estado , mercado e o desenvolvimento do setor elétrico

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estado , mercado e o desenvolvimento do setor elétrico
ESTADO, MERCADO E O DESENVOLVIMENTO DO
SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO
RICARDO CARNEIRO
Tese
apresentada
ao
Doutorado
em
Ciências
Humanas – Sociologia e Política, da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para
a obtenção do título de doutor.
Orientadora: Laura da Veiga
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Belo Horizonte
2000
Carneiro, Ricardo
Estado, mercado e o desenvolvimento do setor elétrico brasileiro.
Ricardo Carneiro. - Belo Horizonte, 2000.
p. 400
Orientadora: Laura da Veiga
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais.
1. Energia elétrica - Brasil. 2. Desenvolvimento econômico-Brasil. 3.
Política energética - Brasil. I. Veiga, Laura. II. Universidade Federal de
Minas Gerais. III. Título.
CDU 631.31 (81)
AO
PROF. OLAVO BRASIL DE LIMA JÚNIOR
(EM MEMÓRIA)
DEDICO ESTE TRABALHO A LENA, GABRIEL, JULIANO
E
ALFREDO, QUE DÃO SENTIDO AO ESFORÇO
REALIZADO.
i
AGRADECIMENTOS
A
REALIZAÇÃO
DESTE
ESTUDO
FOI
FAVORECIDA
POR
INSTITUCIONAIS QUE RECEBI AO LONGO DO PERCURSO.
IMPORTANTES
APOIOS
ASSIM, MEUS PRIMEIROS
AGRADECIMENTOS VÃO PARA A FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, POR ME PERMITIR DEDICAÇÃO
EXCLUSIVA AO CURSO DE DOUTORADO DURANTE A FASE DE INTEGRALIZAÇÃO DE
CRÉDITOS E EXAME DE QUALIFICAÇÃO, E PARA O
IGUAL PERÍODO.
CNPQ, PELA CONCESSÃO DE BOLSA EM
ESTENDO O AGRADECIMENTO À ELETROBRÁS E AO CENTRO DA MEMÓRIA
DA ELETRICIDADE NO BRASIL, PELO ACESSO A INFORMAÇÕES E DOCUMENTOS DE ENORME
RELEVÂNCIA NO DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA.
OLAVO BRASIL DE LIMA JÚNIOR FOI O PRIMEIRO ORIENTADOR DO TRABALHO,
CONTRIBUINDO DE FORMA DECISIVA PARA O DELINEAMENTO DA PESQUISA, COM
SUGESTÕES VALIOSAS NA CONSTRUÇÃO DO ESQUEMA INTERPRETATIVO, ALÉM DE
CRÍTICAS E OBSERVAÇÕES SEMPRE OPORTUNAS À SUA APLICAÇÃO AO OBJETO DE
ESTUDO.
LAURA DA VEIGA DEU SEQUÊNCIA À ORIENTAÇÃO, ESTIMULANDO-ME A LEVAR EM
FRENTE A ELABORAÇÃO DA TESE.
REVELOU-SE UMA INTERLOCUTORA AO MESMO TEMPO
FIRME E EQUILIBRADA, DESEMPENHANDO PAPEL FUNDAMENTAL NO BALIZAMENTO DOS
RUMOS DO TRABALHO, A DESPEITO DA RELATIVA “ARIDEZ” DA TEMÁTICA INVESTIGADA.
NÃO PODERIA DEIXAR DE RECONHECER TAMBÉM A RELEVANTE CONTRIBUIÇÃO DE FÁTIMA
ANASTASIA, QUE PARTICIPOU DA PRÉ-DEFESA DA TESE. SEUS COMENTÁRIOS
REPRESENTARAM SUBSÍDIOS DE GRANDE IMPORTÂNCIA PARA O APRIMORAMENTO DO
TRABALHO, EMBORA TENHAM ME FALTADO CONDIÇÕES OBJETIVAS PARA INCORPORÁ-LOS
EM TODA SUA EXTENSÃO.
A LENA, GABRIEL, JULIANO E ALFREDO AGRADEÇO A PACIÊNCIA E A COMPREENSÃO QUE
TIVERAM FACE AO ENCURTAMENTO DO TEMPO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR, A PRESENÇA
APENAS “VIRTUAL” IMPOSTA PELA ÁRDUA TAREFA DE ELABORAÇÃO DO TRABALHO.
ii
RESUMO
O TRABALHO ANALISA A EVOLUÇÃO DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE NO
BRASIL, DE SUAS ORIGENS NOS ANOS FINAIS DE SÉCULO XIX AOS DIAS ATUAIS ,
ENFATIZANDO
AS
TRANSFORMAÇÕES
QUE
ORGANIZACIONAIS AO LONGO DO TEMPO.
SE
PROCESSAM
EM
SEUS
ARRANJOS
SUSTENTA QUE O DESENVOLVIMENTO SETORIAL
ESPELHA A DINÂMICA DAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE OS AGENTES
ATUANTES NA ÁREA, DE UM LADO, E O ARCABOUÇO REGULATÓRIO DA ATIVIDADE, DE
OUTRO, ONDE INTERVÊM ASPECTOS RELEVANTES DO CONTEXTO, CUJA INFLUÊNCIA INCIDE
TANTO SOBRE AS NECESSIDADES POTENCIAIS E EFETIVAS DE SUPRIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA QUANTO SOBRE AS POSSIBILIDADES DE MOBILIZAÇÃO DE RECURSOS COM TAL
FINALIDADE.
SALIENTA QUE A TRAJETÓRIA PERCORRIDA É MARCADA POR DETERMINADAS
INFLEXÕES DE ROTA, QUE GUARDAM ESTREITA RELAÇÃO COM MUDANÇAS OCORRIDAS NA
FORMA E NO CONTEÚDO DA ATUAÇÃO DO
ESTADO NO SETOR. IDENTIFICA E DESCREVE
QUATRO PERÍODOS COM CARACTERÍSTICAS DISTINTAS EM TERMOS DA CONFIGURAÇÃO
OBJETIVA ASSUMIDA PELA ATIVIDADE.
O SETOR SE ORGANIZA ORIGINALMENTE EM TORNO
DA CONCESSÃO DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO À INICIATIVA PRIVADA, COM BAIXO GRAU DE
REGULAÇÃO E DE CONTROLE ESTATAL, SOB RESPONSABILIDADE DAS INSTÂNCIAS
ADMINISTRATIVAS LOCAIS E REGIONAIS.
SOFRE, A SEGUIR, UMA MUDANÇA NO SENTIDO DA
CENTRALIZAÇÃO DO PODER CONCEDENTE, CONJUGADA COM A INTRODUÇÃO DA PRÁTICA
DO CONTROLE TARIFÁRIO , LEVANDO À RETRAÇÃO DOS INVESTIMENTOS PRIVADOS E À
FORMAÇÃO E EXPANSÃO DE CONCESSIONÁRIAS PÚBLICAS.
A ETAPA SUBSEQUENTE SE
TRADUZ NO PROGRESSIVO ALARGAMENTO E NA INTENSIFICAÇÃO DA INTERVENÇÃO
PÚBLICA NA ÁREA, CULMINANDO NA PLENA ESTATIZAÇÃO DO SETOR.
POR FIM, HÁ UMA
ESPÉCIE DE RETORNO ÀS ORIGENS DO PROCESSO, COM A REINSERÇÃO DA INICIATIVA
PRIVADA NA ATIVIDADE, TENDO COMO PRINCIPAIS VETORES AÇÕES ARTICULADAS DE
DESREGULAMENTAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO.
iii
SUMÁRIO
I.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 001
II.
ARCABOUÇO TEÓRICO E A TRAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR ELÉTRICO
BRASILEIRO ................................................................................................................. 005
1. ...........................................................................................................................................A
s Premissas e Proposições Centrais da Teoria da Escolha Racional ................ 012
2. ...........................................................................................................................................E
scolha Racional, Interação Social e Teoria dos Jogos ....................................... 018
3. ...........................................................................................................................................A
s Críticas mais Usuais à Teoria da Escolha Racional e suas Interfaces com
as Análises Institucionais .................................................................................... 025
4. ...........................................................................................................................................I
nstituições
e
Mudanças
Institucionais:
As
Interpretações
Neoinstitucionalistas ............................................................................................ 033
5. ...........................................................................................................................................A
tores e Instituições no Campo da Economia: O Papel do Mercado ................... 046
6. ...........................................................................................................................................E
stado, Política Pública e Governo ........................................................................ 057
7. ...........................................................................................................................................M
ercado, Estado e o Papel da Democracia ............................................................ 072
8. ...........................................................................................................................................P
roposições Analíticas ........................................................................................... 078
III.
DAS ORIGENS DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE À EMERGÊNCIA DO
ESTADO REGULADOR ................................................................................................ 092
1.
A Organização dos Serviços de Eletricidade e o Caráter Descentralizado da
Regulamentação da Atividade ............................................................................. 097
1.1 Capital nacional e externo da exploração dos serviços de eletricidade ............. 102
1.2 Expansão horizontal e concentração de capital: crescimento e diferenciação
das empresas energéticas ............................................................................... 106
1.3 Aprofundamento do movimento de oligopolização e consolidação da
hegemonia do capital externo no setor ............................................................ 110
2. ...........................................................................................................................................A
Emergência do Estado Regulador: A Reinstitucionalização do Sistema e os
Efeitos sobre sua Dinâmica Produtiva ................................................................. 118
2.1 A natureza objetiva das mudanças na institucionalidade do setor elétrico
propostas nos anos trinta ................................................................................. 123
iv
2.2 A transição para a nova institucionalidade do setor elétrico: o Código de
Águas .............................................................................................................. 129
2.3 Estímulo à geração hidrelétrica e controle tarifário: a tensão intrínseca à
concepção do novo marco regulatório do setor ................................................ 135
2.4 A disputa em torno das novas regras tarifárias: um conflito sem vencedores
definitivos ........................................................................................................ 143
3.
O Avanço do Processo de Reordenamento Institucional do Setor e a
Crescente Deterioração dos Serviços de Eletricidade ........................................ 151
3.1 O caráter adaptativo da atuação do CNAEE e a gradativa flexibilização dos
dispositivos regulatórios do Código de Águas .................................................. 155
3.2 Crise energética: racionamento e a emergência da empresa pública nos
serviços de eletricidade ................................................................................... 161
4.
IV.
O Esgotamento de um Ciclo e a Necessidade de Reorganização Produtiva
do Sistema Elétrico ............................................................................................... 172
DO ESTADO REGULADOR AO ESTADO EMPRESÁRIO ............................................ 176
1.
O “imobilismo” do Governo Dutra e o Agravamento do Estrangulamento
Energético do País ................................................................................................ 181
1.1 Agravamento do déficit de energia, racionamento e expansão das empresas
energéticas estaduais ...................................................................................... 185
1.2 A discussão de saídas para a crise energética e a indefinição sobre os
rumos do setor ................................................................................................ 191
2.
O Segundo Governo Vargas e a Reestruturação Institucional do Sistema
Elétrico .................................................................................................................. 195
2.1 ..................................................................................................................................D
a regulação à intervenção direta: a concepção geral das reformas setoriais
pretendidas pela administração varguista ........................................................ 197
2.2 ..................................................................................................................................A
s medidas de curto prazo e seus efeitos a médio e longo prazos ..................... 202
2.3 ..................................................................................................................................A
s medidas de médio e longo prazos: os projetos de reordenamento
institucional do setor ........................................................................................ 206
2.4 ..................................................................................................................................O
s limites do possível: a tumultuada trajetória dos projetos do PNE e da
Eletrobrás no Congresso ................................................................................. 216
3.
O Avanço e Consolidação do Intervencionismo Estatal e a Mudança de
Escala dos Empreendimentos Hidrelétricos: O Governo Kubitschek ................ 221
v
3.1 ..................................................................................................................................O
Plano de Metas e o caráter estratégico dos investimentos em energia
elétrica ............................................................................................................ 223
3.2 ..................................................................................................................................A
s metas de expansão do sistema elétrico e o aprofundamento do processo
de estatização ................................................................................................. 229
3.3 ..................................................................................................................................D
a viabilidade técnica à viabilidade política: o difícil caminho na transição
para uma racionalidade sistêmica .................................................................... 239
3.4 ..................................................................................................................................A
emergência de novos interesses e conflitos em torno dos investimentos
hidrelétricos ..................................................................................................... 249
4.
V.
A Sobreposição do Estado Empresário ao Estado Regulador ........................... 257
ESTATIZAÇÃO,
INTEGRAÇÃO
OPERACIONAL
E
PLANEJAMENTO
CENTRALIZADO ........................................................................................................... 262
1.
Consolidação da Hegemonia Estatal e Adequações Institucionais nos Anos
Iniciais da Década de Sessenta ........................................................................... 267
1.1 A criação da Eletrobrás e a busca de soluções para o estrangulamento
tarifário do setor .............................................................................................. 269
1.2 O avanço descentralizado no sentido da interligação operacional dos
serviços de eletricidade ................................................................................... 279
2. ...........................................................................................................................................R
umo à Autarquização das Atividades Setoriais: As Reformas Financeiras e
Institucionais do Período 1964/1967 .................................................................... 283
2.1 O realinhamento tarifário e os impactos sobre as atividades do sistema .......... 286
2.2 O avanço no sentido da interligação do sistema e a consolidação da
Eletrobrás ........................................................................................................ 291
2.3 A reacomodação do sistema às mudanças institucionais do setor e o avanço
do movimento de estatização .......................................................................... 297
3.
O Avanço da Operação Interligada e a Consolidação do Novo Modelo
Institucional do Setor Elétrico .............................................................................. 303
3.1 ..................................................................................................................................A
pressão sobre a capacidade de atendimento do sistema e o avanço da
integração operacional .................................................................................... 306
3.2 ..................................................................................................................................E
xpansão, especialização produtiva e tendência à “federalização” do setor ....... 315
4. ...........................................................................................................................................A
Maturação das Reformas Setoriais e a Consolidação do Sistema Nacional
de Eletrificação ..................................................................................................... 321
vi
4.1 Itaipu e a consolidação da integração operacional do sistema ......................... 323
4.2 Planejamento centralizado e megaempreendimentos hidrelétricos: a nova
racionalidade decisória do setor ...................................................................... 332
5. ...........................................................................................................................................C
rise e Esgotamento do Modelo Institucional Desenhado nos Anos Sessenta
e Setenta ............................................................................................................... 341
5.1 O ajuste recessivo e a fragilização do planejamento setorial ............................ 343
5.2 A crescente importância das questões sócio-ambientais os impactos nos
processos decisórios do setor .......................................................................... 350
6.
Crise e Esgotamento do Modelo de Planejamento Centralizado no Setor ......... 354
VI.
CONCLUSÕES .............................................................................................................. 359
VII.
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 382
vii
I.
INTRODUÇÃO
A economia capitalista, como enfatiza Przeworski, caracteriza-se pela
coexistência de “dois mecanismos mediante os quais os recursos [produtivos] são
alocados para usos diversos e distribuídos para os consumidores: o mercado e o
Estado” (1995: 7). São mecanismos com lógicas de funcionamento distintas, às
quais tendem a se associar resultados alocativos e distributivos também distintos.
A dinâmica de mercado se expressa num processo autônomo e descentralizado
de interações entre os indivíduos, tendo como suportes a garantia de direitos de
propriedade e a liberdade de iniciativa. O fundamento primário da atuação do
Estado, por sua vez, é a autoridade de que se reveste enquanto forma de poder
político soberano e legitimamente constituído na sociedade. Ancorado em tal
poder, o Estado desempenha um duplo papel correlativamente ao mercado. De
um lado, responde pela definição e pelo efetivo cumprimento das regras do jogo
que ordenam e disciplinam as múltiplas interações materializadas no mercado,
assegurando e, ao mesmo tempo, influenciando sua fruição. De outro, promove
uma alocação direta de recursos na produção de bens e serviços, em sintonia
com prioridades estabelecidas pela agenda pública, “concorrendo” com o
mercado. Em consequência, “há no capitalismo”, recorrendo novamente a
Przeworski, “uma tensão permanente entre o mercado e o Estado” (1995: 7), o
que faz, da demarcação da fronteira entre ambos, um dos temas mais
controversos da literatura política contemporânea.
Essa tensão se observa, em particular, no âmbito da prestação dos
serviços de eletricidade no Brasil. A trajetória percorrida pela evolução do setor,
de suas origens aos dias atuais, é permeada por uma série de transformações na
relação que se estabelece entre mercado e Estado, refletidas nos arranjos
organizacionais e na dinâmica de alocação de recursos da atividade. Apreender a
natureza cambiante de tal relação e interpretá-la constituem o objeto deste
trabalho, que se subdivide em duas partes principais. A primeira delas é dedicada
à discussão das premissas metodológicas, dos conceitos e das proposições
teóricas que irão nortear a abordagem do fenômeno sob investigação. A segunda
1
parte concentra-se no desenvolvimento propriamente dito do argumento analítico,
em consonância com o esquema interpretativo traçado.
O capítulo II condensa o esforço realizado no sentido do delineamento
do arcabouço teórico-metodológico que sustenta a investigação pretendida, onde
se procura articular categorias e processos analíticos destacados por matrizes ou
vertentes teóricas distintas . Após algumas considerações preliminares acerca da
temática que constitui o objeto de estudo, o enfoque converge para o tratamento
de questões entendidas como cruciais ao desenvolvimento do trabalho. O ponto
de partida é a abordagem da escolha racional, examinando-se suas premissas
centrais, sua estrutura lógica e as críticas mais usuais à sua aplicação na análise
dos fenômenos sociais concretos, especialmente nos campos da política e da
economia. Em seguida, desloca-se o foco para as contribuições teóricas
neoinstitucionalistas, que enfatizam o papel das instituições como regras do jogo
para o processamento das múltiplas interações dos indivíduos na sociedade. O
próximo passo é a discussão de mercado e de Estado como mecanismos
alternativos de coordenação de interesses e de alocação de recursos do
capitalismo contemporâneo. Completando o conjunto das questões elencadas, as
teorias da democracia são brevemente sumarizadas, onde são destacados
aspectos relacionados à formação da agenda pública e à autonomia decisória do
Estado. Ao final do capítulo, retorna-se à problemática investigada, promovendose uma sistematização das principais hipóteses e proposições que serão
desenvolvidas na análise empreendida no trabalho.
A segunda parte desdobra-se em três capítulos, cada um deles
contemplando uma etapa específica da trajetória evolutiva das atividades elétricas
no país, cuja demarcação se faz em função da natureza objetiva da relação que
se estabelece entre mercado e Estado no âmbito do setor. O capítulo III
corresponde ao estágio inicial de organização e expansão dos serviços de
eletricidade em território nacional, caracterizado pela prevalência de uma
dinâmica de mercado, e que se estende das últimas décadas do século XIX até o
limiar dos anos quarenta. O capítulo IV recobre o período que vai dos anos
2
quarenta à transição para os anos sessenta, tendo como traço distintivo essencial
o forte avanço do intervencionismo estatal na área, com o correlato estreitamento
do campo de atuação da iniciativa privada. Por fim, o capítulo V compreende o
período de plena estatização do setor, com a responsabilidade pela prestação do
serviço sendo integralmente assumida por empresas públicas, num processo que
alcança o apogeu na transição dos anos setenta e se esgota na segunda metade
da década de oitenta.
A forma como se processa o desenvolvimento do argumento analítico é
comum aos três capítulos. No início de cada um deles, é feita uma síntese da
análise realizada, com o intuito de proporcionar uma visão geral da evolução
setorial ocorrida no período. A seguir, procede-se a uma abordagem mais
detalhada da trajetória percorrida, com ênfase nos arranjos organizacionais e
produtivos da atividade e suas transformações no tempo, em conexão com as
mudanças ocorridas na relação entre mercado e Estado. A parte final é dedicada
a considerações acerca da transição de uma etapa a outra, centradas nos fatores
determinantes da inflexão de rota, isto é, da redefinição dos rumos do caminho
que vinha sendo percorrido.
O capítulo VI aglutina as conclusões do trabalho, que se articulam em
torno de dois eixos principais de abordagem. A parte inicial retoma a discussão de
questões centrais ao desenvolvimento do argumento analítico, orientada no
sentido da promoção de um balanço crítico da investigação realizada, onde se
procura sistematizar os resultados de maior relevância teórica e empírica. Na
sequência, procede-se a um breve exame do desenvolvimento do setor a partir da
transição dos anos oitenta, que assinala a abertura de um novo estágio na
trajetória evolutiva da atividade. Toma forma então um processo abrangente de
reconfiguração dos arranjos organizacionais e produtivos prevalecentes na área,
fundado na redução do intervencionismo estatal, em estreita sintonia com a
agenda das reformas de recorte liberal adotada pelo país a partir dos anos
noventa.
3
A
análise
empreendida
no
âmbito
do
trabalho
apoia-se
no
levantamento de informações realizado junto a três fontes principais de pesquisa.
A primeira delas é representada pela ampla produção acadêmica dedicada ao
estudo da formação social brasileira, em suas várias dimensões, onde se
salientam, evidentemente, as investigações focadas nos serviços de eletricidade.
Outra importante fonte de informações consiste na pesquisa de cunho
documental, com destaque para os instrumentos jurídico-normativos relacionados,
direta ou indiretamente, ao ordenamento e controle das atividades setoriais e para
os planos e programas de investimento na expansão do sistema propostos pela
administração pública. A terceira e, provavelmente, a mais importante fonte de
pesquisa remete ao Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Além de um
expressivo esforço de aglutinação, sistematização e análise de informações
referentes ao desenvolvimento do setor, consolidados em relatórios de pesquisa,
o Centro dispõe de um acervo importante de depoimentos de personalidades que
participaram, em diferentes momentos da história, da formulação e da
implementação das iniciativas estatais na área. O acesso a tais depoimentos, em
sua ampla maioria inéditos, proporcionou subsídios valiosos à estruturação do
desenvolvimento do argumento analítico, notadamente no que se refere à
interpretação da lógica decisória subjacente às ações governamentais no setor.
4
II.
O ARCABOUÇO TEÓRICO E A TRAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR
ELÉTRICO BRASILEIRO
O setor elétrico brasileiro – entendido como o conjunto das atividades
de geração, transmissão e distribuição ou comercialização final de eletricidade –
vem sendo marcado por profundas transformações em suas estruturas
organizacionais e produtivas ao longo da última década. São mudanças que têm,
como orientação geral, o incremento da eficiência técnica e econômica na
prestação do serviço (Castelo Branco, 1996), fundado na privatização e na
concorrência de mercado. Tal processo, contudo, não é específico ao país, nem
fica circunscrito à área de energia elétrica. Quanto ao primeiro aspecto, cabe
observar que, desde meados dos anos setenta, reformas setoriais foram
empreendidas ou estão em andamento em diversas partes do mundo,
especialmente nos continentes europeu e americano (Rosa et al, 1998). Quanto
ao segundo, salienta-se que a reestruturação em curso na atividade se inscreve
no marco mais geral das reformas de cunho liberalizante que começaram a ser
implementadas timidamente pelo país nos anos finais da década de oitenta,
focadas no Estado e nas funções que este desempenha no campo da economia
(Cano, 1993; Sola et al., 1995; Bresser Pereira, 1996; Cruz, 1997; Diniz, 1997),
para se intensificarem na década de noventa.
Deve-se ressaltar, contudo, que outras transformações igualmente
expressivas já ocorreram na área, conformando uma trajetória onde se observam
períodos de maior ou menor dinamismo entremeados por redesenhos na
institucionalidade do setor. Das origens da prestação do serviço no país, que
remontam ao final do século XIX, até o período contemporâneo, tanto as bases
técnicas e econômicas da atividade quanto as regras, mecanismos e
procedimentos que disciplinam e orientam seu funcionamento e reprodução no
tempo
experimentaram
modificações
substantivas,
influenciando-se
reciprocamente. De cerca de 12 MW na virada do século XIX, a potência instalada
brasileira salta para mais de 50 mil MW nos anos noventa, o que se faz
acompanhar de progressiva ampliação das plantas geradoras e da extensão das
5
linhas de transmissão. Essencialmente privadas, na fase mais inicial de
estruturação da atividade, e bastante numerosas, chegando a somar várias
centenas nos anos vinte e trinta, as empresas atuantes na área tornam-se
hegemonicamente públicas a partir dos anos sessenta, não ultrapassando
algumas poucas dezenas nas duas últimas décadas. De sistemas elétricos
isolados, sob controle de empresas verticalmente integradas, isto é, com atuação
simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e distribuição de
energia, o setor avança no sentido da interligação operacional, fundada no
intercâmbio
de
eletricidade,
abrindo
espaço
para
a
emergência
de
especializações produtivas e a conformação de arranjos organizacionais mais
complexos, construídos em torno de integrações horizontais e verticais entre
empresas, de âmbito regional. Em conexão às transformações na materialidade
das relações produtivas setoriais, processam-se alterações também abrangentes
nos pilares de sustentação da atividade. Vale dizer, a legislação básica que define
papéis e funções e especifica as regras a serem observadas pelos agentes
atuantes no setor, de um lado, e os mecanismos de arbitragem e resolução de
conflitos e de coordenação de interesses, de outro, passam por mudanças e
aprimoramentos que, ao mesmo tempo, refletem e influenciam os rumos de seu
desenvolvimento. Podem ser citados, aqui, como ilustrações, a promulgação do
Código de Águas, nos anos trinta, e a criação da Centrais Elétricas Brasileira S.A.
(Eletrobrás), nos anos sessenta, ambas por iniciativa do governo federal.
A dinâmica do desenvolvimento setorial não pode ser dissociada das
características e transformações do contexto sócio-econômico em sentido amplo,
que influenciam, direta ou indiretamente, as oportunidades e os estímulos a
investimentos na área – as necessidades objetivas que se colocam, do ponto de
vista da sociedade, no tocante à prestação de serviços de eletricidade -, e os
meios ou recursos passíveis de serem mobilizados em seu aproveitamento – as
opções ou alternativas de ação com vistas ao atendimento de tais necessidades.
Quanto ao primeiro aspecto, ganha saliência o caráter pervasivo que a
eletricidade vai progressivamente adquirindo no decorrer do século XX, em
6
estreita articulação com os fenômenos da urbanização e da industrialização que
marcam a evolução histórica contemporânea dos países de um modo geral e do
Brasil em particular. De um lado, a modernização dos processos produtivos
amplia as possibilidades de uso da energia elétrica; de outro, a tendência à
concentração populacional em centros urbanos cada vez maiores e mais
adensados e a acelerada expansão e diversificação da atividade industrial criam
condições efetivas para o incremento de sua utilização e consumo. O crescimento
extensivo e intensivo da demanda de mercado, provocado por fenômenos dessa
natureza, está na base do salto na potência instalada do país, anteriormente
mencionada. Quanto ao segundo, inovações tecnológicas aplicáveis à geração,
transmissão e mesmo à distribuição de energia viabilizam e estimulam a
modernização e o aumento da eficiência técnica e econômica na prestação do
serviço. A “descoberta da corrente alternada e (...) [o] desenvolvimento de
turbinas com grande capacidade de geração” (Rosa et al., 1998: 109) constituem
exemplos de tais inovações, ensejando e fomentando o aproveitamento de
economias de escala e de escopo e, por extensão, a reconfiguração dos arranjos
produtivos do setor.
A
estruturação
dos
serviços
de
eletricidade
no
país
e
as
transformações que se processam na dinâmica de funcionamento da atividade no
decorrer do tempo constituem o objeto de estudo deste trabalho. A abordagem do
tema implica considerar dois planos distintos, porém interligados, de análise. O
primeiro corresponde à descrição, de uma perspectiva histórica, das linhas gerais
da trajetória de desenvolvimento do setor, com o intuito de se apreender a
natureza concreta de seus arranjos organizacionais e produtivos e as mudanças
neles ocorridas. Duas hipóteses principais orientam a reconstrução histórica
empreendida. Uma delas é que o caminho percorrido espelha a dinâmica das
relações que se estabelecem entre os agentes atuantes na área, de um lado, e a
o arcabouço regulatório que ordena e controla a prestação do serviço, de outro,
onde intervêm aspectos relevantes do contexto, que afetam o conjunto de
oportunidades e de restrições abertas a estes mesmos agentes. A interveniência
7
do contexto, por sua vez, tem a ver com fatores que atuam tanto do lado da
demanda de energia quanto do lado da oferta. Sob a ótica da demanda, adquirem
saliência aspectos relacionados à dinâmica do desenvolvimento sócio-econômico,
como os movimentos de urbanização e industrialização, que repercutem sobre as
necessidades potenciais e efetivas de consumo de eletricidade. Sob a ótica da
oferta, cabe destacar questões que influenciam, direta ou indiretamente, as
possibilidades
de
mobilização
de
recursos
tecnológicos,
financeiros
e
organizacionais pela atividade. A outra é que o processo de desenvolvimento
setorial apresenta períodos caracterizados por transformações abrangentes no
perfil dos agentes, na lógica decisória e nos produtos da alocação de recursos na
área, conformando arranjos organizacionais e produtivos distintos daqueles
anteriormente prevalecentes. Dito de outra forma, trata-se de uma trajetória
evolutiva não linear, marcada por determinadas inflexões de rota que se
manifestam ao longo do percurso. O segundo plano de abordagem remete à
construção de um argumento analítico capaz de proporcionar explicações que
sejam ao mesmo tempo teoricamente fundamentadas, no sentido de se
referenciarem em supostos e proposições definidas externamente ao fenômeno
investigado, e consistentes, no sentido de permitirem uma interpretação
sistemática e coerente do mesmo. Essa opção metodológica implica demonstrar,
quando da descrição da evolução setorial, que determinados cursos de ação
revelavam-se mais factíveis que outros à luz dos supostos e proposições
analíticas previamente definidos, onde se atribui papel decisivo à natureza
cambiante da regulação estatal relativa à atividade. Em termos mais específicos,
o caminho percorrido pelo desenvolvimento setorial e as inflexões nele ocorridas
guardam estreita relação com a forma e o conteúdo objetivo da atuação do
Estado no setor, envolvendo tanto as funções que este desempenha enquanto
responsável pela definição e garantia do cumprimento das regras do jogo – o
Estado regulador -, quanto as de alocar diretamente recursos na área – o Estado
empresário.
8
A investigação pretendida envolve, portanto, considerações a respeito
de três dimensões analíticas principais, estreitamente interrelacionadas. A
primeira tem a ver com os agentes atuantes no setor, salientando-se a lógica
decisória referente às estratégias que adotam no desenvolvimento de suas
atividades e, especificamente, no tocante à alocação de recursos na expansão do
sistema. Adere-se aqui ao suposto básico da escolha racional, onde se enfatizam
a intencionalidade do agente e a busca de eficiência na promoção de seus
interesses e na consecução dos objetivos que persegue. A segunda refere-se aos
mecanismos e regras de ordenamento e controle do funcionamento da atividade
que balizam as decisões dos agentes e as condutas que adotam, assegurando a
acomodação de interesses e , com ela, a cooperação necessária à prestação do
serviço à sociedade. A discussão dessa temática converge para uma reflexão
sobre a forma como os arranjos institucionais influenciam os interesses, as
motivações, as decisões e os produtos das ações humanas nos diversos campos
de atividade, e são por eles influenciados. A terceira e última dimensão analítica
guarda relação com as interfaces entre o desenvolvimento da atividade e
configuração objetiva do contexto onde esta se inscreve. As oportunidades
abertas ou ao alcance dos agentes setoriais no tocante à alocação de recursos
que fazem e o espectro dos interesses incorporados nas decisões que tomam são
contingentes da forma como se estruturam e se processam as interações no
ambiente em sentido amplo. São questões que conduzem inevitavelmente ao
papel desempenhado pelo Estado na dinâmica dos processos produtivos das
sociedades capitalistas modernas, numa discussão que passa por suas relações
com o mercado e avança na direção da democracia.
Em consonância com a opção metodológica acima descrita, procedese a seguir ao delineamento geral dos principais conceitos e proposições que
fundamentam a construção do argumento analítico. Sua elaboração se referencia
numa
revisão
da
literatura
sócio-política
que
trata
de
tais
temáticas,
empiricamente orientada para as questões pertinentes à abordagem do fenômeno
investigado. Como o corpus teórico constituído em torno da reflexão sobre a ação
9
e a ordem social – temas que estão no cerne da investigação pretendida – é não
apenas extenso mas eclético, sendo marcado por divergências ao mesmo tempo
ontológicas e epistemológicas, não há como escapar ao imperativo de se
restringir o leque das vertentes interpretativas consideradas nem de se proceder a
uma simplificação do tratamento de determinadas questões, sem perder de vista,
contudo, a preocupação com a coerência e consistência da análise empreendida.
A atenção é dirigida inicialmente para a formulação teórica da escolha
racional - ponto de partida para a análise da ação no campo da economia - onde
se procura examinar suas premissas ou pressupostos básicos, salientando a
concepção lógica das proposições que nelas se apoiam. A abordagem realizada
enfatiza a aplicação do suposto da racionalidade às interações sociais, o que
implica introduzir a interdependência decisória e, com ela, a consideração tanto
de situações que envolvem a formação de alianças e coalizões, ancoradas em
interesses comuns ou convergentes, quanto situações que envolvem disputas
entre interesses divergentes. Isto remete à teoria dos jogos, que desenvolve
conceitos e técnicas analíticas, de fundamentação matemática, para a discussão
da influência recíproca das condutas estratégicas dos agentes nas circunstâncias
onde os resultados das ações de cada um deles não dependem apenas de suas
próprias decisões, mas das decisões dos demais. O passo seguinte consiste na
realização de um balanço das críticas mais recorrentes à aplicação do
instrumental analítico da escolha racional e da teoria dos jogos à discussão das
interações humanas que se processam no mundo real, em especial no campos da
política e da economia. Esse balanço é utilizado para construir uma ponte entre a
escolha racional e a análise institucional, entendidas e tratadas como enfoques
distintos mas não excludentes sobre a conduta assumida pelos agentes nas
situações concretas onde sua ação se desenvolve.
Avança-se, então, na direção de uma reflexão a respeito das
instituições e de como operam correlativamente à ação, tendo como referência
10
contribuições teóricas que se inscrevem na vertente neoinstitucionalista1. Procurase, num primeiro momento, demarcar o campo analítico de aplicação do conceito
de instituição, o que converge para a adoção de uma definição onde assume o
significado básico de “regras do jogo” para a dinâmica das interações sociais.
Num segundo momento, a atenção se volta para a discussão de aspectos
relacionados à conformação dos desenhos institucionais, conduzida a partir de
dois ângulos principais de abordagem. De um lado, o enfoque recai no processo
de formação e diferenciação das instituições, envolvendo considerações
referentes às razões que motivam as mudanças, à forma como se materializam e
aos fatores nos quais se sustentam. De outro, a ênfase se concentra nos efeitos
ou implicações derivados de tais mudanças sobre a conformação da arena
decisória de um dado setor ou campo de atividade, o perfil e a composição dos
atores que nele se inscrevem e as ações que desenvolvem, em conexão à
difusão destes efeitos no ambiente em sentido amplo.
O último bloco de questões remete ao exame da estruturação dos
arranjos organizacionais que fundamentam o processo de alocação dos recursos
produtivos da sociedade e a distribuição de seus resultados, tendo como
referências polares as noções de mercado e Estado. Discute-se, inicialmente, a
concepção de mercado enquanto mecanismo de coordenação de interesses, a
lógica competitiva e descentralizada das interações que nele se processam e a
“eficiência” dos produtos dela derivados. Essa abordagem converge para uma
sistematização das críticas mais recorrentes ao funcionamento dos mercados no
mundo real, evidenciando problemas tratados como “imperfeições” e “falhas” da
alocação de recursos que promovem. Procedimento similar se aplica à concepção
de Estado, onde se busca apreender a forma como se organiza e opera,
enfatizando aspectos relacionados à eficiência e eficácia no desenvolvimento da
1
Ver, a respeito, DiMaggio, J. P. and Powell, W. W., Introduction. In: Powell, W. W. and DiMaggio,
J. P. (ed. ), The new institutionalism in organizational analysis. Chicago: The University of Chicago
Press, 1991.
11
atividade governativa. Ganha saliência, no âmbito dessa discussão, o exame da
relação entre Estado e mercado, que assume, ao mesmo tempo, caráter
complementar e conflitivo. Numa ponta, o Estado assegura o suporte institucional
para a alocação de recursos que se processa no mercado; na outra, compete com
o mercado na alocação destes mesmos recursos, segundo uma lógica distinta e
com resultados também distintos. Cria-se, dessa forma, uma tensão entre ambos,
cuja mediação se referencia nas instituições constitutivas da democracia. Isto leva
ao direcionamento do foco analítico para uma abordagem das concepções
dominantes
de
democracia
nas
sociedades
capitalistas
modernas,
os
instrumentos e procedimentos sobre os quais se apoia e a influência que exerce
sobre os fluxos dos eventos relevantes do sistema social.
1. As premissas e proposições centrais da teoria da escolha racional
Partindo do postulado básico do individualismo metodológico - a
proposição de que, para “explicar um fenômeno social, é necessário descobrir
suas causas individuais” (Boudon, 1995: 33) -, a teoria da escolha racional pode
ser tomada, numa primeira aproximação, como a aplicação do instrumental da
economia neoclássica , mais especificamente, a suposição do comportamento
racional do indivíduo enquanto agente econômico – o denominado homo
economicus - a outros campos das ciências humanas. Essa suposição expressa a
idéia de que, “quando defrontadas com vários cursos da ação, as pessoas
comumente fazem o que acreditam que levará ao melhor resultado global” (Elster,
1994: 38), ou seja, escolhem a alternativa mais afim com seus interesses e
objetivos.
O modelo analítico da escolha racional
envolve um conjunto de
supostos sobre a ação humana e, consequentemente, sobre o indivíduo enquanto
ator social. As premissas básicas são a intencionalidade na busca de resultados e
a racionalidade na definição da conduta a ser adotada tendo em vista este
propósito (Reis, 1994; Elster, 1994). Em conexão com tais premissas, Elster
argumenta que “as ações são explicadas por oportunidades e desejos - pelo que
12
as pessoas podem fazer e pelo que querem fazer” (1994: 30). Os desejos
estimulam a ação ou, como afirma Laver, “motivam as pessoas a agirem numa
particular direção” (1997: 18), dentre as opções abertas às mesmas.
Os desejos remetem a interesses e preferências que são próprios ao
indivíduo ou agente, ainda que, em diversas circunstâncias, comuns ou
compartilhados por outros agentes. Interesses e preferências são decisivos no
direcionamento de sua conduta quanto aos objetivos a serem alcançados, isto é,
aquilo que quer fazer. Introduz-se aqui o suposto de intencionalidade,
expressando a idéia de que o indivíduo define objetivos a serem perseguidos e
age em busca de sua realização (Reis, 1984). A intencionalidade é fundamental
na transformação das preferências e desejos em propósitos e, por extensão, no
desencadeamento da ação. A materialização dos desejos, por sua vez, envolve a
mobilização de recursos, entendidos como tudo aquilo que pode ser usado como
suporte ou sustentação à ação. A capacidade de mobilizar recursos assume, sob
essa ótica, papel estratégico para o ator, determinando a amplitude das
alternativas de ação ao seu alcance. Tal capacidade remete à dotação de
recursos específica de cada indivíduo, que é não apenas limitada, mas
desigualmente distribuída entre os mesmos. A dotação de recursos tem
implicações em duas direções principais: possibilita aos indivíduos fazerem
determinadas coisas e, ao mesmo tempo, cria constrangimentos a que possam
fazer outras (Laver, 1997). Vale dizer, a uma desigual distribuição de recursos
corresponde uma capacidade também diferenciada de agir.
A suposição de racionalidade intervém no quadro analítico da ação
fazendo a ligação entre o que os indivíduos querem fazer e o que eles podem
fazer. Racionalidade é indissociada de intencionalidade e se refere à avaliação
que o agente faz a respeito da forma como deve agir para alcançar os objetivos a
que se propõe. Orientada para o resultado da ação - a consecução dos objetivos
pretendidos - e apoiada nos recursos passíveis de serem mobilizados, a escolha
racional assume um caráter instrumental (Reis, 1984; Elster, 1994; Laver, 1997).
Implica selecionar, dentro do campo daquilo que é possível fazer, a conduta que
13
expresse, do ponto de vista do agente, uma articulação adequada dos recursos
disponíveis com vistas aos propósitos visados.
A questão de selecionar dentre as alternativas de conduta ao alcance
do indivíduo aquela que se configura como a mais indicada vai ser resolvida
analiticamente através do recurso à idéia de eficiência. Conforme Reis, o modelo
analítico da escolha racional “inclui (...) a preocupação com a eficiência” (1988: 4),
significando que, ao articular os recursos disponíveis com o intuito de alcançar os
objetivos a que se propõe, o agente procura a melhor forma possível para sua
realização. A orientação no sentido da eficiência constitui, como afirma Reis
(1988), elemento indispensável para a caracterização da ação como racional. A
esse respeito, Elster afirma que “as ações são avaliadas e escolhidas não por
elas mesmas, mas como meios mais ou menos eficientes para um fim ulterior”
(1994: 38). O atributo de racionalidade traduz a escolha de uma estratégia ou
curso de ação que mais efetivamente atende aos desejos e propósitos dos atores
(Laver, 1997).
Cabe retomar então a referência feita por Elster às oportunidades como
componente do quadro explicativo da ação. As oportunidades podem ser
entendidas como o elemento que vai determinar, dentro do campo das
alternativas de ação que estão ao alcance do agente - as várias possibilidades
alternativas de articulação dos recursos sob seu controle -, aquelas que são
factíveis, isto é, que podem efetivamente ser adotadas. “As oportunidades são
objetivas, externas” (Elster, 1994: 37) aos agentes. Atuam coercitivamente sobre
os mesmos, restringindo o conjunto das ações exequíveis, portanto, passíveis de
serem avaliadas e implementadas numa dada situação concreta. Isto equivale a
dizer que a idéia de racionalidade não se sustenta em si mesma (Reis, 1988): à
medida que se refere ao comportamento do agente em um ambiente, assume
inescapavelmente uma configuração contextual. Ambientes com características
distintas ou mudanças em aspectos relevantes do ambiente influenciam de forma
decisiva a conduta do agente. Ações vistas como opção racional num dado
14
contexto podem deixar de ser a escolha mais adequada ou sequer estarem
abertas à avaliação do agente num ambiente distinto.
Toma forma aqui um primeiro e importante ponto de conexão da
abordagem da escolha racional com as perspectivas analíticas que enfatizam os
aspectos
estruturais
ou
institucionalizados
da
organização social como
condicionantes da ação. O aspecto incisivo a esse respeito é que a ação não se
desenvolve num plano vazio de significados, mas num quadro social de referência
objetivamente estabelecido, que cabe ao agente reconhecer e incorporar em sua
conduta. Assim, “encontrar os melhores meios para os fins dados” - a escolha
racional - pode ser entendida como “um modo de adaptar-se otimamente às
circunstâncias” (Elster, 1994: 41), o que, em princípio, aponta para uma aparente
convergência entre a escolha racional e as interpretações sociológicas
normativas, na linha de pensamento associada a Durkheim, que enfatiza os
aspectos ligados ao consenso e à integração social. No entanto, ao contrário das
abordagens de fundamentação normativa, para a escolha racional a adequação
da conduta do indivíduo às circunstâncias do ambiente não implica que a
realidade social objetiva que este expressa vá determinar plenamente o
comportamento ou ação adotada (Elster, 1994). Embora influenciada pelo
contexto, a ação representa, acima de tudo, uma escolha do indivíduo, derivada
da avaliação que faz a respeito das estratégias que estão abertas ao mesmo,
tendo em vista os objetivos que pretende alcançar. Dito de outra forma, a conduta
adotada expressa uma opção do agente, o que significa, em essência, uma
deliberação autônoma. Racionalidade envolve necessariamente autonomia premissa central para a escolha racional -, “pois admitir a busca de objetivos sem
esta autonomia redundaria em reduzir a ação intencional às condições próprias
do comportamento estimulado ou condicionado, onde o sujeito atuante
desaparece como tal” (Reis, 1988: 27). Trata-se de um cálculo fundado no
raciocínio lógico, onde são considerados os custos, os benefícios e os riscos
envolvidos na ação (Laver, 1997). Implica dizer que o indivíduo sabe ou acredita
saber o que está fazendo e o que espera obter do comportamento que adota,
15
expressando um componente ativo da racionalidade (Reis, 1988; Giddens, 1989;
Elster, 1994)
O caráter contextual da ação - o ambiente como quadro de referência
para as decisões do indivíduo - implica um elemento de cognição, necessário à
identificação das opções de conduta factíveis ao mesmo nas circunstâncias de
imersão da ação. O modelo analítico da escolha racional ganha assim um novo
componente, mais especificamente, a capacidade cognitiva do agente, que vem
conferir instrumentalidade ao processo decisório sobre as condutas a serem
adotadas. Ação racional deve ser vista, portanto, como ação informada, no
sentido de o agente buscar um “diagnóstico lúcido da situação (...) onde esta
supostamente ocorre” (Reis, 1988: 4), o que supõe capacidade de percepção e
interpretação das oportunidades associadas às circunstâncias onde a atuação é
desenvolvida.
O
acesso,
controle
e
processamento
de
informações
instrumentalizam a escolha da alternativa de conduta que o agente considera
mais eficaz dentre o espectro de opções compatíveis com seus propósitos e
recursos e factíveis com as restrições do contexto.
Se ação racional é ação informada, torna-se possível argumentar,
como o faz Reis (1988), que quanto mais informado e, consequentemente, quanto
mais lúcido for o diagnóstico da situação que conforma o quadro de referência da
ação, maior o grau de racionalidade envolvido no comportamento do ator. Em
decorrência, é razoável falar em diferentes níveis de racionalidade, refletindo
graus variados em que os aspectos relevantes da realidade objetiva na qual a
ação está imbricada são percebidos e processados pelo agente. Graus variados
de racionalidade, por sua vez, podem ser vinculados à eficiência na escolha da
forma de agir frente aos propósitos visados. Em outros termos, oportunidades não
percebidas e não consideradas na avaliação feita pelo agente ou percebidas de
forma equivocada têm reflexos sobre o grau de adequação da conduta
selecionada ou mesmo sobre a natureza dos resultados obtidos. “A pessoa pode
deixar de perceber certas oportunidades e por isso não escolher o melhor meio
disponível de realizar o seu desejo. Inversamente, se acreditar que certas opções
16
não exequíveis sejam exequíveis, a ação pode ter resultados desastrosos” (Elster,
1994: 37)
O processamento de informações que fundamenta a racionalidade da
escolha, por sua vez, está relacionado ao comprometimento ou engajamento
efetivo do agente com os propósitos da ação, traduzindo o fato de que “os fins ou
objetivos devem estar estabelecidos de maneira suficientemente clara e
consistente”(Reis, 1988: 27). Esse comprometimento com os resultados da ação
remete às características do indivíduo enquanto agente, suas preferências e
objetivos mais gerais, orientadores de uma conduta que lhe é própria, no sentido
de uma identidade pessoal que se manifesta no curso de suas atividades ao
longo do tempo (Reis, 1988). Nos termos em que a questão é tratada por Laver
(1997), para ser capaz de selecionar, dentre o conjunto de oportunidades de ação
abertas à sua escolha, aquela que mais efetivamente atende a seus desejos, o
indivíduo deve ser capaz de ordenar ou hierarquizar suas preferências, de forma
a poder comparar as alternativas com as quais se defronta. Tem-se aqui um
segundo ponto possível de conexão com as abordagens institucionais, já que é
inescapável a referência aos condicionantes sociais - normas, valores e
instituições de diferentes naturezas - na formação das preferências e dos traços
de uma identidade pessoal. Em sua formulação mais ortodoxa, associada aqui à
análise desenvolvida pela teoria econômica neoclássica, a escolha racional
negligencia essa conexão, tomando as preferências do agente como dadas. A
formação das preferências não é problematizada, conformando uma evidente
simplificação de seu modelo analítico - aspecto a ser retomado e enfatizado mais
à frente.
Até esse ponto, o esquema analítico da escolha racional foi tratado em
termos da relação que se estabelece entre o ator e o ambiente, onde, em síntese,
suas preferências e objetivos são tomados como dados e o curso da ação como
influenciado, em algum nível, por fatores estruturais do contexto objetivo onde a
ação se inscreve, também dado. No entanto, aquilo que o indivíduo deseja pode
ser, e frequentemente o é, objeto de desejo de outros indivíduos ou ter
17
implicações, de distintas naturezas, sobre interesses dos mesmos, fazendo-se
necessário introduzir, no quadro de referência da ação, as implicações derivadas
da interação social. Sob esse ponto de vista, intencionalidade e comportamento
orientado para resultados são melhor descritos como busca de interesses (Reis,
1988). Refletindo a interdependência das decisões, o comportamento do ator
adquire configuração de ação estratégica: o processo decisório deve levar em
consideração também os interesses e a conduta dos demais atores (Elster, 1989;
Reis, 1984). Vale dizer, as decisões são feitas em função de um conjunto de
oportunidades e constrangimentos que expressam as opções abertas ao
indivíduo, cujo escopo, por sua vez, “é constrangido, e mesmo modelado, pelos
conjuntos de oportunidades dos outros na sociedade” (Mercuro e Medema, 1997:
115).
2. Escolha racional, interação social e teoria dos jogos
Os desdobramentos derivados da interação social têm a ver com as
interferências dos objetivos, preferências, interesses e ações de uma pluralidade
de indivíduos entre si. As questões de maior relevância analítica referem-se a
situações onde as preferências dos indivíduos e as decisões que tomam
motivadas pelas mesmas dizem “respeito não apenas aos que têm tais
preferências, mas também a outras pessoas” (Ricker e Ordeshook, 1971, citado
por Reis, 1984: 113). Dessa interseção resultam implicações em três direções
principais: preferências ou interesses divergentes, preferências cuja realização
têm efeitos secundários ou laterais sobre terceiros, e preferências ou interesses
convergentes, cuja realização envolve outras pessoas.
As preferências ou interesses divergentes levam a situações onde a
realização dos objetivos de determinado agente defronta-se com a existência de
outros agentes com objetivos contrários e possivelmente incompatíveis. Como a
ação racional é movida pelo interesse próprio - o indivíduo “age de modo a
beneficiar-se” (Elster, 1994: 119) -, a conduta adotada pelo agente com vistas à
consecução de seus objetivos tende a criar constrangimentos e, no extremo, a
18
bloquear a possibilidade de outros agentes também perseguirem seus interesses.
Em consequência
da interferência recíproca associada à concorrência ou ao
conflito de interesses,
os elementos decisivos na delimitação daquilo que os
indivíduos podem fazer não vão se restringir mais apenas aos recursos que
mobilizam e aos constrangimentos associados ao contexto institucional onde a
ação se inscreve, mas também às restrições determinadas pelos objetivos
perseguidos por outros agentes e as correspondentes ações que adotam com
este propósito. A natureza do conflito,
a forma como se manifesta e suas
implicações vão depender do grau efetivo de engajamento dos indivíduos com os
objetivos visados, isto é, de como tais objetivos se colocam frente às respectivas
preferências, fundamento da intencionalidade que move a ação, bem como da
capacidade do indivíduo em controlar as opções de ação abertas àqueles que
podem criar constrangimentos ou restrições às suas decisões. Isto remete a um
processo de coerção mútua que tem, como elemento central, o poder relativo do
indivíduo de se impor sobre os outros indivíduos, expressando sua capacidade de
fazer escolhas independentemente do consentimento dos demais (Mercuro e
Medema, 1997; Laver, 1997). A resolução ou solução dos conflitos guarda
relação, portanto, com o balanço de forças e a capacidade coativa dos diferentes
indivíduos, que se fundamentam, em última instância, na criação e garantia de
direitos, institucionalizados, nas sociedades contemporâneas, sob a forma de lei –
aspecto a ser retomado mais à frente, quando da discussão do papel das
instituições correlativamente à ação.
As consequências não pretendidas da ação dizem respeito a
interferências involuntárias da conduta de um determinado agente sobre si próprio
e, em especial, sobre outros agentes, não diretamente envolvidos com os
propósitos originais visados pelo agente responsável pela ação. Tratados como
“externalidades” (Reis, 1984; Elster, 1994; Papandreou, 1994), esses efeitos
podem ser positivos ou negativos, dependendo do fato de serem convergentes ou
divergentes frente aos interesses e preferências dos indivíduos sobre os quais
incidem.
Em geral, tendem a ser pouco expressivos vis-à-vis os resultados
19
originalmente pretendidos pela ação (Elster, 1994). No entanto, vem se tornando
cada vez mais evidente, sobretudo no campo da economia, que a manifestação
daquilo que é percebido como “interdependências externas nas relações entre os
agentes (...) tem crescido rapidamente” (Papandreou, 1994: 2). A justaposição ou
o efeito de agregação das externalidades atua no sentido de intensificar sua
expressividade, tornando-as analiticamente relevantes no quadro de referência da
ação, o que se aplica, em particular, às externalidades negativas. Dentre outras
implicações, tais externalidades criam dificuldades adicionais para lidar com o
problema da resolução dos conflitos de interesse, acima mencionado. A questão
central aqui é o fato de as externalidades serem “ubíquas e recíprocas – qualquer
(re)definição, (re)alocação, ou mudança no grau de coação fundada em direitos
beneficia alguns interesses e prejudica outros; a externalidade se mantém, sendo
meramente redistribuída” (Mercuro e Medema, 1997: 116). Dito de outra forma,
não existem soluções no sentido de evitar que se manifestem, mas apenas
resoluções para situações objetivamente configuradas, com benefícios ou
prejuízos sendo “canalizados numa particular direção através da delimitação legal
de direitos” (Mercuro e Medema, 1997: 116).
Por último, as preferências ou interesses comuns de um determinado
conjunto indivíduos ou agentes, derivadas das condições objetivas de sua
inserção na organização social, estão na origem da transição da ação individual
para a ação coletiva, isto é, da formação dos atores coletivos. Dado o caráter
intencional da ação, seria de se esperar, como implicação lógica, que indivíduos
com interesses convergentes agissem na promoção de tais interesses, através de
um processo natural e abrangente de cooperação. No entanto, Olson (1965)
mostrou o caráter problemático dessa cooperação, argumentando a respeito da
inconsistência lógica envolvida na extrapolação da premissa relativa ao
comportamento individual para o comportamento coletivo. Partindo do suposto da
racionalidade, o autor afirma que os indivíduos não agem “naturalmente para a
promoção do interesse comum” (Reis, 1984: 116). Ao contrário, tendem a agir
como “free rider”, à medida que podem se beneficiar do resultado da ação
20
coletiva, sem o envolvimento pessoal de recursos em sua realização. O
desdobramento mais geral da proposição olsiana é que a ação coletiva só se
realiza na presença de coerção externa ou do que denomina “incentivos
separados”, isto é, estímulos que incidam de forma seletiva em termos individuais,
criando
interesses
específicos
na
“participação
na
ação
coletiva
mas
independentes” (Reis, 1984: 116) dos resultados coletivos em si mesmos.
A
resolução do dilema olsoniano, no entanto, pode se processar através da
consideração de aspectos como a existência de coordenação e a apreensão da
ação como um fluxo no tempo, entre outros (Laver, 1997) – questão que também
será retomada mais à frente.
Ao caráter interdependente da ação associa-se portanto uma
multiplicidade de situações onde o aspecto saliente é a interferência recíproca dos
objetivos de determinados indivíduos e das correspondentes ações que adotam
em torno de sua promoção sobre os objetivos e as ações de outros, quer sejam
atores propriamente individuais ou coletivos, e quer seja tal interferência
intencional ou involuntária. Para lidar analiticamente com
“as interações
intencionais entre indivíduos intencionais” (Elster, 1989: 181), quaisquer que
sejam sua natureza, a teoria dos jogos se introduz em conexão com a suposição
da escolha racional.
A teoria dos jogos consiste fundamentalmente na aplicação do
raciocínio lógico-dedutivo na abordagem do processo de tomada de decisões nos
diversos campos das relações sociais, sempre que a situação supuser a presença
de comportamentos orientados para a eficácia na busca de resultados e envolver
conflitos de interesse. Seu esquema analítico tem três elementos principais: os
atores, em número e natureza variada; as preferências, interesses e dotações de
recursos potencialmente mobilizáveis por tais atores, que determinam os objetivos
e o espectro das ações ao alcance dos mesmos; e as regras do jogo, que
delimitam o espectro das ações factíveis no contexto concreto da interação.
21
Dada a suposição de racionalidade, cada ator procura adotar, dentre o
conjunto de ações ou estratégias factíveis, aquela que melhor atenda a seus
interesses. Nesse processo de escolha da estratégia a ser adotada, deve levar
em consideração a conduta dos demais atores, já que as estratégias são
interdependentes. Isto implica não apenas que a “escolha de cada um depende
da escolha de todos” (Elster, 1989: 184), mas também que “o ganho de cada um
depende da escolha de todos” (1989: 183) - característica central dos jogos. Se
as decisões são interdependentes, a informação requerida para se proceder à
escolha racional da conduta a ser adotada passa a envolver, além dos aspectos
relevantes da situação que conformam as regras do jogo, os recursos, as
preferências e as informações manipuladas pelos demais atores, bem como “a
estrutura de recompensas que mapeia” (Elster, 1989: 184) as opções individuais e
os respectivos resultados. A solução do jogo corresponde, em termos teóricos, ao
conjunto de estratégias para o qual os diferentes atores tenderiam naturalmente a
convergir caso dispusessem de informações perfeitas. A essa concepção de
solução se associa a idéia de equilíbrio, expressando o “conjunto de estratégias
em que a estratégia de cada ator é ótima vis-à-vis as dos outros” (Elster, 1989:
184): os planos dos atores - seus objetivos e as estratégias que adotam - são
consistentes entre si (Elster, 1994).
Existindo apenas um ponto de equilíbrio, este se configura como
solução automática, significando, na terminologia da teoria dos jogos, a noção de
que nenhum ator ganha com a deserção ou a não-cooperação. Nestas
circunstâncias, a consistência das estratégias adotadas deriva naturalmente da
racionalidade dos atores, sendo entendida e tratada como solução eficiente. No
entanto, existindo mais de um ponto de equilíbrio, o jogo não tem solução
univocamente determinada. Torna-se necessário então proceder a uma seleção
coletiva da melhor alternativa, o que exige mediação ou coordenação - elemento
que se coloca além dos limites analíticos da teoria dos jogos. O aspecto incisivo
aqui, contudo, é que, existindo ou não soluções univocamente determinadas, não
há como escapar à natureza complexa da noção de eficiência, ou seja, o que
22
“está subsumido ou inscrito no conceito” (Mercuro e Medema, 1997: 118). Como
será discutido mais à frente, um resultado que é tratado como eficiente só o é
face ao arranjo institucional que estabelece as regras do jogo, e, portanto, face
aos valores dominantes e à distribuição de poder na tomada de decisões
determinadas por este mesmo arranjo institucional.
Dentre os vários modelos passíveis de serem considerados, uma
primeira e importante distinção é entre jogos com dois ou mais de dois atores. O
modelo fundamental é o jogo de dois atores com soma zero. Neste caso, os
interesses são divergentes e o ganho de um restringe a possibilidade do ganho do
outro. São jogos operacionalmente mais simples e sempre têm solução (Elster,
1989), embora nem sempre fique clara qual a solução mais adequada
(Przeworski, 1988). Se o jogo não é de soma zero, significando que o total dos
ganhos e sua distribuição dependem do conjunto de estratégias adotadas, a
opção racional sob a ótica de cada ator isoladamente não corresponde
necessariamente à solução ótima do ponto de vista coletivo. Em outros termos, os
planos dos atores podem não ser consistentes entre si. O jogo conhecido como
Dilema do Prisioneiro constitui a ilustração mais recorrente de interações onde a
estratégia dominante, correspondente à opção que tenderia a ser feita por
indivíduos motivados buscando maximizar o interesse próprio, conduz a resultado
inferior a resultado alternativo “que poderia ser alcançado se cada um deles se
comportasse de forma diferente” (Laver, 1997: 47). Envolvendo mais de dois
atores, os jogos exigem considerações analíticas bem mais complexas e nem
sempre têm solução (Elster, 1989). No entanto, são passíveis de serem
reduzidos ao modelo fundamental do jogo de dois atores, adotando-se para tanto
determinadas transformações simplificadoras, como a formação de coalizões fusão de vários atores em um ator coletivo.
Outra distinção essencial tem a ver com o fato de o jogo ser ou não
iterativo. “Quando as mesmas pessoas interagem ao longo de um determinado
período de tempo, a possibilidade de cooperação é muito maior que quando elas
têm uma única interação” (Laver, 1997: 51). O aspecto saliente aqui é a
23
emergência, no plano analítico, de uma série de estratégias não factíveis de
serem consideradas caso a interação não se reproduzisse no tempo. Tratadas
como estratégias condicionais, no sentido de a opção de conduta a ser adotada
num dado momento levar em consideração escolhas feitas anteriormente ou que
poderão ser feitas no futuro, implicam alterações expressivas não apenas na
natureza dos cursos de ação abertas ao indivíduo, mas também nos resultados
passíveis de serem alcançados. A aplicação da estratégia Tit-for-Tat ao jogo do
Dilema do Prisioneiro, na linha das análises desenvolvidas por autores como
Taylor (1976) e Ostrom (1992), é ilustrativa de tais mudanças, mostrando que,
quando existe iteração, é possível, em determinadas circunstâncias, equacionar o
problema da ação coletiva subjacente ao mesmo (Laver, 1997).
Ao mesmo tempo em que contribui para evidenciar a multiplicidade de
estratégias passíveis de serem adotadas nas interações sociais e, com ela, a
complexidade de se alcançar resultados que traduzem soluções eficientes para os
atores envolvidos no processo, a consideração da possibilidade da iteração é
importante no sentido de ressaltar o papel das normas e dos mecanismos de
coordenação na promoção de tais resultados (Laver, 1997). Com a iteração, a
combinação de ações que conduzem ao equilíbrio no jogo alarga-se
enormemente, trazendo à cena um novo tipo de problema, mais especificamente,
o da escolha de um dentre os vários caminhos possíveis de serem trilhados,
numa situação que supõe cooperação recíproca. Soluções baseadas na
imposição de conduta – o papel das normas – ou na negociação entre os atores
relevantes – o papel dos mecanismos de coordenação e de articulação de
interesses – surgem como alternativas plausíveis para lidar com a questão, numa
discussão onde o recurso às análises propriamente institucionais revela-se de
grande utilidade.
24
3. As críticas mais usuais à teoria da escolha racional e suas interfaces com
as análises institucionais
Fundado
no
individualismo
metodológico
e
nos
supostos
da
racionalidade e da intencionalidade do comportamento humano, o esquema
analítico da escolha racional dispõe de uma espécie de instrumento universal de
análise - “universal tool kit”, na designação de Steinmo e Thelen (1992) - passível
de ser aplicado, em princípio, à abordagem de virtualmente qualquer interação
social onde esteje envolvida a preocupação com a promoção de interesses,
individuais ou coletivos. Tal esquema tem evidentes vantagens metodológicas,
onde se sobressaem sua lógica dedutiva e a parcimônia de seus pressupostos
(Steinmo e Thelen, 1992; Laver, 1997). Se isto é verdade, também o é o fato de
se defrontar com uma série de críticas, formuladas sob diferentes ângulos de
abordagem, e que se dirigem tanto a esses mesmos pressupostos quanto aos
produtos das análises que neles se apoiam. Um primeiro conjunto de questões
remete às simplificações subjacentes à formulação e ao desenvolvimento de seu
modelo analítico. Um segundo conjunto de questões, dirigidas mais diretamente à
teoria dos jogos, refere-se aos vários problemas operacionais encontrados
quando de
sua aplicação ao estudo de interações sociais mais complexas,
envolvendo aspectos relacionados tanto à natureza quanto à interpretação dos
resultados obtidos.
Dentre as críticas mais recorrentes às premissas analíticas da escolha
racional, encontram-se as restrições interpostas à adesão ao princípio do
individualismo metodológico. Formuladas de perspectivas teóricas diversas, como
o marxismo e a sociologia durkheimiana, são reiteradas em período recente pelo
novo institucionalismo. O que se critica aqui é sobretudo o “reducionismo
behaviorista”, derivado da postura de se buscar a interpretação dos fenômenos
sociais a partir das consequências agregadas ou não pretendidas das ações de
indivíduos ou grupos de indivíduos (March e Olsen, 1989, Steinmo e Thelen,
1992; Laver, 1997). Outra questão também polêmica está relacionada à
centralidade ou primazia conferida à busca de resultados, isto é, ao caráter
25
instrumental que a ação assume no modelo da escolha racional. A essa primazia
é contraposta a representação do comportamento referida ao “desenvolvimento
de um senso de propósito, direção, identidade e pertencimento” (March e Olsen,
1989: 6), na linha das abordagens que enfatizam aspectos relacionados a
“costumes, convenções e códigos de conduta” (Mercuro e Medema, 1997: 131),
entre outros. Tal crítica é dirigida mais especificamente ao utilitarismo de suas
interpretações, que tratam a ação e, por extensão, os eventos sociais como
resultados de decisões baseadas estritamente no cálculo dos agentes (March e
Olsen, 1989). O contraponto teórico se fundamenta no argumento de que, em
grande parte das situações, o comportamento humano deriva primariamente de
regras definidas no plano da sociedade que o indivíduo procura seguir (Powell e
DiMaggio, 1991) - o indivíduo visto mais como “rule-following satisficers” que
propriamente “rational maximizers”, conforme descrição analítica de Steinmo e
Thelen (1992).
Trata-se, em suas linhas gerais, de críticas que podem ser inscritas no
contexto mais amplo do confronto de paradigmas que caracteriza o debate
sociológico
contemporâneo,
contrapondo
abordagens
micro
e
macrossociológicas2, cujo exame escapa aos propósitos deste trabalho. É
suficiente aqui registrar o reconhecimento, por parte de autores que aderem à
escolha racional, das limitações de seu instrumental analítico para dar conta das
múltiplas dimensões dos fenômenos sociais e da consequente necessidade de
articulá-lo com uma ontologia propriamente sociológica, que enfatize o papel das
normas e das instituições de diferentes naturezas (Reis, 1988; Elster, 1989), isto
2
A reflexão sobre a ação e a ordem social, comum a um grande número de disciplinas (Friedberg,
1989; Alexander, 1987; Ahrne, 1990 ), pode ser esquematicamente dividida em duas perspectivas
principais de abordagem. O ponto de partida, de um lado, são argumentos caracterizados pela
ênfase nos indivíduos e o direcionamento do enfoque analítico para a interação que estabelecem
entre si, designados comumente como construções microssociológicas. De outro, têm-se
argumentos voltados à interpretação da organização e dinâmica de funcionamento da sociedade,
onde a ênfase analítica converge para as instituições e o papel que estas exercem sobre as
condutas dos indivíduos (Knorr-Cetina, 1981, Alexander, 1987) – as instituições como fatores de
ordem, previsibilidade e estabilidade social -, dando forma às denominadas construções
macrossociológicas.
26
é, de se estabelecer uma ligação mais estreita da ação com a ordem social e
suas transformações no tempo.
Outra restrição importante tem a ver com a natureza simplificadora de
seus pressupostos, com implicações decisivas sobre o alcance, consistência e
acuidade das interpretações obtidas. O aspecto central, sob esse ponto de vista,
diz respeito ao fato de as preferências do indivíduo serem tomadas como dadas,
numa postura similar àquela adotada pela análise econômica neoclássica. É
sobre esse tipo de tratamento dado às preferências que recai, como reconhecem
Przeworski (1988), Steinmo e Thelen (1992) e Laver (1997), a objeção mais
incisiva à escolha racional. Tal objeção é usada, em particular, com o intuito de
inviabilizar a premissa básica de racionalidade do comportamento humano e, com
ela, a própria sustentação teórica de seu esquema interpretativo.
Frente a esse tipo de crítica, Przeworski argumenta que “uma vez
formadas as preferências, as pessoas as têm e atuam a partir delas num
determinado instante de tempo” (1988: 10). Não haveria assim, de um ponto de
vista prático, maiores contradições entre a formação social das preferências e o
suposto da racionalidade. Em outras palavras, o fato de a escolha racional não
problematizar a formação das preferências não implica necessariamente que seu
instrumental analítico, através do qual se busca resgatar a lógica do cálculo do
agente no contexto onde se dá a ação, seja inadequado para os objetivos a que
se propõe - a compreensão da conduta do agente sempre que se admite, como
característica do comportamento, a intencionalidade (Reis, 1988). No entanto, se
não inviabiliza a suposição de racionalidade, como o quer Przeworski, não há
como escapar à imposição de se reconhecer os evidentes limites teóricos
associados à idéia de preferências dadas e não social e politicamente
construídas, feitas anteriormente. Subjacente a preferências dadas existe, como
salienta Samuels (1981), um contexto institucional objetivo, resultado, por sua
vez, de um processo de escolhas humanas anteriores, deliberadas ou não. Além
disso, as preferências podem se alterar e de fato se alteram ao longo do tempo,
refletindo, entre outros fatores, desdobramentos das condutas dos agentes em
27
suas interações sociais. A implicação que aparenta ser inevitável aponta para a
necessidade de se conciliar o instrumental analítico da escolha racional com
perspectivas teóricas que enfatizam o papel dos direitos, normas e instituições de
diferentes naturezas, isto é, com abordagens que se inscrevem no campo da
análise institucional.
O movimento no sentido de incorporar ao modelo analítico da escolha
racional o processo de formação social das preferências pode ser observado, em
particular, dentro do campo do novo institucionalismo, por uma vertente
designada por Steinmo e Thelen (1992) como “rational choice institucionalism”.
De acordo com tal variante teórica, as preferências dos atores, referidas a uma
situação de interação concretamente definida, seriam influenciadas em algum
nível por determinações derivadas dos processos institucionais e políticos que
estruturam o contexto objetivo da ação (North, 1990; Bates, 1992; Willianson,
1993). No entanto, a consideração analítica dessa influência acaba se
restringindo, a rigor, à escolha da estratégia ou curso de ação face ao conjunto de
oportunidades e restrições determinadas e, em certo sentido, sancionadas pelo
arranjo institucional prevalecente. É possível argumentar, entretanto, seguindo a
variante do novo institucionalismo designada como “historical institucionalism” ,
que não apenas as estratégias que adotam, como enfatiza a vertente do “rational
choice institucionalism”, mas também os objetivos e interesses visados seriam
condicionados por elementos institucionalizados do contexto (Steinmo e Thelen,
1992). Em outras palavras, as escolhas básicas dos diferentes atores quanto aos
interesses a serem perseguidos, e não apenas o curso da ação a ser adotado
tendo em vista tais interesses, seriam influenciadas pelas instituições (Powell e
DiMaggio, 1991) que, ao mesmo tempo, bloqueariam determinadas opções de
objetivos e condutas estratégicas e favoreceriam outras.
Adotando-se a perspectiva teórica de que as preferências, objetivos e
estratégias dos atores são endógenos ao modelo analítico, no sentido de que
devem ser problematizados, torna-se inescapável reconhecer, como afirmam
Steinmo e Thelen, que “a menos que se saiba alguma coisa sobre o contexto,
28
assunções mais amplas sobre o comportamento orientado para a busca do
interesse próprio (self-interested behavior) tornam-se vazias” (1992: 9). Isto não
implica negar,
como Steinmo e Thelen reconhecem, a premissa da escolha
racional de que os atores agem estrategicamente movidos pela intenção de
promover seus interesses e objetivos. O aspecto saliente que se quer ressaltar é
convergente com considerações feitas anteriormente de que apenas a suposição
da intencionalidade e racionalidade pode ser insuficiente, por si só, para produzir
análises compreensivas e empiricamente orientadas sobre os fenômenos sociais
investigados. Em termos mais específicos, é necessário o prévio delineamento do
arranjo institucional estabelecido para definir hipóteses sobre quais interesses os
atores procuram maximizar e “porque enfatizam certos objetivos em detrimento de
outros” (Steinmo e Thelen, 1992: 9), de forma a que se possa fazer proposições
que sejam úteis, e não formulações abstratas, a respeito dos cursos de ação mais
prováveis numa dada situação.
A partir dessas considerações, pode-se afirmar que o aspecto crucial
para a aplicação do instrumental analítico da escolha racional tem a ver com o
fato de que, embora influenciados pelo contexto institucional, os objetivos e as
estratégias adotadas pelo agente com vistas à consecução de seus interesses
representam uma escolha baseada em sua percepção e avaliação dos estímulos
e constrangimentos institucionais a que está submetido. Resgatar a lógica de seu
processo decisório supõe, portanto, ter clareza sobre quais informações relativas
ao contexto são relevantes no tocante ao delineamento da conduta que adota, o
que depende de suas preferências e interesses. Abrem-se aqui duas alternativas
principais para lidar com a questão: atribuir preferências e interesses aos agentes,
reduzindo as informações relevantes essencialmente àquelas que dizem respeito
às ações ou condutas factíveis com as oportunidades e restrições do contexto; ou
deduzir tais preferências e interesses, bem como as estratégias correlatas, à luz
das oportunidades e constrangimentos derivados do contexto, o que altera
significativamente o espectro das informações a serem consideradas. Entendendo
que a segunda opção representa um esquema analítico mais completo e flexível,
29
impõe-se a constatação de que a escolha racional não pode prescindir de
elementos interpretativos que são próprios ao campo da análise institucional.
O que se quer enfatizar é que a combinação dos supostos da
intencionalidade e da racionalidade do agente proporciona uma ferramenta
analítica extremamente útil para se tentar apreender como a esfera da ação se
articula, através do processo de tomada de decisões, com o ambiente institucional
- o “universal tool kit” referido por Steinmo e Thelen (1992). No entanto, tal
ferramenta só se torna heuristicamente relevante a partir do momento que se
dispõe de informações consistentes a respeito da conformação objetiva do
ambiente
institucional
e
da
natureza
da
influência
que
este
exerce
correlativamente à ação, o que requer avançar além dos postulados e das
proposições analíticas da escolha racional. Isto pode ser observado, em especial,
nos esforços desenvolvidos no sentido da aplicação da teoria dos jogos à análise
das interações concretas de atores sociais, que se defrontam com dificuldades
tanto de ordem conceitual quanto operacional, onde o recurso à análise
institucional tende a se revelar de extrema utilidade.
