de resultados satisfatórios no tocante à expansão da oferta de eletricidade, tal estratégia também provocou alterações substantivas na dinâmica de funcionamento do sistema. O primeiro aspecto a ser ressaltado tem a ver com a vulnerabilização do padrão de financiamento do setor, 262 contraface da crescente participação de fontes de recursos extra-setoriais na viabilização de seus investimentos produtivos. O segundo guarda relação com o acirramento do descompasso entre o arcabouço regulatório da atividade, definido a partir da premissa de concessão da exploração do serviço à iniciativa privada, e a natureza concreta de seu desenho organizacional, em avançado processo de estatização. São questões que sinalizam para a necessidade de ajustes estruturais nos pilares de sustentação do sistema, como forma de assegurar a racionalização e eficiência operacional na prestação do serviço. Essa reestruturação adquire caráter de urgência no início dos anos sessenta, quando o descenso cíclico da economia brasileira e a correlata deterioração da capacidade financeira do Estado se refletem no fluxo de recursos que vinha dando suporte à implantação dos projetos de geração e transmissão de energia, evidenciado, em particular, nas dificuldades enfrentadas na conclusão de Furnas78 (Cotrim, 1988, depoimento). A promoção de mudanças na institucionalidade do setor será feita de forma incremental, numa dinâmica fortemente influenciada por aspectos objetivos do ambiente interno em sentido amplo e suas transformações no tempo. Para efeitos analíticos, o processo pode ser dividido em duas etapas principais, com características distintas no tocante ao conteúdo e ao encaminhamento da atividade reformista. A primeira etapa compreende os anos iniciais da década de sessenta, marcados pela instabilidade política, portadora de uma crise de governabilidade e de governança. Além de descontínuas e protagonizadas por diferentes atores, refletindo a fluidez do ambiente institucional e a fragilização do poder central, as iniciativas de cunho reformista implementadas no período são fortemente influenciadas pela estrutura de constrangimentos e de oportunidades derivadas dos arranjos pretéritos e pelos efeitos contextuais de decisões que vão sendo tomadas ao longo do tempo. Dentre tais iniciativas, cumpre destacar a criação da Eletrobrás e os primeiros passos no sentido do planejamento integrado 78 A conclusão das obras de Furnas exigiu, conforme Cotrim (1987, depoimento), um esforço de negociação de financiamentos via orçamento fiscal da União, já que não haviam recursos assegurados compatíveis com os requisitos da construção do empreendimento. 263 dos investimentos do sistema. A segunda corresponde ao período pós-64, que tem, como traço saliente, a restauração das condições de governabilidade e, especialmente, a recuperação da capacidade de governança, sustentada na instauração de uma ordem autoritária. O regime militar que se instala no país traz em seu bojo não apenas o revigoramento do poder central mas a retomada do intervencionismo estatal na economia. A partir de então, as decisões e os eventos de maior relevância para o desenvolvimento do setor elétrico tendem a se concentrar na esfera da administração federal e a acompanhar de perto as diretrizes gerais emanadas da política macroeconômica. Num primeiro momento, a ênfase recai na estabilização do ambiente interno e a preparação das condições institucionais e financeiras que vão permitir, num segundo momento, a retomada, de um novo ciclo expansivo da economia, o que se concretiza nos anos finais da década de sessenta, estendendo-se até a transição dos anos setenta. Esse “prolongado surto de acumulação capitalista”, como observa Sola, “teve por condição necessária uma profunda reorganização do Estado e de suas estruturas através de uma intensa atividade reformista (...) que culminou em uma reconcentração de recursos nas mãos deste mesmo Estado, em dimensões inéditas na história brasileira” (1995: 30). Implementadas ao longo dos anos 1964/67, as reformas envolveram um amplo conjunto de medidas nas áreas monetária, tributária, administrativa e legal, criando as bases para a implementação de uma estratégia desenvolvimentista de longo prazo, cuja expressão máxima será o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) do Governo Geisel (1974/79). São mudanças voltadas para a gestão eficaz da economia, tendo como característica central a busca da conciliação de eficiência micro e macroeconômica na alocação dos recursos produtivos da sociedade, num mix de mercado e plano. Isto se faz acompanhar do incremento do intervencionismo estatal na esfera da produção, conjugado à concessão de maior autonomia e liberdade de iniciativa às empresas públicas, dando forma ao que Dain (1986) designa como processo de “autarquização” das funções empresariais do Estado. 264 Acompanhando a orientação geral que norteia o esforço reformista levado a efeito nos anos 1964/67, as principais iniciativas governamentais na área de energia elétrica convergem no sentido da redução do grau de dependência do sistema do aporte de recursos extra-setoriais, especialmente de transferências originárias do orçamento fiscal. Apoiado no conjunto das reformas financeiras e institucionais implementadas no período, o setor elétrico irá experimentar uma notável ampliação de sua capacidade de atendimento durante o ciclo expansivo da economia brasileira. Isto se faz, fundamentalmente, com base em investimentos realizados pela instância pública, cuja resultante será a plena estatização do sistema. Sob esse traço comum, o processo apresenta dois momentos distintos, numa estreita relação com a dinâmica de acumulação de capital que sustenta a expansão da atividade produtiva à época. Numa primeira etapa, que coincide com o crescimento acelerado do denominado “milagre econômico”, sobressai uma lógica decisória que se aproxima, em certo nível, da dinâmica alocativa de mercado. De um lado, o governo federal, imbuído do propósito de reduzir a drenagem de recursos orçamentários para o sistema, procura promover a recuperação da capacidade de autofinanciamento das empresas concessionárias, com incremento da receita operacional auferida com a prestação do serviço, tendo como fundamento aumentos reais nas tarifas elétricas. De outro, o avanço acelerado da produção industrial e a intensificação do movimento de urbanização repercutem sobre o consumo de eletricidade, que volta a crescer aos saltos (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). Favorecidas por uma política tarifária “realista” (Rosa et al, 1988), as principais concessionárias estaduais buscam aproveitar as oportunidades de investimento proporcionadas por uma demanda em rápida expansão para consolidarem suas posições nos segmentos de geração e transmissão, numa disputa direta com as estatais federais pelo espaço aberto pelo refluxo da iniciativa privada. Com o esgotamento dos pilares de sustentação da expansão produtiva ocorrida à época do milagre econômico, a continuidade do crescimento vai se 265 escorar na adoção de uma política anticíclica, traduzida no II Plano Nacional de Desenvolvimento. Entra-se aqui numa segunda etapa, onde o aspecto marcante será a racionalização e o consequente incremento da eficiência econômica na alocação de recursos na expansão do sistema, tendo como vetores principais o aprofundamento da centralização decisória e o avanço da operação interligada, cujo cerne é o reforço do papel desempenhado pela Eletrobrás enquanto agência de planejamento e coordenação dos projetos de investimento na área. A lógica decisória do plano passa a se impor, de forma muito mais incisiva, às lógicas empresariais, com a ampliação do parque energético se fundamentando em metas produtivas estabelecidas através de uma sistemática integrada de planejamento dos investimentos do setor. Aumenta a dependência frente a fontes de recursos extra-setoriais, especialmente empréstimos externos, facilitados circunstancialmente pela disponibilidade de crédito internacional a juros baixos (Dain, 1987; Lima, 1995), ao mesmo tempo em que se acentua a participação das empresas federais na implementação dos projetos de geração e transmissão. A ênfase na otimização do aproveitamento dos recursos energéticos, centrada na apropriação de economias de escala (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), conduz, por sua vez, à consolidação da tendência à implantação de mega projetos hidrelétricos, emblematizada pela usina de Itaipu. Ao final dos anos setenta, o setor elétrico brasileiro apresenta-se como uma atividade moderna e organizada em âmbito nacional. O crescimento acelerado ocorrido ao longo da década não trouxe apenas mudanças na escala técnica dos empreendimentos hidrelétricos, mas ensejou avanços consideráveis na operação interligada, além de reforçar a presença das empresas federais nos segmentos de geração e transmissão e levar ao limite a estatização do sistema. São transformações que exigiram um enorme esforço de planejamento e coordenação, refletido em progressivos aperfeiçoamentos nos mecanismos de gestão e controle da atividade. Na entrada dos anos oitenta, no entanto, uma combinação de fatores adversos – estrangulamento nas contas externas do país e consequente elevação nos custos dos financiamentos obtidos no exterior, 266 redução nas tarifas reais de energia, deterioração da capacidade de investimento da administração pública nos níveis federal e estadual, e perda do dinamismo da economia, entre outros – irá desestabilizar os arranjos organizacionais e produtivos da atividade. Dificuldades na obtenção de recursos, erros de planejamento e atrasos na implantação de obras já iniciadas põem em movimento um processo de deterioração técnica e financeira no desempenho das empresas atuantes na área, conformando um quadro de elevado risco de déficit de energia, cujo desdobramento será, como em circunstâncias anteriores, uma profunda reformulação institucional e financeira do setor. 1. Consolidação da hegemonia estatal e adequações institucionais nos anos iniciais da década de sessenta A diversificação e modernização do parque produtivo nacional ocorrida na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek exigiu, como visto no capítulo anterior, não só um esforço de coordenação e articulação dos interesses do capital privado em torno dos novos blocos de investimento na atividade industrial como também “um aprofundamento inusitado do papel da empresa pública” (Draibe, 1985: 255). No entanto, reformas institucionais de cunho mais geral foram deliberadamente deixadas para trás, de forma a evitar ou pelo menos minimizar obstáculos que poderiam se interpor ao salto industrializante projetado pela política pública79. Vale dizer, as mudanças introduzidas na base material da economia se processaram sem a concomitante promoção de transformações de fundo quer na estrutura administrativa e financeira do Estado, indutor e principal agente do processo desenvolvimentista, quer na forma e conteúdo de suas 79 O ciclo expansivo e modernizante da economia brasileira no período implica uma acentuada ampliação do escopo das funções produtivas do Estado, sem uma concomitante ampliação e reforço de sua base financeira (Tavares, 1977; Dain, 1977; Lessa, 1975). A propósito dessa questão, cabe observar que, para enfrentar a limitada capacidade de mobilização de recursos - o “calcanhar de Aquiles” da estratégia de industrialização então adotada (Fiori, 1993) -, o governo recorre a mecanismos de financiamento e gestão pouco ortodoxos, como a realização de despesas extra-orçamentárias e expansões creditícias sem o necessário lastro fiscal (Faro e Silva, 1991; Dain, 1977; Lessa, 1975). A extensão e a intensidade do uso de tais mecanismos vão resultar não apenas no recrudescimento do processo inflacionário, mas no endividamento público e na consequente corrosão da capacidade de o Estado financiar os investimentos indispensáveis à continuidade do projeto industrializante (Oliveira e Mazuchelii, 1977; Leopoldi, 1991, Láfer, 1977; Macedo, 1977; Fiori, 1993). 267 relações com a sociedade (Benevides, 1991; Draibe, 1985; Dain, 1977; Oliveira e Mazzuchelli, 1977). Assim, ao final do Governo Kubitschek, o esgotamento das potencialidades de um processo de desenvolvimento centrado num Estado que estende suas funções regulatórias e produtivas muito além de sua efetiva estrutura operacional e financeira tornara não apenas indispensável mas também urgente a realização das denominadas reformas tributária e administrativa (Draibe, 1985; Ianni, 1977; Benevides, 1991; Fiori, 1993; Campolina, 1981). Inflação em ascensão, aprofundamento do déficit público e desequilíbrio nas contas externas são os indicadores mais visíveis de uma crise de acumulação que traz, para o centro da cena política, a preocupação com a estabilização macroeconômica, sinalizando ao mesmo tempo a necessidade da reformulação dos padrões de financiamento do processo de desenvolvimento nacional. No entanto, os mesmos fatores que “exigiam” a adoção de uma agenda reformista se traduziam em condições contextuais adversas à sua implementação. Em termos mais específicos, a deterioração da capacidade do Estado de gerar e alocar recursos implica crescentes dificuldades em proporcionar respostas satisfatórias às demandas, pressões e conflitos distributivos de uma sociedade em rápido processo de diversificação estrutural, levando à “radicalização das demandas e a intolerância política (...) dos diferentes atores sociais” (Santos, 1987: 74). A crise do padrão de acumulação forjado no Governo Kubitschek vai sendo gradativamente transmutada numa crise do padrão de relação entre Estado e sociedade, que se expressa na incapacidade das instituições estabelecidas em garantir sustentação política às decisões da administração pública. As tentativas de avançar a reformulação dos padrões de financiamento e gastos do Estado tendem a esbarrar em crescentes obstáculos políticos interpostos por grupos de pressão e interesses constituídos da sociedade, tendo como fulcro central o poder legislativo. O desempenho insatisfatório na implementação de políticas e a correlata dificuldade de administrar conflitos conformam uma rota explosiva de progressiva redução das condições de governabilidade que converge para a 268 mudança do próprio regime político (Santos, 1986, 1987). A esse quadro geral se associa, como observa Nogueira, “uma irremediável desarticulação dos esforços reformadores mais consistentes” (1998: 104), o que se aplica, em particular, às iniciativas governamentais no campo das atividades elétricas. Ainda que importantes, as ações setoriais do poder público se ressentem de uma maior organicidade e solidez, pouco avançando além de sancionar mudanças afinadas com as transformações que vinham se processando nos arranjos organizacionais e produtivos do sistema, numa adaptação típica de processos evolutivos caracterizados pela dependência de trajetória. Medidas mais efetivas com vistas à recomposição das bases de financiamento e à recuperação da eficácia operacional do setor só serão encaminhadas, em termos mais definitivos, após a instauração do regime autoritário-militar, quando o Estado volta a desempenhar um papel estruturante na economia e sedimenta de vez sua presença empresarial na atividade. 1.1 A criação da Eletrobrás e a busca de soluções para o estrangulamento tarifário do setor O aprofundamento do intervencionismo estatal e a consequente diferenciação organizacional e produtiva dos serviços de eletricidade ao longo dos anos cinquenta conduzem a progressivo aumento da complexidade das tarefas de administração dos assuntos pertinentes à área energética. A amplificação do potencial de atritos associada ao avanço do processo de estatização, que demandava novas estruturas de articulação de interesses e de arbitragem de conflitos, e as dificuldades no financiamento da expansão do sistema, que se refletiam sobre a adequação da capacidade de oferta aos requisitos da demanda, convergem no sentido de conferir saliência à existência de um “déficit” de institucionalidade no setor. A concepção das regras do jogo prevalecentes, corporificadas no Código de Águas, partira da premissa de uma atividade a cargo da iniciativa privada e se preocupava fundamentalmente com a proteção dos consumidores contra o poder monopolista das concessionárias nos mercados onde operavam. A diferenciação do perfil dos agentes atuantes na área, 269 introduzindo novos interesses, preferências e lógicas decisórias não havia sido antecipada pelos legisladores, e dificilmente o poderia ser, o que, evidentemente, se refletia no alcance ou abrangência das questões contempladas no esforço de codificação então realizado. É ilustrativo desse quadro o conflito surgido em torno da encampação, pelo governo do Rio Grande do Sul, da Companhia de Energia Elétrica Riograndense (Ceerg) - pertencente ao grupo Amforp -, motivado formalmente pela deterioração da qualidade do serviço prestado pela empresa80, e que acabou gerando um problema diplomático entre os governos brasileiro e americano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). Um primeiro movimento no sentido da adequação dos mecanismos de gestão e controle dos serviços de eletricidade à estatização em curso no setor vai ser dado ainda ao final do Governo Kubitschek, com a estruturação do Ministério das Minas e Energia. Criado pela Lei nº. 3.782, de julho de 1960, o novo ministério passa a responder pelas intervenções do poder central nas áreas de energia e mineração, até então sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, assumindo o controle administrativo dos diversos organismos, empresas e instituições federais relacionados às atividades elétricas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A despeito de sua instalação ter se dado apenas no ano seguinte, mesmo assim com uma precária estrutura técnico-operacional (Richer, 1995, depoimento), trata-se de iniciativa que se reveste de significado especial à medida que assinala a internalização no aparato estatal da preocupação com o gerenciamento mais coordenado e eficiente das ações governamentais relativas no sistema, espelhando a sobreposição do Estado empresário ao Estado regulador. 80 A concessão da Ceerg expirou inicialmente em 1948, sendo renovada por mais dez anos, a despeito dos problemas apresentados no tocante à qualidade dos serviços prestados pela empresa. Em 1957, vencido o novo prazo de concessão, uma comissão “nomeada pelo governo gaúcho declarou que, em caso de encampação, a Ceerg nada teria a receber como indenização, mas a restituir” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 112). Baseado nesse parecer, o governo do estado, tendo à frente Leonel Brizola, decidiu encampá-la, o que se deu em 1959, “pelo preço simbólico de um cruzeiro” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 112). Ato contínuo, a responsabilidade por sua administração foi transferida para a CEEE, concessionária estadual. 270 Esse processo tende a favorecer também a viabilização da proposta de implantação da Eletrobrás, que aguardava, há anos, a apreciação do Legislativo. De potencial indutora da estatização das atividades elétricas, quando de sua idealização e proposição em meados dos anos cinquenta pela administração varguista, a criação da empresa passara a expressar, no início dos anos sessenta, uma espécie de desdobramento natural do avanço do intervencionismo estatal no setor. Além disso, e também importante, as transformações ocorridas no desenvolvimento da atividade acabaram levando a um realinhamento geral na conduta estratégica dos principais interesses direta ou indiretamente afetos à questão, convergente com a diluição dos constrangimentos políticos que vinham bloqueando a aprovação do projeto no Congresso. Sob a ótica das grandes concessionárias privadas, a consolidação da liderança estatal nas atividades do sistema se impunha como um fato concreto e irreversível, tornando relativamente inócuos posicionamentos contrários à mesma. Já as mudanças das posturas refratárias que vinham sendo adotadas tanto por parte do BNDE quanto das empresas estaduais têm a ver principalmente com a erosão dos mecanismos de financiamento dos projetos do setor. Com a gradativa exaustão dos recursos do FFE, de um lado, e o refluxo na concessão de empréstimos externos ao país, de outro, o BNDE passa a se defrontar com crescentes dificuldades para exercer a coordenação da implementação dos investimentos na expansão do sistema, o que tende a influenciar suas preferências e decisões relativas à área. À medida que se faz necessário gerar ou mobilizar outras fontes de financiamento para os empreendimentos setoriais, o papel de “banco da eletricidade” deixa de ser vantajoso para o órgão, esvaziando os motivos que tinham estimulado sua oposição à criação da Eletrobrás (Rangel, 1988, depoimento). Da mesma forma, o esgarçamento das bases de financiamento do sistema induz mudanças similares na postura das concessionárias estaduais, como a Cemig, que passam a percebê-la como um potencial aliado na negociação de recursos para o setor junto às instâncias decisórias do governo federal. 271 Refletindo a diluição dos obstáculos que vinham dificultando sua viabilização, a criação da Eletrobrás será aprovada através da Lei nº. 3.890, de abril de 1961 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). Nos termos legais, caberia à empresa a “realização de estudos, projetos, construção e operação de usinas produtoras, linhas de transmissão e distribuição de energia” (Lei nº. 3.890). Além de assumir o gerenciamento dos recursos federais canalizados para investimentos no setor – função que vinha sendo cumprida circunstancialmente pelo BNDE – a nova estatal responderia pelo planejamento e coordenação da expansão do sistema, bem como pelo controle das concessionárias de propriedade da União, constituídas e a constituir. Dos dispositivos do projeto original, apenas aqueles que previam sua inserção nas atividades de produção de material elétrico pesado não foram aprovados, tendo sido objeto de veto por parte da Presidência da República, então ocupada por Jânio Quadros (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Essa redução da amplitude do campo de atuação da empresa guarda relação com aspectos objetivos do contexto sob o qual se dá sua criação. De fato, durante o período em que o projeto da Eletrobrás tramitava no Congresso, a indústria de material elétrico pesado experimentou um rápido surto de crescimento no país. Estimuladas pelas oportunidades de negócio advindas do impulso aos investimentos no sistema durante o Governo Kubitschek, diversas indústrias produtoras de máquinas, equipamentos e instalações para as atividades de geração, transmissão e distribuição de energia - como a Brown Boveri, Siemens, AEG, General Electric, Westinghouse, ASEA, Hitachi e Toshiba, entre outras (Rosa et al., 1988) -, implantaram-se ou expandiram suas instalações em território nacional. Além de estreitar o espaço potencialmente aberto à atuação da Eletrobrás na área, o avanço da iniciativa privada solidificou interesses contrários à concorrência estatal. A ingerência política de tais empresas, que se articulavam num pesado esquema de lobby capitaneado pelo já citado Sindicato das Indústrias de Energia Elétrica de São Paulo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), é um fator importante na explicação do 272 veto do governo federal, acima mencionado, aos dispositivos relativos à matéria constantes do texto legal que autorizou a constituição da estatal federal81. A aprovação da proposta de criação da Eletrobrás pelo Congresso, contudo, não teve desdobramentos imediatos no tocante à sua efetiva implantação. De um lado, era necessário “atualizar” o arranjo organizacional e administrativo original da empresa, de forma a adequá-lo às mudanças que haviam se processado na materialidade das relações produtivas do setor ao longo do período em que o projeto tramitara no Legislativo. De outro, a fluidez ou instabilidade do ambiente político-institucional que caracteriza os anos iniciais da década de sessenta (Ianni, 1977; Alves, 1984; Skidmore, 1998; Nogueira, 1998) dificultava a materialização operacional das decisões governamentais, exigindo um esforço de acomodação de múltiplos interesses intra e extra-setoriais afetos à questão82. Nessas circunstâncias, sua instalação formal somente ocorre em junho de 1962, com a promulgação do Decreto nº. 1.178, regulamentando sua estrutura organizacional e dinâmica de funcionamento (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). Em simultâneo às iniciativas no campo institucional, outra questão que mobiliza a atenção do poder público no início dos anos sessenta é reconfiguração das bases financeiras do setor, tanto em caráter emergencial, dada a necessidade de provisionar recursos para a continuidade e conclusão de obras em andamento, entre as quais a usina de Furnas, quanto numa perspectiva de médio e longo prazo, dada a hegemonia conquistada pelas empresas estatais na 81 A força do lobby empresarial dentro do Governo Jânio Quadros, cujo ministro da Indústria e Comércio, Bernades Filho, era membro do conselho de administração de uma das grandes empresas do setor (Leite, 1988, depoimento), levou o então deputado Barbosa Lima Sobrinho a entrar com um requerimento no Congresso solicitando informações da Presidência da República sobre as razões que motivaram os vetos a dispositivos do projeto aprovado pelo Legislativo (Lima Sobrinho,1987; depoimento). 82 A elaboração do estatuto da Eletrobrás envolveu ampla discussão com os atores relevantes na definição dos rumos do setor, especialmente os governos dos estados da região Centro-Sul, órgãos e empresas públicas atuantes na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Essa estratégia de buscar sustentabilidade para as decisões governamentais através da negociação política culminou na publicação do anteprojeto de estruturação da empresa no Diário Oficial, para consulta e manifestação das partes interessadas (Richer,1995, depoimento). 273 expansão do sistema. O fechamento do mercado financeiro internacional à concessão de novos empréstimos ao país (Ianni, 1977; Baer, 1996) e a crescente deterioração das contas públicas herdada do Governo Kubitschek deixavam, como principal alternativa para o enfrentamento do problema, a revitalização das fontes de financiamento vinculadas à própria atividade, erodidas pelo acirramento do fenômeno inflacionário. É em torno dessa vertente que tende a se concentrar o esforço governamental de alavancar recursos para dar suporte aos investimentos setoriais (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Richer, 1995, depoimento). A primeira opção tecnicamente viável com vistas à recuperação da capacidade de financiamento do sistema consistia na atualização dos preços cobrados na prestação dos serviços de eletricidade, o que, de acordo com as regras estabelecidas no Código, passava pela correção do valor monetário do patrimônio remunerável das empresas. No entanto, embora autorizada pela Lei nº. 3.470, de novembro de 1958, sua adoção dependia de regulamentação dos dispositivos legais pertinentes, cuja implementação vinha esbarrando na resistência sistemática de uma atuante bancada nacionalista, contrária à matéria pelo fato de a mesma ter, entre os principais beneficiários, Light e Amforp (Cotrim, 1995, depoimento; Richer, 1995, depoimento). Sem acordo político sobre a questão, ficava inviabilizada qualquer tentativa de promover uma revisão mais abrangente dos níveis tarifários, deixando como alternativa factível basicamente o revigoramento das fontes de receita fiscal que alimentavam o FFE. Vale dizer, o reforço da base financeira do sistema estava condicionada, na prática, à negociação de medidas capazes de ampliar a arrecadação de recursos tributários vinculados a aplicações no setor, onde a perspectiva de mobilizar apoio político revelava-se mais favorável. Assim, a estratégia que será adotada pelo governo consiste em explorar ao máximo as potencialidades dessa “solução”. Isto irá se materializar na proposição de duas medidas principais: a mudança na sistemática de arrecadação do IUEE e a instituição de um empréstimo compulsório para a área de energia. 274 A alteração que será proposta na sistemática de cobrança do IUEE buscava, acima de tudo, a neutralização dos efeitos deletérios de uma inflação ascendente e sem perspectivas imediatas de controle sobre o valor real da receita arrecadada com o tributo, com sua transformação de imposto nominal em ad valorem. De um valor fixo por unidade de consumo, o imposto assume a configuração de um percentual incidente sobre o preço do serviço cobrado ao consumidor, tendo como base de cálculo uma média das tarifas de energia em âmbito nacional, denominada de tarifa fiscal (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Por se tratar de medida meramente adaptativa a um ambiente econômico inflacionário, isto é, que apenas recuperava e procurava resguardar a efetividade da mecânica tributária, sua implantação não encontrará maiores dificuldades quando da apreciação pelo Congresso, sendo aprovada através da Lei nº. 4.156, de novembro de 1962 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O mesmo não se pode dizer em relação à proposta de instituição do empréstimo compulsório. O projeto formulado pelo governo consistia na cobrança de um adicional sobre o valor cobrado pela prestação do serviço, que seria transformado em obrigações da Eletrobrás, com prazo de resgate de 10 anos e rendimentos anuais de 12% ao ano. Os recursos arrecadados ficariam sob a responsabilidade da empresa, destinando-se exclusivamente a investimentos na expansão do sistema (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A cobrança de um novo tributo, ainda que transitório e restituível, implicava obviamente custos adicionais para os consumidores de energia, vindo a provocar manifestações contrárias de amplos segmentos da sociedade, em especial de representações empresariais, com ressonância no Congresso (Richer, 1995, depoimento). Os riscos do aprofundamento da situação de estrangulamento de energia já vivenciada pelo país à época (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) não foram suficientes, por si só, para gerar um ambiente mais receptivo à iniciativa governamental. 