Uma primeira restrição aos resultados analíticos da aplicação da teoria
dos jogos está relacionada à idéia de equilíbrio que fundamenta a determinação
das estratégias eficientes correspondentes aos diferentes atores. A questão
central é que “mesmo assumindo o comportamento maximizador, voltado para o
interesse próprio” (Steinmo e Thelen, 1992: 9), na linha do modelo de
concorrência perfeita da economia neoclássica, podem existir, dependendo do
tipo de jogo, isto é, da natureza da interação, mais de um ponto de equilíbrio;
portanto, mais de uma solução eficiente. Tal situação pode ser observada
inclusive em jogos mais simples, com apenas dois atores. À medida que não há
uma única solução maximizadora do interesse próprio, o que significa dizer que
existem estratégias alternativas levando a resultados igualmente eficientes,
impõe-se inevitavelmente a constatação de que a teoria dos jogos não pode
prescindir, nestes casos, do recurso a outros métodos de análise para explicar
qual solução “será ou foi escolhida” (Steinmo e Thelenn, 1992: 9). Przeworski
30
generaliza esse tipo de argumento salientado que “as análises formais que se
apoiam na teoria dos jogos permanecerão não convincentes enquanto os
conceitos de equilíbrio que empregam não forem descritivos de condições
históricas específicas” (1988: 21). Como afirmam Mercuro e Medema, " a
determinação de uma particular solução eficiente remete a uma escolha
normativa e seletiva a respeito de quais interesses serão contemplados, quem irá
ganhar e quem perderá" (1997: 119), ou seja, constitui um resultado fundado em
elementos explicativos de natureza institucional.
Uma segunda e importante restrição se refere às dificuldades
operacionais que tendem a ser encontradas na aplicação do instrumental analítico
da teoria dos jogos a interações estratégicas mais complexas, em particular
àquelas “que envolvem menos que muitos mas sempre mais que dois atores”
(Przeworski, 1988: 20). As implicações de tais restrições podem ser sintetizadas
na postura assumida por Przeworski, que se declara cético sobre as perspectivas
dessa utilização, “pelo menos enquanto a teoria dos jogos não sair de sua
infância matemática” (1988: 21). Sem descurar da importância atribuída pelo autor
ao aprimoramento da base matemática da teoria, não há como negligenciar que
isto, por si só, não elimina as dificuldades operacionais em lidar com a
complexidade envolvida em situações onde há grande número de atores e na
qual a combinação de objetivos, interesses e estratégias factíveis pode revelar-se
incomensurável. A alternativa para enfrentar o problema passa tanto pelo
refinamento do instrumental matemático, como o quer Przeworski, quanto pela
ampliação do escopo da articulação entre o suposto da racionalidade e os
recursos proporcionados pela análise institucional.
Ao se considerar, como propõe o novo institucionalismo, que não
apenas os objetivos e as estratégias dos atores são influenciados pelas
instituições, mas que a própria situação da interação é por elas estruturada,
através da mediação que fazem das relações de conflito e cooperação entre estes
mesmos atores (Steinmo e Thelen, 1992), a análise institucional tende a se
constituir num instrumento fundamental à aplicação da teoria dos jogos, qualquer
31
que seja o grau de avanço em seu aparelhamento matemático O aspecto decisivo
a destacar aqui é que, a partir do recurso a interpretações de cunho institucional,
torna-se possível estabelecer hipóteses consistentes a respeito de quais atores,
objetivos e recursos são mais relevantes (Rothstein, 1992) nas diversas situações
de interação que conformam a vida em sociedade. Assim, “alguns potenciais
participantes, questões, pontos de vista ou valores” vão ser “ignorados ou
suprimidos” (Schattscheneider, 1960; citado por March e Olsen, 1989), permitindo
reduzir substancialmente o espectro das escolhas ou estratégias factíveis a serem
consideradas no desenvolvimento da análise. Desdobramento do processo,
situações complexas podem ser “reduzidas” a seus elementos mais essenciais
sem comprometimento da clareza e consistência teórica. A respeito dessas
“simplificações”, March e Olsen afirmam que “as
instituições (...) são
simultaneamente uma afronta ao senso da racionalidade compreensiva e um
instrumento primário para se aproximar dela” (1987: 17).
Em síntese, a suposição da escolha racional, num esquema analítico
que considera as preferências, os interesses e os objetivos dos atores como
dados pode se revelar pouco útil à interpretação do fenômeno sob investigação, à
medida que não proporciona fundamentos teóricos para avançar muito além de
um indivíduo abstrato que age racionalmente em busca da promoção do próprio
interesse. No entanto, se inscrita num modelo analítico onde se considera a
influência
de
fatores
institucionais sobre a formação,
transformação
e
ordenamento das preferências, bem como sobre a seleção de objetivos e os
recursos passíveis de serem mobilizados pelos agentes, pode se revelar de
extrema utilidade, dando suporte à formulação de proposições de fundamentação
lógica para a explicação ou compreensão dos processos sociais. A análise
institucional torna disponíveis elementos para tratar objetivamente de interesses,
estratégias e distribuição de recursos entre os atores, possibilitando uma conexão
potencialmente mais coerente entre a ação e contexto onde esta se desenvolve “a bridge between the men who make history and the circumstances under wich
they are able to do so” (Rothstein, 1992: 35). Cabe direcionar, portanto, a atenção
32
no sentido da abordagem dos processos de mudanças institucionais e das
implicações de tais mudanças sobre as interações sociais.
4.
Instituições
e
mudanças
institucionais:
as
interpretações
neoinstitucionalistas
No modelo analítico até aqui discutido, a ação pode ser entendida
como expressão da interação entre atores ou grupos de atores tendo em vista a
promoção de objetivos ou interesses em torno dos quais se mobilizam,
desenrolando-se num dado ambiente. As ações dos diferentes atores envolvidos
na interação refletem suas preferências e dotação de recursos, sendo
influenciadas por forças emanadas desse mesmo ambiente, que estrutura
concretamente a situação da busca da promoção de interesses. O arcabouço
institucional
estabelecido
proporciona
os
elementos
indispensáveis
à
compreensão de como as diferentes variáveis que fundamentam a ação se
articulam na conformação da conduta dos atores, com as instituições sendo
tratadas como variável independente, exógenas à construção do argumento
interpretativo.
Da perspectiva de uma análise estática, não há, em princípio,
problemas metodológicos de maior relevância em considerar as instituições como
variável independente. Em tais circunstâncias, o que se coloca consiste, a rigor,
na especificação dos aspectos relevantes do desenho institucional relativo à
situação de interação. No entanto, da perspectiva de uma análise que considera o
evolver das interações no tempo – caso do fenômeno investigado no âmbito deste
trabalho - é inegável reconhecer que as instituições podem se alterar, com
implicações conexas sobre a configuração dos atores, seus interesses e
preferências, os recursos que mobilizam e o processo decisório relativo à conduta
que adotam. Em consequência, torna-se relevante tratar as instituições como
parte do problema a ser explicado. O esquema analítico é inegavelmente
enriquecido caso se disponha de fundamentação teórica para lidar com o
dinamismo institucional, isto é, a construção de argumentos a respeito da
33
formação, reprodução e transformação das instituições, de um lado, e dos efeitos
potencializados pelos rearranjos institucionais, de outro.
A discussão dessa temática, que se referencia em abordagens inscritas
no novo institucionalismo, requer o prévio delineamento do que se entende por
instituição, cuja conceituação é objeto de interpretações portadoras de
significados ou conteúdos muito diferenciados. De um lado, têm-se definições que
enfatizam o papel das instituições como regras do jogo, associando-as sobretudo
a constrangimentos para a interação entre os indivíduos (North, 1990), o que
inclui desde direitos de propriedade a normas e convenções sociais , passando
por contratos de diferentes naturezas (Matthews, 1986) estabelecidos em função
da melhor fruição das relações sociais ou, mais especificamente, da redução dos
denominados custos de transação3. De outro, surgem definições que apontam
para uma associação entre instituição e organização em sentido amplo
(Jepperson, 1991), abrangendo desde arranjos corporativos que se materializam
em firmas ou empresas a formas associativas com desenhos e propósitos
variados, como sindicatos, partidos políticos etc. A despeito do reconhecimento
da relevância acadêmica de um exame mais detido de tais divergências, não se
pretende desenvolver maiores esforços em sua realização, até porque entende-se
que
a
ambiguidade
existente
não
expressa
necessariamente
visões
contraditórias, refletindo, ao contrário, a abrangência dos campos de aplicação do
conceito. Sobre a questão, DiMaggio e Powell afirmam que instituição tende a
assumir significados distintos nas diferentes disciplinas que lhe são afetas,
fazendo com que seja “mais fácil obter acordo sobre o que não é do que sobre o
que é “ (1991: 1).
3
Custos de transação representam os custos subjacentes à materialização de uma dada
interação, envolvendo aspectos relacionados à sua preparação, operacionalização e garantia do
cumprimento do produto dela derivado (Wittman, 1999).
34
Registrada a ambiguidade do conceito, cabe especificar a definição
que mais se ajusta à interpretação do fenômeno investigado. Tendo em vista esse
propósito, adere-se aqui à concepção de instituição proposta por Jepperson, cujo
significado básico é a de um “padrão ou ordem social (...)” relacionado a “(...)
sequências de interação padronizadas” (1991: 145). Em outras palavras,
instituições traduzem “arcabouços de programas ou regras estabelecendo
identidades e prescrevendo roteiros de atividades para tais identidades”
(Jepperson, 1991: 146). São portadoras, ao mesmo tempo, de oportunidades e
constrangimentos, ou, num sentido mais formal, de direitos e obrigações, e estão
referidas a um contexto ou realidade concreta. Introduzem, portanto, um elemento
de estabilidade e previsibilidade na conduta dos indivíduos enquanto atores
sociais, moldando, em certo sentido, o que é pertinente ou não nas interações
que se processam nos diversos campos de atividade. Como tal, influenciam as
preferências e os recursos passíveis de serem mobilizados pelos atores, sejam
eles individuais ou coletivos, através de “algum conjunto de recompensas ou
vantagens e sanções ou prejuízos “ (Jepperson, 1991: 145), cujos efeitos
incidem sobre as escolhas estratégicas que estes fazem e os resultados que
alcançam. March e Olsen ampliam esse tipo de argumento, afirmando que as
instituições influenciam não apenas os interesses e a distribuição de recursos
entre os atores, mas “criam novos atores e identidades, suprindo critérios de
sucesso e fracasso, provisionando regras para comportamento adequado, e
dotando alguns indivíduos, em detrimento de outros, de autoridade ou outro tipo
de recurso” (1989: 164), que lhes conferem vantagens na materialização de suas
preferências.
De acordo com essa conceituação, as instituições não dependem da
agência
ou da intervenção deliberada de alguém para se manterem, sendo
sistematicamente reiteradas ou reproduzidas no tempo, “a menos que uma ação
coletiva bloqueie, ou um choque ambiental rompa, o processo reprodutivo”
(Jepperson, 1991: 145). Como sequências de interação padronizadas ou
prescrições de conduta, sua reprodução tem a ver principalmente com seu
35
enraizamento no ambiente. Essa idéia pode ser melhor apreendida recorrendo-se
ao conceito auxiliar de institucionalização, que expressa a transformação de uma
dada prática ou sequência de interações padronizadas numa referência
socialmente construída, e reconhecida enquanto tal, para os processos decisórios
dos atores nas relações que estabelecem entre si. Além de sublinhar o papel das
instituições como fator de ordem e previsibilidade, a noção de institucionalização
chama a tenção também para a questão da solidez destes mesmos efeitos. Isto
permite falar a respeito de diferentes níveis de institucionalização, onde o
elemento analítico relevante consiste na exposição e vulnerabilidade das
instituições face à intervenção social (Jepperson, 1991), traduzindo o grau de
aderência de que são objeto. Em outras palavras, as instituições tendem a ser
consideradas ou não pelos atores dependendo da percepção que estes têm em
relação às mesmas, envolvendo aspectos como a avaliação que fazem quanto
aos riscos, custos e possibilidades de ganhos advindos de comportamentos que
se ajustam ou que contrastam com o padrão ou ordem estabelecida.
A vulnerabilidade de uma dada instituição à contestação ou à
intervenção social tem a ver principalmente com a forma como se integra ao
arcabouço institucional ao qual se vincula, com a articulação com outras
instituições e com a posição que ocupa nesta relação. A estabilidade das
instituições e sua contraface, as transformações nos arranjos institucionais, não
podem ser dissociadas, portanto, da mediação de interesses e da coordenação
social que promovem (Jepperson, 1991), provisionando os elementos através dos
quais os atores ordenam suas preferências, definem seus objetivos e selecionam
suas estratégias de ação. É importante examinar, assim, de forma um pouco mais
detida, o tratamento dado pelas abordagens neoinstitucionalistas aos processos
de reconfiguração institucional, o formato que assumem, como e porque ocorrem,
em conexão às implicações deles derivadas.
Um ponto de partida para a discussão da questão é proporcionado pela
tipologia proposta por DiMaggio (1988) e Jepperson (1991) referente à natureza
das mudanças que se processam na institucionalidade de uma dada sociedade.
36
Tal tipologia identifica quatro modalidades principais de redesenho institucional: a
formação
de
novas
desinstitucionalização
instituições,
o
desenvolvimento
(“deinstitutionalization”)
e
a
institucional,
a
reinstitucionalização
(“reinstitutionalization”). A primeira traduz a saída de uma “situação de entropia
social, ou de padrões de comportamento não reprodutivos” (Jepperson, 1991:
152) através da introdução de referências ordenadoras no plano da sociedade
para o desenvolvimento das interações sociais, facilitando a percepção dos atores
nelas envolvidos no tocante às alternativas que lhes são factíveis e suas
potenciais consequências, fundamentando as decisões que tomam num dado
campo
de
atividade.
Pelo
segundo
se
entende
o
aprimoramento
ou
aperfeiçoamento institucional, “a partir e dentro de uma matriz institucional” (Lima
Júnior, 1997: 114), conformando um processo gradual ou incremental de
mudança na institucionalidade estabelecida, sem ruptura com a mesma. O
terceiro pode ser tomado como oposto ao primeiro, enquanto o quarto e último
traduz uma “ruptura com o arranjo institucional prevalecente, seguida da
implantação de novas instituições que diferem significativamente do conjunto já
existente” (Lima Júnior, 1997: 114), contrastando com o segundo.
A tipologia é importante no sentido de permitir uma visão geral
referente à natureza das mudanças nas instituições, mas não proporciona
elementos para a explicação do porque ocorrem e como se processam.
Deslocando a atenção nessa direção, surgem duas linhas principais de
interpretação, não mutuamente exclusivas. A primeira enfatiza a lógica da
adaptação ou adequação na dinâmica das mudanças institucionais, tendo como
referência a relação estabelecida entre as instituições e seu ambiente. De acordo
com tal enfoque, as mudanças institucionais tendem a refletir modificações mais
amplas no contexto institucional - o ambiente - do qual são parte integrante. A
segunda considera a possibilidade da formação ou transformação intencional das
instituições, enfatizando o caráter deliberado - o cálculo estratégico - envolvido
no processo de mudanças institucionais (March e Olsen, 1989; Steinmo e Thelen,
1992). Em ambas as perspectivas, que podem ser e são combinadas, o que está
37
em jogo são as funções que as instituições cumprem no tocante à definição das
situações concretas da interação entre os atores, cujos efeitos se expressam nos
resultados destas mesmas interações.
Dentro da primeira linha de abordagem, o tipo de interpretação mais
recorrente consiste em tratar os rearranjos institucionais como expressão de um
realinhamento face a modificações no contexto sócio-econômico e político mais
amplo que integram (Steinmo e Thelen, 1992). Instituições adquirem aqui forte
conotação
de
comportamento
ou
condutas
socialmente
sancionadas,
reproduzindo-se de forma relativamente espontânea, através “de processos
sociais relativamente auto-ativados” (Jepperson, 1991: 145). As mudanças
institucionais vão ocorrer, assim, em resposta a perturbações no ambiente - a
noção de instituição é, vale relembrar, relativa a um contexto -, processando-se
no sentido da preservação de uma certa consistência entre o que as instituições
representam enquanto portadoras de um senso de ordem, estabilidade e
previsibilidade e as características mutáveis de tal ambiente.
Sob esse ângulo de abordagem, as mudanças podem ser derivadas
tanto de uma ruptura mais abrupta
no ambiente, quanto de um processo
evolutivo mais gradual. No primeiro caso, a instabilidade do ambiente configura
uma situação de crise - conflito aberto e relativamente generalizado de interesses
-, que impõe uma redefinição institucional abrangente, podendo envolver o
desaparecimento de instituições anteriormente existentes, a emergência de novas
instituições e a transformação de outras, numa espécie de resposta à entropia
social. No segundo caso, as mudanças podem ser tratadas como expressão de
um mecanismo de feedback: os resultados das práticas e das condutas dos
atores em suas interações sociais concretas, ao mesmo tempo em que refletem o
arranjo institucional existente, têm efeitos externos de natureza estruturante sobre
este mesmo ambiente, que vão implicar à frente readaptações institucionais. Este
tipo de mudança, mais frequente, traduz uma evolução cumulativa, apoiada
principalmente em processos de aprendizado - “experiential learning” (March e
Olsen, 1989: 59). Aos distintos graus de racionalidade envolvidos na seleção da
38
conduta estratégica adotadas pelos atores sociais (Reis, 1988; Elster, 1994)
associa-se a interveniência de mecanismos de “tentativa e erro” (March e Olsen,
1989): ao longo do tempo, determinados cursos de ação tendem a ser reiterados
em função dos resultados obtidos, tornando-se institucionalizados. Por sua vez,
modificações ocorridas num dado campo de atividade podem ser amplificadas ou
estendidas a outros campos através de um processo de “contágio”, isto é, de
imitações que se processam no ambiente institucional (March e Olsen, 1989)
O processo de evolução das instituições, contudo, não significa e não
pode ser identificado como um argumento a favor da “eficiência da história”. Nem
toda mudança é necessariamente positiva, no sentido de a “seleção” realizada
assegurar padrões de conduta ou “regras que sejam ótimas em qualquer ponto
arbitrário do tempo” (March e Olsen, 1989: 54). A esse respeito, March e Olsen
afirmam que as transformações derivadas da experiência e do contágio podem
produzir “adaptações mais lentas ou mais rápidas que o apropriado face às
circunstâncias do ambiente, ou mesmo equivocadas” (1989: 56). Além disso, a
adaptação das instituições ao ambiente também não constitui necessariamente
um processo de curso obrigatório. Não apenas a adaptação não precisa ser, e em
diversas circunstâncias não é, instantânea, como podem ocorrer resistências às
mudanças, ao invés de aceitação passiva às mesmas (March e Olsen, 1989). A
consideração desse aspecto implica transitar, em algum nível, para o plano do
deliberativo ou intencional nas transformações institucionais. O ponto central aqui
é o caráter entrelaçado de interesses e intenções nas relações que se
estabelecem entre atores, instituições e ambiente. Desse entrelaçamento podem
resultar procedimentos voltados a influenciar o processo de adaptação ou
adequação institucional, levados a efeito tanto pelos atores relevantes num dado
campo de atividade, quanto pelas instâncias decisórias que conformam a esfera
pública, isto é, as agências e os organismos do aparato estatal, cuja discussão
será retomada mais à frente.
Em consonância com esse enfoque, Steinmo e Thelen apontam três
vias principais de redesenho institucional, expressando diferentes encadeamentos
39
causa-efeito em relação à dinâmica das interações sociais, todas partindo de
alterações no ambiente em sentido amplo. “Primeiro, perturbações intensas no
contexto sócio-econômico ou político podem produzir uma situação na qual
instituições previamente latentes se tornam salientes” (1992: 16), numa espécie
de aprofundamento de seu grau de institucionalização. A emergência de tais
instituições reflete oportunidades criadas pela instabilidade ou maior fluidez dos
constrangimentos impostos pelo ambiente institucional, que favorecem a ação no
sentido estrito de uma intervenção na ordem social, racionalmente aproveitadas
por determinados atores para melhorarem suas posições num dado campo de
atividade ou para se inserirem em outros. Em particular, as perturbações
ambientais podem ser deliberadamente produzidas pela ação, tendo em vista
interesses associados às mudanças institucionais, seja no sentido da redução de
constrangimentos ou da criação de condições mais favoráveis de atuação (March
e Olsen, 1989). “Segundo, mudanças no contexto sócio-econômico ou no balanço
do poder político podem produzir uma situação em que instituições antigas são
colocadas a serviço de novos propósitos, como ocorre quando novos atores
entram em cena perseguindo seus novos objetivos através das instituições
existentes” (Steinmo e Thelen, 1992: 16). Novamente aqui, é possível argumentar
a respeito de ações voltadas a influenciar as transformações institucionais,
”estimulando ou inibindo processos previsíveis de adaptação“ (March e Olsen,
1989: 35), pelas perspectivas de ganho delas advindas. Por último, “mudanças
exógenas podem determinar um redirecionamento nos objetivos ou estratégias
perseguidos dentro das instituições
- isto é, mudanças (...)” em que “(...) os
atores adotam novos objetivos dentro das instituições existentes” (1992: 17). O
que se passa, nesse caso, é uma modificação na relação entre atores e
instituições especificamente determinados, com as instituições
atendendo a
novos propósitos dos atores, redefinidos em função de mudanças não deliberadas
e não previsíveis ocorridas no ambiente institucional mais amplo.
Deslocando-se o foco do dinamismo institucional deflagrado por
perturbações ou transformações no ambiente ou contexto mais geral para o plano
40
da intencionalidade ou do deliberativo, onde a ênfase remete a relações de
causalidade fundadas primariamente nas preferências e interesses dos atores,
individuais e coletivos, vão ser encontradas duas vias principais de interpretação
dos processos de mudanças das instituições. A primeira relaciona-se à
competição entre os atores em torno do desenho institucional estabelecido,
direcionada
à construção de novas instituições ou à transformação das
instituições existentes. A segunda tem a ver com a relação entre as instituições e
o ambiente em sentido amplo, onde as mudanças espelham, em algum nível, a
configuração objetiva deste último, sendo introduzidas em função da coerência ou
ajustamento entre ambos e suas implicações sobre os resultados das interações
sociais.
A primeira vertente parte da premissa de que as instituições não são
importantes apenas no sentido de influenciar em a conduta dos atores numa dada
situação, criando constrangimentos para determinados interesses e cursos de
ação a ela referidas, e favorecendo outros. São também importantes em termos
da influência que exercem sobre as ações futuras dos atores (Steinmo e Thelen,
1992; Rothstein, 1992). Assim, à medida que influenciam, em algum nível, os
objetivos que podem ser alcançados, tanto no presente quanto no futuro, bem
como os recursos que podem ser mobilizados e as estratégias factíveis para
alcançá-los, as instituições se tornam, elas próprias, objeto de interesse dos
atores. Em outras palavras, as instituições podem ser “deliberadamente criadas
por agentes (...) racionais e orientados para resultados” (Levi, 1990; Tsebelis,
1990; citados por Rothstein, 1992: 34). O ponto saliente aqui é a idéia de um
conflito de interesses relativo às instituições pelas vantagens diferenciais que
proporcionam
para
determinados
interesses
e,
consequentemente,
para
determinados atores, individuais ou coletivos, no atual e “futuro jogo do poder”
(Rothstein, 1992: 35), cujo desdobramento é a ação política, deliberada e
intencional, em torno do arranjo institucional estabelecido. Sob essa ótica, a
escolha das instituições - a construção ou reconstrução institucional - pode ser
entendida como um “equivalente sofisticado da seleção de políticas” (Rothstein,
41
1992: 35), tendo em vista o conjunto de oportunidades e constrangimentos que
são portadoras. Vale dizer,
a esfera dos esforços dirigidos à construção e
transformação institucional, ou da ação política em sua forma construtiva, aparece
em algum nível como sendo também a esfera do deliberativo e intencional no
plano da política (Reis, 1988), o que significa introduzir interesses e poder na
agenda institucional. A consideração desse aspecto implica tratar a questão da
construção e transformação das instituições como um campo próprio para a
aplicação da ação estratégica na análise institucional, isto é, um campo
apropriado para a aplicação do “universal tool kit” da escolha racional. As
mudanças institucionais ocorreriam através de um processo de barganha e
negociação, expressando “o resultado do conflito entre indivíduos ou grupos
representando interesses distintos” (March e Olsen, 1989: 59).
A segunda vertente engloba mudanças que expressam esforços
deliberados no sentido do aprimoramento ou adequação do desenho institucional
prevalecente, tendo em vista o papel que as instituições desempenham como
regras do jogo nas interações sociais, onde a questão central remete à eficiência
dos resultados obtidos ou perseguidos num dado campo de atividade. March e
Olsen apontam três modalidades principais de redesenho institucional afinadas
com essa perspectiva de abordagem. A primeira guarda relação com propósitos
de “resolução de problemas”, em que as mudanças refletem a “escolha entre
alternativas com base em alguma regra decisória de comparação entre as
mesmas
em
termos
das
consequências
esperadas
sobre
objetivos
predeterminados” (1989: 59). A segunda se assemelha a um modelo de evolução
fundado na introdução e seleção de mudanças institucionais, prevalecendo
aquelas que se revelam mais apropriadas face ao ambiente em que se inscrevem,
numa seleção fundada em algum critério ou princípio de adequação. A terceira e
última pode ser vista como um processo de aprendizado experimental
(“experiential learning”), onde as instituições são selecionadas a partir da
avaliação dos resultados obtidos, sendo mantidas as que se “mostram bem
sucedidas no passado e abandonadas” (1989: 59) aquelas mal sucedidas.
42
As considerações anteriores permitem uma visão global do amplo
espectro de possibilidades de mudanças na institucionalidade de uma dada
sociedade, onde a ênfase recai em aspectos relacionados a porque e como
ocorrem. Powell (1991) analisa a questão a partir de um ângulo distinto – a
racionalização dos processos de interação social -, centrando a discussão nas
fontes de dinamismo institucional. O autor sugere quatro lógicas principais de
reconfiguração
institucional:
“(1)
the
exercise
of
power,
(2)
complex
interdependencies, (3) taken-for granted assumptions, and (4) path-dependent
development process” (1991: 191). Na primeira, as mudanças resultam de
iniciativas tomadas por atores ou organismos com poder suficiente para impor
suas decisões no campo em que atuam, qualquer que seja a fonte de tal poder,
assumindo
nítida
configuração
intencional.
Ganham
saliência
aqui
as
transformações institucionais patrocinadas pela intervenção estatal, e que se
ancoram, portanto, num poder de base legal ou constitucional. A segunda
repercute o caráter entrelaçado das instituições dentro de um dado ambiente,
onde alterações em um ou mais aspectos do arcabouço institucional tendem a
provocar ou exigir modificações em outras dimensões do mesmo, levando a
processos de causação indireta ou de multicausalidade, que podem combinar
intencionalidade e adaptação. A terceira envolve mudanças percebidas e tratadas
como naturais ou legítimas dentro de um determinado campo de atividade, tendo
como característica mais saliente o fato de não exigirem ou dependerem de
nenhum esforço deliberado no sentido de sua introdução – condição em que “não
são questionadas ou contrastadas com possíveis alternativas” (Jepperson, 1991:
192), o que lhes confere características essencialmente adaptativas. A quarta e
última engloba mudanças dentro de uma trajetória de longo prazo, condicionadas
por desdobramentos não pretendidos de decisões tomadas anteriormente por um
ou mais agentes, combinando, como a segunda, intencionalidade e adaptação.
Como mostram diversas análises desenvolvidas no campo da economia e da
política (March e Olsen, 1984; David 1986;
Arthur, 1988, 1989; Scott, 1991;
Krugman, 1997), a “dependência de trajetória” reveste-se de particular
importância por salientar o poder explicativo de fatores circunstanciais ou
43
históricos na interpretação dos rearranjos institucionais, em conexão à dinâmica
das relações organizacionais e produtivas da sociedade. Em termos mais
específicos, a influência que o arcabouço institucional prevalecente num dado
momento exerce sobre o evolver das interações sociais tende a interpenetrar o
dinamismo institucional subsequente através dos produtos dessas mesmas
interações sociais.
Se
o
arcabouço
institucional
é
suscetível
a
mudanças
cuja
materialização pode se processar, como visto, por razões e caminhos os mais
variados, os resultados delas decorrentes não são necessariamente eficientes
sob a ótica da racionalização das interações sociais (March e Olsen, 1989), nem
tampouco
estáveis, no sentido da vulnerabilidade a
novas
mudanças.
Determinados rearranjos institucionais podem ter curta duração ou sequer serem
plenamente implementados. Outros, por sua vez, podem desencadear novas e
imprevisíveis transformações com efeitos retroativos sobre o desenho original,
afetando sua consistência ou coerência e, por extensão, sua própria estabilidade.
A ocorrência de tais fenômenos tende a manifestar, segundo Powell (1991), em
três situações principais: a imitação mal sucedida, a institucionalização incompleta
e a reconfiguração do campo organizacional.
Processos de imitação mal sucedidos caracterizam-se pelos resultados
insatisfatórios das mudanças introduzidas, envolvendo duas circunstâncias
principais (Powell, 1991). A primeira delas tem a ver com tentativas de
transposição de arranjos institucionais de um ambiente a outro em que surgem
inconsistências relacionadas à configuração diferenciada de aspectos ou
dimensões relevantes destes mesmos ambientes. A segunda guarda relação à
reprodução de arranjos institucionais estabelecidos num dado campo de atividade
em outro, dentro de um mesmo ambiente institucional, defrontando-se com
problemas similares, isto é, a heterogeneidade existente entre tais campos. Em
ambos os casos, os novos desenhos institucionais não conseguem obter a
necessária
adesão
dos
interesses
que
44
lhes
são
afetos,
tendo
como
desdobramentos mais recorrentes sua “difusão parcial (...) ou a emergência de
novo arranjo de caráter híbrido” (Powell, 1991: 199).
Institucionalização incompleta aparece associada, em geral, a intentos
reformistas
relativamente
abrangentes
que
esbarram,
quando
de
sua
implementação, na resistência de interesses afetados pelas mudanças, de um
lado, e na ausência de poder ou autoridade suficientemente sólida para conferirlhes materialidade, de outro. Isto se aplica, em especial, a processos de
reinstitucionalização fundados na intervenção estatal, com desdobramentos em
duas direções principais. Primeiro, regras, práticas ou padrões de conduta podem
ser introduzidos mas não aplicados, ou então aplicadas por “um curto período, tão
rápido quanto o esgarçamento de sua fonte de suporte normativo” (1991: 199).
Segundo, a aplicação das mudanças propostas pode se dar de forma parcial ou
espaçada no tempo, com implicações de difícil previsão e, em diversas
circunstâncias, adversas ao que se queria alcançar. Da aplicação parcial podem
resultar não só a frustração dos efeitos originariamente esperados, como também
a indução de novas mudanças, não pretendidas nem antecipadas, criando
constrangimentos adicionais à complementação do esforço reformista.
Por fim, o autor chama a atenção para a ocorrência de processos de
intensa transformação institucional, que designa como recomposição do campo
organizacional. São situações em que a ocorrência de mudanças estruturais num
dado campo de atividades, determinadas por fatores externos ou internos ao
mesmo, põe em movimento novas mudanças, num rearranjo institucional
dinâmico onde se combinam elementos de natureza adaptativa e intencional. De
um lado, interesses constituídos em tal campo podem se mobilizar no sentido da
defesa das posições que ocupam, através iniciativas voltadas à preservação ou
ao restabelecimento de “regras e práticas favoráveis ao status quo” (Powell 1991:
200). De outro, novos atores que surgem em função das alterações introduzidas
no formato institucional podem se mobilizar no sentido da consolidação ou da
melhoria de suas posições, através de iniciativas que buscam influenciar o curso
das mudanças, em conformidade com seus interesses.
45
5. Atores e instituições no campo da economia: o papel do mercado
A interação
estratégica
entre
agentes motivados e
racionais,
anteriormente discutida, tem como um de seus principais cenários a dinâmica de
funcionamento da economia capitalista, cujo traço central é a propriedade privada
dos recursos produtivos da sociedade, sobre a qual se estrutura a atividade
produtiva e a distribuição dos resultados alocativos dela derivados. Como um
sistema econômico onde “os meios de produção e a capacidade de trabalhar” –
fatores básicos do processo produtivo – “são propriedade privada” (Przeworski,
1991: 140), a alocação produtiva destes recursos no capitalismo vai se dar em
consonância com as preferências e os interesses daqueles que os controlam. De
acordo com a concepção utilitarista da economia neoclássica, tal alocação é
orientada para a maximização dos interesses particulares dos agentes, definidos
em estreita conexão com valores ou objetivos de natureza material (Reis, 1994),
o que fundamenta a associação recorrente entre produção capitalista e eficiência
econômica. A forma como os recursos produtivos são alocados e os resultados
distribuídos, por sua vez, remetem à idéia de mercado. Em particular, mercado é
o mecanismo por excelência de coordenação de interesses do sistema capitalista
de produção, o que se expressa no caráter indistinto e intercambiável dos termos
“economia capitalista” e “economia de mercado”.
Do ponto de vista teórico, mercado pode ser entendido como a
instância onde indivíduos com necessidades e preferências específicas e dotados
de recursos também específicos buscam a consecução de seus interesses
através da troca ou barganha voluntária que fazem entre si. A noção central que,
ao mesmo tempo, sustenta e sintetiza sua lógica como mecanismo de
coordenação é o conceito de equilíbrio, discutido no âmbito da abordagem relativa
à teoria dos jogos. De acordo com a visão da economia neoclássica, o equilíbrio
de mercado traduz uma situação em que os
planos dos agentes “são
consistentes entre si” (Elster, 1994: 125), significando que todas as possibilidades
de ganho advindos da troca ficam exauridas (Przeworski, 1989; Mercuro e
Medema, 1997). Nessa situação de equilíbrio, conhecida como Ótimo de Pareto,
46
as expectativas dos agentes estariam satisfeitas de forma tal que ninguém
poderia “melhorar sua situação sem piorar a de outro” (Przeworski, 1993: 213).
O mercado procederia, assim, a um ajustamento espontâneo,
descentralizado e racionalmente motivado das preferências e interesses dos
agentes. O argumento construído para explicar tal ajustamento se baseia na
metáfora da “mão invisível” formulada pelo liberalismo clássico (Powell, 1991;
Carson, 1992; Vincent, 1995), onde se enfatiza o fato de a coordenação ser um
resultado coletivo não pretendido da busca intencional da consecução dos
interesses particulares pelos diferentes agentes, através do meios a seu alcance
e com base nos recursos que estes controlam. Vale dizer, “todo indivíduo
pretende apenas seu próprio ganho, e nisso, como em muitos outros casos, ele é
orientado por uma mão invisível a fim de promover um fim que não fazia parte de
suas intenções” (Adam Smith, citado por Nozick, 1991: 33/34). Uma explicação de
mão invisível, como salienta Nozick, “mostra que o que parece ser produto do
trabalho intencional de alguém não foi produzido pela intenção de ninguém”
(1991: 34). Os resultados alocativos do mercado seriam, portanto, não apenas
imprevistos, no sentido de não antecipados, como desvestidos de qualquer
deliberação ou propósito coletivo.
Como um mecanismo de coordenação fundado na busca racional e
motivada de interesses, o mercado asseguraria, na visão liberal, uma alocação
eficiente dos recursos produtivos na sociedade e, com ela, o bem estar social –
entendidos como resultados que se colocam na fronteira do equilíbrio Paretiano.
Conforme Przeworski, o modelo formulado pela teoria neoclássica “é simples:
indivíduos sabem que têm necessidades e recursos e eles livremente produzem e
trocam bens e serviços. Em condições de equilíbrio, todas as expectativas dos
indivíduos estão satisfeitas e todos os mercados estão claros” (1993: 212), o que
engloba suas preferências referentes tanto a produtos quanto a fatores de
produção, em especial, trabalho. O ajustamento se processa através do sistema
de preços que não apenas refletiriam as preferências e interesses dos diversos
agentes “e a escassez relativa de bens e serviços” (Przeworski, 1993: 212), mas
47
informariam as possibilidades de ganhos que podem ser aproveitadas. A noção
de eficiência como atributo do mercado teria, assim, duas dimensões principais:
uma do lado dos resultados alocativos, outra do lado da dinâmica do processo
produtivo propriamente dito. A primeira expressaria o fato de os recursos
produtivos serem utilizados de uma maneira socialmente desejável, significando
que seria produzido aquilo que a sociedade quer e necessita, em quantidade e
preços que revertem em benefício do interesse coletivo, o que sintetiza a
concepção de bem estar social do liberalismo clássico (Vincent, 1995). Vale dizer,
apesar de não refletir uma deliberação coletiva, o produto do mercado seria
eficiente sob a ótica social, já que derivado primariamente das preferências dos
indivíduos. A segunda, o fato de a busca racional e motivada de interesses
particulares representar uma “regra geral que qualquer um pode usar; portanto
nenhuma pessoa ou grupo específico seria sistematicamente favorecido”
(Tsebelis, 1990: 104). Dito de outra forma, o mercado seria não apenas neutro
“entre os desejos das pessoas” (Nozick, 1991: 104), coordenando as ações dos
agentes de forma descentralizada, mas incorporaria forte princípio igualitário – a
igualdade de tratamento -, fundado em oportunidades plenamente abertas para a
iniciativa autônoma e voluntária dos diferentes agentes. Para Reis, esse “princípio
latentemente igualitário do mercado constituiria o fundamento crucial do
capitalismo” (1994: 117).
No entanto, ao se transitar da abstração teórica para a realidade
concreta das sociedades contemporâneas, a idéia de eficiência como atributo do
mercado tende a se deparar com uma série de problemas ou limitações –
convencionalmente tratadas como “imperfeições”, quando referidas a seu
funcionamento ou dinâmica operacional, e “falhas”, quando referidas aos
resultados obtidos (Carson, 1992) – não perceptíveis de imediato em sua
concepção lógica. O reconhecimento de tais problemas leva autores como
Przeworski a afirmar que “a noção de que o mercado por si próprio é capaz de
alocar eficientemente recursos é puramente hortativa” (1993: 215), no sentido de
impregnado de forte conteúdo ideológico. Para corroborar o argumento de
48
Przeworski, é suficiente salientar que o elemento crucial da economia capitalista –
a propriedade privada dos meios de produção – se fundamenta em direitos
estabelecidos em lei, o que confere aos resultados alocativos obtidos, quaisquer
que sejam, uma dimensão normativa ou valorativa. Vale dizer, tratar a alocação
produtiva
de
mercado
como
eficiente
supõe,
no
mínimo,
considerar
aprioristicamente eficiente a configuração assumida pelos direitos de propriedade,
que
determinam,
em
última
instância,
“as
estruturas
de
incentivos
e
constrangimentos” (Mercuro e Medema, 1997: 133) sobre as quais se sustentam
as escolhas e as ações dos agentes econômicos. Torna-se relevante examinar,
portanto, as críticas mais usuais que se fazem à dinâmica de mercado.
As denominadas imperfeições de mercado aparecem associadas a
limitações observadas nas premissas básicas de seu funcionamento enquanto
mecanismo de coordenação de interesses e alocação de recursos que, conforme
ressaltam Mercuro e Medema, tendem a ser “muito mais numerosas e severas
que aquelas consideradas pela teoria econômica neoclássica” (1997: 130). As
mais comumente assinaladas (Levacic, 1991; Carson, 1992; Przeworski, 1993;
Elster, 1994; Vincent, 1995) têm a ver com desigualdades de poder entre os
agentes, deficiências de informação e condutas típicas do Leviathan Hobbesiano
(Papandreou, 1994). Quanto ao primeiro aspecto, as implicações são evidentes,
já que a assimetria de poder, cujo paroxismo vai ser observado na formação de
monopólios, oligopólios e cartéis, é flagrantemente contrária ao princípio
“latentemente” igualitário que caracterizaria a dinâmica de mercado. Conforme
Levacic, a alocação eficiente de recursos pelo mercado se fundamenta na idéia
de que os preços refletem os custos de oportunidade dos bens e serviços
produzidos. “Se isto não ocorre por falta de competição, cria-se a possibilidade de
os agentes definirem preços acima do menor custo de produção alcançável”
(1991: 41), maximizando seus interesses em detrimento dos interesses dos
consumidores de tais bens ou serviços. As deficiências de informação entre os
agentes, por sua vez, vão se refletir sobre a qualidade das decisões tomadas,
estando na base de grande parte dos problemas identificados como falhas do
49
mercado. Dada a presença de informações imperfeitas, o conjunto de
oportunidades e constrangimentos efetivamente percebido e avaliado pelos
diferentes agentes revela-se muito mais estreito que aquele determinado pelo
contexto, afetando as escolhas que fazem ou deixam de fazer e, por extensão, os
resultados alocativos do mercado. Por último, o mercado não dispõe de
mecanismos
capazes
de
assegurar
o compromisso
dos
agentes
com
cumprimento das regras do jogo, mais especificamente a cooperação e a lealdade
nas transações realizadas (Carson, 1992), nem condutas pautadas pela
consideração ou respeito ao interesse público. Qualquer direcionamento objetivo
às condutas dos agentes – “as possibilidades e os limites das transações”
(Mercuro e Medema, 1997: 131) – remete, como já discutido, ao plano das
instituições, virtualmente ausente das considerações da teoria neoclássica.
Já as falhas podem ser entendidas, numa primeira aproximação, como
expressão de disfunções nas “propriedades de auto-regulação usualmente
atribuídas ao mercado” (Elster, 1994: 104). A esse respeito, Przeworski observa
que “o argumento a favor dos mercados como alocadores eficientes de recursos
depende da premissa de que os mercados são completos ou, em outras palavras,
de que existe um mercado para cada estado contingente da natureza” (1993:
213). À medida que tal premissa não se sustenta na realidade, seja porque alguns
mercados são insuficientemente estruturados, seja porque simplesmente não
existem, os sinais enviados através dos preços “deixam de sumariar todos os
custos de oportunidade, o que implica que nem todos os agentes estão operando
com a mesma informação” (1993: 213). Além disso, a dinâmica da alocação de
recursos pelo mercado deixa de incorporar interesses potencialmente relevantes
de agentes que não participam do processo decisório ou do conjunto da
sociedade, implicando “distorções” nos custos e benefícios concretamente
avaliados. Tais problemas são expressão das denominadas externalidades, já
abordadas anteriormente, que traduzem, na caracterização feita por Bator, “uma
situação onde alguns custos e benefícios paretianos mantêm-se externos aos
cálculos custo-benefício descentralizados em termos de preços” (1958: 362;
50
citado por Papandreou, 1994: 33). Dessas considerações impõe-se como
conclusão que “a alocação resultante deixa margem para a melhora” (Przeworski,
1993: 213). Determinados bens e serviços não vão ser fornecidos pelo mercado,
caso dos denominados “bens públicos”, alguns serão produzidos em escala
socialmente insuficiente ou subótima e outros em quantidades excessivas,
afastando-se do ótimo paretiano.
No entanto, a questão provavelmente mais polêmica que se coloca de
um ponto de vista empírico sobre a dinâmica das interações que se processam no
mercado tem a ver com a eficiência, sob a ótica do bem estar social, dos
resultados dela decorrentes. O princípio da igualdade dos agentes - entendida
como liberdade de iniciativa, trazendo com ela a igualdade de oportunidades -,
enfatizado pela economia neoclássica, não tem correspondência do lado dos
resultados alocativos provenientes do mercado. Ao contrário, o produto agregado
das ações de agentes racionais buscando a consecução de seus interesses pode
ser profundamente desigual em termos distributivos. Da perspectiva do
funcionamento do mercado, qualquer resultado que se coloque sobre a curva de
Pareto é igualmente eficiente: sua dinâmica operacional não internaliza
considerações ou princípios valorativos de natureza moral a respeito dos
resultados produzidos. Sobre a questão, Dahl afirma que “uma alocação de
recursos que é maximamente eficiente é perfeitamente consistente com um
número indefinido de distribuições de renda diferentes, que vão da igualdade
perfeita à desigualdade mais profunda” (1993: 229). Significa dizer que a
eficiência de mercado não se vincula a um padrão distributivo socialmente
desejável, ainda que teoricamente possam ser convergentes. Dessa forma, se
existe algum propósito ou deliberaçao coletiva de proceder a uma seleção entre
as várias alternativas de distribuição “eficientes”, é necessário avançar além do
livre funcionamento do mercado e introduzir, exogenamente a ele, algum critério
ou princípio de justiça social.
A ênfase da economia neoclássica recai na operação do mercado – a
livre manifestação das preferências e a busca do interesse próprio -, não em seus
51
resultados que, a rigor, vão ser considerados eficientes a priori por traduzirem
uma alocação “eficiente” de recursos. O contexto social objetivo, com suas
desigualdades na distribuição de recursos, ainda que produto das relações
pretéritas processadas no mercado, é incorporado ao modelo analítico apenas
como condicionante do comportamento do agente, delimitando o campo de suas
opções ou alternativas no tocante àquilo que pode mobilizar. Tendo em vista a
centralidade conferida à idéia de autonomia e liberdade de iniciativa do agente, a
abordagem neoclássica abstrai-se das consequências sociais derivadas da livre
operação do mercado. Não há, na estrutura lógica do esquema interpretativo,
fundamentação teórica para a busca de uma maior equalização entre os
indivíduos ou, mais propriamente, para a redistribuição do bem estar da
sociedade. Não só redistribuição não é requerida, mas, o que é mais importante,
caso princípios de redistribuição de qualquer natureza viessem a ser adotados,
estes entrariam inevitavelmente em conflito com a soberania do agente, sua
autonomia e liberdade de iniciativa, e comprometeriam a eficiência alocativa do
mercado (Nozick, 1991). De certa forma, é como se a autonomia da escolha no
plano do indivíduo bloqueasse a possibilidade da escolha no plano coletivo4.
Outra crítica importante direcionada à eficiência alocativa do mercado
refere-se à questão do crescimento econômico. Os ciclos econômicos – a
alternância de períodos de expansão e contração de toda atividade produtiva de
um país ou conjunto de países (Carson, 1992) – são uma clara evidência de que
4
Da perspectiva de autores liberais que defendem mercados concorrenciais minimamente regulados ou não
regulados, como Nozick (1991), a justiça distributiva, entendida como “uma tentativa de melhorar o sofrimento
e os infortúnios sociais seria uma interpretação equivocada de justiça” (Vincent, 1995: 51). Tal autor critica e
rejeita quaisquer princípios de redistribuição, que denomina de “princípios correntes de justiça” ou “princípios
de resultado final”, à medida que introduziriam distorções nos resultados do mercado, interferindo sobre a
autonomia decisória do agente. Esse tipo de lógica argumentativa, contudo, convenientemente esquece a
importância dos direitos de propriedade na performance econômica e nos resultados distributivos do
mercado. “Primeiro, direitos de propriedade determinam tanto o controle como os benefícios e os custos da
utilização dos recursos (...) entre os indivíduos (...) Segundo, direitos de propriedade definem o conjunto de
atores dentro de um sistema econômico (...)” (Mercuro e Medema, 1997: 133), demarcando o espectro de
condutas factíveis aos mesmos, isto é, das escolhas que podem fazer. Da conjunção desses fatores advém
que os direitos de propriedade, qualquer que seja seu conteúdo objetivo, afetam de forma decisiva “a
distribuição de poder e riqueza dentro de um sistema econômico” (Mercuro e Medema, 1997: 133),
influenciando a natureza dos resultados distributivos da dinâmica de mercado.
52
o funcionamento do mercado não garante necessariamente um incremento
sustentado da produção e, por extensão, do bem estar social. Como afirma
Przeworski, “mercados competitivos não são suficientes nem para alocar recursos
eficientemente nem para gerar crescimento” (1993: 215). De forma similar aos
problemas relacionados à distribuição dos resultados produtivos, não haveria
como escapar também aqui da constatação da “necessidade de alguma
intervenção (...) exógena ao mercado para gerar crescimento” (1993: 215). Esse
argumento é endossado por autores neoinstitucionalistas da denominada “escolha
pública”, para os quais a maximização da riqueza ou produção de uma dada
sociedade não pode ser dissociada das regras do jogo que dão suporte à
interação estratégica entre os agentes econômicos, onde salientam os direitos de
propriedade. Em termos mais específicos, a estrutura de preços, custos e lucros
que informa as decisões dos agentes no mercado “não constitui uma espécie de
fenômeno natural, sendo, ao contrário, determinada pela estrutura de direitos
estabelecida na sociedade” (Mercuro e Medema, 1997: 118), o que remete à
esfera de atuação do Estado.
Assim, embora corporifique o espaço por excelência de manifestação
das preferências e da busca dos interesses dos agentes, fundamento da idéia de
auto-regulação implícita na noção de mão invisível, a operacionalização do
mercado não pode prescindir da ação do Estado. Ainda que em termos mínimos,
como preconizado por determinados autores liberais (Mill, 1962; Hayek, 1972,
1978; Nozick, 1991), a intervenção estatal revela-se necessária para assegurar a
autonomia e igualdade dos agentes, suporte da deliberação livre e voluntária que
fazem entre si5. Além disso, as interações dos agentes econômicos supõem
condições que assegurem não apenas a livre manifestação das preferências nas
transações de mercado, mas também o cumprimento dos resultados dela
5
A autonomia individual que fundamenta a liberdade de iniciativa no mercado supõe o controle efetivo pelos
agentes dos recursos que mobilizam, bem como dos bens que produzem a partir de suas ações ou
atividades, o que remete ao direito de propriedade. Isto é explicitamente reconhecido pela doutrina liberal,
para o qual direito de propriedade deve ser entendido como uma extensão dos direitos naturais do indivíduo.
A esse respeito, Vincent afirma que “a partir de John Locke, a questão da propriedade tem sido intimamente
relacionada à liberdade” (1995: 48), levando a que, em determinadas concepções, a propriedade privada seja
identificada como a própria personificação da liberdade individual.
53
decorrentes, o que aponta para a idéia de contrato. Nos termos em que a questão
é formulada por Beethan, “o mercado requer, para seu funcionamento, (...) um
sistema uniforme de legislação garantindo a segurança da propriedade e o
contrato” (1993: 189), o que só pode ser assegurado por uma instância que se
coloca acima dos indivíduos, representada pelo Estado6. Dito de outra forma, “os
contratos somente prevalecem porque se fazem cumprir pela ação de uma força
exógena” (Przeworski, 1991: 42) ao mercado.
Das considerações anteriores resulta que a mão invisível do mercado
não pode prescindir do Estado. Recorrendo a Reis, “se o mercado é
inequivocamente o lugar da busca generalizada de interesses, ele se distingue
também pelo fato de que tal busca se dá em condições que pressupõem a
operação subjacente de um princípio de solidariedade e a adesão a normas que a
regulam sem degenerar em situação hobbesiana de fraude e eventualmente de
beligerância generalizada” (1993: 120), ou seja, sem cair no estado de natureza.
A presença do Estado revela-se necessária no sentido de assegurar condições
para que a livre iniciativa – entendida como requisito indispensável à alocação
intertemporal eficiente de recursos – possa se expressar, proporcionando suporte
institucional para o processo de produção e de distribuição dos resultados
alocativos obtidos, bem como de depurar o mercado daquilo que Reis (1993)
denomina de elementos de “contaminação”, de forma a que as transações entre
os agentes sejam pautadas pelo respeito a certas considerações de interesse
público. A assimetria de poder entre os agentes, expressa na constituição de
6
A necessidade da intervenção pública para assegurar a segurança dos agentes, em particular os direitos de
propriedade, é enfatizada pela doutrina liberal como uma das atribuições centrais do Estado. Em termos mais
específicos, a garantia da proteção aos indivíduos configura-se como função constitutiva do próprio Estado. A
propósito da questão, Nozick mostra que uma forma de Estado – o Estado mínimo, em sua formulação
teórica, ou o Estado guarda-noturno do liberalismo clássico – com as atribuições de prestar segurança aos
indivíduos, “nasceria da anarquia na forma representada pelo estado de natureza, mesmo que ninguém
tivesse essa intenção ou tentasse criá-lo” (1991: 11). Linha similar de raciocínio é utilizada pela escola da
escolha pública para vincular a função de assegurar o cumprimento dos contratos ao Estado. Mercuro e
Medema sumarizam o argumento, afirmando que, dadas as “dificuldades de desenhar contratos fechados em
si mesmos para a execução de transações complexas, é do interesse das partes e/ou da sociedade
desenvolverem instituições com tal propósito” (1997: 135). Sob essa ótica, a existência de uma estrutura
formal definindo direitos e obrigações a serem observadas e cumpridas nas relações entre os agentes atuaria
tanto no sentido de facilitar a realização das transações, reduzindo a margem de riscos e incertezas
imbricadas nas mesmas, quanto de estimular a promoção de atividades e negócios mais complexos,
rebaixando sensivelmente os custos de transação.
54
monopólios e oligopólios, representa um dos principais problemas a serem
“depurados”, à medida que distorcem o princípio igualitário do mercado, o que
leva Reis a afirmar que “a rigor, um mercado oligopolístico ou, com mais razão,
monopolístico não é um mercado“ (1994: 119).
As relações entre mercado e Estado, contudo, não se restringem ao
suporte institucional que o segundo assegura para o funcionamento do primeiro.
As imperfeições e falhas do mercado, em sentido amplo, e os aspectos
relacionados às desigualdades sociais e ao crescimento econômico, em termos
mais específicos, conferem saliência ao papel da política, ou das instituições
públicas, como instrumento voltado à promoção de resultados socialmente mais
eficientes que aqueles obtidos “como o produto agregado de indivíduos buscando
a realização de seus interesses privados” (Elster, 1989: 103). Em conexão com
essa visão, o Estado se introduz como uma instância de coordenação de
interesses operando com uma lógica distinta da lógica de mercado e produzindo
resultados alocativos também diferenciados, cujo fundamento é a separação
institucional entre propriedade e autoridade – aspecto assinalado por Przeworski
(1995) como elemento crucial da organização da economia capitalista. Em outras
palavras, o Estado constitui a instância com competência para corrigir ou eliminar
as imperfeições e falhas da operação do mercado, onde se destaca a promoção
da justiça social7. O capitalismo é marcado, portanto, pela coexistência de dois
mecanismos de coordenação de interesses operando sobre uma mesma base de
recursos, o que torna inevitável a existência de uma tensão permanente entre
ambos (Przeworski, 1995), suscitando, em particular, interpretações onde “a
expansão de um é vista como se fazendo necessariamente em detrimento do
outro” (Reis, 1994: 119).
7
A busca da justiça social significa, simplificadamente, promover uma seleção, através de algum critério
político, entre as várias distribuições potencialmente eficientes, movendo-se “ao longo da fronteira do ótimo
de Pareto assim que (...) alcançado” (Elster, 1989: 104).
55
A despeito da visão liberal, para a qual redistribuição e mercado são
contraditórios em termos dos próprios princípios básicos que estruturam os
conceitos, o propósito de reduzir as desigualdades, melhorando o padrão
distributivo da sociedade, tem sido responsável por grande parte dos esforços
feitos pelo Estado no âmbito da economia, seja regulando as atividades dos
agentes privados ou atuando diretamente no campo na produção. Como salienta
Dahl, “isto não quer dizer que os resultados desses esforços tenham produzido
uma distribuição de renda mais equitativa (...) nem (...) que os métodos
escolhidos tenham sido necessariamente os mais eficientes dentre os disponíveis;
pelo contrário, eles com frequência podem ser altamente ineficientes, ineficazes
ou mesmo perversos” (1993: 229). No entanto, apesar das inescapáveis
dificuldades operacionais e dos resultados não necessariamente satisfatórios8,
interessa ressaltar, recorrendo novamente a Dahl, que se “a distribuição de renda
existente é injustificada, então é razoável tentar-se obter uma distribuição mais
justificável mediante a intervenção governamental” (1993: 229). O mesmo se
pode afirmar em relação à questão do crescimento econômico, enquanto garantia
mesmo de uma ordem social mais justa. Trata-se aqui de um compromisso mais
efetivo com os direitos sociais do indivíduo enquanto cidadão, entendidos como
pré-requisitos para a plena manifestação da individualidade e da liberdade no
mundo real. Sob essa ótica, o Estado deve se envolver diretamente na promoção
de uma vida melhor para o conjunto da sociedade, ou seja, desempenhar um
papel mais ativo no sentido de proporcionar aos indivíduos as condições
necessárias para o desenvolvimento de suas potencialidades. Equivale a dizer
que a liberdade enquanto princípio básico de ordenamento social, como o quer o
8
A transposição da idéia de igualdade do plano da abstração teórica para o plano da empiria levanta uma
série de dificuldades de natureza operacional, qualquer que seja o princípio de justiça social adotado. Santos
(1986) é categórico nesse sentido, argumentando sobre a inviabilidade de se aplicar um único critério de
justiça, seja qual for, como princípio de ordenamento social e de definição de políticas públicas. “Em termos
mais específicos, nem o princípio utilitarista em suas versões contemporâneas, nem princípios fundados em
teorias sobre direitos absolutos, nem o princípio rawlsiano que busca maximizar a posição relativa das
camadas mais baixas da população (...), nenhum deles, se aplicado uniformemente a todas as áreas sociais
problemáticas, produz resultados consistentes” (1986: 25).
56
pensamento liberal, só pode ser sustentada na prática a partir da garantia pelo
Estado da materialização de um patamar mínimo de igualdade sócio-econômica9.
Essas e outras questões relativas ao papel desempenhado pelo Estado
frente “às várias dimensões da vida econômica e social”, como ressalta
Przeworski, estão no centro “das controvérsias políticas contemporâneas” (1995:
8). O foco da atenção será direcionado, assim, para o exame de como o Estado
opera, tanto no que se refere a garantir as condições necessárias à materilização
das interações sociais, assegurando o respeito à lei e a preservação da ordem,
quanto, e principalmente, no tocante a “regular ou gerenciar a produção, (...) e a
providenciar bens e serviços em uma base distinta do princípio de mercado”
(Dunleavy e O’Leary, 1987) – temáticas que perpassam o desenvolvimento do
argumento analítico relativo à trajetória do setor elétrico.
6. Estado, política pública e governo
Um ponto de partida para a discussão relativa ao Estado, o que é e
como atua, consiste na especificação
do conceito mesmo de Estado. O
tratamento analítico que parece proporcionar uma melhor fundamentação para
uma interpretação substantiva de sua natureza e manifestação no mundo real
consiste em considerar o que autores como Vincent (1987) e Dunleavy e O’Leary
(1987)
ressaltam
como
suas
dimensões
constitutivas
básicas,
mais
especificamente, a dimensão formal ou organizacional e a dimensão funcional.
São dimensões estreitamente entrelaçadas, no sentido de que aquilo que o
Estado faz ou se propõe a fazer não pode ser dissociado de sua efetiva
capacidade de intervenção.
9
Conforme Vincent, “o significado e a importância do Estado dependem do aprimoramento de seus
membros; desse modo, em um sentido relevante, ele continua individualista e comprometido com a liberdade
individual” (1995: 59).
57
Do ponto de vista organizacional, a concepção moderna de Estado
aparece intrinsecamente associada à emergência do Estado-Nação, - fenômeno
que se manifesta na Europa Ocidental para se disseminar gradativamente em
escala mundial. Estabelecendo-se como uma forma de poder político exercido
sem descontinuidades na sociedade (Vincent, 1987), o Estado apresenta
determinadas características que o tornam distinto das demais formas de poder
político nela existentes. Dentre tais características, cabe assinalar a noção da
soberania de poder, que remete a um território fisicamente delimitado, bem como
do monopólio
da força como enquanto fundamento último deste poder. Além
disso, há um relativo consenso quanto a constituir um elemento indispensável à
existência mesmo da sociedade, o que implica reconhecê-lo como fator não só de
ordenamento mas de coesão social. A perspectiva funcional tem a ver com sua
capacidade de atribuir e alocar valores e de exercer o controle social, ancorada
no recurso, direto ou indireto, à sanção coercitiva. Caminha-se aqui na direção
das ações ou atividades desempenhadas pelo Estado, que traduzem, na prática,
o conteúdo substantivo do poder que este expressa. Isto remete à noção de
política pública, em torno da qual se articulam as duas dimensões consideradas.
No exame dessa relação, adquirem saliência a forma como o poder político é
organizado e exercido, os princípios que norteiam a atuação pública e as
consequências ou desdobramentos da intervenção estatal para o conjunto do
corpo social.
Seguindo a definição proposta por Swason (1971), entende-se por
política pública um “sistema de regras atribuindo autoridade social à promoção de
fins coletivos, com a instituição de agentes para a intervenção e regulação
coletiva” (citado por Jepperson e Meyer, 1991: 206). A primeira parte do
enunciado realça o compromisso com os interesses da coletividade que está na
base dos processos decisórios e das funções que o Estado desempenha. Numa
sociedade capitalista, um aspecto de suma importância, conforme Przeworski
(1995), gira em torno do papel adequado para o Estado vis-à-vis o mercado,
suscitando debates conexos relacionados à efetiva sintonia entre a intervenção
58
pública e os interesses representativos da sociedade, o grau de autonomia na
tomada de decisões e questões afins. A segunda ressalta a relação estreita que
se estabelece entre o governar - entendido no sentido mais convencional do
termo, isto é, o poder ou autoridade para imprimir um direcionamento objetivo às
ações ou interações sociais - e o aparelhamento estatal para o exercício desta
mesma autoridade, onde se destacam questões relacionadas à capacidade de
implementar as decisões tomadas na esfera pública e de garantir adesão às
mesmas.
Direcionando a atenção para as questões associadas à relação entre
Estado e mercado e à “autonomia do político”, sobressai, de imediato, o caráter
controverso que tais temas assumem na literatura política contemporânea. Tratase de resultado até certo ponto esperado ou previsível, à medida que as
formulações teóricas no campo da política, em particular as discussões referentes
ao Estado, não são pautadas por preocupação estrita com a explicação dos
fenômenos analisados, mas envolvem “recomendações, valoração normativa e
prescrições” (Vincent, 1987: 41), o que claramente limita pretensões de uma
convergência interpretativa mais geral. Isto não implica, contudo, a inexistência de
pontos em comum ou convergentes, ainda que parciais. Essa proposição
encontra respaldo em Przeworski, que aponta três "posições teóricas básicas"
em torno das quais gravitariam as diversas interpretações a respeito da natureza
objetiva da ação estatal: " os Estados respondem às preferências dos cidadãos,
os Estados procuram realizar seus próprios objetivos, e, finalmente, os Estados
agem segundo o interesse dos que possuem riqueza produtiva. Na primeira visão,
(...) os governos são perfeitos agentes do público. Na segunda (...), os Estados
são instituições autônomas em relação à sociedade (...) - os governos traçam
políticas que refletem os valores e os interesses dos administradores estatais. Na
terceira (...), os Estados são tão constrangidos pela economia (...), que os
governos não podem empreender quaisquer ações contrárias a esses interesses"
(1995: 8/9).
59
São posições que não aparecem em forma pura, mas que se
interpenetram, refletindo, numa mesma vertente teórica, o entrelaçamento entre a
percepção do que é e do que deveria ser, ou seja, entre o empírico e o normativo.
Isto pode ser observado, em particular, em interpretações desenvolvidas por
variantes contemporâneas do pensamento liberal e do marxismo. As formulações
teóricas correspondentes a quatro dessas variantes – pluralismo, neopluralismo,
neoliberalismo ou nova direita (new right) e neomarxismo (Dunleavy e O’Leary,
1987; Held, 1987) - proporcionam uma visão abrangente das principais
divergências e dos pontos em comum no tocante à interpretação da ação do
Estado, embora, evidentemente, não esgotem as alternativas de abordagem do
tema.
O pluralismo caracteriza-se pela centralidade atribuída ao controle da
sociedade sobre a formulação da agenda pública e, através dela, sobre o
exercício do poder do Estado. Esse papel é atribuído aos grupos de interesse, de
diferentes matizes, que se estruturam de forma autônoma e descentralizada no
âmbito das sociedades contemporâneas. Na visão pluralista, o fator crucial para
que os indivíduos, enquanto cidadãos, consigam promover seus objetivos é a
existência de múltiplos grupos organizados, de tipos e tamanhos variados,
mobilizando-se na defesa dos interesses que estão na base de sua estruturação
(Held, 1987). A dispersão e a multiplicidade de interesses concorrentes, formando
uma rede de pontos de pressão política não coordenados e relativamente
pequenos, assegurariam um direcionamento geral para a política pública capaz
de evitar a influência excessiva de determinados interesses, individuais ou
coletivos, sobre o conjunto da sociedade – idéia que se aproxima da concepção
de mercado da economia neoclássica. Vale dizer, a concorrência entre múltiplos
grupos sociais tornaria “o sistema político, ou estado, (...) quase que indistinguível
do fluxo de barganhas e das pressões competitivas de interesses” (Held, 1987:
177). De forte conteúdo normativo, a concepção pluralista mostrou-se suscetível a
críticas, tanto teóricas quanto, e especialmente, de fundamentação empírica,
como a de negligenciar as assimetrias de poder associadas à diferenciação social
60
característica de qualquer formação social complexa e a de supor que a
existência de grupos de pressão é suficiente em si mesma para assegurar uma
adequada incorporação dos múltiplos interesses coletivos na agenda pública10.
Essas críticas são endossadas pela vertente neopluralista, para a qual
a formulação da política pública não só pode como tende a ser desviada no
sentido de determinados grupos de interesse, melhor organizados e com maior
capacidade de mobilização de recursos. Dentre os grupos em posição
privilegiada, ou seja, com maior poder de influência, vão ser encontradas as
grandes corporações econômicas, bem como setores ou órgãos do aparato
estatal.
Além da
assimetria entre os grupos de
interesse, o Estado
contemporâneo ainda se defrontaria, na concepção neopluralista, com o
imperativo de considerar as necessidades impostas pelo processo de acumulação
capitalista, que atuariam no sentido de reduzir a amplitude das opções políticas
governamentais. Em termos mais específicos, a promoção dos investimentos
privados, vistos como indispensáveis ao crescimento econômico e à estabilidade
do desenvolvimento, cria determinadas exigências que não podem ser
negligenciadas pelo Estado, sob o risco do caos econômico e da corrosão da
própria legitimidade do governo. Trata-se de uma visão onde o “Estado deve
seguir uma agenda política que de qualquer maneira é favorável a ou (...) viesada
para o desenvolvimento do sistema da empresa privada e do poder corporativo”
(Held, 1987: 185). Se o Estado tende a ser capturado por determinados
interesses da sociedade, mais especificamente, interesses do capital, a "solução"
10
A propósito da questão, Held argumenta que, ao contrário da posição pluralista, “a existência de muitos
centros de poder dificilmente garante que o governo vá: (...) ouvir a todos igualmente; (...) fazer outra coisa
que não seja entender-se com os líderes de tais grupos; (...) ser suscetível à influência de qualquer um que
não aqueles que ocupam posições de poder; (...) e assim por diante” (1987: 181). Além desses aspectos, não
há como escapar daquilo que Bohman (1996) denomina de “dilema liberal”, traduzindo o fato de assuntos ou
temas de interesse geral, isto é, de todos os indivíduos e grupos da sociedade não serem necessariamente
do interesse de cada grupo específico.
61
que os neopluralistas preconizam para neutralizar ou, pelo menos, atenuar o
problema, aponta em direção oposta à dos pluralistas11. A alternativa que
propõem converge para um novo padrão de relação entre Estado e sociedade,
fundado
em
mecanismos
de
“accountability”,
capazes
de
favorecer
o
acompanhamento e a pressão dos grupos em torno do conteúdo e da
implementação da agenda pública.
Como o neopluralismo, o neoliberalismo reconhece a existência, na
definição agenda pública das sociedades contemporâneas, de dificuldades para a
incorporação dos interesses dos grupos sociais que se apoiam em bases frágeis
de recurso, de um lado, e de uma posição privilegiada dos interesses das grandes
corporações, de outro (Held, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987). Diverge da
interpretação neopluralista, contudo, no tocante à capacidade de o aparelho
estatal promover uma mediação e harmonização eficiente dos interesses dos
diversos grupos constitutivos da sociedade. Salienta, a esse respeito, que o
processo de tomada de decisões na formulação da política pública tende a ser
caracterizado por “insumos distorcidos”, como o acordo entre grupos com
interesses distintos (“vote-trading”), a defesa de interesses locais ou paroquiais
(“pork barrel politics”) e o ativismo politico (“politicians activism”), entre outros
aspectos (Dunleavy e O’Leary, 1987). Além de não escapar a tais distorções, o
Estado seria tensionado no sentido do crescimento sistemático de suas funções e
ações, o que o levaria a avançar sobre a esfera da iniciativa privada, tornando-se
uma ameaça à mesma, na linha da tese do “Estado sobrecarregado”, formulada
para lidar com a crise experimentada pelas principais economias ocidentais no
11
Ao contrário do pluralismo, que enfatiza a atuação dos grupos de interesse da sociedade, o neopluralismo
internaliza, em parte, tal responsabilidade no próprio Estado. Salienta, a esse respeito, a importância da
profissionalização e especialização da administração pública, de forma a assegurar a eficiência e eficácia da
gestão governamental. Caberia a uma tecnocracia socializada pelo treinamento profissional (Dunleavy e
O’Leary, 1987) rebalancear as pressões que se colocam sobre o Estado, tendo, como diretriz geral, a
maximização do bem estar social. Trata-se, contudo, de "solução" que suscita problemas de outra natureza,
mais precisamente, a definição de eficiência sob a ótica social, ou seja, a definição do que exatamente deve
ser maximizado. Como observam Mercuro e Medema, considerações a respeito da maximização do bem
estar social requerem uma "prévia especificação normativa sobre os objetivos adequados para a sociedade"
(1997: 191).
62
final dos anos sessenta e início do anos setenta12. Fundada nessa avaliação
pessimista da atuação do Estado, a visão normativa do neoliberalismo aponta em
direção oposta à do neopluralismo. Preconiza não o aprimoramento da gestão
pública, mas a redução da interferência estatal tanto no campo econômico quanto
social (Held, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987), num retorno ao Estado mínimo
das origens do pensamento liberal, embora não exatamente ao Estado guardanoturno, restrito essencialmente à defesa do direito de propriedade. Trata-se,
mais precisamente, de uma proposição que advoga a restauração do papel do
mercado como instância mediadora primária da sociedade, onde caberia ao
Estado, conforme Hayek (1978), o desempenho de duas funções básicas: “prover
uma estrutura para o mercado e prover serviços que o mercado não pode
fornecer” (citado por Netto, 1995: 194).
Partindo de premissas teóricas marxistas, autores como
Pierson
(1986), Paterman (1970, 1985) e Macpherson (1977) chegam a conclusões
relativamente próximas às do neopluralismo e mesmo às do neoliberalismo no
tocante à definição da agenda pública e ao desenvolvimento da ação
governamental. Em síntese, reconhecem que o Estado não é imparcial frente aos
múltiplos interesses presentes na sociedade, já que estaria comprometido com a
defesa dos interesses das grandes corporações econômicas e, como tal,
“inescapavelmente preso à manutenção e reprodução das desigualdades da vida
diária” (Held, 1987: 231). As causas dessa parcialidade estariam relacionadas a
deficiências no controle da sociedade sobre o Estado, cujo subproduto seria a
manifestação de uma tendência à sua hipertrofia, traduzida na proliferação de
políticas públicas que, mesmo apresentando recorte social, serviriam apenas para
promover ajustes relativamente pequenos na estrutura das desigualdades sociais
12
Desenvolvido originalmente com base em premissas pluralistas, o argumento que sustenta tal interpretação
está centrado no aumento das expectativas sociais associadas a melhorias no padrão de vida da população
ocorrida no pós-guerra. Ao serem canalizadas para o Estado, essas expectativas tendem a provocar uma
contínua expansão da esfera pública que, por sua vez, irá corroer “progressivamente a esfera da iniciativa
privada” (Held, 1987: 210). De um lado, as demandas sociais não seriam adequadamente priorizadas pelo
aparato governamental, ocasionando um aumento desnecessário na oferta de bens e serviços públicos. De
outro, haveria um processo natural de degeneração no tempo das instituições públicas, numa espécie de
“entropia institucional”, provocando disfunções e dificuldades de controle da intervenção estatal.
63
características das sociedades capitalistas modernas. No enfrentamento de tais
problemas, defendem a idéia da ampliação da participação direta da população
nos processos decisórios relativos às questões de interesse coletivo. Apontam,
portanto, na mesma direção da concepção pluralista de “apropriação” do Estado
pela sociedade, distinguindo-se dela, no entanto, quanto aos fundamentos do
processo. Enquanto o pluralismo se apoia numa organização espontânea e
descentralizada dos interesses relevantes da sociedade, a posição desses
autores confere saliência a uma ação deliberada e sistemática no sentido do
fomento à participação, o que passa pelo próprio Estado, dando forma ao que
Held (1987) designa como uma espécie de “pluralismo social”, com a promoção
de reformas que “abram caminho à socialização da economia e do poder” (Netto,
1995: 199).
Se, da perspectiva funcional, as interpretações acerca do Estado são,
como visto, controversas, da perspectiva organizacional observa-se uma maior
convergência interpretativa, até porque as abordagens tendem a ser pautadas por
forte conteúdo descritivo. A concepção de Estado, sob esse prisma analítico, se
aproxima mais estreitamente da idéia de governo, traduzindo um conjunto
complexo de instituições formalmente encarregadas de formular e implementar as
ações ou atividades que conformam a política pública num sentido amplo, onde
se inclui, em particular, o próprio arcabouço legal que rege a vida em sociedade
(Vincent, 1987; Dunleavy e O’Leary, 1987). Isto se materializa na estruturação de
um aparato técnico-operacional próprio, constituído por organismos e agências
especializadas, de desenho variado, tendo como suporte pessoal recrutado e
treinado para o desempenho de funções organizadas em consonância com uma
concepção burocrática de administração, no sentido weberiano do termo. O
fundamento primário desse aparato técnico-operacional, por sua vez, é a
“capacidade de extrair recursos monetários da sociedade para financiar suas
atividades” (Dunleavy e O”Leary, 1987: 2), dando forma àquilo que se designa
como poder fiscal do Estado.
64
Avançando além dos aspectos formais da organização do Estado,
sobre os quais há razoável consenso, as questões que despertam maior interesse
sob a ótica da investigação pretendida dizem respeito à eficiência e eficácia da
ação estatal, cuja discussão comporta dois ângulos principais de abordagem. O
primeiro tem a ver com a relação entre aquilo que o Estado faz ou se propõe a
fazer e o que está capacitado a fazer, isto é, entre suas dimensões funcional e
organizacional. O segundo, com a gestão governamental propriamente dita, em
conexão à capacidade de execução das decisões que conformam as políticas ou
programas de governo.
Embora não exista, como já mencionado, consenso sobre o papel mais
adequado para o Estado nas sociedades contemporâneas, é inegável que o
escopo de sua intervenção tende a se alterar ao longo do tempo, em resposta a
transformações de larga envergadura nas relações econômicas e sociais que se
processam tanto no ambiente internacional quanto no ambiente específico de
cada país. Se as primeiras interferem principalmente sobre o conjunto de
oportunidades e constrangimentos que se colocam para a formulação e
implementação de políticas voltadas à promoção do crescimento econômico num
dado período ou conjuntura histórica, as segundas tendem a ter implicações de
maior amplitude, repercutindo diretamente na conformação da agenda pública e
na dinâmica da atividade governativa. Mudanças mais profundas nas funções do
Estado supõem reformulações conexas em seu aparato organizacional numa
acepção ampla, isto é, em suas instituições, estrutura burocrática e mecanismos
de gestão. Ganham saliência aqui as idéias de crise e de reforma do Estado. A
primeira traduz o descolamento entre aquilo que o Estado se propõe a fazer ou o
que se espera que faça e sua capacidade de execução, na linha da tese da crise
fiscal do Estado, formulada por O’Connor (1973) para tratar dos desequilíbrios
estruturais nos orçamentos públicos das economias capitalistas nos anos
sessenta e início do anos setenta. A segunda expressa processos mais gerais de
reordenamento da substância das ações ou políticas públicas em conexão a seu
desenho organizacional, como as proposições surgidas nos anos setenta,
65
preconizando uma “revisão dos compromissos e procedimentos que davam
sustentação ao Welfare State” (Nogueira, 1995: 168) nas principais economias
capitalistas desenvolvidas, e no denominado “consenso de Washington” que
fundamenta as políticas neoliberais adotadas em diversos países da América
Latina e da Europa Oriental a partir de meados dos anos oitenta (Willianson,
1990; Bresser Pereira et al., 1996; Sola e Paulini, 1995).
Se a natureza cambiante das funções do Estado sinaliza para
transformações conexas em seu aparato organizacional, tal processo não é
automático nem necessariamente harmonioso, o que remete à discussão anterior
a respeito da dinâmica institucional. Como ressaltam March e Olsen, as
“instituições mudam, mas a idéia de elas que podem ser transformadas
intencionalmente da forma que se queira é muito mais problemática” (1989: 56).
Isto abre espaço para a emergência de descompassos entre as diretrizes e o
conteúdo objetivo das políticas públicas, que especificam o escopo das ações de
governo, e o desenho do aparato estatal encarregado de implementá-las, levando
a desajustes ou inconsistências no desenvolvimento da atividade governativa
propriamente dita, o que vai se refletir no desempenho governamental. A
implementação de mudanças intencionais nas instituições tende a provocar uma
série de ações e reações, nem sempre antecipadas ou pretendidas, trazendo
consequências que só podem ser claramente apreendidas a posteriori e que, em
diversas circunstâncias, escapam ao controle do agente deflagrador do processo.
Em outras palavras, não é apenas a definição de políticas adequadas para a
sociedade que constitui uma questão complexa sob a ótica do Estado, também o
é a moldagem de sua estrutura organizacional e operativa.
Primeiro, como ocorre com os indivíduos em suas interações sociais,
as ações do Estado estão submetidas a regras de ordenamento coletivo
estabelecidas em lei, cuja referência última é o texto constitucional. Tais regras
definem, em particular, a margem de autonomia e os limites da capacidade de
fazer escolhas por parte dos núcleos ou instâncias decisórias do governo
(Mercuro e Medema, 1997). A introdução de novas políticas e/ou a redefinição do
66
escopo da atuação governamental podem exigir tanto modificações nos
dispositivos legais que regem a atividade pública, quanto implicar uma
reacomodação ampla de interesses, frequentemente difusos e, em diversas
circunstâncias, associados ao próprio aparato estatal. Recorrendo novamente a
March e Olsen, o propósito de introduzir mudanças institucionais mais complexas
“tipicamente exige tempo e o controle deliberado sobre o processo depende da
persistência” (1989: 66) da disposição de implementá-las, de forma a evitar
desvios de rota. Como discutido anteriormente, os resultados obtidos não
correspondem necessariamente aos pretendidos, numa dinâmica com efeitos ou
produtos variados, onde, em diversas circunstâncias, sequer as motivações
originais são preservadas. As mudanças podem ser apenas parcialmente
implantadas, afetando em algum grau a consecução dos propósitos visados, ou
mesmo frustrando o alcance dos mesmos, como tende a ocorrer quando
determinada função é criada sem que o arranjo organizacional para desempenhála o seja. Alternativamente, podem ser implantadas de forma espaçada no tempo,
afetando “as preferências em nome das quais foram introduzidas, e [provocando]
a emergência de novas intenções” (March e Olsen, 1989: 66), que se
transformam em fatores intervenientes do processo. Ao longo do percurso, os
objetivos originais podem ser abandonados ou revistos, o que frequentemente
ocorre quando há alterações no controle do poder estatal, repercutindo sobre os
rumos da trajetória que vinha sendo percorrida. Por fim, mudanças podem ser
introduzidas mas não implementadas, o que se dá principalmente quando o
balanço de forças políticas, desfavorável às mesmas, é suficientemente forte para
mobilizar recursos capazes de bloqueá-las.
Segundo, as atividades das agências, corporações e da burocracia que
conferem organicidade ao Estado, como já mencionado, são suscetíveis a
determinadas inconsistências ou disfunções que influenciam, em algum grau, os
objetivos que perseguem e a forma como atuam, refletindo-se nos produtos da
67
política pública e, por extensão, no desempenho governamental13. Uma das
questões mais enfatizadas a esse respeito tem a ver com a busca do interesse
próprio pelo aparato estatal, em detrimento da promoção do “interesse público”,
subjacente à alocação dos recursos orçamentários mobilizados pelo governo.
Vários modelos de análise do fenômeno burocrático associam “poder, prestígio,
tamanho do orçamento da organização, estabilidade no trabalho, gratificação,
salário futuro, e condições de trabalho” (Mercuro e Medema, 1997: 93) à conduta
ou atividade desenvolvida no âmbito do setor público (Levacic, 1991). Tendo em
vista os inevitáveis conflitos entre interesses próprios das organizações ou
agências estatais e interesse da coletividade, o desempenho do governo, visto
sob a ótica da eficiência social, acaba sendo afetada ou restringida. Outro aspecto
saliente guarda relação com a ingerência direta de interesses constituídos da
sociedade nos processos decisórios e nas ações estatais, refletindo interlocuções
assimétricas ou privilegiadas com as organizações públicas. Interessa reter aqui a
visão relativamente consensual entre as principais vertentes teóricas de
interpretação do Estado de que “os produtos do processo de barganha política
são frequentemente a ineficiência alocativa ou o fracasso na promoção da justiça
social” (Levacic, 1991: 47). Menos salientes, mas também importantes, são as
questões relacionadas à difusão e processamento de informações referentes às
decisões de governo dentro do próprio aparato estatal. De um lado, as intenções
e os objetivos perseguidos pela política pública são múltiplos, frequentemente
ambíguos e não necessariamente congruentes entre si. De outro, o aparato
estatal opera com informações parciais, nem sempre consistentes e oportunas,
afetando
tanto
a
percepção
13
por
parte
da
burocracia
Em sistemas onde a ação é estruturada de forma burocrática, como no Estado, as organizações devem
“especificar internamente tanto a autoridade (a relação com as instâncias estatais) quanto a atividade (a
conversão da autoridade estatal em ação organizacional)” (Jepperson e Meyer, 1991: 224). Essa
especificidade abre espaço para a manifestação de inconsistências ou distúrbios entre as decisões de
governo e as ações implementadas sob a égide do Estado, o que é amplamente reconhecido pela literatura
política contemporânea.
68
responsável pela implementação das atividades governamentais acerca dos
objetivos
ou
linhas
de
ação
definidas
como
prioritárias,
quanto
o
acompanhamento e avaliação por parte das instâncias ou núcleos decisórios do
governo sobre os resultados das políticas públicas (Levacic, 1991; Laver, 1997).
As noções de governabilidade e de governança surgem na literatura
política contemporânea como categorias auxiliares na análise da eficiência e da
efetividade da ação estatal. A primeira tem a ver, conforme Diniz, com “as
condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício de poder em
uma dada sociedade” (1997: 196). A segunda guarda relação com a “capacidade
da ação estatal na implementação das políticas e na consecução das metas
coletivas” (Diniz, 1997: 196).
Governabilidade pode ser identificada à capacidade de o governo
garantir sustentação política às ações ou projetos que conformam a agenda
pública ou, mais especificamente, à capacidade de gerar adesão e endosso
político às suas decisões (Grindle e Tomaz, 1991; Silva, 1993; Nogueira, 1995).
Assegurar sustentação às decisões da política pública remete, por sua vez, à
negociação ou articulação de alianças e coalizões, de forma a evitar que as
iniciativas governamentais fiquem submetidas “à instabilidade, à flutuação e ao
risco não calculado” (Pasquino, 1985: 139; citado por Nogueira, 1995: 174), isto é,
à interveniência de fatores circunstanciais que, em extremo, podem inviabilizar a
própria atividade governativa. A ênfase na governabilidade reflete assim a
preocupação com seu oposto, a não governabilidade, onde adquirem saliência
duas questões principais, ambas associadas à relação entre Estado e sociedade.
De um lado, o que se coloca é a complexidade das atividades canalizadas para a
esfera pública, fruto das transformações cada vez mais abrangentes e intensas
nos processos sociais e produtivos contemporâneos, tornando “mais difíceis e
fatigosos os processos e procedimentos” (Nogueira, 1995: 174) da negociação e
da decisão política. De outro, o aspecto saliente é o grau de autonomia política do
governo na formulação e implementação de suas decisões, a base de apoio que
dispõe para legitimar suas ações ou, alternativamente, para impô-las de forma
69
coercitiva. Como observa Diniz, “não há fórmulas mágicas para garantir a
governabilidade, já que diferentes combinações institucionais podem produzir
condições favoráveis à sua existência” (1997: 196), sejam elas num sistema
democrático ou num regime autoritário.
Governança, por sua vez, guarda correspondência com aspectos
relacionados à capacidade de coordenação e comando do governo no tocante ao
cumprimento de suas atribuições e, sobretudo, na alocação eficiente dos recursos
institucionais e financeiros que controla. A discussão dessas questões passa,
numa primeira vertente, por considerações acerca do modelo administrativo
burocrático, na concepção weberiana, baseado na hierarquia decisória e de
comando, na divisão de trabalho, na impessoalidade e na especialização
profissional no desempenho das atividades (Weber, 1979). Definidos com vistas a
assegurar a eficiência administrativa em organizações complexas, especialmente
na esfera pública, os princípios organizacionais burocráticos têm sido criticados,
por ampla literatura política, como portadores de disfunções que afetam a
execução das ações programadas e a consecução dos objetivos propostos,
levando apenas ao controle e não à eficiência operacional preconizada por
Weber14. São problemas que tendem a se acirrar em ambientes caracterizados
tanto pela multiplicidade de interesses em jogo quanto, e principalmente, pela
rapidez e profundidade das transformações que neles se processam. Tais
características pressupõem maior flexibilidade e capacidade de interlocução, além
de sistemática atualização das práticas de gestão, indo de encontro à rigidez e à
padronização subjacentes aos arranjos burocráticos. O afastamento das práticas
burocráticas, por sua vez, abre espaço para a captura do Estado por
determinados interesses, internos ou externos ao mesmo, o que permite
argumentar a respeito da existência de uma espécie de trade off entre
14
Beetham sumariza os principais problemas levantados acerca da aplicação de tais princípios, centrando o
enfoque no que denomina de “patologia” da manifestação das disfunções burocráticas. Reproduzindo o autor:
“aderência a normas pode se transformar em inflexibilidade (...). Impessoalidade produz indiferença
burocrática e insensibilidade. Hierarquia desestimula responsabilidade e iniciativa” (1991: 133).
70
controle e eficiência, em associação ao grau efetivo de aplicação dos princípios
organizacionais do modelo burocrático. Outra abordagem da questão remete ao
paralelismo com a dinâmica de funcionamento do mercado, o que fundamenta a
idéia de falhas e imperfeições nas ações de governo. Os principais aspectos
assinalados aqui dizem respeito às dificuldades operacionais no tocante à
coordenação das políticas públicas, repercutindo sobre a eficiência na alocação
de recursos. Levacic afirma, a esse respeito, que a ocorrência de deficiências de
coordenação é inevitável, “dados os problemas na obtenção de informações
acerca dos efeitos das medidas de política e a impossibilidade de adoção de
decisões altamente centralizadas sobre todo o espectro de responsabilidades do
Estado” (1991: 45) nas complexas e multifacetadas sociedades capitalistas
modernas. Informações imperfeitas, como no mercado, afetariam o processo
decisório das ações de governo e, consequentemente, os produtos delas
derivados. A inviabilidade de decisões centralizadas, por sua vez, criaria
dificuldades de articulação das múltiplas atividades e atribuições do governo,
traduzidas em problemas como a dispersão de esforços e a sobreposição de
ações, comprometendo, de um lado, a compatibilização dos objetivos que
conformam a agenda pública e, de outro, a eficiência dos resultados obtidos.
Em síntese, o Estado desempenha papel crucial na conformação e na
dinâmica das relações sociais e produtivas da sociedade. Define e legitima
objetivos e metas coletivas, “padroniza e distribui recursos (...), e desenvolve e
mantém sistemas de controle burocrático” (Powell, 1991: 188) que afetam a forma
de organização, as expectativas e as decisões dos atores que operam nos vários
campos de atividade. Enquanto tal, é visto como instrumento para corrigir as
imperfeições e falhas de mercado, orientando a atuação dos agentes privados em
prol da promoção do desenvolvimento e do bem estar social. No entanto, a
intervenção estatal não fica imune a ocorrência de imperfeições e falhas, que se
manifestam nos resultados da política pública. Coloca-se então, como questão
política central para as sociedades modernas, a demarcação do campo de
atuação da instância pública socialmente desejável, o que significa promover um
71
balanço adequado entre a preservação da liberdade de iniciativa e da autonomia
decisória dos indivíduos e a obtenção de uma ordem social mais justa ou
equilibrada. A idéia de democracia intervém nesse contexto, traduzindo a
estruturação de um processo decisório de natureza política para referenciar, nas
preferências e interesses representativos da sociedade, a definição do conteúdo
substantivo da agenda pública a ser implementada pelo governo.
7. Mercado, Estado e o papel da democracia
A demarcação da fronteira entre o público e o privado não é tarefa
simples mas, ao contrário, polêmica e complexa, à medida que “não há nenhuma
norma rigorosamente definida” (Vincent, 1995: 58) ou consensual para distinguir
entre estes dois domínios. Em termos concretos, a fronteira é objeto de disputa,
sendo estabelecida e ao mesmo tempo permanentemente tensionada por lutas
políticas que se travam em torno dos múltiplos e conflitantes interesses existentes
na sociedade. A questão central que se coloca aqui é a criação de mecanismos
para impor limites à autonomia decisória do Estado e assegurar proteção contra a
ameaça que representa para o domínio do privado. A preocupação em especificar
limites concretos à esfera de atuação do Estado, de forma a preservar a
soberania da esfera privada (Przeworski, 1995), está no cerne da concepção de
democracia
prevalecente
nas
sociedades
capitalistas
contemporâneas,
fortemente calcada na tradição do pensamento liberal (Vincent, 1994; Green,
1999).
Na concepção liberal, se há limitações à intervenção pública, “estas
são arquitetadas dentro do Estado” (Vincent, 1994: 58). A democracia cumpriria o
papel de instrumentalizar a sociedade no sentido de interagir com o processo de
organização e funcionamento do Estado, com vistas a assegurar uma gestão
pública que não só garanta as liberdades fundamentais dos indivíduos, sobre as
quais se estrutura a idéia de mercado, mas que seja compatível com as
aspirações e interesses destes mesmo indivíduos como uma coletividade. Em
consonância com tais propósitos, assume um significado processual, isto é, de
72
produzir um tipo específico de governo – o governo democrático -, caracterizado
por refletir a manifestação das preferências dos indivíduos em sua formação e
consequente operação. Enquanto procedimento ou método de produção do
governo, a democracia se sustenta em dois princípios operacionais básicos: a
realização periódica de eleições competitivas, quando se dá a disputa pelo
controle do poder de decisão política, e a regra da maioria, através da qual o
poder é legitimamente conferido a quem obtém a maior proporção dos votos da
população. Essa visão de democracia como método para a formação de governos
representativos é enfatizada, em particular, por Schumpeter (1984). Partindo de
uma crítica à concepção clássica de democracia15, o autor argumenta que o povo,
entendido como o conjunto dos membros de uma dada sociedade, não deveria
decidir sobre temas políticos relevantes do ponto de vista coletivo, mas apenas
sobre quem iria governá-lo16.
A concepção de democracia como método para a formação do
governo, consoante a interpretação schumpeteriana, é importante no sentido de
ressaltar aspectos cruciais do funcionamento dos sistemas políticos democráticos:
a criação de oportunidades para que se processe a alternância no controle do
poder público, calcadas em regras competitivas formalmente estabelecidas, e a
legitimação institucional de tal poder. A realização de eleições periódicas,
contudo, não é suficiente, por si só, para assegurar uma adequada manifestação
e incorporação dos interesses representativos da sociedade
na definição da
agenda pública, nem que os objetivos e metas democraticamente selecionados
sejam efetivamente cumpridos (Held, 1987; Przeworski, 1995). O reconhecimento
dos limites e imperfeições das instituições representativas da democracia liberal
leva autores como Dahl (1989) a considerá-la um ideal teórico, difícil de ser
15
Tal noção de democracia remete à cidade-estado ateniense, significando a manifestação direta das
preferências dos cidadãos, reunidos em assembléia (Green, 1999), onde a participação dos indivíduos
corresponderia à manifestação de uma vontade coletiva ou vontade do povo.
16
Essa forma de interpretação guarda analogia com a noção de mercado, o que é enfatizado pelo próprio
Schumpeter. Em outros termos, o processo de competição eleitoral seria equivalente “à competição entre
firmas no mercado, exceto que o prêmio pelo sucesso não é o aumento dos lucros, mas o poder político, e a
penalidade para o fracasso não é a falência, mas a exclusão do governo” (Beetham, 1993: 193). É como se
os eleitores estivessem escolhendo entre candidatos e proposições políticas oferecidas no mercado eleitoral,
de forma similar a consumidores escolhendo os produtos no mercado de consumo final.
73
alcançado na prática. Ganha saliência aqui a preocupação com o aprimoramento
institucional do processo político com vistas a aproximá-lo o máximo possível do
ideal democrático, dando forma ao que o autor designa como poliarquia.
Tendo em vista esse propósito, Dahl (1989) procura especificar as
condições necessárias para que a aplicação da regra da maioria – princípio
fundamental do método democrático – possa refletir a manifestação das
preferências dos indivíduos, sem estabelecer distinções políticas relevantes entre
eles. Na interpretação do autor, isto exige, de um lado, a garantia das liberdades
políticas básicas preconizadas pelo liberalismo – liberdade de expressão, de
associação e de voto -, expressas sobretudo no direito de participar de eleições e
no governo; de outro, que as eleições seja competitivas. Para tanto, o requisito
básico é que os diferentes indivíduos tenham iguais oportunidades para formular
suas preferências e manifestá-las publicamente, sem discriminação de conteúdo
e de origem, o que passa pelo adequado acesso a informações e pela existência
de canais para a realização do debate público relativa a temas de interesse
coletivo.
A democracia ou, mais propriamente, a poliarquia expressa um grau
mínimo de preenchimento de determinados requisitos institucionais quanto à
participação e ao debate público, entendidos como condições necessárias à
aproximação do ideal democrático de plena liberdade e igualdade política. No
entanto, como observa Przeworski, “uma democracia processualmente perfeita no
campo
político
não
resolve
os
problemas
derivados
da
desigualdade
econômica”(1995: 134). Dito de outra forma, apesar de necessária, a garantia de
condições institucionais para a participação política não é suficiente em si mesma
para a igualdade política em sentido pleno. Afim de que igualdade política não
seja apenas formal, é necessário que as oportunidades que se oferecem à
participação política dos indivíduos “não estejam condicionadas de maneira
decisiva por sua inclusão neste ou naquele grupo ou categoria social determinada
– isto é, por fatores de adscrição” (Reis, 1993: 122) que afetem a capacidade de
influenciarem o processo de deliberação democrático. Isto aponta na direção da
74
construção de uma cidadania real, cujo conteúdo incorpora, além dos direitos civis
e políticos do liberalismo clássico, os direitos sociais, na linha da cidadania
expandida de Marshall. Em conexão com essa idéia, toma forma uma noção
distinta de democracia – a democracia substantiva – impregnada de forte
conteúdo de justiça social.
Da perspectiva da democracia substantiva, os direitos sociais do
indivíduo são tratados como pré-requisito para a efetiva expressão de seus
interesses e para a manifestação de suas preferências no mundo real. Traduzem
o entendimento de que os indivíduos, como cidadãos, devem ter asseguradas
suas necessidades básicas, compatíveis com uma vida digna em sociedade,
indispensáveis a que possam desenvolver plenamente suas potencialidades,
“correspondendo a direito decorrente da inserção igualitária na comunidade”
(Reis, 1993: 129). A consecução desse desiderato político implica o envolvimento
do Estado no sentido da promoção do bem estar social, o que supõe alargar sua
esfera de atuação, quer de cunho regulatório ou de provisão direta de bens e
serviços, numa interferência mais incisiva sobre a dinâmica de mercado,
orientada para o incremento da produção e a redistribuição de renda.
A idéia de democracia nas sociedades capitalistas modernas pode ser
associada, portanto, a visões distintas e, em princípio, contraditórias da relação
entre mercado e Estado. Ao mesmo tempo em que se apoia nos princípios
básicos de liberdade e autonomia decisória do indivíduo, o que requer controlar o
intervencionismo do Estado, a democracia aponta para valores de igualdade ou
justiça social, cuja promoção envolve a intervenção deste mesmo Estado. A
democracia seria permeada, portanto, pelo compromisso com a conciliação dos
princípios de liberdade e igualdade ou, alternativamente, de mercado e Estado.
Nos termos em que a questão é abordada por Reis, “não se trata, (...) antes de
mais nada de conter o Estado”, como encontrado nas posições liberais ou
neoliberais mais extremadas, “mas sim de construí-lo de forma adequada” (Reis,
1993: 139). Para tanto, o que se requer é o desenho de instituições políticas
permeáveis aos múltiplos interesses presentes na tessitura da organização social,
75
em conexão ao suporte público aos grupos oprimidos ou em desvantagem na
sociedade (Young, 1993).
Sob a ótica da investigação pretendida, a questão de maior relevância
tem a ver com relação que se estabelece entre a vigência de uma ordem
democrática e a atividade governativa, envolvendo aspectos afetos às noções de
governabilidade e governança. Prevalece, no exame dessa temática, a concepção
de democracia como um conjunto de regras e procedimentos institucionalizados
que organizam o debate político em torno da agenda pública, conferindo “a todos
uma oportunidade de lutar por seus respectivos interesses” (Przeworski, 1993: 29)
e de influenciar, por meio de eleições, a formação e renovação periódica do
governo (Hirst, 1992). O papel central que desempenha é o de permitir a
manifestação dos interesses representativos da sociedade e de promover
negociações ou deliberações em torno destes interesses, levando a resultados ao
mesmo tempo incertos, já que dependentes do balanço de forças políticas, e
aceitos ou legitimados pelos diferentes atores sociais, a partir de sua adesão às
regras do jogo democrático.
Assim compreendida, a democracia se converte num instrumento de
legitimação e, simultaneamente, de controle das ações do governo. Isto pode ser
lido tanto como uma forma de fazer com que a intervenção pública corresponda
às necessidades, interesses e preferências da população, quanto como uma
forma de limitação ou contenção externa do exercício do poder político. No
entanto, como observa Przeworski, “os dirigentes estatais podem ter vontade de
agir independentemente de influências externas. Em vez de responder a
demandas, o Estado pode ofertar políticas autonomamente, seja no autointeresse dos próprios governantes, seja no interesse público, conforme a
interpretação dos governantes” (1995: 43). São fatores que potencializam uma
tensão entre a atividade governativa e as instituições da democracia, com
implicações sobre
a governabilidade. Em termos
mais
específicos,
os
constrangimentos ou obstáculos impostos por uma ordem democrática à
implementação das decisões de governo, emanados em especial do Legislativo
76
(Przeworski, 1995; Sartori, 1996) podem criar um ambiente de confronto político,
estimulando transgressões nos “limites estabelecidos pelo quadro legal,
institucional e constitucional em vigor” (Diniz, 1997: 191) e, no extremo, conduzir a
uma ruptura com a própria institucionalidade democrática, substituída por uma
ordem autoritária.
As relações que se estabelecem entre democracia e governança, por
sua vez, comportam considerações em duas direções principais. A primeira tem a
ver com o aprimoramento da qualidade das decisões tomadas na esfera pública e
da
gestão
governamental.
Conforme
Hirst,
“tornar
o
governo
mais
permanentemente obrigado a prestar contas e sensível à pressão e ao debate
público pode de fato ajudar a tornar o processo de formulação e execução da
política mais coerente e eficaz” (1992: 41). O aspecto saliente aqui é que a
participação social e o debate público são fatores que contribuem seja para a
redução da defasagem entre governantes e governados (Diniz, 1997) - tornando
as políticas públicas mais inclusivas, isto é, maximizando seu teor universalista -,
seja para a ampliação do leque de opções a serem consideradas pelo governo,
favorecendo o aumento da eficiência dos objetivos propostos e das estratégias de
ação com vistas à sua consecução. A segunda guarda relação com as
dificuldades de coordenação e de administração do jogo de interesses num
sistema democrático. De um lado, o que se coloca é a própria capacidade do
aparato estatal de apreender e de agregar as preferências da população na
definição dos objetivos, metas e instrumentos da política pública (Przeworski,
1995; Diniz, 1997). A esse respeito, Hirst ressalta que “a influência efetiva sobre o
governo depende de organização. Porém, interesses organizados podem agir de
diferentes modos, e alguns dos resultados, embora evidenciem forte disputa
política, não asseguram a coordenação ou a continuidade na política” (1992: 43).
A resultante do processo pode ser tanto aquilo que o autor denomina de
“balcanização” da política, comprometendo a própria racionalidade governativa,
ou a manifestação recorrente de estrangulamentos na condução das ações
governamentais e, no extremo, a paralisia decisória. De outro, surgem problemas
77
relacionados a “manter as instituições políticas especializadas responsivas às
demandas democráticas e [a] (...) satisfazer os objetivos democraticamente
escolhidos, referentes à alocação de recursos escassos” (Przeworski, 1995: 133),
sem culminar na hipertrofia do aparato estatal. Implica a difícil tarefa de
administrar os conflitos de interesse e, simultaneamente, assegurar uma gestão
eficaz dos recursos passíveis de serem mobilizados, o que requer não apenas o
adequado aparelhamento técnico da administração estatal, mas o compromisso
efetivo com o interesse público.
8. Proposições analíticas
A revisão da literatura política realizada nos tópicos anteriores permite
identificar duas lógicas principais na conformação dos arranjos organizacionais
relativos à alocação de recursos e à distribuição de seus resultados nas
sociedades capitalistas modernas. A primeira alternativa enfatiza a racionalidade
e o utilitarismo da conduta dos indivíduos em suas interações sociais, deduzindo
a dinâmica dos processos alocativos da busca motivada do interesse próprio. A
segunda alternativa centra o foco explicativo na racionalização das atividades
humanas, tendo como fundamento primário a influência de fatores de ordem
institucional, que definem, em algum nível, o que deve ser feito e como fazê-lo,
especificando objetivos a serem perseguidos, meios ou recursos passíveis de
serem mobilizados e os atores relevantes nas diversas situações de interação. O
aspecto crucial a ser ressaltado é que tais lógicas não são contraditórias mas
interdependentes, expressando forças estruturantes de natureza distinta que se
combinam para moldar e dar consistência aos fenômenos sociais concretos.
A primeira vertente interpretativa, fortemente influenciada pela teoria
econômica neoclássica, confere à noção de mercado papel central na agregação
das preferências dos indivíduos, tratando-o como uma espécie de arena onde
recursos escassos são alocados entre usos alternativos consoante princípios de
otimização da satisfação ou “utilidade” que esta utilização proporciona a quem os
controla. Como mecanismo de alocação de recursos, o mercado sumariza todos
78
os custos e benefícios do espectro de opções potencialmente abertos aos
indivíduos através da estrutura de preços relativos da economia, que espelha, por
sua vez, a manifestação da “disposição a pagar” e da “disposição a receber” nas
transações que realizam entre si envolvendo transferências de controle sobre
recursos e produtos. A formação das preferências não é problematizada pela
teoria neoclássica, no suposto implícito de que o próprio mercado estrutura tais
preferências, provisionando informações que instrumentalizam as escolhas
básicas que os indivíduos podem fazer. Trata-se evidentemente de uma
simplificação analítica, à medida que as opções potencialmente abertas aos
indivíduos não são convergentes mas específicas de cada um deles, no sentido
de dependerem da capacidade efetiva que têm de participarem das transações
que se processam no mercado. Essa participação tende a refletir muito mais o
que o indivíduo é e pode fazer do que aquilo que o indivíduo quer, denotando que
as “preferências são socialmente construídas, não apenas socializadas mas
socialmente estruturadas” (Friedland e Alford, 1991: 234).
Explicações fundadas na lógica competitiva de mercado passam,
portanto, por considerações analíticas a respeito de quem participa nas
transações que nele se processam e das condições objetivas que cercam tal
participação. A inserção nas atividades produtivas não pode ser dissociada da
capacidade de mobilizar recursos dos diferentes indivíduos e do valor potencial de
tais recursos no âmbito do próprio mercado. Isto remete, de um lado, ao estoque
de recursos ou à riqueza material da sociedade e, de outro, à forma como se dá
sua distribuição entre os indivíduos que a compõem. O nível de riqueza guarda
relação com o grau de desenvolvimento das forças produtivas, onde intervêm
fatores como a capacidade de acumulação de capital e a incorporação de novas
tecnologias de produção, enquanto a estrutura distributiva é fortemente
condicionada pelos direitos de propriedade e pelos resultados da política pública.
As condições objetivas sob as quais a ação se desenvolve têm a ver
fundamentalmente com a complexidade dos interesses em jogo, a configuração
79
das regras que normatizam a competição em torno da promoção de tais
interesses e a aderência às mesmas.
A segunda vertente interpretativa centra o foco analítico nos fatores de
natureza institucional, tratados como fundamento primário do ordenamento das
interações sociais, onde se salienta o papel coordenador do Estado no tocante à
dinâmica de alocação de recursos da sociedade ou, mais especificamente, sua
capacidade de imprimir direcionamentos objetivos aos arranjos organizacionais
que sustentam o processo produtivo em sentido amplo. De acordo com essa linha
de argumentação, calcada em contribuições teóricas neoinstitucionalistas, as
instituições representam o arcabouço regulatório que disciplina e orienta o
desenvolvimento das atividades humanas e sua reprodução no tempo – as regras
do jogo – estabelecendo padrões de constrangimentos e oportunidades
socialmente construídos e incorporados nas condutas dos indivíduo enquanto
atores sociais. A influência que exercem não se restringe à demarcação da
amplitude do espectro de opções de escolha potencialmente abertas aos
indivíduos nas situações concretas de interação, como postula a escolha racional,
impondo limites ao que pode ser feito, numa ponta, e definindo o que não pode
deixar de ser feito, na outra. Ao contrário, as instituições influenciam também o
processo de formação e diferenciação dos atores sociais, criando ou
reconfigurando funções e papéis em campos de atividade formalmente
estruturados, conjugado à especificação de requisitos a serem preenchidos no
desempenho dos mesmos. Além disso, afetam a forma como os recursos são
distribuídos e transformados em capacidade de ação, rebalanceando a correlação
de forças ou poder de barganha dos atores sociais. A regulação estatal se insere
nesse circuito como um vetor crucial de institucionalização da atividade humana.
A forma como o Estado influencia a dinâmica produtiva no capitalismo
combina iniciativas ao longo de dois eixos principais, com interfaces diferenciadas
frente ao mercado. No primeiro, o Estado define códigos e outros dispositivos
legais, especificando a regulamentação básica que rege a apropriação e a
alocação dos recursos produtivos, e cria agências e mecanismos operacionais
80
para zelar por seu efetivo cumprimento, mediatizando os conflitos de interesses
que surgem em torno de tais questões. É a regulação estatal, estabelecendo
regras e requisitos técnicos para o desenvolvimento das atividades econômicas
que confere materialidade ao mercado enquanto mecanismo para a busca da
eficiência nos processos alocativos da sociedade. Em resumo, a operação do
mercado, fundada na competição de interesses, supõe um conjunto de regras
básicas que instrumentalizem o ordenamento das preferências e assegurem a
convergência das expectativas dos agentes quanto à efetividade daquilo que foi
contratado nas transações que fazem. No segundo, o Estado não só influencia a
dinâmica alocativa do mercado através do uso articulado de incentivos e
restrições à atuação dos agentes que nele operam, como o suplementa,
provisionando bem e serviços em bases organizacionais distintas do mesmo. A
concepção de Estado se aproxima aqui da idéia de governo, assumindo o
significado de uma autoridade societal formalmente constituída, com atribuição e
competência de responder pela formulação e implementação da política pública.
A ingerência estatal na dinâmica de mercado implica sobrepor à lógica
competitiva deste último a lógica institucional imbricada na política pública, que
pode ser, e frequentemente o é, multivariada. As iniciativas governamentais
afinadas com tal propósito assumem formatos e conteúdos os mais diversos.
Envolvem desde a imposição de barreiras seletivas à atuação num dado campo
de atividade ou setor produtivo a incentivos de diferentes naturezas –
transferência de recursos, créditos em condições favorecidas, garantia de
aquisição da produção, proteção contra concorrência etc -, passando por
controles de preços, controles da margem de lucros e proteção contra práticas
oligopolísticas ou monopolísticas, entre outros mecanismos regulatórios. A “mão
invisível” do mercado cede espaço para a interveniência da ação coordenadora
do Estado, cuja influência incide sobre as preferências, a capacidade de mobilizar
recursos e as decisões dos agentes privados, inviabilizando determinados cursos
de ação e favorecendo outros. A inserção direta do Estado na esfera da
produção, por sua vez, aparece associada comumente a “falhas” da coordenação
81
de mercado, cujos exemplos mais eloquentes são os denominados bens
“públicos” e “semi-públicos ou sociais” – estes últimos, atividades com efeito
externo positivo de elevada expressividade, como os serviços de saúde e
educação. O governo propõe e legitima metas de produção, institui fontes de
recursos e mecanismos para seu financiamento e cria aparatos organizacionais
para implementá-las. São circunstâncias em que a lógica institucional tende a
deslocar, parcial ou integralmente, a lógica competitiva do mercado.
Se as duas lógicas são interdependentes, as questões centrais para a
investigação pretendida têm a ver com a discussão de qual delas prevalece num
dado momento, o realinhamento na articulação entre ambas que se processa ao
longo do tempo histórico e os fatores explicativos das mudanças ocorridas. Um
ponto de partida para o tratamento dessas questões é a relação que se
estabelece entre mercado e liberdade ou autonomia decisória dos indivíduos.
Vale dizer, a alocação de recursos através da coordenação de mercado se baseia
na liberdade de iniciativa, isto é, na possibilidade efetiva da realização de trocas e
transações sem impedimentos de maior relevância. Como visto anteriormente, o
grau de autonomia decisória dos agentes econômicos depende das regras do
jogo instituídas, das quais derivam as oportunidades e os constrangimentos que
defrontam nas situações concretas de interação. Impõe-se assim a conclusão de
que a prevalência ou não da lógica competitiva de mercado num dado campo de
atividade é contingente da conformação objetiva do arcabouço regulatório que dá
suporte às transações que nele se realizam ou, mais precisamente, da margem
de manobra que este confere aos agentes privados no tocante às escolhas
básicas que fazem, onde se inclui a própria possibilidade de participar do
processo produtivo. A agenda dos assuntos críticos para o desenvolvimento do
trabalho converge portanto para a temáticas relacionadas à dinâmica institucional
do setor, enfatizando o papel desempenhado pelo Estado, tanto no que se refere
à regulamentação quanto à alocação direta de recursos na área.
Sumarizando o argumento, em setores econômicos formalmente
estruturados, como o é a prestação dos serviços de eletricidade no país, os
82
arranjos organizacionais e produtivos são modelados, em algum nível, por
dispositivos legais que prescrevem requisitos técnicos a serem preenchidos
pelos agentes atuantes na área e normas operacionais a serem observadas no
desenvolvimento da atividade. Isto leva ao direcionamento do foco analítico para
a regulação estatal, percebida como fonte primária de conformação da
institucionalidade do setor e, consequentemente, das mudanças que nela se
processam. Em termos mais específicos, a regulamentação básica que rege a
alocação de recursos na área e a capacidade do poder público de conferir-lhe
efetividade
representam
dimensões
estruturantes
do
processo
de
institucionalização setorial, significando que tal processo não pode ser dissociado
daquilo que se passa no âmbito das decisões e iniciativas do governo relativas à
atividade. Aponta-se aqui para os processos políticos constitutivos da atividade
governativa, cujos fatores explicativos, conforme discutido anteriormente, “estão
enraizados em concepções cambiantes acerca do que o Estado é, o que pode e o
que deve fazer” (Friedland e Alford, 1991: 236).
O espectro das alternativas de políticas passíveis de serem adotadas
pela administração pública – aquilo que esta pode fazer – é condicionado tanto
por fatores de ordem técnica e operacional quanto institucional. Na primeira
vertente, intervêm variáveis como o tamanho, a estrutura organizacional, os
instrumentos e os recursos mobilizáveis pelo governo. Na segunda, a variável de
maior relevância tem a ver com autonomia no exercício do poder de governar.
Essa autonomia decisória, por sua vez, não pode ser tratada como um atributo do
Estado, mas depende da estrutura societal ou, mais especificamente, dos limites
institucionais,
de
fundamentação
legal,
que
esta
impõe
às
iniciativas
governamentais nos diversos campos de atividade. Tais limites, vale ressaltar,
guardam estreita relação com a vigência ou não de uma ordem democrática e de
seu grau de enraizamento na sociedade, no sentido de que a democracia
estabelece mecanismos e procedimentos formais para a legitimação das políticas
implementadas pelo governo.
83
O tratamento analítico do que deve ser feito pelo poder público constitui
assunto teoricamente complexo, à medida que não se prende apenas ao plano
técnico, isto é, à resolução de problemas materiais relacionados à alocação
eficiente de recursos, sendo permeado, ao contrário, por considerações tanto de
natureza normativa quanto empírica. Um primeiro conjunto de questões diz
respeito às distintas visões sobre o papel mais apropriado para o Estado frente ao
mercado. De forte matiz ideológico, tais visões são marcadas por profundas
divergências no tocante à extensão e à intensidade do intervencionismo público
na economia, conforme discussão empreendida anteriormente. Um segundo
conjunto de questões tem a ver com a permeabilidade da agenda pública aos
interesses representativos da sociedade. A forma como esses interesses são
percebidos e incorporados pelo processo de formulação e implementação das
políticas públicas depende, em larga medida, do grau em que os procedimentos e
instrumentos da democracia interpenetram a atividade governativa. Ademais, a
vigência de uma ordem democrática ou, mais especificamente, a realização de
eleições periódicas é importante no sentido de criar oportunidades para que se
processe a alternância no controle do poder estatal, cujos efeitos repercutem na
definição das prioridades e estratégicas políticas de governo.
Qualquer que seja, contudo, o conteúdo objetivo daquilo que o Estado
se propõe a fazer, a implementação e os resultados de suas iniciativas num dado
setor ou atividade não são necessariamente congruentes com os propósitos
originalmente visados. Primeiro, as ações propostas podem se defrontar, e
frequentemente se defrontam, com resistências, de intensidade variada e variável
no tempo, interpostas por diferentes interesses afetas às mesmas, com
desdobramentos também variados. A mobilização desses interesses pode
retardar ou bloquear, ainda que parcialmente, a materialização das intenções
governamentais, sobretudo quando estão envolvidas mudanças nas regras do
jogo, ou ainda levar a alterações no conteúdo do que foi proposto, numa dinâmica
que tende a espelhar o balanço das forças em conflito. Intervém aqui a
capacidade de coordenação do governo – um dos aspectos centrais da idéia de
84
governança -, que o credencia à obtenção de uma maior probabilidade de êxito na
consecução dos objetivos e metas traçadas pela política pública. Segundo, as
ações
implementadas
podem
ter
consequências
não
antecipadas
nem
pretendidas pelo governo, com desdobramentos em duas direções principais. De
um lado, o que se coloca é a revisão daquilo que foi proposto e, no extremo, sua
própria suspensão. De outro, o poder público pode ser levado a adotar medidas
complementares às ações originalmente propostas, ou a optar por cursos de ação
de natureza distinta.
Em síntese, os arranjos organizacionais e produtivos de um dado setor
econômico, como a prestação dos serviços de eletricidade, tendem a assumir
características diferenciadas no tempo e no espaço, em estreita articulação com a
configuração objetiva de seu arcabouço regulatório, onde se salienta o espaço
que este confere à lógica competitiva de mercado. A conformação original do
campo de atividade é contigente das circunstâncias históricas de sua criação ou,
mais precisamente, de aspectos estruturais do ambiente no qual se inscreve. A
partir de então, sua dinâmica evolutiva se dá “de acordo com trajetórias
divergentes e velocidades variadas” (Powell, 1991: 195), mas que continuam a
ser sistematicamente influenciadas por algum tipo de feito contextual, dentro do
que se designa como dependência de trajetória, significando que as decisões e os
cursos de ação adotados no tempo t+1 repercutem os impactos das escolhas
básicas feitas no tempo t sobre a conformação do ambiente onde a ação se
inscreve. As alternativas de trajetória se distinguem no tocante ao sentido do
processo evolutivo, que tanto pode avançar rumo a uma maior prevalência da
lógica competitiva de mercado quanto para a redução da mesma. Os termos
polares dessa evolução são, de um lado, a idéia de livre mercado, calcada na
mínima regulação estatal e, de outro, a estatização do processo produtivo,
expressando o deslocamento da iniciativa privada pela alocação direta de
recursos por parte do poder público. Inflexões ou redirecionamentos no sentido da
trajetória guardam relação com mudanças mais radicais na concepção do que o
Estado pode fazer, potencializados, entre outros elementos, por movimentos de
85
reinstitucionalização e/ou por transições no controle do poder governamental. A
velocidade das mudanças, por sua vez, tem a ver com a interveniência de fatores
de
natureza
diversa,
cujos
efeitos
repercutem
sobre
a
estrutura
de
constrangimentos e oportunidades que se colocam para a alocação de recursos
na área. Do ponto de vista dos constrangimentos, cabe destacar situações de
institucionalização incompleta ou de conflito em torno de mudanças nas regras do
jogo. Do ponto de vista das oportunidades, salienta-se a ocorrência de inovações
tecnológicas, abrindo possibilidades para ganhos de eficiência alocativa, fundadas
principalmente no aproveitamento de economias de escala e de escopo.
Tendo como referência o aporte teórico-metodológico resultante da
discussão anterior, cabe definir hipóteses de trabalho com vistas à descrição e
interpretação da dinâmica do desenvolvimento das atividades elétricas no país, de
suas origens ao período contemporâneo. O cerne do argumento analítico
consiste, em essência, na proposição de que a trajetória evolutiva do setor
compreende quatro fases ou etapas com características distintas em termos da
configuração dos arranjos organizacionais e produtivos prevalecentes na área,
espelhando padrões diferenciados de articulação entre a lógica competitiva do
mercado e a lógica institucional imbricada na regulação estatal em sentido amplo,
aos quais se associam resultados também distintos sob a ótica dos serviços
prestados à sociedade. O caminho percorrido pode ser visualizado no Desenho1:
o setor parte de uma situação caracterizada pela prevalência da lógica de
mercado, em conexão a um baixo grau de institucionalização da prestação do
serviço; avança a seguir na direção de um arcabouço regulatório muito mais
abrangente e complexo, que implica uma redução drástica na autonomia decisória
dos agentes privados atuantes na área; sofre posteriormente uma inflexão no
sentido do progressivo intervencionismo estatal, que culmina na plena estatização
da atividade; e retoma, por fim, a trilha do mercado, através da redução da
intervenção estatal e da concomitante criação de condições institucionais
convergentes com a operação do jogo competitivo protagonizado pela iniciativa
privada. A transição de uma etapa a outra, por sua vez, guarda estreita relação
86
com mudanças que se processam na concepção dominante acerca do que o
Estado deve fazer, envolvendo tanto suas funções de ordenamento e controle
quanto de alocação direta de recursos. São mudanças cuja explicação remete
aos
efeitos
combinados
de
uma
particular
conjunção
de
fatores
de
heterogeneidade institucional, que só podem ser apreendidos a partir de uma
abordagem de cunho histórico.
Desenho 1
T RAJETÓRIA EVOLUTIVA DO SETOR ELÉTRICO B RASILEIRO
Regulação
+
2º estágio
Intervenção
-
+
1º estágio
3º estágio
4º estágio
87
A primeira etapa corresponde à fase inicial de estruturação da
prestação dos serviços de eletricidade como um novo campo de atuação e
valorização para o capital no país, que tem, como traços marcantes, o baixo grau
de institucionalização do arcabouço regulatório que irá dar suporte e
sustentação à organização e funcionamento do setor, em conexão com o
reduzido intervencionismo estatal na área. Refletindo a descentralização
político-administrativa vigente no Brasil à época, a formação do novo campo de
atividade vai se fundamentar primariamente em contratos de concessão firmados
entre
empresas
energéticas
constituídas
pela
iniciativa
privada
e
as
administrações públicas municipais, num arranjo que assegurava não apenas
ampla margem de autonomia decisória mas mercados cativos a tais empresas.
Esse formato institucional, associado à dispersão populacional, favorece a
fragmentação de agentes na área, estimulando a constituição de um número
expressivo de empresas verticalmente integradas, isto é, com atuação simultânea
nos segmentos de geração, transmissão e distribuição de energia. O evolver do
processo segue uma lógica decisória estritamente econômica, onde os
investimentos se fazem em função do aproveitamento de oportunidades de
negócio, o que envolve, em particular, disputas intercapitalistas em torno do
controle das áreas com maior potencial de mercado. Ganha saliência aqui o
progressivo adensamento urbano-industrial determinado pela dinâmica do
desenvolvimento nacional, desencadeando um movimento de concentração e
centralização de capital na área, apoiado na introdução de novas tecnologias
produtivas e na concomitante apropriação de ganhos de escala, que converge no
sentido da oligopolização setorial.
A segunda etapa se caracteriza como um período de reconfiguração
do campo organizacional da atividade, envolvendo mudanças abrangentes no
perfil dos agentes, nos processos decisórios e nas relações produtivas do setor. O
vetor do processo é a promoção, por iniciativa do governo federal, de uma
ampla revisão no arcabouço institucional que ordena e disciplina a prestação
do serviço, envolvendo a centralização do poder concedente, transferido para a
88
esfera da União, e a introdução de critérios e parâmetros mais rigorosos de
fixação de tarifas, o que se inscreve no âmbito de uma reestruturação mais geral
na vida política brasileira e, especificamente, na relação entre Estado e
sociedade. A implementação das novas regras esbarra na resistência interposta
por interesses constituídos na área, que se mobilizam no sentido da preservação
do status quo, com implicações em duas direções principais, estreitamente
interligadas. De um lado, o que se tem é um redesenho institucional
incompleto, refletindo a incapacidade governamental de aglutinar uma base de
apoio político suficientemente sólida para proceder ao detalhamento operacional
das novas regras e conferir-lhes efetividade. De outro, há uma retração dos
investimentos na ampliação da capacidade de atendimento do sistema,
espelhando uma conduta defensiva adotada pelas concessionárias face aos
riscos e incertezas associadas às disputas em torno das regras do jogo.
Subproduto do processo, a expansão da oferta de energia elétrica tende a se
descolar da demanda, delineando um quadro de déficit energético. O
enfrentamento desse problema, por sua vez, irá desembocar no crescente
intervencionismo estatal na área. Numa vertente, são introduzidas medidas de
racionamento do consumo, num gerenciamento ad hoc do estrangulamento
energético, com vistas à minimização de seus efeitos perversos sobre os diversos
usuários do sistema. Noutra, e mais importante, a esfera pública passa a
promover investimentos na área, atuando no vácuo aberto pela retração da
iniciativa privada, com a organização de empresas energéticas estatais, tanto de
âmbito estadual quanto federal. Vale dizer, o Estado empresário vai gradualmente
se sobrepondo ao Estado regulador e, em simultâneo, deslocando a lógica de
mercado.
A terceira etapa constitui um período pautado pelo acirramento e
consolidação do processo de estatização da atividade, que coincide com um
aprofundamento, sem precedentes históricos, do intervencionismo estatal na
economia. A responsabilidade pela prestação do serviço e a realização de
investimentos na expansão do sistema são assumidas pela esfera pública, com o
89
concomitante deslocamento da iniciativa privada do setor. Isto envolve não
apenas a reconfiguração do perfil dos agentes atuantes na área, o que se traduz
na formação de uma rede de empresas energéticas de âmbito estadual e na
criação de novas empresas energéticas federais, mas um redesenho em
profundidade de seus arranjos organizacionais e produtivos, em conexão com
mudanças nos critérios decisórios relativos à aplicação de recursos em projetos
setoriais. O vetor principal dessas transformações é a interligação operacional
do sistema, potencializando a apropriação de ganhos de escala e economias de
escopo, fundadas no intercâmbio de energia, cuja viabilização se apoia na
incorporação de novas tecnologias de geração e de transmissão de energia. O
avanço na direção da operação interligada, por sua vez, supõe uma articulação
das ações e dos programas de expansão das empresas, em consonância com
uma racionalidade sistêmica. Isto envolve, de um lado, uma adequação do
arcabouço institucional de disciplinamento e controle da atividade às exigências
técnicas da operação interligada, através da definição de regras e procedimentos
padronizados para a atuação das empresas e da criação de mecanismos de
coordenação, de concepção colegiada. De outro, adere-se à sistemática do
planejamento centralizado na promoção de investimentos na expansão do
sistema, com vistas à otimização dos aproveitamentos de geração, o que irá
convergir
para
a
implantação
de
mega
empreendimentos
hidrelétricos.
Subproduto da estatização, as ações de caráter regulatório tendem a ser
internalizadas na esfera da produção. O Estado empresário se sobrepõe e, de
certa forma “absorve” o Estado regulador.
A quarta e última etapa, ainda em aberto, caracteriza-se como um novo
processo de reconfiguração institucional do setor, tendo como vetores
principais a redução do intervencionismo estatal na atividade, através da
privatização de empresas públicas, tanto estaduais quanto federais, e a
introdução da concorrência nos segmentos de geração e de distribuição - neste
último, de escopo limitado -, em conexão ao livre acesso à rede de transmissão
de
energia.
Tal
processo
envolve
90
um
movimento
articulado
de
desregulamentação, desvestindo os serviços de eletricidade do caráter
estatizado prevalecente na etapa anterior, e de definição de novas regras e
obrigações a serem cumpridas pelas empresas nos diversos segmentos do
sistema, suficientemente flexíveis para estimular a reinserção da iniciativa
privada na área. São mudanças que não podem ser dissociadas das reformas de
cunho liberalizante que vêm sendo implementadas no país ao longo dos anos
mais recentes e que trazem, em seu bojo, a ressurgência e revitalização da
função reguladora do Estado na atividade, desvinculando-a da função
empresarial, progressivamente esvaziada. A lógica estatal volta a ceder espaço
para a lógica competitiva de mercado, numa espécie de retorno às origens do
processo, embora com uma conformação organizacional e produtiva muito mais
densa e complexa, tendo como suporte mecanismos também mais refinados de
ordenamento e controle por parte da esfera pública.
Os próximos capítulos procuram examinar, de forma mais detalhada, a
natureza das relações que se estabelecem entre os arranjos institucionais da
atividade, os agentes atuantes na área e os padrões de ação que adotam,
explorando a influência exercida por aspectos estruturais do ambiente em sentido
amplo. Esse procedimento é adotado para as três primeiras etapas, onde cada
uma delas constitui objeto de um capítulo específico. A quarta etapa, que se
encontra em curso, é tratada de forma mais sucinta, sendo abordada no âmbito
das conclusões do trabalho.
91
III.
DAS ORIGENS DOS SERVIÇOS DE ELETRICIDADE À EMERGÊNCIA
DO ESTADO REGULADOR
Descoberta nos anos iniciais do século XIX, a eletricidade se manteve,
durante várias décadas, circunscrita ao campo do conhecimento científico. Sua
incorporação à dinâmica dos processos organizacionais e produtivos da
sociedade moderna somente se dá no último quarto do século, refletindo a
influência do entrelaçamento de progresso técnico e transformações na vida
econômica e social17
que embasam a denominada segunda “Revolução
18
Industrial” . Indústria manufatureira, iluminação pública e transporte urbano
surgem então como principais campos de aplicação produtiva, ensejando a
difusão do consumo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) e, com
ela, a organização e rápida consolidação dos serviços de eletricidade.
A introdução da produção industrial de energia elétrica no Brasil se dá
quase que em simultâneo ao processo em curso nas principais economias
capitalistas, tendo como fundamento a importação de tecnologia. No entanto, a
difusão interna do consumo de eletricidade e, consequentemente, a estruturação
da prestação do serviço não apresentam o mesmo dinamismo observado no
plano internacional. Numa sociedade de características agrárias e com ocupação
populacional rarefeita e dispersa, o avanço inicial da atividade se faz de forma
relativamente lenta, através da implantação de empreendimentos de pequeno
porte em pontos isolados do território nacional. Ao final do século XIX, o parque
gerador brasileiro ainda se revelava muito embrionário, com capacidade instalada
pouco superior a 12 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988;
Magalhães, 2000).
17
Sob a ótica técnica, avanços no tocante à geração e transmissão da energia elétrica permitem superar
constrangimentos que se colocavam à sua produção em escala industrial. Sob a ótica da dinâmica societal, o
aprofundamento dos movimentos de urbanização e industrialização favorece sua utilização em escala
comercial. Desses processos resulta a transformação da eletricidade em mercadoria, dando forma a uma
nova área para a valorização do capital (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997).
18
A Segunda Revolução Industrial ocorreu nas últimas décadas do século XIX, fundamentando-se no
desenvolvimento e uso produtivo do motor elétrico e do motor de explosão (Sandroni, 1994).
92
A prestação dos serviços de eletricidade como um novo campo ou área
produtiva se estrutura originariamente em torno de contratos firmados entre
empresas privadas e municipalidades. De um lado, a existência de uma demanda
latente atrai a atenção do capital para um segmento produtivo emergente e
promissor, que a vigência de uma ordem liberal (Faoro, 1975) delegava à
iniciativa privada.
De outro, a descentralização político-institucional que
caracterizava o regime federalista então prevalecente no país favorece a atuação
das administrações locais como poder concedente de serviços de utilidade
pública. O processo é deflagrado em 1883, com a organização e operação de um
sistema de iluminação pública na cidade de Campos – Rio de Janeiro, adquirindo
contornos operacionais mais sólidos com a criação, em 1888, da Companhia
Mineira de Eletricidade (CME), visando ao suprimento energético da cidade de
Juiz de Fora – Minas Gerais (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988;
Magalhães, 2000). A partir dessas iniciativas pioneiras, as atividades de geração
e comercialização de energia tendem a se disseminar gradativamente por outros
pontos do território nacional, no rastro das oportunidades de negócio
proporcionadas pelos traços de desenvolvimento urbano-industrial que se
delineavam, ao final do século XIX, na sociedade brasileira.
Ao longo das primeiras décadas do século XX, ganha corpo no país um
processo autônomo e descentralizado de expansão dos serviços de eletricidade,
com a formação de um amplo e heterogêneo conjunto de empresas energéticas,
organizadas tanto por capital interno quanto externo, atuando em mercados de
âmbito local ou microrregional. Desse movimento resulta o esboço de uma
atividade constituída por pequenas “ilhas elétricas” - estruturas produtivas
verticalmente integradas e operacionalmente segmentadas - e, o que é mais
relevante, sem um controle ou fiscalização mais efetiva por parte do poder
público. Pouco aparelhado e impregnado pela orientação não intervencionista do
liberalismo então dominante, o poder estatal pautava suas ações no campo
econômico, de um modo geral, e na esfera do setor elétrico, em particular, pelo
compromisso com a garantia de condições remuneradoras para o capital, que
93
dispunha de relativa autonomia não apenas para estabelecer a tarifa da energia,
mas para decidir sobre questões relativas a quando e em que circunstâncias
oferecer o serviço. À exceção de eventuais imposições estabelecidas nos
contratos de concessão, não existiam mecanismos político-institucionais voltados
a assegurar a qualidade dos serviços prestados à população, numa adesão tácita
ao suposto de eficiência alocativa do mercado, isto é, de que as decisões das
empresas concessionárias, movidas por seus interesses, seriam convergentes
com as preferências e necessidades da sociedade.
O contínuo adensamento da demanda por eletricidade, que se
intensifica
a partir dos anos vinte, espelhando o crescimento da produção
industrial e o avanço da urbanização da sociedade brasileira, não só estimula a
aceleração do ritmo de expansão da atividade como acirra a disputa
intercapitalista pela captura das melhores áreas de mercado. Na ausência de um
aparato regulatório minimamente estruturado para lidar com a questão, a
capacidade de mobilização de recursos dos agentes constitui a variável
estratégica do processo, onde o aspecto relevante tem a ver com a distinção
entre empresas de capital nacional e de capital externo. Se, de um lado, o acesso
irrestrito à prestação do serviço assegurava igualdade de oportunidades a ambas,
de outro, o maior porte econômico, conjugado a perspectivas mais favoráveis na
obtenção de empréstimos e financiamentos no exterior, criava condições
assimétricas no aproveitamento de tais oportunidades, beneficiando as últimas
frente às primeiras. Sem barreiras institucionais relevantes à concentração e
centralização de capital, grupos estrangeiros tendem a impor sua presença no
setor, através de agressivas políticas de aquisição e fusão de empresas
estabelecidas na área, numa dinâmica que irá convergir para arranjos produtivos
de conformação oligopolística (Rosa et al, 1998). Iniciado timidamente em
meados da segunda década do século XX, o movimento de oligopolização do
sistema se aprofunda no decorrer da década de vinte, tendo à frente os grupos
Light e American & Foreign Power Company (Amforp) - o primeiro controlado por
capital canadense e o último pertencente à Eletrical Bond and Share Corporation,
94
de nacionalidade americana. Na transição para os anos trinta, os principais
mercados e a maior parte da capacidade instalada de geração já estavam sob
domínio dessas duas corporações estrangeiras (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988).
A acelerada concentração de capital traz, como subproduto, a erosão
da funcionalidade da regulação em bases locais, à medida que instâncias
administrativas municipais revelavam-se inadequadas no tocante a assegurar aos
usuários do sistema a necessária proteção contra práticas abusivas de empresas
concessionárias que haviam se tornado demasiado grandes e poderosas para
impor preços e condições da oferta do serviço. Esse descompasso entre o
arcabouço de ordenamento e controle da atividade e a conformação objetiva
assumida por suas relações organizacionais e produtivas, contudo, não conduz,
por si só, a mudanças na institucionalidade do setor. Como discutido no primeiro
capítulo, evidências de que o aprimoramento do desenho institucional é pertinente
não fazem do mesmo um processo natural, na linha da eficiência da história,
típica das construções analíticas aderentes ao funcionalismo. Tais mudanças
somente vão se processar no âmbito das reformas políticas e institucionais
ocorridas a partir da Revolução de 30, que rompem não apenas com o forte
federalismo da Primeira República, mas também com o acentuado liberalismo que
pautava a condução da atividade governativa no país.
É nesse ambiente reformista aberto pela Revolução de 30 que se dá a
definição de uma nova legislação para o ordenamento dos serviços de
eletricidade, consubstanciada no Código de Águas. Promulgado em 1934, por
iniciativa do Executivo federal, o Código corporifica um esforço deliberado de
reinstitucionalização das atividades elétricas, introduzindo mudanças em duas
dimensões básicas do arcabouço regulatório prevalecente na área. Numa
vertente, procede à centralização do poder concedente, até então disperso ou
pulverizado entre estados e municípios, criando uma autoridade nacional com
competência para propor e implementar políticas para o setor e para lidar com o
disciplinamento e a resolução de conflitos relacionados à geração e à
95
comercialização de energia. Na outra, atualiza e padroniza os dispositivos de
acompanhamento e controle da prestação do serviço, impondo limites à dispersão
de preços praticados pelas empresas, através da adoção de critérios rigorosos
para a fixação das tarifas elétricas.
Por sua abrangência, a reinstitucionalização setorial determinada pelo
Código afeta em profundidade os interesses, a lógica operacional e a dinâmica
de acumulação de capital do sistema. Além de pautadas por forte viés
nacionalizante, são mudanças que incidem sobre a rentabilidade e a autonomia
decisória das concessionárias, subordinando-as de forma muito mais incisiva a
considerações de interesse público. A medida de maior impacto e, por extensão,
mais polêmica ou controversa tem a ver com a nova sistemática de fixação das
tarifas de energia19, que não apenas aumentava em muito a margem de riscos e
incertezas da atividade, já que escapavam ao controle das empresas, como, e
principalmente, restringia as possibilidades de ganho na prestação do serviço,
repercutindo sobre a atratividade econômica do negócio.
Não é de estranhar, assim, o fato de as reformas institucionais
propostas virem a suscitar reações contrárias dos principais interesses
constituídos do sistema. A partir da promulgação do Código, as disputas
intercapitalistas pela captura de posições favoráveis no mercado de energia
elétrica, que vinham caracterizando a dinâmica evolutiva do setor, tendem a ser
deslocadas por disputas em torno da nova sistemática tarifária, contrapondo as
grandes empresas concessionárias ao governo federal. A reação aos intentos
reformistas, comandada por Light e Amforp – os grupos mais diretamente
afetados pelas mudanças nas regras do jogo - irá combinar iniciativas tanto no
campo jurídico quanto no campo político-institucional. No primeiro, tais iniciativas
19
No arranjo anterior ao Código, a ampliação da capacidade instalada de geração estava atrelada à
avaliação pelas empresas das margens de retorno econômico advindas da implantação dos novos
empreendimentos, tendo como variável central o valor a ser cobrado pela energia em nível do consumidor
final. Em outras palavras, as tarifas estabeleciam um elo primário entre a oferta corrente de eletricidade e sua
expansão futura.
96
convergem para a arguição da legitimidade constitucional da ruptura de contrato
imposta pelo Código, dentro de uma estratégia de caráter nitidamente protelatório,
onde se buscava retardar a transição para a nova institucionalidade. No segundo,
concentram-se em torno da regulamentação operacional dos vários dispositivos
deixados em aberto pela nova legislação, numa tentativa de minimizar os
impactos das mudanças através de influência exercida sobre o encaminhamento
da matéria.
Das disputas relacionadas aos propósitos governamentais de promover
uma ampla revisão na institucionalidade do setor, sem vencedores definitivos, irão
resultar
dois
tipos
principais
de
desdobramentos,
que
se
influenciam
reciprocamente. O primeiro tem a ver com o incremento da complexidade das
tarefas de implementação das propostas reformistas, implicando tanto o
gradualismo na adoção das mudanças preconizadas pelo Código, quanto a
exposição do conteúdo substantivo das mesmas a injunções dos interesses
corporativos afetos à questão. O segundo consiste na retração dos investimentos
na expansão do sistema, refletindo a conduta defensiva do capital face a
mudanças nas regras do jogo que influenciam, de forma decisiva, o conjunto de
oportunidades e constrangimentos referentes à alocação de recursos na área.
Essas dificuldades enfrentadas na instauração de um Estado regulador de recorte
moderno nas atividades elétricas, por sua vez, trazem à cena o risco de
estrangulamentos no suprimento energético, o que não só abre espaço como
estimula a organização de empresas públicas de eletricidade, cuja resultante
será a formação de um esboço de Estado empresário no setor.
1. A organização dos serviços de eletricidade e o caráter descentralizado da
regulamentação da atividade
Iniciada no último quartil do século XIX, a implantação de sistemas de
geração e distribuição de energia elétrica no país se acelera ao longo das
primeiras décadas do século XX. O número de unidades geradoras e o universo
de localidades atendidas com serviços regulares de eletrificação se multiplicam,
97
num movimento estreitamente vinculado à dinâmica dos processos de
urbanização e crescimento industrial que se esboçavam à época (Lima, 1984;
Corsi, 1996; Lorenzo, 1997). Refletindo essa articulação, a maior parte das
centrais elétricas instaladas tende a se concentrar nos estados do Rio de Janeiro
e, principalmente, de São Paulo. A forma como se estruturam os arranjos
produtivos e organizacionais da atividade espelha escolhas racionais dos agentes
econômicos à luz das oportunidades e constrangimentos do contexto, numa
dinâmica típica de mercado.
Sob a ótica técnico-produtiva, delineia-se no período a opção pela fonte
hidráulica, que irá se transformar, desde então, num traço marcante da matriz
energética brasileira. O predomínio das fontes térmicas ao final do século XIX
será completamente revertido nas primeiras décadas do século XX, com as
centrais hidrelétricas tornando-se responsáveis pela quase totalidade da produção
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Müller, 1995). Abundância de
recursos hídricos e facilidades de acesso a tecnologias de geração hidráulica já
consolidadas nos países capitalistas centrais sinalizavam na direção da
hidreletricidade como alternativa econômica mais eficiente no tocante aos
investimentos produtivos do setor, com a solução térmica prevalecendo
basicamente em situações onde o potencial hidráulico revelava-se modesto ou, o
que é mais recorrente, de aproveitamento complexo ou oneroso (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Ao mesmo tempo em que a dispersa e abundante dotação de recursos
hídricos imprime um direcionamento técnico no sentido da hidreletricidade, a
presença de um mercado consumidor relativamente restrito e pulverizado
apontava para a conformação de uma estrutura produtiva fragmentada,
organizada em base local ou microrregional. A fase inicial de constituição do
sistema elétrico brasileiro tende a se caracterizar, assim, pela criação de
expressivo número de empresas energéticas verticalmente integradas, com
atuação simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e
distribuição. Esse formato organizacional, contudo, não pode ser interpretado
98
apenas e tão somente em função de imperativos de racionalidade econômica,
mas como efeito de condicionantes de ordem institucional.
A propósito da questão, cabe registrar que os arranjos organizacionais
e produtivos do setor foram construídos num contexto institucional marcado pela
fluidez e diversidade regulatória, refletindo a conjugação de dois aspectos
principais. O primeiro refere-se ao fato de o aparato jurídico-legal para lidar com o
ordenamento e controle da atividade surgir em concomitância com a própria
emergência da atividade como um novo campo de valorização para o capital. O
segundo tem a ver com a descentralização político-administrativa do país no
período, que assegurava ampla autonomia decisória aos estados e municípios
frente à União no tocante à concessão e gerenciamento da exploração de
serviços de utilidade pública, entre os quais os “nascentes” serviços de
eletrificação.
Durante a vigência da denominada “Primeira República” ou “República
Velha”, que se estende da última década do século XIX aos anos trinta, o papel
do Estado no campo sócio-econômico será pautado por postura nãointervencionista, consoante a concepção liberal da Constituição de 189120.
Conforme Nogueira (1998), a “organização política prevalecente no período (...)
estava cortada por um liberalismo mais negativo e defensivo, que obviamente não
se dedicava à prestação de serviços ou a maiores esforços de coordenação,
pouco dependendo, assim, de aparatos administrativos mais consistentes” (1998:
90). Isto se aplica, em particular, ao ordenamento das atividades de geração e
comercialização de energia. Inspirada em princípios de direito comum, a
legislação que irá reger a exploração de tais serviços orienta-se no sentido de
convalidar “um regime meramente contratual entre os concessionários e os
poderes concedentes” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990: 13),
concentrados nas instâncias administrativas locais e regionais.
20
A atuação do governo centrava-se na gestão das principais variáveis macroeconômicas, salientando-se a
preocupação com a estabilidade cambial, o equilíbrio das finanças públicas e a garantia de remuneração ou
retorno econômico das atividades produtivas relacionadas ao setor externo ( Lima, 1984; Corsi, 1996, Ianni,
1977; Draibe, 1985)
99
A despeito da percepção do papel estratégico assumido pela produção
e uso de energia elétrica ter motivado, na transição para o século XX, iniciativas
da União voltadas ao ordenamento e controle da atividade, pouco se avançou
nesta direção sob a ordem liberal e federativa prevalecente na Primeira
República. Dentre tais iniciativas, a de maior relevância foi, sem dúvida, a
tentativa
de
instituir
uma
regulamentação
federal
sobre
a
matéria,
consubstanciada na elaboração do Código de Águas da República (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1990). Referenciado na “legislação
européia, principalmente a francesa e a italiana, sobre a propriedade e o
aproveitamento das águas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1990:
18), o projeto de estatuto legal trazia, como principais inovações, o instrumento da
desapropriação das correntes fluviais, quando necessária à prestação de serviços
de utilidade pública, e a ampliação do domínio público sobre os recursos hídricos.
A primeira atenuava os constrangimentos derivados do direito de acessão21,
consagrado pela Constituição de 1891, à instalação de usinas geradoras em
águas sob domínio privado, enquanto a segunda aprofundava o controle estatal
sobre a utilização dos mananciais hídricos, junto com uma presença mais incisiva
da União no tratamento da matéria. São inovações que não interessavam aos
grandes proprietários de terra nem às instâncias administrativas subnacionais, o
que dificultava em muito as possibilidades de obtenção de sucesso na busca do
apoio político necessário à aprovação no Congresso. Encaminhado em 1907 à
apreciação do Legislativo, a proposta de codificação irá passar por várias
legislaturas sem sequer entrar na pauta de votação (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988, 1990). Como se verá mais à frente, somente após as
mudanças políticas catalisadas pela Revolução de 30 é que “a regulamentação e
o controle das atividades de energia elétrica impuseram-se definitivamente no
quadro das funções da União” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1990: 14).
21
A Carta Constitucional de 1891 consagrava o direito de acessão, incorporando ao direito de propriedade do
solo as riquezas do subsolo, os cursos e as quedas d’água (Lima, 1984). Assim, ao adquirirem as terras
circundantes aos cursos ou quedas d’água, as empresas concessionárias passavam a dispor de autonomia
decisória sobre o uso do recurso hídrico, incluindo o aproveitamento da força hidráulica.
100
Sem êxito na tentativa de definir regras mais abrangente e
padronizadas para o disciplinamento das atividades do setor, que esbarra numa
correlação de forças políticas desfavorável à sua implementação, o campo da
ação regulatória do poder central, durante a República Velha, tende a ficar
restrito, em essência, à produção e uso de energia elétrica associada a serviços
públicos sob responsabilidade direta da União22. A regulamentação da matéria se
fez através do Decreto no 5.407, de dezembro de 1904, que estabelece regras
para a concessão de aproveitamentos hidrelétricos vinculados ao suprimento da
demanda de energia da administração federal, e do Decreto nº. 5.642, de agosto
do ano seguinte, autorizando “isenções de direitos, direito de desapropriação de
terrenos e benfeitorias indispensáveis às instalações e execução dos serviços”
(Schwartzman, 1982: 588) necessários à construção de tais empreendimentos.
No entanto, o quadro de um vazio institucional relativo ao tratamento da questão –
à exceção do Rio de Janeiro, nenhum estado da federação desenvolve esforços
no sentido da definição de legislação específica regulamentando a atividade
dentro de seus territórios (Schwartzman, 1982; Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988, 1990) -, os contratos de concessão, previstos no decreto federal,
acabam por se constituir, na prática, o instrumento básico de ordenamento do
sistema elétrico brasileiro. Representam, por default, o elemento central na
conformação da natureza e “regime de exploração dos serviços de eletricidade”
(Lima,1984: 16) em todo o território nacional, até meados dos anos trinta.
Em síntese, sob a égide do federalismo prevalecente na República
Velha, a concessão dos serviços de eletricidade escapa ao campo decisório da
União, que apenas esporadicamente atua como poder concedente (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1990), para ser endereçada à esfera
administrativa dos estados e municípios. Sem uma demarcação mais clara de
competências, estabelece-se uma espécie de “divisão de trabalho” em que os
governos estaduais tendem a exercer, de forma quase que exclusiva, o papel de
poder concedente
22
em matéria de
aproveitamentos
Conforme prescrito na Lei nº 1.145, de dezembro de 1903.
101
hidrelétricos
e, por
consequência, o disciplinamento das atividades de produção, enquanto os
municípios assumem a concessão da prestação dos serviços de distribuição,
tornando-se responsáveis, na prática, pelo controle sobre a comercialização final
da energia (Lima, 1984; Mielnik e Neves, 1988; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1990). A resultante global consiste na ausência de
padronização de princípios e critérios para o exercício da função regulatória,
numa situação em que cada contrato de concessão tende a encerrar, em si
mesmo, o regime de ordenamento da atividade.