275 Sob a fachada de empréstimo compulsório, a proposta do governo traduzia, na prática, um confisco de recursos incidente sobre os usuários do sistema, podendo ser entendida como um aumento indireto ou “disfarçado” de tarifa. De fato, num cenário onde a inflação média anual situava-se em patamar muito superior à taxa fixada para a remuneração do empréstimo – como ilustração, a taxa inflacionária brasileira atingiu 51% em 1961 (Ianni, 1977) -, a restituição projetada tenderia a ficar muito abaixo do valor efetivo da contribuição, num claro mecanismo de transferência de renda dos consumidores para as empresas concessionárias. A percepção da indisposição social em colaborar com a iniciativa do poder público, que se manifestava sobretudo nos grandes centros urbanos (Richer, 1995, depoimento), irá levar a um esforço de comunicação e negociação por parte da administração federal com vistas à aprovação do projeto no Congresso. Conforme Richer, “foi necessário promover campanhas publicitárias para dizer que os recursos arrecadados seriam utilizados para fins de interesse público, (...) muita coisa teve de ser dita para que as pessoas percebessem que a única alternativa era o empréstimo compulsório” (1995: 102, depoimento). Sem mecanismos institucionais capazes de facilitar a obtenção do necessário suporte político às suas decisões, o governo recorre a estratégias de convencimento para aumentar suas perspectivas de êxito. Embora tivessem consequências similares sob a ótica do consumidor, aumento de tarifa e empréstimo compulsório se diferenciavam quanto à forma de apropriação e aplicação dos recursos. Enquanto a receita decorrente do primeiro seria apropriada pelas empresas distribuidoras de energia, consoante suas participações na estrutura de distribuição de energia, o que favorecia principalmente empresas como Light e Amforp83, os recursos oriundos do segundo seriam centralizados na Eletrobrás, ficando, portanto, sob controle do setor público. Em outras palavras, o empréstimo compulsório cumpria o mesmo papel que a revisão tarifária no tocante à alavancagem de recursos para o setor, 83 A despeito da acentuada redução da participação no lançamento de novos projetos de geração, as grandes concessionárias de capital externo mantinham o controle sobre os principais mercados consumidores do país. 276 sem contudo beneficiar as grandes concessionárias de capital externo – aspecto que terá papel decisivo no êxito das negociações com e no Congresso. Ao “excluir” do rol dos potenciais beneficiários as empresas estrangeiras, a proposta consegue cooptar apoio junto à bancada nacionalista, sem a qual dificilmente teria alcançado sucesso em sua viabilização política (Richer, 1995, depoimento; Cotrim, 1995, depoimento). Instituído pela mesma legislação que reformulava a mecânica da cobrança do IUEE , o empréstimo compulsório teria um prazo de vigência de cinco anos – posteriormente prorrogado -, sendo cobrado a uma taxa de 15% sobre o valor da conta do consumidor no primeiro ano e de 20% no período subsequente (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No entanto, embora sua aplicação fosse deixada a cargo da Eletrobrás, enquanto agência responsável pela definição das prioridades de investimento no sistema, o Congresso interferiu no processo, impondo limites à autonomia decisória da empresa. Num resultado que espelha a forte interveniência de interesses regionais na negociação da matéria, ficou estabelecido, no texto legal, que 60% da arrecadação seria canalizada para projetos das empresas estaduais (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Os efeitos práticos dessa vinculação, contudo, acabaram sendo contrabalançados, ainda que de forma parcial , por dispositivo da mesma legislação, que transferia para a Eletrobrás o controle sobre a totalidade dos recursos orçamentários da União programados para o setor. Com isto, qualquer recurso de origem orçamentária que viesse a ser repassado para as empresas estaduais, onde se incluía a arrecadação do imposto compulsório, convertia-se automaticamente em participação acionária da Eletrobrás em tais empresas (Richer, 1995, depoimento), perdendo, portanto, o caráter de transferência unilateral que apresentava até então. Embora não bloqueasse o acesso aos recursos por parte das concessionárias estaduais, tal medida atuava como fator de desestímulo à sua utilização, já que implicava o 277 “custo” de ter a União como sócia, o que nem sempre era de interesse dos respectivos governos84. Em paralelo às iniciativas implementadas pelo governo federal com o intuito de reforçar sua capacidade de intervenção na área, vinha ganhando corpo um processo dinâmico e descentralizado de reconfiguração do sistema. Tais mudanças refletiam o esforço das empresas energéticas no sentido da adequação de suas estratégias e planos de ação à crescente complexidade de uma atividade caracterizada pela redefinição de regras de funcionamento e de estruturas de mercado. Ao final da década de cinquenta, a consolidação da presença de empresas energéticas federais – representadas por Furnas e Chesf e a multiplicação de concessionárias estaduais haviam não apenas introduzido novos e diferenciados interesses no setor, mas provocado o adensamento e o início da interpenetração de suas atividades, potencializando tanto conflitos associados ao controle sobre aproveitamentos hidráulicos85, quanto oportunidades para a articulação de novos arranjos produtivos. O avanço nessa direção será estimulado pela interação de uma série de fatores econômicos, sociais e institucionais – direta ou indiretamente associados à dinâmica do setor -, que acabavam se refletindo sobre o desenvolvimento da atividade. Do lado da oferta, o relativo esgotamento dos potenciais favoráveis ao aproveitamento produtivo, próximos aos principais centros de consumo, implicava tendência à progressiva elevação do montante de recursos orçados para os projetos de geração e transmissão de energia, com efeitos conexos sobre os custos de prestação dos serviços. Do lado da demanda, a acelerada expansão do consumo de eletricidade, provocada pelos movimentos de urbanização e industrialização, se traduzia em pressão sobre a capacidade de atendimento. Numa circunstância em que se defrontavam com dificuldades na 84 Richer cita, como ilustração, a posição do governo de Minas Gerais, refratário a que Eletrobrás viesse a ter participação capaz de lhe assegurar direito de voto nos processos decisórios da Cemig (1995, depoimento). 85 São emblemáticas da situação as disputas em torno da construção da usina de Peixoto – aproveitamento localizado na bacia do rio Grande, em território mineiro, envolvendo Cemig e Furnas (Richer, 1995, depoimento; Bhering, 1988, depoimento). 278 obtenção de financiamentos extra-setoriais, além de não disporem de flexibilidade decisória na fixação de tarifas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996), o sistema via-se tensionado a aumentar sua eficiência operacional, o que apontava para a racionalização de seus investimentos produtivos, em prol da apropriação de ganhos de escopo e de escala. Dos caminhos passíveis de serem adotados, aqueles com maior perspectiva de êxito conjugavam iniciativas em duas vertentes principais. A primeira consistia no progressivo alargamento da interligação operacional do sistema, ampliando as oportunidades para ganhos de eficiência no atendimento à demanda e na realização de novos investimentos na expansão do parque energético. A segunda remetia ao aprimoramento da sistemática de planejamento das atividades do setor, instrumentalizando a viabilização de melhorias na alocação de recursos e na prestação do serviço. São movimentos que começam a ser ensaiados a partir da região Sudeste, onde se concentravam os maiores mercados e as principais empresas energéticas do país. 1.2 O avanço descentralizado no sentido da interligação operacional dos serviços de eletricidade O passo inicial no sentido da racionalização dos investimentos em geração e transmissão de energia, sob uma concepção integrada ou sistêmica, será dado por Furnas. Antecipando-se à Eletrobrás, que ainda não havia sido constituída, a empresa toma a iniciativa, ao final dos anos cinquenta, de articular a elaboração de um estudo relativo ao suprimento energético da região Sudeste, entrando em entendimentos com as principais concessionárias atuantes na área, o que inclui, além de Light e Amforp, a Cemig, Uselpa, Celusa e Cherp, estas três últimas pertencentes ao governo paulista (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tal protagonismo não é aleatório, mas fruto das circunstâncias de sua inserção no sistema. Ao contrário das concessionárias estaduais e privadas, as atividades da empresa não se vinculavam a um espaço formalmente demarcado, o que se refletia nos cursos de ação potencialmente abertos à 279 mesma. De um lado, suas oportunidades de investimento não ficavam circunscritas a um mercado previamente definido; de outro, suas decisões se defrontavam com os constrangimentos advindos das interfaces com os planos de ação das concessionárias estabelecidas na região. Não se pode esquecer que a própria constituição da empresa exigira prévio entendimento da União com os governos dos estados de Minas Gerais e São Paulo, bem como com a Light e Amforp. Ganham saliência aqui questões afetas ao adequado aparelhamento burocrático do Estado no tocante a imprimir direcionamentos objetivos aos processos organizacionais e produtivos da sociedade. A efetividade das ações conduzidas pelo poder público depende, entre outros fatores, de sua capacidade de coordenação, concretizada em burocracias formalmente constituídas e tecnicamente preparadas para atuar como força integradora e administrar os conflitos de interesses suscitados pelo processo de alocação de recursos e pela distribuição dos resultados dele derivados. Na ausência de um aparato com legitimidade para desempenhar a função – papel a ser cumprido pela Eletrobrás -, a iniciativa da empresa visava a criação de um meio associativo mais favorável à negociação de arranjos ou acordos para lidar com a interdependência decisória, subjacente ao desenvolvimento de suas atividades, e que apresentava, ademais, efeitos externos positivos, à medida que convergente com o aumento da eficiência do desempenho produtivo do setor. O planejamento integrado da expansão do sistema, que teve um primeiro ensaio na iniciativa de Furnas, irá ganhar outro importante impulso, de natureza não intencional ou pretendida, a partir de decisão da Cemig de realizar um levantamento sistemático do potencial hidráulico de Minas Gerais, com vistas a subsidiar a elaboração de sua programação de investimentos. Com a implantação de Três Marias e participando da construção de Furnas, a empresa passara a desfrutar de condição singular dentro do setor elétrico brasileiro. No quadro de escassez energética que caracterizava o país na primeira metade dos anos sessenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), a capacidade de atendimento da estatal mineira superava em muito a demanda efetiva e 280 potencial de seu mercado de consumo. Sem a pressão de construir novos empreendimentos de geração no curto a médio prazo, a empresa pôde dedicar atenção à melhoria da base de informações disponíveis sobre o potencial hidráulico de sua área de atuação. Além de potencializar ganhos de eficiência sob a ótica da alocação de recursos, a realização do trabalho revelava-se estratégica para a empresa, à medida que reforçava sua posição na disputa pelo controle das atividades de geração no âmbito do estado, onde se defrontava com a concorrência de Furnas, sobretudo na bacia do rio Grande, e da Chesf, na bacia do São Francisco. O inventário do potencial energético de bacias hidrográficas, na dimensão e complexidade pretendidas pela Cemig, era até então inédito no país (Bhering, 1987, depoimento) -, induzindo a empresa a recorrer à contratação de consultoria especializada. Além de não dispor de capacidade técnica compatível com os requisitos do trabalho, tal opção via-se circunstancialmente favorecida pela existência de um fundo especial da Organização das Nações Unidas, contemplando financiamentos para a realização de estudos dessa natureza (Cotrim, 1987, depoimento), que atrai o interesse da empresa. Por exigência da fonte financiadora, o processo converge para a realização de licitação internacional (Campolina, 1981), cujo vencedor será o consórcio Canambra Engineering Consultants Limited, formado por uma associação de empresas canadenses e americanas. A assinatura do contrato entre a estatal mineira e o consórcio, ocorrida em setembro de 1962, irá representar um marco na trajetória evolutiva do setor, dando o passo decisivo na transição rumo a um novo modelo de gestão, baseado no planejamento de longo prazo da expansão do sistema sob a ótica da otimização do aproveitamento dos recursos energéticos das principais bacias hidrográficas do país. De fato, pouco depois, por sugestão do BIRD (Campolina, 1981; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Cotrim, 1995, depoimento), que intermediara a negociação do financiamento para a Cemig, o estudo contratado junto à Canambra será estendido para os demais estados da região Centro-Sul. 281 Isto se fez através da assinatura de um novo contrato de prestação de serviços de consultoria, datado de junho de 1963 (Campolina, 1981), envolvendo o consórcio e a União, representada formalmente por Furnas, que atuava em nome e por delegação da Eletrobrás, ainda em fase de organização (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Além do aporte metodológico e da estruturação de uma ampla base de conhecimento e informação sobre o potencial hidráulico e as alternativas de aproveitamento hidrelétrico da região com maiores “exigências” de investimento em geração, os trabalhos desenvolvidos pela Canambra trazem, como subproduto, a capacitação de mão-de-obra na área de engenharia de barragens e de projetos de geração de eletricidade. Ao recrutar um grande número de profissionais brasileiros, o consórcio estimula e favorece a formação de um corpo de especialistas que irá desempenhar um papel importante ao longo dos anos sessenta e setenta, mais especificamente o de dar suporte às atividades de planejamento setorial intensificadas no período (Bhering, 1987, depoimento; Cotrim, 1995, depoimento). Decisões tomadas num determinado momento refletem-se sobre a conformação das relações que se processam num dado campo de atividades, influenciando novas decisões, nem sempre antecipadas ou pretendidas, e que tanto podem ser contraditórias quanto convergentes com os resultados das mesmas. A realização do estudo desencadeia efeitos dessa natureza, que se cristalizam na criação do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região Centro-Sul, integrado por representantes do Ministério das Minas e Energia, de Furnas e das empresas energéticas dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Instituído pelo governo federal com o propósito de supervisionar e acompanhar os trabalhos da Canambra, o comitê configura o embrião de uma nova lógica de funcionamento dos serviços de eletricidade, modelada em função da interligação operacional do sistema. Numa dinâmica típica daquilo que a literatura neoinstitucionalista designa como “desenvolvimento institucional” ( Powell, 1991; Jepperson, 1991), o processo vai ser aprimorado e adquirir contornos mais 282 consistentes no âmbito do conjunto abrangente de reformas implementadas após o golpe militar de 64. 2. Rumo à autarquização das atividades setoriais: as reformas financeiras e institucionais do período 1964/67 A conformação de um quadro de crescente instabilidade econômica, social e política que se segue à renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, ocorrida em 1961, potencializa uma crise de governabilidade que irá desembocar na ruptura da ordem democrática, com a instauração do regime autoritário-militar de 1964 (Alves, 1984; Nogueira, 1998). A nova estrutura de poder significa, por sua própria natureza, o fortalecimento político do Estado frente à sociedade civil e, especificamente, a hegemonia do Executivo sobre o Legislativo. Vale dizer, sua implantação supunha a adaptação da ordem política aos requisitos de um regime que derivava sua autoridade do “exercício de facto do poder” (Alves, 1984: 54) e não da legitimidade de um mandato eleitoral, tendo, como implicação mais geral, a imposição de restrições às possibilidades de organização e manifestação de forças contrárias ao desenvolvimento da atividade governativa. O golpe militar de 64, portanto, não se prende apenas a mudanças no arcabouço político-institucional, mas nas relações entre o poder político e as esferas econômica e social da vida nacional. Investindo-se de poder constituinte, o governo instaurado pelo regime militar irá promover profundas alterações nas regras do jogo político decorrentes da redemocratização do pós-guerra, cristalizadas na Constituição de 46. O sentido básico das mudanças na ordem legal, que se iniciam com a edição do Ato Institucional nº. 1, de abril de 1964, para se consolidarem através das Constituições de 67 e 69, é a recomposição, por via autoritária, das condições de governabilidade, com a neutralização dos principais constrangimentos políticoinstitucionais que haviam provocado, na leitura das forças que assumem o controle do Estado, a paralisia decisória e administrativa dos anos imediatamente anteriores ao golpe de 64 (Santos, 1987; Skidmore, 1988; Nogueira, 1988; Sallum 283 Júnior, 1995). Adquire saliência, nesse contexto, o esvaziamento do poder e das atribuições do Congresso (Alves, 1984; Oliveira, 1995; Ianni, 1977), voltado à diluição das dificuldades de lidar com o parlamento, recorrentes em sistemas presidencialistas (Sartori, 1996; Lima Júnior, 1997) e não negligenciáveis no Brasil à época. Com o cerceamento do Legislativo, o Executivo adquire autonomia para governar por decreto, concentrando poder suficiente para impor seus projetos e fazer prevalecer suas decisões relativas aos rumos da dinâmica econômica e social do país. Retomado sob o signo do binômio segurança e desenvolvimento (Alves, 1984), o esforço de industrialização da economia, que começa a ser empreendido nos anos trinta, irá moldar o conteúdo substantivo da agenda pública do novo regime (Ianni, 1977; Fiori, 1993; Sallum Júnior, 1995). A primeira componente do binômio expressa os propósitos de assegurar a estabilização do ambiente interno, fundamentado no poder coercitivo do Estado. Trata-se, mais especificamente, de criar condições favoráveis ao processo de acumulação capitalista, através da redução dos riscos e incertezas para a realização de investimentos produtivos, de crucial importância na retomada dos fluxos de capital externo para o país, que tinham despencado nos anos mais iniciais da década (Baer, 1996). A segunda componente representa o desdobramento finalístico da estabilização, isto é, a expansão e diversificação estrutural da base produtiva, alicerçada no aproveitamento eficaz do potencial de crescimento da economia brasileira (Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, 1967). Como objetivo-síntese da ação governamental, desenvolvimento passa a constituir, a partir de então, uma espécie de equivalente geral de interesse público, transformando-se, sob a roupagem de “progresso social”, na variável central da política pública86. 86 Isto se explicita, em particular, no âmbito do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), proposto para o período 1964/66. De acordo com a análise de Martone, o plano “representou um esforço no sentido de interpretar o processo (...) de desenvolvimento brasileiro e de formular uma política econômica capaz de eliminar as fontes internas que bloquearam o crescimento da economia” (1975: 71/72). 284 Da centralidade atribuída à gestão eficaz da economia enquanto instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional vão resultar implicações em duas direções principais: a reformulação do padrão decisório relativo ao desenho das políticas e programas de governo, e o reaparelhamento e modernização da administração pública federal. A primeira se expressa na primazia conferida à racionalidade técnica, com o planejamento se impondo progressivamente sobre a negociação política enquanto método decisório na definição das prioridades e metas da agenda pública, bem como das estratégias para sua consecução. A segunda tem a ver com a ampliação e aprimoramento dos mecanismos e instrumentos de intervenção estatal na economia, tanto em termos de capacidade de mobilização de recursos quanto de comando, de forma a assegurar maior efetividade e eficiência na implementação das decisões governamentais. Os dois processos se interpenetram e adquirem materialidade nas profundas reformas institucionais e econômicas promovidas ao longo do período 1964/67 (Ianni, 1977; Oliveira, 1995; Alves, 1984; Dulles, 1983). Do ponto de vista institucional, as mudanças orientaram-se no sentido da “centralização normativa, de comando e de recursos” (Dain, 1977: 164), resultando no reforço do poder e da capacidade de articulação e coordenação política do governo federal em detrimento das administrações estaduais e locais (Ianni, 1977; Oliveira, 1995). Isto se fez através de uma reforma administrativa que envolveu a multiplicação das agências governamentais de planejamento, fomento e promoção ao desenvolvimento econômico, dotadas de relativa flexibilidade operacional. Do ponto de vista econômico, buscou-se promover a recuperação das bases financeiras do Estado, ampliando seu potencial de intervenção através de reformas nas áreas fiscal, monetária e creditícia (Oliveira e Mazzuccheli, 1977; Martone, 1975; Ianni, 1977). Amplificam-se, em consequência, a esfera de influência e a capacidade de gasto do setor público, que irão fundamentar a retomada do ciclo expansivo da economia brasileira nos anos finais da década de sessenta trazendo, com elas, um aprofundamento, sem precedentes, da presença estatal no sistema produtivo (Fiori, 1992). 285 As reformas implementadas no período vão estimular, em particular, novos avanços nos processos de recomposição das bases financeiras e de reconfiguração dos arranjos organizacionais e produtivos do setor elétrico. Na primeira vertente, as ações governamentais se concentram no esforço de complementar, via revisão da política tarifária, a recuperação da capacidade de autofinanciamento das empresas energéticas, aprofundando iniciativas empreendidas nos anos anteriores. Na segunda, reafirmam e consolidam o papel da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da expansão do sistema, estabelecendo as linhas gerais do modelo de ordenamento e gestão das atividades elétricas que irá vigorar até os anos oitenta (Thibau, 1995, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No contexto da centralização político-institucional promovida pelo regime militar, o locus das decisões estratégicas relativas ao setor tende a se concentrar na esfera da administração federal. Os principais interesses constituídos do sistema – concessionárias estaduais, Light etc – bem como o Legislativo perdem, em larga medida, a capacidade de influenciarem os rumos do desenvolvimento da atividade, não por que querem, mas por não conseguirem mobilizar recursos políticos suficientemente sólidos para se credenciarem como interlocutores junto ao núcleo decisório do poder central. 2.1 O realinhamento tarifário e os impactos sobre as atividades do sistema Mudanças ocorridas no contexto institucional alteram as preferências, a correlação de forças e as estratégias de ação ao alcance dos diversos atores. A revisão da política de fixação das tarifas dos serviços de eletricidade, sistematicamente bloqueada pelo Legislativo nos anos cinquenta (Dias Leite, 1995, depoimento; Thibau, 1995, depoimento), será efetivada no âmbito do programa de estabilização macroeconômica posto em prática no período 1964/67 pelo Governo Castelo Branco. Empenhado na contenção do déficit público, que constituía, no diagnóstico oficial, um dos principais fatores de pressão inflacionária (Martone, 1975; Dain, 1986; Ianni, 1977), o Executivo federal adota uma estratégia de realinhamento das diversas tarifas públicas, numa iniciativa 286 designada como política de “realismo tarifário” (Thibau, 1995, depoimento). Através da medida, pretendia-se corrigir a compressão ou atraso na revisão dos preços dos principais serviços de utilidade pública, entre os quais os serviços de eletricidade, que afetara drasticamente a capacidade de autofinanciamento do já expressivo setor produtivo estatal, implicando forte dependência em relação à transferência de recursos orçamentários (Dain, 1986; Martone, 1975). Além de afinada com os propósitos da política de estabilização, aumentos reais no valor das tarifas asseguravam também maior autonomia financeira às empresas estatais, respondendo às diretrizes da reforma institucional que será empreendida em conexão com o programa de controle inflacionário (Martone, 1975; Ianni, 1977), e que estava voltada a conferir “maior agilidade, eficiência e flexibilidade à administração federal, de modo a atender às exigências de um novo ciclo de expansão econômica” (Nogueira, 1998: 101). Caracterizada pela preocupação em conciliar estabilização dos níveis de preço e retomada do desenvolvimento, a política econômica implementada no período irá convergir para uma estratégia gradualista ou progressiva de combate à inflação (Martone, 1975; Ianni, 1977; Baer, 1996), o que tende a se refletir nas mudanças que serão introduzidas nos dispositivos de fixação das tarifas públicas. Ajustando-se ao gradualismo projetado para o controle de preços, a promoção de revisões na sistemática tarifária tem que levar em consideração a persistência do fenômeno inflacionário, o que supunha não apenas corrigir os efeitos da inflação passada, mas neutralizar os efeitos da inflação futura. A solução encontrada para “conviver” com um ambiente inflacionário consiste na adoção do mecanismo da “correção monetária”, idealizado depoimento; Thibau, no Governo 1995, depoimento), mas Kubitschek (Cotrim, 1987, que não encontrara, na oportunidade, apoio político suficiente para sua viabilização no Congresso. Em outras palavras, o cerne da política de “realismo tarifário” consiste na correção monetária dos principais preços controlados pela administração pública, entre os quais a energia elétrica, tendo como referência a variação dos índices de inflação. 287 Instituída pela Lei nº. 4.357, de julho de 1964, a utilização do instrumento da correção monetária pelas concessionárias do setor elétrico, contudo, não será imediata. Ao contrário, sua aplicação esbarrava em determinados dispositivos do Código de Águas, exigindo adaptações nas regras tarifárias nele estabelecidas. Isto se fez através dos Decretos nos. 54.936 e 54.937, ambos de novembro de 1964, que regulamentaram aspectos ainda pendentes da legislação setorial, tornando possível a atualização, baseada na inflação, dos ativos imobilizados das empresas para efeitos de valoração do investimento a ser remunerado (Thibau, 1995, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A partir dessas mudanças, a concepção de tarifa pelo custo de prestação dos serviços, até então pouco atraente para as concessionárias do sistema, torna-se convergente com seus interesses, instrumentalizando ganhos consideráveis de receita. Assim, num desdobramento que expressa, com nitidez, a complexa relação que se estabelece entre ação e contexto, a sistemática de fixação de tarifa pelo custo do serviço, concebida nos anos trinta com o intuito de manter a remuneração dos serviços de eletricidade dentro de limites considerados “justos e razoáveis”, protegendo os consumidores contra práticas abusivas das empresas advindas de seu poder de monopólio, vai atender, nos anos sessenta, a propósitos de assegurar a estas mesmas empresas níveis de remuneração “justos e razoáveis”. Refletindo a significativa participação da remuneração do ativo imobilizado das empresas na composição dos custos da prestação dos serviços de eletricidade, de um lado, e a rápida erosão de valor causada pelo fenômeno inflacionário sobre preços que vinham sendo mantidos sob acompanhamento e controle do governo, de outro, as novas regras terão expressivo impacto na receita operacional do sistema. De imediato, determinaram um salto de cerca de 40% no valor médio da tarifa praticada em 1965, comparativamente à de 1964, que, por sua vez, já incorporava uma elevação próxima de 10% em relação à do ano anterior (Quadro 6). Nos anos seguintes, a correção monetária irá possibilitar não apenas a neutralização dos efeitos deletérios de uma inflação que, embora 288 em queda, ainda se mantinha em patamar elevado, mas a continuidade do processo de recuperação do valor real dos níveis de preços cobrados ao consumidor (Quadro 6). Quadro 6 Evolução das Tarifas de Energia Elétrica, em Anos Selecionados Período: 1963/70 Ano Tarifa Média Tarifa Fiscal 1963 90,67 103,46 1964 100,00 100,00 1965 139,88 164,57 1966 143,63 197,15 1967 155,94 234,80 1968 138,42 222,20 1969 149,69 232,85 1970 165,82 256,12 Fonte: dados básicos: Eletrobrás, Informe tarifário; extraído de Lima, J. L. Política de governo e desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos oitenta (1934-1984). Rio de Janeiro: Memória da Eletricidade, 1995: 102). Observação: 1964 = 100,00 Além dos ganhos em termos da remuneração das concessionárias, as mudanças na sistemática tarifária tiveram também impactos expressivos na receita tributária vinculada ao setor. Acompanhando a evolução da tarifa efetiva, a tarifa fiscal - adotada como base do cálculo do IUEE e do empréstimo compulsório - sofre uma elevação real de mais de 60% entre 1964 e 65, mantendo trajetória ascendente, ainda que descontínua, nos anos subsequentes (Quadro 6). Apesar de tais ganhos terem sido atenuados pela redução das alíquotas do IUEE e do empréstimo compulsório sobre o consumo de energia – 289 medida adotada em 1966, no âmbito do programa de estabilização87 do governo, os recursos de origem fiscal atrelados a investimentos no sistema sofreram considerável aumento entre 1964 e 1966, quase que triplicando no período (Quadro 6). No entanto, a despeito de sua inegável importância como instrumento de recuperação da capacidade de autofinanciamento do setor, a adoção do denominado realismo tarifário vai se revelar insuficiente, por si só, para atender aos requisitos de capital exigidos na expansão do sistema. Tendo em vista as características técnico-econômicas assumidas pelos investimentos na área, que avançavam na direção de projetos com escalas produtivas significativamente maiores e, portanto, cada vez mais exigentes de capital e com prazos mais longos de maturação (Rosa et al, 1998; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), as empresas energéticas dificilmente poderiam prescindir do aporte de recursos extra-setoriais na ampliação e modernização de sua capacidade de atendimento. Além de estrutural, essa dependência financeira vinha se acentuando progressivamente ao longo do tempo, refletindo não apenas tendência à elevação dos custos unitários de geração e transmissão de energia, mas o acelerado ritmo de crescimento da demanda. A conjunção desses fatores apontava na direção da intensificação do processo de interligação operacional do sistema, que se configurava, sob a ótica da racionalidade técnica, como uma espécie de caminho natural para o desenvolvimento do setor. De um lado, instrumentalizava o rebaixamento dos custos globais incorridos na expansão da infra-estrutura energética, atenuando a pressão sobre o aporte de recursos públicos para investimentos na área. De outro, potencializava ganhos de eficiência na prestação dos serviços, com impactos positivos sobre as tarifas de energia, num resultado convergente com a política de estabilização macroeconômica e a própria retomada do crescimento econômico. São circunstâncias que estimulam o governo federal a aprofundar o 87 Trata-se do programa de estabilização instituído pela Lei nº. 5.073, de 19 de agosto de 1966, por iniciativa do Executivo federal (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 290 movimento de interligação operacional do sistema, que avançava progressivamente pela região Sudeste. 