1.1 Capital nacional e externo na exploração dos serviços de eletricidade
O fato de a prestação dos serviços de eletricidade se estruturar
primariamente em bases municipais desempenha papel decisivo na conformação
inicial dos arranjos organizacionais e produtivos do setor. De um lado, abre
espaço para a criação de expressivo número de agentes operando na área, já
que a entrada na atividade se dá através de um processo descentralizado de
negociação com as municipalidades. De outro, contribui para a diversidade de
perfis produtivos destes mesmos agentes, refletindo tanto o tamanho e a
densidade diferenciadas das áreas de mercado, quanto a ausência de regras e
critérios padronizados no disciplinamento da prestação do serviço – contexto
onde se incluem aspectos como prazos de concessão e procedimentos ou
critérios para a fixação de tarifas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988).
Sob características predominantemente rurais, a sociedade brasileira já
apresentava, nas primeiras décadas do século, um ensaio de urbanização e
produção industrial capaz de viabilizar um processo sustentado de crescimento do
consumo de energia elétrica. Tanto pelo lado da geração quanto da
comercialização existiam perspectivas favoráveis de negócio para a iniciativa
privada. A percepção de tais oportunidades irá atrair não apenas o interesse do
capital nacional, mas também do capital externo. O primeiro tende a se orientar
na direção da montagem de sistemas elétricos para o atendimento de centros
102
urbanos de pequeno a médio porte, menos exigentes no tocante à mobilização de
recursos, enquanto o segundo concentra a atenção nos centros urbanos com
maior potencial de retorno econômico.
Numa dinâmica típica de mercado, a inserção do capital nacional nas
atividades elétricas se inscreve numa estratégia de diversificação produtiva
adotada por um empresariado em formação no país, atento a novas e rentáveis
alternativas de investimento. De um lado, a dimensão pouco expressiva da
demanda – o uso da energia vincula-se, em essência, à iluminação pública e ao
consumo de pequenas indústrias manufatureiras em mercados de configuração
local – atuava no sentido de rebaixar os custos de implantação e operação dos
sistemas de geração e distribuição de eletricidade, facilitando a entrada no
negócio. De outro, a margem relativamente reduzida dos riscos e incertezas na
prestação do serviço, assegurada por contratos de concessão com longos prazos
de vigência, aumentava a atratividade da atividade e, por extensão, estimulava a
aplicação de recursos na área. A influência conjunta desses fatores põe em
marcha um processo relativamente abrangente de formação de empresas
energéticas de âmbito municipal, organizadas por iniciativa de empresários
vinculados a diferentes segmentos da economia (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), num movimento que se reveste de maior intensidade
em São Paulo, espelhando o dinamismo e pujança do desenvolvimento sócioeconômico regional, puxado pela expansão da cafeicultura (Perissinotto, 1997;
Versiani, 1996; Negri, 1996; Magalhães, 2000). Assim é que, ao final da primeira
década do século, o estado já contava com expressivo número de cidades
“regularmente atendidas por empresas de energia elétrica” (Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988: 45), destacando-se frente ao restante do país.
A entrada do capital internacional na atividade se dá à mesma época e
pode ser entendida à luz da confluência de circunstâncias históricas específicas
dos ambientes externo e interno. No primeiro, a consolidação da indústria
energética e o acirramento da concorrência nos mercados das economias
capitalistas centrais (Lorenzo, 1997; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
103
1988) estimulavam a internacionalização dos investimentos produtivos na área,
tendo como resultado a inclusão das economias periféricas na rota de um capital
em busca de alternativas de valoração (Szmrecsányi e Suzigan, 1996). No
segundo, as oportunidades econômicas proporcionadas por centros urbanos de
maior porte, onde se destacam as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
conjugadas ao tratamento favorável a investimentos externos assegurado pela
política pública, funcionavam como fatores de atração do interesse de
investidores internacionais (Lima, 1985; Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988; Corsi, 1996). Sob a égide de uma orientação liberal, a intervenção
governamental no campo econômico buscava, em essência, favorecer a dinâmica
de acumulação de capital no país através do apoio à iniciativa privada23. No que
concerne ao setor elétrico, sua atuação pautava-se principalmente pela garantia
de taxas de retorno atraentes (Baer, 1995; Vilela e Suzigan, 1975), através da
possibilidade de utilização da denominada “cláusula-ouro”24 na fixação das tarifas.
A trajetória do grupo Light pode ser tomada como emblemática do
processo de inserção do capital externo no sistema, e se inicia com a
constituição, no Canadá, da São Paulo Traction, Light and Power Company
Limited - mais tarde, São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited -,
com propósitos de explorar não apenas a produção e comercialização de energia
elétrica, mas também a implantação e operação de transporte urbano, serviços
telegráficos e telefonia no território brasileiro. Cabe observar que a atuação
simultânea em outros serviços de utilidade pública constituía um traço recorrente
das empresas organizadas à época pelo capital estrangeiro para atuar na área
energética, dentro de uma estratégia em que se buscava compensar, através da
diversificação produtiva, os constrangimentos econômicos decorrentes do
tamanho relativamente reduzido das áreas de mercado. Criada ao final do século
XIX, a empresa recebe autorização para funcionar no país em 1899, por decreto
23
Entre outras ações, “ o Estado (...) concedia privilégios, fazia concessões especiais para a administração
de ferrovias e portos, assegurava o fornecimento de materiais e garantia o pagamento de juros (Faoro, 1975:
206)”.
24
Pelo critério da cláusula-ouro, as concessionárias de capital externo podiam reajustar as tarifas de energia
com base nas variações cambiais.
104
da Presidência da República, obtendo, pouco depois, concessão para prestar
serviços de eletrificação na capital paulista (Müller, 1995; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). Apoiando-se na adoção de uma política empresarial
agressiva, o grupo canadense irá assumir, num curto espaço de tempo, o
monopólio do fornecimento de energia e da exploração dos serviços de bondes
elétricos da cidade, deslocando empresas concorrentes (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), através da aquisição de suas concessões e controle
acionário.
Com posição consolidada em São Paulo, a Light parte para a captura
do mercado do Rio de Janeiro, então capital federal e principal centro urbano
nacional, organizando, para tanto, uma segunda subsidiária no país, a Rio de
Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited. Autorizada a funcionar em
1905, a nova empresa adota estratégia similar àquela praticada pela subsidiária
paulista, isto é, o avanço sobre a concorrência. Em pouco tempo, assume o
controle monopolístico não apenas das atividades de eletrificação, mas também
da distribuição de gás da cidade, absorvendo a concessionária de tais serviços –
a Societé Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, de capital belga (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, além de obter, do poder público,
concessão para atuar na área de transporte urbano e telefonia.
Assim, sob o impulso das oportunidades econômicas proporcionadas
pela implantação e operação de serviços de iluminação pública e transporte
urbano nas principais cidades brasileiras, bem como pelo atendimento a uma
incipiente demanda industrial, toma forma, ao longo da primeira década do século
XX, o esboço de um setor elétrico de configuração dual no país. De um lado,
constitui-se
expressivo
número
de
pequenas
empresas
energéticas
eminentemente locais, controladas por capital nacional. De outro, surgem
algumas poucas empresas de maior porte, com predominância de capital externo,
centradas nas áreas urbanas de maior densidade e com melhor potencial de
crescimento. Esse desenho organizacional embrionário que é, vale ressaltar, fruto
de uma dinâmica de mercado onde não existem barreiras relevantes à entrada na
105
atividade, irá adquirir contornos mais nítidos ao longo da década seguinte, quando
se processa um duplo movimento: a aceleração do ritmo de formação de novas
empresas de âmbito local e a conformação de tendência à concentração e à
centralização de capital no setor, com a estruturação de empresas de âmbito
microrregional.
1.2 Expansão horizontal e concentração de capital: crescimento e
diferenciação das empresas energéticas
Durante os anos que antecedem à Primeira Guerra Mundial e,
especialmente, a partir dela, o ritmo de expansão da demanda de energia elétrica
se acelera, com desdobramentos similares sobre a estrutura de prestação do
serviço. Tal processo guarda estreita relação com a dinâmica das transformações
na base material dos processos sócio-econômicos então experimentados pelo
país, associadas, por sua vez, ao progressivo avanço dos movimentos de
urbanização e da produção industrial. De um lado, a incorporação de inovações
tecnológicas nas atividades econômicas, decorrente do uso crescente da
mecanização e da renovação do aparelho produtivo, em combinação com
mudanças nos padrões de consumo, catalisadas pela modernização da vida
urbana, contribuem para a intensificação do uso da eletricidade (Lorenzo, 1997).
De outro, a emergência de novos núcleos urbanos e a ampliação dos já
existentes, conjugadas ao alargamento do parque manufatureiro, atuam no
sentido do adensamento e crescimento extensivo das áreas de mercado.
As oportunidades de negócio abertas pela expansão da demanda de
eletricidade não apenas estimulam a entrada de novos agentes na atividade,
como fomentam mudanças nos arranjos organizacionais e produtivos do setor. Na
primeira vertente, há uma rápida multiplicação do número de empresas
concessionárias de âmbito local, com a implantação de sistemas elétricos num
conjunto ampliado de cidades brasileiras, principalmente na Região Centro-Sul,
com destaque para o interior de São Paulo (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). Na segunda, delineia-se um incipiente movimento
106
de concentração e centralização de capital, com a formação de empresas de
âmbito microrregional.
Por suas características de produção com rendimentos crescentes de
escala, os serviços de eletricidade constituem aquilo que a literatura econômica
designa como “monopólio natural”, isto é, segmentos produtivos com forte
tendência à concentração de capital. A trajetória percorrida pelo desenvolvimento
setorial em diversos países da Europa Ocidental e, especialmente, nos Estados
Unidos, ilustra bem o processo (Chandler, 1990). A expansão das estruturas de
mercado ou, mais precisamente, das áreas de concessão para a prestação do
serviço revelava-se, portanto, uma espécie de caminho natural para o aumento da
eficiência operacional e, por extensão, da rentabilidade ou lucratividade das
empresas atuantes na área. Apesar de recente e pouco estruturado, o sistema
elétrico brasileiro começa a avançar nessa direção já em meados da segunda
década do século XX, quando se inicia um redesenho dos arranjos
organizacionais e produtivos do setor, fundado na centralização empresarial.
Numa circunstância em que as regras do jogo prevalecentes impunham
a municipalização da atividade, qualquer iniciativa no sentido da ampliação das
áreas de atuação das empresas - condição para a aceleração do ritmo de
crescimento da receita operacional e para o aproveitamento de ganhos de escala
-, passava pela obtenção do controle da concessão da exploração do serviço em
cidades circunvizinhas. Abriam-se, aqui, dois caminhos ou variantes, não
mutuamente exclusivos,
passíveis de serem seguidos pelas empresas. O
primeiro se fundamentava no progressivo alargamento de seu sistema, com a
extensão de sua rede de transmissão e distribuição para municípios contíguos,
numa dinâmica de criação e ocupação de novos mercados. O segundo, na
aquisição do controle acionário e incorporação de empresas já instaladas, com a
integração e fusão de mercados (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988).
107
A forma como o processo se desenrola e os resultados dele
decorrentes refletem a prevalência de uma dinâmica típica de mercado. De um
lado, o estado de São Paulo, em rápido movimento de adensamento urbano25 e
diversificação econômica (Cano, 1977; Negri, 1996; Lorenzo, 1997) tende a se
constituir no locus principal da transição de sistemas estritamente locais para
sistemas de âmbito regional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
De outro, a capacidade de mobilização de recursos das empresas atuantes na
área, na ausência da ação coordenadora e disciplinadora da instância pública,
acaba por se constituir na variável central do rearranjo organizacional e produtivo
em curso, funcionando, ao mesmo tempo, como potencial e restrição na disputa
pelo controle de posições estratégicas no mercado. Refletindo um balanço de
forças que pendia favoravelmente às empresas de capital externo vis-à-vis as de
capital nacional, o grupo Light será o protagonista das principais ações de
concentração produtiva do período, consolidando-se, desde então, como a mais
importante concessionária dos serviços de eletricidade do país.
Com atividades sedimentadas nas cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro, a Light estende suas ações para o interior paulista, organizando para
tanto uma nova subsidiária, a São Paulo Eletric Company Limited, criada
formalmente em 1911. No ano seguinte, será constituída a holding do grupo - a
Brazilian Traction, Light and Power Limited (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988) – com o intuito de coordenar operações e planos de investimento
cada vez mais ambiciosos e complexos. São iniciativas que se encaixam dentro
de uma estratégia corporativa com propósitos bem definidos - a captura de um
mercado de âmbito regional, aglutinando municípios do eixo Rio-São Paulo -, para
se afirmar como líder do sistema. Tal controle revelava-se crucial para a empresa
não apenas por potencializar o crescimento sustentado de suas atividades mas, o
que é mais importante, por favorecer a racionalização e o aumento de sua
25
O crescimento da população em cidades com mais de trinta mil habitantes no estado de São Paulo é
cerca de 7.400% entre 1872 e 1920 (Lorenzo, 1997).
108
eficiência alocativa e operacional, através da apropriação de ganhos de escala na
atividade geradora, como evidenciado na cronologia de seus investimentos
produtivos. De um lado, abre espaço para o melhor aproveitamento do sistema
implantado, através da gradativa ampliação da potência instalada de plantas
hidrelétricas já construídas. Assim, a usina Edgard de Souza, inaugurada em
1901 para atender ao mercado da cidade de São Paulo, recebe novas unidades
geradoras saltando dos 2 MW de potência originais para 16 MW em 1916. O
mesmo se passa com a usina de Fontes, inaugurada em 1908 com vistas ao
suprimento da cidade do Rio de Janeiro, cuja produção passa de 24 MW para
cerca de cerca de 45 MW em 1913. De outro lado, viabiliza a construção de
projetos de maior porte, portadores de melhor relação custo/benefício. É
suficiente salientar, a esse respeito, que o primeiro empreendimento hidrelétrico
projetado e construído pela São Paulo Eletric Company Limited – a usina de
Itupiranga -, que entra em operação em 1914, parte de uma produção inicial da
ordem de 37,5 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Estímulos econômicos induzem também a expansão das atividades
produtivas de empresas controladas pelo capital nacional, que avançam no
sentido de crescente interiorização dos serviços, fomentando a integração
horizontal e vertical do sistema. Uma das principais frentes desse movimento
guarda relação com o surto de desenvolvimento da economia paulista, decorrente
da expansão das lavouras exportadoras de café (Cano, 1977; Negri, 1996). No
rastro
das
oportunidades
potencializadas
pelo
complexo
cafeeiro,
é
desencadeada uma série de arranjos operacionais e organizacionais em prol da
apropriação de ganhos de escala, tendo como face mais visível e principal motor
a aquisição e fusão de pequenas concessionárias de caráter local. São ilustrativas
do processo as trajetórias percorridas por empresas como a Companhia Paulista
de Força e Luz – CPFL e a Empresa de Eletricidade de São Paulo e Rio, que
chegam ao limiar dos anos vinte controlando extensas áreas de mercado. Ainda
que menos expressivos, processos similares tendem a ocorrer no Rio de Janeiro,
onde a Companhia Brasileira de Energia Elétrica – CBEE passa a concentrar a
109
prestação do serviço nas principais cidades do estado não atendidas pela Light, e
em outras unidades da federação, caso de Minas Gerais, onde a CME e a
Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina assumem características de
empresas de âmbito microrregional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988).
1.3 Aprofundamento do movimento de oligopolização e consolidação da
hegemonia do capital externo no setor
A intensificação do ritmo de crescimento urbano-industrial do país nos
anos vinte, puxada pela expansão e diversificação da economia de São Paulo
(Suzigan, 1986; Lorenzo, 1997; Negri, 1996; Cano, 1977), implica o aumento da
pressão sobre os serviços de eletricidade, criando novas e ampliadas
oportunidades para a alocação de recursos na área. Tal processo traz, como
subproduto, um aprofundamento das transformações organizacionais e produtivas
ensaiadas pelo setor ao longo da década anterior. A tendência à concentração e
centralização empresarial ganha contornos mais incisivos, sofrendo uma inflexão
no sentido da formação de um duopólio, sob domínio do capital externo. Por sua
vez, a rápida ampliação da demanda e o movimento de integração produtiva se
combinam para induzir avanços, ainda que parciais, na direção de plantas
geradoras de maior porte, viabilizando a adoção de padrões tecnológicos mais
modernos e a concomitante apropriação de ganhos de escala.
Pela posição estratégica que já conquistara no mercado brasileiro, a
Light se credencia como um dos principais beneficiários do crescimento acelerado
do consumo de energia elétrica ocorrido no período. Aproveitando as
oportunidades abertas pela expansão da demanda (Lorenzo, 1997, Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1995), a empresa adota uma estratégia voltada
à consolidação de seu domínio sobre o mercado do eixo Rio de Janeiro-São
Paulo, intensificando a aquisição e incorporação de concessionárias locais e
microrregionais estabelecidas na área. Numa ação bem sucedida, que não se
defronta com nenhum tipo de barreira regulatória capaz de dificultar ou impedir
110
suas iniciativas com vistas à concentração da propriedade, passa a controlar, ao
final da década de vinte, a prestação do serviço na quase totalidade das cidades
situadas na região do Vale do Paraíba, tanto em território paulista quanto
fluminense. Em outras palavras, a área mais dinâmica e de maior potencial de
desenvolvimento econômico-social do país à época (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988) se transforma rapidamente em monopólio da
empresa.
Essa integração de mercado promovida pela Light, através da ação
coordenada de suas subsidiárias, irá viabilizar um novo salto no padrão
tecnológico e na escala de seus projetos produtivos, traduzido no aumento do
porte dos novos empreendimentos hidrelétricos lançados pela empresa. As usinas
de Cubatão ou Henry Borden, com potência inicial de 56 MW, e dos Pombos, com
73 MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), ambas passíveis de
ampliação, são evidência do processo. Construídas em meados dos anos vinte,
representam um marco na trajetória do desenvolvimento do setor elétrico
brasileiro, sinalizando uma transição no perfil técnico dos investimentos em
geração. Em termos mais específicos, o “tamanho ótimo” das centrais
hidrelétricas tende a se deslocar da faixa de 10 a 50 MW - “inaugurado” pela
própria Light com a usina de Itupiranga -, para a faixa de 50 a 150 MW,
possibilitando expressivos ganhos de eficiência econômica, na forma de
rebaixamento do custo médio da energia gerada. Isto se faz acompanhar de
movimento no sentido de um relativo descolamento espacial entre produção e
consumo
de
energia,
implicando
a
concomitante
reconfiguração
dos
investimentos em transmissão, que apontam na direção de linhas de média
distância, viabilizadas, por sua vez, pelos avanços tecnológicos consubstanciados
na descoberta e aplicação da corrente alternada (Rosa et al, 1988).
Os impactos do rápido incremento do consumo de eletricidade não se
restringem às atividades do grupo Light, que estrutura um sistema de âmbito
regional, recobrindo o eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Num processo autônomo e
descentralizado, consoante a dinâmica de mercado, “o movimento de expansão e
111
centralização dos grupos nacionais (...) de energia elétrica” (Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988: 60), que se iniciara timidamente na década
anterior, adquire maior velocidade e consistência, resultando na aceleração dos
rearranjos organizacionais e produtivos do setor. Como anteriormente, o
fenômeno reveste-se de maior intensidade no interior de São Paulo, refletindo a
estreita conexão espacial entre a expansão da atividade e o processo de
desenvolvimento urbano-industrial. Sem barreiras institucionais relevantes à
concentração de capital, algumas empresas atuantes na área, como a Companhia
Paulista de Força e Luz (CPFL) e a Companhia Força e Luz de Ribeirão Preto,
aproveitam-se de sua maior solidez econômico-financeira para adquirir e
incorporar concessionárias de menor porte, assumindo configuração regional
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo, 1997). Esse
crescimento dos grupos nacionais, contudo, será não apenas estancado mas
revertido nos anos finais da década de vinte, com a entrada de um novo e forte
concorrente, a Amforp, pertencente ao grupo Bond and Share.
Atuando desde o início do século em diversas nações da América
Latina, a empresa americana decide colocar o Brasil na rota de suas operações,
atraída pela percepção de oportunidades de negócio proporcionadas por uma
economia já razoavelmente estruturada e com perspectivas favoráveis de
crescimento. O caráter relativamente “tardio” dessa decisão, contudo, irá
influenciar não só a estratégia que adota, mas a forma como organiza suas
atividades no país. O primeiro aspecto se traduz na aquisição e fusão de
empresas já existentes como caminho mais rápido para a penetração no setor e a
captura de mercados capazes de assegurar margens satisfatórias de retorno
econômico aos investimentos. O segundo, na constituição de uma estrutura
organizacional formada por uma rede de concessionárias sob o controle de uma
holding, num ajuste entre suas operações e o caráter espacialmente disperso das
áreas onde passa a atuar.
De fato, ao voltar sua atenção para o país, o grupo Bond and Share se
defronta com o monopólio da Light no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e os demais
112
mercados com melhor potencial econômico repartidos por um amplo e
heterogêneo conjunto de empresas pertencentes, em sua ampla maioria, ao
capital nacional. A inserção no setor, em tais circunstâncias, passava
necessariamente pela compra do controle acionário de concessionárias
preexistentes e sua reaglutinação em novas empresas. Assim, concentrando suas
ações no interior paulista e capitais de estados não atendidas pela Light – áreas
com perspectivas relativamente favoráveis de retorno e à margem da
concorrência da principal empresa estabelecida na atividade -, a Amforp irá
promover, no limiar dos anos trinta, um vigoroso movimento de concentração
empresarial no setor. Dado o primeiro passo nessa direção com a aquisição, em
1927, do controle acionário da CPFL, num curto espaço de tempo organiza
subsidiárias em diversas partes do território nacional, numa extensa faixa que vai
do Sul ao Nordeste (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lorenzo,
1997).
No entanto, em contraste com a estratégia empresarial seguida pela
Light, a expansão do grupo Bond and Share se faz principalmente de forma
horizontal, não implicando avanços expressivos no sentido da verticalização
organizacional e produtiva. Apesar de relativamente amplas, as áreas de mercado
que se tornam concessão da empresa26 caracterizavam-se pela dispersão
espacial, criando constrangimentos técnicos e econômicos à interligação
operacional na prestação do serviço. A possíveis ganhos de eficiência na
atividade geradora, fundados no aumento do porte dos empreendimentos
hidrelétricos, contrapunham-se acréscimos nos custos e perdas de energia na
transmissão, em função do alargamento das distâncias entre produção e
consumo, estreitando as oportunidades abertas à integração sistêmica. Destas
dificuldades interpostas à centralização empresarial irá resultar um desenho
26
As áreas de mercado sob concessão da Amforp incluíam diversas capitais estaduais, como Recife, Porto
Alegre, Belo Horizonte e Vitória.
113
organizacional fragmentado, composto por expressivo número de subsidiárias de
âmbito regional, operando sistemas isolados, como “ilhas elétricas” (Rodrigues e
Dias, 1993). Para coordená-las, será constituída uma holding, as Empresas
Elétricas Brasileiras (EEB), mais tarde transformada em Companhia Auxiliar de
Empresas de Energia Elétrica (CAEEB) (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
Num ambiente onde o Estado adota uma postura não intervencionista,
a ação da Bond and Share, por sua contundência, irá repercutir na própria
trajetória de desenvolvimento do setor. De um lado, acelera e aprofunda a
tendência à oligopolização, impulsionando-a no sentido da formação de um
duopólio. De outro, imprime orientação objetiva às mudanças no regime de
propriedade em curso na área, acentuando, numa escala sem precedentes, a
hegemonia do capital externo sobre o capital nacional (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1984). O estado de São Paulo ilustra bem o
processo de concentração empresarial e correlata derrocada do capital nacional
frente ao capital externo ocorrida no período: ao final da década de vinte, cerca de
90% da produção estadual de energia elétrica estava nas mãos de Light e Amforp
(Lorenzo,
1997),
com
a
fração
restante
distribuindo-se
por
pequenas
concessionárias de âmbito local e microrregional. Sem condições técnicoeconômicas de resistir ao acirramento da concorrência, os principais grupos
nacionais com atuação no território paulista foram rapidamente deslocados do
setor. O quadro não é muito diferente nas demais unidades da federação: “em
1930, praticamente todas as áreas mais desenvolvidas do país e também aquelas
que apresentavam maiores possibilidades de desenvolvimento haviam caído (...)
sob o virtual monopólio das duas grandes empresas estrangeiras” (Centro da
Memória da Eletricidadade no Brasil, 1988: 65). Num resultado característico da
alocação de recursos através do mercado, onde prevalece uma lógica decisória
voltada ao lucro, apenas áreas sem potencial relevante de retorno econômico
para o grande capital, em especial aquelas localizadas em espaços mais isolados
114
dos estados das regiões Norte/Nordeste, tendem a ficar à margem da atuação da
Light e Amforp.
Ao mesmo tempo que afasta investimentos das grandes empresas, a
natureza dispersa e, consequentemente, a baixa densidade sócio-econômica dos
espaços periféricos favorece a proliferação de agentes nas atividades do setor.
Assim, ao lado da Light, Amforp e de algumas poucas empresas de porte
microrregional, organiza-se no país um expressivo contigente de pequenas
concessionárias elétricas vinculadas a mercados locais. São exatamente essas
pequenas empresas locais, atuando em áreas de reduzida margem de retorno,
sem estímulo suficiente para atrair o interesse dos grupos de maior poder
econômico, o vetor principal da ampliação da cobertura do sistema. De fato,
acompanhando a evolução do número de localidades atendidas por serviços de
eletricidade, que salta de apenas 24 em 1900, para 1.770 em 1930, o número de
concessionárias também cresce de forma exponencial, passando de 11 para
1.009 em igual período. A relação média de apenas 1,5 localidade atendida por
concessionária, referente ao ano de 1930 (Quadro 1), sintetiza com nitidez o forte
componente de horizontalidade então prevalecente nos interstícios dos mercados
das empresas estrangeiras.
Defrontando-se com áreas de mercado de tamanho e densidade muito
reduzidas, o amplo conjunto de concessionárias locais fica condicionado à
montagem de pequenas redes de produção e distribuição. As dificuldades que se
colocavam para o aproveitamento de economias de escala e de escopo se
traduzem na existência, em 1930, de 1.211 unidades de geração de energia,
entre hidrelétricas e térmicas, para 1.770 localidades atendidas (Quadro 1). À
exceção da Light e, secundariamente, da Amforp, cujas áreas de mercado
permitiam investimentos em empreendimentos de maior porte, os sistemas
operados pelas demais empresas se baseavam essencialmente em micro ou
pequenas centrais elétricas. Esse resultado fica cristalizado na capacidade
115
Quadro 1
Localidades Atendidas por Serviços de Eletricidade, Número de Empresas
Concessionárias, Número de Usinas e Capacidade Instalada de Geração no
Brasil - 1900/1930
Especificação
1900
1930
No de Localidades Atendidas
24
1.770
No de Empresas Concessionárias
11
1.009
Total de Usinas Implantadas
11
1.211
Total de Usinas Hidrelétricas
5
708
12,1
778,8
Total da Capacidade Instalada das UHE (MW)
5,5
630,1
Localidades Atendidas/Empresa Concessionária
2,2
1,5
Capacidade Instalada/Empresa Concessionária (MW)
1,1
0,9
Capacidade Instalada Média das UHE (MW)
1,1
1,1
Total da Capacidade Instalada (MW)
Fonte: dados básicos: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Panorama do setor
de energia elétrica no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988.
instalada média de geração - apenas 0,9 MW por concessionária no ano de 1930
–, inferior inclusive à média correspondente a 1900, da ordem de 1,1 MW. Em
termos específicos da geração hidráulica, a capacidade instalada média das
usinas implantadas situava-se em 1,1 MW; mesmo patamar observado em 1900
(Quadro 1).
Numa trajetória moldada em processo, as progressivas transformações
organizacionais
e
produtivas
do
sistema
elétrico
e,
especialmente,
o
aprofundamento do movimento de oligopolização da atividade a partir da segunda
metade dos anos vinte, tendem a subverter , sob a ótica do consumidor ou
usuário do serviço, a racionalidade, consistência e legitimidade de um modelo de
regulação baseado em contratos de concessão de longa duração atreladas às
esferas decisórias dos estados e, principalmente, dos municípios. Em termos
mais objetivos, a crescente complexidade do controle e da fiscalização das ações
116
desenvolvidas por empresas operando em escala regional e sem concorrência
sinalizava para a necessidade de mudanças nas regras e nos mecanismos de
disciplinamento e controle vigentes, sob a responsabilidade de instâncias
administrativas sem competência ou poder político para lidar adequadamente com
a questão. É ilustrativa da situação a atuação da Light, que utiliza seu poder de
monopólio nos dois principais centros urbanos do país para “manipular (...) tarifas,
(...) forçar manobras especulativas e, eventualmente, até corromper autoridades e
instituições” (Lorenzo, 1997: 177). Conforme relato de Lorenzo, referente à cidade
de São Paulo, tais comportamentos, “percebidos pela população e parte da
imprensa, (...) eram alvos de muitos problemas e críticas (...) que passaram a
fazer parte integrante” (1997: 177) de sua história.
A centralização da dinâmica regulatória surge, em tais circunstâncias,
como um passo necessário à readequação das regras e mecanismos de controle
do setor às características concretas assumidas pelas bases materiais de
organização da atividade. Não se tratava, contudo, de um processo de
materialização automática, até porque o avanço em tal direção esbarrava nos
constrangimentos político-institucionais derivados da diluição de poder subjacente
ao federalismo vigente na Primeira República. O encaminhamento da questão
estava condicionado, portanto, à introdução de mudanças mais abrangentes na
ordem constitucional do país, envolvendo as funções e a distribuição de poder
entre os diferentes níveis de governo. Isto irá ocorrer no âmbito do processo
reformista deflagrado pela denominada Revolução de 3027, que altera em
profundidade a ordem política e institucional vigente (Draibe, 1985; Diniz, 1997;
Nogueira, 1998).
27
A Revolução de 30 corresponde, em síntese, ao movimento político-militar que rompeu com a ordem
política e institucional da Primeira República, instaurando um governo provisório, sob o comando de
Getúlio Vargas.
117
2. A emergência do Estado regulador: a reinstitucionalização do sistema e
os efeitos sobre sua dinâmica produtiva
Os anos trinta assinalam a abertura de uma nova etapa na trajetória do
desenvolvimento do país, marcada por profundas transformações na instância
pública e em suas relações com a sociedade. Toma forma no período aquilo que
a literatura especializada designa como processo de efetiva organização e
consolidação política, jurídica e administrativa do Estado brasileiro moderno
(Nogueira, 1998; Draibe, 1985; Perissinoto, 1994; Diniz, 1997). São mudanças
sintonizadas com as transformações nas várias dimensões da vida nacional que
vinham se desenrolando ao longo das décadas anteriores, puxadas pelos
movimentos de urbanização e diversificação da base produtiva. Vale dizer, a
crescente diferenciação do tecido social, com a expansão do operariado e dos
segmentos médios urbanos, e a emergência de novos interesses econômicos,
sobretudo no âmbito da indústria e da prestação de serviços, apontavam para o
alargamento das funções do Estado, quer no tocante à expansão e garantia de
direitos de cidadania, quer no disciplinamento e correção das imperfeições e
falhas do mercado referentes à alocação dos recursos produtivos da sociedade. A
face mais visível do processo eram descompassos e desajustes na gestão
pública, “opondo o governar ao aparato administrativo e comprometendo toda a
performance governamental” (Nogueira, 1998: 89).
A reconfiguração do arcabouço jurídico-normativo do país vai ser
implementada em conexão com as mudanças no ambiente político-institucional
decorrentes da “Revolução de 30”, catalisada, por sua vez, pelas repercussões
internas do aprofundamento do ciclo recessivo da economia capitalista mundial ao
final dos anos vinte (Baer, 1995; Draibe, 1985, Nogueira, 1998; Corsi, 2000). No
rastro da “Crise de 29”
28
, o produto industrial brasileiro sofre um recuo de cerca
de 5% em 1930, a importação de bens de capital cai em quase 50% e o déficit
fiscal experimenta substancial elevação (Saretta, 1987), sinalizando o colapso de
28
A “Crise de 29” é identificada ao crash da Bolsa de Valores de Nova York, dando a partida para a grave
crise econômica das principais economias capitalistas mundiais ocorrida nos anos trinta
118
uma política econômica de recorte liberal ou não-intervencionista seguida, em
linhas gerais, pelos vários governos que se sucederam ao longo da Primeira
República. Desestabiliza-se, em simultâneo, a hegemonia dos interesses
agroexportadores, ancorados em oligarquias regionais, o que abre espaço para
uma transição na estrutura do poder, favorável aos interesses urbano-industriais
em emergência na sociedade brasileira29. Ao longo do processo, as funções e a
estrutura administrativa do Estado serão profundamente alteradas (Draibe, 1985;
Corsi, 1996), pari passu à redefinição dos rumos do crescimento econômico do
país (Baer, 1995; Ianni, 1977).
Sob a ótica institucional, as reformas empreendidas no período se
articulam em torno de dois eixos principais que convergem para a efetiva
construção das estruturas organizacionais daquilo que se pode chamar de
Estado-Nação brasileiro. O primeiro corresponde ao movimento de centralização
político-administrativa da atividade governativa, numa ruptura com o acentuado
federalismo nas relações entre União, estados e municipalidades vigente na
República Velha. Como assinala Draibe, “o Estado seguirá federativo na sua
forma, mas os núcleos de poder local e regional serão subordinados cada vez
mais ao centro das decisões cruciais” (1980: 60). O segundo tem a ver com a
ampliação do intervencionismo estatal em praticamente todas as esferas da vida
nacional, em especial no campo econômico (Baer, 1995; Ianni, 1977; Santos,
1963; Corsi, 2000). O Estado não apenas se legitima, mas se capacita para
desempenhar papéis relevantes na regulamentação sócio-econômica e no
fomento ao crescimento industrial, bem como para atender às crescentes
demandas da sociedade, sobretudo dos novos segmentos sociais em formação e
expansão nos centros urbanos.
29
Iniciadas ainda nos primeiros anos da administração Getúlio Vargas - designados historicamente como
“Governo Provisório” - a concepção geral das transformações estruturais na dinâmica do desenvolvimento
sócio-econômico do país somente será sistematizada anos mais tarde, na denominada “Carta de São
Lourenço”. Esboço de um plano de ação governamental, onde foram traçadas as diretrizes básicas da política
pública, o documento vai assinalar também a explicitação do comprometimento do Estado com os propósitos
da promoção da industrialização da economia brasileira.
119
O empenho em promover a centralização do poder e o aumento do
intervencionismo estatal irá culminar num amplo processo de reaparelhamento e
modernização da administração federal, conduzido “sob fortes impulsos de
burocratização e racionalização” (Draibe, 1985: 62). Isto se materializa, de um
lado, na organização de um complexo conjunto de institutos, autarquias e
conselhos técnicos que passam a desempenhar uma gama variada de funções
até então inexistentes ou implementadas de forma incipiente; de outro, na
formulação, aprimoramento e consolidação da regulamentação básica para o
controle e disciplinamento dos processos sociais e produtivos de maior relevância
para a coletividade. A resultante da atividade reformista será a montagem de um
novo aparato de regulação e intervenção estatal, introduzindo profundas
alterações na natureza e na qualidade dos instrumentos e mecanismos
normativos e operacionais herdados da Primeira República (Fausto, 1981; Draibe,
1985; Lima, 1984; Nogueira, 1998).
Sob a ótica econômica, o aspecto mais saliente consiste na
progressiva reorientação do eixo do desenvolvimento nacional no sentido da
industrialização, em detrimento das atividades primário-exportadoras, com
rebatimentos conexos na formulação da agenda pública. Embora não existam, na
historiografia brasileira, elementos capazes de estabelecer, de forma rigorosa,
associação mais imediata entre os motivos que impulsionaram a realização da
Revolução de 30 e os interesses de algum grupo hegemônico específico, há, no
entanto, razoável consenso entre autores contemporâneos (Corsi, 1996, Baer,
1995; Draibe, 1985) quanto ao realinhamento de forças dela decorrente. Um dos
principais pontos de convergência é o reconhecimento da centralidade do esforço
industrializante no balizamento da política pública que será implementada pelos
novos gestores do poder estatal (Santos, 1987). Como descreve Calabi, “o
Estado, fortalecido pela Revolução e agindo de forma centralizada, assume
gradativamente
as
funções
de
principal
industrialização” (1983: 95).
120
articulador
do
processo
de
Se é incontestável, o alinhamento da política pública ao esforço de
industrialização não se expressa, de imediato, como uma concepção objetiva e
sistematizada de estratégia de desenvolvimento nacional perseguida pelo Estado,
traduzindo, ao contrário, uma orientação moldada em processo. Em termos mais
específicos, pode ser entendido como a resultante de uma forma de atuação onde
a agenda pública se ajusta a aspectos conjunturais do ambiente, numa espécie
de administração do presente condicionada por injunções de interesses e
pressões de diferentes grupos, segmentos ou setores da sociedade nacional
(Mendonça, 1990; Corsi, 1996). Assim, num primeiro momento, a ação estatal
tende a privilegiar o enfrentamento dos problemas econômicos decorrentes do
estrangulamento externo, provocado pela abrupta queda na receita exportadora,
que afeta a capacidade de importação do país e o abastecimento do mercado
interno. Esse mesmo estrangulamento externo, contudo, tem efeitos indiretos
noutra direção, induzindo um movimento autônomo de reestruturação no
suprimento da demanda por bens e serviços da sociedade brasileira,
notadamente no tocante a produtos manufaturados. Vale dizer, favorecida pela
redução circunstancial da concorrência da mercadoria importada, a indústria
nacional inicia um ciclo de rápido crescimento, no curso do qual irá emergir como
atenuante natural aos efeitos deletérios da desarticulação do comércio exterior e
da perda de dinamismo da base exportadora, até então eixo central do processo
de acumulação da economia (Negri, 1996; Cano, 1977), contrapondo-se, em
particular, ao risco de uma depressão generalizada (Baer, 1995). Com o
esvaecimento dos constrangimentos provocados pela variável externa, fruto da
recuperação das exportações, o foco da intervenção governamental vai sendo
gradativamente reorientado para a construção dos alicerces da industrialização
(Nogueira, 1998; Draibe, 1985).
Independemente das controvérsias em torno do tema, o compromisso
com a promoção do desenvolvimento industrial irá perpassar a política pública
como um todo, assumindo contornos objetivos nas reformulações que serão
introduzidas nos mercados de fatores de produção, capital e trabalho (Baer, 1995;
121
Corsi, 1996; Calabi, 1983). Como enfatizado por Draibe, a reconfiguração da ação
estatal “pós anos trinta afeta todos os interesses da sociedade nacional, mas os
contempla assumindo-os na sua natureza concreta, particular e desigual” (1985:
62). Incrustando-se progressivamente num aparato institucional de regulação,
controle e intervenção em construção, os interesses relacionados ao setor
industrial, seus conflitos e contradições passam a ser metamorfoseados em
interesse nacional, para se configurarem em elementos centrais no balizamento
da intervenção governamental e das reformas implementadas pelo novo regime.
A transição que se processa na forma e no conteúdo da ação estatal
implica, em particular, a “ampliação da autoridade pública sobre os recursos
considerados estratégicos” (Draibe, 1985: 60) ao desenvolvimento nacional e à
industrialização em particular, onde se inclui o potencial hidráulico, com profundas
repercussões sobre a geração de energia e prestação dos serviços de
eletricidade. O esforço de reconfiguração da institucionalidade do setor elétrico
que será empreendido pelo governo, contudo, não traduz um processo
harmonioso nem equilibrado, mas gradual e contraditório, além de sujeito a
paralisações e retrocessos, numa dinâmica que repercute e acompanha a
trajetória mais ampla das reformas implementadas no e pelo Estado. Arranjos
administrativos e instrumentos normativos e operacionais vão ser criados,
redefinidos e atualizados, expressando a forma específica como os múltiplos
interesses direta ou indiretamente afetos à questão, em especial os interesses
das grandes concessionárias de energia, seus conflitos e contradições, se
materializam nas decisões e ações do poder público. Entra-se aqui num novo
estágio, onde os aspectos de maior relevância na moldagem da trajetória
evolutiva percorrida pelo setor deixam de ser as ações das empresas no tocante
ao aproveitamento das melhores oportunidades de negócio com vistas à
maximização de seus lucros e passam a ser as disputas em torno das mudanças
nas regras do jogo propostas e implementadas pelo Executivo federal.
122
2.1 A natureza objetiva das mudanças na institucionalidade do setor elétrico
propostas nos anos trinta
Como observa Draibe, a organização e consolidação de um Estado
articulado nacionalmente, que estará no cerne da ação governativa pós trinta,
exigia, em particular, um grau consistente de codificação, capaz de assegurar-lhe
suporte institucional para “exprimir-se como poder unificado” (1985: 94) sobre a
estrutura social e econômica do país. Isto implicava completar, atualizar e
padronizar uma legislação dispersa e incipiente, conferindo-lhe formatos e
conteúdos sintonizados com as mudanças nas relações de poder e o estágio de
modernização alcançado pela sociedade brasileira. A disposição e o compromisso
com a implementação das reformas convergem para a criação de comissões
legislativas voltadas à elaboração de um novo arcabouço jurídico-normativo para
os processos sócio-econômicos de maior abrangência e relevância. Dentre as
temáticas tratadas como prioritárias no âmbito desse esforço de ordenamento
legal estará o regime de apropriação e uso produtivo das águas, cuja tentativa
anterior de codificação, como visto anteriormente, não lograra êxito junto ao
Congresso.
O contexto em que se dá a reinserção do tema na agenda pública,
contudo, é claramente distinto daquele correspondente ao início do século, o que
irá requerer uma atualização do conteúdo da proposta original de codificação,
tornada obsoleta face às transformações sócio-econômicas ocorridas no país e,
especificamente, no desenvolvimento das atividades do setor. De um lado, os
avanços tecnológicos, a crescente difusão do uso da eletricidade – cada vez mais
central nos processos sociais e produtivos da vida nacional - e a tendência à
oligopolização em curso na atividade se combinavam para estimular a
estruturação de mecanismos mais rigorosos de fiscalização e controle das
empresas atuantes na área, com o intuito de assegurar não só a qualidade dos
serviços como proteção aos consumidores, na linha dos processos ocorridos ou
em andamento nos países mais industrializados da Europa Ocidental e nos
Estados Unidos (Rosa et al. , 1998; Lima, 1995). De outro, a forte prevalência
123
conquistada pela geração hidráulica na matriz energética brasileira conferia ao
domínio público sobre os recursos hídricos importância crucial no disciplinamento
da indústria de eletricidade. O controle sobre o acesso e uso produtivo das águas,
até então parcial e fragmentado entre as diversas esferas de poder políticoadministrativo, constituía instrumento lógico e indispensável para qualquer
tentativa mais abrangente de resguardar o interesse público no desenvolvimento
da atividade.
Sintonizados com os novos tempos, o discurso governamental (Lima,
1985; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) e os trabalhos da
subcomissão legislativa encarregada formalmente da elaboração do anteprojeto
de codificação sinalizavam para alterações em profundidade no regime de
regulação do acesso e aproveitamento produtivo dos recursos hídricos, trazendo
como principal inovação exatamente a ênfase conferida à exploração dos serviços
de eletricidade frente às demais possibilidades de uso das águas. São mudanças
que gravitavam em torno de duas tendências principais, ambas convergindo para
o reforço da autoridade estatal no âmbito das atividades do sistema. A primeira
delas consiste na padronização e amplificação do controle e fiscalização exercido
sobre as operações das concessionárias do setor, onde a questão mais polêmica
consistia na definição do papel da União correlativamente aos estados, que
colocava em posições divergentes governo federal e subcomissão legislativa.
Enquanto o primeiro defendia a plena centralização do poder regulatório, a
segunda pendia para um arranjo intermediário, similar ao modelo americano –
utilizado como uma das principais referências no desenvolvimento dos trabalhos
(Lima Sobrinho, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988) -, com o poder concedente concentrado nos estados e a União se
responsabilizando pela arbitragem dos conflitos de interesse na prestação dos
serviços (Lima, 1995, depoimento). A segunda expressa a adoção de um enfoque
nacionalizante no tratamento da matéria: numa circunstância de acentuada
hegemonia do capital externo, produção e distribuição de energia elétrica
passaram a ser percebidas e tratadas pelo poder público como estratégicas não
124
só para o desenvolvimento econômico, mas para a segurança e defesa nacional.
Tal postura era explícita por parte do governo federal, mas não consensual na
subcomissão (Rangel, 1988, depoimento, Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988), e refletia
uma clara mudança de postura por parte das forças
políticas vitoriosas na Revolução de 30, que viam nos recursos naturais,
sobretudo nos recursos hídricos e minerais, um patrimônio da Nação, a ser
controlado e utilizado em prol do desenvolvimento e bem estar da sociedade
brasileira.
No entanto, independentemente de qual posição viria a prevalecer, a
proposta de codificação que estava em discussão era portadora de uma
redefinição radical no ordenamento das atividades do setor. Apesar de manter a
exploração dos serviços de eletricidade como campo preferencial da iniciativa
privada, introduzia novas regras tanto no segmento de geração, onde restringia a
liberdade de ação, discriminando o capital estrangeiro, quanto no segmento de
distribuição, onde estabelecia critérios mais rigorosos de proteção ao consumidor,
impondo controles rígidos sobre a margem de remuneração ou retorno da
atividade. São mudanças decorrentes de uma deliberação autônoma do Estado,
motivada pela busca de resultados mais eficientes, sob a ótica social, na
prestação do serviço, e que afetavam em profundidade os interesses constituídos
do sistema, cujas decisões de investimento, como visto anteriormente, haviam
sido tomadas historicamente num contexto institucional de reduzida interferência
estatal. Era de se esperar, portanto, que suscitassem reações contrárias de tais
interesses, principalmente das grandes empresas estrangeiras. Embora de forma
cuidadosa, tanto Light quanto Amforp alinhavam-se entre os principais opositores
das reformas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995).
As tensões políticas em torno do projeto em elaboração e discussão na
subcomissão legislativa, sinalizando dificuldades que poderiam comprometer,
ainda que parcialmente, a viabilização dos intentos reformistas, vão induzir o
governo a adotar medidas acauteladoras no encaminhamento da matéria, o que
se traduz na antecipação de decisões com o intuito de evitar desvios de rota no
125
caminho a ser trilhado e de lhe assegurar vantagens nas futuras disputas políticas
relacionadas à questão. Assim, em setembro de 1931, é promulgado o DecretoLei nº. 20.395, suspendendo “todos os atos de alienação, oneração, promessa ou
começo de alienação ou transferência de qualquer curso perene ou queda
d’água” (Lima, 1984: 32). Vale dizer, novas concessões ou transferência de
concessões já obtidas por qualquer empresa ficavam condicionadas, a partir de
então, à prévia autorização da administração federal. Além de restringir
drasticamente a autonomia decisória das empresas no tocante a direitos de
propriedade referentes ao acesso e uso produtivo dos potenciais hídricos, o
decreto introduz outras importantes modificações em relação ao formato
institucional prevalecente. De um lado, o Estado brasileiro assume “de fato, a
propriedade e o domínio sobre as riquezas naturais” (Lima, 1995: 21), rompendo
com o direito de acessão, numa inovação prenunciadora das novas bases
contratuais, fundadas em relações de direito público, que se pretendia introduzir
na exploração dos serviços de eletricidade. De outro, a União se afirma como
poder concedente dos aproveitamentos hidrelétricos, avançando sobre atribuições
até então a cargo dos estados e, circunstancialmente, de municípios,
credenciando-se, sob o ponto de vista legal, a exercer o controle sobre a
expansão e reorganização interna do setor.
A iniciativa governamental não deixa maiores dúvidas a respeito de
suas motivações, que remetem, em última instância, a propósitos de redução do
grau de imprevisibilidade que tende a caracterizar qualquer reestruturação
intencional mais abrangente na ordem institucional de uma dada sociedade
(March e Olsen, 1989; Lima Júnior, 1997). A primeira tem a ver com o
enraizamento das reformas, numa espécie de “dependência de trajetória” forjada
de forma intencional ou deliberada, através da antecipação de mudanças afinadas
com o conteúdo objetivo do projeto de codificação em elaboração e que atuavam
no sentido de tornar o processo irreversível. Observa-se, a esse respeito, que o
decreto governamental se limita a impor, numa escala significativamente
ampliada, o domínio público sobre os recursos hídricos, com ênfase nos
126
potenciais hidráulicos, deixando em aberto a definição de princípios, critérios e
procedimentos necessários ao desempenho da função regulatória, que só será
tratada no âmbito do próprio Código. Em outras palavras, legitima a autoridade do
poder central sobre o conjunto dos agentes atuantes na área de geração de
energia hidrelétrica, mas não instrumentaliza o exercício desta mesma autoridade.
A segunda se expressa no bloqueio da possibilidade de as empresas
concessionárias procurarem se antecipar aos futuros constrangimentos advindos
do Código, tomando decisões conflitantes com as diretrizes e dispositivos que
seriam por ele estabelecidas. Essa linha de interpretação é endossada pela
justificativa que embasa a proposição do decreto, onde se salienta a necessidade
de o Estado evitar a ocorrência de “operações, reais ou propositadamente
simuladas, que dificultem, oportunamente, a aplicação das novas leis o Código
de Águas ou frustrem a salva-guarda do interesse do país” (Decreto-Lei nº
20.395). Embora não formalmente explicitada, uma das preocupações centrais do
governo federal tem a ver com a contenção da acelerada tendência à
concentração e centralização empresarial em curso na área, comandada por Light
e Amforp (Saes, 1979; Lima, 1995), como denotam os dispositivos extremamente
restritivos à expansão da atuação de grupos ou empresas não-nacionais nas
atividades do setor que serão introduzidas, pouco depois, pelo Código. O
“congelamento” dos direitos sobre aproveitamentos hidráulicos pode ser visto
como uma solução provisória para o descompasso entre o sentido de urgência
imbricado na política pública e o timing relativamente lento que tende a
caracterizar a dinâmica de mudanças institucionais que envolvem alterações na
ordem constitucional.
Novo avanço na direção da implementação das reformas setoriais
prenunciadas no decreto somente ocorrerá cerca de dois anos após sua edição,
com a estruturação de um organismo específico para responder pelas ações do
governo federal na área. Essa iniciativa não é isolada, no sentido de não se
restringir à atividade, mas se inscreve no âmbito de um movimento mais amplo de
(re)organização do aparato estatal de regulação da exploração das riquezas
127
naturais consideradas estratégicas ao desenvolvimento nacional – os recursos
hídricos e minerais (Draibe, 1985; Nogueira, 1998). Reforça-se aqui o argumento
anterior de que as mudanças na institucionalidade do setor constituem uma
deliberação autônoma do governo federal, cuja implementação se faz de forma
gradual, em consonância com as transformações que vão se processando no
ambiente político-institucional do país em sentido amplo. A competência para
tratar da questão foi atribuída à Diretoria de Águas, administrativamente vinculada
ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ambos criados em 1933
e inscritos na estrutura ou sistema operacional do Ministério da Agricultura que,
por
fatores circunstanciais, se
colocara à
frente do processo30.
Essa
“inconsistência” organizacional e operativa – energia elétrica e extração mineral
escapam, em princípio, ao campo de domínio econômico da agricultura - pode ser
lida como expressão dos limites da racionalidade da própria atividade reformista
deflagrada pela Revolução de 30 (Draibe, 1985; Nogueira, 1998). Reflete, em
particular, não só o caráter incompleto das mudanças mas a forte influência de
constrangimentos derivados do ambiente em sentido amplo, que implicam a
articulação das estruturas emergentes a arranjos organizacionais pretéritos, numa
dinâmica permeada por múltiplas injunções políticas e relações de poder
imbricadas na administração pública. Não se trata, necessariamente, de uma
opção pela melhor solução, mas pela solução satisfatória, dentro de uma
sistemática de aprimoramento progressivo, moldado em processo, onde intervêm
múltiplas variáveis, não antecipadas a priori.
Criada pelo Decreto nº 23.016, de julho de 1933, a Diretoria de Águas posteriormente transformada em Serviço de Águas – assume a responsabilidade
pela implementação da política pública no tocante à
“exploração de energia
hidráulica, irrigação, concessões e legislação de águas” (Lima, 1984: 33). Tratase, novamente aqui, de iniciativa que se antecipa ao reordenamento mais geral da
institucionalidade do setor elétrico, mas sem efeitos práticos imediatos sobre as
30
Juarez Távora, titular do Ministério da Agricultura à época, estava diretamente envolvido nas discussões
relacionadas ao Código de Águas e de Mineração, atuando como representante formal do governo no
processo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988)
128
atividades das empresas atuantes na área. As diretrizes, normas e regras básicas
necessárias ao exercício das funções regulatórias atribuídas à Diretoria de Águas
somente serão definidas no ano seguinte, com a promulgação do Decreto nº.
24.643, de julho de 1934, instituindo o Código de Águas.
2.2 A transição para a nova institucionalidade do setor elétrico: o Código de
Águas
Dentro do processo mais geral de reordenamento político-institucional
da vida nacional implementado pós Revolução de 30, o anteprojeto do Código de
Águas, desenvolvido pela subcomissão legislativa, entra na agenda dos trabalhos
da Assembléia Constituinte, instalada em novembro de 193331. No entanto,
apesar de objeto de intensos debates, a proposta de codificação estava longe de
ser consensual, e dificilmente o poderia ser, à medida que as mudanças
preconizadas no regime de concessão e nas regras e procedimentos de controle
e fiscalização da prestação dos serviços alteravam em profundidade o conjunto
de oportunidades e constrangimentos referentes ao desenvolvimento da
atividade, repercutindo sobre as preferências e os interesses dos múltiplos atores
afetos à questão, em especial o capital atuante na área. Além da reação
mobilizada pelo lobby nada desprezível das grandes concessionárias do sistema,
com destaque para a Light, o projeto galvanizava também resistências junto a um
amplo e heterogêneo conjunto de forças políticas, que incluía, entre outros,
parlamentares contrários ao incremento do intervencionismo estatal na economia
(Lima Sobrinho, 1988, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988; Lima, 1995).
As dificuldades encontradas na aglutinação de uma base sólida de
apoio político à aprovação da proposta de codificação acabaram influenciando a
31
Ao assumir o poder, em novembro de 1930, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, nomeando
interventores para os governos dos estados. Após dois anos marcados por instabilidade institucional e tensão
política, foram convocadas eleições para a Assembléia Constituinte, que, instalada em 1933, concluiu seus
trabalhos em 1934.
129
forma de encaminhamento da questão. Em termos mais específicos, procurando
escapar aos riscos e incertezas das negociações com e no Congresso, o governo
federal aproveita-se de oportunidades proporcionadas pelas condições sistêmicas
do que contexto em que opera, mais especificamente, do poder de propor e
aprovar leis que a institucionalidade vigente assegurava ao Executivo, para
promulgar o Código de Águas por decreto. Além de “agilizar a introdução dos
novos princípios reguladores da exploração dos recursos hídricos” (Lima, 1984:
34) – os atos do governo, anteriores à Constituição, estavam isentos de
apreciação judicial (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1993) - a adoção
desta via processual permitia bloquear ingerências dos vários interesses afetos à
matéria no delineamento final do conteúdo do novo estatuto legal. É verdade que
a tais ganhos se contrapunham custos de ordem política e institucional,
relacionados à legitimidade das mudanças junto ao poder legislativo e à
sociedade de um modo geral. No entanto, ainda que intangíveis ou de difícil
avaliação, são custos que não se prenunciavam muito elevados, tendo em vista
dois traços marcantes na moldagem do desenho institucional expresso pela nova
legislação. Primeiro, o esboço de parte substantiva das mudanças institucionais
determinadas pelo Código, como visto anteriormente, já havia sido antecipado por
decretos governamentais expedidos em concomitância aos trabalhos da
subcomissão legislativa. Segundo, as bases jurídicas do novo regime de
ordenamento das atividades elétricas, onde se concentravam as principais
inovações, vão estar em harmonia com os princípios e diretrizes gerais do texto
constitucional que será promulgado pouco depois – a Constituição de 34. Essa
convergência se evidencia em aspectos cruciais do esforço de construção
institucional empreendido, quais sejam, a ampliação do intervencionismo estatal e
a centralização do poder decisório na esfera federal. De fato, ao reforçar as
atribuições da administração pública no campo econômico, a Constituição
convalida a criação pelo Código de dispositivos e instrumentos mais abrangentes
e complexos de supervisão, fiscalização e controle das atividades produtivas do
sistema elétrico. Sintonia similar se manifesta na concentração da gestão dos
novos mecanismos de regulação na esfera administrativa da União, esvaziando
130
competências anteriores de estados e municípios. Além disso, ambos adotam
orientação nacionalista no disciplinamento da apropriação produtiva dos recursos
naturais do país, tratados como estratégicos ao desenvolvimento nacional.
Referendando o arcabouço geral do anteprojeto desenvolvido no
âmbito da subcomissão legislativa, o Código de Águas confere centralidade à
geração de energia frente às demais alternativas de uso dos recursos hídricos,
como irrigação e navegação, introduzindo, em simultâneo, uma nova concepção
de prestação dos serviços elétricos. A percepção da importância estratégica da
eletricidade na dinâmica dos processos sociais e produtivos das sociedades
contemporâneas32 leva à atribuição de precedência aos interesses nacionais
sobre interesses regionais e locais no tocante ao disciplinamento de sua produção
e distribuição, reforçando a subsunção dos interesses econômicos dos agentes
atuantes na área a considerações de interesse coletivo. Vale dizer, impõe uma
reconfiguração na dinâmica de funcionamento do sistema, descolando-o de
condicionantes e variáveis locais e regionais para atrelá-lo a condicionantes e
variáveis de âmbito nacional, tornando-o, ao mesmo tempo, mais permeável à
injunção da política pública. Isto envolve a ampliação da capacidade de
coordenação e comando do Estado na área, de um lado, e a redefinição dos
parâmetros balizadores da prestação dos serviços de eletricidade, de outro.
A ampliação da autoridade estatal no campo das atividades elétricas
terá, como fundamento primário, a redefinição do regime jurídico de domínio
sobre os recursos hídricos. A acentuada preponderância das fontes hidráulicas
como traço marcante da indústria elétrica brasileira fazia, como já mencionado, do
controle sobre as mesmas caminho natural para o controle sobre o setor. O fulcro
32
O governo federal já tinha, à época, uma clara percepção da importância de uma padronização das normas
de concessão dos aproveitamentos hidrelétricos. A posição de Gustavo Capanema – então Ministro de
Educação e Saúde – a esse respeito é bastante esclarecedora. Analisando a inexistência de uma legislação
nacional para a regulação dos serviços de eletricidade, afirma que “inúmeros contratos, profundamente
lesivos aos interesses da nossa economia e ao bem estar de nosso povo, foram celebrados, por muitos
governos Estaduais e Municipais, em quase todo o País, para fornecimento de energia elétrica”
(Schwartzman, 1982:589)
131
do processo será a distinção feita pelo Código entre propriedade do solo e
propriedade das quedas d’água e outras fontes de geração hídrica. Consolidando
a ruptura com o direito de acessão, determinada pelo decreto nº 20.395,
anteriormente citado, a nova legislação afirma que “a propriedade superficial não
abrange a água, (...) nem a respectiva energia hidráulica, para o efeito de seu
aproveitamento industrial” (Decreto nº. 24.643), abrindo espaço para sua
incorporação “ao patrimônio
da
Nação, como patrimônio inalienável
e
imprescritível” (Decreto nº 24.643). Desdobramento imediato das mudanças, os
empreendimentos hidrelétricos passam a ficar compulsoriamente condicionados à
necessidade de prévia manifestação do poder público, ampliando numa escala
sem precedentes o controle estatal sobre a geração de energia. Em termos
operacionais, as fontes hidráulicas de maior relevância econômica – definidas
como aquelas com potência geradora superior a 150 kW – vão ser vinculadas ao
regime de concessão e as demais ao regime de autorização33.
Na normatização da matéria prevalece a posição defendida pelo
governo federal quando das discussões no âmbito da subcomissão legislativa,
que se traduz na transferência do poder concedente para a esfera da União,
consolidando decisão também prenunciada pelo Decreto nº. 20.395. Em sintonia
com o redesenho na correlação das forças políticas que se processa pós
Revolução de 30, a competência dos estados no tocante a regulação e controle
da
atividade
geradora
é
drasticamente
esvaziada,
ficando
limitada
a
aproveitamentos hidráulicos de pequeno a médio porte – definidos como aqueles
com potência inferior a 10 MW (Decreto nº. 24.643) -, mesmo assim sob
supervisão da administração federal. Tal centralização constitui elemento crucial
na moldagem do novo arcabouço regulatório do setor. De um lado, legitima a
prevalência da autoridade nacional sobre as instâncias decisórias regionais e
locais; de outro, reforça a capacidade de coordenação, comando e controle
estatal na relação com as empresas atuantes na área, dando suporte institucional
33
A concessão se aplicava aos aproveitamentos hidráulicos destinados a serviços públicos, enquanto a
autorização dizia respeito a aproveitamentos para uso estrito do permissionário (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988).
132
ao governo para imprimir direcionamentos objetivos à atividade e para
desempenhar, com maior eficácia, suas atribuições de zelar pela qualidade dos
serviços prestados à sociedade.
O maior controle estatal sobre as atividades elétricas encontra
aplicação imediata no próprio Código. Numa inflexão radical em relação à
flexibilidade assegurada pela sistemática regulatória anterior, o novo estatuo legal
limita as autorizações e concessões dos aproveitamentos hidráulicos apenas “a
brasileiros
ou
empresas
organizadas
no
Brasil”
(Decreto
nº.
24.643),
resguardando direitos adquiridos das empresas atuantes na área. As novas
regras não apenas introduzem barreiras seletivas à entrada no segmento de
geração, discriminando o capital externo, mas, o que é mais importante,
bloqueiam, de certa forma, as possibilidades de expansão dos sistemas
pertencentes a empresas ou grupos estrangeiros já estabelecidos no setor. Tais
restrições ganham contornos ainda mais incisivos com a proposição, por
dispositivo do mesmo Código, da criação de lei especial para promover “a
nacionalização progressiva das quedas d’água julgadas básicas ou essenciais à
defesa econômica ou militar da nação” (Decreto nº. 24.643). Além de afinadas
com os princípios nacionalistas presentes na Constituição de 34 – razão mais
geral para sua adoção -, são medidas congruentes com os propósitos de
contenção e progressiva reversão da tendência à oligopolização em curso na
área, comandada por Light e Amforp.
As
mudanças
introduzidas
no
regime
de
concessão
dos
aproveitamentos hidráulicos, por sua vez, fundamentam a definição de princípios,
normas e critérios padronizados para o disciplinamento das atividades de
distribuição ou comercialização final de energia, pondo fim à diversidade
regulatória advinda da estrutura fragmentada do poder concedente até então
prevalecente. O Código transfere a competência para fixar o valor das tarifas para
o Serviço de Águas (ex-Diretoria de Águas), rompendo com a sistemática anterior,
que remetia o tratamento da matéria ao contrato celebrado entre a concessionária
e o respectivo poder concedente - estados e, sobretudo, municípios. Além de
133
implicar a perda da autonomia decisória que tais contratos frequentemente
asseguravam às empresas, essa medida cria condições para a redução da
dispersão dos preços praticados pelo setor, num processo que converge para a
imposição de limites normativos à margem de retorno na prestação do serviço.
Explicita-se aqui o significado objetivo de “interesse público” subjacente ao
esforço reformista comandado pelo governo: a proteção dos consumidores
cativos frente ao poder monopolista das concessionárias. Seguindo o modelo
adotado pela legislação americana34, critérios rigorosos de fixação de tarifas e
mecanismos complexos de monitoramento e fiscalização das atividades elétricas
vão ser instituídos com o finalidade de “impedir lucros que não sejam razoáveis”
(Decreto nº 24.643).
Assim, numa reforma que passa ao largo de qualquer modificação
substantiva no arranjo organizacional e produtivo historicamente estabelecido na
área, o Código é portador de mudanças radicais nas regras do jogo da atividade,
afetando a estrutura de propriedade e redefinindo o modus operandi do sistema.
São mudanças que têm, como traço saliente, a tentativa de conciliar dois
objetivos de direção oposta ou potencialmente conflitivos entre si, vistos sob a
ótica das empresas atuantes no setor. De um lado, consolida a prevalência da
geração de energia frente a formas concorrentes de aproveitamento das águas,
favorecendo a economicidade dos projetos hidrelétricos e, com ela, o
rebaixamento do custo médio ou unitário da ampliação da capacidade de
atendimento do sistema. De outro, reforça o controle público sobre as tarifas de
energia, com o intuito de garantir proteção aos consumidores, na tentativa de
repassar os ganhos de produtividade na geração para os usuários do serviço.
34
Promulgada pouco antes, a legislação americana serviu de referência para os legisladores brasileiros.
(Rosa et. al., 1998)
134
2.3 Estímulo à geração hidrelétrica e controle tarifário: a tensão intrínseca à
concepção do novo marco regulatório do setor
O novo arcabouço de ordenamento e controle da apropriação produtiva
dos recursos hídricos é fortemente viesado no sentido da geração de energia
elétrica, privilegiando-a face aos demais usos potenciais da água. Assim, a
despeito de adotar, como postulado básico, o propósito de permitir “a todos usar
de quaisquer águas públicas” (Decreto nº 23.016), o Código não se ocupa com a
efetiva proteção deste direito, transformando-o em mero enunciado. Apenas
aproveitamentos com fins de geração foram objeto de regulamentação pelo novo
estatuto legal. Todos os demais usos alternativos – navegação, pesca e
derivações para fins agrícolas, industriais e de saneamento básico etc - ainda que
citados, viram-se remetidos, de um modo geral, à normatização através de
legislação especial. Vale dizer, o Código de Águas assume, na prática,
configuração de um código de eletricidade.
Ao mesmo tempo que reflete a importância estratégica atribuída pelo
governo à eletricidade para o processo de desenvolvimento e modernização do
país, a orientação seguida pelo Código atua no sentido de reforçar e legitimar a
preponderância da geração energética no aproveitamento produtivo dos recursos
hídricos. Em outras palavras, a natureza parcial ou incompleta do arcabouço
institucional de disciplinamento dos usos múltiplos das águas favorece a atividade
geradora, eximindo as empresas concessionárias da necessidade de considerar
as
interferências
sócio-ambientais
ocasionadas
pelos
empreendimentos
hidrelétricos como variável relevante de sua dinâmica decisória. A rigor, à
exceção de interesses resguardados por direitos de propriedade, todos os demais
efeitos indiretos ou laterais potencializados pelos investimentos produtivos do
setor assumem configuração de “externalidades”, não implicando, enquanto tal,
custos ou encargos financeiros adicionais para o empreendedor. Sem amparo nos
dispositivos gerais do Código, os usos múltiplos também não irão encontrar
proteção nos dispositivos específicos referentes ao ordenamento das atividades
135
elétricas, que não provêm instrumentos para lidar adequadamente com a questão,
como demonstra um exame um pouco mais detido da nova legislação.
Em primeiro lugar, a latitude daquilo que é institucionalmente tratado
como efeito externo dos aproveitamentos hidrelétricos revela-se muito restrita. De
fato, conforme diretrizes e regras estabelecidas pelo Código para a exploração
dos potenciais hidráulicos, os projetos de geração deveriam “obedecer às
prescrições técnicas regulamentares, podendo ser alterados no todo ou em parte,
ampliados ou restringidos, em vista da segurança, do aproveitamento racional do
curso d’água ou do interesse público” (Decreto nº. 24.643). A especificação dos
interesses extra-setoriais a serem formalmente considerados no processo de
concessão, contudo, apresenta escopo parcial e particularizado, abrangendo, em
essência, aspectos relacionados a “alimentação e (...) necessidades das
populações ribeirinhas; (...) salubridade pública; (...) navegação; (...) irrigação; (...)
proteção contra inundações; (...) conservação e livre circulação do peixe; (...)
escoamento e rejeição das águas (Decreto nº. 24.643). Questões afetas à
preservação dos patrimônios natural, artístico e cultural, de um lado, e à dinâmica
das relações sociais em sentido amplo, de outro, sequer foram tangenciadas pela
nova legislação.
Em segundo lugar, e não menos importante, o Código também não
avança no sentido da estruturação de instrumentos ou mecanismos operacionais
capazes de dar efetividade à já restrita proteção institucional aos interesses
conflitivos com os investimentos do setor. No arranjo operacional proposto, o
exercício da função regulatória foi atribuída ao Serviço de Águas, a quem caberia
“examinar e instruir técnica e administrativamente os pedidos de concessão ou
autorização para a utilização da energia hidráulica e para produção, transmissão,
transformação e distribuição de energia hidrelétrica” (Decreto nº. 24.643). Em
conformidade com o rito processual estabelecido, interesses extra-setoriais só
poderiam
adquirir
materialidade
se
internalizados
nas
“exigências”
ou
condicionantes relativas aos pedidos de concessão. Ao se examinar a questão,
contudo, observa-se que a especificação dos requisitos legais a serem cumpridos
136
pelo requerente da concessão tende a limitar drasticamente a capacidade de
ingerência do poder concedente. Em termos mais específicos, os elementos
prescritos para o requerimento de aproveitamentos hidrelétricos35 se atêm a
aspectos relacionados à viabilidade técnico-financeira do empreendimento - as
características do projeto de engenharia, os custos da obra e a capacidade
operacional de mobilização de recursos da empresa -, bem como à observância
da restrição, introduzida pelo próprio Código e referendada pela Constituição de
34, à atuação do capital externo na área. Atendem basicamente a propósitos de
segurança e economicidade do investimento, preocupando-se a rigor com a
adequação do projeto de engenharia da obra aos parâmetros técnicos
convencionais, de forma a evitar riscos de rompimento da barragem, e com a
racionalidade na seleção da alternativa de aproveitamento - localização do eixo
do barramento, arranjo físico geral da obra e nível operativo do reservatório –
tendo em vista a eficiência da atividade geradora, isto é, a minimização do custo
unitário da energia produzida.
Sem amparo de normas ou critérios sistematizados de tratamento, a
observância de questões relacionadas às interfaces dos empreendimentos
hidrelétricos com as múltiplas dimensões do ambiente tornava-se portanto
contingente de definições ad hoc do conteúdo específico de “interesse público”
no processo de análise do requerimento da concessão do aproveitamento. Em
princípio, isto poderia se dar de duas formas principais: a primeira, como uma
deliberação autônoma do órgão responsável pela concessão - o Serviço de Águas
-; a segunda, como resultado da pressão de segmentos ou grupos sociais
afetados pela implantação do projeto. Ambas, no entanto, apresentavam
perspectivas pouco favoráveis de materialização, dadas as restrições impostas
pelo próprio arcabouço de regulação.
35
Tais elementos consistem no “respectivo projeto, elaborado de conformidade com as instruções
estipuladas e instruído com os documentos e dados exigidos no regulamento a ser expedido sobre a matéria
e especialmente, com referência: a) à idoneidade moral, técnica e financeira e à nacionalidade do requerente;
b) à constituição e sede da pessoa coletiva que for o requerente; c) exata compreensão - 1) do programa e
objeto atual e futuro do requerente; 2) das condições das obras civis e das instalações a realizar; d) ao capital
atual e futuro a ser empregado na concessão” (Decreto nº 24.643).
137
Quanto à primeira alternativa, o Código cerceava qualquer ação mais
efetiva do poder concedente, ao conferir prevalência aos interesses do sistema
elétrico vis-à-vis os interesses conflitivos com os empreendimentos do setor. Os
princípios ordenadores da matéria não deixam dúvidas a esse respeito,
garantindo ao empreendedor, “além das regalias e favores constantes das leis
fiscais e especiais (...)”, [o direito de] “(...) desapropriar nos prédios particulares e
nas autorizações preexistentes os bens, inclusive as águas particulares sobre
que verse a concessão e os direitos que forem necessários, de acordo com a lei
que regula a desapropriação por utilidade pública, ficando a seu cargo a
liquidação e pagamento das indenizações” (Decreto nº. 24.643). Vale dizer, os
dispositivos legais não só tornavam compulsórios os impactos ocasionados a
terceiros pelos aproveitamentos hidrelétricos, reduzindo-os a perdas materiais terras, benfeitorias etc – como asseguravam, através do rito da desapropriação,
autonomia decisória às empresas na definição do valor das indenizações dos
prejuízos a serem ressarcidos, bem como na especificação da forma como o
pagamento seria feito. Os inegáveis avanços institucionais associados à
transformação de relações contratuais de direito privado em relações de direito
público patrocinados pelo Código não apenas não protegiam como, de certa
forma, penalizavam os interesses da população diretamente afetada pela
implantação dos projetos hidrelétricos, ao flexibilizar os direitos de propriedade
sobre os quais residia, em princípio, seu poder ou capacidade de barganha.
A segunda alternativa, por sua vez, ficava na dependência de dois
fatores básicos: a capacidade e disposição de mobilização dos segmentos sociais
atingidos na defesa de seus interesses, e a existência de canais para a mediação
dos conflitos potencializados pelos empreendimentos hidrelétricos. De um lado, o
reduzido escopo dos “direitos” assegurados em lei restringia drasticamente a
possibilidade da obtenção de ganhos concretos por parte da população afetada.
De outro, o arranjo operacional estabelecido pelo Código, além de centralizado,
não abria espaço para a manifestação e a negociação dos interesses desta
mesma população, o que elevava os custos de transação incorridos em eventuais
138
(re)ações frente às perdas impostas pelo projeto. São aspectos que se
combinavam para desestimular iniciativas de contestação à obra e mesmo de
barganha relativas à indenização proposta pela concessionária.
A leitura que se pode fazer é que o enquadramento institucional
favorável aos aproveitamentos hidráulicos reflete uma ação intencional do
governo e atende, em última instância, a propósitos de incremento da eficiência
da atividade geradora. Ao restringir os custos indiretos dos empreendimentos
hidrelétricos à indenização de perdas materiais respaldadas em direitos de
propriedade, o Código promove uma “socialização” dos demais efeitos externos
deles decorrentes, contribuindo para o rebaixamento dos custos de expansão do
sistema e, consequentemente, da energia produzida. Constitui, além disso, fator
de estímulo à apropriação de ganhos de escala, encorajando iniciativas no
sentido da implantação de plantas geradoras progressivamente maiores, ao
reduzir os riscos da ocorrência de um crescimento exponencial dos custos
relacionados às interferências sobre o meio ambiente em sentido amplo, o que irá
se materializar ao longo das décadas subsequentes. Em outras palavras, o
Código se antecipa no tempo à ampliação da escala dos empreendimentos
hidrelétricos e favorece avanços nesta direção que, como se verá mais à frente,
chegará ao paroxismo com a construção da usina de Itaipu, um mega
empreendimento com capacidade geradora de 12 mil MW.
É oportuno ressaltar, a propósito da questão, que esse viés
institucional não implicava, de imediato, problemas sociais ou políticos de maior
relevância relacionados à arbitragem de conflitos de interesses em torno do uso
produtivo
dos
recursos
hídricos.
De um
lado,
o
porte
reduzido
dos
aproveitamentos hidráulicos, instalados quase sempre em pequenos cursos
d’água, praticamente eliminava a possibilidade de as usinas geradoras se
defrontarem com atividades concorrentes que pudessem constituir empecilho à
sua implantação. De outro, os projetos hidrelétricos requeriam em geral áreas de
extensão média muito reduzida, comprometendo parcelas pouco representativas
das superfícies territoriais dos municípios onde se localizavam. Acresce-se,
139
ademais, a inexistência de pressão ou concorrência significativa pelo uso da terra,
refletindo a predominância de um padrão de ocupação espacial de baixa
densidade – corolário do reduzido grau de desenvolvimento alcançado pelas
forças produtivas do país à época. Pode-se afirmar, portanto, que as
interferências dos aproveitamentos hidrelétricos tendiam a ficar circunscritas, em
larga medida, às variáveis naturais - alagamento de recursos de solo e subsolo e
alterações na dinâmica dos cursos d’água, repercutindo sobre o equilíbrio de
ecossistemas locais e/ou microrregionais. Envolviam, em essência, interesses
difusos, sem embasamento legal e sem maior ressonância na sociedade, o que
atenuava ou diluía o “déficit” institucional do Código no tocante aos impactos
sócio-ambientais ocasionados pelos investimentos do setor. Dada a reduzida
magnitude dos conflitos de interesse potencializados pela construção das usinas,
sua resolução prescindia, de certa forma, da mediação de mecanismos
formalmente constituídos, podendo ser encaminhada, com relativa fluidez, através
da interação direta entre empreendedor e população atingida. Como se verá, essa
situação somente será modificada a longo prazo, quando a progressiva ampliação
da escala das plantas geradoras altera de forma substantiva a natureza e a
intensidade das interferências sobre o meio.
No entanto, embora convergente, em princípio, com os interesses do
desenvolvimento da atividade, a sistemática instituída para a concessão dos
aproveitamentos hidrelétricos não atende a propósitos de instrumentalizar
aumentos de rentabilidade ou retorno econômico para as empresas do setor. O
controle normativo das tarifas, que será introduzido pelo mesmo Código, bloqueia
tal possibilidade, inviabilizando a incorporação automática dos ganhos derivados
do rebaixamento dos custos de produção de energia elétrica à margem de lucro
das concessionárias. A “socialização” dos custos das interferências sobre o meio
ambiente, patrocinada pelo novo estatuto legal, tende a ser revertida em prol dos
usuários dos serviços de eletricidade, em detrimento das prestadoras de tais
serviços: dado o perfil integrado das empresas, o que elas “ganham” no segmento
da produção, “perdem” no segmento da distribuição.
140
Os propósitos de conciliar eficiência econômica e social que norteiam o
esforço de codificação da atividade demandam uma complexa regulação da
fixação das tarifas de energia. Vale dizer, as novas bases tarifárias tinham de
expressar um equilíbrio entre a qualidade dos serviços prestados à sociedade,
traduzida no suprimento de energia a preços razoáveis, e as necessidades
concretas de financiamento da atividade, consubstanciado na garantia da
“estabilidade financeira das empresas” (Decreto nº. 24.643). A primeira parte da
equação implicava estabelecer o mínimo valor máximo para as tarifas, de forma a
impedir a realização de sobrelucros ou lucros excedentes, lesivos ao consumidor.
A segunda, o máximo valor mínimo, de forma a assegurar receitas operacionais
compatíveis não apenas com a cobertura dos gastos correntes da atividade, mas
com sua reprodução ampliada. A acomodação de tais objetivos irá convergir para
a adoção de uma concepção de política tarifária baseada no custo de prestação
do serviço.
De acordo com essa concepção, a tarifa elétrica seria formada pelas
despesas de operação e as reservas para depreciação dos investimentos,
acrescidas de uma margem de retorno sobre o estoque de capital da empresa. O
tratamento operacional da matéria, por sua vez, vai envolver a combinação de
dois princípios básicos, um de natureza técnica, outro de natureza normativa. O
primeiro consiste na adoção do conceito de custo histórico - o valor original dos
investimentos realizados menos sua depreciação no tempo - como critério para o
cálculo do capital das empresas e, consequentemente, da rentabilidade auferida
na prestação do serviço, numa adesão a procedimentos consagrados pelas
legislações setoriais americana e inglesa (Mielnik e Neves, 1988; Lima, 1984;
Schwartzman, 1982). O segundo se expressa na disposição de conferir “justa
remuneração” à prestação do serviço (Decreto nº. 24.643), o que supunha, em
particular, uma avaliação consistente sobre as expectativas e, especialmente, a
“disposição a receber” das empresas concessionárias. Trata-se de tarefa que se
antecipava de difícil implementação, tendo em vista tanto aspectos técnicoadministrativos quanto políticos.
141
Sob a ótica técnica, a implantação da nova sistemática tarifária
requeria não só o detalhamento operacional da matéria como a padronização dos
registros contábeis das concessionárias, já que o valor de seus ativos
imobilizados constituía a base para o cálculo da remuneração da prestação do
serviço. Para se ter uma idéia do esforço a ser empreendido nessa direção, basta
mencionar a existência, à época, de centenas de empresas atuando na área, de
porte e perfil extremamente variados, e, por extensão, com padrões de gerência e
controle também muito desiguais (Cotrim, 1989, depoimento). Do ponto de vista
administrativo, o ponto fulcral era o aparelhamento estatal para o desempenho da
função, numa circunstância em que não existia nenhum arranjo regulatório
pretérito com tal atribuição. É suficiente observar aqui o fato de a Divisão de
Águas, que irá assumir esse papel, ter sido criada quase que em simultâneo à
promulgação do Código.
As mudanças nos dispositivos legais que disciplinam a atividade vão se
defrontar também com problemas de outra natureza, relacionadas a resistências
interpostas pelos interesses constituídos do setor, repercutindo sobre a
capacidade governamental de manter o controle sobre a condução do processo
reformista e os resultados objetivos dele derivados. Se o tratamento favorecido
que o Código confere à geração de energia elétrica no aproveitamento dos
recursos hídricos não suscita maiores controvérsias ou resistências à sua adoção,
seja porque não provocava, de imediato, custos percebidos como relevantes pela
sociedade ou setores representativos dela, seja pelo baixo grau de organização e
desenvolvimento das atividades potencialmente concorrentes pelo uso das águas,
o mesmo não se aplica às novas regras tarifárias. Ao afetarem as expectativas
das empresas no tocante às oportunidades de ganho na prestação do serviço,
suas preferências e margem de autonomia decisória, os dispositivos de fixação
dos preços da energia a serem cobrados ao consumidor tendem a colocá-las em
pólo diametralmente oposto ao do governo. Cria-se um ambiente de instabilidade
e incertezas na área que repercute sobre as decisões de investimento das
empresas,
com
efeitos
perversos
sobre
142
a
expansão
do
sistema
e,
consequentemente, sobre a qualidade do serviço prestado à sociedade. A
trajetória do desenvolvimento do setor será marcada, a partir de então, por fortes
conflitos de interesse, no cerne dos quais estarão Light e Amforp, e por marchas e
contramarchas na intervenção estatal.
2.4 A disputa em torno das novas regras tarifárias: um conflito sem
vencedores definitivos
A nova política de fixação de tarifas não tinha aplicação automática,
dependendo da especificação de regras e parâmetros a serem utilizados no
tratamento da matéria. Apesar de promulgado por decreto, o Código deixara em
aberto, isto é, para encaminhamento via legislação especial,
“uma série de
pontos básicos da nova sistemática tarifária, como o valor das taxas de
remuneração e depreciação do capital, a forma de apuração desses valores (...) e
a padronização da contabilidade das empresas” (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988: 85). São circunstâncias que tornavam inevitável a
negociação com o Legislativo, expondo os propósitos reformistas do governo às
exigências do jogo político. Além de condicionante da adoção dos dispositivos
instituídos, a regulamentação revelava-se crucial no tocante ao delineamento da
natureza concreta dos impactos incidentes sobre as oportunidades de ganho e a
autonomia decisória das empresas do setor, levando-as a se mobilizarem com
vistas a fazerem valer seus interesses no encaminhamento do processo.
As principais iniciativas em tal direção serão protagonizadas pelas
grandes empresas de capital estrangeiro, mais fortemente afetadas pelas
alterações propostas nas regras do jogo. Movidas por uma lógica empresarial
estrita, Light e Amforp vão marcar “posição em torno de uma reformulação
integral dos princípios” (Lima, 1995: 25) e critérios para a fixação de tarifas. As
disputas em torno da questão terão, como eixo central, a adoção do princípio de
custo histórico no processo de avaliação do estoque de capital investido e, por
extensão, na determinação do lucro bruto auferido na prestação do serviço.
Conforme Lima, as ações desenvolvidas assumem “as mais variadas formas, mas
143
o objetivo era, acima de tudo, a derrocada do princípio de custo histórico” (1995:
25/26).
A adoção do princípio de custo histórico teve, por principal fonte de
inspiração, a legislação americana (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988; Ferraz, 1993, depoimento; Lima, 1995, depoimento), onde sua aplicação
não enfrentara problemas de maior relevância junto às empresas atuantes na
área. A realidade econômica daquele país, contudo, apresentava características
distintas da brasileira. Enquanto a primeira pautava-se pela estabilidade dos
preços, experimentando, inclusive, tendência à deflação ao longo de toda a
década de trinta, na segunda o traço marcante era a presença de inflação, ainda
que mantida sob controle (Ferraz, 1993, depoimento; Baer, 1995). Isto fazia uma
enorme diferença: no caso de deflação, a aplicação do custo histórico elevava o
valor a ser atribuído ao patrimônio das empresas e, com ele, a remuneração
obtida na prestação do serviço; no caso de inflação, passava-se exatamente o
contrário. Contextos distintos, como visão, influenciam os resultados das ações
adotadas e, por extensão, as preferências dos atores afetas às mesmas.
Fundadas no argumento de que a aplicação do princípio de custo
histórico era “inaceitável para um país que apresentava acentuada instabilidade
monetária “ (Lima, 1995: 25/26), Light e Amforp defendem sua substituição pelo
princípio do custo de reprodução – o valor presente dos investimentos caso
fossem realizados no momento de sua avaliação (Mielnik e Neves, 1988),
considerado mais pertinente a um ambiente inflacionário, “apostando” no
acirramento do confronto com o governo. Buscando se impor como interlocutoras
no tocante ao detalhamento operacional das novas bases regulatórias, tais
empresas partem para disputas no campo jurídico, onde questionam a legalidade
do Código. Trata-se de ação que, independente da decisão judicial em si mesma,
se presta ao propósito de criar constrangimentos políticos para a adoção de
soluções não negociadas ou, mais especificamente, de soluções impostas via
decreto do Executivo, como ocorrera com a promulgação do próprio Código.
144
A aplicação da nova política tarifária não dependia apenas da
resolução dos problemas operacionais relacionados aos dispositivos pendentes
de regulamentação. Ao contrário, supunha também a prévia revogação das regras
anteriores, o que passava, formalmente, pela revisão dos contratos de concessão
em vigor. Na tentativa de escapar aos riscos que se prenunciavam elevados no
tocante à obtenção de uma adesão espontânea à sua realização, o Código
caminho no sentido de torná-la obrigatória, impondo sanções ou penalizações
para posturas refratárias à medida, estabelecendo, em suas disposições
transitórias, que sem ela as concessionárias não poderiam “fazer ampliações ou
modificações em suas instalações, nenhum aumento nos preços, nem novos
contratos de fornecimento de energia” (Decreto nº. 24.643). O recurso à
penalização como instrumento para induzir a “cooperação” das empresas do
sistema, contudo, não terá a eficácia presumida pelo governo. Longe de eliminar
o conflito, a opção pela via coercitiva conduz a resultados opostos aos
pretendidos.
Se interessava ao governo acelerar a transição para as novas bases
tarifárias, o mesmo não se aplica às grandes concessionárias de energia, em
especial a Light, que se encontrava numa posição relativamente confortável para
adotar uma estratégia não cooperativa. “Com o mercado em franca expansão, era
grande a possibilidade de o consumo [de eletricidade] acompanhar este
crescimento, traduzindo-se em receitas cada vez maiores, ainda que aprisionadas
pelo problema tarifário” (Lima, 1995, depoimento). Vale dizer, a ampliação da
demanda compensava, de certa forma, os efeitos perversos da redução do valor
real das tarifas advinda da corrosão inflacionária. Assim, enquanto a capacidade
instalada do sistema suportasse o incremento do consumo, prescindindo da
realização de novos investimentos, as penalizações impostas pelo Código não
tinham implicações sensíveis sobre os retornos econômicos obtidos na prestação
do serviço. Trata-se de resultado que exerce influência sobre a formação das
preferências das empresas concessionárias, contribuindo para a não aceitação
passiva da imposição das mudanças - decisão que se constitui numa das
145
principais manifestações do dissenso em torno das reformas institucionais do
setor.
Embora assinado anteriormente à Constituição, o decreto instituindo o
Código de Águas acabou por ser publicado em data posterior à mesma, “levando
a que diversas personalidades jurídicas e políticas e ainda representantes das
concessionárias estrangeiras contestassem sua constitucionalidade, com base no
argumento de que, após a promulgação da nova Carta, a Assembléia Constituinte
transformara-se em Câmara ordinária, devendo a nova lei ser submetida a esta
Casa” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1993: 90). Oportunidades
abertas pelo contexto, como preconizado pela escolha racional, tendem a ser
aproveitadas pelos atores de acordo com seus interesses. Apoiadas no
argumento jurídico da inconstitucionalidade do Código (Lima, 1984; Schwartzman,
1982), Light, Amforp e outras concessionárias de menor porte questionam a
obrigatoriedade da revisão de contratos por ele determinado e se recusam a
promovê-la (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A adoção deste
procedimento
permite
bloquear
ou,
mais
precisamente,
postergar
a
implementação das reformas, a despeito da ocorrência de eventuais avanços no
tocante à regulamentação dos dispositivos tarifários. O questionamento da
legitimidade afeta a autoridade governamental, fragilizando sua capacidade de
impor decisões – constrangimento que só será efetivamente removido em 1938,
com o parecer do Supremo Tribunal Federal contrário à arguição de
constitucionalidade (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
O impasse em torno da regulamentação dos dispositivos tarifários e da
revisão dos contratos de concessão terá custos tanto para as empresas quanto
para o governo e, indiretamente, para o conjunto da sociedade brasileira, na
condição de usuária final do sistema. Para as primeiras, implica o congelamento
de preços e o relativo engessamento de suas atividades, dadas as restrições à
realização de novos investimentos produtivos, afetando as expectativas e as
possibilidades de ganho na prestação dos serviços. Para o segundo, o imperativo
de buscar sustentação política para suas decisões, abrindo espaço para desvios
146
de rota, com desdobramentos imprevisíveis no tocante ao êxito na execução do
conjunto das medidas propostas. Por fim, para a sociedade significa sobretudo o
aumento dos riscos da ocorrência de déficits no suprimento de energia.
Reagindo à não cooperação das empresas no tocante à revisão dos
contratos, o governo federal procura preservar sua autoridade na área, aplicando
as sanções previstas no Código, o que se traduz na fixação das tarifas de energia
elétrica ao nível histórico correspondente à data de sua promulgação (Lima,
1984). A despeito dos baixos índices inflacionários então prevalecentes, os efeitos
potencializados pela medida sobre a rentabilidade do setor não podem ser
negligenciados. Se, no curto prazo, não apresentavam magnitude muito
expressiva, pelas razões anteriormente discutidas, no médio a longo prazo
tendiam a conduzir à progressiva corrosão da margem de lucro das
concessionárias, à medida que aumentos nos custos operacionais da atividade
não podiam ser repassados aos preços cobrados ao consumidor.
A dissonância entre os intentos reformistas do governo e os interesses
constituídos do setor irá trazer, em sua esteira, substancial refluxo na alocação de
recursos na expansão do sistema, sobretudo no segmento de geração.
Ajustando-se às restrições legais, Light e Amforp se limitam a dar sequência à
implantação de projetos já decididos ou em andamento, que se configuravam
como tecnicamente irreversíveis ou inadiáveis do ponto de vista econômico. Por
sua vez, sem oportunidades atraentes e viáveis de inversão, à medida em que
atuavam em áreas periféricas aos principais mercados, as empresas nacionais
não promovem alterações sensíveis em suas decisões de investimento
comparativamente aos anos iniciais da década, que se mantêm secundárias face
às iniciativas das concessionárias estrangeiras. Assim, além de circunscrito a
empreendimentos de pequeno porte, o lançamento de novos projetos hidrelétricos
irá apresentar forte declínio, evidenciado na acentuada queda no número de
decretos de concessão de aproveitamentos hidráulicos expedidos nos anos
subsequentes à promulgação do Código (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
147
Subproduto do processo, o refluxo nas decisões de investimento das
empresas repercute diretamente no desempenho agregado do setor. A despeito
de experimentar variação positiva da ordem de 60,2% na década de trinta
(Quadro 2), o ritmo de expansão da potência instalada do sistema fica muito
aquém daquele obtido na década anterior, com crescimentos médios de,
respectivamente, 4,9% e 7,8% ao ano (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988). Mais importante, esse resultado só não foi ainda mais desfavorável
em função da ampliação da capacidade instalada de usinas hidrelétricas de
propriedade da Light, através do aumento do número de unidades geradoras. De
fato, na primeira metade da década, a potência do parque de geração do país
manteve-se praticamente inalterada, com acréscimo de apenas 7,4% no período
(Quadro 2). Na segunda metade, a entrada em operação de novos grupos
geradores nas usinas Henry Borden, Ilha dos Pombos e Fontes, todas
pertencentes à Light, permitiu incrementos na produção da ordem de 298 MW
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Caso se desconsidere a
ampliação de tais usinas, fruto da maturação de projetos programados ainda nos
anos vinte, isto é, de decisões anteriores à promulgação do Código, a taxa média
de crescimento da produção de energia hidrelétrica referente aos anos trinta cai
para módicos 1,2% ao ano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
148
Quadro 2
Evolução da Capacidade Instalada de Geração de Energia Elétrica no Brasil,
por Fonte Hidráulica, em anos selecionados
Período: 1930-40
Ano
Potência - (MW)
Índice de Crescimento
1930
630,1
100,00
1931
646,1
102,54
1932
650,0
103,16
1933
658,3
104,48
1934
665,3
105,59
1935
676,7
107,40
1936
745,7
118,35
1937
754,7
119,78
1938
946,9
150,28
1939
952,.0
151,09
1940
1.009,3
160,18
Fonte: Dias, R. F. (coord.) Panorama do Setor de Energia Elétrica no Brasil. Rio de
Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 99
Contrastando com a oferta, a demanda de energia elétrica vai
apresentar intenso crescimento no período, impulsionada pelo movimento de
urbanização e, principalmente, pela aceleração do avanço da atividade industrial.
Salienta-se, a esse respeito, que à exceção dos dois primeiros anos da década,
quando a economia brasileira como um todo sente os efeitos da crise externa
(Baer, 1996), o desempenho da indústria revela-se bastante favorável, crescendo
à elevada taxa média de 11,2% ao ano entre 1933 e 1939 (Negri, 1996). O
comportamento do consumo nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São
Paulo ilustra bem o dinamismo da demanda: a energia consumida em tais
mercados mais do que dobra nos anos trinta, expandindo-se à expressiva taxa
média de 8,7% ao ano (Lima , 1984; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988).
149
O descolamento entre a ampliação da capacidade de oferta e os
requisitos da demanda de energia elétrica sinaliza claramente para os distúrbios
provocados pelas mudanças no arcabouço de regulação da atividade sobre a
lógica de funcionamento do setor. Ao contrário das décadas anteriores, as
oportunidades econômicas potencializadas por um mercado consumidor em
rápida expansão revelam-se insuficientes, por si só, para alavancar os
investimentos produtivos das concessionárias, gerando uma segunda ordem de
problemas: o risco da ocorrência de déficits no suprimento energético. Essas
respostas insatisfatórias do lado da produção conferem saliência à questão da
consistência e viabilidade das reformas, comportando duas leituras principais no
tocante aos rumos do processo. De um lado, o que se colocava era o relativo
esgotamento do modelo organizacional do setor face ao reordenamento
institucional determinado pelo Código que, se enfrentado diretamente, implicaria o
avanço do intervencionismo estatal sobre a esfera produtiva. De outro, o fraco
desempenho da ação governativa na implementação das mudanças propostas,
cujo enfrentamento passava por um reforço de sua capacidade operacional,
aparelhando-a para o adequado cumprimento de suas atribuições.
São opções estratégicas com estruturas diferenciadas de custos e
benefícios sob a ótica agregada do setor. A primeira supunha um esforço de
mobilização de recursos por parte do poder público, trazendo, em contrapartida,
maior previsibilidade e confiabilidade quanto à expansão do sistema. A segunda
prescindia de tal esforço, mas ampliava a margem de incertezas acerca dos
resultados obtidos. Novamente aqui, as preferências sobre o curso da ação a ser
adotada sofrem a influência de fatores objetivos do contexto. Os rumos das
reformas setoriais repercutem, em larga medida, as mudanças políticoadministrativas deflagradas pela instauração do Estado Novo36.Em termos mais
específicos,
a
opção
governamental
36
converge
para
a
superação
dos
O golpe de Estado que dá origem ao denominado Estado Novo, instaurando um regime político autoritário
no pais, é anunciado por discurso proferido por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 (Corsi, 2000).
150
estrangulamentos técnico-operacionais que vinham dificultando a implementação
das novas diretrizes e normas instituídas pelo Código para o disciplinamento das
atividades do sistema. O aspecto que se quer ressaltar é que a alternativa
selecionada – a concentração de esforços no reforço da autoridade pública na
área – guarda estreita sintonia com os princípios gerais preconizados pela
Constituição de 37 - outorgada pelo novo regime – para o balizamento da
intervenção estatal na economia.
3. O avanço do processo de reordenamento institucional do setor e a
crescente deterioração dos serviços de eletricidade
O surto reformista desencadeado pela Revolução de 30 entra num
novo e decisivo estágio com o advento do Estado Novo, implantado sob o
comando de Getúlio Vargas. A instauração de uma ordem autoritária, justificada
em nome da segurança interna e da consolidação do esforço de construção da
Nação (Schwartzman, 1992; Corsi, 1996, 2000; Skidmore, 1998; Nogueira, 1998),
vai dar suporte ao incremento do inervencionismo estatal na economia,
“intimamente articulado ao projeto de industrialização que” (Draibe, 1985: 83)
tende a orientar, de forma muito mais incisiva, a ação do governo. Trata-se de um
Estado que reafirma o compromisso com a dinâmica capitalista, mas a subordina
ao propósito de desenvolvimento nacional, em torno do qual irá gravitar a
formulação e implementação da política pública.
O papel preconizado para o Estado e o padrão de relacionamento a ser
mantido com o capital privado são explicitados, em seus contornos gerais, no
capítulo da ordem econômica da nova Constituição promulgada pelo regime
autoritário implantado por Vargas. De acordo com o texto constitucional, “a
intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as
deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção, de
maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das
competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados
151
pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata,
revestindo a forma do controle, do estímulo ou da gestão direta” (Constituição de
1937). De um lado, reitera-se a precedência da iniciativa privada na esfera da
produção, sublinhando os limites da atuação do Estado no campo econômico. De
outro, enfatiza-se a importância do intervencionismo estatal como força
integradora dos processos produtivos, capaz de induzir os agentes econômicos a
agirem de um modo que leve em consideração os interesses coletivos, isto é, os
“interesses da Nação”.
Cabe ressaltar, por oportuno, que a afirmação dos interesses nacionais
preconizada pelos princípios básicos da ordem econômica tem aplicação imediata
no próprio texto constitucional, consubstanciada no cerceamento de investimentos
externos em áreas consideradas vitais para o desenvolvimento econômico do
país, como o sistema elétrico. Assim, as restrições à atuação do capital nãonacional nas atividades de geração de energia, instituídas pelo Código de Águas
e referendadas pela Constituição de 34, são não apenas endossadas mas
aprofundadas pela Constituição de 37, que veta, de forma explícita, a
possibilidade da implantação de qualquer empreendimento hidrelétrico por
empresas estrangeiras. De acordo com os novos dispositivos constitucionais, a
concessão de aproveitamentos hidráulicos só poderia ser dada a brasileiros ou
empresas constituídas por acionistas brasileiros (Constituição de 1937), e não
mais a empresas organizadas no país, como estabelecido na Constituição de
1934.
Abstraindo-se desse enfoque nacionalizante que, como se verá mais à
frente, acabará sendo revisto em função de contingências enfrentadas pela
política setorial, mais especificamente, o estrangulamento na oferta de energia, a
demarcação da fronteira entre as esferas pública e privada subjacente ao texto
constitucional evidencia a preocupação em conciliar eficiência econômica na
alocação dos fatores de produção, entendida e tratada como produto das
competições individuais - a dinâmica de mercado -, com eficiência social dos
resultados produzidos, derivada da ação normatizadora do Estado sobre as
152
iniciativas individuais - a regulação da dinâmica de mercado. Além disso, e mais
importante, a Constituição estabelece também uma hierarquia entre os dois
propósitos, conferindo primazia ao segundo frente ao primeiro. Em conexão a tal
hierarquização, não só legitima a autoridade do Estado sobre as relações
econômicas de mercado, de forma a assegurar que os interesses dos agentes
econômicos sejam congruentes com os “interesses da Nação”, como abre espaço
para sua inserção direta no campo da produção, subordinando-a, no entanto, ao
fracasso ou insuficiência da ação regulatória.
A ênfase no papel do Estado enquanto força integradora dos processos
econômicos e a preservação da esfera da produção como um campo de domínio
preferencial da iniciativa privada são fatores que convergem para a necessidade
de se conferir efetividade ao reordenamento institucional do setor previsto no
Código. Como visto anteriormente, a ausência de avanços objetivos na
regulamentação dos dispositivos tarifários pendentes de legislação especial e o
impasse na revisão dos contratos de concessão vinham bloqueando, na prática, a
capacidade do governo em resguardar o interesse público no desenvolvimento
das atividades do sistema. Numa circunstância em que o Estado não estava
fazendo o que deveria fazer, impunha-se capacitá-lo para o adequado
cumprimento de suas atribuições, o que passava não só pela consolidação do
arcabouço legal, mas pelo reforço do aparato administrativo encarregado das
ações de controle e fiscalização dos serviços prestados pelas empresas
concessionárias.
Se essa era a percepção do problema, as ações a serem
implementadas com vistas a seu equacionamento já estavam prescritas em lei, o
que facilitava a tomada de decisões. De fato, a despeito de ter atribuído ao
Serviço de Águas as responsabilidades de concessão dos aproveitamentos
hidrelétricos e de controle e fiscalização das concessionárias de energia, o
Código de Águas previa, em suas disposições gerais, a estruturação de um
aparato administrativo mais sólido e complexo para o exercício da função
regulatória, sob a forma de um “conselho federal de forças hidráulicas e energia
153
elétrica” (Decreto nº 24.643). Nos termos legais, caberia ao novo organismo: “a) o
exame das questões relativas ao racional aproveitamento do potencial hidráulico
do país; b) o estudo dos assuntos pertinentes à indústria da energia elétrica e sua
exploração; c) a resolução, em grau de recurso, das questões suscitadas entre a
administração, os contratantes ou concessionários de serviços públicos e os
consumidores” (Decreto nº 24.643) – atribuições que lhe conferiam status de uma
autoridade nacional com legitimidade para conduzir as reformas e as iniciativas
setoriais do governo.
Movido pelos resultados insatisfatórios da atuação do Serviço de
Águas, o governo federal decide reforçar sua capacidade de comando e
coordenação na área, dando concretude ao arranjo operacional previsto no
Código. Surge assim, no âmbito mais geral da ampla reforma administrativa
implementada a partir da instauração do regime do Estado Novo (Draibe, 1985;
Nogueira, 1998), o Conselho Nacional das Águas e Energia (CNAE). Criado por
força do Decreto-Lei nº 1.285, de maio de 1939, e transformado, pouco depois,
em Conselho Nacional de Água e Energia Elétrica (CNAEE), através do DecretoLei nº. 1.699, de outubro do mesmo ano (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988), o novo órgão se subordina diretamente à Presidência da República,
sinalizando para a disposição governamental de reverter o fraco desempenho que
vinha pautando o encaminhamento das reformas institucionais do setor (Mielnik e
Neves, 1988; Lima, 1984).
Refletindo os propósitos que cercam sua criação, o CNAEE não
apenas assume a coordenação das atividades de fiscalização e controle dos
serviços de geração e distribuição de energia elétrica, até então sob
responsabilidade do Serviço de Águas – transformado em organismo de apoio
técnico-operacional ao mesmo, com a denominação de Divisão de Águas -, mas
centraliza a responsabilidade pela política setorial do governo. Dentre suas
múltiplas atribuições, a tarefa mais imediata consistia em completar a transição
para a nova institucionalidade do sistema, promovendo o detalhamento
operacional da legislação tarifária ainda pendente de regulamentação e
154
procedendo ao encaminhamento de ações com vistas à superação do impasse
em torno da revisão dos contratos de concessão determinada pelo Código. Além
da complexidade imbricada no cumprimento de tal tarefa, a dinâmica decisória e
as ações do novo órgão tendem a ser fortemente influenciadas por circunstâncias
objetivas do contexto em que opera, caracterizado pelo crescente descompasso
entre oferta e demanda de eletricidade, o que irá repercutir nos resultados
concretos de sua atuação.
3.1 O caráter adaptativo da atuação do CNAEE e a gradativa flexibilização
dos dispositivos regulatórios do Código de Águas
Às condicionantes internas de natureza político-institucional que
vinham provocando, desde a primeira metade dos anos trinta, retraimento dos
investimentos privados na expansão do sistema, vieram se somar, ao final da
década, constrangimentos relacionados ao ambiente externo, decorrentes da
deflagração da Segunda Guerra Mundial (Lima, 1984; Mienilk e Neves, 1988;
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Corsi, 2000). Os distúrbios
ocasionados pelo conflito armado na dinâmica das relações comerciais e
financeiras internacionais tornaram “praticamente inviável a importação de
equipamentos e a obtenção de empréstimos (...), necessários à expansão da
capacidade produtiva do parque elétrico brasileiro” (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1996: 14). Esse novo cenário reflete-se sobre a atuação do
CNAEE, influenciando em profundidade suas prioridades de intervenção, num
processo onde a preocupação com o risco de escassez de energia tende a se
impor sobre questões relacionadas à complementação das reformas institucionais
do setor. Com isto, a regulamentação do Código de Águas, que deveria se
constituir num dos focos centrais da atenção do órgão, até porque condição
necessária ao efetivo desempenho de suas atribuições enquanto agência de
regulação e controle das atividades do sistema, será gradativamente deslocada
para plano secundário. Em outras palavras, mudanças imprevistas no ambiente
afetam a forma como são percebidos os problemas a serem enfrentados, a
155
definição e a hierarquização de objetivos e, por extensão, as decisões relativas
aos cursos de ação e sua implementação.
Assim, numa adaptação contingente a um contexto que sinalizava
crescentes dificuldades no suprimento energético dos principais mercados
nacionais, a atuação do CNAEE irá se articular em torno de dois eixos principais:
a administração da escassez de energia e o estímulo à retomada dos
investimentos na expansão do parque gerador. A primeira vertente converge para
a adoção de medidas voltadas a uma maior racionalização na prestação do
serviço sob a perspectiva agregada do setor. A segunda se fundamenta na
progressiva remoção ou flexibilização das restrições impostas pelos dispositivos
de regulação e controle instituídos pelo Código à atuação das concessionárias
estabelecidas na área, em especial aquelas controladas pelo capital externo.
O passo inicial com vistas ao enfrentamento do quadro de
estrangulamento no suprimento energético que se esboçava na entrada dos anos
quarenta aponta na direção da otimização no aproveitamento do potencial
instalado de geração do país e suas futuras ampliações, o que supunha a adoção
de uma abordagem integrada ou sistêmica no desenvolvimento da atividade.
Premido pela crise no atendimento da demanda por eletricidade, que assumia
caráter iminente na cidade de Campinas (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1996), o governo federal edita, em junho de 1939, o Decreto-Lei nº. 345,
através do qual são definidas regras e procedimentos para o intercâmbio de
energia no âmbito do setor, cuja coordenação fica sob responsabilidade do
CNAEE. Buscava-se, com a medida, promover a formação de arranjos entre as
empresas em prol da apropriação de ganhos de eficiência deles decorrentes,
sinalizando para a interligação operacional dos serviços de eletricidade que irá
nortear, mais à frente, a dinâmica evolutiva do sistema. Num resultado de
causação indireta e não pretendido, contudo, a principal implicação do decreto
será assinalar um primeiro e importante recuo do governo federal no confronto
que vinha travando com as concessionárias em torno da aplicação do Código de
Águas, já que a compra e venda de energia abria espaço para que estas
156
ampliassem suas capacidades de atendimento, independentemente da revisão ou
não de seus contratos de concessão. De um ponto de vista prático, sua
promulgação pouco irá contribuir para melhorias efetivas nas condições de
fornecimento de eletricidade, pelo menos no curto a médio prazo.
De fato, a criação de regras para o intercâmbio de energia não
proporcionava, por si só, soluções adequadas nem suficientes para a reversão da
tendência à deterioração cada vez mais visível da qualidade dos serviços de
eletricidade do país. Primeiro, o excedente na capacidade instalada de geração
de energia então existente se restringia, a rigor, ao sistema controlado pela Light
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Além de espacialmente
concentrado – a atuação da Light, vale lembrar, estava circunscrita ao eixo RioSão Paulo -, tal excedente vinha se esgotando rapidamente face ao “notável
incremento no consumo industrial de energia elétrica, aliado à igualmente
acentuada elevação do consumo comercial” (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1996: 27) nas áreas atendidas pelas subsidiárias do grupo, numa
circunstância em que as possibilidades técnicas de expansão da potência
instalada das usinas de seu parque gerador também estavam se exaurindo, até
porque já haviam sido amplamente aproveitadas no decorrer dos anos trinta. Por
sua vez, a inexistência de linhas de transmissão de longa distância, cuja
implantação não era tecnicamente viável, bloqueava, de partida, qualquer
perspectiva de a Light vir a fornecer energia para mercados que não fossem
relativamente próximos àqueles onde atuava. Segundo, os mercados que
apresentavam problemas mais emergenciais de suprimento de energia remetiam,
em sua ampla maioria, às concessionárias controladas pelo grupo Amforp, que
operavam sistemas isolados, dispersos por diversos estados brasileiros. Ao
contrário da Light, o parque de geração da Amforp era constituído basicamente
por pequenas hidrelétricas, que não apresentavam maiores oportunidades para a
ampliação de potência (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996).
Terceiro, como as empresas de capital estrangeiro estavam impedidas, por lei, de
lançarem novos
empreendimentos
hidrelétricos,
157
apontava-se,
ainda
que
implicitamente,
para a gradativa transferência
da responsabilidade
pelo
atendimento do incremento do consumo de eletricidade da sociedade brasileira
para empresas ou grupos nacionais.
A materialização dessa especialização
produtiva, contudo, defrontava-se com constrangimentos de natureza econômica
e institucional, que praticamente bloqueavam as possibilidades de que viesse a
ocorrer. Na dimensão econômica, o aspecto mais saliente é o fato de a
capacidade de mobilização de recursos das concessionárias sob controle de
grupos nacionais, constituídas basicamente por empresas de pequeno porte – a
ampla maioria das empresas com perspectivas mais favoráveis de expansão
havia sido adquirida na segunda metade dos anos vinte pela Amforp -, não estar à
altura dos requisitos da crescente demanda de energia do país. Na dimensão
institucional, cabe registrar duas questões principais. De um lado, os riscos e
incertezas associados ao caráter incompleto das mudanças introduzidas pelo
Código de Águas, ainda pendente de regulamentação, atuavam no sentido de
afastar o interesse do capital nacional do setor. De outro, a decisão de não
promover a revisão dos contratos de concessão imposta pelo mesmo Código não
ficara circunscrita aos grupos Light e Amforp (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988). Ao contrário, diversas empresas nacionais seguiram o mesmo
caminho e viam-se, portanto, legalmente impedidas de implantar novos
empreendimentos hidrelétricos.
Os resultados insatisfatórios no tocante à reversão dos crescentes
riscos de ocorrência de estrangulamento energético vão levar a que a
flexibilização das constrições legais do Código, iniciada com o decreto, seja
progressivamente alargada. Movimento neste sentido virá pouco depois, com a
edição do Decreto-Lei nº. 2.059, de maio de 1940, autorizando a expansão das
instalações produtivas do sistema, independentemente da revisão dos contratos
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). Com a medida, o
governo renunciava parcialmente à aplicação de sanções às empresas setoriais
como forma de induzir a adesão às novas regras tarifárias, que, além de não
atender aos propósitos visados, estava afetando os investimentos em geração de
158
energia. O recuo mais incisivo na direção da suspensão dos obstáculos incidentes
sobre os investimentos hidrelétricos, contudo, ocorrerá dois anos mais tarde, com
o levantamento das restrições que haviam sido impostas à atuação das empresas
de capital externo, o que irá exigir, inclusive, alterações no texto constitucional,
que tinha não apenas covalidado mas acentuado as constrições introduzidas pelo
Código. Isto se faz através da promulgação da Lei Constitucional nº. 6, datada de
maio
de
1942,
suspendendo
o
tratamento
discricionário
às
empresas
estrangeiras, que voltam a receber permissão para implantarem novos
aproveitamentos hidrelétricos no país (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1996). Vale dizer, dificuldades enfrentadas no equacionamento da pressão
exercida pela demanda de eletricidade nos principais mercados do país, dentro do
enquadramento
institucional
consubstanciado
no
Código,
influenciam
as
preferências e decisões do governo federal, que se vê constrangido a renunciar à
orientação nacionalizante que procurara impor às atividades do setor. Se a
alocação de recursos na expansão do sistema por parte das empresas de capital
nacional não corresponde às necessidades dos usuários dos serviços de
eletricidade, a “saída” é recorrer novamente ao capital externo, o que supunha
assegurar-lhe, como anteriormente, igualdade de tratamento no segmento de
geração.
A concentração de esforços no gerenciamento dos problemas
relacionados à escassez de energia tende a se refletir também sobre o timing do
encaminhamento das ações com vistas à regulamentação e aplicação dos
dispositivos tarifários do Código. Em termos mais específicos, somente cerca de
dois anos após a criação do CNAEE serão tomadas decisões concretas relativas
à matéria, materializadas no Decreto-Lei nº. 3.128, datado de março de 1941.
Com a edição de tal decreto, o governo federal finalmente estabelece princípios e
critérios para a mensuração do valor a ser atribuído aos investimentos realizados
pelas empresas em máquinas, instalações e equipamentos, necessária à
operacionalização do princípio do custo histórico, bem como a margem de
remuneração da atividade, fixada em 10% sobre o total do ativo imobilizado
159
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No entanto, a despeito dos
inegáveis
avanços
obtidos,
continuaram
em aberto
questões
como
a
especificação de regras para o cálculo da depreciação do capital, além da
definição de normas e procedimentos para a padronização da contabilidade das
empresas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Cotrim, 1989,
depoimento). Incompleta ou parcial, a regulamentação acaba por se manter como
empecilho à transição para o novo regime tarifário.
A persistência do impasse no tratamento operacional da matéria, num
cenário de progressivo agravamento do déficit energético, irá convergir para a
adoção de uma postura contemporizadora por parte do governo federal no
confronto que vinha travando com as principais concessionárias do setor. Em
termos mais específicos, a exigência legal de revisão dos contratos de concessão
anteriores à promulgação do Código é formalmente abandonada por força do
Decreto-Lei nº. 5.764, publicado em agosto de 1943. Além de sancionar os
diversos contratos em vigor, tal decreto autorizava, ainda que “a título precário”, o
reajustamento das tarifas de energia, enquanto não fossem celebrados novos
contratos com a União. Com a medida, o governo não apenas “regularizava”
aumentos de preços que já haviam sido realizados à sua revelia por diversas
concessionárias (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; 1996), como
“legitimava” novos reajustes tarifários, a título de recomposição das margens de
retorno da atividade. Consolidando o afastamento em relação à via coercitiva
adotada originalmente na condução das reformas institucionais do setor, o mesmo
decreto permitia que os reajustamentos se fizessem com base em critérios de
“semelhança e razoabilidade” (Decreto-Lei nº. 5.764), o que significava abrir mão,
pelo menos transitoriamente, do princípio de custo histórico, substituído por uma
negociação caso a caso, a ser conduzida pelo CNAEE. Mais importante, como o
processo demandava complexos acompanhamentos dos custos incorridos pelas
concessionárias na prestação do serviço, que escapavam à capacidade técnica e
operacional do órgão, acabava ocorrendo, na prática, a transferência do poder
decisório em matéria tarifária às próprias empresas. Conforme Lima, “o que se
160
fazia geralmente – e que se tornou um expediente permanente do setor elétrico
muito utilizado pelas concessionárias – era lançar mão da contribuição
previdenciária, do aumento de salários e da desvalorização cambial para justificar
o pleito de uma revisão tarifária. Agora, planilha de custos, plano de contas ... só
depois de 1950” (1995, depoimento)
A preocupação do poder público em minimizar os efeitos perversos
derivados da deterioração das condições operacionais do sistema no tocante à
disponibilidade de energia elétrica tende a influenciar, portanto, os rumos das
reformas institucionais do setor a partir dos anos finais da década de trinta. Sem
capacidade de comando e implementação suficiente para impor suas decisões às
principais empresas estabelecidas na área, especialmente Light e Amforp, o
governo federal abandona ou suspende procedimentos e normas regulatórias
introduzidas pelo Código cuja adoção é vista como potencial fator de desestímulo
à realização de investimentos na expansão do parque gerador nacional.
Subproduto do processo, a legislação dos serviços de eletricidade, como salienta
Lima, se transforma num “emaranhado de dispositivos sem qualquer organicidade
ou princípio básico” (1984: 45), refletindo os efeitos combinados
de
regulamentações parciais e intervenções tópicas. Os resultados obtidos, contudo,
não são suficientes para evitar a necessidade de se recorrer a medidas de ajuste
do lado da demanda, mais especificamente, ao racionamento de energia, o que
se faz acompanhar dos primeiros ensaios na direção da intervenção direta do
Estado nas atividades elétricas.
3.2 Crise energética, racionamento e a emergência da empresa pública nos
serviços de eletricidade
Apesar de abrangente, o movimento de flexibilização dos dispositivos
regulatórios do setor não teve, pelo menos no curto prazo, resultados sensíveis
no tocante à retomada dos investimentos na expansão do sistema. É verdade que
a concessão de novos aproveitamentos hidráulicos, que pode ser tomada como
indicador da disposição de investir das empresas setoriais, apresenta forte
161
recuperação a partir do final da década de trinta, superando o impacto negativo
provocado pela promulgação do Código de Águas (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). De fato, o número de concessões, que somara
apenas 25 decretos de concessão expedidos no período 1935-38, salta para 44
em 1939, para se situar numa média anual superior a 40 na primeira metade da
década de quarenta (Schwartzman, 1982). No entanto, tal recuperação não teve
correspondência quanto ao lançamento de novos empreendimentos hidrelétricos.
Dificuldades na importação de máquinas e equipamentos necessários à
implantação das plantas geradoras durante todo o conflito mundial, que
motivaram inclusive a realização de estudos com vistas à implantação de uma
estrutura de produção interna na área (Draibe, 1985; Cento da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), e a persistência da conduta defensiva adotada pelas
principais concessionárias frente aos intentos reformistas do governo repercutem
negativamente sobre as decisões de investimento do setor, resultando num baixo
volume de recursos alocados na implantação de projetos de geração.
Em consequência, a expansão da potência instalada do sistema, que
vinha se fazendo em ritmo lento ao longo dos anos trinta, torna-se ainda menos
expressiva na primeira metade da década de quarenta. No período 1940-45, o
incremento da oferta de energia elétrica, além de se situar em modestos 7,0%
sobre o total (Quadro 3), resulta basicamente da ampliação da usina de Fontes,
localizada no Rio de Janeiro, de propriedade da Light (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988; Müller, 1995). Como já ocorrera na década anterior,
as concessionárias do grupo Amforp pouco investiram, o que também se aplica às
empresas de capital nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988,
1996).
162
Quadro 3
Evolução da Capacidade Instalada de Geração de Energia Hidráulica no
País, em Anos Selecionados
Período: 1940-45
Ano
Potência - (MW)
Índice de Crescimento
1940
1.009,3
100,00
1941
1.019,0
100,96
1942
1.060,6
105,08
1943
1.067,1
105,73
1944
1.077,0
106,71
1945
1.079,8
107,00
Fonte: Villela, A. V. e Suzigan, W. Política de Governo e Crescimento da Economia
Brasileira: 1889-1945. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1975: 365.
Em contraste com a oferta, o consumo de energia elétrica aumenta em
ritmo significativamente mais elevado37 (Mielnik e Neves, 1988; Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), puxado, entre outros fatores, pela
demanda industrial, cujo nível de atividade vinha se expandindo a taxas anuais
em torno de 8% desde o final da década de trinta (Negri, 1996). Esse
descompasso entre as decisões de investimento das empresas concessionárias e
a disposição a consumir dos usuários dos serviços de eletricidade tende a exaurir
as possibilidades da adoção de “soluções” baseadas na ampliação do grau de
utilização da capacidade instalada do sistema. A crise de suprimento energético
assume contornos mais acentuados, influenciando os rumos da política setorial,
que avança no sentido do racionamento do consumo.
O primeiro e importante passo em tal direção ocorre em concomitância
à autorização para a implantação de novos empreendimentos hidrelétricos por
37
É ilustrativo dessa expansão o comportamento dos mercados das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
que apresentam um incremento do consumo da ordem de 51,5% sobre o total no período 1940-45 (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), mais de sete vezes superior ao correspondente crescimento da
oferta.
163
empresas estrangeiras, e se processa através da edição do Decreto-Lei nº 4.295,
de maio de 1942, “fixando medidas de emergência transitórias relativas à indústria
eletroenergética. Pelo decreto, o CNAEE ficava autorizado a propor, entre outras
alternativas para reduzir o consumo, a instituição do horário de verão, então
denominado horário especial, e ainda a determinar o acréscimo da capacidade
instalada das concessionárias mediante o aparelhamento mais eficiente das
instalações existentes” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,1996: 16).
No entanto, num reconhecimento implícito das dificuldades defrontadas pelo
governo na busca de soluções satisfatórias para o problema pelo lado da oferta,
que refletem, em particular, o próprio limite de sua capacidade de influenciar as
decisões de investimento das empresas concessionárias na direção almejada, o
decreto sinaliza para a adoção de medidas de racionamento. Sobre a questão
afirma que, se não fosse possível atender plenamente as necessidades de
consumo, o que de fato irá acontecer, “o fornecimento seria racionado segundo a
importância das correspondentes finalidades, adotando-se, em cada caso
concreto, uma seriação preferencial estabelecida pelo CNAEE” (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 17).
As normas e a regulamentação básica para a implementação do
controle do consumo, cujo gerenciamento fica a cargo do CNAEE, são definidas
através do Decreto nº. 10.563, de outubro do mesmo ano, repercutindo o rápido
agravamento da crise energética do país. O decreto governamental institui duas
modalidades de racionamento, o racionamento de caráter preventivo e o corretivo.
O primeiro procurava se antecipar à manifestação do estrangulamento energético,
contemplando ações capazes de reduzir ao máximo a ocorrência de
descontinuidades no fornecimento de eletricidade e de minimizar os efeitos
perversos delas decorrentes. Sua implementação poderia se dar a partir de uma
deliberação autônoma do CNAEE ou do exame que este faria de solicitações
formais com vistas à sua adoção, originárias das próprias concessionárias ou da
164
representação pública das áreas afetas ao problema38. O segundo estava voltado
a assegurar a prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses
particulares no tocante ao suprimento energético em casos de excesso de
demanda frente à capacidade instalada do sistema, com a definição de
prioridades de atendimento. “A conveniência de sua implantação deveria se
analisada e decidida pelas autoridades estaduais e municipais competentes (...), e
eventualmente, caso não fossem tomadas as providências cabíveis ou se
houvesse demora em fazê-lo, pelo CNAEE (...)” que, em qualquer circunstância,
“(...) poderia aprovar no todo ou em parte as providências tomadas, ou então
vetá-las” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 18).
A configuração objetiva de um quadro de escassez de energia elétrica
não motiva apenas a regulamentação de medidas de racionamento, catalisando
também a deflagração de um movimento de redefinição do papel do Estado no
setor. Em outras palavras, o desempenho insatisfatório da atuação das empresas
concessionárias quanto à qualidade dos serviços prestados aos usuários dos
serviços de eletricidade – as “falhas” de mercado - abrem espaço para a
ampliação do intervencionismo estatal na área, num processo que vai
desembocar nos primeiros ensaios de gestão direta das atividades do sistema.
Assim, entrelaçado ao esforço dirigido à retomada dos investimentos privados na
expansão do parque gerador, fundado na flexibilização dos constrangimentos
legais que haviam sido determinados pelo Código de Águas, o governo federal
toma iniciativas no sentido do planejamento setorial e, o que é mais importante,
autoriza a organização de empresas públicas de energia elétrica.
Da preocupação com a ameaça de colapso no fornecimento de energia
resultam os primeiros estudos e iniciativas com vistas ao planejamento do setor,
consubstanciados no Plano Nacional de Eletrificação. Elaborado por uma
38
A solicitação poderia ser feita por autoridades civis ou militares, “mediante o encaminhamento, ao
Conselho, de um documento justificativo sobre a conveniência da medida, incluindo os dados necessários
para facilitar os estudo daquele órgão” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 17)
165
“comissão técnica especial”39 constituída ao final de 1943, o plano destaca a
importância da retomada do fluxo normal de aplicação de recursos na expansão
do sistema, de forma a garantir um suprimento “abundante e barato de energia
não somente aos
centros (...) deficientemente atendidos como para a
incrementação das indústrias química, metalúrgica, agrícola, de mineração e de
transporte” (Conselho Federal de Comércio Exterior, 1947: 5), relacionando um
conjunto de projetos, propostos pelas principais concessionárias, convergente
com a consecução deste objetivo. Sua contribuição de maior relevância, contudo,
não radica propriamente em tal programação de investimentos, que apresenta
caráter meramente indicativo, espelhando, em particular, os limites da intervenção
estatal numa atividade delegada ao capital privado40, mas nas diretrizes que
propõe, onde são enfatizados aspectos cruciais à trajetória evolutiva do setor ao
longo das décadas subsequentes: a primazia dos aproveitamentos hidrelétricos
frente à geração térmica e a importância da estruturação de uma coordenação
centralizada para lidar com a sistemática decisória relativa à expansão do
sistema.
A primeira expressa a reafirmação da opção estratégica pela fonte
hidráulica na conformação da matriz energética brasileira, tendo como elemento
fulcral o enorme potencial hídrico do país. Mesmo numa circunstância que
exacerbava as vantagens técnico-econômicas das plantas geradoras baseadas
em fontes térmicas – respostas produtivas mais ágeis e maior flexibilidade
locacional -, o plano não deixa dúvidas quanto à primazia atribuída à geração
hidrelétrica, não só por assegurar menor custo unitário na energia produzida, mas
por envolver um fator produtivo sobre o qual o Estado exercia pleno domínio, o
que facilitava suas tarefas de ordenamento e controle da prestação do serviço. A
segunda sinaliza para um novo modelo de organização das atividades elétricas,
39
Organizada pelo Conselho Federal de Comércio Exterior, tal comissão era formada por técnicos
da Divisão de Águas e do CNAEE e irá promover “um amplo debate com representantes dos
principais grupos da indústria da eletricidade” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988:
92).
40
O Plano se restringe, a rigor, a promover uma sistematização das programações de
investimentos das principais concessionárias, em especial Light e Amforp.
166
baseado na interligação operacional do sistema, num aprofundamento das
proposições gerais contidas no já citado Decreto-Lei nº. 345. A integração das
áreas de mercado, em arranjos de conformação regional41, passa a ser vista,
desde então, como uma espécie de rota natural para o desenvolvimento do setor,
ao favorecer tanto o melhor aproveitamento da capacidade instalada de geração,
como salientado no texto do decreto, quanto a apropriação de economias de
escala e de escopo, potencializando benefícios diretos e indiretos à sociedade,
sob a forma de maior confiabilidade no suprimento energético e níveis mais
baixos de preços cobrados ao consumidor (Lima, 1984). Por sua configuração de
resultado socialmente almejado, a materialização de tais arranjos introduz uma
componente de
intencionalidade que escapa à lógica de funcionamento do
mercado, significando que não seria necessariamente alcançada a partir das
agregação das decisões autônomas e descentralizadas das empresas atuantes
na área. Deficiências de informação sobre as oportunidades efetivas de ganhos
associadas à interligação operacional do sistema e, principalmente, custos de
transação elevados criavam dificuldades ao avanço em tal direção, cuja
superação supunha a redefinição da atuação estatal no setor, corporificada numa
presença muito mais incisiva da ação coordenadora do poder público na esfera da
produção que aquela até então exercida pelo CNAEE. Dito de outra forma, o
papel a ser cumprido não se atrelava mais apenas à regulação das relações entre
as concessionárias e os usuários dos serviços de eletricidade, compreendendo
também a articulação da interação entre estas mesmas concessionárias, tendo
em vista objetivos e metas definidos pela política pública. Além disso, as
deficiências na alocação de recursos pela iniciativa privada, se persistentes ou
não reversíveis, poderiam motivar a própria inserção estatal nas atividades
setoriais, como preconizado na Constituição de 37.
41
A estratégia proposta pelo plano consistia em “dividir o país em regiões geográficas autosuficientes em
recursos energéticos, de acordo com as respectivas demandas de energia elétrica” (Lima, 1984: 48).
167
Essa inflexão no sentido do incremento do intervencionismo estatal na
área, imbricada nas proposições gerais do Plano Nacional de Eletrificação, já
vinha sendo timidamente ensaiada no âmbito das administrações estaduais, num
movimento autônomo e descentralizado de entrada de novos atores nas
atividades do sistema. O pioneirismo na adoção de tal caminho pode ser atribuído
ao governo de Minas Gerais que inicia, em 1936, a construção da usina de
Gafanhoto, com o intuito de fornecer energia elétrica ao projeto de implantação do
distrito industrial de Contagem, localizado nas proximidades da cidade de Belo
Horizonte (Campolina, 1981; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996).
Mais do que uma opção lastreada em argumentos favoráveis aos investimentos
públicos em detrimento dos privados, a iniciativa reflete uma imposição do
descompasso entre os propósitos industrializantes da administração estadual e a
limitada capacidade de atendimento do sistema operado pela Companhia Força e
Luz de Minas Gerais (Lopes, 1991, depoimento), subsidiária do grupo Amforp,
que detinha a concessão de prestação do serviço na capital do estado. Em
termos mais específicos, a construção da usina constituía pré-requisito para a
viabilização do distrito industrial, que supunha um suprimento regular e confiável
de energia elétrica, incongruente com os serviços prestados pela concessionária,
induzindo o governo a fazer aquilo que o capital privado não se sentia estimulado
nem compromissado a fazer. Embora represente o principal empreendimento da
administração estadual na área da geração de eletricidade, a usina de Gafanhoto
não representa uma ação isolada. Ao contrário, em 1942, é inaugurada a usina de
Pai Joaquim, com capacidade instalada de 3,7 MW, para abastecer a cidade de
Uberaba – importante centro pecuário do estado – e, em 1944, entra em operação
a usina de Santa Marta, com 2,4 MW, voltada ao atendimento da cidade de
Montes Claros (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996; Lopes,
1991, depoimento) – principal núcleo urbano do norte do estado. Em ambos os
casos, os investimentos espelham a falta de interesse da iniciativa privada na
prestação do serviço em tais localidades, numa clara ilustração das dissonâncias
entre a dinâmica de mercado e as necessidades que se colocam sob a ótica do
interesse público.
168
É essa mesma preocupação em prover serviços de eletricidade em
áreas à margem da cobertura dos sistemas organizados e geridos pelas
concessionárias privadas que motiva, quase à mesma época, a adoção de
iniciativas similares por parte da administração do estado do Rio de Janeiro.
Através do Decreto-Lei nº. 1.509, datado de 1937, o governo fluminense obteve
concessão do governo federal para a produção e distribuição de energia elétrica
em municípios localizados na região norte do estado que, até então, não haviam
atraído o interesse do capital. No entanto, dificuldades encontradas na
mobilização de recursos financeiros enfrentadas pela administração estadual vão
comprometer e retardar a realização dos investimentos programados. Apenas em
1939 foi dada a partida para a implantação do principal projeto setorial proposto a usina de Macabu -, cujas obras, conduzidas em ritmo lento e sujeitas a
frequentes paralisações, sofreram expressivo atraso em relação ao cronograma
originalmente previsto (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Apesar dos inúmeros problemas com os quais se defronta, a incursão do governo
estadual no campo da produção hidrelétrica, iniciada a partir da concessão
outorgada pelo Decreto-Lei nº. 1.509, não será interrompida, avançando, ao
contrário, no sentido da institucionalização. Assim, próximo ao final do Estado
Novo, o governo federal autoriza a criação da Empresa Fluminense de Energia
Elétrica (EFEE), objeto do Decreto-Lei nº. 7.825, de agosto 1945 (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1984). Mesmo vindo a se
estruturar efetivamente apenas nos anos cinquenta, a EFEE é emblemática da
tendência à formação de empresas energéticas estaduais que viria a se
consolidar nas décadas posteriores, expressando um dos traços mais marcantes
da trajetória de estatização do sistema elétrico brasileiro, como se verá nos
próximos capítulos.
A despeito do pioneirismo das administrações de Minas Gerais e Rio
de Janeiro, a iniciativa mais consistente e ordenada de inserção dos estados na
área remete ao Rio Grande do Sul, o que tem a ver também com problemas
relacionados a respostas insatisfatórias do capital privado às necessidades
169
energéticas da sociedade regional. Seguindo as linhas gerais do modelo
institucional adotado em nível federal, o governo gaúcho irá criar um órgão
coordenador das atividades do sistema elétrico - a Comissão Estadual de Energia
Elétrica (CEEE) -, com as atribuições de promover a racionalização do
aproveitamento do potencial energético e melhorar a qualidade dos serviços
prestados à população. Na sequência, elabora um plano regional de eletrificação,
tendo como estratégia básica a montagem de um sistema interligado de centrais
elétricas no âmbito do estado (Lima, 1984; Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988). O passo seguinte consiste na transformação da comissão em
empresa, dando origem à Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), que
passa a centralizar o gerenciamento dos contratos de concessão dos serviços de
eletricidade no estado, até então sob responsabilidade dos municípios (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). A existência de uma empresa
pública na área de energia e a premência de solucionar problemas localizados de
fornecimento de energia (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996) vão
convergir, por sua vez, no sentido de induzir o avanço do governo estadual sobre
um campo de atuação até então exclusivo do capital privado - a realização de
investimentos na geração de energia elétrica. Assim, dois anos após a aprovação
do plano regional de eletrificação pelo CNAEE, é inaugurado o primeiro
aproveitamento hidrelétrico sob responsabilidade do setor público no estado,
representado pela usina de Passo do Inferno. Com capacidade instalada de 1,4
MW (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), essa pequena central
hidrelétrica assinala, junto com iniciativas congêneres dos governos de Minas
Gerais e Rio de Janeiro, a abertura de uma nova etapa do processo de
organização institucional do sistema elétrico brasileiro, caracterizada pela
progressiva estatização das atividades do setor.
O incipiente movimento de inserção estatal nas atividades produtivas
do sistema elétrico, esboçado nas ações dos governos estaduais, ganha
contornos mais nítidos com a criação da Companhia Hidrelétrica do São
Francisco (Chesf), por iniciativa do poder público federal. Instituída através do
170
Decreto-lei nº. 8.031, de outubro de 1945, a nova empresa tinha como propósito
mais imediato promover o aproveitamento do potencial energético da cachoeira
de Paulo Afonso, situada na bacia do rio São Francisco, com vistas ao suprimento
energético da região Nordeste que, à exceção das capitais dos estados e
algumas poucas cidades de maior densidade econômica e populacional, não se
revelava atraente para o capital42.
Num contexto marcado por forte pressão da demanda por energia
elétrica, a centralização da atividade geradora em grandes centrais hidrelétricas
tende a adquirir crescente saliência enquanto instrumento de racionalização dos
investimentos na expansão da oferta de eletricidade, para se consolidar
gradativamente como estratégia dominante do setor. O descolamento entre
geração e distribuição pode ser entendido como pressuposto da própria
ampliação da potência das unidades geradoras, implicando, por sua vez,
estruturas de mercado mais flexíveis, no sentido de mais permeáveis ao
intercâmbio de energia entre as empresas prestadoras do serviço. O
adensamento sócio-econômico da ocupação do espaço territorial, impulsionado
pelas dinâmicas de urbanização e industrialização, de um lado, e os avanços
tecnológicos na área de produção e transmissão de energia (Lopes, 1991,
depoimento),
“advindas
da
descoberta
da
corrente
alternada
e
do
desenvolvimento de turbinas com grande capacidade de geração” (Rosa et al.,
1998: 109), de outro, criam oportunidades não apenas para ganhos de escala,
mas para economias de escopo, estimulando novos arranjos organizacionais com
vistas à sua apropriação. É nesta direção que irá avançar o intervencionismo cada
vez mais intenso do Estado na área, fomentando a materialização de alterações
no perfil técnico e econômico dos empreendimentos hidrelétricos e a interligação
operacional do sistema.
42
A região era atendida basicamente por subsidiárias do grupo Amforp, concentradas nas principais cidades,
e pequenas empresas de âmbito local, ficando quase que todo o vasto interior nordestino à margem dos
serviços de eletricidade (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Prevista para gerar 600 MW, a
usina de Paulo Afonso antecipa, sob a ótica técnico-produtiva, duas características cruciais que vão marcar, a
partir de então, a trajetória evolutiva do setor: o progressivo aumento da escala dos projetos de geração e o
concomitante descolamento espacial entre produção e distribuição de energia.
171
4. O esgotamento de um ciclo e a necessidade de reorganização produtiva
do sistema elétrico
A eficiência alocativa atribuída ao mercado como mecanismo de
coordenação dos processos produtivos apoia-se, entre outros pressupostos, na
existência de um ambiente de competição entre os agentes econômicos, fundada
por sua vez na ausência de restrições relevantes à iniciativa individual. A forma
como o setor elétrico se organiza historicamente no país não atendia tal requisito,
bloqueando a possibilidade de disputa direta entre as empresas prestadoras de
serviço. A repartição administrativa da estrutura da demanda, determinada pela
adoção do sistema de concessão, assegurava às concessionárias exclusividade
de atuação em suas respectivas áreas de mercado. Em condições de monopólio,
respostas da oferta à expansão da demanda nem sempre são adequadas e
oportunas, já que aumentos na produção não implicam necessariamente ganhos
proporcionais em termos de receita e lucro (Abreu, 1995; Henderson e Quandt,
1973).
Assim, a ampliação do potencial de atendimento do sistema dependia,
de um lado, da avaliação da concessionária a respeito das oportunidades
econômicas criadas pelo aumento de seu mercado de consumo e, de outro, de
sua capacidade de mobilizar os recursos necessários à realização dos
investimentos produtivos. Os estímulos de mercado revelavam-se insuficientes,
por si só, para garantir a convergência entre as decisões das empresas,
baseadas em critérios que refletiam sua condição de agente monopolista, e as
necessidades objetivas da sociedade. Isto tinha implicações em duas direções
principais, ambas relacionadas à qualidade dos serviços prestados, vistos sob a
ótica do interesse público. Primeiro, abria espaço para a ocorrência de situações
de escassez de energia, refletindo descompassos entre a expansão da oferta e
da demanda. Embora tenham adquirido maior visibilidade apenas nos anos
quarenta, indícios localizados de dificuldades no suprimento de energia elétrica
começaram a se manifestar ainda na década de vinte, quando houve uma
intensificação no ritmo de crescimento do consumo, em conexão com avanço da
172
produção industrial e do movimento de urbanização no período. Ocorreram à
época os primeiros estrangulamentos no fornecimento de eletricidade, tendo
como cenário a cidade de São Paulo (Lorenzo, 1997), que já se caracterizava
como o centro urbano-industrial mais dinâmico da economia nacional (Negri,
1996). Segundo, os serviços de eletricidade se estruturavam em estreita relação
com a distribuição da população e das atividades produtivas no território: áreas
com menor densidade de ocupação sócio-econômica tendiam a ficar à margem
do processo ou então eram atendidas de forma precária. A despeito da
incorporação relativamente acelerada de mercados, sobretudo a partir dos anos
vinte, apenas os espaços mais dinâmicos e com perspectivas mais favoráveis de
crescimento, localizados em sua ampla maioria na região Centro-Sul, contavam,
na altura dos anos quarenta, com sistemas de suprimento melhor aparelhados
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
As imperfeições e falhas do mercado estão na raiz da emergência do
Estado regulador, ocorrida em meados dos anos trinta. Marco referencial do
processo, a promulgação do Código de Águas redefine em profundidade o
arcabouço institucional de funcionamento do sistema, introduzindo novas regras e
princípios ordenadores para a atividade. Altera, em particular, os procedimentos e
critérios até então utilizados na definição das tarifas de energia, rompendo com a
relativa autonomia decisória das empresas concessionárias no tratamento da
matéria. Como mostra ampla literatura especializada, discutida no capítulo
anterior, mudanças mais abrangentes no desenho institucional tendem a suscitar
reações dos interesses afetos à questão, favoráveis ou contrárias às mesmas, de
consequências nem sempre previsíveis, podendo levar inclusive à inviabilização,
ainda que parcial, de sua implementação. É exatamente isto que ocorre com as
reformas propostas para o setor.
O controle institucional das tarifas introduzido pelo Código, incidindo
sobre o principal estímulo para a realização de investimentos na área – a margem
de lucros – vai se constituir no ponto central das controvérsias em torno da nova
legislação. A tentativa governamental de implantá-lo pela via coercitiva não será
173
bem sucedida, defrontando-se com a resistência das principais concessionárias
atuantes na área, em especial Light e Amforp. Além de criar dificuldades
adicionais às tarefas de encaminhamento das reformas setoriais, aumentando a
margem de imprevisibilidade e de contingências nelas contidas, esse conflito de
interesses tem implicações em outra direção, com efeitos retroativos sobre o
conteúdo destas mesmas reformas. Num ambiente instável, de incertezas quanto
às regras do jogo, há um retraimento natural das empresas energéticas no
tocante à alocação de recursos na expansão do sistema, que se descola das
exigências da demanda, cujo incremento se faz em ritmo relativamente acelerado.
Premido pelo risco cada vez mais acentuado de déficit energético, o governo
procura estimular a retomada dos investimentos na área, flexibilizando ou mesmo
abrindo mão de dispositivos da nova legislação, o que vai se revelar insuficiente,
por si só, para reverter o quadro. À regulação vem se somar, então, a intervenção
direta do Estado na dinâmica de mercado, consoante os princípios ordenadores
expressos na Constituição de 37, anteriormente comentados.
Falhas objetivas das relações de mercado, entendidas aqui como
suprimentos de energia elétrica aquém dos requisitos da demanda, conduzem a
ações em duas direções principais, complementares entre si. De um lado, o
Estado, através da ação coordenadora do CNAEE, procura controlar a demanda,
ajustando o consumo de eletricidade à capacidade de atendimento do sistema.
De outro, atua no sentido de ampliar a oferta de energia, através da formulação e
implantação de empreendimentos hidrelétricos. São ações que não se atêm ao
governo federal, mas que envolvem determinadas administrações estaduais, mais
especificamente, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, numa
combinação contingente de necessidades concretas no tocante ao fornecimento
de eletricidade internalizadas nas respectivas agendas políticas e capacidade de
mobilização de recursos compatível com sua viabilização. A organização de
empresas energéticas sob controle público - CEEE, EFFE e Chesf- e a
proposição de um projeto hidrelétrico de grande porte - a usina de Paulo Afonso –
sinalizam para a emergência do Estado empresário no setor, que irá se sobrepor,
174
de forma gradativa, ao Estado regulador ao longo das décadas subsequentes. No
evolver desse processo, serão alterados os arranjos produtivos, a conformação
das áreas de mercado e a própria regulação das atividades do sistema elétrico
brasileiro.
175
IV. DO ESTADO REGULADOR AO ESTADO EMPRESÁRIO
A segunda metade da década de quarenta se caracteriza como um
período de ampla reconfiguração dos ambientes externo e interno da qual resulta
uma redefinição dos padrões de constrangimentos e oportunidades que
influenciam o desenho das políticas, os interesses e os parâmetros decisórios dos
processos econômicos e sociais do país de um modo geral e das atividades
elétricas em particular. Ao término da Segunda Guerra, segue-se um processo de
reordenamento das relações econômico-financeiras internacionais, tendo como
peça central a assinatura do Acordo de Bretton Woods43 . A remontagem do
sistema monetário, financeiro e cambial internacional, junto com a reconstrução
das economias dos principais países envolvidos no conflito, impulsionada pelo
Plano Marshall44, criam condições mais favoráveis à retomada dos fluxos de
financiamento e investimento entre as nações e estimulam a rápida normalização
e dinamização dos fluxos de bens e serviços (Gonçalves et al, 1998; Baer, 1995;
Willianson, 1989; Draibe, 1985). Em sintonia com as transformações no contexto
internacional, o regime do Estado Novo entra em colapso, abrindo espaço para a
reinstauração de uma ordem democrática no país. À deposição de Getúlio Vargas
da Presidência da República, segue-se um curto período de transição políticoadministrativa, culminando na formação de um governo democraticamente eleito
e na elaboração de um novo texto constitucional – a Constituição de 46 (Draibe,
1985; Ianni, 1977; Leopoldi, 1997; Corsi, 2000). As mudanças ocorridas no campo
político, contudo, significaram sobretudo o revigoramento das funções do
43
Expressa o resultado objetivo da Conferência Monetária e Financeira promovida pelas Organização das
Nações Unidas, em julho de 1944, contando com a presença de representantes de 44 países. Realizada em
Bretton Woods (New Hampshire/USA), a conferência levou à assinatura de diversos acordos voltados ao
planejamento e estabilização das economias e das moedas dos principais países capitalistas, envolvendo a
criação de organismos supranacionais de apoio creditício e fomento aos processos produtivos, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD)
(Gonçalves et al (org.), 1998).
44
Plano de recuperação da economia dos países da Europa Ocidental no pós-guerra, lançado em 1947 pelo
então secretário de Estado americano George C. Marshall, e que foi executado no período 1948-51
(Sandroni, 1994).
176
Congresso, numa ruptura com a assimetria de poder existente nas relações com
o Executivo, amplamente favoráveis a este último, não implicando, de imediato,
transformações de fundo na moldura institucional de ordenamento das relações
sociais e econômicas. Em que pese a adoção de uma orientação liberal (Saretta,
1997; Lima, 1984), a nova Constituição manteve o cerne do padrão
intervencionista assumido pelo Estado pós 30, promovendo basicamente o que
Draibe (1985) designa como “enquadramento democrático” de sua estrutura
administrativa e de seus mecanismos e instrumentos de atuação.
O aspecto incisivo a ser ressaltado, para efeitos da análise pretendida,
é que, a despeito da preservação dos traços fundamentais do aparato
intervencionista do Estado – as alterações de maior relevância se concentraram,
a rigor, na neutralização dos principais dispositivos corporativos introduzidos pela
Constituição de 37, e na atenuação da orientação nacionalista adotada pela
Constituição de 3445 (Saretta, 1997; Lima, 1985; Draibe, 1985) -, sua mobilização
para ações de desenvolvimento não é automática, mas pressupõe uma
plataforma de governo capaz de imprimir um direcionamento consistente ao
processo de alocação e distribuição de recursos da sociedade. Implica, mais
especificamente, a proposição de objetivos e metas a serem alcançadas nos
campos social e econômico, e a definição de políticas para sua consecução. As
perspectivas de êxito, por sua vez, dependem não só da qualidade de tais
políticas, mas da capacidade efetiva de adotar as decisões que dão sustentação
às mesmas. Adquirem saliência aqui questões relacionadas ao exercício do poder
público nas democracias presidencialistas, entre as quais o grau de autonomia
decisória que cerca a atividade governativa e o desempenho do governo no
tocante à mobilização de apoio aos projetos e ações relevantes de sua agenda
política.
45
Esse “padrão reformista” se aplica também às atividades do setor elétrico. O texto constitucional referenda
e incorpora os princípios e diretrizes normatizadoras estabelecidas pelo Código de Águas, sem avanços
expressivos no tocante à regulamentação dos dispositivos que ainda se encontravam pendentes de
legislação complementar (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
177
São circunstâncias que trazem, para o plano central de análise, a forma
como se dá a concepção e implementação da política pública sob os novos
governos democráticos e suas interfaces com os serviços de eletricidade. A
dinâmica dessa interação, que é, vale ressaltar, contingenciada por elementos
relevantes dos contextos externo e interno, está na raiz da inflexão que irá ocorrer
na trajetória de desenvolvimento do setor. Partindo do papel essencialmente
regulatório desenhado nos anos trinta, o Estado avança no sentido da intervenção
direta nas atividades do sistema, para se consolidar, já no início dos anos
sessenta, como o principal responsável pela expansão do parque gerador do
país. Tal processo, contudo, não é linear, nem expressa mudanças imediatas
perseguidas pela política pública. Ao contrário, a nova rota vai sendo modelada
gradativamente, onde consequências de decisões tomadas num determinado
momento tendem a influenciar, seja como constrangimento, oportunidade ou
ambas, decisões tomadas mais à frente, dentro do que se
denomina de
dependência de trajetória.