2.2 O avanço no sentido da interligação do sistema e a consolidação da Eletrobrás A apropriação eficaz das oportunidades de ganhos de escala, enquanto estratégia de racionalização dos investimentos do setor, supunha a adoção de uma concepção integrada para os projetos de geração e transmissão de energia, na linha dos trabalhos desenvolvidos pela Canambra, anteriormente comentados. A viabilização do processo passava inevitavelmente pela interconexão operacional das atividades das empresas energéticas, o que se defrontava com dificuldades advindas da compartimentação das estruturas produtivas decorrente da segmentação das áreas de mercado forjada pelos contratos de concessão. Decisões tomadas num determinado momento têm efeitos externos que potencializam não apenas oportunidades mas constrangimentos para decisões que serão tomadas no futuro, numa relação de causação nem sempre antecipada ou pretendida. Ganha saliência, nesse contexto, a percepção do relativo esgotamento do modelo institucional vigente, introduzido quando da emergência da prestação dos serviços de eletricidade e referendados posteriormente pelo Código de Águas, o que atua no sentido de conferir centralidade, na política setorial do governo, à necessidade da promoção de ajustes nos arranjos organizacionais e no padrão de gestão do sistema. A intenção governamental de estimular a interconexão dos serviços de eletricidade pode ser percebida na adoção de medidas voltadas à unificação da frequência elétrica no país - até os anos sessenta, cerca de dois terços do sistema operava com 60 ciclos e o restante com 50 ciclos (Thibau, 1995, depoimento). Em estudo desde o início da década pelo CNAEE, que havia inclusive constituído uma comissão especial para tratar do assunto (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), a unificação será instituída por força da Lei nº. 4.454, de novembro 1964, estabelecendo a frequência de 60 ciclos como 291 norma em todo o território nacional (Lima, 1995, Thibau, 1995, depoimento). Tal iniciativa vai ao encontro de uma nova lógica de funcionamento da atividade, fundada na sobreposição de uma racionalidade sistêmica, introjetada na política pública, aos interesses, preferências e ações das empresas atuantes na área. Novamente aqui, a adoção da medida é favorecida pela vigência de um contexto político autoritário, que permite ao governo federal impor às concessionárias o ônus da conversão de frequência, em prol da ampliação das possibilidades de acordos e arranjos operacionais do setor e dos consequentes ganhos de eficiência deles advindos. Se a interconexão operacional sinalizada pela padronização de frequência potencializava aumentos na eficiência alocativa do sistema, associados a ganhos de escala nas atividades de geração e transmissão, ampliava, em contrapartida, a margem de riscos e incertezas para as empresas setoriais, à medida que restringia a reserva de mercado assegurada pelos contratos de concessão apenas ao segmento de distribuição. Dito de outra forma, avanços nessa direção implicavam romper com o modelo organizacional construído em torno de arranjos produtivos fechados, onde cada empresa tinha atuação simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e distribuição. Isto significava uma mudança profunda em regras do jogo historicamente estabelecidas, o que, evidentemente, teria repercussões nos cálculos estratégicos, na forma de atuação e nos resultados passíveis de serem obtidos pelas diversas concessionárias. As decisões de cada empresa teriam de considerar, além dos próprios interesses e preferências, os interesses e preferências de outras empresas, o que supunha negociações e barganhas referentes a uma ampla gama de questões relacionadas ao intercâmbio de energia e ao controle sobre os aproveitamentos hidrelétricos. Sem mecanismos e instrumentos institucionais claramente definidos para dirimir conflitos e arbitrar a partilha dos benefícios e dos ônus advindos da operação interligada, os custos de transação subjacentes à interconexão do sistema não podiam ser negligenciados. 292 De fato, numa atividade caracterizada pela presença de empresas com perfis e lógicas decisórias bastante diferenciadas, a inexistência de um esquema formal de mediação e articulação de interesses acentuava em muito a complexidade de iniciativas com vistas ao alargamento do ensaio de integração operacional em curso no setor, refletindo-se tanto sobre sua implementação quanto sobre os resultados alcançados. Os acontecimentos que cercaram a construção da usina de Furnas, discutidos no capítulo anterior, ilustram bem a questão. Oportunidades para ganhos de escala e de escopo não faziam da operação interligada um processo automático ou de materialização não problemática, na linha de raciocínios funcionalistas, que trazem implícito o suposto da eficiência da história. Ao contrário do que se deduz da aplicação desse tipo de lógica argumentativa, eficiência sob a ótica agregada do sistema e eficiência sob a ótica das empresas não expressavam nem podiam ser entendidos como resultados aprioristicamente congruentes. As críticas feitas na literatura econômica e política à dinâmica alocativa do mercado mostram que a agregação das preferência dos atores não conduz necessariamente a resultados eficientes sob o prisma da coletividade. O Dilema do Prisioneiro, desenvolvido e aplicado no âmbito da teoria dos jogos, aponta em direção similar. O aumento da eficiência global na prestação dos serviços de eletricidade, enquanto objetivo da política pública, supunha a superação dos constrangimentos que a presença de interesses de cunho regional, cristalizados principalmente nas concessionárias estaduais, criava para a racionalização dos investimentos em geração e transmissão de energia, que requeria a adoção de uma perspectiva multiregional. O enfrentamento do problema deixava, a rigor, duas alternativas ou caminhos à consideração do governo, com combinações bastante diferenciadas de custos e benefícios. Um deles passava pela plena centralização das decisões de investimento, conjugado à implantação de um novo desenho organizacional, verticalmente integrado. O outro envolvia uma ação coordenada capaz de induzir a progressiva integração vertical e horizontal das atividades das empresas atuantes na área consoante o aproveitamento de 293 oportunidades para ganhos de escala e escopo, articulando-as em redes de âmbito macrorregional. O balanço das implicações associadas a cada alternativa levará à adoção da segunda, em detrimento da primeira. Conforme Thibau (1995, depoimento), o governo federal chegou a examinar a hipótese de promover a verticalização operacional do sistema, centralizando as atividades de geração e transmissão de energia elétrica na Eletrobrás, com a implantação de um arranjo organizacional similar ao modelo institucional prevalecente na França88. No entanto, embora proporcionasse evidentes ganhos no tocante ao gerenciamento dos processos produtivos do setor, sob a forma de redução da taxa de conflitos e das inconsistências operacionais do sistema, sua adoção implicava um esforço, concentrado no tempo, de estatização e, dentro dele, de federalização da atividade, exigindo compromissos financeiros que extrapolavam em muito a capacidade de mobilização de recursos da União. Na percepção governamental, as restrições de ordem financeira tornavam irrealista qualquer propósito de transferir, no curto a médio prazo, o controle da propriedade do sistema para a Eletrobrás. Corolário dessa avaliação, a opção ao alcance do Executivo federal era “sem dúvida, a soma de todos os esforços públicos e privados, federais, estaduais e municipais (...), sem os quais seria impossível mobilizar as elevadas somas necessárias à solução da problemática nacional de energia elétrica” (Thibau,1995, depoimento). Numa circunstância em que reconhecia como imprescindíveis os investimentos das empresas estaduais e privadas, a solução ou saída ao alcance do governo federal era o reforço de sua capacidade de comando na área, de forma a poder imprimir um direcionamento objetivo ao processo de integração do sistema e, ao mesmo tempo, assegurar uma administração eficiente para as operações interligadas. Se a diversidade de agentes era um dado, tornando o conflito inevitável, cabia procurar administrá-lo de forma eficiente, introduzindo uma força integradora capaz de ajustar a lógica dos interesses em jogo aos 88 A característica básica era a concentração dos serviços de eletricidade na estatal Eletricité de France (EDF) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Thibau, 1995, depoimento). 294 objetivos e metas traçados pela política setorial. Afinada com essa avaliação, a estratégia que será adotada se orienta para a consolidação de uma autoridade central com legitimidade e poder para articular o conjunto das empresas concessionárias em torno de interesses, propósitos e prioridades sistêmicos, apoiando-se na condensação e aprimoramento de arranjos e iniciativas anteriores, de diferentes matizes, que confluíam em tal direção. Os recursos que o governo têm condições de manipular influenciam suas decisões não apenas no tocante àquilo que irá fazer, mas também à forma como o fará. Promulgado em novembro de 1956, o Decreto nº. 57.927 confere materialidade à disposição do governo federal de fomentar a integração operacional do sistema, estabelecendo o arcabouço geral de um novo modelo institucional de gestão das atividades elétricas. De um lado, reafirma as atribuições e competências da Eletrobrás como agência responsável pelo planejamento e coordenação dos investimentos na área. De outro, define regras e critérios para a priorização, sob a perspectiva agregada do setor, dos projetos de geração e transmissão de energia. O reconhecimento de que a obtenção de resultados satisfatórios no tocante à racionalização e ao aumento da eficiência na alocação de recursos no setor, perseguidos pelo governo, dependia não apenas da qualidade técnica das decisões de investimento tomadas, mas da existência de condições sistêmicas compatíveis com sua implementação, irá conduzir, por sua vez, à adoção de uma estratégia gradualista no encaminhamento do processo de interligação operacional da atividade. Numa ponta, as oportunidades para ganhos de escala e de escopo se manifestavam de forma concentrada no espaço, em estreita conexão com o caráter também concentrado do desenvolvimento urbanoindustrial brasileiro. Na outra, a inexistência de estruturas pretéritas de intermediação de interesses capazes de estabelecer estratégias estáveis para as empresas concessionárias - visto que suas áreas de atuação, delimitadas por contratos de concessão, eram até então estanques – se refletia no esforço a ser 295 empreendido na direção da criação de capacidade governativa. A combinação desses dois fatores recomendava a opção por uma perspectiva incrementalista. Seguindo essa orientação, a transição para o novo modelo organizacional vai se iniciar pela região Sudeste, que não só concentrava o principal potencial para o aproveitamento de economias de escala e de escopo, como reunia condições operacionais que favoreciam o encaminhamento do processo. Primeiro, conjugava os maiores e mais dinâmicos mercados do país à presença de uma infra-estrutura de geração e transmissão relativamente densa em termos espaciais, sob responsabilidade de um conjunto de empresas com níveis de organização e capacidade operacional muito acima da média nacional. Segundo, estava coberta por uma ampla base de dados e análises referentes a demanda de energia, potencial hidráulico e alternativas de aproveitamento hidrelétrico - disponibilizados pelos trabalhos da Canambra, formalmente concluídos em 1966 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, assegurando suporte técnico para as atividades de planejamento e gestão do sistema (Lima, 1995; Thibau, 1995, depoimento; Cotrim, 1995, depoimento). Terceiro, já apresentava um ensaio de integração – os arranjos operacionais estabelecidos em torno da implantação da usina de Furnas, discutidos anteriormente -, facilitando as tarefas de coordenação e articulação das atividades das empresas. Nos termos do decreto promulgado pelo governo federal, caberia à Eletrobrás a coordenação geral da formulação do programa de investimento em geração e transmissão de energia elétrica na região, ao qual se subordinariam os planos de ação do conjunto das empresas concessionárias atuantes na área. Para assegurar o efetivo cumprimento dos objetivos e metas traçados para o sistema, foram estabelecidas normas para a concessão dos aproveitamentos hidrelétricos, condicionando os novos investimentos em geração ao atendimento de três requisitos básicos: inclusão do projeto entre as obras prioritárias da programação proposta para a região; existência de potencial de mercado compatível com a absorção da energia a ser gerada; e capacidade de mobilização 296 de recursos da concessionária à altura das exigências financeiras do empreendimento. O primeiro impunha uma padronização compulsória dos critérios decisórios das diversas empresas relativos a investimentos em geração e transmissão, forjando um alinhamento automático de suas ações nestes segmentos a uma racionalidade sistêmica. Os outros dois contingenciavam as decisões de investimento a critérios de oportunidade e competitividade econômica, atrelando a expansão dos respectivos parques geradores a um padrão de eficiência comum. Mudanças institucionais abrangentes tendem a ocasionar aquilo que a literatura neoinstitucionalista designa como “recomposição do campo organizacional” (Powell, 1991). Essa será a resultante das alterações nos procedimentos e critérios para a definição dos investimentos na expansão do sistema propostas pelo governo, que afetavam, em graus variados, os interesses e as lógicas decisórias das empresas energéticas estabelecidas na área. Sua introdução estimula um novo ciclo de diferenciação nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, onde tais empresas procuram ajustar suas ações às novas regras do jogo, consoante suas especificidades e condições objetivas de inserção na atividade. O processo converge para uma reestruturação no perfil e nas estratégias operacionais das principais concessionárias estaduais, tendo em vista a concorrência com as empresas federais nos segmentos de geração e transmissão de energia, de um lado, e para o aprofundamento da retração das concessionárias privadas, onde se destaca a aquisição das subsidiárias do grupo Amforp pela União, de outro. 2.3 A reacomodação do sistema às mudanças institucionais do setor e o avanço do movimento de estatização Sem maiores possibilidades de interferir nos rumos das mudanças institucionais do setor que, num ambiente autoritário, passam a ser conduzidas de forma centralizada pelo governo federal, não restava às concessionárias energéticas outra alternativa a não ser o ajuste de seus objetivos e condutas 297 estratégicas às inovações introduzidas na dinâmica de funcionamento da atividade. O avanço na direção da interligação operacional do sistema, ao mesmo tempo em que potencializava ganhos de eficiência através da racionalização dos processos produtivos setoriais, aumentava a margem de riscos e incertezas para as empresas, refletindo a crescente interdependência ou influência recíproca de suas escolhas e as interfaces na prestação do serviço. O aproveitamento de oportunidades para a melhoria do desempenho produtivo e a defesa frente a ameaças advindas da sobreposição, ainda que parcial, das áreas de atuação se conjugam para estimular a concentração da estrutura organizacional do setor, já que o porte da empresa ou, mais precisamente, sua capacidade de mobilizar recursos revelava-se crucial à obtenção de resultados satisfatórios no jogo competitivo aberto pela dinâmica da integração. Na ausência de uma demarcação mais rigorosa de papéis e responsabilidades para as empresas atuantes na área – o decreto governamental que institucionaliza a operação interligada e estabelece regras para seu funcionamento passa ao largo da questão – a dinâmica de integração das atividades do sistema trazia, para as concessionárias estaduais, mais ameaças que oportunidades, à medida que passavam a sofrer a concorrência direta das empresas federais tanto no tocante à ocupação de novos mercados quanto, e principalmente, no aproveitamento do potencial hidráulico de suas áreas de atuação. São circunstâncias que se refletem sobre a conduta estratégica de tais empresas, estimulando ações com vistas ao reforço ou consolidação de suas posições e vantagens competitivas dentro do sistema. O processo avança na direção da centralização administrativa e de comando das atividades desenvolvidas pelos governos estaduais no setor, que procuram aglutiná-las numa única empresa, promovendo a fusão ou incorporação de concessionárias regionais ou locais. Assim, repercutindo a definição dos novos procedimentos para a concessão de aproveitamentos hidrelétricos, que favoreciam empresas com maior capacidade de mobilização de recursos e estruturas mais amplas de mercado, a 298 atuação dos governos estaduais no campo das atividades elétricas passa por rápida e profunda transformação na região Sudeste. Em 1966, é constituída a Centrais Elétricas de São Paulo (CESP), através da fusão de cinco concessionárias regionais controladas pelo governo do estado - Uselpa, Celusa, Belsa, Cherp e Comepa - e a incorporação de outras seis empresas de âmbito microrregional ou local (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). No Rio de Janeiro, a Centrais Elétricas Fluminense S. A., que havia sido organizada pelo governo estadual nos moldes de uma empresa holding, encampa as várias subsidiárias sob seu controle, passando a responder diretamente pela prestação dos serviços (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Por sua vez, já consolidada como empresa de âmbito estadual, a Cemig vê-se compelida a dinamizar e diversificar sua estrutura de mercado, então fortemente dependente do consumo residencial e dos serviços urbanos (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). É com esse propósito que se engaja, junto com o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), num esforço de promoção da industrialização do estado, do qual resulta a criação do Instituto de Desenvolvimento Industrial (INDI) (Campolina, 1981), para atuar na atração de plantas industriais de médio a grande porte para o território mineiro, cujo êxito alavancaria a demanda de eletricidade junto à empresa. Por sua vez, o fortalecimento das concessionárias estaduais e a efetiva estruturação da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da expansão do sistema sinalizam a consolidação da hegemonia das empresas públicas nos serviços de eletricidade, imprimindo contornos mais nítidos ao esgotamento das oportunidades para a atuação do capital privado na área. O movimento de estatização vai entrar então num novo e decisivo estágio, onde a expansão das empresas públicas deixa de se fazer apenas à margem da esfera de atuação das empresas privadas, para se sobrepor à mesma. O retraimento dos investimentos das concessionárias privadas, que vinha sendo utilizado como estratégia defensiva contra o estreitamento da autonomia decisória e da margem de retorno na alocação de recursos no setor, tende a ser substituído por uma 299 opção mais radical, a saída do jogo. Este é o caminho seguido pelo grupo Amforp que, após cerca de cinquenta anos de operação, decide encerrar suas atividades no país. A saída da Amforp do setor elétrico brasileiro, como visto no capítulo anterior, começa a ser moldada no pós-guerra, quando o grupo passa a adotar uma política de contenção de seus investimentos produtivos, sobretudo em geração, tendo em vista o crescente intervencionismo estatal na área e, especialmente, a perda de autonomia na fixação das tarifas de energia. O resultado dessa conduta defensiva não poderia ser outro senão a progressiva deterioração da qualidade dos serviços prestados pela empresa (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), penalizando os consumidores cativos de suas áreas de mercado. Reagindo à situação, o governo do Rio Grande do Sul, sob o comando de Leonel Brizola, resolve encampar a Companhia de Energia Elétrica Riograndense (CEER) – uma das principais subsidiárias do grupo. A ruptura de contrato precipita o desfecho de um processo cujo ponto de chegada vinha se tornando cada vez mais previsível ao longo do tempo, isto é, o encerramento das atividades, com a venda de seu patrimônio imobilizado e de suas concessões para outras empresas interessadas no negócio. Numa circunstância em que os serviços de eletricidade haviam se tornado pouco atraentes para o capital, o caminho que se apresentava para a Amforp restringia-se basicamente à transferência do controle de suas diversas subsidiárias para o governo brasileiro. A instabilidade institucional e política do país na primeira metade dos anos sessenta, contudo, acabou retardando a materialização desse propósito, frustrando as tentativas de negociação empreendidas pela empresa junto à União (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Embora um acordo de indenização tenha sido fechado durante o Governo Goulart, o Executivo federal viu-se constrangido a suspendê-lo pouco depois (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), premido pela reação contrária do Congresso e de amplos segmentos organizados da sociedade brasileira (Thibau, 1995, depoimento). O encaminhamento da questão só chegará 300 a resultados conclusivos após a instauração do regime militar, quando são neutralizados os constrangimentos políticos que vinham dificultando a obtenção de um acerto satisfatório para as partes implicadas no processo (Thibau, 1995, depoimento). O ambiente autoritário permite ao governo federal negociar os termos da indenização a ser paga ao grupo, sem se defrontar com obstáculos de maior relevância. A despeito do aprofundamento do movimento de estatização do setor, a Light irá se manter na atividade por mais tempo que a Amforp, num resultado que reflete as circunstâncias mais favoráveis de sua inserção no sistema. Com o controle sobre os maiores e mais dinâmicos mercados consumidores do país, respaldado por contratos de concessão de longo prazo de vigência (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), a empresa se colocava em posição relativamente estratégica face à política de recuperação das tarifas elétricas posta em prática pelo governo federal após a instauração do regime militar. Essa vantagem competitiva, por sua vez, era reforçada pelo processo de integração operacional em curso, que possibilitava à empresa concentrar investimentos no segmento de distribuição, reconhecidamente o mais rentável da atividade (Cotrim, 1995, depoimento), substituindo a geração própria pela aquisição de energia produzida pelas estatais, em franca expansão. Tal estratégia será adotada até meados dos anos setenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), quando a introdução de novas mudanças nas regras tarifárias, comprometendo mais uma vez a rentabilidade da prestação do serviço, levará a Light a seguir os passos da Amforp, isto é, a negociar a transferência do controle acionário de suas subsidiárias para a União. O processo de reestruturação setorial incide também sobre sua dinâmica produtiva, o que se expressa na persistência do retraimento no lançamento de novos empreendimentos hidrelétricos. De um lado, o ajustamento a um contexto institucional em mudanças implica a contenção dos já pouco expressivos investimentos em geração das concessionárias privadas. De outro, as dificuldades na obtenção de financiamento, num quadro de estagnação 301 econômica, tendem a refrear os planos de expansão das empresas públicas. Assim, embora a potência instalada de geração hidráulica do país tenha experimentado uma variação de aproximadamente 60% entre 1960 e 1967 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), tal crescimento decorre basicamente da entrada em operação de projetos decididos na década anterior89. No segmento público, as principais iniciativas remetem à esfera de atuação das administrações estaduais, com destaque para o governo de São Paulo. Avançando no vácuo deixado pela retração dos investimentos da Light e da Amforp, as concessionárias controladas pelo governo paulista implementam um conjunto relativamente abrangente de projetos hidrelétricos, num esforço de consolidação de sua presença na atividade de geração (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Por fim, as empresas federais, premidas por restrições financeiras, se concentram na conclusão da usina de Furnas e na ampliação de Paulo Afonso. A recuperação dos investimentos produtivos do setor elétrico somente ocorrerá a partir dos anos 1967/68, no rastro da retomada do ciclo expansivo da economia brasileira. Comandado pela empresa pública, que se transforma, na prática, no único agente responsável pela ampliação do parque gerador do país, toma forma então um processo de crescimento acelerado da potência instalada do sistema, que irá se prolongar até meados dos anos oitenta. Isto traz em seu bojo não só avanços expressivos da operação interligada, mas mudanças no perfil técnico-econômico dos projetos setoriais, que caminham na direção de megaempreendimentos hidrelétricos. 89 No segmento privado, o único empreendimento implantado pela Light é a construção da usina de Ponte Coberta, para suprir a expansão da demanda do mercado do Rio de Janeiro (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), enquanto a Amforp, já decidida a negociar o controle de suas subsidiárias, não constrói nenhuma usina nova no período. 302 3. O avanço da operação interligada e a consolidação do novo modelo institucional do setor elétrico A confluência de condições internas favoráveis aos investimentos produtivos, advindas das reformas políticas e institucionais implementadas nos anos 1964/67, com uma situação de elevada liquidez do sistema financeiro internacional, disponibilizando recursos para a complementação da poupança nacional (Fiori, 1993; Feu Alvim, 1996), viabiliza a retomada do desenvolvimento nacional nos anos finais da década de sessenta. O país experimenta um verdadeiro boom econômico no período que se estende de 1967/68 a 1973/74 (Baer, 1996; Campolina, 1996; Sola, 1995; Fiori, 1993), quando cresce à taxa média de 11% ao ano (Negri, 1996). Tratado como “milagre econômico”, esse surto expansionista apresenta, como um de seus traços mais salientes, o aprofundamento do intervencionismo do Estado na economia, espelhado na multiplicação do número de empresas controladas pelo setor público (Fiori, 1993). É importante ressaltar, contudo, que o alargamento das funções empresariais do Estado não reflete nem implica mudanças de fundo no padrão de relação já estabelecido entre a administração pública e a iniciativa privada no campo produtivo. Vale dizer, o maior intervencionismo estatal passa ao largo de qualquer propósito de ruptura com os princípios de funcionamento da economia de mercado, preservando em particular o primado da iniciativa privada sobre a pública na alocação de recursos em investimentos na produção. A Constituição de 67, promulgada pelo regime militar, não deixa maiores dúvidas a esse respeito, ao afirmar que a atividade produtiva estatal deveria ser desenvolvida “apenas em caráter suplementar da iniciativa privada” (Art. 170), quando justificada “por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não pudesse ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa” (Art. 63). A adesão aos princípios de funcionamento da economia de mercado como balizador da inserção estatal na esfera produtiva não se limita a direcionar a 303 empresa pública para áreas consideradas estratégicas pelo governo, numa atuação suplementar e não competitiva com a empresa privada. Implica também a imposição de uma lógica empresarial à mesma, vista como instrumento para o incremento de sua eficácia econômica90, numa orientação ditada pelo interesse em atender às “exigências” da dinâmica do processo de acumulação de capital (Martins, 1985). Isto se evidencia, em particular, nas diretrizes estabelecidas no Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), proposto pelo governo federal para o período 1968/70 (Alves e Sayad, 1975), onde se afirma que “a eficiência e a produtividade das empresas privadas não depende apenas de seu próprio esforço e decisão, mas, em grande parte, da eficiência da máquina governamental e de outras condições que se incluem na esfera de decisão do governo” (Ministério do Planejamento,1967: 36). O escopo das funções empresariais a serem desempenhadas pelo Estado adquire contornos mais nítidos no âmbito do Decreto-Lei nº. 200, editado em fevereiro de 1967, através do qual o governo federal busca disciplinar a dinâmica de expansão do setor produtivo estatal, impondo-lhe, ao mesmo tempo, orientação gerencial pautada em princípios racionalidade econômica (Keinert, 1994; Lima, 1995). Quanto ao primeiro aspecto, a empresa pública é definida como “entidade (...) criada por lei para desempenhar atividades de natureza empresarial que o governo seja levado a exercer, por motivos de conveniência ou contingência administrativa” (Decreto-Lei nº. 200). Em outras palavras, a produção estatal não constituía um fim em si mesmo, mas uma imposição derivada dos objetivos mais gerais perseguidos pela política pública. A atuação empresarial do Estado deveria ser canalizada, como vinha ocorrendo até então (Dain, 1977, 1986; Abranches, 1977, Araújo, 1995), para atividades percebidas como essenciais ao desenvolvimento nacional – o equivalente operacional de “motivos de conveniência” - e nas quais a iniciativa privada não estava interessada ou não tinha capacidade de investir - o equivalente operacional de 90 De acordo com a Constituição de 67, “as empresas públicas e as sociedades de economia mista reger-seão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito de trabalho e ao das obrigações” (Art. 170). 304 “contingência administrativa”. Quanto ao segundo, o decreto prescreve para as “empresas públicas (...) condições de funcionamento idênticas às do setor privado, cabendo às entidades, sob supervisão ministerial, ajustar-se ao plano geral do Governo” (Decreto-lei nº. 200). De um lado, apontava-se para a autonomia decisória e o compromisso com a eficiência alocativa por parte das estatais, o que supunha preservá-las de ingerências político-partidárias ou da prática do “clientelismo governamental” (Martins, 1985), bem como assegurar-lhes capacidade própria de acumulação (Coutinho e Reischstul, 1977). De outro, reafirmavam-se os limites operacionais inerentes à sua natureza pública, que as subordinavam, em algum nível, às prioridades e diretrizes mais gerais emanadas da política governamental. Na prática, o decreto vem formalizar uma situação de fato, explicitando o caráter ambivalente da atuação das empresas estatais, tensionadas pelo atendimento à racionalidade macroeconômica imbricada na política pública e os imperativos da racionalidade microeconômica derivada da busca de eficiência produtiva. Do esforço de articulação e fomento do processo de crescimento e diversificação estrutural da economia, em estágios progressivamente mais avançados e complexos de industrialização, resultará a consolidação da empresa pública em atividades onde o Estado já se fazia presente, como a área de energia elétrica, e o avanço em direção a novos segmentos produtivos, especialmente na área da produção de bens intermediários (Negri, 1996), tendo como suporte o fortalecimento de sua base financeira, numa combinação de mecanismos fiscais e recuperação da receita própria (Abranches, 1977; Lima, 1995; Martone, 1975; Dain, 1977, 1986). A busca de melhorias no desempenho operacional, por sua vez, implicará a generalização e o contínuo aperfeiçoamento de padrões de gestão fundamentados no uso do planejamento como instrumento de racionalização e eficiência econômica. As atividades das empresas públicas nas principais áreas de intervenção estatal passam a ser dotadas de elevado grau de autonomia decisória e financeira, dando forma ao que Abranches (1977) 305 denomina de “setorialização” gerencial da administração das funções produtivas do Estado. Internalizadas na condução das ações governamentais no campo das atividades elétricas, as diretrizes emanadas do decreto irão nortear a dinâmica das reformas empreendidas ao longo do ciclo expansivo da economia. Tomam forma no período novos avanços no processo de redesenho institucional e produtivo do setor, consoante a estratégia de racionalização e aumento da eficiência alocativa do sistema baseada no aproveitamento de ganhos de escala. São mudanças que se articulam em torno de dois eixos principais: a indução a uma maior verticalização do arranjo organizacional do setor, ampliando o espaço ocupado pelas empresas federais; e uma presença mais incisiva da regulação estatal, reforçando o papel da Eletrobrás enquanto agência de planejamento e coordenação das atividades do sistema. 