De fato, apesar de a crescente deterioração na prestação dos serviços
de eletricidade sinalizar, desde meados dos anos quarenta, para o esgotamento
do modelo de organização das atividades do sistema então prevalecente,
mudanças mais efetivas no modus operandi do setor somente irão ocorrer no
início dos anos cinquenta, em conexão ao retorno de Vargas ao poder.
Contrastando com imobilismo ou inércia política que caracteriza a atividade
governativa na administração imediatamente anterior, comandada pelo Presidente
Dutra, o novo governo marca a retomada da aspiração à industrialização como
condição ao progresso econômico e social do país. A viabilização do esforço
industrializante, por sua vez, atua no sentido de conferir centralidade à superação
do estrangulamento no suprimento energético que havia se agudizado durante a
gestão Dutra. É exatamente o imperativo de se buscar soluções para o problema
que motiva e impulsiona o intervencionismo estatal no setor.
Numa situação em que a retração dos investimentos privados na área
é percebida e tratada como estrutural pelos novos gestores da administração
178
federal, a responsabilidade pela adequação da capacidade de atendimento do
sistema tende a convergir para a órbita pública. Se a inserção estatal na esfera da
produção revelava-se indispensável, já que constituía a solução possível, ao
alcance do governo, fazia-se necessário criar condições operacionais compatíveis
com o desempenho eficiente da função. O atendimento a esse propósito converge
para a proposição de uma ampla reformulação nas bases de funcionamento do
setor, centrada na estruturação de novos mecanismos para o financiamento de
investimentos na área, conjugados ao protagonismo conferido à empresa pública.
Na dimensão financeira, as propostas envolvem a criação de um novo tributo, o
Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), para alimentar o Fundo Federal de
Eletrificação (FFE), e, na dimensão operacional, a constituição da Centrais
Elétricas Brasileiras (Eletrobrás), com a atribuição de responder pela gestão da
aplicação dos recursos públicos no sistema. São mudanças que enfrentam a
reação dos interesses das grandes empresas estabelecidas na área, que se
mobilizam contra a ameaça representada pelo incremento do intervencionismo
estatal na atividade, e de uma ampla frente de oposição política ao Governo
Vargas, que procura dificultar ou impedir, dentro das regras do jogo democrático,
a viabilização de seus principais projetos de cunho reformista no campo da
economia, entre as quais as iniciativas relativas ao setor elétrico (Leal, 1988,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Lima Sobrinho, 1988, depoimento).
Assim, apenas as propostas referentes à reconfiguração das bases de
financiamento da atividade conseguem obter apoio parlamentar suficiente à sua
aprovação no Congresso. A criação da Eletrobrás, muito mais polêmica do ponto
de vista das mudanças que engendra, só terá sua viabilidade política assegurada
anos mais tarde, já na década de sessenta.
O intervencionismo estatal nas atividades elétricas recebe outro
importante e decisivo impulso na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek,
que sucede Vargas à frente do Executivo federal. Tal resultado não reflete
propriamente uma opção estatizante da nova administração, mas uma imposição
de sua agenda de governo, centrada numa estratégia de crescimento acelerado,
179
tendo como suporte a articulação e solidificação de nexos objetivos entre o
Estado e o capital privado46, interno e externo. A urgência de superar o
estrangulamento estrutural na oferta de eletricidade, intensificado durante a
gestão
Vargas,
como requisito
para o êxito do projeto desenvolvimentista
acentua a preocupação com o encaminhamento de soluções para o problema,
influenciando a definição de objetivos e estratégias da política pública para o
setor. Passando ao largo de qualquer compromisso com o avanço das propostas
reformistas formuladas na administração varguista, a ação governamental é
dirigida para a obtenção de resultados rápidos no tocante à adequação da
capacidade de atendimento do sistema. A alternativa encontrada consiste na
intensificação dos investimentos públicos na área, suprindo a lacuna deixada pelo
refluxo da iniciativa privada. Subproduto do esforço industrializante, a participação
das empresas públicas nas atividades de geração cresce de forma explosiva a
partir da segunda metade dos anos cinquenta, assumindo hegemonia frente ao
segmento privado.
A reconfiguração organizacional e produtiva do setor, em rápido
processo de estatização, se faz sem rupturas com o arcabouço jurídico-normativo
estabelecido pelo Código de Águas. Estrutura-se, em consequência dessa
orientação estratégica adotada por Vargas e mantida por Kubitschek, um sistema
dual na dinâmica de funcionamento do sistema, com a responsabilidade pelo
desenvolvimento da atividade, originalmente delegada à esfera privada, através
do instrumento da concessão, sendo partilhada e progressivamente transferida
para a esfera pública. O Estado empresário passa a se sobrepor ao Estado
regulador, sinalizando a obsolescência do arranjo institucional vigente. Vale dizer,
o avanço
do intervencionismo estatal implica, na prática, a gradativa
endogeneização do processo regulatório no âmbito do circuito decisório do
próprio setor, prescindindo, em larga medida, da mediação dos mecanismos
específicos de regulação existentes, num claro esvaziamento do papel do
46
A atuação empresarial do Estado centra-se prioritariamente em áreas ao mesmo tempo essenciais ao
processo de acumulação de capital e que não correspondem aos interesses diretos da iniciativa privada, com
destaque para a infra-estrutura básica (Dain, 1985; Draibe, 1985).
180
CNAEE, que passará, mais à frente, por uma redefinição formal de suas
atribuições e forma de atuação.
Em conexão às transformações na dinâmica de funcionamento do
sistema,
processam-se
também
mudanças
nas
características
de seus
investimentos produtivos, tendo como traço saliente o salto na escala técnica e
econômica dos empreendimentos hidrelétricos, esboçado com a construção da
usina de Paulo Afonso, para se consolidar com a implantação de Três Marias e
Furnas – ambas iniciativas do Governo Kubitschek. Como efeito lateral da
ampliação do porte das unidades geradoras, os impactos sócio-ambientais
ocasionados pelos projetos do setor, até então negligenciáveis e negligenciados,
tendem a adquirir crescente magnitude e complexidade, suscitando a reação e
mobilização das comunidades atingidas. A emergência desses novos interesses e
atores significa mais que a introdução de novas dificuldades a serem enfrentadas
pelos investimentos do sistema. Assinala a materialização de uma dissonância
entre as exigências dos processos reais e as práticas convencionalmente
adotadas na negociação das perdas impostas à população, dando forma a um
novo tipo de problema, que irá exigir o aprimoramento dos dispositivos
regulatórios do setor, cuja materialização vai se dar apenas em meados dos anos
oitenta.
1. O “imobilismo” do Governo Dutra e o agravamento do estrangulamento
energético do país
Embora o novo cenário internacional que emerge do pós-guerra
sinalizasse para a diluição das restrições econômicas e financeiras externas
impostas pelo conflito mundial à economia brasileira, não se observam, no curto a
médio prazo, alterações de maior relevância em relação à situação anterior. De
um lado, o esforço de reconstrução das economias européias e japonesa tende a
polarizar os fluxos de capital no imediato pós-guerra, mantendo ou mesmo
aprofundando as dificuldades encontradas pelo país no acesso a financiamentos
e na atração de investimentos produtivos (Diniz, 1997; Saretta, 1997; Lima, 1995).
181
De outro, a flexibilização das restrições aos fluxos de bens e serviços esbarra no
rápido esgotamento das reservas nacionais acumuladas durante o conflito
mundial (Saretta, 1997; Baer, 1995; Gonçalves et al, 1998), limitando, em
particular, a capacidade de se importar máquinas, equipamentos e insumos
necessários à retomada de um ciclo sustentado de crescimento econômico.
Com a restauração da ordem democrática e a concomitante
convocação de eleições gerais para os cargos do Executivo, assume o poder o
General Eurico G. Dutra, eleito para um mandato presidencial de cinco anos
(1946-51). Embora a concepção intervencionista do Estado tenha sido preservada
no tocante à moldura institucional, a forma e o direcionamento imprimidos ao
exercício do poder político passam por sensíveis alterações sob o novo governo,
em especial no campo econômico, comparativamente à administração varguista
que o antecede. A despeito de divergências interpretativas quanto às diretrizes e
propósitos gerais que nortearam a gestão pública no período (Ianni, 1977;
Saretta, 1997; Draibe, 1985), há razoável consenso na literatura especializada
que
as
ações
implementadas
significaram,
na
prática,
uma
relativa
desmobilização do ativismo estatal prevalecente à época do regime do Estado
Novo (Draibe, 1985; Saretta, 1997; Mendonça, 1990).
De fato, em contraste com a condução da administração pública sob o
comando de Vargas, a política econômica do Governo Dutra não se articula em
torno de uma agenda desenvolvimentista, conferindo prioridade à estabilização do
ambiente macroeconômico, congruente com a orientação liberal prevalecente
entre os novos gestores do Executivo federal (Ianni, 1977, Saretta, 1997). Esse
realinhamento da ação governativa implica, objetivamente, o deslocamento, para
plano secundário, das questões relativas à promoção da industrialização e
crescimento
da economia, com desdobramentos sobre a dinâmica de
funcionamento do aparelho estatal. De um lado, os organismos “potencialmente
capazes de cumprir funções centralizadoras de coordenação e planejamento”
(Draibe, 1985: 141), herdados da administração varguista, passam por um
processo de esvaziamento de atribuições e da autonomia decisória, tornando, em
182
simultâneo, a gestão pública mais permeável a ingerências de interesses políticopartidários ou de segmentos incrustados no aparato burocrático do governo
(Saretta, 1997; Lima, 1984). De outro, há um refluxo no acionamento de
instrumentos de apoio e estímulo às atividades produtivas (Draibe, 1985; Saretta,
1997), corolário da ausência de objetivos concretos a serem alcançados no
tocante à expansão da economia (Draibe, 1985).
As atividades do sistema elétrico não escapam aos efeitos dessa
reorientação imposta à política pública na gestão Dutra. Acompanhando a
redução do intervencionismo estatal no campo econômico, toma forma um quadro
de relativa “inércia” político-institucional no setor. Em termos mais específicos, a
atuação governamental relacionada aos serviços de eletricidade vai se
caracterizar, em essência, por iniciativas pontuais, pouco consistentes e de curto
alcance operacional. Sob a ótica institucional, não se avança além da adoção de
medidas ad hoc, como a concessão de autorização para aumentos da tarifa de
energia, atendendo a pressões das empresas, em especial as grandes
concessionárias de capital estrangeiro, que dispunham de um eficiente sistema de
lobby junto ao governo e ao Congresso (Leal, 1988, depoimento; Leite, 1988,
depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O quadro pouco
se altera sob a ótica produtiva, em que pese a iniciativa governamental de propor
uma programação de investimentos em geração de energia elétrica, incluída no
âmbito do Plano Salte47.
A intervenção mais significativa da administração Dutra no campo das
atividades elétricas remete à criação da Companhia Hidro Elétrica do São
Francisco (Chesf), dando partida para a construção da primeira etapa do
47
Elaborado em 1948, sob a coordenação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o
plano sistematizava sugestões de diversos ministérios, enfatizando as áreas de saúde, alimentação,
transporte e energia (Lafer, 1975). No tocante à área de energia, a programação proposta, além de composta
por relação de projetos definida sem critérios consistentes e sistematizados de priorização (Saretta, 1977;
Draibe, 1985), não contava com o necessário suporte institucional e financeiro à sua implementação (Lessa,
1975; Draibe, 1985; Lima, 1984). Apoiada numa combinação complexa e ineficaz de receita tributária e
emissão de títulos públicos (Draibe, 1985), estava condenada, de partida, ao fracasso operacional.
183
aproveitamento hidrelétrico de Paulo Afonso. No entanto, além de representar
uma ação isolada de governo, tal iniciativa traduz, na prática, a continuidade da
implementação de projeto concebido durante o regime do Estado Novo48, e que
fôra incluído no texto da Constituição de 46 (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988), sob pressão da mobilização de parlamentares e governadores
nordestinos (Oliveira, 1987, depoimento; Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988). Tratava-se, ademais, de investimento cuja concepção extrapolava
os parâmetros decisórios do setor elétrico, guardando relação mais estreita com
objetivos de desenvolvimento regional ou, mais especificamente, a tentativa de
reproduzir, no vale do Rio São Francisco, a experiência americana do Tennessee
Valley Authority (TVA)49, avaliada como exitosa por parcela significativa da
representação política no Congresso (Lopes, 1991, depoimento; Ferraz, 1993,
depoimento). A propósito da questão, cabe registrar a posição defendida
explicitamente pelo CNAEE, que discordava da prioridade conferida à construção
Paulo Afonso, por considerar mais emergencial a canalização de recursos para a
expansão do parque gerador da região Sudeste (Lima, 1995), então marcado por
crescente déficit energético.
Restritas a intervenções tópicas e sem diretrizes consistentes no
tocante aos rumos do desenvolvimento do sistema, as iniciativas do Governo
Dutra na área de energia elétrica vão se revelar incongruentes com a dinâmica
das transformações sócio-econômicas em curso no país. O resultado será a
rápida deterioração na qualidade dos serviços prestados pelas empresas
concessionárias, aprofundando tendências já delineadas ao longo do transcurso
da Segunda Guerra Mundial. Sem ações mais efetivas do poder público no
tocante ao incremento da capacidade de atendimento do sistema, o déficit no
suprimento energético se dissemina rapidamente por diferentes regiões do país,
tornando inevitável a adoção de medidas de racionamento (Centro da Memória da
48
A criação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) foi proposta através do Decreto-Lei 8.031,
de 03 de outubro de 1945, tendo como objetivo o aproveitamento do potencial hidráulico da cachoeira de
Paulo Afonso (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
49
Projeto implantado nos USA, na década de trinta, tendo por concepção o aproveitamento múltiplo das
águas do rio Tennessee, o que envolvia geração de energia, irrigação e navegação (Lima, 1995).
184
Eletricidade no Brasil, 1996). Isto impõe inegáveis custos ao conjunto da
sociedade nacional e contribui para reforçar mudanças institucionais e
organizacionais no setor, corporificadas na ampliação da gestão direta das
atividades de geração e distribuição de eletricidade tendo como protagonistas
administrações estaduais, num processo que se iniciara timidamente nos anos
finais do regime do Estado Novo.
1.1
Agravamento do déficit de energia, racionamento e expansão das
empresas energéticas estaduais
A despeito da ausência de uma política de apoio e fomento à expansão
da economia por parte do Governo Dutra (Draibe, 1985; Mendonça, 1990), a
atividade produtiva brasileira cresce a uma taxa média na faixa de 6,0% na
segunda metade da década de quarenta. O desempenho do setor industrial
revela-se ainda mais favorável, com incremento à taxa média de 7,9% ao ano no
período (Saretta, 1996). Tratada como “industrialização espontânea” (Skidmore,
1975) ou “industrialização não intencional” (Lessa, 1975), esse desempenho
espelha, em larga medida, o aproveitamento mais eficiente do aumento da
capacidade instalada de produção que havia ocorrido durante o período do
Estado Novo (Baer, 1995; Coutinho e Reichstul, 1977). Como seria de se esperar,
o crescimento acelerado da indústria, que se faz acompanhar de concomitante
avanço do processo de urbanização, traz, como subproduto, a intensificação da
pressão da demanda sobre a oferta de energia elétrica.
As respostas produtivas do sistema elétrico aos estímulos do mercado,
contudo, serão parciais e insuficientes para garantir um ritmo adequado de
expansão no suprimento energético. Embora favorecidos pela redução das
dificuldades na importação de máquinas e equipamentos, decorrente da
progressiva “normalização” dos fluxos internacionais de comércio após o término
da Segunda Guerra, os investimentos em projetos hidrelétricos tendem a ficar
muito aquém dos requeridos por uma demanda cujo crescimento se fazia não
apenas de forma horizontal, pela incorporação de novos consumidores, mas
185
também de forma vertical, pela intensificação do uso de energia, tanto familiar
quanto produtiva (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988, Mielnik e
Neves, 1988). Esse descompasso entre as decisões de investimento do setor e a
disposição a consumir da sociedade pode ser atribuído, em larga medida, aos
efeitos combinados de uma série de elementos dos contextos interno e externo
sobre as motivações e condutas estratégicas das principais empresas atuantes na
área.
Um primeiro e importante conjunto de fatores tem a ver com o caráter
incompleto das mudanças nos princípios e regras de funcionamento do sistema,
em especial no tocante à política tarifária, que repercute sobre a margem de
riscos e incertezas na realização de novos investimentos no setor. A despeito dos
inegáveis avanços ocorridos durante o período do Estado Novo, continuava em
aberto o detalhamento operacional de critérios e procedimentos indispensáveis à
definição das tarifas a serem cobradas na prestação do serviço, em conformidade
com os dispositivos do Código. As poucas inovações introduzidas pelo Governo
Dutra tangenciaram o problema, sem implicar aportes expressivos para o
aperfeiçoamento e a consolidação do esforço reformista iniciado nos anos trinta.
De um lado,
procedeu-se à eliminação do princípio constitucional de
nacionalização progressiva das fontes de energia hidráulica (Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988), com o intuito de reposicionar a atividade de forma
mais favorável no circuito dos fluxos internacionais de capital. De outro,
promoveu-se a regularização dos aproveitamentos das quedas d’água já
utilizadas quando da promulgação do Código de Águas, dispensando-os da
outorga de concessão, independentemente da revisão dos contratos de prestação
de serviços (Calabi et al., 1983), o que atua no sentido de
situação de fato,
“legitimar” uma
mas pouco contribuindo para a redução da margem de
incertezas e riscos para as empresas do setor.
Um segundo conjunto de fatores guarda relação com as dificuldades
enfrentadas pelas concessionárias no tocante ao financiamento de seus
investimentos produtivos, numa circunstância em que a expansão do parque
186
gerador avançava no sentido de projetos com crescentes exigências de aporte de
recursos. Embora tivesse levantado o “congelamento” imposto às tarifas de
energia,
o
governo
federal
continuava
exercendo
controle
sobre
os
reajustamentos de preço praticados pelas empresas, o que acabava repercutindo
sobre a capacidade de autofinanciamento do sistema (Coutinho e Reichstul, 1977;
Cotrim, 1987, depoimento; Bhering, 1988, depoimento). Por sua vez, o estreito
mercado financeiro interno e, mais importante, a persistência do fechamento do
mercado externo, cujos recursos estavam sendo drenados para o esforço de
reconstrução das economias européias e japonesa (Lima, 1995; Saretta, 1997;
Diniz, 1997), não favoreciam a obtenção de empréstimos pelo setor. Ainda que
esses constrangimentos tenham motivado iniciativas no sentido da estruturação
de fontes específicas de recursos para os projetos de expansão do sistema,
consubstanciadas na proposta de criação de uma tributação sobre os serviços de
eletricidade, sob a concepção de imposto único (Lima, 1985; Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988), não ocorreram, durante o Governo Dutra, os
necessários avanços em sua operacionalização.
Sem “estímulos” adequados de mercado e com dificuldades na
mobilização de recursos, pouco se altera o quadro de retraimento das
concessionárias privadas quanto ao lançamento de novos empreendimentos
hidrelétricos50. Nas circunstâncias de uma contenção dos investimentos de tais
empresas, o principal empreendimento hidrelétrico do período vai ser implantado
pelo governo federal, através de um projeto isolado, representado pela construção
da usina de Paulo Afonso, cuja viabilização, vale ressaltar, só foi possível em
função de empréstimo externo contratado junto ao BIRD. Sem o lançamento de
outros projetos produtivos de porte, a expansão da capacidade produtiva do
50
Num ambiente instável, de elevada margem de riscos e incertezas, o grupo Light concentra seus
investimentos basicamente no aumento da potência instalada de usinas hidrelétricas já construídas estratégia que potencializava a redução, absoluta e relativa, do volume de recursos a serem mobilizados. Em
São Paulo, foram ampliadas as instalações da usina Henry Borden; no Rio de Janeiro, as usinas Pontes e
Ilha dos Pombos também receberam novos grupos geradores (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1996). Os investimentos do grupo Amforp, por sua vez, ficaram restritos essencialmente à implantação de
projetos hidrelétricos de pequeno porte (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996; Cotrim, 1988,
depoimento), menos exigentes quanto ao aporte de capital.
187
sistema elétrico na segunda metade da década de quarenta se faz sustentada
principalmente na introdução de novas unidades geradoras em usinas
pertencentes à Light (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Apesar
de expressivo, sobretudo se comparado com o desempenho da primeira metade
da década e o da década anterior, o crescimento da potência instalada no
período, da ordem de 7,0% ao ano, fica aquém do ritmo de expansão da
demanda. Em consequência, a escassez de energia, cujos sinais vinham se
manifestando de forma episódica ou localizada desde a transição dos anos trinta
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), deixa de ser uma ameaça
para se tornar uma realidade, assumindo caráter estrutural no período. O déficit
no balanço energético se espraia pela maior parte país, afetando especialmente
aos estados das regiões Sul e Sudeste (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1996).
Aspectos objetivos do contexto influenciam as preferências e as
condutas estratégicas dos atores afetos aos mesmos. Sob esse prisma
interpretativo, a instauração de um quadro de “crise” energética terá efeitos em
duas direções principais: a efetiva “institucionalização” da prática de racionamento
de energia elétrica e o estímulo ao avanço da ação estatal sobre a esfera da
produção. O primeiro ganha materialidade na atuação do CNAEE, que concentra
esforços no gerenciamento da escassez de energia, em detrimento de outras
ações inscritas no amplo espectro de suas atribuições institucionais. O segundo
se expressa no aprofundamento das iniciativas que vinham sendo esboçadas por
governos estaduais em busca de padrões alternativos de organização das
atividades produtivas do sistema capazes de assegurar maior eficiência social na
prestação do serviço (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996),
impulsionadas, de certa forma, pelo “imobilismo” da administração federal. Como
pano de fundo, assiste-se à inclusão do debate em torno do desenvolvimento do
setor na agenda das principais questões de interesse nacional.
O racionamento de energia elétrica, instituído na primeira metade da
década de quarenta como uma medida de caráter preventivo, não chegou a ser
188
efetivamente implementado no período. A expectativa do governo era de que as
medidas adotas com vistas à redução dos constrangimentos jurídicos e
administrativos impostos pelo Código de Águas ao desenvolvimento das
atividades do sistema permitissem uma retomada dos investimentos produtivos
das concessionárias privadas. Os resultados insatisfatórios obtidos com tal
estratégia, traduzidos no agravamento do déficit energético ocorrido no pósguerra, no entanto, tornaram inevitável o controle do consumo. Sem êxito na
tentativa de promover a adequação da oferta face à não cooperação das
empresas privadas com os propósitos da política pública, a saída, compulsória,
recai na administração da demanda. Incorporado ao cotidiano da sociedade
brasileira a partir da segunda metade dos anos quarenta, o racionamento vai se
tornar prática corrente até meados da década de sessenta (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1996), quando o suprimento do mercado volta a se
normalizar em função da maturação de investimentos produtivos que serão
realizados pelo Estado.
Em paralelo, as inserções das administrações estaduais na esfera
produtiva do setor, que começaram a se esboçar em meados dos anos trinta
como resposta ao relativo “desinteresse” das empresas concessionárias quanto à
ampliação de seus sistemas de geração e distribuição (Cotrim, 1988,
depoimento), ganham impulso a partir da segunda metade da década de
quarenta, tendo como principais cenários Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Trata-se, em essência, de um aprofundamento de decisões anteriores, onde o
poder público busca suprir, através da alocação direta de recursos, necessidades
que considera essenciais no tocante à prestação do serviço. Em ambos os
estados, o esforço empreendido em tal direção aparece associado a objetivos de
expansão e diversificação da base industrial e de correção de desequilíbrios
regionais traçados pelos respectivos governos, levando à realização de
investimentos complementares ou suplementares aos deficientes sistemas
gerenciados pela iniciativa privada (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988, 1996; Diniz, 1997).
189
O caráter estratégico assumido pelos investimentos em geração no
âmbito da política pública de Minas Gerais, cujos primeiros sinais transparecem
na construção da usina de Gafanhoto, adquire contornos institucionais mais
sólidos e sistematizados quando da proposição do Plano de Recuperação
Econômica e Fomento da Produção, elaborado na administração Milton Campos
(1947-51). Com o plano, consolida-se a idéia de que a industrialização era
indispensável à superação do atraso relativo da economia mineira frente aos
estados mais dinâmicos da federação – São Paulo e Rio de Janeiro -, o que
demandava a superação dos estrangulamentos existentes nas áreas de energia
elétrica e transporte (Diniz, 1985,1997). Defrontado com o reduzido volume de
recursos que vinham sendo canalizados pelas concessionárias privadas para a
expansão dos serviços de eletricidade, o governo mineiro propõe-se a ampliar
potência instalada do estado, através do aumento de sua participação na
construção de hidrelétricas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996).
Na consecução desse propósito, desenvolve um esforço de aparelhamento
institucional que engloba, entre outros elementos, a criação do Departamento de
Águas e Energia Elétrica de Minas Gerais, a estruturação do Fundo Estadual de
Eletrificação e a elaboração do Plano de Eletrificação de Minas Gerais. Executado
a partir da transição para os anos cinquenta, o plano contempla, como principal
investimento
produtivo,
a
implantação
da
usina
de
Salto
Grande
-
empreendimento de médio porte, com capacidade de geração da ordem de 50
MW -, cujas obras se iniciam em 1949 (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1996). Num processo de crescente aprimoramento institucional, a inserção
estadual nas atividades do sistema adquire contornos irreversíveis pouco mais à
frente, na administração Juscelino Kubitschek (1951-55), quando se dá a criação
das Centrais Elétricas de Minas Gerais (CEMIG)
Movido por razões similares, o governo do Rio Grande do Sul caminha
aceleradamente na direção da conquista de uma presença marcante no âmbito do
sistema elétrico estadual. O Plano de Eletrificação gaúcho, aprovado pelo CNAEE
em 1945, preconizava não apenas um papel central para a administração
190
estadual no tocante à realização de investimentos na produção e transmissão de
energia, mas a progressiva transferência de concessões outorgadas à iniciativa
privada, assim que expirados seus prazos de validade, para o domínio da CEEE.
Dando materialidade a essa orientação, a empresa energética do estado
expande-se rapidamente,
passando a responder, já na segunda metade dos
anos quarenta, por razoável parcela da capacidade instalada do parque gerador
regional, para se transformar, em meados da década seguinte, numa das
principais concessionárias do setor elétrico brasileiro (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1996).
1.2 A discussão de “saídas” para a crise energética e a indefinição sobre os
rumos do setor
A configuração estrutural assumida pelo déficit energético, decorrente
da gradativa e sistemática deterioração da qualidade dos serviços prestados
pelas concessionárias privadas, leva a que as questões relativas à atividade
assumam crescente centralidade na pauta dos assuntos de interesse nacional,
com o acirramento dos debates sobre os rumos do desenvolvimento do setor. O
cerne das discussões, acompanhadas de perto pela imprensa nacional (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), tende a gravitar em torno do papel mais
apropriado para o poder público na área correlativamente ao capital: o ajuste
negociado dos mecanismos de regulação, isto é, o aprimoramento das funções
reguladoras do Estado, preservando o domínio da iniciativa privada no sistema,
ou a alocação direta de recursos nas atividades do setor, com uma inserção
estatal mais incisiva na esfera da produção (Saretta, 1977; Mielnik e Neves, 1988;
Draibe, 1985; Lima Sobrinho; 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Um
dos principais fóruns onde vai se dar a abordagem do problema e das possíveis
alternativas de “saída” para a crise energética será a Comissão Técnica Mista
191
Brasileiro-Americana de Estudos Econômicos, mais conhecida como Missão
Abbink51.
Dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da comissão resultam, entre
outros produtos, a elaboração de uma programação de investimentos na
expansão do sistema, embora esta não seja exatamente sua contribuição de
maior relevância. De fato, a programação proposta, além de se limitar à definição
de metas referentes ao incremento da potência instalada do parque de geração
nacional e da rede de transmissão sem o correspondente detalhamento técnico e
operacional dos projetos selecionados, pouco difere de um endosso aos objetivos
e ações definidas pelo Plano Salte (Lima, 1984), que havia sido encaminhado,
quase à mesma época, pelo governo federal à apreciação do Congresso. O
principal aporte aduzido pela Missão Abbink tem a ver
com sua análise da
trajetória e das perspectivas de desenvolvimento da atividade, onde são
sistematizadas as questões que vão estar no centro dos processos decisórios
relativos à formulação das políticas para o setor ao longo das décadas
subsequentes: o caráter estratégico dos investimentos em geração de energia, de
um lado, e a necessidade da estruturação de fontes de financiamento para a
viabilização de tais investimentos, de outro.
Quanto ao primeiro aspecto, os trabalhos desenvolvidos pela comissão
caracterizam as atividades elétricas como uma das áreas “críticas” da economia
brasileira. Em termos mais específicos, os problemas no suprimento de energia
são percebidos e tratados como “gargalo” ou ponto de estrangulamento para o
desenvolvimento nacional, e seu equacionamento, condição indispensável à
51
Constituída formalmente em 1948, dando continuidade ao processo de cooperação técnico-institucional
entre os dois países, que se iniciara durante o período da Segunda Guerra Mundial com a denominada
Missão Cooke, tal comissão tinha, como principais objetivos, a identificação e análise dos obstáculos ou
constrangimentos que se interpunham ao crescimento da economia brasileira e a correspondente proposição
de políticas capazes de assegurar a dinamização do desenvolvimento nacional (Calabi e al, 1983; Lima,
1984; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Repercutindo os debates em curso na sociedade,
os problemas relacionados ao setor elétrico vão assumir posição de destaque em sua agenda de trabalho.
192
viabilização do processo de industrialização da economia (Calabi et al, 1983;
Lima, 1984). No que se refere ao segundo aspecto, estabelecem uma relação
direta entre as deficiências da infra-estrutura energética e as dificuldades
encontradas no aporte de recursos para a promoção de investimentos produtivos
na área. A expansão do sistema, segundo esse diagnóstico, esbarrava na baixa
capacidade de acumulação das concessionárias, atribuída à perda de
rentabilidade na prestação do serviço decorrente do controle tarifário imposto pelo
Código de Águas, e na estreiteza do mercado financeiro interno, pouco
desenvolvido e, como tal, incapaz de atender adequadamente os requisitos de
financiamento do setor (Calabi et al, 1983; Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
Face a essa percepção do problema, a discussão de fontes de
recursos para a viabilização dos projetos produtivos do setor merece atenção
especial por parte da comissão, que sugere três opções, não mutuamente
exclusivas, para sua resolução, todas subordinadas a uma visão “privatista” da
prestação do serviço. A primeira consiste na revisão dos dispositivos de fixação
de tarifas, com o intuito de recuperar sua função de principal mecanismo de
financiamento dos investimentos das empresas. Recorrendo ao argumento do
princípio de autofinanciamento, preconizado pelo próprio Código de Águas, a
comissão propõe a adoção de aumentos reais nos níveis de preços então
praticados pelo sistema, endossando aquela que se constituía na principal
reivindicação das grandes concessionárias, em especial a Light (Cotrim, 1987,
depoimento; Bhering, 1987, depoimento; Lima, 1984). A segunda proposição
pode ser lida como um instrumento para contornar a incipiência da oferta de
crédito por parte do mercado financeiro nacional (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988; Baer, 1995; Draibe, 1985). Isto se expressa na
sugestão da criação de um fundo específico para o financiamento dos
empreendimentos setoriais, a ser alimentado por recursos oriundos da cobrança
de uma taxa adicional à tarifa de energia, o que, na prática, traduzia um aumento
indireto ou disfarçado nos preços cobrados ao consumidor. Tal proposta
193
contemplava a estruturação de uma espécie de “banco de eletrificação”, com a
atribuição de gerenciar a aplicação dos recursos arrecadados pelo fundo (Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A terceira e última alternativa
sugerida guardava relação de complementaridade com a segunda e se traduzia
na captação de recursos no mercado financeiro externo, principalmente através
da contratação de empréstimos junto a organismos como o BIRD e o Export
Import Bank (Eximbank) – este último, órgão de fomento ao comércio exterior do
governo americano (Lima, 1995).
Em que pese a premência da resolução da crise energética
experimentada pelo país, tendo em vista seus efeitos perversos para a sociedade,
a segunda metade da década de quarenta vai terminar bsem avanços importantes
no tocante à definição dos rumos a serem seguidos pelo desenvolvimento da
atividade. De um lado, proposições de mudanças institucionais na linha sugerida
pela Missão Abbink não tiveram ressonância imediata sobre a política setorial,
dado o próprio “imobilismo” que marca a gestão pública no Governo Dutra. De
outro, iniciativas como a criação da Chesf e o início das obras da usina de Paulo
Afonso, no plano federal, e a construção de centrais hidrelétricas, no plano
estadual,
apesar
de
importantes
enquanto
manifestação
de
tendência,
caracterizavam-se como intervenções insulares, respondendo a problemas
regionais, o que as tornavam insuficientes, por si só, para imprimir uma conotação
estatizante ao sistema. Em síntese, nenhuma das concepções polares de
ordenamento do setor – a prevalência de uma lógica de funcionamento lastreada
na iniciativa privada ou a estatização da prestação do serviço - consegue
aglutinar, no período, força política suficiente para impor, seja através do
Executivo ou do Legislativo, um direcionamento objetivo a um desenho
institucional ao mesmo tempo incompleto e tensionado por mudanças.
194
2. O segundo Governo Vargas e a reestruturação institucional do sistema
elétrico
O retorno de Getúlio Vargas à Presidência da República, em pleito
direto ocorrido em 1951, assinala a retomada do compromisso do governo federal
com o propósito de promoção do desenvolvimento nacional, em estreita conexão
com o esforço de industrialização (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Mendonça, 1990;
Baer, 1996; Ianni, 1977). A materialização desse propósito irá exigir decisões
concretas no tocante ao padrão de intervenção estatal nos processos sócioeconômicos de um modo geral, implicando significativas mudanças na formulação
e implementação da política pública, comparativamente ao Governo Dutra. Dentre
as questões que serão colocadas em primeiro plano na agenda pública incluemse os problemas relacionados ao suprimento energético (Draibe, 1985; Leopoldi,
1997, Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Num endosso a diversos estudos e diagnósticos realizados ao longo
dos anos quarenta, em especial os trabalhos da Missão Abbink, as deficiências
dos serviços de eletricidade são percebidas como “ponto de estrangulamento” do
desenvolvimento nacional e, por consequência, obstáculo a ser superado como
requisito para o avanço industrial do país (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997). Isto se
explicita, em particular, no texto da Mensagem Presidencial enviada ao
Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa de 195152. De
acordo com a análise formulada em tal documento, a condição “para que a
eletricidade seja um elemento do progresso e permita o desenvolvimento
industrial não é meramente (..) que seja barata, (...) [mas] sobretudo que seja
abundante” (Vargas, 1952: 222). Além disso, e igualmente importante, o mesmo
documento afirma que a “oferta de energia deve preceder e estimular a demanda”
(Vargas, 1952: 222), traduzindo uma mudança radical de enfoque na concepção
da política setorial. Não se trata apenas de assegurar a adequação da oferta à
demanda - orientação até então dominante -, mas de fazer, dos investimentos na
52
As mensagens presidenciais ao Congresso representam, conforme Draibe (1985), peças centrais utilizadas
pela administração varguista na apresentação e defesa de suas propostas de governo.
195
infra-estrutura energética, suporte e estímulo ao desenvolvimento (Corsi, 1997;
Leopoldi, 1997).
Percebida como elemento estratégico para o êxito do processo de
industrialização, a promoção de um salto de qualidade na infra-estrutura
energética
passava,
no
diagnóstico
oficial,
pelo
aprofundamento
do
intervencionismo estatal na área, corolário das sérias dificuldades encontradas
pelas empresas privadas em acompanhar, de forma satisfatória, o crescimento da
demanda de eletricidade, em especial as necessidades de consumo do segmento
produtivo. Em termos mais específicos, a deterioração que se observava na
qualidade dos serviços de eletricidade só poderia ser revertida através da
realização de investimentos públicos no sistema, ainda que complementar ao
capital privado. Essa inflexão na atuação setorial do governo, por sua vez,
implicava a reconfiguração das bases de organização da atividade, o que envolvia
ações no campo institucional.
Os caminhos potencialmente abertos à consideração governamental
podem ser agrupados, para efeitos analíticos, em duas opções principais: a
promoção de uma “reinstitucionalização” do setor, significando a transição para
um arranjo institucional estruturado em torno de princípios e regras de
funcionamento do sistema distintas das anteriores; ou o “aprimoramento
institucional”, isto é, adaptações ou reformulações na institucionalidade vigente,
respeitados os limites por ela impostos (Jepperson, 1991; Lima Júnior, 1997). A
adoção da primeira alternativa supunha, concretamente, uma ruptura com o
arranjo institucional estabelecido pelo Código de Águas, promulgado na gestão
varguista anterior. Operando num contexto político redemocratizado, as ações do
Executivo no campo institucional defrontavam-se com limites impostos pela
divisão de poder com o Legislativo, o que dificultava, de partida, a introdução de
revisões de fundo no arcabouço jurídico-administrativo do setor, aumentando a
margem de riscos e incertezas quanto aos resultados da implementação dos
intentos reformistas. Sem contar com uma sólida base de sustentação
parlamentar (Leopoldi, 1997; Nunes, 1997, Ianni, 1977), a segunda alternativa
196
emergia como caminho mais indicado para o governo, à medida que minimizava
os custos que se antecipavam elevados de uma reforma mais radical. Além disso,
e mais importante, o Código de Águas ensejava oportunidades para alterações
relativamente amplas no arranjo organizacional e produtivo do sistema, sem
rupturas com o ordenamento institucional prevalecente.
2.1
Da regulação à intervenção direta: a concepção geral das reformas
setoriais pretendidas pela administração varguista
Independentemente
da
configuração
objetiva
das
mudanças
pretendidas na institucionalidade do setor, sua implementação exigia a obtenção
do apoio do Legislativo, onde o governo não dispunha de maioria parlamentar.
Com o intuito de “minimizar” as concessões ou compensações políticas que teria
de fazer na negociação da matéria, a estratégia adotada pela administração
varguista será orientada para a busca do maior grau possível de consenso quanto
à necessidade do incremento do intervencionismo estatal na atividade,
precedendo o encaminhamento propriamente dito das reformas, tendo como
principal veículo as mensagens presidenciais enviadas ao Congresso. Afinados
com os propósitos de gerar adesão e garantir sustentabilidade política às
decisões, tais documentos procuram demonstrar, através de argumentos
técnicos, não apenas a pertinência das propostas setoriais, sob a ótica do
interesse público, mas sua adequação do ponto de vista legal e operacional,
constituindo-se em recurso de convencimento político face à presumida
resistência do Legislativo.
O ponto de partida na “defesa” ou “legitimação” do incremento da
intervenção estatal no setor pretendida pelo Executivo federal é a ênfase nos
problemas provocados pelo estrangulamento energético para o conjunto da
sociedade brasileira. Em sintonia com tal propósito, a Mensagem Presidencial de
1951 afirma que “a falta de reserva de capacidade e as crises de eletricidade
representam processos de asfixia econômica de consequências funestas”
(Vargas, 1952: 222), constituindo, portanto, obstáculos ao desenvolvimento
197
industrial e progresso social da nação. Aceita essa premissa, a ampliação da
inserção do Estado na atividade não expressaria uma deliberação autônoma do
governo, mas um imperativo legal, já que tanto o Código de Águas quanto a
Constituição de 46 atribuíam ao poder público a responsabilidade pela adequada
prestação dos serviços de eletricidade.
A existência de razões válidas justificava mas
por si só não
assegurava, na visão do governo, a plena “legitimação” do avanço estatal sobre a
esfera da produção. Com isto, a linha de argumentação será dirigida no sentido
de mostrar que a realização de investimentos públicos na expansão do sistema
constituía também a estratégia mais apropriada para a “solução” do problema, e
não mera preferência por políticas de cunho estatizante. Para tanto, o discurso
oficial recorre à “tese” da falta de opções ao alcance do poder público, isto é, da
inexistência de outras alternativas satisfatórias de resolução do estrangulamento
no suprimento de energia elétrica passíveis de serem implementadas pelo
Executivo federal. De acordo com este raciocínio, a inserção do Estado nas
atividades do setor seria, por exclusão, a alternativa mais adequada, já que a
única factível.
A validação desse argumento supunha “demonstrar” as reduzidas
perspectivas de sucesso de qualquer ação governamental voltada a promover
uma retomada dos investimentos produtivos das empresas privadas compatível
com os requisitos da demanda. A retórica oficial vai se colocar aqui em posição
diametralmente oposta a interpretações que associavam o descompasso entre
crescimento da produção e do consumo de energia elétrica a constrangimentos
institucionais criados pelo arcabouço de ordenamento e controle do setor à
atuação das concessionárias. Para o governo, o problema teria raízes muito mais
profundas e complexas, fundadas no próprio declínio do interesse do capital pelas
atividades elétricas, circunstância em que não poderia ser equacionado através
da mera revisão dos mecanismos regulatórios, como vinha sendo tentado até
então, exigindo a intervenção direta no sistema.
198
O eixo central do argumento construído pelo Governo Vargas consiste
em dissociar a insuficiência dos investimentos privados no sistema do
desestímulo provocado pela redução dos níveis de retorno econômico da
atividade determinada pelo controle das tarifas de energia53 – tese defendida no
diagnóstico setorial elaborado pela Missão Abbink (Cotrim, 1987, depoimento;
Leite, 1988, depoimento). A forma como a questão é tratada no âmbito da
Mensagem Presidencial de 1951 não deixa maiores dúvidas a esse respeito ao
afirmar que, “apesar de lucrativas, as grandes empresas atuantes na área não
têm atraído novos capitais em proporção conveniente e vêm retardando seu ritmo
de expansão para não ultrapassar as possibilidades de autofinanciamento ou de
obtenção de créditos com o apoio dos governos” (Vargas, 1952: 220). Vale dizer,
a despeito das oportunidades para a obtenção de lucro proporcionadas pelo setor,
as empresas atuantes na área vinham adotando uma postura conservadora no
tocante à expansão do sistema, mantendo os investimentos dentro dos limites
determinados pelo retorno econômico auferido com a prestação do serviço e
recorrendo basicamente a financiamentos facilitados, em algum nível, pela
interveniência do poder público.
O embasamento ao argumento é essencialmente empírico e se apoia
no paralelismo com os processos em curso nas principais economias capitalistas,
que vinham passando, no pós guerra, por uma onda de nacionalização de
empresas ligadas às atividades elétricas (Rosa et al, 1997). No texto da
Mensagem Presidencial, o governo afirma que esse fenômeno seria derivado do
“desinteresse do capital privado para serviços de utilidade pública” (Vargas, 1952:
220), do qual não escapariam nem mesmo os Estados Unidos. A emergência do
Estado empresário na área, que se esboçava progressivamente no país, não
expressaria, assim, uma singularidade brasileira, mas um movimento sintonizado
53
Ainda que reconhecendo a pertinência de se complementar a regulamentação dos dispositivos tarifários
instituídos pelo Código de Águas, a interpretação oficial associava a retração da aplicação de recursos na
geração de eletricidade a uma tendência mais geral de mercado no sentido do redirecionamento do capital
para segmentos econômicos de lucros mais imediatos e amortização mais rápida e não aos efeitos do
controle dos níveis de preços determinados pela política pública (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
199
com a dinâmica do capitalismo internacional. Numa situação em que, apesar de
lucrativas, as grandes concessionárias privadas não proporcionavam respostas
eficientes para o atendimento da demanda efetiva do mercado, os investimentos
públicos surgiam como a solução possível para o problema, não constituindo,
portanto, uma ingerência indevida num campo de atuação até então sob domínio
da iniciativa privada. Num desdobramento lógico, o passo seguinte será a
definição de parâmetros para a demarcação da fronteira produtiva entre as
esferas privada e pública.
Refletindo, mais uma vez, a preocupação com a viabilização política de
suas iniciativas no setor, a diretriz geral proposta pelo governo para o
encaminhamento do processo consiste em deixar a cargo do poder público
basicamente “a responsabilidade de construir sistemas elétricos onde sua falta
(...) representasse (...) maiores deficiências” (Vargas, 1952: 222). Dito de outra
forma, a intervenção estatal não se processaria às expensas da iniciativa privada,
mas em complemento à mesma, isto é, para suprir ineficiências ou lacunas de
sua atuação. Assegurava-se formalmente precedência ao capital, sinalizando-se
na direção de o espaço reservado às empresas estatais ser determinado, ainda
que por via indireta, pelas próprias empresas privadas. A ênfase no caráter
subsidiário atribuído aos investimentos públicos ganha relevância ao se observar
que os maiores estrangulamentos no suprimento energético se concentravam nos
principais centros urbano-industriais das regiões Sul e Sudeste (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1996). Assim, a atuação empresarial do Estado
tenderia a convergir, na prática, para áreas onde operavam as mais importantes
concessionárias da Light e da Amforp - circunstância que transformava o avanço
das empresas públicas numa ameaça concreta, e não apenas potencial, aos
interesses destes grupos.
Se a fricção com os principais interesses constituídos do setor
prenunciava-se inevitável (Leite, 1988, depoimento; Lima Sobrinho, 1987,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento), o governo procura reforçar previamente
a base de legitimidade de suas decisões, atrelando-as à estrita observância dos
200
limites estabelecidos pelos princípios normatizadores do Código de Águas. Assim,
além de orientados para as áreas com maiores problemas no suprimento
energético, os investimentos estatais, como proposto na Mensagem Presidencial,
seriam canalizados prioritariamente para as atividades de geração e transmissão
de energia, onde se concentravam os estrangulamentos do sistema. Ademais,
contemplariam sobretudo empreendimentos de grande porte que, por serem mais
exigentes de recursos e apresentarem maior prazo de maturação, revelavam-se,
em princípio, menos atraentes para o capital. Em síntese, não se pretendia, de
acordo com o discurso oficial, concorrer com as empresas privadas nem avançar
além daquilo que já vinha sendo feito, cabendo “ao governo federal (...) a iniciativa
de grandes empreendimentos, de larga projeção nacional, como (...) a Usina de
Paulo Afonso” (Vargas, 1952: 222-223).
A implementação da política setorial não implicaria, portanto, uma
ruptura com o capital privado, mas a estruturação de um sistema híbrido, no qual
a intervenção estatal assumiria caráter supletivo às ações das concessionárias
privadas já estabelecidas ou que viessem a se estabelecer na área. Num esforço
adicional de cooptação de apoio político às suas proposições, o governo recorre,
mais uma vez, ao paralelismo com o cenário internacional, salientando, na
mesma Mensagem Presidencial ao Congresso, que, ao contrário da “tendência
nacionalizadora nos principais países europeus, como a França e a Inglaterra”
(Vargas, 1952: 220), o avanço do intervencionismo estatal, no caso brasileiro,
teria caráter parcial, não expressando um fim em si mesmo, mas uma imposição
da própria dinâmica do capital. Em termos mais específicos, a demarcação do
espaço efetivamente ocupado pelo Estado nas atividades do sistema seria
contingente e reflexivo da atuação das concessionárias privadas, isto é, da
disposição e capacidade de inversão destas empresas face às exigências de
uma demanda energética em constante expansão.
A inflexão nas diretrizes setoriais da
política pública proposta pelo
governo supunha a criação de condições objetivas para a promoção dos
investimentos públicos na expansão do sistema. Isto demandava, de um lado, a
201
ampliação das bases de financiamento do setor, com a instituição de fontes
específicas de recursos para inversões na área, de forma a escapar aos
constrangimentos da dependência em relação à programação orçamentária
(Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). De outro, fazia-se necessário o reaparelhamento
administrativo do Executivo federal no tocante às atividades elétricas (Rangel,
1988, depoimento), já que a transição para um padrão de intervenção de recorte
empresarial não se coadunava com um arranjo operacional estruturado em torno
do exercício de uma função marcadamente regulatória.
O timing das mudanças institucionais, como observa Sola (1998), é
imprevisível e nem sempre coincide com o sentido de urgência imbricado nas
políticas públicas. Esse aspecto será implicitamente reconhecido e incorporado na
estratégia desenhada pela administração varguista para o setor. Refletindo a
premência de proporcionar respostas ágeis para a pressão da demanda por
energia elétrica, o governo se preocupa, em paralelo ao esforço de estruturação
dos mecanismos e instrumentos operacionais que irão dar suporte ao incremento
de suas ações empresariais na área, com a adoção de medidas voltadas à busca
de resultados mais imediatos sob a ótica produtiva. As ações com vistas à
consecução desse propósito convergem para a otimização do aproveitamento de
recursos passíveis de serem mobilizados, no curtíssimo prazo, para investimentos
no sistema, numa apropriação contingente de oportunidades proporcionadas pelo
contexto internacional, mais especificamente, o acesso a linhas de financiamentos
de organismos como o Banco Mundial (BIRD).
2.2 As medidas de curto prazo e seus efeitos a médio e longo prazos
Num endosso tácito a proposição feita pela Missão Abbink, a
contratação de empréstimos junto ao BIRD e Eximbank é percebida pelo governo
como a alternativa mais plausível para suprir, no curto prazo, a insuficiência de
recursos que vinha dificultando a promoção de investimentos em projetos
hidrelétricos. No entanto, ao contrário da comissão, a administração varguista
202
atribui centralidade ao Estado no processo, o que seria, na interpretação oficial,
congruente com contingências do
contexto internacional54. Além de constituir
elemento facilitador da captação de recursos externos para investimentos na
área, a intermediação pública representaria uma espécie de pré-requisito para o
incremento da atração de capital para outras atividades produtivas do pais. O
intervencionismo estatal atenderia, portanto, não apenas a interesses do sistema
elétrico, estrito senso, mas do conjunto da economia nacional, numa retórica onde
se evidencia, mais uma vez, a preocupação com a legitimação das decisões do
Executivo federal para o setor.
A implementação da estratégia de captação de recursos no exterior
será centralizada pelo governo federal na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos
de Desenvolvimento Econômico (CMBEU), num arranjo operacional típico de
processos de adaptação da ação às circunstâncias do contexto. Instalada
formalmente em julho de 1951, isto é, pouco depois da posse de Vargas na
Presidência da República, a comissão55 pode ser entendida como uma extensão
dos trabalhos desenvolvidos pela Missão Abbink, no sentido de ter sido
constituída com o propósito de conferir efetividade à recomendação, feita por esta
última, de o país recorrer ao capital externo para o financiamento de
investimentos de interesse nacional56. Tratava-se, a rigor, de uma forma de
mediação técnica entre o governo brasileiro e as agências de financiamento, que
supria a lacuna de um aparato interno com competência e capacidade
operacional para desempenhar com eficiência o papel de interlocutor externo.
54
A respeito da questão, o discurso governamental desenvolvido na Mensagem Presidencial ao Congresso
afirma que, “em face da experiência do pós-guerra na finança mundial, (...) deve-se esperar mais da
cooperação técnica e financeira de caráter público, até porque a maior aplicação de capitais privados
pressupõe a existência de condições que só podem ser criadas mediante inversões públicas em setores
básicos, tais como energia e transporte” (Vargas, 1952: 220).
55
Conforme Draibe, “a missão era composta por cem técnicos de ambos os países e estruturou-se em
comissões e subcomissões, cobrindo praticamente todas as áreas de atividade econômica” (1985: 159).
56
Cabe notar que, quando de sua instalação, “a CMBEU já contava com a garantia do Banco Mundial e do
Eximbank para a concessão de crédito aos projetos formulados na comissão, até o valor de US$ 250
milhões” (Leopoldi, 1997: 37).
203
Poucos projetos foram idealizados pela própria comissão: sua principal atribuição
consistia em promover uma análise de pré-viabilidade de projetos de investimento
na área de infra-estrutura básica que se candidatavam a tais financiamentos,
reelaborando ou complementando-os, se pertinente, de forma a adequá-los às
exigências técnicas e financeiras dos organismos internacionais (Leite, 1988,
depoimento; Cotrim, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento).
A existência de uma intensa demanda represada ou latente por
financiamento no setor elétrico irá se explicitar com clareza no âmbito dos
trabalhos da CMBEU. A partir de uma triagem técnica de projetos apresentados
pelas principais empresas atuantes na área, a comissão define uma programação
de investimento em geração de energia elétrica para o período 1952-57 que
representava um incremento da ordem de 683 MW na potência instalada do país,
significando um acréscimo de cerca de 30% na capacidade de atendimento do
sistema (Lima, 1995). Numa sinalização do vigor do movimento de estatização
que vinha se delineando no vácuo criado pelo retraimento das concessionárias
privadas, mais da metade dos recursos programados dizia respeito a projetos
públicos, tanto no nível federal – em essência, a continuidade das obras da usina
de Paulo Afonso -, quanto, e principalmente, estadual, onde se destacavam
empreendimentos hidrelétricos da Cemig, CEEE e Uselpa (Lima, 1995), esta
última pertencente ao governo paulista (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
Adotada com o intuito de proporcionar respostas mais imediatas frente
aos constrangimentos financeiros enfrentados na realização de investimentos em
infra-estrutura básica, a captação de empréstimos externos supunha contrapartida
de recursos nacionais, implicando, portanto, a necessidade de uma concomitante
ampliação das fontes internas de financiamento. Assim, num singular efeito de
retroação, a concessão de empréstimos pelas agências internacionais vai exigir,
em sua viabilização, a estruturação de um esquema financeiro interno com vistas
à integralização dos recursos requeridos pela implementação dos projetos
aprovados.
Essa
“exigência”
será
atendida
204
através
do
Programa
de
Reaparelhamento Econômico57 (Draibe, 1985; Lima, 1995), num arranjo
circunstancial e provisório recorrente na dinâmica institucional brasileira (Baer,
1996; Tavares, 1977; Sodré, 1975), fundado na busca de atalhos no
encaminhamento de soluções para os problemas mais prementes da agenda
pública. Instituído pela Lei nº. 1.474, de novembro de 1951, o programa buscava,
em essência, prover fundos para projetos considerados estratégicos pelo governo
federal – no caso, investimentos em infra-estrutura básica -, fundamentando-se na
cobrança de taxas adicionais restituíveis sobre o imposto de renda de pessoas
físicas e jurídicas e sobre as reservas e lucros das empresas (Draibe, 1985; Lima,
1995).
A adoção da estratégia de captação de recursos externos terá também
efeitos indiretos importantes noutra direção, contribuindo para a implantação do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Criado através da Lei
nº. 1.628, de junho de 1952, o novo organismo pode ser entendido como uma
resposta à necessidade de estruturação de um organismo tecnicamente
capacitado para lidar com o gerenciamento dos recursos do Programa de
Reaparelhamento Econômico e a administração e controle da implementação dos
projetos selecionados pela CMBEU58. Numa acepção mais ampla, materializava o
esboço de uma agência nacional de fomento às atividades produtivas,
emblemática
do
relativo
amadurecimento
do
Estado
intervencionista
e
comprometido com a promoção do desenvolvimento econômico, cujos contornos
vinham se delineando desde os anos trinta (Gouvêa, 1994; Draibe, 1985; Beloch
e Abreu, 1984; Martins, 1985; Baer, 1996). É nessa condição que o órgão assume
a responsabilidade pela coordenação e controle dos investimentos públicos na
expansão do sistema elétrico programados pela administração varguista. Atuando
57
Idealizado pelo governo federal com o intuito de provisionar recursos para projetos em setores
considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional, entre os quais os investimentos do sistema
elétrico (Draibe, 1985; Lima, 1991)
58
Segundo Lucas Lopes (1991, depoimento), a criação do BNDE partiu de proposição da CMBEU, que
considerava indispensável a existência de um agente financeiro responsável pela administração dos recursos
da contrapartida interna aos empréstimos externos e pela garantia do reembolso dos mesmos.
205
no vácuo institucional até então existente de um organismo com a atribuição
específica de responder por tais ações, o BNDE avança na direção da gradativa
incorporação de novas e importantes funções na área para se constituir, a partir
da segunda metade dos anos cinquenta, numa espécie de
“banco da
eletricidade” (Draibe, 1985; Lima, 1995). Materializa, em certo sentido, sugestão
proposta no âmbito dos trabalhos da Missão Abbink, cumprindo um papel que o
levará, mais à frente, a uma posição de confronto com a implementação das
reformas institucionais formuladas para o setor, num resultado não antecipado
nem pretendido pelo governo.
2.3 As medidas de médio e longo prazos: os projetos de reordenamento
institucional do setor
Em conexão ao esforço de revitalização dos investimentos na
expansão do sistema, alicerçada na captação de recursos externos, o Governo
Vargas irá desenvolver esforços no sentido da promoção de uma reestruturação
mais profunda nas bases financeiras e institucionais do setor, buscando
equacionar, numa perspectiva de longo prazo, a crise energética vivenciada pelo
país, de forma a atender as expectativas de forte crescimento da demanda de
eletricidade, decorrente de um novo ciclo de industrialização que se esperava
alcançar sob o impulso da ação coordenadora do Estado. Como visto, a
consecução de tais propósitos passava, sob a ótica oficial, pelo aprofundamento
da inserção estatal na geração de energia elétrica. Isto exigia, de um lado,
provisionar fontes sólidas e previsíveis de recursos para o financiamento dos
projetos a serem implantados pela administração pública; de outro, criar uma
estrutura de planejamento e gerenciamento da aplicação de tais recursos, capaz
de assegurar a racionalização do processo decisório e a eficácia nos resultados
obtidos.
O atendimento ao primeiro requisito vai se traduzir na proposta de
geração de recursos através da cobrança de um tributo específico para as
atividades elétricas, compondo um fundo vinculado estritamente a aplicações na
206
área. Para lidar com o segundo bloco de questões, serão propostas a criação de
uma empresa estatal para coordenar as ações estatais na esfera da produção,
representada pela Eletrobrás, e a adoção da sistemática do planejamento setorial,
sob a forma de um plano nacional de eletrificação, nos moldes das iniciativas
pioneiras dos governos dos estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. À
frente do processo estará não o CNAEE, mas a Assessoria da Presidência da
República, que funcionava, ainda que informalmente, como núcleo central da
articulação e formulação da agenda política do Governo Vargas (Draibe, 1985;
Leopoldi, 1997; Leite, 1988, depoimento). Vale dizer, nas circunstâncias de um
Estado insuficientemente aparelhado no tocante à capacidade de comando e
gestão, a despeito dos consideráveis avanços ocorridos pós anos trinta (Draibe,
1985; Nogueira, 1998), as questões estratégicas relativas aos serviços de
eletricidade tendem a escapar ao controle do aparato técnico-administrativo com
competência formal para responder pela formulação e implementação da política
setorial, sendo capturadas pelo organismo que passa a reunir os atributos de
agência encarregada de dar coerência e coordenar as ações de governo em
sentido amplo.
Submetida
aos
princípios
constitucionais
de
uma
democracia
presidencialista, a reconfiguração do padrão de intervenção estatal nas atividades
do sistema elétrico pretendidas pelo Executivo federal, que supunha mudanças
substantivas na institucionalidade do setor, estava condicionada à negociação no
e com o Legislativo. Se as deficiências na prestação dos serviços de eletricidade
favoreciam, em princípio, a mobilização de apoio político aos intentos reformistas
do governo, não evitavam, contudo, sua exposição a ingerências de interesses
afetos à questão, capazes de provocar desvios em relação aos propósitos
pretendidos ou mesmo de frustrar, ainda que parcialmente, sua efetiva
implementação. Os riscos e incertezas no tocante à tramitação da matéria no
Congresso não eram estranhos à Assessoria da Presidência (Leite, 1988,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento; Lima, 1995), até porque o histórico de
resistência das grandes concessionárias, especialmente a Light, à introdução de
207
qualquer mudança institucional que criasse constrangimentos a suas atividades
(Leite, 1988, depoimento; Cotrim, 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento)
não deixava maiores dúvidas a respeito. A isto se somava a esperada fricção
junto a parlamentares com posições contrárias ao incremento do intervencionismo
estatal na economia, num reforço à já expressiva bancada de oposição a Vargas
no Legislativo (Draibe, 1985, Nunes, 1997; Leopoldi, 1997).
A prévia percepção das dificuldades a serem enfrentadas confere
saliência à mobilização dos meios políticos de execução das reformas, mais
especificamente à necessidade de se buscar formas de encaminhamento e de
articulação política capazes de aumentar a probalidade de sucesso na
implementação das propostas de mudanças formuladas para o setor. A propósito
da questão, a dinâmica do processo de negociação dos projetos governamentais
referentes à área de exploração de petróleo59, que haviam suscitado forte reação
política quando de sua apreciação no Congresso (Leopoldi, 1997), acabou
servindo, conforme Rangel (1988, depoimento), como uma espécie de ensaio ou
laboratório para a tomada de decisões relativas às atividades elétricas. Assim,
referenciando-se nos subsídios proporcionados por tal processo, a estratégia
adotada pela Assessoria Econômica consiste, em essência, na opção por uma
negociação gradual ou em etapas, e não em bloco, das medidas que compunham
a política setorial, sem prejuízo de sua consistência global. As propostas de
reconfiguração institucional do sistema serão desdobradas em quatro projetos de
lei, com a configuração formal de projetos isolados e fechados em si mesmos
(Leopoldi, 1997; Lima, 1995), numa tentativa do governo de descaracterizar a
extensão e o alcance de seus intentos reformistas (Leite, 1988, depoimento;
Magalhães, 1987, depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Na avaliação da
Assessoria, além de aumentar a opacidade das mudanças setoriais, o que
59
A proposta de criação da Eletrobrás teve, como modelo, a lei que criara a Petróleo Brasileiro S. A.
(Petrobrás), constituída como uma sociedade de economia mista com participação majoritária do governo
federal, com o intuito de explorar as jazidas brasileiras de petróleo e de responder por seu refino (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Sandroni, 1994).
208
contribuiria para reduzir as tensões ou pressões em torno das mesmas, o
encaminhamento em separado dos diversos projetos no Congresso era vista
como uma forma de minimizar o risco de as dificuldades na aprovação de
proposições potencialmente mais polêmicas se estenderem às menos polêmicas,
o que poderia ocasionar, inclusive, o fracasso global das negociações (Leite,
1988, depoimento; Magalhães, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997).
Obedecendo à estratégia traçada, os projetos com menor potencial de
fricção e, portanto, com maior probabilidade de aprovação no Congresso
deveriam, e vão, anteceder aqueles cuja tramitação se prenunciava mais
complexa e, consequentemente, mais lenta. Além de reduzir os riscos da
ocorrência de rejeição por “contágio” e, com ela, de rejeição em bloco, essa forma
de negociação criava condições, em princípio, para a antecipação da
implementação das proposições com menor grau de fricção junto ao Legislativo
(Rangel, 1988, depoimento), dentro de uma sistemática de avanço gradual das
mudanças estruturais propostas para o sistema. Assim, baseada em expectativas
quanto às reações políticas que seriam suscitadas pelas reformas (Leite, 1988,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento), a Assessoria da Presidência define uma
ordem de encaminhamento na qual os projetos relacionados à expansão das
bases de financiamento do sistema vão preceder as propostas mais diretamente
associadas ao incremento do intervencionismo estatal na esfera da produção.
Dentro do ordenamento processual definido pela Assessoria, o primeiro
projeto de reforma encaminhado à apreciação do Congresso consiste na proposta
de instituição do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), cuja arrecadação
deveria compor, junto com outras receitas fiscais, um fundo específico vinculado a
aplicações na área de energia elétrica, com a denominação de Fundo Federal de
Eletrificação (FFE) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima ,
1984). Em sintonia com as diretrizes gerais da política setorial, antecipadas na
Mensagem Presidencial de 1951, os recursos do Fundo seriam destinados
estritamente a investimentos de empresas públicas (Lima, 1995; Leite, 1988,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento). Além disso, ainda que voltados
209
prioritariamente à geração e transmissão de energia,
os financiamentos
contemplavam também projetos na área de produção de material elétrico pesado
(Lima, 1995; Leite, 1988, depoimento), num resultado que expressava, em
particular, a subordinação das decisões relativas ao setor aos objetivos mais
amplos da política desenvolvimentista do governo (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997;
Rangel, 1988, depoimento), que procurava apoiar segmentos da indústria de base
considerados estratégicos para o país.
Na avaliação da Assessoria, o projeto não deveria suscitar resistências
expressivas junto ao Legislativo (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1991,
depoimento). Primeiro, a própria Constituição de 46 já previa a criação de tributo
sobre o consumo de energia elétrica, nos moldes do IUEE, conferindo, de partida,
forte respaldo político à proposta governamental. Vale lembrar que sua criação
chegara a ser cogitada no período da administração Dutra, sinalizando a
existência de razoável consenso em torno da matéria. Segundo, a repartição da
receita arrecadada com o imposto, proposta no projeto, destinava 60% do total
para estados e municípios, ficando a União com apenas 40% do total, o que
contribuía para capitalizar apoio de parlamentares comprometidos com a defesa
de interesses locais e regionais, de forte presença no Congresso (Lima Júnior,
1997). Terceiro, apesar de sua concepção estatizante, o FFE favorecia, ainda que
de forma indireta, os interesses das grandes empresas privadas do setor. Na
condição de detentoras da concessão da exploração dos serviços de eletricidade
nos principais mercados do país, os grupos Light e Amforp representavam canais
naturais de comercialização final da energia que viria a ser gerada pelas
empresas públicas, com o suporte financeiro do fundo (Leopoldi, 1997;
Magalhães, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento). Dispondo dessa
alternativa, poderiam reduzir os investimentos próprios em produção para
concentrá-los no segmento de distribuição, reconhecidamente o mais rentável do
sistema (Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento).
Além desses aspectos favoráveis, as perspectivas de sucesso no
encaminhamento do projeto acabaram sendo reforçadas por um fator acidental,
210
mais especificamente, a dissolução da CMBEU, por decisão unilateral do novo
governo americano60, em simultâneo à sua tramitação no Congresso. Os
problemas decorrentes dessa decisão, que tende a afetar a contratação de
empréstimos no exterior (Lima, 1995; Leopoldi, 1997), especialmente junto ao
Eximbank, dificultando ou mesmo inviabilizando a implantação de projetos
hidrelétricos já decididos, vieram tornar ainda mais emergencial a estruturação de
fontes internas de recursos para o financiamento dos investimentos do setor.
Enviada ao Congresso em maio de 1953, a proposta de criação do IUEE e FFE
será aprovada através da Lei nº. 2.308, de agosto de 1954 (Lima, 1995), poucos
dias após o falecimento do Presidente Vargas.
O segundo projeto setorial formulado pela Assessoria tinha caráter
complementar ao primeiro, especificando a forma de distribuição da receita do
IUEE entre estados e municípios, bem como os procedimentos básicos para a
administração do FFE. Tratava, portanto, de questões politicamente mais
complexas e polêmicas, à medida que potencializava conflitos concernentes à
obtenção de mais ou menos recursos, onde aumentos de ganhos para qualquer
um dos potenciais beneficiários dos recursos, fossem eles estados ou municípios,
implicavam necessariamente sacrifícios ou perdas de outros, numa situação típica
de jogo de soma zero. Sua aprovação passava, portanto, pela acomodação dos
múltiplos interesses locais e regionais imbricados na matéria, num processo de
concessões progressivas em busca de acordo. Tal processo se prenunciava
demorado face ao “comportamento distributivo-extrativista” que, conforme Lima
Júnior (1997), tende a permear as negociações estabelecidas no e com o
Congresso brasileiro ao longo da história política contemporânea do país. Num
resultado já esperado pelo Executivo federal (Leite, 1988, depoimento;
60
Os entendimentos intergovernamentais com vistas à constituição da CMBEU tiveram início ao final do
Governo Dutra, embora sem caráter oficial. Retomadas oficialmente pelo Governo Vargas, as negociações
foram concluídas em abril de 1951, com a instalação formal ocorrendo pouco depois, em julho de 1951.
Mudanças na política interna americana levaram à ruptura do acordo de cooperação em julho de 1953
(Centro da Memória da Eletricidade, 1991), embora os trabalhos da comissão tenham se estendido
“oficiosamente” até dezembro de 1953 (Leite, 1988, depoimento).
211
Magalhães, 1987, depoimento), o conflito de interesses em torno dos critérios
objetivos de repartição da receita arrecadada com o novo tributo irá demandar um
esforço muito maior de negociação que aquele exigido em sua criação. Assim,
enviado à apreciação do Congresso em agosto de 1953, a proposta
governamental de regulamentação só será aprovada mais de três anos depois, já
no Governo Kubitschek, através da Lei nº. 2.944, de novembro de 1956 (Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), com a incorporação de várias
alterações em relação à proposta original (Lima, 1995).
O atraso na tramitação e aprovação dos projetos referentes à
ampliação das bases de financiamento do sistema irá se refletir sobre a
implementação da estratégia traçada pela Assessoria da Presidência de
descaracterizar a existência de um conjunto mais amplo e integrado de mudanças
no padrão de intervenção estatal no setor. Como observa Diniz, “o movimento do
real comporta sempre algum grau de imprevisibilidade e de contingência” (1997:
194), exigindo adaptações ou correções de rumo que podem significar o
abandono de cursos de ação previamente selecionados. De certa forma, é isto
que se passa com a condução das reformas setoriais: os outros projetos que
completavam a política traçada pelo Governo Vargas para a área de energia
elétrica vão ser encaminhados ao Congresso antes da aprovação das propostas
anteriores. Assim, em abril de 1954, seguem para a apreciação do Legislativo o
projeto de lei nº. 4.277/54, contendo a programação de investimentos na
expansão do sistema elaborada pela administração varguista, corporificada no
Plano Nacional de Eletrificação (PNE), e o projeto de lei nº. 4.280/54, propondo a
criação das Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás) (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988; Rangel, 1988, depoimento).
Independentemente dos resultados objetivos de sua implementação
que, como se verá mais adiante, não logrará êxito, o PNE contribui para explicitar,
ainda que de forma não intencional, a inadequação operacional do aparato
governamental
existente
frente à
pretendida
ampliação
do
escopo
do
intervencionismo estatal nas atividades do setor elétrico. Reproduzindo situação
212
já ocorrida na gestão presidencial de Dutra, quando acabou desempenhando
papel apenas secundário na elaboração da programação de investimentos para a
área de energia elétrica proposta no âmbito do Plano SALTE, o CNAEE também
não teve participação efetiva na formulação do plano varguista. Ao mesmo tempo
que reflete, esse fato atua no sentido de reforçar a “especialização funcional” do
órgão no desempenho de atividades essencialmente regulatórias, nas quais vinha
se
concentrando
desde
sua
criação.
Com
uma
estrutura
operacional
relativamente pequena (Bhering, 1987, depoimento), o CNAEE não estava nem
se considerava adequadamente capacitado para lidar com o planejamento e
coordenação dos investimentos na expansão do sistema (Pereira, 1975; citado
por Lima, 1984), num resultado que “legitima”, sob a ótica da eficiência das ações
de governo, a proposta de constituição da Eletrobrás, que vinha exatamente ao
encontro do preenchimento de tal lacuna.
Em linha similar de raciocínio, pode-se associar ao PNE outro
importante efeito secundário, que é o de conferir contornos mais objetivos à
reconfiguração das relações entre o poder público e a iniciativa privada no campo
das atividades elétricas pretendidas pelo governo. Afinado com as diretrizes
setoriais propostas na Mensagem Presidencial de 1951, caberia às empresas
públicas a realização dos investimentos mais exigentes de recursos e de prazos
mais longos de retorno para o capital aplicado (Draibe, 1985; Lima, 1984). Às
empresas privadas competiria sobretudo a alocação de recursos no segmento de
distribuição, onde demonstravam maior eficácia operacional (Leite, 1988,
depoimento; Rangel, 1988, depoimento), até porque mais rentáveis, e no qual
desfrutavam de evidentes vantagens competitivas, decorrentes do controle
monopolístico sobre os principais mercados assegurado por contratos de
213
concessão em vigor61.
Outra contribuição importante do PNE no tocante à demarcação das
funções empresariais do Estado vis-à-vis a iniciativa privada tem a ver com o
segmento
de produção de material elétrico pesado. Sua programação
contemplava projetos na área da produção de máquinas e equipamentos para as
atividades elétricas (Draibe, 1985; Leopoldi, 1997; Lima, 1995), que, embora
relativamente secundários sob o prisma financeiro, cumpriam uma dupla
finalidade. De um lado, proporcionavam referências estratégicas para o capital
privado, apontando para as oportunidades de mercado potencializadas pela
pretendida dinamização dos investimentos na expansão do sistema elétrico. De
outro, sinalizavam para a disposição do Estado em assumir a responsabilidade
pela implantação de empreendimentos na área - tratada como condição de
viabilidade e garantia do sucesso do programa energético proposto (Draibe, 1985)
-, caso as respostas produtivas da iniciativa privada, por desinteresse ou
dificuldades de mobilização de recursos, não fossem satisfatórias.
A criação da Eletrobrás, por sua vez, impunha-se como desdobramento
lógico da ampliação e aprofundamento da intervenção estatal nas atividades
produtivas do sistema. O incremento dos investimentos públicos em geração e
transmissão de energia, projetado no PNE, implicava o desempenho de funções
de recorte empresarial relativamente incongruentes com o perfil institucional do
CNAEE. Definida pelo Governo Vargas como “o instrumento de ação prática de
61
De acordo com essa “divisão de trabalho”, cerca de 70% da programação financeira do plano tem a ver
com investimentos na área de geração, compreendendo projetos que representavam um incremento da
ordem de 5.000 MW na oferta de energia elétrica do país ao longo do período 1955-65 (Lima, 1995). Numa
sinalização de que a estatização não constituía um fim em si mesmo, mas uma opção estratégica que se
subordinava ao propósito de promover a adequação da capacidade de atendimento do sistema às
necessidades do desenvolvimento nacional – a projeção da ampliação da potência instalada se faz com base
nas expectativas de incremento da demanda, tendo, como componente central, o consumo industrial (Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Rangel, 1988, depoimento) -, o Plano não contemplava apenas
iniciativas das empresas públicas, incorporando também os projetos de expansão das concessionárias
privadas atuantes na área (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Salienta-se, a
esse respeito, que cerca de 31% das metas de produção de energia e 26% dos recursos programados
referiam-se a empreendimentos dos grupos Light e Ampforp (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1996).