3.1 A pressão sobre a capacidade de atendimento do sistema e o avanço da integração operacional Como em circunstâncias anteriores de aceleração do crescimento da economia, a retomada da trajetória desenvolvimentista ocorrida nos anos finais da década de sessenta reflete-se de imediato sobre a demanda de energia elétrica. A expansão do consumo, que vinha se fazendo em ritmo moderado, passa a se processar aos saltos, mais que dobrando durante o período do “milagre” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tendo em vista o caráter estrutural então assumido pelo refluxo dos investimentos privados na área, restrita a rigor às atividades desenvolvidas pelas subsidiárias do grupo Light, cabia às empresas públicas a difícil tarefa de proporcionar respostas adequadas ao incremento da demanda, o que não vinha sendo feito com eficácia pelo mercado. A busca de soluções para a garantia do suprimento energético do país tende a constituir, a partir de então, o fundamento primário na moldagem da política setorial do governo federal. O êxito no enfrentamento desse desafio, por sua vez, supunha não apenas um aporte substancial de recursos para o 306 financiamento da expansão do sistema, mas também uma gestão eficaz na aplicação de tais recursos. São questões que vêm conferir maior centralidade à racionalização dos processos decisórios do setor, com vistas ao aproveitamento de economias de escala e de escopo, em sintonia com a perspectiva integrada que vinha sendo progressivamente adotada na concepção e implementação dos projetos de geração e transmissão de energia. Como visto, os estudos de inventário, de viabilidade de projetos e de mercado de energia elétrica realizados pela Canambra (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) haviam proporcionado importante aporte técnico-metodológico para a adoção de uma abordagem sistêmica na aplicação de recursos na área. No entanto, isto por si só não assegurava a adesão das concessionárias ao processo, o que dificilmente se produziria de forma espontânea, pelo fato de implicar o estreitamento da margem de autonomia decisória de empresas com lógicas de atuação diferenciadas e poder de barganha também distintos. O balanço da experiência até então acumulada pelo setor no tocante ao planejamento integrado dos investimentos na expansão do sistema, ainda recente e restrita aos estados do Sudeste, dava mostras eloquentes da complexidade que permeava a questão, evidenciada nos “crescentes problemas de adaptação e divergência de interesse entre as várias empresas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 201) atuantes na área. De forma similar ao ocorrido em outros países com forte prevalência da geração hídrica, o progressivo esgotamento dos potenciais hidráulicos próximos aos principais mercados (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Rosa et al, 1996) pressionava os custos de prestação dos serviços, contribuindo para o acirramento das disputas pelo controle dos aproveitamentos hidrelétricos com perspectivas mais favoráveis de exploração e, consequentemente, de retorno econômico. Se os ganhos da interligação operacional eram evidentes, não havia como descurar, por outro lado, o aumento da margem de riscos, incertezas e da taxa de conflitos no desenvolvimento da atividade. 307 A eficácia na apropriação das oportunidades para o aproveitamento de economias de escala e de escopo na promoção dos investimentos na área, potencializadas pela operação interligada, passava, portanto, pela acomodação dos conflitos em torno da partilha dos ganhos de eficiência derivados do processo, o que demandava uma efetiva capacidade de coordenação e gerenciamento dos interesses em jogo. A despeito dos inegáveis avanços institucionais advindos da promulgação do decreto nº. 57.927, anteriormente citado, que definira regras e procedimentos para o planejamento integrado dos projetos produtivos do setor, os esforços empreendidos em tal direção ainda se ressentiam de uma demarcação mais precisa das atribuições e responsabilidades das diversas concessionárias, de um lado, e de instrumentos e mecanismos para lidar adequadamente com a gestão da interdependência decisória, de outro. São problemas que incidiam sobre a atuação da Eletrobrás enquanto agência responsável pelo planejamento setorial, restringindo sua capacidade de assegurar a adesão das empresas às decisões tomadas, necessária à consecução dos objetivos e metas traçadas para o sistema. O Comitê Centro-Sul, organizado originalmente em função da supervisão e apoio aos trabalhos da Canambra, ensejava um canal de articulação com as principais empresas concessionárias, mas não garantia, por si só, um meio associativo estável, isto é, não supria a lacuna de um arranjo institucional que cumprisse o papel de força integradora do sistema, promovendo a convergência entre as lógicas decisórias de tais empresas e a lógica ou racionalidade decisória da operação interligada, até porque não fora criado com tal propósito. Preocupado em estimular a melhoria do desempenho técnico e econômico do setor e, ao mesmo tempo, minimizar os riscos da falta de energia, o governo federal irá promover novos avanços na dinâmica de integração operacional do sistema, articulados em torno de dois eixos principais. O primeiro tem a ver com a configuração de seus arranjos organizacionais e produtivos, envolvendo medidas que buscam acelerar o movimento de integração vertical e horizontal das atividades das empresas, onde isto se revelasse apropriado e 308 eficaz à apropriação de ganhos de eficiência na prestação do serviço. O segundo, com o reforço da capacidade governamental de gerar adesão e sustentação política às suas decisões na área, fundado no aprimoramento dos mecanismos de coordenação e controle na gestão da operação interligada. Os propósitos reformistas adquirem materialidade através da promulgação do Decreto nº. 60.824, datado de junho de 1967, instituindo formalmente o “sistema nacional de eletrificação” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Dentro dos limites institucionais de uma ação reformista que supõe um continuum em relação aos arranjos produtivos preexistentes, o governo federal procura estender ao máximo as possibilidades de centralização das atividades de geração e transmissão do setor, com vistas à exploração eficaz das oportunidades para a apropriação de ganhos de escala na realização dos investimentos na área. Movido por esse propósito, preconiza, através do decreto, a maior verticalização organizacional do sistema, enfatizando “a conveniência de concentrar em número limitado de empresas de eletricidade, preferivelmente de caráter regional, a ação da Eletrobrás e dos governos estaduais no setor” (Decreto nº. 60.824). Trata-se, na prática, de endosso ao movimento de reestruturação operacional que vinha se processando de forma relativamente autônoma na região Sudeste, sancionando-o como paradigma para o restante do país. Numa atividade em estágio já avançado de estatização, tal diretriz não deixa dúvidas quanto ao ponto de chegada almejado: a conformação de um arranjo organizacional de configuração dual, com uma rede de empresas operando em âmbito estadual e outra em âmbito regional. A primeira seria formada por concessionárias controladas pelos governos estaduais, com a fusão ou aglutinação das empresas elétricas de um mesmo estado numa única concessionária (Lima, 1995, depoimento), nos moldes da Cemig e CEEE; a segunda, por subsidiárias da Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995), com atuação em espaços macrorregionais, nos moldes de Furnas e Chesf. 309 O desenho funcional “idealizado” para o setor tem como referência a “divisão de trabalho” ensaiada na implantação da usina de Furnas, com as empresas federais se responsabilizando pelos empreendimentos hidrelétricos de grande porte e os eixos troncais da rede de transmissão, e as empresas estaduais respondendo prioritariamente pelas atividades de distribuição de energia. O decreto governamental respalda essa interpretação à medida que prescreve, para as concessionárias do sistema, “primordialmente desenvolver (...) o aproveitamento de fontes de energia situadas dentro ou nos limites de suas áreas de concessão” (Decreto nº. 60.824). Embora aparentemente neutra, tratase de regra discricionária, cuja aplicação restringe as possibilidades de atuação das empresas estaduais no segmento de geração à exploração de potenciais hidráulicos de seu próprio estado, criando condições assimétricas de competitividade frente às empresas federais, que atuavam em espaços de dimensão regional ou supra-estadual. As restrições incidentes sobre as concessionárias estaduais nas atividades de produção de energia, por sua vez, tendem a afetar também suas oportunidades de atuação no segmento de transmissão. Sem acesso a aproveitamentos externos às fronteiras do estado, as possibilidades que se abriam às mesmas no tocante a investimentos em projetos de transmissão ficavam limitadas, a rigor, à implantação de redes alimentadoras, formadas por linhas de curta a média distância. Como corolário das limitações operacionais impostas às empresas estaduais, os investimentos de maior escala produtiva nos segmentos de geração e transmissão ficavam “reservados” às empresas federais. Para não deixar dúvidas a respeito dos rumos que pretendia imprimir aos arranjos organizacionais do setor, o decreto governamental também afirma que a Eletrobrás deveria “providenciar para que as empresas sob seu controle fossem integradas, sempre que viável, em empresas de âmbito regional” (Decreto nº. 60.824). Por exclusão, o principal campo de intervenção “reservado” às concessionárias estaduais remetia ao segmento de distribuição Não se tratava, evidentemente, de uma imposição normativa de papéis, de curso obrigatório, até 310 porque o incrementalismo subjacente às reformas setoriais implicava a necessidade de manter aberto às empresas já estabelecidas na área, quer estaduais ou federais, o acesso aos segmentos produtivos em que vinham operando. Além disso, o aproveitamento de economias de escala e de escopo não exigia nem comportava uma demarcação rígida das esferas de atuação das empresas. De fato, em diversas situações, a presença de concessionárias estaduais nos segmentos de geração e transmissão e a de empresas federais no segmento de distribuição atendiam a requisitos de eficiência técnica e econômica; em outras, eram indispensáveis, pela inexistência mesmo de alternativas. Em linhas gerais, as concessionárias estaduais das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em grande parte constituídas após a promulgação do decreto, acabam se moldando ao figurino nele prescrito, restringindo-se quase que exclusivamente às atividades de distribuição, enquanto as congêneres das regiões Sul e Sudeste, mais antigas e com maior capacidade de mobilização de recursos, tendem a atuar nos vários segmentos. No entanto, a despeito de não significar ruptura face aos arranjos pretéritos, seria irrealista imaginar que a reestruturação organizacional e produtiva preconizada pelo decreto ficasse imune a pressões dos interesses constituídos do setor, à medida que sua implementação repercutia, em graus variados, nos cálculos estratégicos, nas expectativas e nas formas de atuação das diversas empresas. Para lidar com a questão, o governo federal procura reforçar sua capacidade de comando e coordenação na área, através do aperfeiçoamento e aumento do grau de institucionalização dos instrumentos e dos mecanismos de planejamento e gestão das atividades do sistema. Isto se expressa na proposição, em 1967, do Programa de Obras para o setor, articulado à elaboração de estudos de mercado com projeções sobre o consumo de energia elétrica, que avançam no sentido do Orçamento Plurianual de Energia, introduzido em 1968 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Dentro de uma trajetória de aprimoramento progressivo, o Orçamento Plurianual será substituído, pouco depois, pelo Programa Plurianual de Investimentos do Setor Elétrico (Centro da 311 Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), consagrando a centralização decisória na seleção dos projetos de expansão da capacidade instalada do sistema. Sob a ótica dos mecanismos de gestão, vão ser estabelecidos, em janeiro de 1969, os “princípios básicos que nortearam a criação do primeiro Comitê Coordenador da Operação Interligada (CCOI), efetuada em julho do mesmo ano por meio (...) de um acordo entre as empresas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 210) da região Sudeste. Estendido posteriormente para a região Sul, o CCOI91 provê o arcabouço de uma ambiência minimamente estruturada para lidar com os conflitos de interesse entre as várias empresas em torno da realização de novos investimentos e da distribuição intermediária de energia, funcionando como uma força de integração e estabilização da dinâmica da operação interligada. O acelerado avanço no sentido de um sistema interligado e crescentemente estatizado, por seu turno, vem conferir saliência à obsolescência de um aparato regulatório concebido originalmente para proceder ao ordenamento e fiscalização de uma atividade delegada, sob o regime de concessão, à iniciativa privada, e que se estruturava sob a forma de “ilhas” de prestação de serviços, isto é, sem interfaces das atividades produtivas das diversas empresas. De um lado, a imposição normativa de critérios de investimentos na expansão do parque gerador e a correlata montagem de programações setoriais definidas de forma centralizada tendem a subverter a lógica decisória e operacional do sistema, internalizando objetivos e dispositivos concernentes à esfera da regulação na esfera da produção. De outro, a consolidação da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da expansão do sistema concentra, em sua órbita decisória, uma série de atribuições que se sobrepõem a funções inscritas formalmente no rol de competências institucionais do CNAEE. São “disfunções” que estimulam e conduzem a reformulações nos fundamentos básicos da sistemática regulatória, num processo contingente de adaptação ou adequação ao novo padrão de organização e 91 O CCOI congregava as empresas geradoras e distribuidoras de uma mesma região, atuando sob a orientação técnica da Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 312 desenvolvimento das atividades do setor que vai sendo modelado progressivamente ao longo dos anos sessenta. Assim, à medida que a definição das “necessidades” de expansão da oferta de energia passa a ser crescentemente assumida por estruturas decisórias centralizadas, o foco da função reguladora tende a se deslocar do âmbito das relações entre as concessionárias e os usuários dos serviços de eletricidade para o âmbito das relações produtivas que se estabelecem entre as concessionárias em decorrência da interligação operacional da atividade. Num ajuste ao perfil estatizado que passa a caracterizar o setor elétrico e, mais especificamente, às mudanças ocorridas em sua dinâmica de funcionamento, as ações tipicamente regulatórias sofrem uma inflexão no sentido da articulação à sistemática de planejamento e gerenciamento da expansão e operação do sistema, zelando pelo efetivo cumprimento dos dispositivos que regem a promoção de novos investimentos em geração e a correlata interdependência decisória das empresas. A redefinição do conteúdo objetivo das ações de ordenamento e controle da atividade, como seria de se esperar, põe em movimento uma concomitante reconfiguração do aparato organizacional encarregado de sua implementação. Essa reestruturação irá convergir para a centralização das funções regulatórias num único organismo, rompendo com o arranjo dual instituído nos anos trinta – a coexistência da Divisão de Águas e do CNAEE, sem uma clara demarcação dos respectivos campos de atuação. Acompanhando o gradualismo das transformações institucionais mais gerais em curso no setor, o processo se inicia com a Lei nº. 4.904, de dezembro de 1965, reforçando as atribuições da Divisão de Águas, redenominada de Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE), em detrimento do CNAEE (Dias Leite, 1995, depoimento). A consolidação definitiva do novo arranjo organizacional se dará mais ao final da década, com a promulgação do Decreto nº. 63.951, de dezembro de 1968, e do Decreto-Lei nº. 689, de julho de 1969, que concentram no DNAE, rebatizado de Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), todas as tarefas ou atividades concernentes ao poder concedente de aproveitamentos hidráulicos 313 e, ato contínuo, determinam a extinção formal do CNAEE, completamente esvaziado de suas funções (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Dias Leite, 1995, depoimento). Estabelece-se, a partir de então, a conformação básica das atividades de gerenciamento e controle da dinâmica operacional e produtiva do setor, que acabará prevalecendo, sem alterações de maior relevância, até meados dos anos noventa. O modelo organizacional instituído preserva a separação formal entre as funções regulatória e empresarial do Estado, posicionando-as em loci distintos: a primeira referenciada no DNAEE; a segunda, na Eletrobrás. No entanto, a inserção numa estrutura administrativa comum – o Ministério das Minas e Energia – relativiza tal compartimentação funcional, à medida que as submete, em última instância, a um mesmo comando ou autoridade central. Além disso, e mais importante, a ênfase atribuída à racionalização sistêmica dos investimentos em geração e transmissão de energia tende a diluir a autonomia decisória do DNAEE, tornando sua atuação caudatária de decisões tomadas no campo de atuação da Eletrobrás. Significa dizer que o papel do órgão enquanto poder concedente vai se restringir, em larga medida, a dar suporte ou sustentação a deliberações originárias de uma esfera decisória externa ao mesmo. Em síntese, a retomada do ciclo expansivo da economia nos anos finais da década de sessenta vem pressionar a capacidade instalada do sistema, atuando como fator de estímulo não só aos investimentos produtivos da atividade mas também à integração vertical e horizontal das operações das empresas, consoante vantagens competitivas determinadas por mudanças nas regras do jogo e por diferenciais no potencial de mobilização de recursos. Utilizando o poder discricionário assegurado pela vigência de uma ordem autoritária, o governo federal promove ajustes na institucionalidade do setor norteados pelo incremento da racionalidade sistêmica. O processo traz em seu bojo a ampliação da escala dos projetos hidrelétricos, rumo a empreendimentos de envergadura regional, bem como o progressivo alargamento da esfera de atuação empresarial da Eletrobrás, delineando uma trajetória de crescente “federalização” das 314 atividades de geração e transmissão (Rodrigues e Dias, 1993). Trata-se, contudo, de uma federalização de natureza inconclusa ou parcial, à medida que as principais concessionárias estaduais da região Centro-Sul implementam programas relativamente ambiciosos de investimento, procurando preservar condições de autosuficiência energética. 3.2 Expansão, especialização produtiva e tendência à “federalização” do setor Impulsionado pelo crescimento exponencial da demanda de energia decorrente do “milagre econômico”, o setor elétrico experimenta um ritmo notável de expansão de sua capacidade de atendimento. A potência instalada do país mais do que dobra entre 1967 e 1973, saltando de 8.042 MW para 16.698 MW no longo do período (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), o que corresponde a uma taxa média de crescimento da ordem de 15,7% ao ano. Intensifica-se, em simultâneo, a dinâmica das transformações nas bases organizacionais e produtivas da atividade, num avanço acelerado rumo à efetiva materialização do “sistema nacional de eletrificação” instituído formalmente pelo Decreto nº. 60.82492. O esforço de evitar estrangulamentos no suprimento energético imprimiu velocidade ao processo de integração do sistema, moldando arranjos operacionais e especializações produtivas internas ao mesmo, que serão definitivamente consolidados na segunda metade dos anos setenta. Com a saída de cena da Amforp e com a Light concentrando suas ações no segmento de distribuição, a responsabilidade pela promoção dos investimentos na adequação da oferta de energia passa a ser assumida, quase que integralmente, pela administração pública, estadual e federal. Refletindo condições favorecidas de inserção no sistema, tanto sob a ótica institucional como da capacidade de mobilização de recursos, as empresas federais amplificam sua 92 Em 1973, mais de 90% do total da prestação dos serviços de eletricidade já se inscrevia no âmbito da operação interligada (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). 315 participação nos segmentos de geração e transmissão, concorrendo com as concessionárias estaduais em determinadas regiões e assumindo posição de quase monopólio em outras. Embora a organização de empresas de energia elétrica controladas por governos estaduais tenha se espraiado pelas diversas unidades da Federação ao longo dos anos sessenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), a ampla maioria delas não dispunha de capacidade técnica nem financeira para se engajar num esforço próprio de geração, capaz de atender às necessidades imediatas e futuras de suas áreas de mercado. Isto se aplica, em especial, às concessionárias das regiões Norte e Nordeste, constituídas em sua ampla maioria como empresas direcionadas para o segmento de distribuição. A rigor, apenas concessionárias da região Centro-Sul, com perfil de empresas verticalmente integradas, além de técnica e financeiramente melhor aparelhadas, vão contribuir efetivamente para a expansão da potência instalada do sistema no período do “milagre econômico” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Destacam-se, nesse contexto, as ações empreendidas pela Cesp e Cemig, na região Sudeste, e pela Copel e CEEE, na região Sul. Atuando no vácuo da Light e da Amforp, a Cesp se aproveita do dinamismo apresentado pelo consumo de eletricidade no mercado paulista para acelerar obras em andamento e promover o lançamento de novos projetos hidrelétricos, num agressivo programa de investimentos em geração cuja resultante será o aumento de sua produção à explosiva taxa média de 30,8% ao ano ao longo do período 1967-7493. Embora menos agressivo que o programa de investimento da Cesp, até porque opera num mercado mais estreito, a Cemig também implementa um expressivo conjunto de obras, que contempla, entre outras iniciativas, a conclusão da usina de Jaguara, o início da construção de Volta Grande e São Simão, e a ampliação da capacidade de geração de Três 93 Essa expansão se fundamenta, em grande parte, na entrada em operação de grupos geradores do complexo hidrelétrico formado pelas usinas de Jupiá e Ilha Solteira, que assinalam a arrancada da empresa rumo à liderança nacional na atividade geradora (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), conquistada na transição dos anos setenta. 316 Marias (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Na região Sul, adquirem saliência as ações protagonizadas pela Copel, dentro de uma estratégia voltada à estruturação de um parque gerador próprio, compatível com a dimensão de sua área de mercado94, que a levará a se consolidar, em meados dos anos oitenta, como uma das principais geradoras do país (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O vigoroso surto de crescimento experimentado pelo setor elétrico, contudo, só foi possível graças à ampliação da presença do governo federal nas atividades do sistema. Isto envolve iniciativas em duas frentes principais: o avanço da ação planejadora e coordenadora da Eletrobrás e o reaparelhamento organizacional da empresa para atuar no campo da produção. A primeira vertente contempla a estruturação de “atividades de caráter contínuo ou periódico, capazes de alimentar e dar continuidade às decisões” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 209) de investimento tomadas para o conjunto do setor; a segunda, a criação de novas subsidiárias para atuar nas regiões Sul e Norte do país – áreas não atendidas ou cobertas por Furnas e Chesf. Como visto, a otimização dos aproveitamentos de geração, dadas as características eminentemente hidráulicas do sistema elétrico brasileiro, passava necessariamente pela centralização das decisões de investimento na área e a concomitante acomodação das interfaces produtivas no âmbito do setor, já que a avaliação e seleção dos projetos hidrelétricos deveria levar em conta as relações técnicas entre “aproveitamentos de uma mesma bacia hidrográfica e as possibilidades de interligação de sistemas inter e intra-regionais” (Lima, 1995: 105). Isto motiva o governo federal a proceder à complementação dos estudos sobre mercados de energia e inventários de bacias, até então restritos às regiões 94 Até os anos sessenta, a capacidade instalada da empresa situava-se em modestos 11,6 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988)). Estimulada pelo intenso desenvolvimento e modernização da economia paranaense a partir da segunda metade dos anos sessenta (Fleischresser, 1988; Álvares Afonso et al, 1995; Negri, 1996), e favorecida pelo potencial hidráulico do estado, a empresa implementa um programa sustentado de expansão de sua potência instalada. 317 Sudeste e Sul, estendendo-os ao restante do país95. Além dessas iniciativas, outro fato marcante consiste na assinatura de contrato entre os governos brasileiro e paraguaio, em 1970, criando uma comissão técnica para avaliar a melhor forma de aproveitar o potencial hidrelétrico do rio Paraná, entre Salto Grande das Sete Quedas e Foz do Iguaçu (Barbalho, 1995, depoimento), que culminará, mais à frente, na assinatura do Tratado de Itaipu. Ao mesmo tempo em que desenvolve um esforço no sentido de complementar a montagem de uma base de dados e informações compatível com a adoção de uma sistemática de planejamento setorial de longo prazo, de abrangência nacional, o governo federal busca, dentro dos limites impostos pela institucionalidade vigente, ajustar o arranjo organizacional da atividade aos requisitos da dinâmica de funcionamento da operação interligada. A consecução desse propósito contempla ações em dois planos distintos, afinadas com as diretrizes gerais estabelecidas no decreto que instituiu o sistema nacional de eletrificação. De um lado, procede-se ao reforço da “estadualização” das atividades de distribuição; de outro, ao fortalecimento da capacidade empresarial da Eletrobrás com vistas a aparelhá-la para atuar em todo o território nacional. Seguindo a orientação estratégica de concentrar suas atividades empresariais prioritariamente nos segmentos de geração e transmissão, o governo federal promove a transferência do controle das subsidiárias do grupo Amforp, que haviam sido adquiridas pela União, para a rede de concessionárias estaduais, sempre onde isto fosse avaliado como viável e eficaz (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O primeiro passo nessa direção é dado em 1967, com o repasse, para a CEEE, dos bens e instalações da Companhia de Energia Elétrica Riograndense. Em 1968, a Companhia de Eletricidade de Pernambuco (Celpe), do governo estadual, incorpora a Pernambuco Tramways 95 Na sequência dos levantamentos de potencial hidráulico e projeções de demanda correspondentes à região Sul, concluídos em 1969, foram iniciados trabalhos similares para a Amazônia e o Nordeste. O primeiro teve a supervisão do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Amazônia (Eneram), com a Eletrobrás como agente executivo (Barbalho, 1995, depoimento),sendo finalizado em 1972; o segundo, sob supervisão do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região Nordeste (Enenorde), foi concluído no ano seguinte (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). 318 and Power Co. Limited. Esse processo terá continuidade nos anos 96 subsequentes , com as subsidiárias remanescentes sendo paulatinamente transferidas para empresas energéticas dos estados (Lima, 1995, Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Ao final, apenas uma fração minoritária das concessões e ativos que pertenceram ao grupo americano permanecerá sob a administração da própria Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Conjugado às iniciativas de reforço à “estadualização” das atividades de distribuição, ganha intensidade o movimento de “federalização” das atividades de produção e transmissão de eletricidade. De um lado, tanto Furnas quanto Chesf vão promover expressivos investimentos na ampliação de seus parques geradores, seja através do aumento da capacidade instalada de usinas existentes ou do lançamento de novos empreendimentos produtivos97. De outro, são constituídas duas novas empresas energéticas federais, de perfil regional, na condição de subsidiárias da Eletrobrás. A primeira delas é representada pela Centrais Elétricas do Sul do Brasil (Eletrosul), criada formalmente em dezembro de 196898. A segunda, a Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte), surge pouco depois, através da Lei nº. 5.824, de novembro de 1972 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), preparando o terreno para a extensão da fronteira da geração hidráulica para a região da Amazônia, que ocorrerá já na segunda metade da década. Junto com Chesf e Furnas, essas empresas formatam a estrutura básica de uma rede regionalizada de sistemas de eletrificação, de abrangência nacional, que irá se consolidar na transição para os anos oitenta. 96 Dentre outras, a Conefor será repassada para a Companhia de Energia Elétrica do Ceará (Coelce); a Companhia Força e Luz de Minas Gerais, para a Cemig; a Companhia Força e Luz do Paraná, para a Copel; e a Companhia de Energia Elétrica da Bahia, para a Companhia de Energia Elétrica da Bahia (Coelba) (Barbalho, 1995: depoimento). 97 No caso de Furnas, inclui a usina nuclear de Angra dos Reis. 98 “Autorizada a funcionar pelo Decreto nº. 64.395, de 23 de abril de 1969, a Eletrosul, pelo mesmo decreto, recebeu a concessão para a construção da hidrelétrica de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, cujas obras já haviam começado” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 242), dando a partida para a montagem de um parque gerador que crescerá de forma exponencial ao longo dos anos setenta. 