214
que carece o poder público para enfrentar eficazmente o problema de produção e
transmissão de energia elétrica “ (Presidência da República, 1953; citado por
Draibe, 1985: 204), a empresa cristraliza os intentos de adequação do aparato
estatal, de forma a dotá-lo de capacidade técnica e operacional capaz de
assegurar o êxito na condução de uma política setorial que apontava para a
crescente participação das empresas públicas nos serviços de eletricidade.
Concebida como empresa pública de âmbito nacional - similar ao
modelo adotado na constituição da Petrobrás (Leite, 1988, depoimento;
Magalhães,
1987,
depoimento)
–
caberia
à
Eletrobrás
centralizar
a
responsabilidade pela concepção e implementação da política governamental
para o setor elétrico, desempenhando uma amplo espectro de funções que
englobava desde o planejamento do sistema até a promoção de investimentos na
área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). Como
agência de planejamento, responderia pela coordenação dos programas de
expansão das empresas publicas, articulando-as com as atividades das
concessionárias
privadas
(Rangel,
1988,
depoimento;
Magalhães,
1987,
depoimento). Como agência responsável pelos empreendimentos produtivos da
administração federal, assumiria a configuração de uma companhia “holding”,
criando e controlando empresas tipicamente energéticas, na linha da Chesf, ou de
produção de máquinas, equipamentos e materiais elétricos, em associação ou
não com o capital privado (Lima, 1995; Draibe, 1985).
Ao contrário dos projetos do IUEE e do FFE que, de certa forma,
complementavam ou aprimoravam as bases de sustentação da atividade sem
interferências diretas nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, o mesmo
não se aplica à proposta do PNE e, principalmente, à da Eletrobrás, portadoras de
profundas mudanças no padrão de intervenção estatal na área. Do exercício de
uma função essencialmente regulatória, o Estado estaria transitando para uma
configuração empresarial, o que teria inevitáveis impactos sobre interesses e
práticas institucionalizados do sistema. Era natural, portanto, que catalisassem
reações adversas de matizes, motivações e intensidades diferenciadas, em
215
especial a oposição dos grupos Light e Amforp, mais diretamente ameaçados
pelo avanço das empresas públicas. Num prenúncio das dificuldades a serem
enfrentadas, “o projeto propondo a criação da Eletrobrás (...) seguiu para o
Congresso (...), já sob intenso bombardeio, vindo da imprensa, do próprio
Congresso e das companhias estrangeiras que atuavam no setor” (Leopoldi,
1997: 59).
2.4 Os limites do possível: a tumultuada trajetória dos projetos do PNE e da
Eletrobrás no Congresso
Como temia a Assessoria da Presidência, os projetos do PNE e,
principalmente, da Eletrobrás suscitaram resistência política muito maior que as
propostas do IUEE e do FFE (Leite, 1988, depoimento; Magalhães, 1987,
depoimento; Leopoldi, 1997). Tal resistência terá, como um de seus principais
suportes, os grupos Light e Amforp, numa reação esperada a mudanças que
significavam ameaças concretas à hegemonia que haviam conquistado ao longo
das décadas anteriores e lutavam para preservar. A materialização da presença
do Estado no núcleo das atividades produtivas do sistema tinha implicações não
apenas no sentido de restringir o campo de atuação para o capital privado como
um todo mas, o que é mais importante, de romper com a situação de quase
monopólio das grandes concessionárias estrangeiras nos principais mercados do
país (Leopoldi, 1997; Leite, 1988, depoimento; Rangel, 1988, depoimento).
Contando com assessorias jurídicas de reconhecida competência (Lopes, 1991;
Cotrim, 1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Bhering, 1987, depoimento),
tais empresas dispunham de sólido esquema de articulação política para a defesa
de seus interesses, com forte penetração no Congresso, na mídia e em
instituições de representação do empresariado, como o então importante
Sindicato das Indústrias de Energia Elétrica do Estado de São Paulo (Leopoldi,
1997; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Leite, 1988,
depoimento).
216
A essas reações vieram se somar focos de resistência incrustados na
própria administração pública, numa manifestação objetiva das dificuldades que
tendem a permear a implementação e o controle de processos intencionais de
transformação institucional (March e Olsen, 1989; Lima Júnior, 1997; Diniz, 1997).
Tal resultado reflete os efeitos combinados de dois fatores principais, ambos
relacionados à complexa tarefa de coordenar o jogo de interesses que se
desenrola dentro da esfera pública. O primeiro, de ordem mais geral, tem a ver
com problemas de unidade e coerência da ação governativa em sentido amplo,
associados, por sua vez, à fragmentação ou descentralização de poder e relativa
autonomia decisória de organismos que compõem o aparelho estatal. O segundo,
de natureza mais específica, com a dinâmica das mudanças ocorridas nos
arranjos
organizacionais
e
produtivos
do
sistema
elétrico,
espelhando
consequências não pretendidas nem antecipadas da estratégia adotada pela
Assessoria da Presidência no encaminhamento dos projetos que compunham a
política setorial do governo.
Num resultado contingente da estratégia de negociação seguida pela
Assessoria da Presidência, a tramitação das propostas do PNE e da Eletrobrás no
Congresso vai se dar sob condições institucionais que refletem a aprovação do
IUEE e do FFE. As mudanças no padrão de financiamento do setor determinadas
pela aprovação de tais projetos implicaram não apenas a introdução de um novo
conjunto de oportunidades e constrangimentos para as escolhas estratégicas dos
agentes atuantes na área, mas a reconfiguração destes mesmos agentes. Além
do BNDE, as empresas estaduais de energia adquirem papel mais saliente no
desenvolvimento do atividade, ainda sob hegemonia da iniciativa privada, a
despeito do progressivo refluxo de seus investimentos na área. Redefine-se, com
os novos atores, a estrutura de interesses e preferências imbricados no sistema,
num dinamismo institucional que tende a criar dificuldades adicionais à
viabilização política tanto do PNE quanto da Eletrobrás.
Por dispositivo da legislação que instituiu o IUEE e o FFE,
anteriormente mencionada, o BNDE ficou incumbido da administração dos
217
recursos arrecadados, atuando em nome da Eletrobrás enquanto a mesma não
fosse efetivamente criada (Lima, 1995; Rangel, 1988, depoimento). Deste arranjo
operacional transitório irá resultar mais que o mero reforço do papel de agência
gestora dos financiamentos públicos para investimentos na expansão do sistema
(Lima, 1995) que o banco passara a desempenhar em conexão com a
implementação da programação setorial definida no âmbito dos trabalhos
desenvolvidos pela extinta CMBEU. Processa-se, na prática, sua transformação
no organismo responsável pelas ações do governo federal na área de energia
elétrica, o que acabará gerando uma tensão entre os interesses próprios da
corporação e a aprovação dos projetos do PNE e, sobretudo, da Eletrobrás.
De fato, se aprovado, o PNE daria contornos oficiais às prioridades de
investimento para o sistema elétrico, estreitando, em consequência, a margem
efetiva de autonomia decisória do BNDE no tocante à aplicação de recursos na
área, o que incluía, em particular, os recursos do FFE, cuja administração lhe fora
transitoriamente atribuída. As implicações da criação da Eletrobrás seriam ainda
mais restritivas para a atuação setorial do banco, ao bloquear-lhe a possibilidade
de continuar exercendo a coordenação e o controle sobre os investimentos
públicos na atividade que, além de tratada como prioritária pelo governo, contava
com fonte específica de recurso. Assim, numa conduta defensiva contra ameaças
à posição estratégica que circunstancialmente assumira dentro do setor, o órgão
vai se aproveitar da relativa autonomia decisória proporcionada por uma
intitucionalidade ao mesmo tempo incompleta e em processo de mudança para se
alinhar, ainda que sob o véu da informalidade (Lopes, 1991, depoimento; Bhering,
1987, depoimento), às forças contrárias ao êxito da tramitação das propostas do
PNE e da Eletrobrás pelo Congresso (Leite, 1988, depoimento; Richer, 1995,
depoimento; Leopoldi, 1997; Lima, 1995).
Outro importante desdobramento institucional da criação do IUEE e
FFE será o estímulo à inserção dos governos estaduais nas atividades produtivas
do sistema. Pela legislação aprovada no Congresso, o repasse aos estados da
parcela da receita arrecadada com o novo tributo – correspondente a 50% do total
218
– ficava condicionada à elaboração de planos regionais de eletrificação, a serem
submetidos à apreciação e aprovação do CNAEE (Lima, 1995). O interesse no
acesso aos recursos, de um lado, e os requisitos estabelecidos para tal acesso,
de outro, convergem no sentido de impulsionar a estruturação montagem de
empresas energéticas de cunho regional por todo o país62 :em meados dos anos
sessenta, praticamente todos os estados brasileiros passam a contar com
concessionárias próprias de energia.
Numa cadeia de causação que escapa ao controle do poder central, o
aprofundamento da presença dos governos dos estados nas atividades produtivas
do sistema irá introduzir novos problemas ou dificuldades na tramitação e
apreciação do PNE no Congresso. De um lado, contribui para acirrar disputas
regionais em torno do conteúdo programático do plano, o que, obviamente,
aumenta a complexidade da engenharia política necessária à sua aprovação. De
outro, e mais importante, tende a reforçar as forças que se opunham ao mesmo
dentro do próprio setor. De fato, ao definir os objetivos, metas e prioridades de
investimento na área, o plano estreitava as possibilidades abertas à negociação
de financiamentos para projetos de interesse regional, não previstos em sua
programação. Essas restrições afetavam principalmente as empresas energéticas
de estados da Região Centro-Sul, melhor estruturadas e vinculadas a mercados
de consumo mais dinâmicos, entre as quais se sobressai a Cemig. Contando não
apenas com um plano de eletrificação relativamente consistente, mas com
capacidade técnico-operacional para levar em frente sua execução (Campolina,
1997;
Lopes, 1991, depoimento),
a empresa assume posicionamento
francamente contrário à aprovação do PNE (Bhering, 1987, depoimento; Leite,
1988, depoimento; Lopes, 1991, 1995, depoimentos), face à dissonância entre
suas prioridades de investimento e as prioridades definidas pelo plano.
62
Em outras palavras, as iniciativas pioneiras do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, cristalizadas,
respectivamente, na CEEE e na Cemig, que surgiram em resposta à insuficiência dos investimentos das
concessionárias privadas na expansão dos parques geradores destes mesmos estados, tendem a se espraiar
por outras unidades da Federação. Catalisados por fatores de ordem institucional, processos até então
circunscritos a algumas poucas administrações estaduais se generalizam, conformando uma espécie de
movimento de “estadualização” do sistema (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988)
219
O projeto da Eletrobrás também não interessava às principais
concessionárias estaduais (Leite, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997, Lima, 1995),
já que as atribuições da nova empresa supunham um maior alinhamento e
subordinação das prioridades regionais a objetivos e estratégias definidas ao nível
nacional. Como no caso do PNE, tal restrição afetava com maior intensidade os
estados ou, mais precisamente, as concessionárias estaduais que dispunham,
dentro do arranjo institucional estabelecido, de melhores condições para
influenciar
os
processos
decisórios
relativos
à
alocação
dos
recursos
disponibilizados para o setor, onde, mais uma vez, a Cemig assume maior
saliência. Bem aparelhada e contando com canais informais de acesso ao núcleo
decisório do BNDE (Leal, 1988, depoimento; Leite, 1988, depoimento) que, vale
lembrar, era o gestor dos recursos do FFE, a estatal mineira se habilitava a
disputar, com maior probabilidade de sucesso, financiamentos para seus
programas de expansão. Não é de se surpreender, portanto, que tenha se
constituído, também aqui, num dos principais focos de oposição, dentro da esfera
pública, à aprovação da proposta de organização da Eletrobrás (Lopes, 1991,
depoimento; Bhering,1987, depoimento; Leite, 1988, depoimento).
A confluência de um amplo e heterogêneo espectro de forças, que
aglutinava desde reações contrárias à maior presença do Estado na área,
centradas nos grupos Light e Amforp, a reações à centralização decisória, cujo
principal expoente era a Cemig, passando pela defesa de interesses corporativos,
tipificada pelo BNDE, criou severas dificuldades para a negociação dos projetos
do PNE e da Eletrobrás. Frustrando os resultados da estratégia traçada pela
Assessoria, o primeiro sequer chegou a ser formalmente incluído na pauta de
votação do Congresso, vindo a se transformar, em essência, num mero
documento de referência técnica para os processos decisórios do setor, destituído
de qualquer conteúdo normativo (Lima, 1995). O segundo, por sua vez, sofreu
sucessivas práticas dilatatórias e obstrucionistas por parte do Legislativo (Lima,
1984; Rangel, 1988, depoimento; Leite, 1988, depoimento; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), logrando ser aprovado somente no decorrer na
220
década de sessenta, num contexto onde a estatização das atividades elétricas,
em estágio bastante avançado, irá ensejar condições mais favoráveis de
mobilização de apoio político à sua viabilização.
3. O avanço e consolidação do intervencionismo estatal e a mudança de
escala dos empreendimentos hidrelétricos: o Governo Kubitschek
O êxito apenas parcial na implementação dos projetos que compunham
a política traçada pelo Governo Vargas não impediu, contudo, a ocorrência de
uma rápida reconfiguração nas bases organizacionais e produtivas do sistema,
convergente com as diretrizes gerais desta mesma política. A ampliação da
presença estatal no núcleo operacional das atividades elétricas, que estava no
cerne das reformas setoriais varguistas, se processa de forma acelerada,
adquirindo contornos irreversíveis num curto espaço de tempo. Em termos mais
específicos, de uma participação apenas residual no início dos anos cinquenta, as
empresas públicas passam a controlar, em meados dos anos sessenta, a maior
parte da capacidade instalada de geração elétrica do país (Quadro 4).
A rápida reversão nas participações das esferas pública e privada na estrutura
produtiva do sistema reflete os efeitos combinados de um duplo movimento. De
um lado, ressalta-se a persistência do retraimento dos grupos Light e da Amforp
que,
premidos
por
um
contexto
adverso,
continuaram
limitando
seus
investimentos quase que exclusivamente à expansão da capacidade de geração
das usinas já construídas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988),
cujas possibilidades de aproveitamento, por razões técnicas, vinham se
estreitando progressivamente para se aproximarem da completa exaustão. De
outro, e mais importante, ocorre a intensificação das ações produtivas das
empresas estatais, estaduais e federais, a partir da segunda metade dos anos
cinquenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), no vácuo aberto
pelo refluxo do capital privado.
221
Quadro 4
Distribuição da Capacidade Instalada de Geração de Energia Elétrica, por
Categoria de Produtor, no Brasil, em Anos Selecionados
Ano
Público - %
Privado - %
Autoprodutor -%
Total
MW
%
1955
17,1
71,4
11,5
3.148,5
100,0
1960
22,9
66,3
10,8
4.800,1
100,0
1965
54,6
33,6
11,8
7.411,0
100,0
Fonte: Lima, J. L. Estado e Energia Elétrica no Brasil: o setor elétrico no Brasil, das
origens à criação da Eletrobrás (1890-1962). São Paulo: IPE/USP, 1984.
A consolidação do intervencionismo estatal na área reflete, em larga
medida, a relativa convergência do conteúdo objetivo das plataformas de governo
nas gestões presidenciais de Vargas (1951-54) e de Juscelino Kubitschek (195661), centradas na promoção da industrialização e modernização da economia
nacional, sob o comando do Estado (Draibe, 1985; Baer, 1996; Nogueira, 1998).
Ponto nevrálgico da dinâmica do desenvolvimento econômico, a garantia de um
suprimento adequado de energia elétrica surge com um requisito a qualquer
perspectiva de êxito na condução do processo, imprimindo um traço de
continuidade à política setorial, a despeito da transição de poder ocorrida no
controle do Executivo federal. Os investimentos das empresas estatais em ambos
os governos se fazem movidos pelo propósito de evitar que o estrangulamento
energético viesse a comprometer o esforço dispendido na direção do crescimento
e diversificação da produção industrial do país, em torno do qual se articula a
agenda pública no período.
A orientação comum, contudo, não significa nem pode ser entendida
como continuidade nas estratégias ou linhas de ação das políticas setoriais
implementadas nas gestões presidenciais de Vargas e Kubitschek. Ao contrário,
enquanto o primeiro concentra esforços na esfera institucional, buscando criar
condições financeiras e operacionais capazes de permitir a otimização e o
222
crescimento sustentado dos investimentos produtivos na área, o segundo se
caracteriza por iniciativas na esfera da produção, enfatizando soluções capazes
de assegurar respostas imediatas para as metas e prioridades estabelecidas pela
política pública. Como resultado dessa mudança de enfoque, o avanço da
estatização na área de energia elétrica não apenas se antecipa à aprovação dos
projetos do PNE e da Eletrobrás pelo Congresso, mas se faz conjugado a um
relativo esvaziamento da política do Executivo federal com vistas à agilização da
tramitação de tais projetos.
3.1 O Plano de Metas e o caráter estratégico dos investimentos em energia
elétrica
O projeto desenvolvimentista traçado e perseguido pelo Governo
Kubitschek propunha promover a implantação, concentrada no tempo, de uma
estrutura industrial diversificada e de perfil avançado no país (Draibe, 1985;
Leopoldi, 1991; Faro e Silva, 1991; Lafer, 1975; Baer, 1996). A consecução desse
desiderato político implicava o desafio de implementar, no curto espaço de um
mandato presidencial, um amplo conjunto de investimentos em novos segmentos
industriais - o avanço no sentido dos setores de bens intermediários e de capital
(Faro e Silva, 1991; Oliveira, 1977; Lafer, 1975; Ianni, 1977) - e de assegurar, em
simultâneo, o suporte infra-estrutural requerido pela ampliação e dinamização da
economia nacional (Lafer, 1977; Draibe, 1985). As possibilidades de êxito na
condução de tal estratégia suponham, por sua vez, o preenchimento de dois
requisitos básicos. De um lado, dependiam da existência de capacidade efetiva
de formular e adotar as decisões necessárias e adequadas à promoção do salto
industrial pretendido. De outro, de autonomia decisória suficientemente ampla
para permitir a imposição de um direcionamento objetivo à intervenção estatal na
economia, isto é, a possibilidade de o governo preservar a coerência e
consistência da política pública face às contingências associadas ao jogo de
interesses da sociedade e, especialmente, às relações com o poder Legislativo.
223
Quanto ao primeiro aspecto, salienta-se o fato de o segundo Governo
Vargas ter empreendido um aprofundamento do processo de aparelhamento
técnico e administrativo do Estado orientado exatamente para o fortalecimento de
sua capacidade de intervenção na economia (Lessa, 1964; Draibe, 1985; Ianni,
1977; Gouvêa, 1994; Viana, 1981; Nunes, 1997). O Governo Kubitschek tende a
receber, portanto, como herança da gestão anterior, um amplo conjunto de
instrumentos, mecanismos e arranjos organizacionais de perfil relativamente
avançado e complexo, convergentes com os propósitos de implementação de
uma agenda desenvolvimentista, o que contribui para reduzir e facilitar suas
tarefas no plano político-institucional. Com isto, pôde se limitar, a rigor, a
promover adaptações e complementações no desenho organizacional e nos
mecanismos e instrumentos operacionais controlados pelo Estado, numa
sistemática de ajustes voltados à superação de questões específicas que se
colocavam ou poderiam se colocar como constrangimento à consecução das
propostas e programas do governo. Ganha destaque, aqui, a preocupação de
reforçar a capacidade de comando do Executivo federal, que será “solucionada”
através do recurso à centralização do processo decisório governamental.
Num sistema capitalista como o brasileiro, as possibilidades concretas
de desencadear um processo de transformação com o alcance pretendido pelos
novos gestores do poder central dependiam fundamentalmente da capacidade de
comando e coordenação do Executivo federal no tocante ao gerenciamento eficaz
da economia (Nogueira, 1998). Sem a coesão interna ao aparelho estatal e a
articulação de alianças e adesões com interesses relevantes da sociedade,
capazes de dar sustentação política às decisões da administração pública (Lima
Júnior, 1997; Diniz, 1997), dificilmente se lograria êxito na promoção dos objetivos
e metas almejados pelo projeto desenvolvimentista que se pretendia implementar.
A preocupação de qualificar o aparato da administração federal para o
desempenho das ações de desenvolvimento e a disposição de evitar os custos
políticos de mudanças institucionais mais profundas, que poderiam comprometer
ou, pelo menos, postergar a obtenção dos resultados visados pela política pública
224
convergem para a criação Conselho do Desenvolvimento, instituído formalmente
pelo Decreto nº. 38.744, de fevereiro de 1956.
Emblemático da busca por soluções capazes de proporcionar
respostas mais rápidas à viabilização dos propósitos e decisões governamentais
– a preferência por “atalhos” ou saídas “convenientes” face às restrições do
contexto, assinalada como uma das características marcantes da administração
Kubitschek (Draibe, 1985; Diniz, 1997; Nogueira, 1998) -, o Conselho do
Desenvolvimento irá acumular ampla gama de prerrogativas anteriormente
dispersas por outros órgãos ou instituições sob controle do poder central,
assumindo feição de uma espécie de agência nacional encarregada do
planejamento e coordenação da intervenção estatal na economia. Mimetizando ,
em linhas gerais, o esquema operacional que havia sido utilizado pela extinta
CMBEU (Leopoldi, 1991), o Conselho introduz um novo estilo de gestão
governamental, fundado na estruturação de núcleos técnicos e gerenciais – os
denominados grupos de trabalho e grupos executivos (Leopoldi, 1991; Faro e
Silva, 1991; Draibe, 1985) -, para responder pela concepção e implementação das
ações nas áreas ou setores produtivos priorizados pela política pública. Esse
arranjo institucional instrumentaliza a articulação do governo federal com o capital
privado, nacional e internacional, em torno de objetivos específicos do projeto
industrializante, estabelecendo metas de produção, instrumentos de política, e
mecanismos de gerenciamento e de acompanhamento (Lopes, 1991, depoimento;
Leopoldi, 1991).
Tratava-se, conforme Cotrim (1987, depoimento; 1995), de um arranjo
flexível, de elevado grau de informalidade, que se apoiava e, na prática, acabava
se confundindo com o BNDE . Lucas Lopes63 é enfático a esse respeito,
afirmando que
“o BNDE e o Conselho do Desenvolvimento formavam uma
unidade” (1991: 172, depoimento), no sentido de o primeiro assegurar
organicidade ao último. Isto acaba por conferir ao banco papel crucial na
63
Lucas Lopes era o presidente do BNDE e também o secretário geral do Conselho do Desenvolvimento.
225
implementação da política desenvolvimentista: junto com o desempenho da
função de agência de financiamento aos investimentos em áreas estratégicas da
economia, tende a centralizar também, sob a roupagem do Conselho do
Desenvolvimento, a responsabilidade pela formulação e articulação dos
programas
ou
ações
do
governo
federal
relacionadas
ao
esforço
de
industrialização.
O êxito na implementação das ações governamentais, no entanto,
requer, como observa Diniz, “além dos instrumentos institucionais e dos recursos
financeiros controlados pelo Estado, a mobilização dos meios políticos de
execução” (1997: 195). No contexto do regime democrático então prevalecente, o
processo decisório governamental estava formalmente condicionado ao suposto
de amparo legal, que entrelaçava as ações do Executivo e do Legislativo. Ganha
saliência aqui a natureza concreta da relação entre os dois poderes estabelecida
pela Constituição de 46, onde as atribuições prescritas para o segundo, em
especial o controle sobre o orçamento público, deixavam um espaço de manobra
relativamente restrito para o primeiro (Nunes, 1997). Conforme Santos (1979, tese
de doutoramento; citado por Nunes, 1997), “mesmo políticas de curto prazo
tinham de ser autorizadas pelo legislativo antes de entrar em vigor, e a execução
de políticas era seguida de perto por atentas comissões do legislativo”. A
consecução dos objetivos de uma agenda política que se propunha a promover,
sob o comando do Estado, transformações rápidas e profundas na estrutura
produtiva do país prenunciava, portanto, dificuldades nas tarefas de gestão,
associadas às fricções na relação entre poder Executivo e Congresso.
Frente à questão, o Executivo dispunha, a rigor, de duas opções
estratégicas principais: criar uma sólida base de sustentação política no
Congresso ou tentar neutralizar as ingerências do Legislativo, aproveitando-se
das possibilidades abertas dentro das regras constitucionais estabelecidas para
ampliar, ao máximo, sua margem de autonomia decisória. Dada a ênfase
conferida à efetividade no tocante à consecução dos objetivos e metas definidas
pela política pública (Lafer, 1975; Draibe, 1985; Faro e Silva, 1991; Benevides,
226
1976; Nunes, 1997), a segunda alternativa emerge como aquela que aparentava
ser a mais indicada ou de perspectivas mais favoráveis de sucesso. De um lado,
evitava ou, pelo menos, atenuava as dificuldades e os custos, em termos de
tempo e recursos mobilizados, de construir e manter maiorias políticas sob
sistemas multipartidários como o brasileiro. De outro, minimizava os riscos do
obstrucionismo
parlamentar
que
constituem
um
traço
característico
no
funcionamento das democracias presidencialistas (Sartori, 1996; Lima Jr., 1997).
É nessa direção que irá convergir a sistemática decisória da
administração Kubitschek, deliberadamente orientada para a seleção de ações
mais apropriadas às oportunidades e constrangimentos do ambiente políticoinstitucional, entendidas e tratadas como aquelas com maior probabilidade de
sucesso na obtenção dos resultados perseguidos pela agenda pública. Isto se
materializa na prevalência daquilo que Draibe designa como “soluções mais
convenientes” (1985: 245), ou seja, formas de intervenção com menor potencial
de fricção junto ao Congresso e aos interesses organizados da sociedade afetos
às questões em consideração. Buscava-se contornar ou superar, nos limites
permitidos
pela
fluidez
e
opacidade
do
ordenamento
jurídico-normativo
prevalecente, os fatores de constrangimento que se interpunham ou poderiam se
interpor às iniciativas governamentais, avançando pela linha de menor resistência.
Para evitar negociações relacionadas às prioridades estabelecidas pelo poder
central, recorria-se, sempre que necessário, “a expedientes pouco ortodoxos,
ajustes marginais, esquemas provisórios e de curto fôlego (...)”, numa
“improvisação pragmática de saídas” (Draibe, 1985: 245), lançando mão de
arranjos informais para escapar, sem ruptura da legalidade, às restrições
constitucionais e ao controle do Legislativo.
Subproduto dessa mesma opção estratégica, que tende a conferir
maior centralidade à racionalidade técnica frente à negociação política nos
processos decisórios do governo, a sistemática do planejamento, que vinha sendo
objeto de ensaios anteriores, vai se transformar num importante instrumento da
gestão pública. O Plano de Metas, elaborado pelo Conselho do Desenvolvimento
227
em estreita colaboração com o BNDE (Lopes, 1991, depoimento; Cotrim, 1987,
depoimento), sintetiza os esforços desenvolvidos em tal direção durante a
administração Kubitschek. Ao mesmo tempo que sistematiza as diretrizes e metas
mobilizadoras da política pública, conferindo maior visibilidade aos objetivos e
setores prioritários estratégicos da agenda industrializante, contribui para
assegurar a consistência e a coerência das ações estatais no campo econômico.
Partindo do apreciável conjunto de estudos, documentos e projetos setoriais já
produzidos, o plano irá propor uma ambiciosa programação de investimentos em
novos segmentos industriais e na correlata expansão da infra-estrutura básica
(Leopoldi, 1991; Faro e Silva, 1991; Draibe, 1985), que se configuram nos vetores
do pretendido salto do país rumo a uma economia de perfil avançado e moderno.
A relativa fragilidade dos mecanismos institucionais de financiamento
aos investimentos produtivos, tanto privados quanto públicos, impunha, como
tarefa essencial à viabilização do Plano, a identificação de fontes de recursos à
altura das exigências das metas traçadas, passíveis de serem mobilizadas de
imediato, isto é, sem a necessidade de recorrer a reformas monetária ou fiscal de
maior profundidade. Como analisado por diversos autores (Draibe, 1985; Baer,
1996; Lafer, 1975; Faro e Silva, 1991; Nunes, 1997), a estratégia geral que será
adotada pelo Governo Kubitschek vai se orientar no sentido da solidificação de
nexos solidários entre o Estado e o capital privado, externo e interno. Numa
ponta, o Estado assume o papel de articulador e aglutinador de interesses da
iniciativa privada, criando oportunidades de negócios em setores produtivos novos
e dinâmicos, lastreadas numa variada gama de estímulos econômicos,
principalmente incentivos de natureza fiscal e creditícia. Na outra, passa a
participar mais ativamente como empresário, promovendo investimentos em
setores da indústria básica e na expansão e melhoria da infra-estrutura
econômica, indispensáveis ao êxito do esforço industrializante, mas pouco
atraentes para o capital privado. Esse intervencionismo estatal na esfera
produtiva irá adquirir particular intensidade no campo das atividades do sistema
elétrico (Draibe, 1985; Faro e Silva, 1991; Lima, 1995; Leopoldi, 1991), com a
228
aceleração do avanço das empresas públicas, federais e estaduais, sobre os
espaços abertos pela insuficiência dos investimentos privados, que tendem a se
descolar de vez das exigências de uma demanda em forte expansão (Faro e
Silva, 1991, Lima, 1995).
3.2
As metas de expansão do sistema elétrico e o aprofundamento do
processo de estatização
As transformações estruturais da economia pretendidas pelo Governo
Kubitschek supunham, entre outros requisitos, neutralizar os constrangimentos
associados à insuficiência no suprimento energético sobre a dinâmica das
atividades produtivas. Impondo-se como princípio unificador da política pública, a
promoção do esforço industrializante tende a condicionar, portanto, os rumos da
atuação do poder central no âmbito do sistema elétrico. Em termos mais
específicos, a definição de objetivos e metas produtivas a serem alcançados no
setor – o que é necessário fazer – vai se fundamentar em projeções da demanda
de energia, levando-se em conta as expectativas de expansão da atividade
industrial. Dessa sistemática decisória irá resultar a proposta de elevação da
capacidade instalada do parque de geração nacional do patamar de 3.491 MW,
correspondente a 1956, para 5.194 MW em 1960 e, por fim, para 8.255 MW em
1965 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), traduzindo um
crescimento à expressiva taxa média de 10% ao ano no período.
Em sintonia com a orientação pragmática que norteia a gestão
governamental na administração Kubitschek, a estratégia adotada com vistas à
viabilização do salto projetado na potência instalada do sistema será pautada pela
opção por mecanismos e formas de ação capazes de proporcionar respostas
produtivas mais rápidas e eficazes face às oportunidades e constrangimentos do
contexto. A implicação mais imediata dessa diretriz estratégica consiste no
desatrelamento do esforço de investimento a ser feito no setor de compromissos
mais efetivos com a promoção de avanços no plano político-institucional, o que
terá evidentes impactos sobre os projetos da Eletrobrás e do PNE. Sem o apoio e
229
a mobilização política do Executivo (Lopes, 1991, depoimento), a tramitação de
tais projetos no Congresso fica praticamente paralisada (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988).
Em primeiro lugar, nenhum dos dois projetos era necessário à
consecução dos objetivos em torno dos quais se articulava a política setorial do
Governo Kubitschek. De um lado, o papel a ser cumprido pela Eletrobrás não
apenas podia como vinha sendo desempenhado pelo BNDE, que se encontrava
técnica e administrativamente aparelhado para gerenciar a aplicação de recursos
na área de energia elétrica (Lima, 1988; Rangel, 1991, depoimento; Leite, 1988,
depoimento;
Lopes,
1991,
depoimento).
De
outro,
a
programação
de
investimentos na expansão do sistema definida no âmbito do Plano de Metas se
sobrepunha e esvaziava o significado instrumental da programação do PNE. Em
segundo lugar, e mais importante, são projetos que potencializavam mais
problemas que facilidades para a viabilização das metas traçadas para o setor.
De fato, qualquer vinculação formal das ações governamentais à aprovação das
propostas da Eletrobrás e do PNE significaria condicioná-las a um processo de
negociação reconhecidamente complexo e demorado (Lopes, 1991, depoimento),
dadas as restrições que vinham suscitando dentro e fora do Congresso (Rangel,
1988, depoimento; Lima, 1995; Leite, 1988, depoimento; Leopoldi, 1997),
anteriormente comentadas.
No caso do PNE, as implicações não ficavam circunscritas apenas ao
atraso que tal vinculação poderia provocar na execução dos projetos
programados para o setor, em função do tempo que seria dispendido nas
negociações com vistas à sua aprovação. Ao contrário, após aprovado, o Plano
atuaria no sentido de instrumentalizar o controle do Legislativo sobre as inversões
públicas na área, estreitando, em consequência, a margem de autonomia
decisória do Executivo na definição de prioridades de investimento. Não é de se
estranhar, portanto, o posicionamento diferenciado que o governo tende a
assumir frente ao mesmo, comparativamente ao projeto da Eletrobrás. A
neutralidade política que procura manter em relação ao último, pelo menos do
230
ponto de vista formal (Lopes, 1991, depoimento), não se estende ao primeiro
(Lopes,
1991,
1995,
depoimentos;
Cotrim
1988,
1995,
depoimentos;
Bhering,1995, depoimento). Interessado em neutralizar os constrangimentos
operacionais advindos da consolidação, sob a forma de lei, de uma programação
moldada segundo preferências e critérios que escapavam a seu controle, a
administração Kubitschek recorre a argumentos centrados na fragilidade técnica
do PNE para se mobilizar, ainda que de forma oblíqua, no sentido de solapar as já
reduzidas possibilidades de sucesso de sua tramitação no Congresso (Lopes,
1991, depoimento).
Deixando deliberadamente à margem qualquer iniciativa mais efetiva
no tocante à complementação do processo de negociação política das propostas
setoriais varguistas, que não atendiam aos novos objetivos traçados para o
sistema, o Governo Kubitschek concentra sua atenção na definição dos meios e
das estratégias de ação para a consecução do pretendido acréscimo de 4.764
MW na potência instalada do país – o salto de 3.491 MW em 1956 para 8.255
MW em 1965, anteriormente mencionado. Dentro de uma lógica decisória
pautada pelo privilegiamento de soluções com maior probabilidade de sucesso, o
eixo primário no desenho daquilo que o Estado deveria fazer consiste na
realização de uma análise da programação de investimento em geração das
diversas empresas concessionárias, tanto públicas quanto privadas64, com o
intuito de identificar e selecionar propostas técnica e economicamente exequíveis.
Desse mapeamento, conduzido pelo Grupo Técnico de Energia Elétrica (GTENE)
– subordinado formalmente ao Conselho de Desenvolvimento – irá resultar uma
relação de projetos que somavam uma produção da ordem de 3.664 MW ,
correspondendo a 76,9% da meta total estabelecida para o setor (Quadro 5). Do
crescimento projetado para a demanda, um mercado potencial da ordem de 1.100
MW (Quadro 5) estava a descoberto de projetos de investimento previamente
definidos, isto é, não contava com alternativas já desenhadas de atendimento.
64
Incluem-se aqui as propostas dos diversos planos regionais de eletrificação e do PNE, os trabalhos da
CMBEU e os programas de expansão das empresas privadas.
231
Explicita-se aqui a principal questão a ser enfrentada no tocante a proporcionar
respostas minimamente satisfatórias às exigências ou pressões advindas da
dinâmica do desenvolvimento nacional: a cobertura do descompasso entre a
disposição de investir das empresas – 3.664 MW - e os requisitos de investimento
considerados necessários para assegurar o suprimento corrente do mercado de
energia – 4.764 MW -, representando 23,1% do total programado (Quadro 5).
Quadro 5
Expansão da Potência Instalada de Energia Elétrica, por Grupo de
Empresas, conforme Programação do Plano de Metas (1957-1965)
Potência
Tipo de
(MW)
(%)
Privada
1.031
21,7
Pública Federal
1.146
30,8
Pública Estadual
1.167
24,4
Sub-total
3.664
76,9
Projetos não definidos
1.100
23,1
Total Geral
4.764
100,0
Empresa
Fonte: Brasil. Presidência da República. Conselho do Desenvolvimento, Plano de
Desenvolvimento Econômico (citado por Lima, J. L . Políticas de governo e
desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos 80
(1934-1984). Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995: 70)
Chama a atenção, no âmbito da programação proposta pelo GTENE, a
acentuada
prevalência
dos
investimentos
públicos
frente
aos
privados,
respectivamente, 72% e 28% do total. Como se trata, em essência, de mera
consolidação e sistematização de projetos preexistentes, que denotam, por sua
vez, a disposição de investir das principais empresas energéticas, impõe-se a
conclusão óbvia de que a acentuada ampliação do espaço ocupado pela esfera
pública nas atividades produtivas do sistema, materializada no período, não pode
ser atribuída a uma orientação estatizante do Governo Kubitschek. Trata-se, ao
contrário, de resultado que reflete os rumos de um percurso moldado ao longo
232
dos anos anteriores, num típico processo de dependência de trajetória
determinado, em última instância, pela retração dos investimentos das grandes
concessionárias privadas. Como argumenta a literatura do novo institucionalismo
(Powell, 1991; Jepperson, 1991), os resultados de decisões que são tomadas, ou
deixam de ser tomadas, no tempo t influenciam a conformação objetiva do
contexto, com consequentes efeitos sobre os interesses, as preferências e os
atores relevantes num dado campo de atividade, repercutindo nas decisões que
serão tomadas no tempo t+1. A deterioração da prestação dos serviços de
eletricidade, subproduto da alocação insuficiente de recursos por parte das
concessionárias privadas, acabou motivando a criação e a expansão de
empresas públicas, que foram gradativamente alargando sua participação na
implantação de novas plantas geradoras. Constrangido a fazer aquilo que o
mercado não vinha fazendo de forma satisfatória, o Estado assume crescentes
funções empresariais na área, em detrimento do capital.
Vale dizer, a
programação inscrita no Plano de Metas se limita, a rigor, a sancionar um
direcionamento objetivo modelado pela própria dinâmica institucional e econômica
do setor.
Além da prevalência da intervenção estatal sobre a iniciativa privada, a
programação
setorial
proposta
no
Plano
de
Metas
apresentava
outra
característica marcante. Estruturada primariamente sobre as intenções de
investimento das empresas – 76,9% da meta total programada (Quadro 5) -, nem
todos os projetos selecionados pelo GTENE contavam com esquemas de
financiamento formalmente assegurados. Em termos mais específicos, apenas
68,3% do total tinha suporte financeiro previamente definido, com a parcela
restante, 31,7% do total, dependendo de viabilização financeira (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Assim, se o principal desafio emanado
do plano era a alavancagem de novos projetos compatíveis com o cumprimento
das metas traçadas para a expansão do sistema, a tarefa essencial que se
colocava no tocante à possibilidade de obtenção de resultados satisfatórios em
233
sua implementação consistia no reforço ou ampliação das fontes de recursos para
inversões na área.
Numa circunstância em que a programação proposta se apoia
primariamente nas decisões autônomas de investimentos das empresas atuantes
na área, a estratégia seguida pelo GTENE com vistas ao enfrentamento do
problema de insuficiência de recursos para a implantação do conjunto de projetos
propostos converge inicialmente para o incremento da receita própria do sistema.
O caminho que vai se configurar como o mais indicado para a questão, sob a
ótica da racionalidade técnica então dominante no núcleo decisório do governo
(Cotrim, 1987, depoimento), passava pela revisão das regras tarifárias - principal
reivindicação tanto da Light quanto da Amforp (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988) – e que interessava não apenas às empresas privadas, mas
também às estatais (Cotrim, 1987, depoimento). Além de criar condições mais
favoráveis à implementação dos investimentos decididos do setor, através do
aumento da capacidade de autofinanciamento das empresas, a adoção de tal
medida atuava também no sentido de estimular novos investimentos na área, face
à melhoria da rentabilidade econômica da atividade.
A intenção de promover alterações na sistemática tarifária se
materializa no projeto de lei nº. 1.898, enviado pelo Executivo federal à
apreciação do Congresso em setembro de 1956. As inovações propostas
compreendiam desde a atualização do valor atribuído aos investimentos
realizados pelas concessionárias - base do cálculo tarifário, conforme dispositivos
do Código de Águas -, que passaria a ser corrigido monetariamente, de acordo
com a inflação, à elevação de 10% para 12% da taxa de remuneração da
prestação do serviço, passando pela flexibilização das regras e condições
exigidas para a promoção de alterações nas tarifas (Cotrim, 1987, depoimento;
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). São mudanças que não
apenas implicavam a efetiva derrubada do princípio do custo histórico, mas que
restringiam sensivelmente o escopo e o alcance do controle público sobre a
periodicidade e intensidade dos reajustes de preços praticados pelo setor (Centro
234
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Trazia novamente à cena, portanto,
temas que sempre estiveram no cerne das controvérsias em torno da política de
fixação de tarifas instituída pelo Código e que, mais uma vez, vão suscitar
polêmicas e resistências no Congresso. A oposição às medidas, contudo, assume
outra configuração política, em sintonia com o argumento neoinstitucionalista de
que as preferências dos atores são contigentes de aspectos relevantes do
contexto. Se, anteriormente, as principais resistências se aglutinavam em torno de
posições refratárias ao incremento do intervencionismo estatal no setor, o projeto
governamental tende a encontrar maior fricção junto a parlamentares identificados
com a corrente nacionalista (Cotrim, 1995, depoimento; Lima, 1995), para os
quais as mudanças propostas iriam beneficiar sobretudo aos interesses dos
grupos Light e Amforp, que ainda mantinham posição destacada no tocante à
distribuição de energia elétrica (Cotrim, 1987, depoimento).
Espelhando a diretriz estratégica de privilegiar soluções pela linha de
menor resistência (Draibe, 1985), as fricções suscitadas pelo projeto no âmbito do
Congresso (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995) vão
conduzir a um recuo tático no encaminhamento da matéria. Após tentativas
frustradas de negociação com o Legislativo (Cotrim,1987, depoimento; Lima,
1995), o governo desiste da intenção de promover uma reforma mais abrangente
na política tarifária. A linha de atuação será deslocada então da revisão dos
dispositivos tarifários instituídos pelo Código para a conclusão do processo de
regulamentação destes mesmos dispositivos, num trade off entre o alcance ou
impacto das mudanças e a agilidade em sua implementação65.
As preferências e as condutas estratégicas dos atores, como mostram
as abordagens neoinstitucionalistas, são fortemente influenciadas não apenas
pelos constrangimentos, mas também pelas oportunidades proporcionadas pelo
contexto. Além de escapar à necessidade de esforços no sentido da viabilização
política, já que poderia ser feita através do recurso ao poder de decretar conferido
235
ao Executivo pelo arcabouço constitucional vigente, a opção pela regulamentação
via-se circunstancialmente favorecida pela existência de um anteprojeto referente
à matéria que o CNAEE havia elaborado ao longo dos anos anteriores.
Aproveitando-se de tal anteprojeto, fruto de uma decisão relativamente autônoma
tomada dentro da burocracia estatal, o governo pôde formular, num prazo
relativamente curto, proposta abrangente de regulamentação dos serviços de
eletricidade (Cotrim, 1987, depoimento), que será colocada em vigor através do
Decreto nº. 41.019, de fevereiro de 1957 (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988; Cotrim, 1987, depoimento). A despeito de significar um recuo no
tocante ao escopo e intensidade das mudanças originalmente pretendidas pela
administração Kubistchek na sistemática tarifária - a taxa de remuneração foi
mantida em 10% sobre o valor dos investimentos das empresas e a aplicação do
princípio do custo histórico preservada - o decreto reveste-se de importância ao
eliminar, em definitivo, os constrangimentos institucionais que ainda persistiam
quanto à promoção de reajustes nos preços da energia elétrica com base nos
dispositivos instituídos pelo Código, criando condições mais favoráveis para o
incremento de receita do setor.
No entanto, apesar de sinalizar para melhorias na rentabilidade
operacional das atividades elétricas, a promulgação do decreto vai se revelar
insuficiente, por si só, para influenciar, de forma sensível, a disposição de investir
das concessionárias privadas. De um lado, as regras e procedimentos para o
reajuste das tarifas, embora ampliassem a autonomia decisória das empresas no
tratamento da matéria, não deixavam muita margem de manobra para elevações
substanciais nos preços cobrados ao consumidor. Além de periodicidade trienal, a
revisão tarifária de preços continuava submetida ao controle e fiscalização do
CNAEE, tendo como referência os custos de prestação do serviço (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). De outro, a regulamentação ocorre num
momento em que o avanço da concorrência estatal na esfera da produção se
65
A revisão das regras tarifárias, nos termos da iniciativa frustrada do governo, somente será realizada nos
anos sessenta, quando as condições do contexto institucional tornam-se mais favoráveis à sua
implementação.
236
prenunciava irreversível, o que se evidencia, com nitidez, na composição dos
investimentos programados pelo Plano de Metas (Quadro 5). A esses aspectos,
somava-se ainda o fato de o potencial hidráulico dentro das áreas de concessão
da Light e mesmo da Amforp já se encontrar praticamente esgotado (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Vale dizer, mesmo que se dispusessem
a investir, tais empresas teriam que caminhar na direção de aproveitamentos
cada vez mais distantes de seus mercados de consumo, com evidentes impactos
nos custos de transmissão e, por extensão, no montante de recursos a serem
mobilizados, o que, obviamente, atuava como fator de desestímulo à alocação de
recursos na área.
Na ausência de perspectivas favoráveis de dinamização do lançamento
de novos projetos produtivos por parte das grandes concessionárias privadas, a
promoção dos investimentos necessários ao cumprimento das metas de
expansão do sistema estabelecidas no Plano de Metas pela política setorial
convergia, por exclusão, para a esfera de atuação das empresas públicas. Se não
existiam alternativas factíveis sob a ótica do mercado, o caminho possível era o
incremento do intervencionismo estatal na área. A magnitude do esforço de
investimento a ser feito, no entanto, supunha uma capacidade de mobilização de
recursos que ultrapassava em muito o incremento de receita operacional
potencializado pela regulamentação dos dispositivos tarifários do Código (Cotrim,
1987, depoimento). Os limites no potencial de autofinanciamento do sistema
implicavam, portanto, a necessidade de se recorrer ao aporte de recursos extrasetoriais. Para lidar com o problema, a estratégia desenhada pelo GTENE
consistiu, em essência, na alavancagem de fontes complementares de
financiamento para os projetos produtivos do setor, passíveis de serem
mobilizados no curto prazo, conjugada à otimização na aplicação de tais recursos.
A alternativa percebida pelo GTENE como técnica e politicamente
viável para alavancar recursos para o setor remete a uma combinação de fontes
de financiamento externa e interna. A primeira vertente corresponde à retomada
da contratação de empréstimos junto às agências internacionais de fomento que,
237
como visto anteriormente, fora interrompida durante a administração varguista,
com a dissolução da CMBEU. Num esforço diplomático bem sucedido junto ao
governo americano, a administração Kubitschek consegue reabrir o canal de
negociação com o Eximbank e intensificar as relações com o Bird, o que permitirá
obter recursos não apenas para projetos que haviam sido examinados pela
CMBEU, mas também para novos investimentos no sistema (Lopes, 1991,
depoimento; Cotrim, 1987, depoimento). A segunda se traduz na imposição de um
direcionamento objetivo à atuação do BNDE, levado a assegurar suporte
financeiro para empreendimentos setoriais priorizados pelo Executivo. As
circunstâncias de uma unicidade de comando 66 facilitavam a materialização desse
alinhamento operacional, que não é automático nem se produz de forma
espontânea no âmbito da burocracia estatal, permitindo que decisões tomadas no
núcleo central de planejamento do governo, isto é, no Conselho do
Desenvolvimento e nos grupos técnicos sob sua coordenação, fossem
transmutadas em prioridades do banco, sem fricções institucionais de maior
relevância.
Contraface da ênfase na otimização do uso da base relativamente
estreita de recursos passíveis de serem mobilizados na implementação dos
investimentos do setor, a busca de soluções de maior eficiência alocativa
converge para a priorização de “potenciais de elevada capacidade, cujo
aproveitamento oferecesse mais econômicas condições de realização” (Secretária
Geral do Conselho do Desenvolvimento, 1957; reproduzido de Cotrim, 1994,
Anexo IV). Aponta-se aqui na direção da apropriação de ganhos de escala, como
forma de rebaixar ao máximo o custo unitário de geração. A resultante da adoção
dessa lógica decisória será a concentração de esforços na construção das usinas
hidrelétricas de Furnas e Três Marias, que irão assinalar, ao mesmo tempo, uma
sensível mudança no perfil dos projetos de geração e a consolidação do
protagonismo das empresas públicas nas atividades produtivas do sistema.
66
A secretaria geral do Conselho do Desenvolvimento e a presidência do BNDE eram ocupadas
simultaneamente por Lucas Lopes.
238
Fatores circunstanciais, mais especificamente, a pressão da demanda por
eletricidade e as dificuldades defrontadas no financiamento dos projetos
necessários à adequada expansão do sistema vão determinar não só o
aprofundamento do intervencionismo estatal na área, mas um novo salto na
escala ótima das plantas geradoras, que se deslocam para patamares acima de
1.000 MW.
3.3
Da viabilidade técnica à viabilidade política: o difícil caminho na
transição para uma racionalidade sistêmica
As principais dificuldades no suprimento energético do país, como
visto, se concentravam nos estados do Centro-Sul do país, para os quais se
estimava a ocorrência, no início dos anos sessenta, de um déficit da ordem de
1.000 MW, caso não fossem promovidos investimentos complementares aos
projetos programados pelas concessionárias atuantes na área (Cotrim, 1994).
Dando materialidade a uma das críticas mais recorrentes encontradas na
literatura política e econômica acerca da eficiência alocativa do mercado, os
resultados agregados das decisões autônomas das empresas atuantes na área
não se revelavam convergentes com a trajetória que se delineava para o
consumo de eletricidade da região, isto é, com os interesses dos usuários dos
serviços
por
elas
prestados.
Os
possíveis
caminhos
no
tocante
ao
encaminhamento de soluções para o problema podem ser sintetizados, a rigor,
em duas alternativas principais, ambas envolvendo o protagonismo estatal. A
primeira passava por um processo de negociação junto às empresas energéticas
com vistas ao ajustamento de suas decisões de investimento às exigências do
incremento esperado da demanda; a segunda, pela ampliação da oferta através
de empreendimentos hidrelétricos implantados pelo poder público.
A adoção da primeira alternativa supunha uma capacidade de
coordenação e comando capaz de submeter as lógicas decisórias dos principais
interesses constituídos do setor a uma lógica institucional sistêmica, para a qual o
governo não estava adequadamente aparelhado. O arcabouço institucional
239
estabelecido pelo Código de Águas não proporcionava ao Executivo federal
instrumentos que lhe permitissem impor sua autoridade sobre a atuação das
empresas concessionárias, no sentido de forjar um alinhamento de seus planos
de expansão aos objetivos e metas traçados pela política pública. Sem tais
instrumentos, os custos da negociação com vistas à obtenção da cooperação
dessas mesmas empresas poderiam ser excessivamente elevados e os
resultados não atenderem aquilo que se buscava alcançar. São questões que
faziam da segunda alternativa uma opção mais razoável, com perspectivas mais
favoráveis de êxito. De um lado, assumir diretamente a responsabilidade pelos
investimentos permitiria ao governo minimizar a margem de riscos e incertezas
subjacentes à sua realização, decorrente do maior controle do processo advindo
da centralização decisória. De outro, criava condições para a adoção de soluções
econômicas mais eficientes, de menor custo da energia gerada, através da
ampliação das oportunidades para ganhos de escala na expansão do sistema.
Aproveitamentos hidrelétricos de grande porte, como Furnas e Três
Marias, emergem nesse contexto como alternativa mais eficaz, do ponto de vista
técnico-econômico, para o incremento da potência instalada da região Sudeste.
Adotar tal solução, contudo, tinha repercussões importantes sobre os interesses e
as práticas que conferiam materialidade ao setor. O sentido básico das mudanças
transparece na exposição de motivos, relativa à matéria, encaminhada pelo
Conselho do Desenvolvimento à Presidência da República, onde se afirma que “a
concentração de recursos e de esforços em obras maciças do porte de Três
Marias e Furnas enseja resultados mais rápidos e frutíferos do que a dispersão
das atenções e dos recursos por grande número de obras de pequeno vulto”
(Conselho do Desenvolvimento, 1957; reproduzido por Cotrim, 1994, Anexo IV).
Se permitia atender de forma mais eficiente às necessidades de expansão do
sistema, como argumentava o governo, não havia como descurar as interfaces da
implantação de grandes projetos de geração com os planos de expansão das
principais concessionárias atuantes na área, tanto no que se refere à
240
comercialização final da energia a ser produzida quanto no tocante à concorrência
pelos recursos passíveis de serem mobilizados para investimentos na atividade.
O suposto de racionalidade técnica não permitia, assim, qualquer
presunção
de
encaminhamento
não-problemático
na
inclusão
de
um
aproveitamento com o porte de Furnas na relação de investimentos que
compunham a programação setorial do Plano de Metas. Num reconhecimento
implícito do conflito de interesses que seria suscitado pela construção da usina, o
governo federal, através do GTENE, vai recorrer a uma sistemática decisória
fechada, de defesa contra possíveis ingerências das empresas atuantes na área,
para assegurar a priorização do projeto. A adoção de tal estratégia, que permitia
evitar desvios de rota em relação aos objetivos que se pretendia alcançar, não
pode ser dissociada, por sua vez, das facilidades proporcionadas pelo esquema
centralizado e informal de poder que funcionava em estreito vínculo com a
Presidência da República (Draibe, 1985; Nunes, 1977; Benevides, 1991; Lafer,
1977). É este arranjo informal, abrindo espaço para o que Benevides (1991)
denomina “administração de notáveis”, isto é, a autonomia decisória conferida a
pessoas que ocupavam posições-chave na estrutura “paralela” e efetiva do
comando da administração federal que possibilita a transformação da usina de
Furnas e, junto com ela, Três Marias, em prioridades setoriais e, mais importante,
a superação dos obstáculos institucionais e econômicos que serão defrontados
em sua implementação.
Descoberto de forma acidental no início dos anos cinquenta, o
aproveitamento de Furnas vinha sendo estudado pela Cemig 67 , embora sem
perspectivas ou intenção de construção imediata (Cotrim, 1994). Com potencial
superior a 1.000 MW, equivalente a cerca de 1/3 da capacidade instalada do
parque energético brasileiro no período (Centro da Memória da Eletricidade no
67
Para desenvolver os estudos com vistas ao aproveitamento do potencial hidráulico de Furnas, a Cemig
contratou uma empresa especializada - a International Engineering Company, sediada nos USA (Cotrim,
1994).
241
Brasil, 1988), a usina ultrapassava, em muito, a demanda do mercado da
empresa,
além
de
exigir
investimentos
incompatíveis
com suas
reais
possibilidades de mobilização de recursos. Por sua escala produtiva, Furnas só
poderia ser construída à época como um empreendimento que transcendesse o
âmbito estadual ou, mais precisamente, como um projeto de abrangência
regional. A oportunidade para que isto ocorra acaba sendo criada por um fator
circunstancial, que escapa ao controle da empresa: a necessidade da promoção
de pesados investimentos em geração para evitar o colapso que se avizinhava no
suprimento energético do mercado da região Centro-Sul, diagnosticada no âmbito
da programação setorial do Plano de Metas.
Sob o peso das influências pessoais de John R. Cotrim, na condição de
coordenador do GTENE, e de Lucas Lopes, na condição de secretário geral do
Conselho do Desenvolvimento e presidente do BNDE, o aproveitamento de
Furnas vai ser deslocado da esfera decisória estadual para a federal, o que o
levará a se transformar na iniciativa mais marcante do Governo Kubitschek no
setor elétrico. O relato de Cotrim, pautado por forte vezo personalista,
é
elucidativo a esse respeito: “o projeto de Furnas foi concebido por mim, quando
diretor técnico da Cemig, foi estudado por mim, como membro do Conselho do
Desenvolvimento, e foi também aprovado por mim na condição de coordenador
do GTENE. E o Lucas Lopes, que era o presidente da Cemig na época do
estudo, era o presidente do BNDE e do Conselho do Desenvolvimento na hora de
tomarmos a decisão” (1995: 115, depoimento). Refletindo, por sua vez, o canal
direto de comunicação entre este núcleo decisório e a Presidência da República,
a construção da usina, proposta pelo Conselho em exposição de motivos datada
de fevereiro de 195768 , será declarada, por despacho presidencial do mesmo dia,
como “de alta prioridade no plano de obras governamentais”69, o que determina e
“legitima” sua inclusão no Plano de Metas.
68
Exposição de Motivo 010/57, do Conselho do Desenvolvimento.
Despacho PR. 13.480-57 da Presidência da República, datado de 25 de fevereiro de 1957 e publicado no
Diário Oficial de 07 de março de 1957.
69
242
Produto de uma decisão fechada do núcleo central do poder, a
priorização de Furnas acabou se dando sem a prévia definição dos meios para
transformá-lo em realidade. Da construção à distribuição final da energia a ser
gerada, todos os parâmetros operacionais do empreendimento ainda se
encontravam em aberto (Cotrim, 1994), o que compreendia tanto aspectos
técnico-administrativos quanto de natureza política. Essa circunstância tornava
sua viabilização fortemente dependente da capacidade de formulação e execução
por parte do governo federal. As tarefas a serem realizadas com vistas à
implantação da usina englobavam desde o detalhamento técnico do projeto à
construção propriamente dita da obra, passando pela mobilização de recursos
financeiros e pela busca de soluções adequadas para os problemas associados
às suas interfaces com as atividades das empresas atuantes na área. O
encaminhamento do processo irá seguir o estilo consagrado pelo Governo
Kubitschek, fundamentando-se na opção por ações percebidas como mais
eficazes ou convenientes face às oportunidades e aos constrangimentos do
contexto.
O alinhamento a uma conduta estratégica fundada no pragmatismo
tecnocrático se manifesta já na definição do agente responsável pelo
empreendimento. Como a administração federal não estava adequadamente
aparelhada para o desempenho da tarefa (Cotrim, 1994) – a Chesf fora
constituída para atuar na bacia do rio São Francisco -, a criação de uma nova
empresa energética com a finalidade precípua de construir a usina surge como
caminho mais indicado a ser seguido. Além de proporcionar resposta efetiva e
imediata ao problema, essa opção tinha, a seu favor, o fato de favorecer o acesso
aos recursos do FFE, proporcionado pela legislação que disciplinava sua
aplicação. Em termos mais específicos, tal legislação permitia ao BNDE, na
condição de gestor do Fundo, “subscrever ações de sociedades de economia
mista controladas pela União atuantes na área de energia elétrica (...), bem
como conceder-lhes empréstimos, (...) por conta da futura Eletrobrás” (Cotrim,
1994: 104). São dispositivos que não apenas conferiam expressiva margem de
243
autonomia decisória à atuação empresarial do governo federal na área, como
também asseguravam, de partida, fonte potencial de financiamento para o
investimento, através de antecipação de receita do FFE.
Assim, num arranjo emblemático das soluções pouco ortodoxas do
período, para responder pela implantação do empreendimento será proposta a
constituição da Central Elétrica de Furnas S. A. (FURNAS), na condição de
subsidiária da Eletrobrás, cujo projeto ainda não fora aprovado pelo Congresso e
sequer contava com apoio efetivo do governo federal. É também na condição de
subsidiária da Eletrobrás que a nova empresa irá levantar empréstimos junto ao
BNDE para o financiamento da construção da usina. Viabilizados com base no
esquema informal de poder, mais especificamente o envolvimento pessoal de
Lucas Lopes com o projeto, tais empréstimos se fundamentam na antecipação de
receita futura da Eletrobrás, num procedimento que, embora legal, terá efeitos
secundários extremamente gravosos para a mesma. Em outras palavras, o
comprometimento prévio de receita vai implicar, quando da efetiva constituição da
Eletrobrás que, como se verá mais à frente, se dará no início dos anos sessenta,
severos constrangimentos financeiros a seu funcionamento (Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988; Richer, 1995, depoimento; Cotrim, 1995,
depoimento).
Concebida como instrumento para lidar com o problema da inexistência
de um agente previamente credenciado para responder pela construção da usina,
a criação da nova empresa e, com ela, a viabilidade da própria solução proposta
se defrontavam com determinados constrangimentos de natureza operacional,
derivados da segmentação das áreas de mercado em torno das quais se
organizava a dinâmica de funcionamento
do sistema. Numa atividade
verticalmente integrada, isto é, onde cada empresa gerava a própria energia que
comercializava, os principais centros de consumo da região Sudeste, que
deveriam absorver a produção de Furnas, estavam quase que integralmente
repartidos entre algumas poucas concessionárias estaduais - Cemig, em Minas
Gerais; Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa) e Companhia Elétrica do Rio
244
Pardo (Cherp), em São Paulo (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988)
- e subsidiárias dos grupos Light e Amforp. Esse fato tornava inevitável a busca
de entendimento ou acordo prévio com tais empresas, com vistas à distribuição
da energia a ser gerada. Assim, se o fechamento do processo decisório permitira
assegurar a priorização do projeto no âmbito da programação setorial do Plano de
Metas, a viabilização de sua implementação não podia prescindir da negociação
com as concessionárias afetas à questão. Num processo que se prenunciava no
mínimo complexo, dada a diversidade de interesses envolvidos, a estratégia de
negociação seguida pelo governo federal com o intuito de garantir o apoio e a
adesão ao empreendimento terá, como principal moeda de troca, a participação
societária na empresa a ser organizada, convenientemente constituída como uma
companhia de capital misto e, através dela, no próprio projeto.
Num aparente paradoxo, a posição que vai se revelar mais refratária à
construção de Furnas remete ao governo de Minas Gerais (Cotrim, 1987,
depoimento; Bhering, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento), exatamente
onde
se
localizava
o
aproveitamento
hidrelétrico.
Embora
estivesse
desenvolvendo o projeto de engenharia da usina, a Cemig não a tratava como
prioritária, à medida que a maior parte da energia gerada, caso a obra fosse
construída, teria de ser exportada para outras regiões (Cotrim, 1994), dada a
dimensão relativamente estreita do mercado mineiro. A preferência da estatal
mineira recaía na implantação de Três Marias – usina de menor porte, cuja
produção atenderia basicamente à demanda do próprio estado -, ainda que não
tivesse planos imediatos de construí-la, até porque os recursos que dispunha para
investimentos já estavam comprometidos com outros projetos hidrelétricos
considerados de maior prioridade em seu plano de expansão. A firme disposição
do governo federal em levar em frente a implantação de Furnas, contudo, irá levar
a uma mudança contingente na conduta estratégia da empresa, sendo percebida
como uma oportunidade para viabilizar financeiramente Três Marias. Assim, numa
negociação que vai se revelar bem sucedida sob a ótica de seus interesses
245
corporativos, a Cemig condiciona o apoio a Furnas a uma solução satisfatória
para Três Marias (Cotrim, 1994; Lopes, 1991, depoimento).
Premido pelo interesse na obtenção de respostas rápidas no tocante à
construção de Furnas, o governo federal assume compromisso com a
implantação
simultânea
de
Três
Marias,
aproveitando
o
fato
de
tal
empreendimento ter sido concebido originalmente pela Comissão do Vale do São
Francisco (Codevasf), com características de um projeto de fins múltiplos70. No
acordo que será celebrado com o governo estadual, a construção da barragem
ficaria a cargo da União, a despeito de não existirem recursos previamente
assegurados para a o projeto, cabendo à Cemig apenas a instalação dos
equipamentos de geração elétrica da usina (Cotrim, 1994; Lopes, 1991,
depoimento). Dentro do pragmatismo que caracteriza a gestão pública no
Governo Kubitschek, o financiamento das obras será viabilizado, mais uma vez,
através de uma saída improvisada: a concessão de empréstimo pelo BNDE,
lastreado em antecipação de receita orçamentária da Codevasf (Cotrim, 1994).
Subproduto da negociação de Furnas, Três Marias se antecipa “no tempo para os
propósitos e a dimensão do mercado da Cemig” (Campolina, 1981: 92), num
arranjo que lhe é extremamente favorável e que pode ser entendido como a
compensação “cobrada” por sua cooperação com o governo federal.
Como contrapartida dessa “combinação engenhosa” , na expressão de
Lopes (1991, depoimento), que transforma Três Marias num “projeto muito barato”
(Cotrim, 1994: 77) para a empresa, a Cemig é levada não apenas a se engajar
mas a colaborar de forma efetiva com o processo de construção de Furnas,
enquanto a empresa responsável pelo projeto não estivesse formalmente
implantada. Assim, atendendo a solicitação do governo federal, assume a
responsabilidade institucional pelo empreendimento junto ao CNAEE, com o
intuito de acelerar a tramitação burocrática da concessão do aproveitamento e a
liberação legal da área requerida pela obra, além de dar andamento aos trabalhos
70
Entre outras finalidades, a barragem de Três Marias visava o controle de enchentes e a regularização da
vazão no médio e baixo curso do rio (Cotrim, 1987, depoimento; Lopes, 1991, depoimento).
246
de detalhamento do projeto de engenharia da usina (Cotrim, 1994). Esse arranjo
institucional permitirá que, ao entrar em atividade, a nova empresa encontre o
projeto num estágio avançado de maturação ou, mais precisamente, em
condições de início imediato da obra (Cotrim, 1994).
As negociações junto à administração pública de São Paulo
compreendem, em princípio, questões relativamente menos complexas que
aquelas tratadas com Minas Gerais. Ao contrário dos entendimentos com a
Cemig, onde estavam em jogo aspectos relacionados à implantação propriamente
dita da obra que, vale lembrar, constituía um projeto concebido originalmente pela
empresa, o envolvimento das concessionárias paulistas no empreendimento se
prendia, a rigor, à participação na distribuição da energia a ser gerada pela usina.
No entanto, numa postura “oportunista” similar à adotada pelo poder público
mineiro, o governo paulista condiciona sua adesão a Furnas ao apoio da União à
construção das usinas de Urubupungá e Caraguatatuba (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988) - obras consideradas prioritárias no âmbito do plano
de eletrificação do estado e que não dispunham de fontes de financiamento.
Interessado na resolução rápida do problema, o governo federal cede
parcialmente à pressão. Inclui tais projetos entre as prioridades setoriais do Plano
de Metas (Cotrim, 1994), sem a prévia definição da origem dos recursos
necessários à viabilização dos mesmos. Numa saída conveniente, remove o
obstáculo imediato que se interpunha à consecução de seus propósitos, criando
compromissos a serem equacionados no futuro, embora sem maiores garantias
de que viessem a ser, e de fato não serão, cumpridos.
Se, para as concessionárias estaduais de Minas Gerais e de São
Paulo, a usina de Furnas era percebida fundamentalmente como concorrente na
disputa dos recursos públicos vinculados a investimentos em geração – os
recursos do FFE -, para Light e Amforp, que não tinham, por restrição legal,
acesso a esta fonte de financiamento, representava uma possível alternativa no
enfrentamento das dificuldades que vinham encontrando quanto ao suprimento da
crescente demanda de suas áreas de mercado (Cotrim, 1994, 1987, depoimento).
247
O interesse na energia a ser gerada pelo projeto, contudo, não implicava, por si
só, uma adesão automática à participação no empreendimento, já que
constrangimentos de ordem financeira tendiam a bloquear qualquer compromisso
mais efetivo com a construção da obra. De fato, ambas estavam envolvidas na
execução dos respectivos programas de expansão, o que praticamente exauria,
no curto prazo, suas capacidades de mobilização de recursos (Cotrim, 1994;
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
No entanto, ainda que contribuindo apenas marginalmente com o
financiamento da obra, interessava ao governo federal a inserção formal da Light
e da Amforp no empreendimento, tendo em vista os arranjos relativos à
distribuição da energia a ser gerada, onde inevitavelmente teriam de ser
envolvidas, face à amplitude dos mercados que controlavam no eixo Rio de
Janeiro/São Paulo. Além disto, tal participação era vista como elemento de
facilitação na contratação de empréstimos junto ao Eximbank e BIRD71, sem os
quais dificilmente o projeto poderia ser viabilizado. Refletindo o entrelaçamento de
interesses, a “saída” encontrada pelo governo consistiu na minimização do capital
inicial da empresa que se pretendia criar para conduzir a implantação da usina.
Furnas será constituída, assim, com capital relativamente pequeno - uma
“empresa piloto”, na descrição de Cotrim (1994) -, de forma a neutralizar os
constrangimentos financeiros que dificultavam a adesão dos grupos estrangeiros
ao projeto. O caráter circunstancial do arranjo estabelecido se explicitará pouco à
frente. Sem condições de acompanhar os sucessivos aumentos de capital da
nova empresa, realizados pari passu aos avanços na implementação da obra, as
participações acionárias da Light e da Amforp na sociedade irão cair de forma
rápida para se tornarem quase que simbólicas antes mesmo do término da
construção da barragem.
71
Conforme Cotrim (1994), a participação da Light era importante no sentido de atestar, no processo de
avaliação da viabilidade da UHE Furnas feita pelo BIRD, a necessária capacidade técnica na implantação da
obra.
248
Equacionados os problemas de natureza operacional, as obras de
Furnas foram iniciadas em 1958, com recursos originários do FFE e de
financiamentos do BIRD e do BNDE. A entrada em operação da usina se dará em
1963, num quadro de forte pressão da demanda. Sem enfrentar constrangimentos
institucionais de maior relevância, a construção de Três Marias se fez em ritmo
ainda
mais
acelerado.
Financiadas
por
uma
combinação
de
recursos
orçamentários da Comissão do Vale do São Francisco e empréstimos do BNDE,
as obras da barragem foram concluídas já em 1959, embora a usina só tenha
entrado em operação no ano de 1962 (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
3.4 A emergência de novos interesses e conflitos em torno dos
investimentos hidrelétricos
Por suas características técnicas e produtivas, Três Marias e,
principalmente, Furnas representam um marco na trajetória do desenvolvimento
das atividades elétricas no país. De um lado, consolidam a tendência à mudança
de escala das plantas geradoras, esboçada com a construção de Paulo Afonso e
as sucessivas ampliações de usinas da Light. De outro, sinalizam para a
reconfiguração dos arranjos organizacionais do setor, dando o primeiro e decisivo
impulso para a ruptura com a segmentação das áreas de mercado e a correlata
verticalização das empresas prestadoras do serviço, cuja resultante será a
progressiva interligação do sistema em redes regionalizadas e, mais à frente, em
nível nacional.
A mudança na escala produtiva dos empreendimentos hidrelétricos
traduz a passagem de projetos baseados em barragens de pequena altura e
reduzidos volumes de acumulação de água, associados ao aproveitamento de
quedas naturais, para projetos que envolvem a construção de grandes barragens,
com a acumulação de expressivos volumes de água. Do processo resultam
profundas transformações nas interferências sobre o ambiente em que os projetos
se inscrevem, repercutindo sobre a natureza e intensidade dos conflitos de
249
interesse
potencializados
pelos
investimentos
exponencial da área inundada pelo reservatório
72
do
setor.
O
crescimento
multiplica os danos patrimoniais
ocasionados pelas usinas e amplia significativamente o conjunto populacional
afetado, conferindo expressividade a questões até então sem maior relevância ou
representatividade na dinâmica decisória do setor. Esse processo se dá em
conexão com um movimento de dissociação espacial entre a produção e o
consumo de energia. O vínculo territorial entre os benefícios e os custos sócioeconômicos associados às plantas geradoras, que existia quando da prevalência
de projetos de pequeno porte, tende a ser rompido. Enquanto os custos
preservam
características
espacialmente
difusos.
locais
e
regionais,
Amplificados
pela
os
benefícios
mudança
na
tornam-se
escala
dos
empreendimentos, os interesses impactados adquirem configuração de processos
sociais concretos, referidos a uma dada territorialidade. Em contraposição, os
benefícios se desterritorializam para serem confundidos, a rigor, com os
interesses imbricados nas ações da empresa responsável pelo investimento.
A
despeito
de
sua
maior
expressividade,
as
mudanças
na
materialidade dos distúrbios sócio-ambientais provocados pelos investimentos do
setor não se fazem acompanhar de qualquer alteração no enquadramento
institucional, que remete, em última instância, aos dispositivos do Código de
Águas, discutidos no capítulo anterior. O aprimoramento do arcabouço
regulatório, no sentido da incorporação das transformações que ocorrem na
dinâmica dos processos sociais e econômicos não é automático, como sugere
uma leitura funcionalista, na linha da eficiência da história. Ao contrário, sua
ocorrência depende da percepção da questão por parte dos interesses relevantes
da sociedade e, o que é mais importante, do balanço de forças políticas
favoráveis ou opostas à mesma. A ênfase na eficiência econômica dos
investimentos em geração, prevalecente na esfera decisória do poder público,
tende a bloquear, de partida, a introdução de inovações no tratamento da matéria.
72
Como ilustração, registra-se que a extensão dos espelhos d’água formados por Três Marias e
2
2
Furnas supera 1.000 km , contra apenas 16 km de Paulo Afonso (Müller, 1995).
250
Sem amparo de legislação específica, o que se consubstancia como
impacto dos projetos hidrelétricos é contingente da dinâmica de negociação entre
a empresa responsável pelo empreendimento e os segmentos sociais afetados,
balizada, em essência, pelos direitos de propriedade, em conjunção a uma
jurisprudência dominante estabelecendo ressarcimento financeiro aos prejuízos
passíveis de indenização. Sob a ótica da concessionária, não há porque alterar a
postura convencional de buscar a liberação da área requerida pela construção da
usina ao menor custo possível e em prazo compatível com o cronograma da obra
(Eletrobrás, 1991). Sob a ótica dos atingidos, apenas danos à propriedade
encontram respaldo legal. Dentro das regras do jogo então prevalecentes, a
consideração, no processo decisório relativo aos aproveitamentos hidrelétricos,
de quaisquer interesses, individuais ou coletivos, não redutíveis a danos
patrimoniais respaldados em lei dependia, de um lado, da capacidade de
mobilização e pressão política em defesa dos mesmos e, de outro, das
concessões que a empresa empreendedora se vê constrangida e está disposta a
fazer enquanto responsável pelo projeto. Na ausência de mecanismos de
intermediação de interesse minimamente estruturados para lidar com a questão,
os resultados do processo tendem a ser fortemente viesados no sentido da
prevalência da lógica decisória da empresa, de minimização do custo de
implantação do empreendimento, o que transparece, com clareza, na construção
de Furnas.