319 Num resultado circunstancial e até certo ponto paradoxal, o impulso decisivo ao movimento de estatização das atividades elétricas coincidiu com forte recuperação da capacidade de autofinanciamento do setor, decorrente de aumentos reais nos preços cobrados ao consumidor, derivados, por sua vez, da implementação de uma política tarifária que assegurava reajustes acima dos índices inflacionários (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A propósito da questão, cabe observar que, mesmo com a aceleração dos investimentos na expansão do sistema, a necessidade de financiamento extrasetorial mostra clara tendência declinante no período: de uma participação correspondente a 57,9% do total em 1967, a participação dos recursos extrasetoriais na estrutura de financiamento do sistema cai para 45,7% do total em 1973 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil). O controle tarifário, introduzido em meados dos anos trinta e que se constituíra num dos principais fatores de desestímulo às inversões do capital na área, acabou sendo flexibilizado exatamente num momento em que a hegemonia da empresa pública já estava consolidada na área. Numa ilustração de como as preferências e as decisões estratégicas dos atores são contingentes do contexto, aquilo que fora negado às empresas privadas – o atendimento à reivindicação da garantia de preços remuneradores na prestação do serviço – será concedido às empresas públicas que, embora também se beneficiassem de aumentos reais nas tarifas elétricas, podiam prescindir da mesma, à medida que contavam com a possibilidade de obterem financiamento através do orçamento fiscal. Refletindo, mais uma vez, a autonomia decisória que a ordem autoritária conferia ao Executivo federal, essa recuperação da capacidade de autofinanciamento do sistema terá fôlego curto, sendo revertida no âmbito das mudanças que se processam em aspectos relevantes dos ambientes interno e externo, ocorridas na transição dos anos 1973/74, em conexão ao denominado “choque do petróleo”. A crise energética mundial provocada pela substancial 320 elevação do preço internacional do produto99 catalisa um processo generalizado de ajuste recessivo nas economias capitalistas centrais (Lima, 1995; Negri, 1996; Rosa et al., 1998), além de conferir saliência a iniciativas de racionalização e conservação de energia, centradas em aumentos nos preços ao consumidor. Embora tenha sofrido impactos também expressivos em sua economia, dada a elevada dependência em relação à importação do produto, o país toma caminho distinto das políticas seguidas no exterior. Em termos mais específicos, a opção brasileira se faz por um ajuste estrutural que não apenas procura preservar o desenvolvimento econômico, mas que estimula o consumo de energia, em detrimento de um padrão de utilização mais racional e criterioso dos insumos energéticos, cujo subproduto será a reintrodução da prática do controle tarifário. Essa orientação imposta pela política macroeconômica terá profundas repercussões nas atividades elétricas, influenciando o padrão de financiamento, o perfil dos investimentos produtivos e a autonomia decisória das empresas atuantes na área. O setor volta a se tornar mais dependente de fontes de recursos extra-setoriais, o que contribui para acentuar ainda mais a importância da otimização dos aproveitamentos hidrelétricos e da operação interligada. O planejamento centralizado se instaura de vez no âmbito do sistema, levando a termo um processo de aprimoramento e adaptação institucional cujas origens remetem às reformas desenhadas pela administração varguista nos anos cinquenta. 4. A maturação das reformas setoriais e a consolidação do sistema nacional de eletrificação Em meados da década de setenta, as condições do ambiente já não se revelavam mais favoráveis à manutenção de uma trajetória sustentada de crescimento no país. A deterioração dos fundamentos básicos da economia, 99 A decisão dos países árabes exportadores de petróleo, integrantes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), de boicote ao fornecimento de petróleo para os USA e outros países que auxiliavam Israel na guerra árabe-israelense ocorrida em 1973, ocasionou aumentos substantivos no preço do produto no mercado internacional. 321 evidenciada em inflação e endividamento público ascendentes, e os efeitos desestabilizadores decorrentes do “choque do petróleo” sinalizavam para o esgotamento e reversão do ciclo expansionista iniciado ao final dos anos sessenta (Fishlow, 1985; Baer, 1996; Negri, 1996; Sallun Júnior, 1995). A despeito dessas adversidades, o novo governo que assume o poder dentro do processo sucessório instaurado pelo regime militar, sob o comando do Gal. Ernesto Geisel, opta por uma estratégia “heterodoxa” de ajuste pelo crescimento, traduzida numa política macroeconômica anticíclica, de cunho keynesiano (Baer, 1996; Cruz, 1997). Na tentativa de evitar ou, pelo menos, retardar o descenso econômico, será implementado um maciço programa de investimentos nos segmentos de bens de capital e insumos básicos, sob a liderança da empresa pública, consubstanciado nas propostas do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Com execução prevista para o período 1974/79, o II PND irá representar, conforme descrição de Fiori, “o esforço mais importante, integrado e ambicioso de política estatal voltada para a complementação da estrutura industrial brasileira” (1992: 80) desde a arrancada industrializante dos anos trinta. A manutenção de uma taxa razoável de crescimento e a consolidação de uma estrutura industrial diversificada no país, projetadas no plano, vão implicar muito mais que o acentuado aprofundamento do intervencionismo estatal na economia. A estratégia nele adotada é portadora também de mudanças no padrão de financiamento dos investimentos produtivos, que se torna mais dependente de fontes de recursos externos, bem como nos mecanismos e instrumentos da gestão governamental, onde se reforça a primazia da racionalidade técnica nos processos decisórios das políticas públicas. As atividades do setor elétrico se incluem entre aquelas mais fortemente influenciadas pela estratégia desenvolvimentista formulada pelo plano. De um lado, tendem a sofrer o acirramento da pressão da demanda por energia, necessária à viabilização dos novos segmentos industriais a serem implantados especialmente os projetos na área de bens intermediários, de características 322 eletrointensivas, priorizados pelo governo -, o que exigia respostas rápidas no tocante à expansão do sistema. De outro, irão experimentar uma progressiva diluição dos ganhos de rentabilidade conquistados a partir da segunda metade da década de sessenta, tendo em vista a adoção de uma política deliberada de contenção dos reajustes no valor das tarifas elétricas, com evidentes consequências sobre sua capacidade de autofinanciamento. São fatores que aprofundam o sentido de urgência imbricado nos esforços de “desenvolvimento institucional” que vinham sendo empreendidos na direção da racionalização e do aumento da eficiência alocativa do setor, cuja resultante será a consolidação de uma lógica sistêmica alicerçada na operação interligada e na sistemática de planejamento integrado de longo prazo. Esse processo converge, por sua vez, para a implantação de megaempreendimentos hidrelétricos, emblematizada na decisão de construir a usina de Itaipu . 4.1 Itaipu e a consolidação da integração operacional do sistema A estratégia desenvolvimentista consubstanciada no II PND determinou modificações numa série de premissas e diretrizes que vinham balizando a condução da política macroeconômica do país a partir das reformas institucionais, financeiras e administrativas promovidas nos anos 1964/67 (Lima, 1995; Cruz, 1997; Fiori, 1992; Baer, 1995). Isto se aplica, em particular, à questão dos mecanismos de financiamento dos investimentos produtivos das empresas estatais. Adquire saliência, no período, a utilização de subsídios estatais como instrumento de apoio e estímulo à expansão industrial, tanto sob a forma de incentivos fiscais quanto de controle das tarifas públicas (Oliveira, 1995; Lima, 1996). Por sua importância nos processos produtivos da indústria, as tarifas de energia elétrica não escapam às mudanças então introduzidas na sistemática de fixação de preços dos serviços de utilidade pública. A disposição governamental de subordiná-las à consideração de objetivos e interesses extra-setoriais se manifesta, de imediato, na transferência, da esfera do Ministério das Minas e Energia para o Ministério da Fazenda, da competência para decidir sobre a matéria. Ocorrida em 1974 (Dias Leite, 1995, depoimento), tal transferência abre 323 caminho para o abandono da política de “realismo” tarifário, que vinha sendo praticada desde meados dos anos sessenta. Os resultados aparecem logo a seguir, com o valor médio da tarifa apresentando uma redução de cerca de 30% em termos reais entre os anos de 1975 e 1978 (Lima, 1995, depoimento), o que dá uma indicação dos efeitos perversos sobre a receita operacional do setor. No entanto, a deterioração da capacidade de autofinanciamento das empresas energéticas não irá implicar retração no ritmo de expansão do sistema, com a aplicação de recursos na área durante a vigência do II PND superando em muito o esforço de investimento promovido à época do “milagre” econômico. A taxa média de inversão do setor nos anos 1974/79 ultrapassa em cerca de 60% à taxa média correspondente aos anos 1971/73 (Lima, 1995, depoimento), auge do ciclo expansionista da economia brasileira. Trata-se de resultado que espelha, de forma categórica, a imposição de uma lógica decisória sistêmica sobre as lógicas específicas de cada empresa, deslocando de vez qualquer influência relevante de estímulos econômicos de mercado nas decisões de investimento, que passam a ser feitos em função de projeções de crescimento da demanda e não das perspectivas de retorno dos recursos aplicados. A capacidade de investir do setor será assegurada fundamentalmente pela utilização de fontes de financiamento extra-setoriais - a participação da geração própria de recursos na estrutura de financiamento do sistema declina de forma acelerada no período, reduzindo-se em aproximadamente 50% entre 1974 e 1978 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). A retração do aporte de recursos originários da receita operacional será compensada pelo incremento na utilização de empréstimos contratados no exterior. Essa estratégia de financiamento não é fortuita, mas uma opção afinada com o objetivo macroeconômico de assegurar o fechamento ou equilíbrio do balanço de pagamentos do país (Baer, 1996; Dias, 1995; Lima, 1995) e que se beneficia da elevada liquidez então apresentada pelo mercado internacional. Numa relação causal indireta, a confluência de fatores exógenos à atividade 324 influencia os rumos da política setorial do governo para repercutir sobre a trajetória evolutiva do sistema. A nova lógica decisória que se instaura no setor irá convergir na direção de projetos hidrelétricos com escalas técnicas significativamente mais elevadas, percebidos como soluções mais eficazes no tocante a garantir uma oferta regular e confiável de energia elétrica, a custos mais reduzidos. Dela resulta a decisão de se construir a usina de Itaipu - então o maior empreendimento setorial do mundo -, cuja priorização espelha, em particular, os extraordinários avanços tecnológicos nas áreas de geração e transmissão de eletricidade. Por sua dimensão, a implantação do projeto terá expressivos efeitos externos sobre os arranjos organizacionais e produtivos do sistema, contribuindo não apenas para consagrar a sistemática do planejamento centralizado como, e principalmente, para impulsionar um salto qualitativo na institucionalização da operação interligada. A decisão de se construir a usina será formalizada em 1973, com a assinatura do Tratado de Itaipu, criando uma empresa binacional, constituída em partes iguais por Brasil e Paraguai, com o objetivo de implantar e operar o empreendimento. Tendo em vista sua escala produtiva - um mega aproveitamento hidrelétrico com potência instalada de 12.600 MW (Lima, 1995), que significava duplicar a capacidade do parque nacional de geração hidráulica (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, a viabilização do investimento estava condicionada a prévia garantia de mercado para dar vazão à produção. O equacionamento do problema implicava necessariamente radical incremento no intercâmbio de energia no âmbito do sistema, já que a empresa responsável pelo projeto atuaria apenas na atividade geradora, o que passava por novos e significativos avanços institucionais nos mecanismos de ordenamento e gestão da operação interligada. Isto se faz através da Lei nº. 5.899, promulgada em julho de 1973 pelo governo federal, especificando regras e procedimentos para a integração do sistema, que irão vigorar, com aperfeiçoamentos 325 introduzidos paulatinamente ao longo do tempo, até os anos noventa (Barbalho, 1995, depoimento; Marcondes Brito, 1995, depoimento). Conhecida como "Lei de Itaipu", tendo em vista sua estreita associação aos propósitos de se promover a adequação dos arranjos organizacionais e produtivos do sistema às necessidades e às consequências da construção da usina100, a nova legislação se fundamenta primariamente sobre a obrigatoriedade de aquisição da energia gerada pelo empreendimento. A vigência de um ambiente político autoritário, exacerbando a discricionaridade do poder central, permite ao governo federal imprimir caráter compulsório à absorção da futura produção do empreendimento e escapar aos riscos, incertezas e custos de uma solução negociada, que se prenunciava complexa, dada a diversidade de interesses envolvidos no processo. A opção pela via impositiva supunha a prévia especificação dos papéis a serem cumpridos pelas diversas empresas que fariam a transmissão e distribuição da energia gerada, bem como da natureza das relações entre as mesmas, num resultado que terá forte efeito estruturante sobre o modus operandi do setor. Por sua abrangência, os arranjos técnicos e operacionais moldados em função do projeto vão servir de balizamento geral para a interconexão do sistema, tanto sob a ótica organizacional quanto dos mecanismos de gestão, refletindo e ao mesmo tempo reforçando o processo incremental e adaptativo de mudanças na institucionalidade do setor. Em conformidade com a “divisão de trabalho” imbricada nas iniciativas setoriais do governo federal, os esquemas operacionais definidos para dar vazão à produção de Itaipu conferem às empresas estaduais o papel de distribuidoras finais de energia e, às federais, a responsabilidade pela transmissão e distribuição intermediária. Esses arranjos operacionais instrumentalizam e estimulam uma definição mais precisa de papeis para as empresas públicas na área, delineando o formato básico do arcabouço organizacional da operação interligada, cuja sedimentação se dará ao longo dos anos subsequentes. Por dispositivos da 100 Conforme Barbalho, 15 dos 17 artigos da lei "se referiam a (...) ou eram consequência da" implantação do projeto (1995, depoimento). 326 mesma Lei nº. 5.899, Chesf, Furnas, Eletrosul e Eletronorte são transformadas em empresas de âmbito regional, voltadas prioritariamente para a geração e transmissão de energia, com áreas de atuação não concorrentes e que, somadas, recobrem todo o território nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Eletrobrás, 1990). Imprimem-se, com as medidas, feições regionalizadas à interligação do sistema, tendo como suporte as empresas federais na condição de supridoras regionais de energia. São mudanças cuja efetividade supunha adequações simultâneas nos mecanismos de coordenação e gestão das atividades do setor. O aspecto essencial a reter aqui é que a reconfiguração organizacional proposta não assegurava mecanicamente a convergência de interesses necessária ao aproveitamento eficaz dos ganhos de eficiência no desempenho do sistema, instrumentalizados pela operação interligada101. Ao contrário, o êxito de qualquer esforço mais abrangente nessa direção não podia prescindir da definição de regras e instrumentos para administrar as influências recíprocas das atividades das empresas, que aumentavam a margem de riscos e incertezas na definição de suas estratégias de ação, e arbitrar os conflitos no tocante à repartição das vantagens e dos ônus decorrentes da integração operacional. Concessionárias estaduais, como Cemig, Cesp e outras não se sentiam aprioristicamente estimuladas a concentrarem suas ações no segmento de distribuição, ajustandose à especialização “desenhada” para as empresas federais, até porque estavam aparelhadas para atuar, e historicamente vinham atuando, nos segmentos de geração e transmissão. A experiência acumulada pelo setor, embora relativamente recente, mostrava com clareza a relação direta estabelecida entre o avanço da interligação do sistema e as dificuldades de harmonização dos interesses e ações das empresas implicadas no processo. A criação dos Comitês Coordenadores da Operação Interligada (CCOI's) - primeiro na região Sudeste, depois na região Sul 101 Tais ganhos envolvem aspectos como " melhor utilização dos recursos de geração, aumento da otimização energética, redução da reserva de potência por empresa" (Marcondes Brito, 1995, depoimento). 327 -, ocorrida na segunda metade dos anos sessenta, pode ser interpretada como uma primeira iniciativa especificamente voltada a lidar com o problema, representando um passo importante no sentido de instituir instâncias formais para a gestão da interdependência decisória102. Faltavam-lhes, contudo, a necessária capacidade de comando e mesmo de articulação para assegurar um meio associativo compatível com as exigências do funcionamento eficiente da operação interligada. Essa lacuna fica patente, em particular, nas dificuldades encontradas no encaminhamento de soluções para os problemas envolvendo Cemig e Chesf, ocorridos em 1971, decorrente da drástica redução das afluências do reservatório de Três Marias (Marcondes Brito, 1995, depoimento) e suas ressonâncias sobre os aproveitamentos a jusante do mesmo103. Ao multiplicar, numa escala sem precedentes, a integração operacional dos serviços de eletricidade, com a consequente elevação do potencial de conflitos no desenvolvimento das atividades do setor, a decisão de construir Itaipu acentua a urgência de se prover condições institucionais mais afins com a administração do jogo de interesses no âmbito do sistema integrado. É oportuno ressaltar, a propósito da questão, a natureza intertemporal das interferências provocadas pelo empreendimento, cuja implantação implicava um realinhamento geral dos planos de expansão das principais empresas concessionárias da região Centro-Sul. A percepção do problema motiva o governo federal a promover, através de dispositivos da Lei nº. 5.899, novos aprimoramentos nos mecanismos de gestão do funcionamento da operação interligada. Isto se materializa na substituição dos CCOI’s pelos Grupos Coordenadores para a Operação Interligada (GCOI’s), que se revestem de poder decisório e capacidade de mobilização de recursos técnicos e administrativos mais amplos. Constituem-se, 102 Como ressalta Marcondes Brito, “por intermédio dos CCOI’s tiveram início, de forma sistemática, estudos conjuntos (...) sobre a operação coordenada dos reservatórios e dos sistemas de transmissão” (1995, depoimento). 103 As divergências entre as duas empresas acerca da definição da vazão mínima a ser assegurada na operação da barragem acabaram gerando uma crise cuja resolução exigiu negociações entre os governos federal e estadual (Marcondes Brito, 1995, depoimento). 328 com os GCOI’s, compostos por representantes das empresas energéticas da região e do DNAEE, sob a coordenação geral da Eletrobrás, o núcleo básico de suporte institucional não apenas para o gerenciamento da interdependência das empresas, mas para a formulação e implementação do planejamento da expansão do setor. Regulamentados pelo Decreto nº. 73.102, de novembro de 1973 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), os GCOI’s espelham a natureza cada vez mais indissociada entre as esferas da regulação e da produção no âmbito de uma atividade crescentemente integrada e estatizada. Nos termos do decreto, suas atribuições incluíam, entre outras funções, “coordenar, decidir ou encaminhar as providências necessárias ao uso racional das instalações geradoras e de transmissão, existentes e futuras, nos sistemas elétricos interligados” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 211). O estabelecimento de vínculos estáveis e rotinizados entre empresas potencialmente concorrentes vem prover os requisitos mínimos de estabilidade e previsibilidade sem os quais dificilmente se conseguiria levar a termo a implementação da sistemática de planejamento setorial de longo prazo, institucionalizada por força da Lei nº. 5.899104. Estrutura-se, a partir de então, um esquema operacional relativamente sólido e consistente para a definição dos planos de expansão do setor, fundado no atendimento dos requisitos energéticos de mercado com base nos custos marginais de longo prazo (Pinguelli, 1998) e na concentração das decisões relativas à arbitragem dos novos investimentos em órgãos colegiados que congregam empresas geradoras e distribuidoras, representados pelos GCOI’s105. Essa transição para a racionalidade sistêmica imbricada na nova sistemática de planejamento, por sua vez, fomenta outras adequações na institucionalidade do setor. 104 Pelo artigo 15 da referida lei, a Eletrobrás deveria submeter à apreciação do Ministério das Minas e Energia o plano de obras necessárias ao atendimento das necessidades energéticas das regiões Sul e Sudeste até o ano de 1981, bem como a extensão deste mesmo plano até o ano de 1990. O primeiro produto tinha, como prazo de execução, dezembro de 1973, e o segundo, dezembro de 1974 (Barbalho, 1995, depoimento). 105 Os GCOI’s serão posteriormente substituídos pelo Grupo Coordenador de Planejamento dos Sistema Elétricos (GCPS), instituído na década de oitenta (Lima, 1995). 329 A primeira, e mais importante, consiste na equalização das tarifas de energia, rompendo com os diferenciais de preços entre empresas ou áreas de concessão, advindos da aplicação dos mecanismos tarifários herdados do Código de Águas. Subproduto da integração operacional do sistema, a crescente desvinculação entre geração e distribuição de energia tende a subverter a consistência técnica de regras tarifárias concebidas em função de áreas de mercado segmentadas, sob controle monopolístico de empresas verticalmente integradas. Sua revisão pode ser vista como um desdobramento lógico dentro de uma dinâmica de progressivo aperfeiçoamento institucional. Numa circunstância onde se introduz o intercâmbio de energia mas não a concorrência – os acordos operacionais são constituídos com base em despacho e planejamento centralizado – a padronização das tarifas emergia, sob a ótica técnica, como solução mais adequada a ser adotada, à medida que simplificava enormemente a gestão do processo. No entanto, a despeito de a concepção regionalizada do sistema interligado sugerir tarifas também regionalizadas, a opção governamental acaba recaindo na unificação de preços. Trata-se, aqui, de escolha influenciada, mais uma vez, pela subordinação da política setorial à estratégia desenvolvimentista seguida pelo II PND, onde se enfatizava a desconcentração industrial (Baer, 1996; Lima 1995): a unificação funcionava como fator de neutralização dos impactos potencializados por diferenciais no custo da energia elétrica no espaço sobre a decisão locacional das plantas industriais, de particular relevância no caso do segmento eletrointensivo. A regulamentação operacional da política de equalização tarifária se deu através do Decreto-lei nº. 1.383, de dezembro de 1974, instituindo a Reserva Global de Garantia (RGG), “instrumento que processava a transferência de recursos das concessionárias superavitárias para as deficitárias, de forma a que a remuneração de cada empresa se situasse em torno da remuneração média do setor” (Lima, 1995: 123). Pelo mesmo decreto, foram especificados os critérios de contribuição das empresas para a Reserva Global de Reversão (RGR), constituída com propósitos de reforçar a geração própria de recursos do sistema no financiamento de sua expansão produtiva (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). 330 A segunda inovação guarda relação com o financiamento da geração térmica, e se materializa nas denominadas Contas de Consumo de Combustível (CCC’s). Embora sem competitividade, via custos, com a geração hidráulica, a geração térmica representava, ainda assim, um instrumento importante para os propósitos de racionalização dos investimentos produtivos na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Em termos mais específicos, a construção de usinas térmicas contornava a necessidade de sobreinvestimentos na geração hidráulica para manter uma reserva de segurança capaz de assegurar a confiabilidade do suprimento energético, compensando as variações sazonais de produção advindas do ciclo hidrológico. Instituídas pelos Decreto-lei nº. 73.102, anteriormente citado, as CCC’s constituem uma espécie de mecanismo de socialização dos custos “extras” incorridos com a geração térmica, redistribuindoos entre as empresas participantes do sistema integrado. Do processo resulta a elaboração do Plano de Atendimento dos Requisitos de Energia até 1990, conhecido como Plano 90, que, de certa forma, condensa os avanços institucionais, técnicos e metodológicos obtidos ao longo de uma trajetória aberta em meados dos anos sessenta com os trabalhos pioneiros realizados pela Canambra. Editado em dezembro de 1974, o plano define a programação de investimentos em geração e transmissão de energia necessários ao suprimento dos mercados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste até o final da década de oitenta, adotando uma abordagem sistêmica na priorização dos novos projetos. Além da consolidação, de fato, da Eletrobrás como agência de planejamento do setor, o que, vale lembrar, ocorre cerca de duas décadas após o envio da proposta de sua criação à apreciação do Congresso, instaura-se um modelo centralizado de gestão do desenvolvimento da atividade que tem, como premissas básicas, a confiabilidade e a continuidade no suprimento de energia, de um lado, e a otimização sistêmica no aproveitamento dos recursos produtivos, de outro. O primeiro aspecto significa o atrelamento do planejamento setorial a projeções do crescimento da demanda dos mercados regionais de energia, que informam a necessidade e a oportunidade 331 da implantação de novos empreendimentos de geração elétrica, bem como a destinação final da produção. O segundo se traduz na adoção do custo mínimo de suprimento como critério básico para a ordenação e seleção dos projetos de geração (Eletrobrás, 1991). A aplicação desses critérios converge para a proposição de um pesado programa de investimentos na ampliação da potência instalada do país, fundado na prevalência de plantas geradoras de grande porte, cuja implementação terá expressivos efeitos na dinâmica e nos arranjos organizacionais da atividade. 4.2 Planejamento centralizado e megaempreendimentos hidrelétricos: a nova racionalidade decisória do setor Referenciando-se nas diretrizes e metas estabelecidas pelo II PND para a economia brasileira, que projetava um crescimento do PIB à taxa média de 10% ao ano entre 1974 e 1979, e de, no mínimo, 8% ao ano entre 1979 e 1990, o Plano 90 traça uma programação de investimentos em geração de energia elétrica extremamente ambiciosa para o período 1974/90. Das projeções de crescimento da demanda de energia - 12% ao ano no período 1975/80 e 10% ao ano no período 1980/90 -, cruzadas com a capacidade instalada do sistema, resulta a definição das necessidades de expansão da oferta, estimada em 30.000 MW até o final dos anos oitenta (Lima,1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O cumprimento dessa meta significava o desafio de implantar, em média, 2.000 MW ou o equivalente a duas usinas de Furnas por ano, conduzindo a novo salto no tamanho ótimo das plantas geradoras, que se desloca para patamar superior a 1.000 MW. Além da já citada usina de Itaipu, a programação de investimentos do plano compreendia expressivo conjunto de projetos de grande porte, distribuídos pelas diversas regiões (Quadro 7), instaurando de vez o ciclo dos megaempreendimentos hidrelétricos no país. 332 Quadro 7 Programação de Investimentos do Plano 90 – Projetos Selecionados Projeto Potência (MW) Empresa Responsável Tucuruí 4.000 Eletronorte Sobradinho 1.050 Chesf Itaparica 2.500 Chesf Paulo Afonso IV 2.500 Chesf Itumbiara 2.100 Furnas Emborcação 1.000 Cemig Porto Primavera 1.800 Cesp Salto Santiago 2.000 Eletrosul Ilha Grande 2.000 Eletrosul Foz do Areia 2.500 Copel 22.440 - Total Fonte: Plano 90. Eletrobrás, 1974 Dos 30.000 MW de acréscimo na capacidade instalada do parque hidrelétrico nacional, 22.440 MW, ou 74,8% do total, referiam-se a empreendimentos com potência igual ou maior que 1.000 MW (Quadro 7). A parcela restante, 25,2% do total, correspondia quase que integralmente à entrada em operação de grupos geradores da hidrelétrica de Itaipu. São resultados que não deixam dúvidas quanto à opção pela implantação de usinas de grande porte como estratégia básica de expansão do setor. Além das plantas geradoras assumirem configuração regional, o processo construtivo se torna muito mais exigente em termos de capacidade de mobilização de recursos, com implicações sobre a “especialização” produtiva no âmbito da atividade. A conjunção desses fatores tende a restringir o universo de empresas geradoras a estatais federais e algumas poucas concessionárias estaduais, com as primeiras assumindo a liderança dos investimentos comparativamente às últimas. Dos dez principais projetos propostos no plano, excluindo-se Itaipu, sete são de responsabilidade de 333 empresas federais e apenas três correspondem às estaduais (Quadro 7). A adoção de uma racionalidade sistêmica atua no sentido de sancionar a “federalização” da geração de energia106 subjacente ao modelo organizacional que vinha sendo forjado pelas ações governamentais no campo institucional. Resultado e, ao mesmo tempo, instrumento da estratégia de otimização no aproveitamento dos recursos energéticos do país, a ampliação da escala técnica dos empreendimentos hidrelétricos ocorrida nos anos setenta altera, de forma substantiva, os parâmetros financeiros, os procedimentos técnicos e operacionais e as interferências sócio-ambientais dos investimentos produtivos do sistema. Sob a ótica financeira, o aspecto mais saliente é o salto na magnitude dos recursos exigidos na viabilização dos projetos setoriais, que crescem em relação direta com a ampliação da escala das plantas geradoras. Em conexão com os orçamentos mais vultuosos, a implantação dos investimentos passa a envolver horizontes temporais mais longos, já que as diferentes etapas do processo – elaboração e detalhamento do projeto de engenharia da obra, construção da barragem, enchimento do reservatório e entrada em operação da usina - demandam prazos que também crescem em relação direta com a escala do aproveitamento. Por fim, as interfaces dos empreendimentos com o meio ambiente em sentido amplo tornam-se muito mais abrangentes e intensas, ocasionando interferências que transitam do nível local para o nível regional e, em determinadas circunstâncias, nacional. São questões que potencializam efeitos laterais não negligenciáveis nos processos de formulação e implementação do planejamento da expansão do sistema, com repercussões dinâmicas sobre sua eficiência alocativa. 106 A participação conjunta do grupo Eletrobrás e da Itaipu Binacional nos investimentos setoriais passa de 32,6% em 1974, para 67,5% do total em 1979, enquanto a das concessionárias estaduais faz movimento inverso, caindo de 67,4% para 32,5% do total em igual período (Lima, 1995). 334 A substancial elevação dos custos globais de implantação dos aproveitamentos hidrelétricos, conjugada ao alongamento do período de construção da usina, que afeta a distribuição no tempo dos fluxos de dispêndio e de receita dos projetos setoriais, implicam a necessidade da realização de pesados aportes de recursos com previsão de retorno somente a longo prazo. Esse resultado tem efeitos retroativos sobre o potencial de autofinanciamento da atividade, criando uma espécie de “hiato de recursos” na implementação dos planos de expansão do sistema, trazendo, como subproduto, tendência a aumento da dependência de fontes de financiamento extra-setoriais. Tal tendência será circunstancialmente agudizada pelo impacto da queda real da tarifa média de energia, anteriormente comentada, sobre a receita operacional das empresas atuantes na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Oliveira, 1995). A conjunção desses fatores faz com que a participação dos recursos gerados pelo próprio setor na estrutura de financiamento de seus projetos de investimento decline de 51,1% do total em 1974 para apenas 31,8% do total em 1979 (Quadro 8), levando à adoção de medidas em duas direções principais, às quais vão se associar consequências não pretendidas nem antecipadas na dinâmica da atividade, típicas de processos designados pela literatura neoinstitucionalista de “recomposição do campo organizacional” (Powell, 1991). 335 Quadro 8 Estrutura de financiamento do setor elétrico brasileiro, por fonte de recurso, em anos selecionados Período: 1974/79 - % Recursos 1974 1975 1976 1977 1978 1979 Próprios 51,1 44,7 45,0 41,6 36,4 31,8 Orçamentários 19,7 21,7 14,7 10,5 10,2 6,1 Empréstimo/Financiamento interno 10,0 13,3 22,8 17,3 20,5 30,1 Empréstimo/Financiamento externo 19,2 20,3 17,5 30,6 32,9 32,0 Total 100 100 100 100 100 100 Fonte: Eletrobrás. Departamento de Estudos e Planejamento Econômico-Financeiro. Setor de Energia Elétrica: Fontes e usos de recursos, série retrospectiva 1967/1977 e 1978/1979. Extraído de Lima, J. L. Políticas de governo e desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos oitenta (1934-1984). Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995. A primeira guarda relação com a transferência de recursos interna ao sistema, através da aplicação dos mecanismos institucionais criados pelo Decreto-lei nº. 1.383, privilegiando as atividades de geração em detrimento das de distribuição. Essa transferência compulsória de recursos se dá no sentido das mais rentáveis para as menos rentáveis, o que afeta, com particular intensidade, as concessionárias com atuação nos mercados de consumo mais dinâmicos. Light e Cesp responderam, em conjunto, por 40% do total de recursos transferidos para a RGG até 1978, bem como por parcela também expressiva da CCC (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tal resultado constitui fator determinante na decisão do grupo de abandonar a prestação de serviços de eletricidade no país, concretizada com a venda, em 1979, de seus ativos e concessões para o governo federal, fechando o ciclo de nacionalização e, com ela, de estatização do setor. A segunda tem a ver com o papel crucial que a busca de fontes alternativas de financiamento assume na viabilização dos investimentos na expansão do parque gerador. Seguindo as diretrizes gerais da política 336 macroeconômica, a solução adotada para conciliar objetivos de crescimento acelerado da oferta de eletricidade com corrosão da capacidade de autofinanciamento do sistema apoia-se, numa escala muito acentuada, na contratação de empréstimos no exterior, tanto junto a agências oficiais de fomento, em especial o BIRD, quanto de instituições financeiras privadas (Quadro 8). Favorecida pela elevada liquidez do mercado internacional na segunda metade dos anos setenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), tal estratégia revelava-se satisfatória numa perspectiva temporal de curto prazo, suprindo necessidades financeiras mais imediatas relacionadas à implementação das obras programadas no Plano 90. O mesmo não se aplica, contudo, sob uma ótica de médio a longo prazo, à medida que contribui para a maior fragilização do padrão de financiamento do setor, tornando-o vulnerável face às condições de acesso aos recursos externos, sobre as quais não tinha nenhum poder de influência e que podiam assumir, como de fato assumirão, configuração adversa à sua utilização. A mudança na escala produtiva das plantas geradoras tem também implicações sobre a implementação propriamente dita dos investimentos do sistema e os resultados do planejamento setorial, em conexão à ampliação no horizonte temporal de execução dos projetos, que salta para cerca de oito anos, em média (Eletrobrás, 1994). Como as decisões referentes à construção das usinas passam a envolver prazos relativamente longos de maturação “até redundarem em aumento real de capacidade [produtiva], faz-se necessário (...) uma ação coordenada que promova, em tempo hábil, correções e adaptações nos planos de expansão, em decorrência de alterações importantes nas suas premissas fundamentais” (Eletrobrás, 1994: 26). Em termos mais específicos, o alargamento do tempo requerido na implantação do empreendimento aumenta seu grau de exposição às contingências do contexto em sentido amplo e, consequentemente, a probabilidade de ocorrência de descompassos entre as ações planejadas e as exigências dos processos reais, tornando a realização de 337 ajustamentos um requisito operacional para o êxito na eficiência alocativa do sistema. No entanto, promovê-los em tempo hábil não depende apenas e tão somente do desempenho eficaz de uma ação coordenadora, qualquer que seja a configuração e conteúdo objetivo desta. Ao contrário, as condições e características técnicas dos novos empreendimentos hidrelétricos introduzem um elemento de rigidez ou inflexibilidade no tocante a revalidação de hipóteses e projeções e a correlata correção de rotas, dificultando sobremodo adaptações e ajustes nas metas e ações planejadas. Dado o porte ou escala produtiva das usinas projetadas, as oportunidades para introduzir mudanças na programação original se concentram, a rigor, na fase que antecede o início propriamente dito da construção da barragem, a partir da qual sua implantação torna-se quase que irreversível. Paralisações ou atrasos na execução da obra tendem a implicar, de um lado, ônus financeiro para a empresa responsável, refletindo o custo de oportunidade dos recursos já aplicados no projeto e, de outro, a elevação do custo final do investimento e, por extensão, da energia a ser gerada, tendo em vista gastos extras provocados pela ruptura do encadeamento ou sequência ótima dos vários eventos e ações que compõem o processo construtivo. Às questões anteriores vem se somar a ocorrência de uma mudança quantitativa e qualitativa nas interferências ocasionadas pelas plantas geradoras no meio em que se inscrevem, especialmente na dimensão sócio-econômica. A construção de empreendimentos hidrelétricos de grande porte, como mostra ampla literatura especializada (Broeckelman, 1979; Barros, 1983, 1984; Pimentel Filho, 1987; Santos Filho, 1987; Duqué, 1984; Sigaud, 1988; Daou, 1988; Germani, 1992), desencadeia uma série de transformações no quadro natural e nas relações sociais e produtivas de um espaço territorial relativamente extenso, que tem, como núcleo central, a área ocupada pelo reservatório da barragem e 338 entornos107. São impactos de grande magnitude e complexidade que, a despeito de antecipados por Furnas e Três Marias, mantêm-se praticamente à margem de considerações formais na sistemática de planejamento e nos processos decisórios do sistema. Não se trata, contudo, como pode parecer à primeira vista, de resultado fortuito ou circunstancial, mas que guarda estreita relação com uma postura institucional pautada por critérios estritos de eficiência econômica. Como reconhece a própria Eletrobrás, “a estratégia dominante no setor (...) à época consistia na minimização dos custos de expansão do sistema de suprimento (...) e voltava-se principalmente para aspectos associados aos objetivos precípuos dos empreendimentos, implicando, por consequência , na maximização de benefícios também fundamentalmente setoriais” (1990: 135). A minimização de custos supunha considerar como externalidade todo e qualquer efeito sócio-ambiental ocasionado pelas plantas hidrelétricas cujo equacionamento não fosse requisito ou condição à sua viabilização. A ênfase nos objetivos setoriais levava a uma racionalidade excludente, caracterizada pela ausência, no processo de tomada de decisões, de qualquer compromisso com os diferentes interesses econômicos, sociais e culturais incrustados na área de influência dos projetos hidrelétricos que pudessem trazer ônus para o empreendedor. Vale dizer, a opção por plantas geradoras de grande porte estava alicerçada numa visão restrita de eficiência alocativa, que não contabilizava uma ampla gama de custos “indiretos” associados aos investimentos do setor. Esse tipo de tratamento conferido aos impactos sócio-ambientais transparece com clareza na postura da Chesf quando da implantação da usina de Sobradinho. Como registra Sigaud (1988), a empresa tinha prévio conhecimento 107 Como descrito no capítulo anterior, a inundação de terras e o represamento de rios rompem com o equilíbrio sistêmico preexistente, produzindo modificações hidrológicas, climáticas e geológicas, com repercussões na fauna e flora. A construção da obra e a liberação da área exigida pelo empreendimento, por sua vez, desarticulam atividades econômicas, assentamentos humanos e padrões sócio-culturais historicamente estabelecidos, induzindo uma reestruturação compulsória e radical das formas de ocupação do espaço em nível local e regional. 339 da natureza e magnitude dos distúrbios que o empreendimento poderia provocar na área do reservatório da barragem e entorno108, até porque haviam sido abordados nos estudos desenvolvidos em função da elaboração do projeto executivo da obra. No entanto, isto por si só não foi suficiente para que se sentisse responsável pelo encaminhamento de ações voltadas a, pelo menos, minimizar os efeitos perversos incidentes sobre as famílias diretamente afetadas pelo processo construtivo, como atesta correspondência do então diretor de obras da Chesf à presidência da Eletrobrás. Nela, " depois de chamar a atenção para as implicações da obra em termos de inundação da área agricultável e portanto da eliminação da base da economia da região, [tal diretor] exorta os Poderes Públicos a prestarem solidariedade e assistência à população" , sem a qual dificilmente se evitaria, como de fato ocorreu, " sua emigração desordenada e consequente marginalização" (Congresso Nacional, 1983: 67; citado por Sigaud, 1988: 95). Os procedimentos adotados no âmbito da construção da usina de Itaipu vão na mesma direção, o que permite afirmar que a exclusão dos interesses extra-setoriais afetos à implantação dos aproveitamentos hidrelétricos nos processos decisórios do setor constituía regra e não exceção. De fato, como mostram análises desenvolvidas sobre o tema, " todo o projeto da maior usina hidrelétrica do mundo foi estudado, montado, negociado e sacramentado sigilosamente, sem levar em conta os interesses de uma população diretamente implicada" (Germani, 1992: ), num processo que passa ao largo também das autoridades municipais e do governo do Paraná, que não conseguiram, conforme Santos Filho, "impor sua presença como interlocutores" (1987: 34) da empresa responsável pelo empreendimento. 108 Conforme Sigaud, para a formação do lago de Sobradinho, que ocupa uma área de 4.214 km2 e possui 350 km de extensão, " foram parcialmente inundadas terras dos municípios de Juazeiro, Sento Sé e XiqueXique, na margem direita do São Francisco, e de Casa Nova, Remanso e Pilão Arcado, na margem esquerda; quatro sedes municipais (...), dezenas de povoados e desalojadas aproximadamente 60.000 pessoas, segundo dados oficiais (...) ou 72.000, segundo dados da organização sindical dos trabalhadores rurais" (1988: 89). 340 Favorecida por circunstâncias favoráveis no tocante a aspectos relacionados ao mercado financeiro externo, evolução do consumo de energia elétrica e enquadramento institucional das interferências sócio-ambientais dos projetos hidrelétricos, a estratégia de expansão acelerada do parque gerador brasileiro traçada para o período 1974/79 pelo Plano 90 pode ser considerada bem sucedida. A ampliação de usinas já construídas, como Paulo Afonso, Peixoto, Porto Colômbia e Ilha Solteira, de um lado, e a conclusão das obras e instalação de grupos geradores em usinas como Sobradinho, Salto Osório, Marimbondo, Itumbiara, São Simão e Foz do Areia, de outro, deram suporte ao cumprimento das metas estabelecidas pela programação setorial. A capacidade instalada de geração hidráulica do país passa de 13.740 MW em 1974 para 24.095 MW em 1979 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), significando um incremento à taxa média de 11,9% ao ano, no mesmo patamar da projeção de crescimento da demanda feita para igual período, anteriormente citada. As variáveis contextuais que contribuíram para o desempenho satisfatório, contudo, começam a se alterar ao final dos anos setenta, vindo a assumir configuração bastante adversa nos anos oitenta, o que irá repercutir, em profundidade, na dinâmica alocativa do setor. Inconsistências técnicas na ação planejadora da Eletrobrás, dificuldades de mobilização de recursos e adensamento político e social da reação aos impactos ocasionados pelos processos construtivos das barragens se conjugam para fragilizar as bases de sustentação de uma racionalidade sistêmica alicerçada na centralização decisória e financeira. 5. Crise e esgotamento do modelo institucional desenhado nos anos sessenta e setenta Enquanto o país teve acesso a financiamentos implementação da programação proposta no II PND externos, a assegurou um patamar bastante razoável de expansão do produto nacional, que cresce, em média, cerca de 7% ao ano ao longo do período 1974/79 (Baer, 1996). Ao final da década, no entanto, a instabilidade provocada por nova e acentuada elevação dos preços do 341 petróleo, seguida pouco à frente, pelo aperto de crédito e elevação da taxa de juros liderados pelo governo americano (Skidmore, 1998) tornam o mercado financeiro internacional restritivo à concessão ou renovação de empréstimos à economia brasileira, face ao alto grau de endividamento e, por extensão, de risco apresentado pelo país (Feu Alvim, 1996; Gonçalves et al. , 1998; Baer, 1996). A incapacidade de superar, através de fontes “autônomas” de recursos, o estrangulamento determinado pelo estancamento do fluxo de capitais externos (Dain, 1986) resulta na retração da taxa de investimentos, pondo fim ao processo de desenvolvimento que se iniciara nos anos finais da década de sessenta. A crise de financiamento se dá num contexto caracterizado por fortes pressões inflacionárias e acentuado desequilíbrio nas contas públicas, estreitando o espaço de manobra do governo federal, especialmente no que se refere à gestão de suas ampliadas funções empresariais. O esgotamento estrutural da estratégia de crescimento sustentada nas empresas estatais (Fiori, 1992) e a necessidade impostergável de recuperar a estabilidade macroeconômica vão induzir um redirecionamento dos rumos da política pública ao longo dos anos oitenta, moldando uma trajetória que convergirá gradativamente para uma agenda de reforma do Estado e de suas relações com o mercado, em conexão à reintrodução de uma institucionalidade democrática. As atividades elétricas não escapam aos efeitos desagregadores do descenso cíclico da economia, que afetam em profundidade os fundamentos básicos do modelo organizacional e produtivo do setor construído a partir dos anos sessenta. A esses efeitos irão se somar, mais à frente, as implicações derivadas das mudanças introduzidas no enquadramento institucional das interferências sócio-ambientais dos empreendimentos hidrelétricos, que não apenas alteram os parâmetros da sistemática de planejamento da expansão do sistema como tornam muito mais complexa e onerosa a viabilização dos novos projetos de geração. 342 5.1 O ajuste recessivo e a fragilização do planejamento setorial A conjunção do esgotamento da política anticíclica delineada pelo II PND, no front interno, com a deterioração do ambiente financeiro catalisada pelo segundo choque do petróleo109, no front externo, motiva a Eletrobrás a promover, ao final do anos setenta, um ajuste na programação de investimentos na expansão do sistema, o que se traduz na elaboração do Plano de Atendimento aos Requisitos de Energia Elétrica até 1995, editado em 1979. Conhecido como Plano 1995, o documento consolida os “aspectos mais relevantes dos projetos em construção e em estudos” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 213) pelo setor, mas não introduz modificações de fundo nas diretrizes nem nas metas definidas no âmbito do Plano 90, até porque os empreendimentos de maior escala produtiva, incluindo Itaipu, Tucuruí e Itumbiara, já se encontravam em construção. Os longos prazos de maturação de tais projetos, como comentado anteriormente, criavam uma relativa inflexibilidade no corte ou redução dos investimentos, face aos elevados custos a serem incorridos na hipótese da desmobilização, ainda que parcial, do canteiro de obras, tendo em vista compromissos contratuais assumidos com empresas prestadoras de serviços e com a aquisição de máquinas e equipamentos. Essas dificuldades operacionais defrontadas na promoção de revisões mais abrangentes no processo construtivo das usinas terão implicações em duas direções principais, com efeitos retroativos sobre a consistência e a viabilidade técnico-financeira dos objetivos e metas globais estabelecidos pelo planejamento setorial. A primeira guarda relação com o descolamento entre o ritmo de crescimento da capacidade instalada do parque gerador e o do consumo de eletricidade. A segunda, com o descompasso entre os requisitos de financiamento do setor e sua efetiva capacidade de mobilizar recursos, próprios ou externos ao mesmo. 109 Em 1979, a OPEP promoveu uma nova alta dos preços internacionais do petróleo, ainda mais significativa que aquela ocorrida em 1973, convencionalmente designada como “segundo choque do petróleo”. 343 A deterioração dos principais indicadores macroeconômico internos110, herança do esforço de investimento empreendido no âmbito do II PND, e as crescentes adversidades na área externa - evolução desfavorável nas relações de troca e substancial elevação da taxa de juros, agravadas com a moratória mexicana de 1982 (Bacha, 1988; Baer, 1996) - , levam o novo governo que assume o Executivo federal na transição dos anos setenta, comandado pelo Gal. João Batista de Figueiredo, a reorientar os rumos da política pública. A agenda desenvolvimentista dá lugar ao ajuste estrutural da economia, em sintonia com os preceitos e recomendações emanadas do Fundo Monetário Internacional (Negri, 1996; Cruz, 1997; Skidmore, 1998). Dessa inflexão imposta à política governamental (Bresser Pereira, 1996; Baer, 1996; Gambiagi e Além, 1999) irá resultar a mais profunda recessão experimentada pelo país em sua história contemporânea, traduzida em variação negativa do PIB da ordem de 4,5% em 1981, aumento de 0,5% em 1982 e novo decréscimo em 1983, de 3,5% (Baer, 1996). Fruto de decisões tomadas na década anterior, a geração de energia elétrica apresenta, em igual período, comportamento oposto, com taxas anuais de crescimento de, respectivamente, 13,5%, 4,4% e 6,6% sobre o total (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A perda de dinamismo da demanda, de um lado, e a expansão sustentada da oferta de eletricidade, de outro, tendem a desembocar em capacidade ociosa do sistema (Lima, 1995, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Essa situação de “excesso” de potência instalada do parque gerador será circunstancialmente aproveitada pelo governo federal para introduzir uma série de subsídios tarifários afinados com os propósitos da política de ajuste econômico, mais especificamente, a substituição industrial de insumos energéticos importados, caso do petróleo, e o aumento da competitividade das atividades exportadoras. São introduzidas, assim, várias tarifas especiais – as denominadas Energia Excedente para a Produção de Bens de Exportação 110 Aceleração da inflação, que parte de 34% em 1974 para 56% em 1979, atingindo 110% em 1980; crescimento acelerado da dívida externa, que salta de US$ 17,2 bilhões em 1974 para US$ 49,9 bilhões em 1979, e US$ 53,8 bilhões em 1980 (Baer, 1996). 344 (EPEX), Energia Excedente para a Substituição de Petróleo (ESBT) e Energia Garantida por Tempo Determinado (EGTD), todas datadas de 1982, às quais vêm se somar, a partir de 1984, outras duas, designadas como Energia Firme para Substituição (EFST) e Energia Temporária para Substituição (ETST) -, que chegavam a proporcionar, em determinadas situações, descontos de até 90% do valor original a ser pago (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). Consumo relativamente estagnado e concessão de subsídios via tarifas especiais vêm reforçar os efeitos perversos decorrentes da redução do valor real da tarifa média dos serviços de eletricidade, decorrente da política de estabilização de preços adotada nos anos finais da década de setenta111, sobre a receita operacional do sistema (Lima, 1995). Na tentativa de dar continuidade a projetos em andamento, o setor redobra os esforços no sentido de manter o aporte de recursos extra-setoriais, via contratação de financiamentos, o que tende a agravar ainda mais o seu já precário equilíbrio econômico-financeiro. A combinação de endividamento crescente com elevação das taxas de juros nos mercados interno e externo (Baer, 1996; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996) leva a que os recursos obtidos através da contratação de novos empréstimos acabem sendo esterilizados com o pagamento do serviço da dívida contraída nos anos anteriores (Quadro 9). É ilustrativo da gravidade da situação o fato de, em 1983, os desembolsos relacionados à dívida ficarem acima do valor dos financiamentos, respectivamente, 48,0% do total dos dispêndios e 43,0% do total das receitas (Quadro 9). 111 Ressalte-se, a propósito da questão, que desde 1977 a prerrogativa para a fixação das tarifas públicas de um modo geral, entre elas as tarifas elétricas, foi transferida para a esfera decisória do Ministério da Fazenda (Camozzato, 1995, depoimento). 345 Quadro 9 Fontes e Usos dos Recursos do Setor Elétrico Brasileiro, em Anos Selecionados Período: 1979/84 - % Especificação 1979 1980 1981 1982 1983 1984 Total de Recursos 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Próprios 49,9 47,6 55,6 53,0 57,0 37,1 Empréstimo/Financiamento 50,1 52,4 44,4 47,0 43,0 62,9 Total de Usos 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Investimentos 69,2 61,8 64,6 60,7 51,7 40,9 Serviço da Dívida 30,1 37,3 35,0 38,7 48,0 50,4 Outras Aplicações 0,7 0,9 0,3 0,6 0,3 8,7 Fonte: Eletrobrás, Setor de Energia Elétrica: fontes e usos de recursos. Série retrospectiva, vários anos. Extraído de Lima, J. L. Políticas de governo e o desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos 80 (1934-1984). Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995. A recessão que se instaura nos anos iniciais da década de oitenta, tornando irrealistas as projeções de incremento do consumo de eletricidade, e a fragilização crescente do padrão de financiamento do sistema, criando dificuldades na viabilização dos investimentos previstos, se conjugam para provocar a obsolescência precoce do Plano 95. Assim, em 1982, isto é, cerca de três anos após sua promulgação, a Eletrobrás lança o Plano de Atendimento dos Requisitos de Energia Elétrica até 2000, conhecido como Plano 2000. Como não poderia deixar de ser, esse novo esforço de planejamento caracteriza-se pela preocupação de ajustar as metas de expansão do parque gerador à conjuntura recessiva da economia brasileira e às restrições financeiras então enfrentadas pelo setor, através do adiamento da implantação de determinados projetos e da ampliação do prazo de execução de outros. A realização de ajustes na programação anteriormente prevista, contudo, suscita disputas entre as principais 346 empresas energéticas em torno da defesa de seus investimentos, criando dificuldades na definição das metas e, consequentemente, dos projetos a serem remanejados. Num resultado que denota os limites operacionais dos mecanismos institucionais de negociação estabelecidos e, especificamente, da capacidade de coordenação da Eletrobrás, a reprogramação feita no âmbito do Plano 2000 tende a contemplar investimentos que só se justificavam em função de projeções otimistas ou pouco realistas de incremento da demanda112 e que se revelavam pouco plausíveis face à efetiva capacidade de mobilização de recursos do setor (Camozzato, 1995, depoimento), traduzindo uma acomodação tática da lógica sistêmica aos conflitos de interesse interempresariais. As fraturas abertas num processo decisório que se alicerçava sobre premissas eminentemente técnicas atuam no sentido de solapar a consistência e a eficácia operacional do planejamento setorial. A contraface da definição de metas e prioridades de investimento incongruentes com os requisitos da demanda de eletricidade e sem o necessário suporte financeiro será a materialização de problemas no cumprimento da programação proposta. Decisões estratégicas que deixaram de ser tomadas quando da elaboração do plano acabaram, na prática, sendo transferidas para o momento de sua operacionalização, onde não havia como escapar ao enfrentamento do problema da insuficiência da base de financiamento. Fazendo valer sua competência institucional de deliberar sobre a aplicação de recursos públicos na área, a Eletrobrás confere prioridade às usinas de Itaipu e Tucuruí – empreendimentos em estágios relativamente avançados de construção -, o que evidentemente dificulta a implementação de outros projetos também programados. Conforme Camozzato, “toda vez que se tentava fechar os recursos, após o exame das despesas e de onde tirar as receitas, caía-se sempre na mesma situação: não se iniciavam novas obras porque não havia dinheiro. As que estavam em andamento continuavam, e as novas ficavam sempre para mais tarde” (1995, depoimento). 112 Conforme Camozzato, “previa-se um período de crise no qual o mercado cresceria a 2%, 3%, 4% ao ano; logo depois haveria um período de bonança, com taxas anuais de crescimento de 9%, que se estenderia até 1995; a partir de então, cairia para 6%” (1995, depoimento) 347 Essas mesmas dificuldades encontradas no financiamento de projetos tratados como prioritários estimulam também iniciativas voltadas a reforçar a centralização financeira no setor, que se materializam na introdução de alterações nos mecanismos compulsórios de transferência de recursos interna ao sistema. Como as empresas responsáveis pelos principais empreendimentos em construção não eram necessariamente as que “detinham maior capacidade de geração de recursos” (Lima, 1995, depoimento), o governo federal amplia a parcela da receita operacional da atividade cuja gestão ficava a cargo da Eletrobrás. Isto se faz através do Decreto nº. 1.849, datado de 1981, que altera de 3% para 4% a quota da Reserva Global de Reversão, e institui, em simultâneo, um patamar máximo de rentabilidade para as empresas energéticas, a ser fixado pelo DNAEE. Qualquer receita operacional que excedesse tal patamar de remuneração seria automaticamente incorporada à Reserva Global de Garantia, cujas regras de aplicação sofreram modificações de forma a assegurar plena autonomia decisória à Eletrobrás (Lima, 1995, depoimento; Camozzato, 1995, depoimento). A repartição desigual dos ônus e benefícios derivados da integração sistêmica expõe as contradições dos interesses internos ao setor e resulta na progressiva e rápida deterioração das relações entre as concessionárias estaduais, as empresas federais e a Eletrobrás. Reagindo às decisões discricionárias no tocante à alocação de recursos para investimentos em geração e às mudanças restritivas nas regras do jogo, um conjunto expressivo de empresas, formado sobretudo por concessionárias estaduais, não se sente comprometido a manter uma cooperação apriorística com os propósitos de eficiência no desempenho do sistema. De um lado, acordos de compra e venda de energia entre empresas geradoras e distribuidoras deixam de ser cumpridos por estas últimas, numa ruptura informal de contratos que conduz a taxas crescentes de inadimplência no âmbito da operação interligada (Lima, 1995, depoimento). Sem sanções efetivas ao não pagamento da energia adquirida, até porque a suspensão do fornecimento teria enorme repercussão social, já que 348 penalizaria os usuários do serviço, concessionárias menos rentáveis ou com problemas circunstanciais no financiamento de suas atividades recorrem, com frequência cada vez mais intensa, à utilização de tal expediente. De outro, condutas estratégicas defensivas passam a ser adotadas por parte das concessionárias mais rentáveis, com o intuito de minimizar a transferência de recursos a que estavam compulsoriamente submetidas, via RGR e RGG. Recorrendo novamente a Camozzato, “as empresas que apresentavam remuneração acima da média nacional começaram a manipular seus custos para não transferir dinheiro de seus estados para outros lugares. Graças a essa linha de ação, a Cemig e a Copel fizeram dois grandes programas de eletrificação rural”113 (...), o que constituía uma espécie de “investimento a fundo perdido porque a tarifa do consumidor não chega a 10% do custo de atendimento” (1995, depoimento). Preferem realizar investimentos que não dão retorno financeiro satisfatório e que atendiam ao interesse de grupos sociais relativamente reduzidos a cooperarem com a implementação de projetos de outras empresas e que atendiam, em princípio, ao interesse da sociedade como um todo. Além das dificuldades técnico-operacionais em proceder ao ajustamento das metas de expansão do sistema a um consumo de eletricidade que crescia menos que o projetado e em dar sequência às obras já iniciadas, a sistemática de planejamento setorial vai se defrontar, ao longo dos anos oitenta, com as transformações ocorridas no enquadramento institucional das interfaces dos empreendimentos hidrelétricos com o meio onde se inscrevem. Avanços no processo de redemocratização da vida política nacional e, principalmente, a definição de uma legislação ambiental e a montagem de um aparato burocrático para lidar com a questão alteram em profundidade a forma de tratamento das interferências sócio-ambientais das plantas geradoras. São mudanças que afetam a previsibilidade e o grau efetivo de controle do setor sobre o conjunto dos 113 O programa da Cemig envolveu recursos da ordem de US$ 400 milhões e o da Copel, US$ 250 milhões (Camozzato, 1995, depoimento). 349 eventos relevantes na formulação e implementação de seus programas de investimento, tornando muito mais complexo determinar o custo final de construção das usinas, que fundamentava a seleção e a priorização dos projetos de geração. Não se tratava mais apenas da viabilização econômico-financeira do investimento, mas também de sua viabilização sócio-política e ambiental, numa circunstância onde a segunda tem efeitos retroativos sobre a primeira. 5.2 A crescente importância das questões sócio-ambientais e os impactos nos processos decisórios do setor Apesar da crescente abrangência e intensidade dos impactos ocasionados pela construção das usinas hidrelétricas, a conduta estratégica adotada pelas empresas energéticas até meados dos anos setenta se pautava por evitar qualquer envolvimento ou compromisso com iniciativas que avançassem além da recomposição da infra-estrutura econômica e social afetada e da remoção da população residente na área de inundação da barragem. Em outras palavras, a percepção das interferências sócio-ambientais decorrentes da obra e a correlata proposição de ações voltadas ao seu equacionamento refletiam a nítida proeminência dos interesses setoriais sobre os interesses locais e regionais atingidos pela implantação das plantas geradoras. Pode-se dizer, a esse respeito, que a abordagem institucional da questão continuava centrada muito mais nas interferências do meio sobre os empreendimentos do setor que propriamente dos empreendimentos sobre o meio. É somente com a implantação dos grandes projetos geradores da década de setenta – como Itaipu, Tucuruí e Sobradinho - que a problemática sócio-ambiental passa a adquirir maior relevância na sistemática decisória do setor. A magnitude das interferências ocasionadas pelos empreendimentos hidrelétricos sobre o meio em sentido amplo, de um lado, e a reação cada vez mais intensa e organizada dos segmentos sociais diretamente atingidos pelo processo construtivo das barragens, de outro, suscitam problemas operacionais de crescente complexidade, cuja “resolução” encontra dificuldades de se moldar à 350 práxis seguida pelo sistema. Embora o “critério de liberação das áreas em prazo hábil [consoante o cronograma da obra] pelo menor custo” (Eletrobrás, 1991: 100) continue preponderante, as empresas se vêem pressionadas na direção da adoção de medidas indenizatórias ou compensatórias mais afinadas com as aspirações, interesses e necessidades dos segmentos sociais atingidos, especialmente aqueles submetidos ao deslocamento compulsório das terras que ocupavam. Em simultâneo, começa a ficar evidente para o setor que os procedimentos convencionais de abordagem da questão não asseguravam necessariamente a pretendida minimização dos custos indiretos dos projetos, à medida que impactos tratados de forma inadequada ou insuficiente podiam reaparecer, como de fato vinham reaparecendo, “de maneira agravada ao longo da implantação (...) [da obra], implicando (...) custos efetivos (...) maiores que aqueles que teriam que ser enfrentados caso tais problemas fossem identificados, computados e equacionados nos momentos oportunos” (Eletrobrás, 1990: 135). As mudanças na percepção e na conduta estratégica das empresas energéticas face à problemática ambiental vão se acelerar nos anos oitenta, refletindo transformações em aspectos relevantes do contexto, que restringem enormemente a margem de autonomia decisória que dispunham até então. A primeira e mais importante dessas transformações se passa no campo institucional, com a definição de uma legislação ambiental abrangente e avançada, em sintonia com padrões internacionais, e do correspondente aparato burocrático para zelar por seu cumprimento. Dentre outras inovações determinadas pelo novo estatuto legal, destaca-se a exigência de prévio licenciamento ambiental114 para a implantação de projetos com efeitos potencialmente significativos sobre o meio. A segunda tem a ver com o avanço do 114 De acordo com definição da Eletrobrás, “o licenciamento ambiental é, em suma, um procedimento administrativo através do qual o poder público, estadual ou federal, no desempenho de poder de polícia administrativa, exige dos interessados em desenvolver atividade potencial ou efetivamente poluidora a elaboração dos estudos de impacto ambiental. Em contrapartida, entendendo os órgãos licenciadores que a obra não causará substanciais desequilíbrios ecológicos, outorgará ao interessado as licenças ambientais cabíveis” (1991: 40). 351 processo de democratização da sociedade brasileira, que contribui para a maior ressonância e efetividade na aplicação dos dispositivos regulatórios instituídos. Vale dizer, se a exigência de licenciamento tornava o processo de formulação e implementação dos investimentos setoriais mais permeável à injunção de interesses extra-setoriais, o ambiente democrático cria condições mais favoráveis a que isto de fato viesse a ocorrer. O salto de qualidade no tocante à regulação ambiental no país será dado pela promulgação, em 1981, da Lei nº. 6.938, instituindo a “política nacional do meio ambiente”, que vem consolidar proposições e iniciativas anteriores em tal direção. Definem-se, no âmbito da nova legislação, normas, procedimentos e instrumentos operacionais com vistas à preservação, recuperação e proteção ambiental, bem como critérios para a especificação das atividades poluidoras ou degradadoras do ambiente, entre as quais se inscrevem os investimentos em geração e transmissão do setor elétrico. Os avanços institucionais no tratamento da questão, contudo, somente irão adquirir efetividade operacional já na segunda metade dos anos oitenta, quando são prescritas regras para a sistemática de licenciamento ambiental. Isto se faz através de uma série de resoluções editadas em 1986 pela Comissão Nacional do Meio Ambiente (Conama), regulamentando os dispositivos e instrumentos jurídicos anteriormente introduzidos (Eletrobrás, 1991). Em paralelo aos avanços jurídico-institucionais, a crescente sensibilidade da sociedade brasileira para as questões sócio-ambientais, a pressão de organismos financiadores externos, em especial o BIRD, e principalmente a mobilização dos segmentos populacionais atingidos pelos empreendimentos hidrelétricos em torno de maior participação nas decisões relativas à desocupação das áreas requeridas pelas construções das barragens já vinham provocando alterações gradativas na postura das concessionárias do setor. O processo de implantação da usina de Itaparica, deflagrado pela Chesf em 1975, ilustra bem a dinâmica de tais mudanças. Ao contrário do que se passa na construção da usina de Sobradinho, que se iniciara poucos anos antes, onde não 352 apenas impôs os valores a serem pagos a título de indenização como excluiu a sociedade local de qualquer participação mais efetiva na definição dos projetos e ações relacionados ao seu remanejamento para outras áreas, “em Itaparica a empresa assumiu – ainda que com atraso – responsabilidades amplas pelo destino das populações sujeitas à remoção compulsória” (Eletrobrás, 1991: 102), num resultado que reflete a mobilização destes grupos sociais, com o importante apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais da região (Eletrobrás, 1991). É, contudo, no sul do país que a organização dos segmentos populacionais impactados em torno da defesa de seus interesses assume contornos mais sólidos, emblematizados na criação da Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB), levando as empresas a buscarem soluções negociadas como requisito mesmo à viabilização de seus empreendimentos. O acordo entre a Eletrosul e a CRAB, especificando as ações e os procedimentos referentes à indenização e ao remanejamento das famílias que seriam atingidas pela construção da usina de Itá, celebrado em 1987 após um longo período de discussão (Souza, 1995; Nutti, 1995; Eletrobrás, 1991), pode ser considerado como um marco na transição para uma nova forma de tratamento das questões sócio-ambientais, internalizando de vez os interesses locais nos processos decisórios do setor. Dentre outras consequências, interessa ressaltar aqui as implicações que isto tem para a sistemática de planejamento e o processo decisório da atividade. Um primeiro e importante aspecto guarda relação com os gastos incorridos na formulação e implementação dos projetos hidrelétricos, que não apenas passam a incorporar novos elementos de despesa como sofrem alterações no desembolso com itens já previstos na programação orçamentária. A realização dos estudos de impacto necessários ao licenciamento ambiental da obra e, sobretudo, o alargamento do escopo das medidas adotadas com o intuito de evitar ou minimizar as interferências negativas dela decorrentes conduzem inevitavelmente a uma elevação dos custos de construção das plantas geradoras. Um segundo aspecto, não menos importante, tem a ver com o aumento da 353 margem de riscos e incertezas na implantação propriamente dita dos empreendimentos setoriais. A viabilização sócio-ambiental supõe negociações com as agências reguladoras dos estados e, ao mesmo tempo, amplifica a exposição do projeto a ingerências de interesses extra-setoriais direta ou indiretamente afetos ao problema, cuja resultante nem sempre pode ser antecipada com um grau razoável de precisão. Se a viabilidade do investimento não for comprometida, não há como escapar ao alongamento do horizonte temporal de sua realização, que se torna contingente de uma série de fatores sobre os quais a empresa responsável não exerce maior controle. 6. Crise e esgotamento do modelo de planejamento centralizado no setor O setor elétrico brasileiro apresentou, como visto, um período de forte crescimento a partir da segunda metade dos anos sessenta, que resultou numa atividade estatizada e integrada em âmbito nacional, consolidando tendências cujas origens remetem ao pós guerra. Esse crescimento se apoia numa série de iniciativas implementadas pelo governo, voltadas à adequação do aparato estatal para o desempenho de suas ampliadas funções empresariais na área, de um lado, e na conjunção de circunstâncias favoráveis do contexto, de outro. Na primeira vertente, destacam-se a efetiva estruturação da Eletrobrás enquanto agência de planejamento e coordenação da expansão do sistema, a instituição de novos mecanismos de financiamento aos investimentos em geração e transmissão de eletricidade e a promoção da interligação operacional dos serviços prestados pelas empresas concessionárias. Na segunda, os aspectos mais importantes são o forte incremento da demanda por energia elétrica, espelhando a intensificação dos movimentos de industrialização e de urbanização nos anos setenta, e as facilidades na obtenção de recursos extra-setoriais proporcionadas por fontes de financiamento externas, envolvendo não só organismos oficiais de fomento, mas também agências financeiras privadas. Fruto de decisões que vão sendo tomadas ao longo do percurso, balizadas por oportunidades e constrangimentos que refletem resultados de 354 escolhas feitas anteriormente e transformações circunstanciais em aspectos relevantes do contexto, a estatização do setor implica muito mais que o redesenho do perfil das empresas atuantes na área. A reconfiguração que se processa no campo organizacional da atividade envolve também profundas mudanças em seus arranjos produtivos e em sua lógica de funcionamento. O sentido básico de tais mudanças é a adoção de uma racionalidade sistêmica na promoção de investimentos na expansão do parque gerador, voltada a assegurar uma oferta regular e confiável de energia elétrica ao menor custo possível para o usuário do serviço. Isto supunha a centralização decisória e de comando, o que irá instaurar de vez a prática do planejamento como suporte instrumental ao processo de alocação de recursos no setor. Embora favorecesse a adoção de uma racionalidade sistêmica, a estatização da atividade não assegura, por si só, uma transição não problemática para uma lógica decisória calcada no planejamento centralizado da alocação de recursos na área. A presença de um amplo conjunto de concessionárias estaduais e federais, com interesses e capacidades produtivas diferenciadas, tornava irrealista qualquer pretensão de uma convergência apriorística entre as prioridades de investimento específicas de cada empresa e as prioridades de investimentos estabelecidas sob a ótica agregada do setor. A estratégia utilizada para lidar com essas dificuldades consiste na promoção de uma drástica redução na autonomia decisória das empresas no tocante à formulação e à implementação de seus planos de expansão, através da introdução de mudanças na institucionalidade vigente. Aproveitando-se do poder discricionário que a ordem autoritária conferia ao Executivo, o governo federal altera as regras do jogo, definindo princípios e critérios de priorização para a seleção dos projetos de investimento em geração e transmissão de energia elétrica, de caráter normativo, que asseguravam um alinhamento compulsório aos objetivos e metas decididos no âmbito da atividade planejadora. A prevalência de uma racionalidade sistêmica, calcada na otimização na alocação de recursos na atividade, tem implicações em três direções 355 principais, todas convergentes com o incremento da eficiência e da eficácia da sistemática de planejamento instituída pelo setor. A primeira delas tem a ver com o esforço empreendido na direção do fomento à integração operacional do sistema, de forma a amplificar as oportunidades para ganhos de escala e de escopo na realização de investimentos na área. A segunda guarda estreita relação com a primeira e se expressa na opção por projetos de grande porte, com vistas à melhor apropriação possível das oportunidades de racionalização produtiva proporcionadas pelos avanços da operação interligada. A terceira e última consiste no esvaziamento das funções regulatórias desempenhadas pelo DNAEE, cuja atuação enquanto poder concedente dos aproveitamentos hidrelétricos vai se tornar caudatária das prioridades definidas pelo planejamento setorial. Baseado em projeções de rápido incremento da demanda de eletricidade, que se referenciam nas elevadas taxas de crescimento da atividade econômica brasileira na primeira metade da década de setenta, de um lado, e em expectativas otimistas de captação de recursos extra-setoriais, fundamentadas no suposto implícito da persistência das condições favoráveis de acesso ao mercado financeiro externo, de outro, define-se uma ambiciosa programação de investimentos na expansão do sistema, formada essencialmente por megaempreendimentos hidrelétricos. Mudanças não antecipadas em premissas fundamentais da proposta elaborada, contudo, vão suscitar problemas na implementação do plano setorial. O esgotamento do ciclo expansivo da economia nacional, ocorrido na transição para os anos oitenta, torna irrealistas as estimativas de aumento do consumo de energia elétrica e, por extensão, as metas estabelecidas para a ampliação do parque gerador. Por sua vez, os efeitos desestabilizadores provocados pelo segundo choque do petróleo no ambiente internacional, ao final dos anos setenta, e a concomitante deterioração do ambiente macroeconômico interno se conjugam para dificultar o acesso a novos empréstimos e financiamentos no exterior. São circunstâncias que não deixavam alternativa à promoção de uma revisão na programação original. 356 As iniciativas empreendidas nessa direção, contudo, vão se defrontar com determinados constrangimentos operacionais à sua realização, repercutindo, por sua vez, sobre a eficiência dos resultados do processo. Um primeiro e importante aspecto guarda relação com a relativa inflexibilidade que a escala dos projetos hidrelétricos programados imprime à introdução de alterações no cronograma de execução dos investimentos propostos e, por extensão, nas ações previstas no plano. Um segundo aspecto, não menos importante, tem a ver com a especificação dos investimentos a serem remanejados em função da redução das metas originalmente planejadas. Cabe observar, a propósito da questão, que os princípios e critérios adotados na seleção dos projetos prioritários não se aplicavam automaticamente à definição dos cortes a serem feitos na programação orçamentária. Em consequência, torna-se inescapável recorrer a soluções negociadas, onde as dificuldades encontradas na acomodação dos interesses de empresas concorrendo pela preservação de seus respectivos projetos de investimento tendem a provocar uma espécie de “efeito catraca” ao revés na reprogramação das metas setoriais, que acabam sendo mantidas acima dos requisitos da demanda. Erros na atividade planejadora vão se transmutar em problemas operacionais a serem equacionados no âmbito da implementação da programação proposta. Os cortes que não foram feitos quando da revisão planejamento setorial terão de acontecer no momento da realização dos investimentos. Sem recursos suficientes para a viabilização do conjunto de obras projetadas, a Eletrobrás prioriza aquelas em andamento em detrimento das que não haviam sido iniciadas, num ajustamento ad hoc da programação traçada. Além de aumentar em muito a taxa de conflitos internos ao sistema, tal procedimento solapa a legitimidade do planejamento, desvestindo-o, na prática, do caráter normativo que lhe fora atribuído pelo governo. A essas questões veio se somar, nos anos oitenta, a necessidade da viabilização sócio-ambiental dos empreendimentos hidrelétricos, que amplifica a margem de riscos e incertezas imbricados na formulação e implementação dos projetos setoriais, criando 357 problemas técnicos e operacionais para a avaliação e ordenamento de prioridades de investimento que está na base da atividade planejadora. O resultado global do processo não poderia ser outro que o esgotamento do modelo de centralização decisória e financeira instituído no setor, sinalizando a abertura de um novo estágio em sua dinâmica evolutiva, que começa a se materializar nos anos noventa. 358 VI. CONCLUSÕES Na análise da interação entre mercado e Estado no âmbito de uma atividade como a prestação dos serviços de eletricidade no Brasil, envolvendo uma rede complexa de agentes, uma ampla base de recursos tecnológicos, financeiros e organizacionais, e um território extenso e diversificado, é crucial examinar até que ponto categorias e processos analíticos destacados por matrizes teóricas distintas podem e devem ser combinados para permitir uma interpretação mais adequada da realidade empírica. Com essa perspectiva, procurou-se articular, no desenvolvimento do trabalho, aportes teórico- metodológicos da escolha racional e do neoinstitucionalismo. A primeira vertente proporciona instrumental analítico para a compreensão do processo decisório dos agentes, enfatizando a busca motivada da maximização de resultados na alocação de recursos que fazem e nas condutas estratégicas que adotam, convencionalmente associada à lógica de mercado. A segunda vertente salienta o papel das instituições como regras formais do jogo, moldando estruturas de oportunidades e constrangimentos que influenciam as preferências e as escolhas dos agentes relativas aos objetivos que perseguem e aos recursos que mobilizam. As instituições tanto instrumentalizam a regulação do mercado pelo Estado como delimitam o alcance da autonomia decisória deste mesmo Estado e, consequentemente, aquilo que pode fazer, seja enquanto instância regulatória ou coordenadora, seja como empresário. A apreensão da forma como agentes e instituições interagem, demarcando as cursos de ação e as opções factíveis em cada momento, requer considerações acerca do contexto em que esta se desenvolve e das transformações nele transcorridas, compreendendo tanto o ambiente externo quanto interno. A contextos com configurações distintas correspondem estruturas também diferenciadas de oportunidades e constrangimentos que afetam a alocação de recursos na área e a conformação de seus arranjos organizacionais e produtivos. No ambiente externo, salientam-se, dentre os aspectos de maior relevância analítica, os avanços tecnológicos no campo da geração, transmissão 359 e uso da eletricidade, de um lado, e as alternativas de financiamento e o acesso às mesmas, de outro, cujos efeitos incidem sobretudo na base de recursos passíveis de serem mobilizados pelo setor. No ambiente interno, o espectro de fatores intervenientes tende a ser mais amplo e a influência que exercem mais intensa e variada. São particularmente importantes fenômenos como a expansão demográfica, a urbanização e a industrialização da economia, que repercutem na demanda de energia elétrica e, por extensão, na pressão sobre a prestação do serviço, e processos como a centralização ou descentralização administrativa e a prevalência ou não de instituições representativas da democracia, que traduzem as condições sistêmicas para o exercício do poder estatal na sociedade. Determinadas mudanças no contexto decorrem de acontecimentos e ações exógenas à dinâmica de funcionamento da atividade, como a ocorrência de guerras ou de crises econômicas, no plano internacional, e o crescimento e modernização do sistema produtivo, as reformas políticas e burocráticas e a alternância de governos, no plano interno. Outras espelham os efeitos contextuais derivados de decisões e condutas estratégicas de um conjunto variado de agentes com interesses na área, convergentes com aquilo que a literatura neoinstitucionalista denomina de “dependência de trajetória”, isto é, a influência que os resultados de escolhas feitas no tempo t exercem sobre as alternativas potencialmente abertas à avaliação ou consideração dos agentes no tempo t + 1. A influência que as transformações ocorridas no ambiente em sentido amplo e, principalmente, no arcabouço institucional de ordenamento e controle da atividade exercem sobre as preferências, os objetivos e os recursos passíveis de serem mobilizados pelos agentes atuantes na área é claramente um fator que limita o alcance explicativo de análises fundadas apenas no uso do “universal tool kit” da escolha racional. Retomando a discussão realizada no primeiro capítulo, o forte dinamismo institucional que permeia a trajetória evolutiva do setor requer tratar as instituições como parte do problema a ser explicado e não como uma variável exógena à construção do argumento analítico. O espectro das questões a serem examinadas envolvem considerações a respeito dos fatores de 360 heterogeneidade institucional, de um lado, e das consequências dela derivadas no tocante à conformação da arena decisória setorial de outro. São questões cuja abordagem não pode prescindir do instrumental analítico proporcionado pelas contribuições teóricas inscritas no neoinstitucionalismo. A introdução de inovações no desenho institucional, por sua vez, guarda estreita relação com a natureza objetiva da intervenção estatal na área. Isto leva ao direcionamento do foco analítico para as questões relativas à formulação e à implementação das políticas públicas para o setor. De um lado, há que se considerar a interveniência de fatores relacionados ao contexto no desenho das políticas setoriais, o que inclui a definição de prioridades, objetivos e estratégias de ação referentes à atividade. De outro, deve-se reconhecer que as políticas implementadas, quaisquer que sejam, não asseguram necessariamente respostas convergentes com os propósitos visados (March e Olsen, 1989). Como ressalta Powell (1991), os resultados dependem do grau de cooperação ou resistência por parte dos interesses afetos às mesmas, num processo contingente de aspectos relevantes do contexto (Steinmo e Thelen, 1991). Nem sempre as alternativas selecionadas são factíveis à luz dos constrangimentos econômicos, sociais e políticos com os quais se defrontam, comprometendo, parcial ou integralmente, sua implementação. São frequentes também a ocorrência de resultados não pretendidos ou não antecipados quando da formulação das políticas propostas, com efeitos retroativos sobre o processo decisório estatal, estimulando a revalidação de hipóteses e a correção de rumos nas estratégias adotadas. A construção do argumento analítico pode ser entendido, portanto, como um esforço no sentido da elucidação da complexa relação entre atores, instituições e contexto, onde se procura conciliar perspectivas teóricas distintas, mais especificamente, a escolha racional e o novo institucionalismo. A primeira fundamenta a interpretação da lógica decisória que se expressa na alocação de recursos nas atividades setoriais e nas políticas definidas para a área. A segunda proporciona elementos para lidar com o papel estruturante das instituições e suas 361 transformações no tempo, permitindo estabelecer uma conexão coerente e sistematizada entre as condutas decisórias dos atores e o contexto. A análise empreendida mostra que a conformação inicial assumida pela prestação dos serviços de eletricidade foi fortemente influenciada pelas circunstâncias do contexto em que se dá sua emergência como um novo campo produtivo no país, ocorrida nas últimas décadas do século XIX. De um lado, a vigência de uma ordem liberal assegura o domínio da iniciativa privada na estruturação e desenvolvimento da atividade. De outro, a descentralização administrativa derivada do acentuado federalismo então prevalecente e a natureza dispersa e rarefeita da ocupação econômica e populacional do território, típica de uma sociedade de raízes agrárias, se combinam para imprimir características eminentemente locais aos sistemas elétricos que vão surgindo. O setor se organiza assim como uma rede de empresas concessionárias estabelecidas em pontos isolados do espaço nacional, espelhando a percepção de oportunidades de negócio abertas a investimentos na área e seu aproveitamento por um capital em busca de valorização, oriundo de outros segmentos produtivos da economia brasileira ou do exterior. Até meados dos anos trinta, a evolução do sistema elétrico se faz em estreita sintonia com a prevalência de uma dinâmica de mercado. Na presença de regras do jogo ao mesmo tempo estáveis e que asseguram ampla liberdade de ação ao capital, os investimentos realizados na atividade tendem a refletir os estímulos econômicos de uma demanda por eletricidade em constante e rápida expansão e as alternativas produtivas derivadas de avanços tecnológicos que fomentam ganhos de produtividade e de eficiência na alocação de recursos. Os arranjos organizacionais e produtivos que se estruturam na área e suas transformações no tempo traduzem, em essência, os resultados agregados das decisões tomadas por um conjunto aberto e, portanto, variável de empresas concessionárias, com perfis e tamanhos também variados. 362 A dinâmica do desenvolvimento setorial pode ser desagregada, para efeitos analíticos, em três movimentos ou processos que ocorrem em simultâneo, produzindo uma permanente reconfiguração do desenho espacial da atividade. O primeiro é representado pela ausência de investimentos na implantação de sistemas de suprimento de energia elétrica em expressiva parcela do território nacional. A despeito da inexistência de barreiras relevantes à entrada no setor, áreas com baixo potencial de consumo de eletricidade ou percebidas como tal não atraem o interesse do capital e ficam à margem da prestação do serviço. O segundo se contrapõe ao primeiro e consiste na formação de novas empresas concessionárias para atuar em áreas cujo potencial de consumo alcança patamar suficiente para proporcionar margens satisfatórias de retorno ao capital. O gradativo avanço da dinâmica urbana enseja a criação de novas oportunidades de investimentos na atividade, de características localizadas e pouco exigentes de capital, favorecendo a atuação de uma iniciativa privada de baixa capacidade de mobilização de recursos. O terceiro e último se sobrepõe ao segundo e se expressa na centralização e concentração de capital, refletindo o aproveitamento das oportunidades para ganhos de eficiência e de rentabilidade proporcionadas pelo adensamento das manchas urbanas e o correlato crescimento e modernização da produção industrial. As disputas intercapitalistas pelas melhores áreas de mercado se aprofundam a partir dos anos vinte, quando se intensificam a aquisição e a fusão de empresas, levando à organização de concessionárias progressivamente maiores. Sem regras específicas para ordenar e disciplinar tais disputas, a assimetria de poder se manifesta em sua plenitude, favorecendo empresas controladas por capital estrangeiro, com maior potencial de mobilização de recursos, em detrimento das empresas de capital nacional. Isto se traduz numa forte tendência à oligopolização, onde surgem, como principais protagonistas, os grupos Light e Amforp. Na transição para os anos trinta, o setor elétrico brasileiro já se encontra num estágio de relativa consolidação econômica, apresentando então uma estrutura organizacional e produtiva de configuração dual. De um lado, 363 aglutinam-se centenas de micro ou pequenas concessionárias de serviços de eletricidade, em sua ampla maioria sob controle de capital nacional, operando sistemas de abrangência local ou microrregional, que atendem núcleos urbanos pouco expressivos, dispersos pelo território. De outro, subsidiárias pertencentes aos grupos Light e Amforp detêm a concessão da prestação do serviço nas áreas de mercado mais adensadas e com melhores perspectivas de crescimento, formando sistemas de abrangência regional, aos quais corresponde a maior parte da oferta de energia elétrica do país. Os rumos do desenvolvimento do setor irão se alterar nos anos trinta, em conexão com movimento abrangente de reformas institucionais e políticas desencadeado no período. É nesse contexto que o governo federal promulga uma nova legislação para o ordenamento e controle da prestação dos serviços de eletricidade, consubstanciada no Código de Águas, que repercute em profundidade na dinâmica de mercado prevalecente na área. Dentre outras inovações, o Código centraliza a competência para a concessão de aproveitamentos hidráulicos na União, introduzindo uma sistemática tarifária que impõe limites padronizados à margem de remuneração da atividade e restringe enormemente a liberdade de iniciativa assegurada pela institucionalidade anterior. São mudanças que afetam os interesses e as preferências das empresas estabelecidas no sistema, repercutindo nas escolhas que fazem relativas aos objetivos que perseguem e nas ações adotadas com vistas à sua consecução. A busca da maximização do retorno econômico, através do aproveitamento das oportunidades de ganho proporcionadas por uma demanda em contínua e rápida expansão, vai ser substituída por uma conduta estratégica defensiva, que se manifesta tanto no campo produtivo quanto institucional. No primeiro, as decisões de investimento se tornam muito mais seletivas, com as grandes empresas procurando, em essência, preservar as posições conquistadas no âmbito do sistema, o que se traduz numa sensível redução no lançamento de novos projetos voltados à ampliação da capacidade instalada de suprimento energético. No segundo, o aspecto saliente consiste na adoção de uma postura de resistência à 364 implementação das alterações propostas nas regras do jogo, em especial no que diz respeito à fixação de tarifas, na tentativa de evitar ou, mais realisticamente, de minimizar a materialização de mudanças no status quo. Reflexo da estratégia defensiva adotada pelas principais concessionárias privadas, o incremento da demanda deixa de ter respostas à altura do lado da oferta, trazendo, como subproduto, a progressiva deterioração da qualidade dos serviços prestados pelo sistema, que irá convergir para a ocorrência de déficits no suprimento energético. Os resultados insatisfatórios das iniciativas do poder público com vistas a estimular, através da flexibilização parcial dos novos dispositivos regulatórios estabelecidos pelo Código de Águas, a retomada dos investimentos privados acabam induzindo a entrada do Estado no circuito da produção, o que se dá na segunda metade dos anos trinta. A partir de então, delineia-se uma tendência no sentido do aprofundamento do intervencionismo estatal na área, em concomitância à intensificação da retração das inversões das concessionárias privadas, sobretudo no segmento de geração. Acompanhando o rápido incremento do consumo de energia elétrica, que se acentua no pós-guerra em sintoma com a aceleração dos movimentos de urbanização e industrialização do país, os investimentos e as atividades empresariais do Estado na área crescem de forma exponencial. Assim, em meados dos anos sessenta as empresas públicas já serão dominantes no setor, respondendo pela maior parte da capacidade de atendimento do sistema. Essa reconfiguração radical dos arranjos organizacionais e produtivos da atividade conduz a uma nova e significativa mudança na conduta estratégica das grandes concessionárias privadas. Frente à hegemonia conquistada pelas empresas estatais, que sinalizava um estreitamento ainda maior das oportunidades para a atuação do capital na área, a conduta defensiva que vinha sendo adotada desde a promulgação do Código de Águas é substituída por uma opção mais drástica, a saída do jogo. A decisão do grupo Amforp de abandonar a atividade se concretiza na segunda metade da década de sessenta, com a venda de suas concessões e ativos para a União; na década seguinte, o grupo Light segue o mesmo caminho. 365 A estatização do setor alcança níveis extremamente elevados, o que favorece a introdução de uma lógica sistêmica, tendo como principais suportes a centralização decisória e a interligação operacional em arranjos de conformação regionalizada. Essas mudanças refletem a influência tanto de transformações no contexto quanto, e principalmente, no âmbito do próprio Estado. Do contexto resultam estruturas diferenciadas de oportunidades e constrangimentos para a proposição e o encaminhamento das ações do poder público na área. A natureza concreta da intervenção estatal, por sua vez, depende da forma como se organiza o processo decisório da administração pública e de sua efetiva capacidade de mobilização de recursos, o que abrange não apenas aspectos técnicos e financeiros mas também políticos. Ganham saliência aqui questões sistêmicas mais gerais que fundamentam o desenvolvimento da atividade governativa, mais especificamente a capacidade de governança e as condições de governabilidade. Recuperando rapidamente a trajetória percorrida pela atividade, a emergência dos serviços de eletricidade como um novo campo produtivo no país, como já mencionado, se dá num ambiente que combina forte descentralização político-administrativa com reduzida capacidade de intervenção estatal na economia. A diluição do poder concedente e a ausência de uma política minimamente estruturada para o setor se conjugam para conferir ampla liberdade de ação às empresas concessionárias. São circunstâncias onde a expansão do sistema reflete deliberações e disputas de mercado, motivadas precipuamente pelo aproveitamento de ganhos econômicos. A primeira mudança mais substantiva na presença e na forma de atuação do poder público na área somente ocorre nos anos trinta, num processo que guarda estreita relação com a centralização político-administrativa e o esforço de construção institucional promovidos no período. Dessa atividade reformista resulta a proposição de novas regras e mecanismos operacionais para o disciplinamento e controle da prestação dos serviços de eletricidade, afinadas 366 com duas tendências principais. A primeira delas é a padronização dos dispositivos regulatórios, com a concentração do poder concedente na União e a consolidação de uma autoridade nacional com legitimidade para formular e implementar políticas setoriais. A segunda consiste na ênfase atribuída à proteção aos usuários do sistema contra o poder monopolista das grandes empresas que haviam se constituído no setor, instrumentalizada por controles rigorosos sobre as tarifas de energia, nos moldes das legislações setoriais que vinham sendo adotadas nas principais economias capitalistas. A tentativa governamental de avançar na direção de uma regulação mais abrangente e intensiva do funcionamento do mercado suscita, como visto, a reação e a resistência das grandes empresas concessionárias privadas, com dois tipos de implicações no tocante aos rumos do desenvolvimento do setor. O primeiro tem a ver com as dificuldades encontradas pelo poder público em conferir efetividade aos dispositivos do Código, notadamente no que se refere à sistemática de fixação das tarifas de energia elétrica, das quais resulta uma institucionalidade incompleta, sob permanente tensão decorrente das disputas em torno da matéria. O segundo guarda relação com a retração dos investimentos na atividade, conduzindo à progressiva deterioração da qualidade dos serviços prestados pelo sistema, o que irá convergir para a materialização de déficits no suprimento energético. Vale dizer, além do êxito apenas parcial na implementação das reformas institucionais pretendidas, o esforço empreendido com tal finalidade influencia as preferências e as condutas estratégicas dos interesses estabelecidos na área, trazendo, como subproduto, a perda da eficiência alocativa atribuída ao mercado, que passa a não proporcionar respostas produtivas compatíveis com a disposição a consumir da sociedade. À medida que o estrangulamento energético vai assumindo contornos mais visíveis, com consequências adversas para os vários usuários do sistema, o foco da atuação estatal tende a se deslocar gradativamente do objetivo de regular o funcionamento do mercado para o propósito de corrigir as “falhas” nos resultados da alocação de recursos que este promove. O Estado regulador abre 367 espaço para a emergência do Estado empresário, com a inserção da administração pública na esfera da produção setorial buscando suprir as deficiências dos serviços prestados pela iniciativa privada. Os primeiros passos nessa direção serão dados no âmbito das administrações estaduais, mais especificamente, em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, o que se explica pela influência conjunta de fatores de natureza institucional e políticoadministrativa. Na dimensão institucional, o aspecto saliente é o fato de a centralização decisória e de comando promovida pelo governo federal, consubstanciada no Código de Águas, ter reduzido drasticamente as competências e atribuições dos governos estaduais no exercício da função regulatória da atividade. Por exclusão, restava-lhes a alternativa de intervenção direta na produção, através da constituição de empresas para atuar na prestação dos serviços de eletricidade. Na dimensão político-administrativa, as questões relevantes guardam relação com a percepção que os governos dos estados têm acerca da atuação das concessionárias privadas dentro de seus respectivos territórios, a intenção de melhorar a qualidade dos serviços prestados e a capacidade de mobilizar recursos com tal finalidade. Iniciado timidamente em meados dos anos trinta, o intervencionismo estatal nas atividades do sistema se amplia de forma progressiva ao longo da década de quarenta, sustentado principalmente no alargamento das iniciativas setoriais dos governos estaduais. O impulso decisivo à consolidação do Estado empresário na área será dado no início dos anos cinquenta, com o retorno, por via eleitoral, de Getúlio Vargas à Presidência da República. A centralidade atribuída à promoção do desenvolvimento industrial da economia brasileira na agenda pública do novo governo confere maior saliência aos problemas provocados pelo déficit energético, que havia se espraiado por diversos pontos do território nacional. Refletindo a preocupação em assegurar uma oferta adequada e confiável de eletricidade, que se configurava em requisito à obtenção de resultados satisfatórios na promoção do esforço industrializante, a administração varguista decide intensificar a realização de investimentos públicos na expansão 368 do sistema, de forma a neutralizar, em termos definitivos, as “falhas” de mercado. A consecução desse desiderato político, por sua vez, supunha o aparelhamento estatal para o desempenho de funções empresariais ampliadas na área, envolvendo aspectos financeiros, técnicos e operacionais. Isto se traduz nas propostas de criação do IUEE e do FFE, voltadas à estruturação de fontes específicas de financiamento para o setor, e da Eletrobrás, para responder pela aplicação de tais recursos. Sob a égide da institucionalidade democrática então prevalecente, as propostas setoriais formuladas pelo Executivo estavam condicionadas à apreciação e a aprovação do Legislativo. Sem uma base sólida de sustentação parlamentar, as proposições governamentais dependiam de negociações no e com o Congresso. Menos polêmicos, os projetos do IUEE e do FFE conseguem aglutinar apoio político suficiente para serem aprovados, passando a representar importante fonte de financiamento para a realização de investimentos públicos no sistema. O mesmo não ocorre com o projeto da Eletrobrás, que suscita resistências de um amplo e heterogêneo conjunto de interesses e forças políticas, onde se incluem desde os grupos estrangeiros a concessionárias estaduais, como a Cemig, passando por órgãos da própria administração federal, como o BNDE. Sua tramitação no Legislativo será objeto de sucessivas práticas dilatatórias, que bloqueiam, por longo período, sua entrada na pauta de votação e, consequentemente, sua aprovação. As dificuldades encontradas pela administração varguista na viabilização de seus intentos reformistas, contudo, não irão provocar retrocessos nem impedir o avanço do intervencionismo estatal na área. Movido por razões similares – o equacionamento do estrangulamento energético como requisito à viabilização de uma agenda política centrada na promoção de um esforço de desenvolvimento e modernização da indústria nacional - o novo governo que assume o controle do Executivo federal, tendo à frente Juscelino Kubitschek, irá aprofundar, numa escala sem precedentes, a realização de investimentos públicos nas atividades do sistema. Não se trata, entretanto, como pode parecer à 369 primeira vista, de resultado decorrente de uma orientação estatizante na condução da atividade governativa, mas de uma escolha deliberada por soluções capazes de proporcionar respostas oportunas e adequadas aos requisitos de uma demanda em forte expansão. Ao contrário da administração varguista, que concentra esforços no aparelhamento estatal para o desempenho de suas funções empresariais na área, o Governo Kubitschek enfatiza o êxito na adequação da capacidade de atendimento do sistema, tendo por referência a esperada aceleração do crescimento do consumo de eletricidade provocada pela estratégia industrializante. Conjugando fontes internas de financiamento, que haviam sido ampliadas pela gestão anterior, a captação de recursos no exterior, em especial junto ao BIRD, e aproveitando-se dos avanços tecnológicos ocorridos nas atividades de geração e transmissão de eletricidade, os novos gestores do Executivo federal formulam e coordenam a implementação de uma ambiciosa programação de investimentos em geração e transmissão de eletricidade, remetendo parte expressiva das metas propostas ao poder público. Por sua escala produtiva, a usina de Furnas pode ser considerada emblemática desse alargamento do intervencionismo estatal na área, tendo exigido um enorme esforço de articulação política e de mobilização de recursos técnicos e financeiros em sua implantação. Fruto de decisões que vão sendo tomadas ao longo do tempo, refletindo a influência do contexto e dos resultados de decisões anteriores, a sobreposição do Estado empresário ao Estado regulador aumenta em muito a complexidade imbricada nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, o que estimula novas iniciativas governamentais com vistas ao reforço de sua capacidade de comando e coordenação na área. No início dos anos sessenta, será criado o Ministério das Minas e Energia, antecipando-se à Eletrobrás que, aprovada pelo Congresso, será implantada pouco depois. São iniciativas que exercem forte incentivo para a centralização dos processos de decisão setoriais, com desdobramentos em duas direções principais, estreitamente interligadas. A 370 primeira tem a ver com a adoção de uma ótica sistêmica na concepção e implementação dos investimentos em geração e transmissão de energia elétrica. A segunda se expressa na tendência à federalização da atividade, com a crescente participação da União na ampliação da capacidade de atendimento do sistema. A hegemonia conquistada pelas empresas estatais na atividade transfere, para a órbita da administração pública, a responsabilidade pela ampliação da capacidade de atendimento do sistema. Isto requer aportes crescentes de recursos para o financiamento dos projetos produtivos do setor, acentuando a importância da eficiência e da eficácia alocativa nas decisões de investimento na área. Ganha saliência, nesse contexto, o aproveitamento de oportunidades para ganhos de escala na ampliação da potência instalada do sistema, potencializadas pelos avanços tecnológicos na geração e na transmissão de energia elétrica, aprofundando a vertente aberta pela construção da usina de Furnas. O esforço que será empreendido em tal direção terá como suportes, de um lado, a interligação operacional dos serviços prestados pelas empresas concessionárias e, de outro, o planejamento integrado da expansão do parque gerador e das redes de transmissão. A apropriação eficaz de ganhos de escala potencializados pelas novas tecnologias de geração e transmissão convergia para a implementação de projetos de âmbito regional, cuja viabilização supunha romper com um arranjo organizacional e produtivo de conformação insular, isto é, espacialmente segmentado, de forma a permitir o intercâmbio de energia entre as empresas. Aproveitando-se da ampla margem de autonomia decisória que lhe fora conferido pela ordem autoritária instaurada pelo golpe militar de 64, o Executivo federal adota uma série de medidas com vistas à interligação operacional do sistema. A padronização compulsória das frequências utilizadas pelo setor na transmissão e distribuição de eletricidade, determinada por decreto presidencial em meados dos anos sessenta, evidencia a disposição governamental de conferir materialidade ao processo, sinalizando, em simultâneo, a amplitude da integração pretendida, 371 de dimensão nacional. O impulso decisivo à integração das atividades do sistema, contudo, somente irá ocorrer na década seguinte, em conexão com a decisão de se implantar a usina de Itaipu. Dado o porte do empreendimento, sua viabilização estava condicionada à prévia definição de esquemas operacionais com vistas à transmissão e distribuição da energia a ser gerada. Os princípios, critérios e regras adotados na moldagem dos acordos celebrados com tal propósito, envolvendo as principais empresas concessionárias que atuavam na região Centro-Sul do país, vão servir de referência para o ordenamento da dinâmica da operação interligada, adquirindo caráter institucionalizado por força de legislação promulgada, mais uma vez, por iniciativa da administração federal. A consolidação dos processos de estatização e de interligação operacional das atividades do sistema enseja e estimula uma mudança qualitativa na sistemática do planejamento setorial. Adotada desde os anos cinquenta como instrumento de racionalização e incremento da eficiência dos investimentos realizados na área, a ação planejadora deixa de ter caráter indicativo para assumir feições normativas. O ponto de inflexão será dado, também aqui, pela decisão de implantar a usina de Itaipu, que repercute sobre os planos de expansão das principais empresas setoriais, exigindo uma revisão geral dos projetos neles programados, de forma a evitar sobreinvestimentos na ampliação do parque gerador. Proposto pela Eletrobrás na primeira metade dos anos setenta, o Plano 90 assinala a efetiva transição para a prevalência de uma racionalidade sistêmica, onde as necessidades de investimento refletem projeções de crescimento da demanda e a seleção dos projetos se faz com base nos custos marginais de longo prazo. As regras do jogo estabelecidas para o funcionamento da operação interligada e os princípios e critérios decisórios instituídos pela sistemática de planejamento setorial convergem no sentido de forjarem especializações produtivas, ainda que informais, acentuando o papel das empresas federais na adequação da capacidade de atendimento do sistema, em detrimento das concessionárias estaduais. De acordo com tal especialização produtiva, as ações 372 das primeiras se concentravam prioritariamente nos segmentos de geração e de transmissão, deixando às últimas, como campo preferencial de atuação, o segmento de distribuição. A programação proposta no Plano 90, anteriormente mencionado, ilustra bem a questão, contemplando basicamente investimentos em mega empreendimentos hidrelétricos, como as usinas de Itaparica e Tucuruí, e em linhas troncais de transmissão, em sua ampla maioria sob responsabilidade das empresas federais controladas pela holding Eletrobrás. Nos anos setenta, a conjunção do ciclo expansivo experimentado pela economia brasileira com as facilidades encontradas pelo país no acesso a financiamentos internacionais favorece o desempenho das atividades elétricas, que cresce a taxas extremamente elevadas no período. Mudanças nos contextos interno e externo ocorridas ao final da década, contudo, afetam em profundidade a dinâmica de funcionamento do sistema, repercutindo sobre sua eficiência e eficácia alocativa. A instauração de um ciclo recessivo no início dos anos oitenta não apenas leva a erros de planejamento, traduzidos em metas produtivas sobrestimadas, como influencia o comportamento das receitas operacionais das empresas energéticas, reduzindo a rentabilidade do setor, com efeitos conexos sobre sua capacidade de inversão. A instabilidade do mercado financeiro internacional, no rastro do segundo choque do petróleo, e seu relativo fechamento à concessão de novos empréstimos à economia brasileira, por sua vez, amplificam os problemas ocasionados pela perda de rentabilidade no tocante ao financiamento das obras programadas nas áreas de geração e transmissão. A esses distúrbios vem se somar a elevação dos custos dos projetos advinda das alterações que se processam no enquadramento político e institucional dos impactos sócio-ambientais provocados pelos empreendimentos setoriais. A deterioração econômica e financeira do setor catalisada pela configuração adversa assumida pelo contexto eleva em muito a taxa de conflitos interna ao sistema, criando dificuldades adicionais à coordenação da operação interligada e ao efetivo cumprimento das decisões de investimento tomadas no âmbito da sistemática planejadora. Inadimplência nos contratos de compra e 373 venda de energia envolvendo empresas distribuidoras e geradoras, de um lado, e paralisação ou atraso na execução de obras programadas, de outro, surgem como sintomas mais evidentes do relativo esgotamento de um modelo organizacional fundado na centralização decisória e na estatização produtiva, construído a partir dos anos sessenta. O Plano de Recuperação Setorial (PRS), lançado em 1985 pela Eletrobrás, espelha o reconhecimento governamental da perda da capacidade de se definir programas e prioridades de investimento para um horizonte temporal de longo prazo que não ficassem expostos ao risco da obsolescência precoce. Além de reduzir o horizonte temporal para apenas quatro anos, tal plano restringia-se à aplicação de recursos que se presumia estarem previamente assegurados, definindo uma espécie de programação mínima a ser executada. Essa alteração na concepção do planejamento, contudo, não produz os resultados esperados, defrontando-se também com problemas de ordem financeira e operacional em sua implementação. Revisto em 1986, o PRS é praticamente abandonado no ano seguinte, explicitando de vez o esgarçamento do padrão de financiamento e a deterioração da capacidade técnica e de comando que sustentaram a vigorosa expansão do sistema a partir dos anos setenta. A gravidade da crise que se instaura nos serviços de eletricidade leva a Eletrobrás a promover uma ampla discussão sobre os rumos do desenvolvimento do sistema, cujo resultado final será a elaboração da proposta de Revisão Institucional do Setor Elétrico (REVISE). Iniciado em 1987, o processo envolveu a formação de grupos temáticos focados em dimensões basilares ao funcionamento da atividade, englobando questões econômico-financeiras, organizacionais e institucionais. Os relatórios produzidos, contudo, acabaram se concentrando na realização de um diagnóstico dos principais problemas enfrentados pelo setor, pouco avançando no sentido da proposição de medidas concretas com vistas à recuperação de sua eficiência técnica e econômica e de sua eficácia operacional. Há boas razões para que isso tenha ocorrido, que vão além dos constrangimentos derivados da diversidade de interesses incrustrados no sistema, colocando em 374 pólos opostos empresas federais e concessionárias estaduais (Camozzato, 1995, depoimento). O ambiente de incertezas, advindo da acentuada instabilidade macroeconômica e do reordenamento jurídico-institucional aberto pelo processo constituinte, dificultava enormemente qualquer esforço mais substantivo de elencar as alternativas factíveis de “saídas” para os problemas setoriais e, sobretudo, de desenvolver prognósticos consistentes sobre seus desdobramentos intertemporais e suas possibilidades de êxito. A paralisia decisória relativa à proposição de medidas concretas para a recuperação dos níveis de eficiência técnica e econômica da atividade se estende até o final dos anos oitenta, trazendo, como subproduto, o agravamento da crise financeira e institucional do setor. Essa situação começa a ser alterada com a ascensão de Fernando Collor de Mello à Presidência da República, introduzindo no país a agenda das reformas estruturais orientadas para o mercado, que haviam se tornado hegemônicas no plano internacional, especialmente na Europa Oriental e na América Latina. Trata-se de uma agenda política onde as questões essenciais são a estabilização do ambiente macroeconômico conjugada à redução dos constrangimentos à atuação do capital, no suposto implícito de que a expansão e modernização produtiva resultará da dinâmica alocativa do mercado. São questões que convergem para a reforma do Estado, tendo como eixos principais a promoção de um esforço de ajuste fiscal associado a um programa de privatização, com vistas à estabilização, e a adoção de regras do jogo competitivas, como passo essencial à expansão da produção e à melhoria da eficiência econômica, num receituário de cunho universalista consagrado pelo denominado “Consenso de Washington”. Os anos noventa assinalam, portanto, a abertura de um novo estágio na trajetória do desenvolvimento das atividades elétricas, onde as decisões cruciais para a dinâmica de funcionamento do sistema vão se subordinar às diretrizes gerais e às prioridades estabelecidas na agenda das reformas econômicas, institucionais e administrativas que serão empreendidas pelo governo. Uma importante implicação dessa subordinação é, obviamente, a 375 consolidação do esvaziamento do papel da Eletrobrás enquanto agência responsável pela formulação e implementação da política setorial, que começara a se manifestar ao final dos anos setenta, junto com a perda de sua autonomia decisória na fixação das tarifas de energia. Outra implicação, não menos importante, tem a ver com o incrementalismo das mudanças que irão se processar nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, refletindo a estratégia gradualista adotada na condução das políticas substantivas que conformam a agenda das reformas, expostas às contingências do contexto e marcadas por alto grau de imprevisibilidade. Num atividade altamente estatizada e que enfrentava graves estrangulamentos financeiros, a privatização emerge como principal instrumento das reformas setoriais, em torno da qual tendem a se articular as decisões governamentais relativas ao sistema. A disposição de avançar nessa direção se manifesta, de imediato, no âmbito da reestruturação administrativa empreendida pelo Governo Collor em seu primeiro ano de gestão, quando promove um amplo programa de demissões que abrange as várias empresas energéticas federais. O próximo movimento será a inclusão de tais empresas no Programa Nacional de Desestatização (PND), lançado em 1992, numa tentativa que não teve, e dificilmente poderia ter, resultados satisfatórios. A transferência de qualquer atividade produtiva desempenhada pelo Estado para o domínio da iniciativa privada supõe necessariamente torná-la remuneradora e assegurar-lhe perspectivas favoráveis de expansão. De um lado, a redução do quadro de funcionários não assegurava, por si só, a recuperação da capacidade técnica e econômica nem a rentabilidade operacional das empresas incluídas no programa. Além disso, os dispositivos que regulavam a operação interligada, definidas em função de um sistema estatizado, conferiam margem relativa estreita de autonomia decisória às empresas, tornando-as pouco atraentes para a iniciativa privada. De outro lado, a instabilidade político-institucional do período, que culminou na destituição de Collor da Presidência da República, aumentava em muito os riscos e as incertezas nas decisões de investimento, refletindo-se nas 376 preferências e condutas estratégicas dos agentes econômicos potencialmente interessados em entrar na atividade. O propósito de levar em frente a privatização do sistema será mantido pelos governos subsequentes, que imprimem um direcionamento mais objetivo e consistente às ações com vistas à sua materialização. De menor complexidade técnica e operacional, o segmento de distribuição é priorizado como ponto de partida para o encaminhamento do processo. O passo decisivo em tal direção ocorre em 1993, com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei nº. 8.631, também conhecida como Lei Elizeu Rezende, que introduz mudanças substantivas na institucionalidade do setor. Uma primeira medida consiste na promoção de uma espécie de saneamento financeiro do sistema, eliminando, através de um amplo encontro contábil de contas, a inadimplência acumulada no âmbito da operação interligada, cujo subproduto será a absorção, pelo Tesouro Nacional, de uma dívida em torno de US$ 20 bilhões (Rosa et al., 1998; Castello Branco, 1996). Outra medida de forte impacto é a revisão da sistemática tarifária, com o intuito não apenas de tornar a atividade rentável mas de recuperar sua capacidade de autofinanciamento, eliminando a necessidade do aporte de recursos de origem orçamentária. A nova legislação extingue a equalização das tarifas, introduzida em meados dos anos setenta, e promove uma substancial elevação dos níveis de preços cobrados ao consumidor, que passam a ser fixados em função dos custos de prestação do serviço, com reajustamentos periódicos balizados no comportamento da inflação. Por último, estabelece a obrigatoriedade da celebração de contratos de compra e venda de eletricidade entre empresas distribuidoras e geradoras, de forma a assegurar a regularidade no suprimento, e define regras para a determinação do valor da energia a ser fornecida, o que contribui para rebaixar os custos de transação. Saneamento financeiro, regras tarifárias remuneradoras ao capital, garantia de fornecimento de energia e mercados cativos se combinam para tornar as empresas distribuidoras de energia elétrica atraentes para os investidores privados. Alteram-se, em consequência, as perspectivas de êxito nas ações de 377 privatização, que, sem sucesso no Governo Collor, serão retomadas com vigor no Governo Fernando Henrique Cardoso, quando são adotadas uma série de medidas com vistas a influenciar as preferências e as condutas estratégicas dos atores afetos à questão. De um lado, busca-se obter a adesão dos governos estaduais ao processo, concedendo-lhes vários benefícios e vantagens nos campos fiscal e financeiro, através do Programa de Estímulo à Privatização Estadual (PEPE), instituído pelo BNDES. De outro, adota-se postura similar em relação aos potenciais interessados na aquisição das empresas, através da criação, pelo mesmo BNDES, de linhas específicas de financiamento com tal finalidade. Refletindo os estímulos das iniciativas governamentais, que a transformam numa espécie de fim em si mesmo, a privatização das atividades de distribuição avança de forma acelerada. O processo se inicia com as vendas das duas empresas distribuidoras controladas pela Eletrobrás, a Escelsa e a Light, ocorridas, respectivamente, em 1995 e em 1996, estendendo-se, em seguida, às concessionárias estaduais. Em 1997, oito empresas pertencentes aos governos dos estados são transferidas para a iniciativa privada, num movimento que terá continuidade nos anos subsequentes, espraiando-se por quase todas as unidades da Federação. Desse esforço de privatização empreendido pelo governo federal resulta uma radical reconfiguração na estrutura de propriedade na área, que passa, num curto intervalo de tempo, para o domínio do capital. Nos segmentos de geração e transmissão, a privatização se defrontava com questões de maior complexidade técnica e operacional, num processo que se antecipava de timing mais lento. Empenhado em obter respostas rápidas em seus intentos de reduzir o intervencionismo estatal na área, o governo federal opta pela adoção de uma estratégia distinta daquela desenhada para o segmento de distribuição. Como a privatização não era factível no curto prazo, as ações em tal direção são precedidas de medidas voltadas a estimular a realização de investimentos da iniciativa privada em projetos de geração e transmissão. Isto supunha criar condições para a entrada e a operação de novos agentes nesses 378 segmentos, até então sob monopólio estatal, o que passava por mudanças na institucionalidade vigente. A adequação das regras do jogo se inicia ainda em 1993, com as promulgações dos Decreto nºs. 915 e 1.009, ambos de iniciativa do Executivo federal. O primeiro autoriza a formação de consórcios de autoprodutores e concessionárias de serviços de eletricidade com vistas à implantação de projetos de geração, dando a partida para a flexibilização dos dispositivos institucionais que regulavam a entrada na atividade. O segundo cria o Sistema Nacional de Transmissão de Energia Elétrica (SINTREL), com o objetivo de assegurar o livre acesso à rede transmissora, viabilizando o escoamento da produção dos projetos geradores implantados pelos consórcios que viessem a ser constituídos. As oportunidades para a atuação do capital, abertas pela autorização ao estabelecimento de parcerias com as empresas públicas, vão ser fortemente alargadas pela Lei nº. 9.074, editada em 1995. Dentre suas principais inovações incluem-se a reconfiguração do perfil dos agentes setoriais, com a introdução das figuras do autoprodutor e do produtor independente, e a adoção de novos procedimentos, de concepção competitiva, na concessão de aproveitamentos hidrelétricos e de implantação de linhas de transmissão, que passam a ser objeto de licitação. Refletindo os efeitos desse conjunto de medidas, quando o processo de privatização das empresas geradoras é efetivamente deflagrado, o que se dá nos anos finais da década, a iniciativa privada já se encontra estabelecida na área, seja através de consórcios ou de investimentos realizados por produtores independentes e autoprodutores. O desmonte do Estado empresário e a consequente reestruturação dos arranjos organizacionais e produtivos setoriais promovidos pelo poder público através da privatização, da flexibilização das regras de entrada na atividade e do fomento à competição na implantação de novos projetos de investimento e na prestação do serviço não se fazem acompanhar de um processo simultâneo e articulado de reconstrução do Estado regulador. É emblemático desse descompasso o fato de a proposta de criação da Agência Nacional de Energia 379 Elétrica (ANEEL), com as atribuições de responder pela regulação e fiscalização dos serviços de eletricidade e de desempenhar o papel de poder concedente da exploração de tais serviços – objeto do Projeto de Lei nº. 1.699 – ter sido encaminhada pelo governo federal à apreciação do Congresso apenas em abril de 1996. Constituída formalmente no ano seguinte, o novo órgão se estrutura em concomitância ao avanço acelerado da iniciativa privada nos diversos segmentos da atividade, numa circunstância onde uma série de questões necessárias ao desempenho eficiente de suas funções ainda não estava regulamentada. A entrada de novos agentes na área sem a prévia reconfiguração das regras do jogo tende a se refletir na formação de suas preferências e nas estratégias que adotam, com efeitos contextuais importantes sobre os cursos de ação abertos à consideração do governo na condução das reformas setoriais. Primeiro, a lógica capitalista dos novos controladores das concessionárias privatizadas aponta na direção de condutas estratégicas voltadas a acelerar a amortização dos investimentos realizados, explorando ao máximo as oportunidades para promover aumentos nas tarifas de energia, de forma a elevar a taxa de retorno dos recursos aplicados, com consequências perversas para a sociedade. Segundo, a ampliação da diversidade de interesses incrustrados no sistema cria dificuldades adicionais à atividade reformista, aumentando a complexidade e as incertezas na viabilização das decisões tomadas, qualquer que seja seu conteúdo. Terceiro, as mudanças propostas ficam expostas à reação de um conjunto também ampliado de interesses, reduzindo o grau de previsibilidade quanto aos resultados do processo. Na ausência de um arranjo institucional sólido e consistente, capaz de proporcionar um meio associativo favorável ao desempenho das funções de regulação e controle e fiscalização da prestação do serviço, a transição em curso para uma dinâmica de mercado não irá conduzir necessariamente aos propósitos de melhoria da eficiência operacional, com redução de custos em prol do consumidor final, visados pelo governo. Ao contrário, há um risco não negligenciável de que as “imperfeições” e as “falhas” da atuação empresarial do Estado possam meramente dar lugar a 380 “imperfeições” e “falhas” do mercado, trazendo de volta problemas como práticas monopolistas, concorrência predatória e riscos de estrangulamento no suprimento energético. 381 VII. BIBLIOGRAFIA Ahrne. G. 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