A área inundada pela usina, segundo os estudos realizados no projeto
executivo da obra, “estender-se-ia a uma distância de 240 km da barragem, no
Rio Grande, e a 170 km no Rio Sapucaí, (...) cobrindo (...) cerca de 1.600 km2, na
qual estavam compreendidos 32 municípios, (...) mais de 5.000 propriedades
rurais, além de (...) pontes, estradas, zonas urbanas, (...), cemitérios, etc” (Cotrim,
1994: 116). A magnitude das terras, benfeitorias e equipamentos públicos
atingidos e as interferências sobre os processos sócio-econômicos historicamente
estruturados, contudo, não foram suficientes para induzir mudanças sensíveis nos
parâmetros e critérios decisórios consagrados pela práxis do setor. A gestão
251
sócio-ambiental em Furnas segue procedimentos convencionais do sistema,
focados essencialmente na liberação da área necessária ao empreendimento pela
via da indenização monetária dos bens patrimoniais atingidos, com a estrita
observância das determinações legais. Para tanto, busca-se bloquear qualquer
discussão mais abrangente relativa às interferências da construção da usina na
região, com o intuito de manter a configuração concreta dos impactos sócioambientais por ela ocasionados circunscrita à esfera dos direitos de propriedade.
Na tentativa de contornar ou esvaziar iniciativas de natureza coletiva contrárias ao
investimento, evita-se, ao limite, a interlocução com os interesses constituídos da
área, o que inclui as Prefeituras e as Câmaras de Vereadores dos municípios com
terras inundadas, restringindo-se deliberadamente a divulgação de informações
oficiais sobre o projeto. Em complemento, adota-se tratamento individualizado no
encaminhamento do processo desapropriatório, com a negociação caso a caso do
valor das indenizações a serem pagas aos proprietários atingidos. É isto que se
apreende da descrição feita por John R. Cotrim a respeito da conduta estratégica
adotada no processo de implementação do empreendimento.
Segundo Cotrim (1994), a formalização pelo governo federal da
intenção construir a usina e o desenvolvimento dos trabalhos de campo
necessários ao detalhamento final do projeto de engenharia da obra suscitaram
crescente apreensão nas comunidades potencialmente atingidas, repercutindo
junto a parlamentares com base política na região. Num contexto marcado pela
circulação de informações parciais e conflitantes sobre questões cruciais para os
segmentos sociais afetados - extensão e localização das terras inundadas,
critérios de indenização, reconstrução de equipamentos e instalações públicas etc
-, acaba ganhando corpo um amplo movimento que aglutina prefeitos, lideranças
locais, e proprietários rurais e urbanos dos diversos municípios impactados no
sentido de evitar a implantação do projeto ou, pelo menos, de negociar
alternativas de aproveitamento com menores custos sociais e econômicos para a
população da área. A possibilidade da adoção de solução técnica menos
impactante não apenas era perfeitamente plausível, como chegara a ser
252
examinada, ainda que em caráter exploratório73. Se adotada, permitiria redução
substancial na extensão das terras inundadas e, consequentemente, na
abrangência e intensidade dos distúrbios sócio-ambientais provocados pela
construção da usina. Em contrapartida, provocaria queda na potência instalada, e
“perder-se-ia uma das principais vantagens da barragem de Furnas, tal como
originalmente concebida, ou seja, a criação de um reservatório plurianual de
regularização que, além do próprio projeto, beneficiaria todas as demais usinas
situadas a jusante, existentes ou por construir. Em virtude desse conjunto de
fatores, essa alternativa havia sido desconsiderada desde o início” (Cotrim, 1994:
118). Vale dizer, numa decisão unilateral, os responsáveis pelo projeto não se
dispunham a sacrificar parte da energia a ser gerada em troca de redução dos
custos impostos à sociedade local e regional, independente de qualquer análise
mais aprofundada da natureza concreta de tais custos.
A ausência de informações oficiais e de canais formais de interlocução
tende a acentuar a insegurança e insatisfação na área, reforçando a mobilização
social contrária à obra. A percepção de que reação estava “assumindo
proporções preocupantes, com repercussões na Assembléia Legislativa Estadual
e no Governo do Estado de Minas Gerais, bem como no próprio Congresso
Nacional” (Cotrim, 1994:118), leva o governo federal a sair do imobilismo tático
em que se mantinha, agendando uma reunião com as lideranças e autoridades
políticas locais e regionais. Realizado em Alfenas-MG, em fevereiro de 1957, o
evento contou com a presença de “numerosos proprietários da região, prefeitos,
deputados estaduais e federais que faziam política na área” (Cotrim, 1991: 120).
Sem respostas concretas para questões referentes à forma de tratamento dos
variados impactos potencializados pelo empreendimento - emblemático do caráter
secundário atribuído à questão pela práxis do setor -, os representantes do
governo se limitaram, em essência, a prometer “tratamento justo e humano a
73
Conforme Cotrim, “durante os estudos para o projeto de Furnas, fôra detectada (...) uma alternativa (...) que
consistia no aproveitamento do mesmo desnível escalonadamente, por meio de uma barragem mais baixa no
canyon, cujo represamento se estenderia até pouco além da confluência do Rio Sapucaí, sem atingir quase
nada, seguido de barragens mais baixas em cada um dos rios Grande e Sapucaí, a montante de sua
confluência” (1994: 118).
253
todos os interessados, porque não era (...) intenção transformar uma obra de
importância nacional numa desgraça regional” (Cotrim, 1994:122).
A explicitação da inexistência de “soluções (...) para a maioria dos
problemas” (Cotrim, 1994:123) que seriam provocados pela construção da usina
contribuiu para reforçar a oposição ao empreendimento. Esse sentimento se
materializa na elaboração de um “memorial dirigido ao Presidente da República”
(Cotrim, 1994:123/124), solicitando a suspensão da obra. O apelo direto à
interferência da Presidência, contudo, não tinha nenhuma perspectiva concreta de
êxito74, até porque a decisão de iniciar de imediato a implantação da usina já
estava tomada pelo governo, em caráter irreversível, sendo deliberadamente
omitida aos participantes da reunião, por conveniência política75. Transcorrida
menos de uma semana da reunião de Alfenas, será dada a partida definitiva à
construção da obra, às expensas dos interesses e preferências locais e regionais.
A imposição dos interesses do projeto sobre os interesses e
preferências da população impactada irá marcar também o processo de
desapropriação das terras necessárias à construção da usina, conduzido de
forma a garantir a possibilidade “de se encher o reservatório no tempo
programado, sem maiores traumas, com toda a área a ser inundada desimpedida”
(Cotrim, 1994:151). O obstáculo representado pela ocupação sócio-econômica
assentada em nível local será removido, dentro do cronograma estabelecido para
a obra, seguindo os procedimentos usuais do setor, mais especificamente,
74
O encaminhamento dado ao memorial ilustra, com nitidez, a forma pragmática adotada pelo governo com o
intuito de contornar obstáculos à consecução de seus objetivos. Conforme relato de Cotrim, o documento foi
“entregue ao Presidente, que o fez protocolar na minha presença (...). Só que essa entrega foi feita de forma
tão casual que o Presidente sequer pôde dar atenção ao documento, tão cercado estava de pessoas que
solicitavam incessantemente a sua atenção. Pelo visto, ele, pessoalmente, jamais chegou a ler esse
memorial, pois nunca me falou a respeito. Eu também não cobrei. Missão cumprida, mas não perseguida”
(1994:124). Após o rito formal, consoante procedimentos convencionais da burocracia, a tentativa das
comunidades locais de incluírem seus interesses no processo decisório relativo ao projeto é neutralizada,
informalmente, no âmbito da própria Presidência da República.
75
O relato de Cotrim não deixa dúvidas a respeito da conduta oportunista adotada na ocasião: “mal sabiam
aquelas pessoas, pois em momento algum deixamos transpirar esse fato, que na manhã seguinte iríamos a
um encontro com o Presidente em Petrópolis, para presenciar sua aprovação dos Atos Constitutivos da
Companhia” (1994:124) responsável pelo projeto. A criação formal da empresa ocorre três dias após
aprovada, em “reunião solene do Conselho do Desenvolvimento, presidida pelo Presidente Kubitschek, (...),
presentes todos os ministros de Estado” (Cotrim, 1994:132), num claro atestado da disposição e urgência em
dar concretude ao empreendimento.
254
através de negociações individualizadas da indenização de danos ao patrimônio,
com base em critérios definidos de forma unilateral pela empresa (Cotrim, 1987,
depoimento). Na ocorrência de impasse, transferia-se a decisão para a esfera do
judiciário. Sistemática similar será adotada na relocação ou recomposição do
patrimônio público afetado pela usina. Reduzindo os impactos a perdas materiais
e tratando-os em consonância com o estrito cumprimento da lei, a empresa não
encontra maiores dificuldades em concluir o processo indenizatório dentro do
prazo previsto (Cotrim, 1994).
Soluções unilaterais serão novamente utilizadas para contornar
obstáculos ao enchimento do reservatório, programado pela empresa para o início
de 1963, de forma a aproveitar a estação chuvosa. Essa programação se faz
desvinculada de qualquer medida acauteladora quanto à efetiva desocupação da
área a ser inundada. Numa interpretação estrita dos dispositivos legais, as ações
até então desenvolvidas haviam se limitado, a rigor, ao cumprimento formal do rito
desapropriatório, transferido toda a responsabilidade do deslocamento para a
própria população atingida. Sequer os casos pendentes de decisão judicial
mereceram tratamento ou atenção especial. Reagindo a situação, o governo do
estado76 se opõe ao fechamento da barragem, o que ameaçava atrasar em pelo
menos um ano a entrada em operação da usina (Cotrim, 1987, depoimento). Esse
obstáculo vai ser contornado recorrendo-se mais uma vez ao que Draibe designa
como “improvisação pragmática de saídas” (1985: 245). Numa ação pouco
ortodoxa, as comportas da usina serão fechadas em sigilo, evitando qualquer
possibilidade de reação, dado que o fechamento revelava-se tecnicamente
irreversível. Em outras palavras, a empresa impõe suas preferências e interesses
à administração estadual, aproveitando-se, para tanto, da relativa autonomia
decisória assegurada pela ausência de ordenamento normativo para a matéria.
Cotrim não deixa dúvidas sobre o pragmatismo da decisão: “como legalmente, a
rigor, o fechamento não dependia da aprovação do governo estadual, era uma
76
Havia um atrito político entre o governo mineiro, sob o comando de Magalhães Pinto, e Furnas (Cotrim,
1988, depoimento), motivado pela disputa entre esta empresa e a Cemig em torno do aproveitamento de
Estreito, localizado imediatamente a jusante da usina em construção (Richer, 1995, depoimento).
255
mera cortesia informá-lo previamente, nós fomos em frente. Fizemos a coisa de
surpresa” (1988, depoimento).
Se o governo estadual não consegue se credenciar como interlocutor
da empresa, não é de se estranhar o fato de as autoridades municipais e a
população da área também terem sido completamente ignoradas. A estratégia
adotada na operacionalização do fechamento das comportas segue uma lógica
excludente, por princípio, dos interesses afetos à questão. Como discutido pela
teoria dos jogos, a negociação só é necessária e, portanto, só ocorre quando um
ator tem capacidade de bloquear ou interferir sobre a ação do outro. Caso
contrário, não existe interação e sim imposição das decisões tomadas, como
mostra, mais uma vez, o relato de Cotrim, segundo o qual a ação da empresa foi
“bem planejada, bem pensada e bem fundamentada” (1988, depoimento), de
forma a minimizar os riscos de insucesso da programação traçada. O eixo básico
da estratégia adotada consiste na promoção de várias simulações de fechamento,
com o propósito deliberado de encobrir a real intenção da empresa, dificultando
eventuais reações ao processo77 .Concluída essa fase preparatória, “um belo dia,
nos os responsáveis pela operação deslocamos para lá e tomamos as
providências e, numa madrugada, fechamos rapidamente a barragem” (Cotrim,
1987, depoimento). Como a formação do lago do reservatório, dada sua
dimensão, se processa de forma lenta, o deslocamento da população
remanescente, que não saíra por conta própria da área de inundação, pôde ser
feito a posteriori, sem maiores consequências sociais (Cotrim, 1987, depoimento)
ou, numa interpretação mais apropriada, sem implicações ou custos políticos de
maior relevância para a empresa.
O alagamento das terras, como descreve Cotrim, “não chegou a afetar
ninguém: chegou a bichos, macacos e coisas assim, a fauna ...” (1987,
77
Em complemento, articula-se um esquema emergencial para prestar “socorro a ocupantes eventuais da
área que ainda não tivessem saído a tempo, contra a subida da água” (Cotrim, 1987, depoimento), centrada
no acionamento, se necessário, de apoio militar.
256
depoimento). Sem referência institucional, tais impactos eram negligenciáveis,
isto é, não representavam nada além de uma consequência inevitável e não
pretendida dos investimentos do setor. Vale dizer, a ausência de uma legislação
específica
para
o
enquadramento
dos
distúrbios
ocasionados
pelos
empreendimentos hidrelétricos conferia às empresas atuantes na área não
apenas autonomia decisória para determinar aquilo que vai ser considerado
socialmente relevante, assegurando-lhes poder de veto informal face a
reivindicações das comunidades locais e regional impactadas, como negava, de
partida, qualquer materialidade às interfaces com o meio natural.
4. A sobreposição do Estado empresário ao Estado regulador
O imediato pós-guerra introduziu, como visto, mudanças nos contextos
externo e interno envolvendo variáveis relevantes para a dinâmica das atividades
elétricas no país. No primeiro, diluíram-se os principais constrangimentos à
aquisição de máquinas e equipamentos necessários aos investimentos do setor e
surgiram fontes alternativas de financiamento à expansão do sistema, com
destaque para a criação do BIRD. No segundo, o aspecto mais significativo tem a
ver com o retorno a uma institucionalidade democrática, implicando o
revigoramento do poder do Legislativo e a alternância no controle político do
Executivo.
São transformações convergentes com a retomada dos investimentos
produtivos das grandes concessionárias privadas, sinalizando perspectivas de
uma reversão do refluxo no lançamento de projetos de geração e transmissão de
energia ocorrido a partir da promulgação do Código de Águas. O aspecto mais
evidente a esse respeito eram as melhorias nas possibilidades de mobilização de
recursos tecnológicos e financeiros pelo sistema advindas do novo cenário
internacional. Da restauração da ordem democrática, por sua vez, resultavam não
só maior estabilidade e previsibilidade no tocante às regras do jogo, refletindo a
redução no grau de autonomia decisória do Executivo, que se via submetido a
maior controle por parte do
Legislativo, como também a ampliação da
257
capacidade de ingerência das empresas sobre a condução da política setorial do
governo. Vale lembrar aqui a enorme capacidade de mobilizar recursos políticos
demonstrada pelos grupos Light e Amforp.
A influência de tais fatores sobre as preferências das empresas
atuantes na área, contudo, não será suficiente, por si só, para induzir alterações
sensíveis nas escolhas estratégicas que fazem relativas à programação de
investimentos na expansão do sistema. Sem revisões de maior profundidade na
sistemática tarifária introduzida pelo Código de Águas, ainda pendente de
regulamentação, persiste a conduta defensiva de restringir a alocação de
recursos na atividade a projetos com relação benefício/custo muito favorável,
onde se salienta a ampliação da potência instalada de usinas hidrelétricas já
implantadas. Estímulos econômicos associados a uma demanda por eletricidade
em rápido crescimento não irão implicar, assim, respostas à altura pelo lado da
oferta. O descompasso entre a disposição a consumir da sociedade e a
disposição a investir das concessionárias acentua a deterioração da qualidade
dos serviços prestados, da qual emerge um novo tipo de problema: a ocorrência
de estrangulamentos no suprimento energético. Numa relação de causação
indireta, não antecipada nem pretendida, a intenção governamental de corrigir as
“imperfeições” na dinâmica de funcionamento do mercado, assegurando maior
proteção ao consumidor contra o poder monopolista dos grandes grupos
empresariais que haviam se estabelecido no sistema, além de não obter êxito,
trouxe, como subproduto, a ocorrência de “falhas” nos resultados produzidos por
este mesmo mercado.
Internalizado na agenda pública, o enfrentamento do déficit no
suprimento energético passa a constituir, a partir de então, o elemento central no
balizamento das ações estatais na área, o que não significa, evidentemente, uma
orientação intertemporal comum na formulação e implementação da política
setorial. A alternância no controle do poder público determinada pela restauração
da institucionalidade democrática abre espaço para a promoção de mudanças
periódicas na orientação imposta à atividade governativa nos diversos campos
258
onde a presença do Estado se manifesta. É isto que tende a ocorrer no segmento
elétrico, com a sucessão no comando do Executivo implicando formas distintas de
percepção e de encaminhamento de “soluções” para o estrangulamento na
capacidade de atendimento do sistema. O traço de continuidade que permeia a
concepção e implementação das iniciativas setoriais dos governos formados no
pós guerra irá refletir, em essência, os efeitos da dependência de trajetória ou,
mais especificamente, a influência que os resultados de decisões tomadas numa
dada administração exerce, como constrangimento ou oportunidade, sobre as
escolhas feitas na administração seguinte.
No Governo Dutra, o alinhamento a uma orientação política de recorte
liberal desempenha um papel decisivo na conformação dos rumos seguidos pela
intervenção estatal, impregnando, em particular, as ações
que serão
desenvolvidas no setor elétrico. Assim, a despeito das crescentes dificuldades em
assegurar um suprimento regular e confiável de eletricidade apontarem na direção
de um desempenho operacional e produtivo insatisfatório das concessionárias
atuantes na área, a atividade continuará sendo percebida e tratada como um
campo preferencial da iniciativa privada. As tentativas de lidar com as “falhas” de
mercado vão se aglutinar em torno do propósito de minimizar a intensidade do
problema e os efeitos sociais perversos dele decorrentes. De um lado, busca-se
reduzir os constrangimentos que vinham inibindo os investimentos no sistema,
através da flexibilização de determinados dispositivos regulatórios estabelecidos
pelo Código. De outro, procura-se ajustar o consumo à capacidade efetiva de
atendimento do parque gerador, com a adoção de medidas de racionamento.
Subproduto da relativa ineficácia da estratégia adotada pela administração
federal, ganha corpo, em paralelo, um movimento no sentido do alargamento da
inserção produtiva de governos estaduais no sistema, que se iniciara nos anos
trinta.
O retorno de Vargas à Presidência da República assinala uma inflexão
na política setorial do governo. A resolução do estrangulamento energético, que
havia se agravado face à ineficácia das medidas adotas na gestão Dutra, adquire
259
caráter estratégico à medida que se colocava como requisito à viabilização da
agenda desenvolvimentista e industrializante definida pela nova administração.
Entre a alternativa de tentar estimular a retomada dos investimentos privados, que
passava necessariamente por uma revisão abrangente nas regras do jogo
instituídas pelo Código de Águas, de resultados de difícil previsão, e a alternativa
de intensificar a realização de investimentos públicos na expansão do sistema, a
escolha do governo irá recair na segunda. Tal escolha implicava o aparelhamento
estatal para o desempenho eficaz de suas ampliadas funções empresariais na
área. Em conexão com esse propósito, as ações setoriais do Executivo federal
vão se concentrar num esforço de construção institucional voltado à criação de
mecanismos de financiamento para a implantação de projetos de geração e
transmissão de eletricidade, conjugada à montagem de um aparato burocrático
capaz de responder pela coordenação e gerenciamento da aplicação dos
recursos, estabelecendo diretrizes e prioridades para o setor. São ações com
forte efeito estruturante sobre a conformação do campo organizacional da
atividade, promovendo uma demarcação institucional mais nítida das esferas de
atuação das empresas públicas e privadas no sistema. A lógica estatal imbricada
nas primeiras e a lógica econômica associada às últimas se justapõem, num
arranjo produtivo que cristaliza transformações cujo delineamento vinha se
processando progressivamente ao longo dos anos anteriores.
A ascensão de Juscelino Kubitschek à Presidência da República,
sucedendo Getúlio Vargas dentro das regras democráticas vigentes, desencadeia
mudanças nos rumos das ações governamentais no setor elétrico. A nova
administração aprofunda o intervencionismo estatal na área, mas o faz de forma
claramente distinta da orientação seguida na gestão anterior. Premido pelo
interesse de neutralizar os constrangimentos que o estrangulamento energético
criava à viabilização da estratégia de diversificação produtiva e crescimento
acelerado da economia em torno da qual estrutura sua agenda política, o Governo
Kubistchek opta por “soluções” capazes de proporcionar respostas rápidas no
tocante à expansão do sistema. Essa escolha tem implicações em duas direções
260
principais, com efeitos não pretendidos sobre a dinâmica evolutiva da atividade.
De um lado, o Executivo federal é levado a empreender um acentuado esforço de
investimento na ampliação do parque gerador, de forma a assegurar, em tempo
hábil, uma oferta compatível com o salto que se projetava para o consumo de
energia em função das metas de incremento da produção nacional estabelecidas
pela política pública. De outro, recorre a improvisações institucionais e medidas
transitórias ou de curto fôlego com vistas à efetividade de suas iniciativas na área,
o que envolve, em particular, passar ao largo de qualquer compromisso com a
continuidade das negociações com o Legislativo das propostas setoriais
formuladas na gestão varguista.
Ao final dos anos cinquenta, o campo organizacional das atividades
elétricas apresenta conformação bastante diferenciada daquela observada em
meados da década anterior. As escolhas políticas feitas pelos governos que se
sucederam ao longo do período, balizadas por contextos distintos e movidas por
lógicas decisórias, preferências e interesses também distintos, moldaram uma
trajetória onde o Estado empresário vai gradativamente adquirindo contornos
institucionais e operacionais mais sólidos e se sobrepondo ao Estado regulador.
Isto se traduz, concretamente, na coexistência de dois modelos de organização
da atividade que se interpenetram e exercem influências recíprocas, ambos
incompletos e em transformação. Fundamentado na iniciativa privada e nas
regras estabelecidas pelo Código de Águas, não plenamente regulamentadas, o
primeiro se caracterizava por uma dinâmica evolutiva que vinha passando por
uma espécie de “congelamento”, com sinais de retração. O segundo apresentava
uma dinâmica oposta, com a formação de novas empresas, estaduais e federais,
e a rápida expansão das já existentes, em conexão a iniciativas voltadas à
construção de uma institucionalidade capaz de dar suporte ao ampliado
intervencionismo estatal na área.
261
V.
ESTATIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO OPERACIONAL E PLANEJAMENTO
CENTRALIZADO
Como visto no capítulo anterior, a estatização das atividades do
sistema elétrico, que vinha avançando progressivamente desde meados dos anos
quarenta, tende a se consolidar na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek,
em conexão com a estratégia de crescimento e modernização da economia
adotada no período. Em termos mais específicos, a necessidade de assegurar o
suprimento energético para um mercado urbano-industrial em acelerada
expansão, numa circunstância de retração dos investimentos produtivos das
grandes concessionárias privadas, praticamente não deixava alternativa de
resolução do problema a não ser o incremento dos investimentos públicos na
área. As funções empresariais do Estado se alargam e passam a se sobrepor às
funções propriamente regulatórias, cujos resultados não estavam atendendo às
expectativas das instâncias decisórias do governo.
Em sintonia com a orientação geral da gestão pública à época, as
ações adotadas pelo governo federal na área de energia elétrica foram pautadas
pela seleção de soluções com menor potencial de fricção junto ao ambiente, isto
é, capazes de proporcionar respostas mais rápidas no tocante às metas de
expansão propostas para o sistema. Isto exigiu, de um lado, recorrer a fontes de
recursos
extra-setoriais,
autofinanciamento
das
complementando
empresas
a
limitada
concessionárias
com
capacidade
de
transferências
orçamentárias e contratação de empréstimos externos. De outro, passar ao largo
de qualquer intento reformista mais abrangente, restringindo as iniciativas no
campo político-institucional basicamente a medidas necessárias à resolução de
problemas que emergiam pari passu ao avanço do intervencionismo estatal.
Se teve êxito quanto à obtenção de resultados satisfatórios no tocante
à expansão da oferta de eletricidade, tal estratégia também provocou alterações
substantivas na dinâmica de funcionamento do sistema. O primeiro aspecto a ser
ressaltado tem a ver com a vulnerabilização do padrão de financiamento do setor,
262
contraface da crescente participação de fontes de recursos extra-setoriais na
viabilização de seus investimentos produtivos. O segundo guarda relação com o
acirramento do descompasso entre o arcabouço regulatório da atividade, definido
a partir da premissa de concessão da exploração do serviço à iniciativa privada, e
a natureza concreta de seu desenho organizacional, em avançado processo de
estatização. São questões que sinalizam para a necessidade de ajustes
estruturais nos pilares de sustentação do sistema, como forma de assegurar a
racionalização
e eficiência operacional na
prestação do
serviço.
Essa
reestruturação adquire caráter de urgência no início dos anos sessenta, quando o
descenso cíclico da economia brasileira e a correlata deterioração da capacidade
financeira do Estado se refletem no fluxo de recursos que vinha dando suporte à
implantação dos projetos de geração e transmissão de energia, evidenciado, em
particular, nas dificuldades enfrentadas na conclusão de Furnas78 (Cotrim, 1988,
depoimento).
A promoção de mudanças na institucionalidade do setor será feita de
forma incremental, numa dinâmica fortemente influenciada por aspectos objetivos
do ambiente interno em sentido amplo e suas transformações no tempo. Para
efeitos analíticos, o processo pode ser dividido em duas etapas principais, com
características distintas no tocante ao conteúdo e ao encaminhamento da
atividade reformista. A primeira etapa compreende os anos iniciais da década de
sessenta, marcados pela instabilidade política, portadora de uma crise de
governabilidade e de governança. Além de descontínuas e protagonizadas por
diferentes atores, refletindo a fluidez do ambiente institucional e a fragilização do
poder central, as iniciativas de cunho reformista implementadas no período são
fortemente influenciadas pela estrutura de constrangimentos e de oportunidades
derivadas dos arranjos pretéritos e pelos efeitos contextuais de decisões que vão
sendo tomadas ao longo do tempo. Dentre tais iniciativas, cumpre destacar a
criação da Eletrobrás e os primeiros passos no sentido do planejamento integrado
78
A conclusão das obras de Furnas exigiu, conforme Cotrim (1987, depoimento), um esforço de negociação
de financiamentos via orçamento fiscal da União, já que não haviam recursos assegurados compatíveis com
os requisitos da construção do empreendimento.
263
dos investimentos do sistema. A segunda corresponde ao período pós-64, que
tem, como traço saliente, a restauração das condições de governabilidade e,
especialmente, a recuperação da capacidade de governança, sustentada na
instauração de uma ordem autoritária. O regime militar que se instala no país traz
em seu bojo não apenas o revigoramento do poder central mas a retomada do
intervencionismo estatal na economia. A partir de então, as decisões e os eventos
de maior relevância para o desenvolvimento do setor elétrico tendem a se
concentrar na esfera da administração federal e a acompanhar de perto as
diretrizes gerais emanadas da política macroeconômica. Num primeiro momento,
a ênfase recai na estabilização do ambiente interno e a preparação das condições
institucionais e financeiras que vão permitir, num segundo momento, a retomada,
de um novo ciclo expansivo da economia, o que se concretiza nos anos finais da
década de sessenta, estendendo-se até a transição dos anos setenta.
Esse “prolongado surto de acumulação capitalista”, como observa Sola,
“teve por condição necessária uma profunda reorganização do Estado e de suas
estruturas através de uma intensa atividade reformista (...) que culminou em uma
reconcentração de recursos nas mãos deste mesmo Estado, em dimensões
inéditas na história brasileira” (1995: 30). Implementadas ao longo dos anos
1964/67, as reformas envolveram um amplo conjunto de medidas nas áreas
monetária,
tributária, administrativa e
legal, criando
as
bases
para
a
implementação de uma estratégia desenvolvimentista de longo prazo, cuja
expressão máxima será o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) do
Governo Geisel (1974/79). São mudanças voltadas para a gestão eficaz da
economia, tendo como característica central a busca da conciliação de eficiência
micro e macroeconômica na alocação dos recursos produtivos da sociedade, num
mix de mercado e plano. Isto se faz acompanhar do incremento do
intervencionismo estatal na esfera da produção, conjugado à concessão de maior
autonomia e liberdade de iniciativa às empresas públicas, dando forma ao que
Dain (1986) designa como processo de “autarquização” das funções empresariais
do Estado.
264
Acompanhando a orientação geral que norteia o esforço reformista
levado a efeito nos anos 1964/67, as principais iniciativas governamentais na área
de energia elétrica convergem no sentido da redução do grau de dependência do
sistema do aporte de recursos extra-setoriais, especialmente de transferências
originárias do orçamento fiscal. Apoiado no conjunto das reformas financeiras e
institucionais implementadas no período, o setor elétrico irá experimentar uma
notável ampliação de sua capacidade de atendimento durante o ciclo expansivo
da economia brasileira. Isto se faz, fundamentalmente, com base em
investimentos realizados pela instância pública, cuja resultante será a plena
estatização do sistema. Sob esse traço comum, o processo apresenta dois
momentos distintos, numa estreita relação com a dinâmica de acumulação de
capital que sustenta a expansão da atividade produtiva à época.
Numa primeira etapa, que coincide com o crescimento acelerado do
denominado “milagre econômico”, sobressai uma lógica decisória que se
aproxima, em certo nível, da dinâmica alocativa de mercado. De um lado, o
governo federal, imbuído do propósito de reduzir a drenagem de recursos
orçamentários para o sistema, procura promover a recuperação da capacidade de
autofinanciamento das empresas concessionárias, com incremento da receita
operacional auferida com a prestação do serviço, tendo como fundamento
aumentos reais nas tarifas elétricas. De outro, o avanço acelerado da produção
industrial e a intensificação do movimento de urbanização repercutem sobre o
consumo de eletricidade, que volta a crescer aos saltos (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988, 1996). Favorecidas por uma política tarifária “realista”
(Rosa et al, 1988), as principais concessionárias estaduais buscam aproveitar as
oportunidades de investimento proporcionadas por uma demanda em rápida
expansão para consolidarem suas posições nos segmentos de geração e
transmissão, numa disputa direta com as estatais federais pelo espaço aberto
pelo refluxo da iniciativa privada.
Com o esgotamento dos pilares de sustentação da expansão produtiva
ocorrida à época do milagre econômico, a continuidade do crescimento vai se
265
escorar na adoção de uma política anticíclica, traduzida no II Plano Nacional de
Desenvolvimento. Entra-se aqui numa segunda etapa, onde o aspecto marcante
será a racionalização e o consequente incremento da eficiência econômica na
alocação de recursos na expansão do sistema, tendo como vetores principais o
aprofundamento da centralização decisória e o avanço da operação interligada,
cujo cerne é o reforço do papel desempenhado pela Eletrobrás enquanto agência
de planejamento e coordenação dos projetos de investimento na área. A lógica
decisória do plano passa a se impor, de forma muito mais incisiva, às lógicas
empresariais, com a ampliação do parque energético se fundamentando em
metas produtivas estabelecidas através de uma sistemática integrada de
planejamento dos investimentos do setor. Aumenta a dependência frente a fontes
de recursos extra-setoriais, especialmente empréstimos externos, facilitados
circunstancialmente pela disponibilidade de crédito internacional a juros baixos
(Dain, 1987; Lima, 1995), ao mesmo tempo em que se acentua a participação das
empresas federais na implementação dos projetos de geração e transmissão. A
ênfase na otimização do aproveitamento dos recursos energéticos, centrada na
apropriação de economias de escala (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988), conduz, por sua vez, à consolidação da tendência à implantação de
mega projetos hidrelétricos, emblematizada pela usina de Itaipu.
Ao final dos anos setenta, o setor elétrico brasileiro apresenta-se como
uma atividade moderna e organizada em âmbito nacional. O crescimento
acelerado ocorrido ao longo da década não trouxe apenas mudanças na escala
técnica dos empreendimentos hidrelétricos, mas ensejou avanços consideráveis
na operação interligada, além de reforçar a presença das empresas federais nos
segmentos de geração e transmissão e levar ao limite a estatização do sistema.
São transformações que exigiram um enorme esforço de planejamento e
coordenação, refletido em progressivos aperfeiçoamentos nos mecanismos de
gestão e controle da atividade. Na entrada dos anos oitenta, no entanto, uma
combinação de fatores adversos – estrangulamento nas contas externas do país
e consequente elevação nos custos dos financiamentos obtidos no exterior,
266
redução nas tarifas reais de energia, deterioração da capacidade de investimento
da administração pública nos níveis federal e estadual, e perda do dinamismo da
economia, entre outros – irá desestabilizar os arranjos organizacionais e
produtivos da atividade. Dificuldades na obtenção de recursos, erros de
planejamento e atrasos na implantação de obras já iniciadas põem em movimento
um processo de deterioração técnica e financeira no desempenho das empresas
atuantes na área, conformando um quadro de elevado risco de déficit de energia,
cujo desdobramento será, como em circunstâncias anteriores, uma profunda
reformulação institucional e financeira do setor.
1.
Consolidação da hegemonia estatal e adequações institucionais nos
anos iniciais da década de sessenta
A diversificação e modernização do parque produtivo nacional ocorrida
na gestão presidencial de Juscelino Kubitschek exigiu, como visto no capítulo
anterior, não só um esforço de coordenação e articulação dos interesses do
capital privado em torno dos novos blocos de investimento na atividade industrial
como também
“um aprofundamento inusitado do papel da empresa pública”
(Draibe, 1985: 255). No entanto, reformas institucionais de cunho mais geral
foram deliberadamente deixadas para trás, de forma a evitar ou pelo menos
minimizar obstáculos que poderiam se interpor ao salto industrializante projetado
pela política pública79. Vale dizer, as mudanças introduzidas na base material da
economia se processaram sem a concomitante promoção de transformações de
fundo quer na estrutura administrativa e financeira do Estado, indutor e principal
agente do processo desenvolvimentista, quer na forma e conteúdo de suas
79
O ciclo expansivo e modernizante da economia brasileira no período implica uma acentuada ampliação do
escopo das funções produtivas do Estado, sem uma concomitante ampliação e reforço de sua base
financeira (Tavares, 1977; Dain, 1977; Lessa, 1975). A propósito dessa questão, cabe observar que, para
enfrentar a limitada capacidade de mobilização de recursos - o “calcanhar de Aquiles” da estratégia de
industrialização então adotada (Fiori, 1993) -, o governo recorre a mecanismos de financiamento e gestão
pouco ortodoxos, como a realização de despesas extra-orçamentárias e expansões creditícias sem o
necessário lastro fiscal (Faro e Silva, 1991; Dain, 1977; Lessa, 1975). A extensão e a intensidade do uso de
tais mecanismos vão resultar não apenas no recrudescimento do processo inflacionário, mas no
endividamento público e na consequente corrosão da capacidade de o Estado financiar os investimentos
indispensáveis à continuidade do projeto industrializante (Oliveira e Mazuchelii, 1977; Leopoldi, 1991, Láfer,
1977; Macedo, 1977; Fiori, 1993).
267
relações com a sociedade (Benevides, 1991; Draibe, 1985; Dain, 1977; Oliveira e
Mazzuchelli, 1977).
Assim, ao final do Governo Kubitschek, o esgotamento das
potencialidades de um processo de desenvolvimento centrado num Estado que
estende suas funções regulatórias e produtivas muito além de sua efetiva
estrutura operacional e financeira tornara não apenas indispensável mas também
urgente a realização das denominadas reformas tributária e administrativa
(Draibe, 1985; Ianni, 1977; Benevides, 1991; Fiori, 1993; Campolina, 1981).
Inflação em ascensão, aprofundamento do déficit público e desequilíbrio nas
contas externas são os indicadores mais visíveis de uma crise de acumulação
que traz, para o centro da cena política, a preocupação com a estabilização
macroeconômica, sinalizando ao mesmo tempo a necessidade da reformulação
dos padrões de financiamento do processo de desenvolvimento nacional. No
entanto, os mesmos fatores que “exigiam” a adoção de uma agenda reformista se
traduziam em condições contextuais adversas à sua implementação. Em termos
mais específicos, a deterioração da capacidade do Estado de gerar e alocar
recursos implica crescentes dificuldades em proporcionar respostas satisfatórias
às demandas, pressões e conflitos distributivos de uma sociedade em rápido
processo de diversificação estrutural, levando à “radicalização das demandas e a
intolerância política (...) dos diferentes atores sociais” (Santos, 1987: 74).
A crise do padrão de acumulação forjado no Governo Kubitschek vai
sendo gradativamente transmutada numa crise do padrão de relação entre Estado
e sociedade, que se expressa na incapacidade das instituições estabelecidas em
garantir sustentação política às decisões da administração pública. As tentativas
de avançar a reformulação dos padrões de financiamento e gastos do Estado
tendem a esbarrar em crescentes obstáculos políticos interpostos por grupos de
pressão e interesses constituídos da sociedade, tendo como fulcro central o poder
legislativo. O desempenho insatisfatório na implementação de políticas e a
correlata dificuldade de administrar conflitos conformam uma rota explosiva de
progressiva redução das condições de governabilidade que converge para a
268
mudança do próprio regime político (Santos, 1986, 1987). A esse quadro geral se
associa, como observa Nogueira, “uma irremediável desarticulação dos esforços
reformadores mais consistentes” (1998: 104), o que se aplica, em particular, às
iniciativas governamentais no campo das atividades elétricas. Ainda que
importantes, as ações setoriais do poder público se ressentem de uma maior
organicidade e solidez, pouco avançando além de sancionar mudanças afinadas
com as transformações que vinham se processando nos arranjos organizacionais
e produtivos do sistema, numa adaptação típica de processos evolutivos
caracterizados pela dependência de trajetória. Medidas mais efetivas com vistas à
recomposição das bases de financiamento e à recuperação da eficácia
operacional do setor só serão encaminhadas, em termos mais definitivos, após a
instauração do regime autoritário-militar, quando o Estado volta a desempenhar
um papel estruturante na economia e sedimenta de vez sua presença empresarial
na atividade.
1.1 A criação da Eletrobrás e a busca de soluções para o estrangulamento
tarifário do setor
O aprofundamento do intervencionismo estatal e a consequente
diferenciação organizacional e produtiva dos serviços de eletricidade ao longo dos
anos cinquenta conduzem a progressivo aumento da complexidade das tarefas de
administração dos assuntos pertinentes à área energética. A amplificação do
potencial de atritos associada ao avanço do processo de estatização, que
demandava novas estruturas de articulação de interesses e de arbitragem de
conflitos, e as dificuldades no financiamento da expansão do sistema, que se
refletiam sobre a adequação da capacidade de oferta aos requisitos da demanda,
convergem no sentido de conferir saliência à existência de um “déficit” de
institucionalidade no setor. A concepção das regras do jogo prevalecentes,
corporificadas no Código de Águas, partira da premissa de uma atividade a cargo
da iniciativa privada e se preocupava fundamentalmente com a proteção dos
consumidores contra o poder monopolista das concessionárias nos mercados
onde operavam. A diferenciação do perfil dos agentes atuantes na área,
269
introduzindo novos interesses, preferências e lógicas decisórias não havia sido
antecipada pelos legisladores, e dificilmente o poderia ser, o que, evidentemente,
se refletia no alcance ou abrangência das questões contempladas no esforço de
codificação então realizado. É ilustrativo desse quadro o conflito surgido em torno
da encampação, pelo governo do Rio Grande do Sul, da Companhia de Energia
Elétrica Riograndense (Ceerg) - pertencente ao grupo Amforp -, motivado
formalmente pela deterioração da qualidade do serviço prestado pela empresa80,
e que acabou gerando um problema diplomático entre os governos brasileiro e
americano (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995).
Um primeiro movimento no sentido da adequação dos mecanismos de
gestão e controle dos serviços de eletricidade à estatização em curso no setor vai
ser dado ainda ao final do Governo Kubitschek, com a estruturação do Ministério
das Minas e Energia. Criado pela Lei nº. 3.782, de julho de 1960, o novo
ministério passa a responder pelas intervenções do poder central nas áreas de
energia e mineração, até então sob responsabilidade do Ministério da Agricultura,
assumindo o controle administrativo dos diversos organismos, empresas e
instituições federais relacionados às atividades elétricas (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). A despeito de sua instalação ter se dado apenas no
ano seguinte, mesmo assim com uma precária estrutura técnico-operacional
(Richer, 1995, depoimento), trata-se de iniciativa que se reveste de significado
especial à medida que assinala a internalização no aparato estatal da
preocupação com o gerenciamento mais coordenado e eficiente das ações
governamentais relativas no sistema, espelhando a sobreposição do Estado
empresário ao Estado regulador.
80
A concessão da Ceerg expirou inicialmente em 1948, sendo renovada por mais dez anos, a despeito dos
problemas apresentados no tocante à qualidade dos serviços prestados pela empresa. Em 1957, vencido o
novo prazo de concessão, uma comissão “nomeada pelo governo gaúcho declarou que, em caso de
encampação, a Ceerg nada teria a receber como indenização, mas a restituir” (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1996: 112). Baseado nesse parecer, o governo do estado, tendo à frente Leonel
Brizola, decidiu encampá-la, o que se deu em 1959, “pelo preço simbólico de um cruzeiro” (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1996: 112). Ato contínuo, a responsabilidade por sua administração foi
transferida para a CEEE, concessionária estadual.
270
Esse processo tende a favorecer também a viabilização da proposta de
implantação da Eletrobrás, que aguardava, há anos, a apreciação do Legislativo.
De potencial indutora da estatização das atividades elétricas, quando de sua
idealização e proposição em meados dos anos cinquenta pela administração
varguista, a criação da empresa passara a expressar, no início dos anos
sessenta, uma espécie de desdobramento natural do avanço do intervencionismo
estatal no setor. Além disso, e também importante, as transformações ocorridas
no desenvolvimento da atividade acabaram levando a um realinhamento geral na
conduta estratégica dos principais interesses direta ou indiretamente afetos à
questão, convergente com a diluição dos constrangimentos políticos que vinham
bloqueando a aprovação do projeto no Congresso. Sob a ótica das grandes
concessionárias privadas, a consolidação da liderança estatal nas atividades do
sistema se impunha como um fato concreto e irreversível, tornando relativamente
inócuos posicionamentos contrários à mesma. Já as mudanças das posturas
refratárias que vinham sendo adotadas tanto por parte do BNDE quanto das
empresas estaduais têm a ver principalmente com a erosão dos mecanismos de
financiamento dos projetos do setor.
Com a gradativa exaustão dos recursos do FFE, de um lado, e o
refluxo na concessão de empréstimos externos ao país, de outro, o BNDE passa
a se defrontar com crescentes dificuldades para exercer a coordenação da
implementação dos investimentos na expansão do sistema, o que tende a
influenciar suas preferências e decisões relativas à área. À medida que se faz
necessário gerar ou mobilizar outras fontes de financiamento para os
empreendimentos setoriais, o papel de “banco da eletricidade” deixa de ser
vantajoso para o órgão, esvaziando os motivos que tinham estimulado sua
oposição à criação da Eletrobrás (Rangel, 1988, depoimento). Da mesma forma, o
esgarçamento das bases de financiamento do sistema induz mudanças similares
na postura das concessionárias estaduais, como a Cemig, que passam a
percebê-la como um potencial aliado na negociação de recursos para o setor
junto às instâncias decisórias do governo federal.
271
Refletindo a diluição dos obstáculos que vinham dificultando sua
viabilização, a criação da Eletrobrás será aprovada através da Lei nº. 3.890, de
abril de 1961 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995).
Nos termos legais, caberia à empresa a “realização de estudos, projetos,
construção e operação de usinas produtoras, linhas de transmissão e distribuição
de energia” (Lei nº. 3.890). Além de assumir o gerenciamento dos recursos
federais canalizados para investimentos no setor – função que vinha sendo
cumprida circunstancialmente pelo BNDE – a nova estatal responderia pelo
planejamento e coordenação da expansão do sistema, bem como pelo controle
das concessionárias de propriedade da União, constituídas e a constituir. Dos
dispositivos do projeto original, apenas aqueles que previam sua inserção nas
atividades de produção de material elétrico pesado não foram aprovados, tendo
sido objeto de veto por parte da Presidência da República, então ocupada por
Jânio Quadros (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Essa redução da amplitude do campo de atuação da empresa guarda
relação com aspectos objetivos do contexto sob o qual se dá sua criação. De fato,
durante o período em que o projeto da Eletrobrás tramitava no Congresso, a
indústria de material elétrico pesado experimentou um rápido surto de
crescimento no país. Estimuladas pelas oportunidades de negócio advindas do
impulso aos investimentos no sistema durante o Governo Kubitschek, diversas
indústrias produtoras de máquinas, equipamentos e instalações para as
atividades de geração, transmissão e distribuição de energia - como a Brown
Boveri, Siemens, AEG, General Electric, Westinghouse, ASEA, Hitachi e Toshiba,
entre outras (Rosa et al., 1988) -, implantaram-se ou expandiram suas instalações
em território nacional. Além de estreitar o espaço potencialmente aberto à
atuação da Eletrobrás na área, o avanço da iniciativa privada solidificou
interesses contrários à concorrência estatal. A ingerência política de tais
empresas, que se articulavam num pesado esquema de lobby capitaneado pelo já
citado Sindicato das Indústrias de Energia Elétrica de São Paulo (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), é um fator importante na explicação do
272
veto do governo federal, acima mencionado, aos dispositivos relativos à matéria
constantes do texto legal que autorizou a constituição da estatal federal81.
A aprovação da proposta de criação da Eletrobrás pelo Congresso,
contudo, não teve desdobramentos imediatos no tocante à sua efetiva
implantação. De um lado, era necessário “atualizar” o arranjo organizacional e
administrativo original da empresa, de forma a adequá-lo às mudanças que
haviam se processado na materialidade das relações produtivas do setor ao longo
do período em que o projeto tramitara no Legislativo. De outro, a fluidez ou
instabilidade do ambiente político-institucional que caracteriza os anos iniciais da
década de sessenta (Ianni, 1977; Alves, 1984; Skidmore, 1998; Nogueira, 1998)
dificultava a materialização operacional das decisões governamentais, exigindo
um esforço de acomodação de múltiplos interesses intra e extra-setoriais afetos à
questão82. Nessas circunstâncias, sua instalação formal somente ocorre em junho
de 1962, com a promulgação do Decreto nº. 1.178, regulamentando sua estrutura
organizacional e dinâmica de funcionamento (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988; Lima, 1995).
Em simultâneo às iniciativas no campo institucional, outra questão que
mobiliza a atenção do poder público no início dos anos sessenta é reconfiguração
das bases financeiras do setor, tanto em caráter emergencial, dada a
necessidade de provisionar recursos para a continuidade e conclusão de obras
em andamento, entre as quais a usina de Furnas, quanto numa perspectiva de
médio e longo prazo, dada a hegemonia conquistada pelas empresas estatais na
81
A força do lobby empresarial dentro do Governo Jânio Quadros, cujo ministro da Indústria e Comércio,
Bernades Filho, era membro do conselho de administração de uma das grandes empresas do setor (Leite,
1988, depoimento), levou o então deputado Barbosa Lima Sobrinho a entrar com um requerimento no
Congresso solicitando informações da Presidência da República sobre as razões que motivaram os vetos a
dispositivos do projeto aprovado pelo Legislativo (Lima Sobrinho,1987; depoimento).
82
A elaboração do estatuto da Eletrobrás envolveu ampla discussão com os atores relevantes na definição
dos rumos do setor, especialmente os governos dos estados da região Centro-Sul, órgãos e empresas
públicas atuantes na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Essa estratégia de buscar
sustentabilidade para as decisões governamentais através da negociação política culminou na publicação do
anteprojeto de estruturação da empresa no Diário Oficial, para consulta e manifestação das partes
interessadas (Richer,1995, depoimento).
273
expansão do sistema. O fechamento do mercado financeiro internacional à
concessão de novos empréstimos ao país (Ianni, 1977; Baer, 1996) e a crescente
deterioração das contas públicas herdada do Governo Kubitschek deixavam,
como principal alternativa para o enfrentamento do problema, a revitalização das
fontes de financiamento vinculadas à própria atividade, erodidas pelo acirramento
do fenômeno inflacionário. É em torno dessa vertente que tende a se concentrar o
esforço governamental de alavancar recursos para dar suporte aos investimentos
setoriais (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Richer, 1995,
depoimento).
A primeira opção tecnicamente viável com vistas à recuperação da
capacidade de financiamento do sistema consistia na atualização dos preços
cobrados na prestação dos serviços de eletricidade, o que, de acordo com as
regras estabelecidas no Código, passava pela correção do valor monetário do
patrimônio remunerável das empresas. No entanto, embora autorizada pela Lei
nº. 3.470, de novembro de 1958, sua adoção dependia de regulamentação dos
dispositivos legais pertinentes, cuja implementação vinha esbarrando na
resistência sistemática de uma atuante bancada nacionalista, contrária à matéria
pelo fato de a mesma ter, entre os principais beneficiários, Light e Amforp (Cotrim,
1995, depoimento; Richer, 1995, depoimento). Sem acordo político sobre a
questão, ficava inviabilizada qualquer tentativa de promover uma revisão mais
abrangente dos níveis tarifários, deixando como alternativa factível basicamente o
revigoramento das fontes de receita fiscal que alimentavam o FFE. Vale dizer, o
reforço da base financeira do sistema estava condicionada, na prática, à
negociação de medidas capazes de ampliar a arrecadação de recursos tributários
vinculados a aplicações no setor, onde a perspectiva de mobilizar apoio político
revelava-se mais favorável. Assim, a estratégia que será adotada pelo governo
consiste em explorar ao máximo as potencialidades dessa “solução”. Isto irá se
materializar na proposição de duas medidas principais: a mudança na sistemática
de arrecadação do IUEE e a instituição de um empréstimo compulsório para a
área de energia.
274
A alteração que será proposta na sistemática de cobrança do IUEE
buscava, acima de tudo, a neutralização dos efeitos deletérios de uma inflação
ascendente e sem perspectivas imediatas de controle sobre o valor real da receita
arrecadada com o tributo, com sua transformação de imposto nominal em ad
valorem. De um valor fixo por unidade de consumo, o imposto assume a
configuração de um percentual incidente sobre o preço do serviço cobrado ao
consumidor, tendo como base de cálculo uma média das tarifas de energia em
âmbito nacional, denominada de tarifa fiscal (Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988). Por se tratar de medida meramente adaptativa a um ambiente
econômico inflacionário, isto é, que apenas recuperava e procurava resguardar a
efetividade da mecânica tributária, sua implantação não encontrará maiores
dificuldades quando da apreciação pelo Congresso, sendo aprovada através da
Lei nº. 4.156, de novembro de 1962 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988).
O mesmo não se pode dizer em relação à proposta de instituição do
empréstimo compulsório. O projeto formulado pelo governo consistia na cobrança
de um adicional sobre o valor cobrado pela prestação do serviço, que seria
transformado em obrigações da Eletrobrás, com prazo de resgate de 10 anos e
rendimentos anuais de 12% ao ano. Os recursos arrecadados ficariam sob a
responsabilidade da empresa, destinando-se exclusivamente a investimentos na
expansão do sistema (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A
cobrança de um novo tributo, ainda que transitório e restituível, implicava
obviamente custos adicionais para os consumidores de energia, vindo a provocar
manifestações contrárias de amplos segmentos da sociedade, em especial de
representações empresariais, com ressonância no Congresso (Richer, 1995,
depoimento). Os riscos do aprofundamento da situação de estrangulamento de
energia já vivenciada pelo país à época (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988) não foram suficientes, por si só, para gerar um ambiente mais
receptivo à iniciativa governamental.
275
Sob a fachada de empréstimo compulsório, a proposta do governo
traduzia, na prática, um confisco de recursos incidente sobre os usuários do
sistema, podendo ser entendida como um aumento indireto ou “disfarçado” de
tarifa. De fato, num cenário onde a inflação média anual situava-se em patamar
muito superior à taxa fixada para a remuneração do empréstimo – como
ilustração, a taxa inflacionária brasileira atingiu 51% em 1961 (Ianni, 1977) -, a
restituição projetada tenderia a ficar muito abaixo do valor efetivo da contribuição,
num claro mecanismo de transferência de renda dos consumidores para as
empresas concessionárias. A percepção da indisposição social em colaborar com
a iniciativa do poder público, que se manifestava sobretudo nos grandes centros
urbanos (Richer, 1995, depoimento), irá levar a um esforço de comunicação e
negociação por parte da administração federal com vistas à aprovação do projeto
no
Congresso.
Conforme
Richer,
“foi
necessário
promover
campanhas
publicitárias para dizer que os recursos arrecadados seriam utilizados para fins
de interesse público, (...) muita coisa teve de ser dita para que as pessoas
percebessem que a única alternativa era o empréstimo compulsório” (1995: 102,
depoimento). Sem mecanismos institucionais capazes de facilitar a obtenção do
necessário suporte político às suas decisões, o governo recorre a estratégias de
convencimento para aumentar suas perspectivas de êxito.
Embora tivessem consequências similares sob a ótica do consumidor,
aumento de tarifa e empréstimo compulsório se diferenciavam quanto à forma de
apropriação e aplicação dos recursos. Enquanto a receita decorrente do primeiro
seria apropriada pelas empresas distribuidoras de energia, consoante suas
participações na estrutura de distribuição de energia, o que favorecia
principalmente empresas como Light e Amforp83, os recursos oriundos do
segundo seriam centralizados na Eletrobrás, ficando, portanto, sob controle do
setor público. Em outras palavras, o empréstimo compulsório cumpria o mesmo
papel que a revisão tarifária no tocante à alavancagem de recursos para o setor,
83
A despeito da acentuada redução da participação no lançamento de novos projetos de geração, as
grandes concessionárias de capital externo mantinham o controle sobre os principais mercados
consumidores do país.
276
sem contudo beneficiar as grandes concessionárias de capital externo – aspecto
que terá papel decisivo no êxito das negociações com e no Congresso. Ao
“excluir” do rol dos potenciais beneficiários as empresas estrangeiras, a proposta
consegue cooptar apoio junto à bancada nacionalista, sem a qual dificilmente teria
alcançado sucesso em sua viabilização política (Richer, 1995, depoimento;
Cotrim, 1995, depoimento).
Instituído pela mesma legislação que reformulava a mecânica da
cobrança do IUEE , o empréstimo compulsório teria um prazo de vigência de
cinco anos – posteriormente prorrogado -, sendo cobrado a uma taxa de 15%
sobre o valor da conta do consumidor no primeiro ano e de 20% no período
subsequente (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No entanto,
embora sua aplicação fosse deixada a cargo da Eletrobrás, enquanto agência
responsável pela definição das prioridades de investimento no sistema, o
Congresso interferiu no processo, impondo limites à autonomia decisória da
empresa. Num resultado que espelha a forte interveniência de interesses
regionais na negociação da matéria, ficou estabelecido, no texto legal, que 60%
da arrecadação seria canalizada para projetos das empresas estaduais (Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Os efeitos práticos dessa
vinculação, contudo, acabaram sendo contrabalançados, ainda que de forma
parcial , por dispositivo da mesma legislação, que transferia para a Eletrobrás o
controle sobre a totalidade dos recursos orçamentários da União programados
para o setor. Com isto, qualquer recurso de origem orçamentária que viesse a ser
repassado para as empresas estaduais, onde se incluía a arrecadação do
imposto compulsório, convertia-se automaticamente em participação acionária da
Eletrobrás em tais empresas (Richer, 1995, depoimento), perdendo, portanto, o
caráter de transferência unilateral que apresentava até então. Embora não
bloqueasse o acesso aos recursos por parte das concessionárias estaduais, tal
medida atuava como fator de desestímulo à sua utilização, já que implicava o
277
“custo” de ter a União como sócia, o que nem sempre era de interesse dos
respectivos governos84.
Em paralelo às iniciativas implementadas pelo governo federal com o
intuito de reforçar sua capacidade de intervenção na área, vinha ganhando corpo
um processo dinâmico e descentralizado de reconfiguração do sistema. Tais
mudanças refletiam o esforço das empresas energéticas no sentido da
adequação de suas estratégias e planos de ação à crescente complexidade de
uma atividade caracterizada pela redefinição de regras de funcionamento e de
estruturas de mercado. Ao final da década de cinquenta, a consolidação da
presença de empresas energéticas federais – representadas por Furnas e Chesf e a multiplicação de concessionárias estaduais haviam não apenas introduzido
novos e diferenciados interesses no setor, mas provocado o adensamento e o
início da interpenetração de suas atividades, potencializando tanto conflitos
associados
ao
controle
sobre
aproveitamentos
hidráulicos85,
quanto
oportunidades para a articulação de novos arranjos produtivos.
O avanço nessa direção será estimulado pela interação de uma série
de fatores econômicos, sociais
e institucionais – direta ou indiretamente
associados à dinâmica do setor -, que acabavam se refletindo sobre o
desenvolvimento da atividade. Do lado da oferta, o relativo esgotamento dos
potenciais favoráveis ao aproveitamento produtivo, próximos aos principais
centros de consumo, implicava tendência à progressiva elevação do montante de
recursos orçados para os projetos de geração e transmissão de energia, com
efeitos conexos sobre os custos de prestação dos serviços. Do lado da demanda,
a acelerada expansão do consumo de eletricidade, provocada pelos movimentos
de urbanização e industrialização, se traduzia em pressão sobre a capacidade de
atendimento. Numa circunstância em que se defrontavam com dificuldades na
84
Richer cita, como ilustração, a posição do governo de Minas Gerais, refratário a que Eletrobrás viesse a ter
participação capaz de lhe assegurar direito de voto nos processos decisórios da Cemig (1995, depoimento).
85
São emblemáticas da situação as disputas em torno da construção da usina de Peixoto – aproveitamento
localizado na bacia do rio Grande, em território mineiro, envolvendo Cemig e Furnas (Richer, 1995,
depoimento; Bhering, 1988, depoimento).
278
obtenção de financiamentos extra-setoriais, além de não disporem de flexibilidade
decisória na fixação de tarifas (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988,
1996), o sistema via-se tensionado a aumentar sua eficiência operacional, o que
apontava para a racionalização de seus investimentos produtivos, em prol da
apropriação de ganhos de escopo e de escala.
Dos caminhos passíveis de serem adotados, aqueles com maior
perspectiva de êxito conjugavam iniciativas em duas vertentes principais. A
primeira consistia no progressivo alargamento da interligação operacional do
sistema, ampliando as oportunidades para ganhos de eficiência no atendimento à
demanda e na realização de novos investimentos na expansão do parque
energético. A segunda remetia ao aprimoramento da sistemática de planejamento
das atividades do setor, instrumentalizando a viabilização de melhorias na
alocação de recursos e na prestação do serviço. São movimentos que começam
a ser ensaiados a partir da região Sudeste, onde se concentravam os maiores
mercados e as principais empresas energéticas do país.
1.2 O avanço descentralizado no sentido da interligação operacional dos
serviços de eletricidade
O passo inicial no sentido da racionalização dos investimentos em
geração e transmissão de energia, sob uma concepção integrada ou sistêmica,
será dado por Furnas. Antecipando-se à Eletrobrás, que ainda não havia sido
constituída, a empresa toma a iniciativa, ao final dos anos cinquenta, de articular
a elaboração de um estudo relativo ao suprimento energético da região Sudeste,
entrando em entendimentos com as principais concessionárias atuantes na área,
o que inclui, além de Light e Amforp, a Cemig, Uselpa, Celusa e Cherp, estas três
últimas pertencentes ao governo paulista (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988). Tal protagonismo não é aleatório, mas fruto das circunstâncias de
sua inserção no sistema. Ao contrário das concessionárias estaduais e privadas,
as atividades da empresa não se vinculavam a um espaço formalmente
demarcado, o que se refletia nos cursos de ação potencialmente abertos à
279
mesma. De um lado, suas oportunidades de investimento não ficavam
circunscritas a um mercado previamente definido; de outro, suas decisões se
defrontavam com os constrangimentos advindos das interfaces com os planos de
ação das concessionárias estabelecidas na região. Não se pode esquecer que a
própria constituição da empresa exigira prévio entendimento da União com os
governos dos estados de Minas Gerais e São Paulo, bem como com a Light e
Amforp. Ganham saliência aqui questões afetas ao adequado aparelhamento
burocrático do Estado no tocante a imprimir direcionamentos objetivos aos
processos organizacionais e produtivos da sociedade. A efetividade das ações
conduzidas pelo poder público depende, entre outros fatores, de sua capacidade
de coordenação, concretizada em burocracias formalmente constituídas e
tecnicamente preparadas para atuar como força integradora e administrar os
conflitos de interesses suscitados pelo processo de alocação de recursos e pela
distribuição dos resultados dele derivados. Na ausência de um aparato com
legitimidade para desempenhar a função – papel a ser cumprido pela Eletrobrás -,
a iniciativa da empresa visava a criação de um meio associativo mais favorável à
negociação de arranjos ou acordos para lidar com a interdependência decisória,
subjacente ao desenvolvimento de suas atividades, e que apresentava, ademais,
efeitos externos positivos, à medida que convergente com o aumento da
eficiência do desempenho produtivo do setor.
O planejamento integrado da expansão do sistema, que teve um
primeiro ensaio na iniciativa de Furnas, irá ganhar outro importante impulso, de
natureza não intencional ou pretendida, a partir de decisão da Cemig de realizar
um levantamento sistemático do potencial hidráulico de Minas Gerais, com vistas
a subsidiar a elaboração de sua programação de investimentos. Com a
implantação de Três Marias e participando da construção de Furnas, a empresa
passara a desfrutar de condição singular dentro do setor elétrico brasileiro. No
quadro de escassez energética que caracterizava o país na primeira metade dos
anos sessenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996), a capacidade
de atendimento da estatal mineira superava em muito a demanda efetiva e
280
potencial de seu mercado de consumo. Sem a pressão de construir novos
empreendimentos de geração no curto a médio prazo, a empresa pôde dedicar
atenção à melhoria da base de informações disponíveis sobre o potencial
hidráulico de sua área de atuação. Além de potencializar ganhos de eficiência sob
a ótica da alocação de recursos, a realização do trabalho revelava-se estratégica
para a empresa, à medida que reforçava sua posição na disputa pelo controle das
atividades de geração no âmbito do estado, onde se defrontava com a
concorrência de Furnas, sobretudo na bacia do rio Grande, e da Chesf, na bacia
do São Francisco.
O inventário do potencial energético de bacias hidrográficas, na
dimensão e complexidade pretendidas pela Cemig, era até então inédito no país
(Bhering, 1987, depoimento) -, induzindo a empresa a recorrer à contratação de
consultoria especializada. Além de não dispor de capacidade técnica compatível
com os requisitos do trabalho, tal opção via-se circunstancialmente favorecida
pela existência de um fundo especial da Organização das Nações Unidas,
contemplando financiamentos para a realização de estudos dessa natureza
(Cotrim, 1987, depoimento), que atrai o interesse da empresa. Por exigência da
fonte financiadora, o processo converge para a realização de licitação
internacional (Campolina, 1981), cujo vencedor será o consórcio Canambra
Engineering Consultants Limited, formado por uma associação de empresas
canadenses e americanas. A assinatura do contrato entre a estatal mineira e o
consórcio, ocorrida em setembro de 1962, irá representar um marco na trajetória
evolutiva do setor, dando o passo decisivo na transição rumo a um novo modelo
de gestão, baseado no planejamento de longo prazo da expansão do sistema sob
a ótica da otimização do aproveitamento dos recursos energéticos das principais
bacias hidrográficas do país.
De fato, pouco depois, por sugestão do BIRD (Campolina, 1981; Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Cotrim, 1995, depoimento), que
intermediara a negociação do financiamento para a Cemig, o estudo contratado
junto à Canambra será estendido para os demais estados da região Centro-Sul.
281
Isto se fez através da assinatura de um novo contrato de prestação de serviços de
consultoria, datado de junho de 1963 (Campolina, 1981), envolvendo o consórcio
e a União, representada formalmente por Furnas, que atuava em nome e por
delegação da Eletrobrás, ainda em fase de organização (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). Além do aporte metodológico e da estruturação de
uma ampla base de conhecimento e informação sobre o potencial hidráulico e as
alternativas de aproveitamento hidrelétrico da região com maiores “exigências” de
investimento em geração, os trabalhos desenvolvidos pela Canambra trazem,
como subproduto, a capacitação de mão-de-obra na área de engenharia de
barragens e de projetos de geração de eletricidade. Ao recrutar um grande
número de profissionais brasileiros, o consórcio estimula e favorece a formação
de um corpo de especialistas que irá desempenhar um papel importante ao longo
dos anos sessenta e setenta, mais especificamente o de dar suporte às atividades
de planejamento setorial intensificadas no período (Bhering, 1987, depoimento;
Cotrim, 1995, depoimento).
Decisões tomadas num determinado momento refletem-se sobre a
conformação das relações que se processam num dado campo de atividades,
influenciando novas decisões, nem sempre antecipadas ou pretendidas, e que
tanto podem ser contraditórias quanto convergentes com os resultados das
mesmas. A realização do estudo desencadeia efeitos dessa natureza, que se
cristalizam na criação do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região
Centro-Sul, integrado por representantes do Ministério das Minas e Energia, de
Furnas e das empresas energéticas dos estados de Minas Gerais, São Paulo e
Rio de Janeiro (Lima, 1995; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Instituído pelo governo federal com o propósito de supervisionar e acompanhar os
trabalhos da Canambra, o comitê configura o embrião de uma nova lógica de
funcionamento dos serviços de eletricidade, modelada em função da interligação
operacional do sistema. Numa dinâmica típica daquilo que a literatura
neoinstitucionalista designa como “desenvolvimento institucional” ( Powell, 1991;
Jepperson, 1991), o processo vai ser aprimorado e adquirir contornos mais
282
consistentes no âmbito do conjunto abrangente de reformas implementadas após
o golpe militar de 64.
2. Rumo à autarquização das atividades setoriais: as reformas financeiras e
institucionais do período 1964/67
A conformação de um quadro de crescente instabilidade econômica,
social e política que se segue à renúncia de Jânio Quadros à Presidência da
República, ocorrida em 1961, potencializa uma crise de governabilidade que irá
desembocar na ruptura da ordem democrática, com a instauração do regime
autoritário-militar de 1964 (Alves, 1984; Nogueira, 1998). A nova estrutura de
poder significa, por sua própria natureza, o fortalecimento político do Estado
frente à sociedade civil e, especificamente, a hegemonia do Executivo sobre o
Legislativo. Vale dizer, sua implantação supunha a adaptação da ordem política
aos requisitos de um regime que derivava sua autoridade do “exercício de facto
do poder” (Alves, 1984: 54) e não da legitimidade de um mandato eleitoral, tendo,
como implicação mais geral, a imposição de restrições às possibilidades de
organização e manifestação de forças contrárias ao desenvolvimento da atividade
governativa. O golpe militar de 64, portanto, não se prende apenas a mudanças
no arcabouço político-institucional, mas nas relações entre o poder político e as
esferas econômica e social da vida nacional.
Investindo-se de poder constituinte, o governo instaurado pelo regime
militar irá promover profundas alterações nas regras do jogo político decorrentes
da redemocratização do pós-guerra, cristalizadas na Constituição de 46. O
sentido básico das mudanças na ordem legal, que se iniciam com a edição do Ato
Institucional nº. 1, de abril de 1964, para se consolidarem através das
Constituições de 67 e 69, é a recomposição, por via autoritária, das condições de
governabilidade, com a neutralização dos principais constrangimentos políticoinstitucionais que haviam provocado, na leitura das forças que assumem o
controle do Estado, a paralisia decisória e administrativa dos anos imediatamente
anteriores ao golpe de 64 (Santos, 1987; Skidmore, 1988; Nogueira, 1988; Sallum
283
Júnior, 1995). Adquire saliência, nesse contexto, o esvaziamento do poder e das
atribuições do Congresso (Alves, 1984; Oliveira, 1995; Ianni, 1977), voltado à
diluição das dificuldades de lidar com o parlamento, recorrentes em sistemas
presidencialistas (Sartori, 1996; Lima Júnior, 1997) e não negligenciáveis no
Brasil à época.
Com o cerceamento do Legislativo, o Executivo adquire autonomia
para governar por decreto, concentrando poder suficiente para impor seus
projetos e fazer prevalecer suas decisões relativas aos rumos da dinâmica
econômica e social do país. Retomado sob o signo do binômio segurança e
desenvolvimento (Alves, 1984), o esforço de industrialização da economia, que
começa a ser empreendido nos anos trinta, irá moldar o conteúdo substantivo da
agenda pública do novo regime (Ianni, 1977; Fiori, 1993; Sallum Júnior, 1995). A
primeira componente do binômio expressa os propósitos de assegurar a
estabilização do ambiente interno, fundamentado no poder coercitivo do Estado.
Trata-se, mais especificamente, de criar condições favoráveis ao processo de
acumulação capitalista, através da redução dos riscos e incertezas para a
realização de investimentos produtivos, de crucial importância na retomada dos
fluxos de capital externo para o país, que tinham despencado nos anos mais
iniciais da década (Baer, 1996). A segunda componente representa o
desdobramento finalístico da estabilização, isto é, a expansão e diversificação
estrutural da base produtiva, alicerçada no aproveitamento eficaz do potencial de
crescimento da economia brasileira (Ministério do Planejamento e Coordenação
Geral, 1967). Como objetivo-síntese da ação governamental, desenvolvimento
passa a constituir, a partir de então, uma espécie de equivalente geral de
interesse público, transformando-se, sob a roupagem de “progresso social”, na
variável central da política pública86.
86
Isto se explicita, em particular, no âmbito do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), proposto para
o período 1964/66. De acordo com a análise de Martone, o plano “representou um esforço no sentido de
interpretar o processo (...) de desenvolvimento brasileiro e de formular uma política econômica capaz de
eliminar as fontes internas que bloquearam o crescimento da economia” (1975: 71/72).
284
Da centralidade atribuída à gestão eficaz da economia enquanto
instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional vão resultar
implicações em duas direções principais: a reformulação do padrão decisório
relativo ao desenho das políticas e programas de governo, e o reaparelhamento e
modernização da administração pública federal. A primeira se expressa na
primazia conferida à racionalidade técnica, com o planejamento se impondo
progressivamente sobre a negociação política enquanto método decisório na
definição das prioridades e metas da agenda pública, bem como das estratégias
para sua consecução. A segunda tem a ver com a ampliação e aprimoramento
dos mecanismos e instrumentos de intervenção estatal na economia, tanto em
termos de capacidade de mobilização de recursos quanto de comando, de forma
a assegurar maior efetividade e eficiência na implementação das decisões
governamentais. Os dois processos se interpenetram e adquirem materialidade
nas profundas reformas institucionais e econômicas promovidas ao longo do
período 1964/67 (Ianni, 1977; Oliveira, 1995; Alves, 1984; Dulles, 1983).
Do ponto de vista institucional, as mudanças orientaram-se no sentido
da “centralização normativa, de comando e de recursos” (Dain, 1977: 164),
resultando no reforço do poder e da capacidade de articulação e coordenação
política do governo federal em detrimento das administrações estaduais e locais
(Ianni, 1977; Oliveira, 1995). Isto se fez através de uma reforma administrativa
que envolveu a multiplicação das agências governamentais de planejamento,
fomento e promoção ao desenvolvimento econômico, dotadas de relativa
flexibilidade operacional. Do ponto de vista econômico, buscou-se promover a
recuperação das bases financeiras do Estado, ampliando seu potencial de
intervenção através de reformas nas áreas fiscal, monetária e creditícia (Oliveira
e
Mazzuccheli,
1977;
Martone,
1975; Ianni,
1977).
Amplificam-se,
em
consequência, a esfera de influência e a capacidade de gasto do setor público,
que irão fundamentar a retomada do ciclo expansivo da economia brasileira nos
anos finais da década de sessenta trazendo, com elas, um aprofundamento, sem
precedentes, da presença estatal no sistema produtivo (Fiori, 1992).
285
As reformas implementadas no período vão estimular, em particular,
novos avanços nos processos de recomposição das bases financeiras e de
reconfiguração dos arranjos organizacionais e produtivos do setor elétrico. Na
primeira vertente, as ações governamentais se concentram no esforço de
complementar, via revisão da política tarifária, a recuperação da capacidade de
autofinanciamento
das
empresas
energéticas,
aprofundando
iniciativas
empreendidas nos anos anteriores. Na segunda, reafirmam e consolidam o papel
da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da expansão do
sistema, estabelecendo as linhas gerais do modelo de ordenamento e gestão das
atividades elétricas que irá vigorar até os anos oitenta (Thibau, 1995, depoimento;
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). No contexto da centralização
político-institucional promovida pelo regime militar, o locus das decisões
estratégicas relativas ao setor tende a se concentrar na esfera da administração
federal. Os principais interesses constituídos do sistema – concessionárias
estaduais, Light etc – bem como o Legislativo perdem, em larga medida, a
capacidade de influenciarem os rumos do desenvolvimento da atividade, não por
que
querem,
mas
por
não
conseguirem
mobilizar
recursos
políticos
suficientemente sólidos para se credenciarem como interlocutores junto ao núcleo
decisório do poder central.
2.1 O realinhamento tarifário e os impactos sobre as atividades do sistema
Mudanças ocorridas no contexto institucional alteram as preferências, a
correlação de forças e as estratégias de ação ao alcance dos diversos atores. A
revisão da política de fixação das tarifas dos serviços de eletricidade,
sistematicamente bloqueada pelo Legislativo nos anos cinquenta (Dias Leite,
1995, depoimento; Thibau, 1995, depoimento), será efetivada no âmbito do
programa de estabilização macroeconômica posto em prática no período 1964/67
pelo Governo Castelo Branco. Empenhado na contenção do déficit público, que
constituía, no diagnóstico oficial, um dos principais fatores de pressão
inflacionária (Martone, 1975; Dain, 1986; Ianni, 1977), o Executivo federal adota
uma estratégia de realinhamento das diversas tarifas públicas, numa iniciativa
286
designada como política de “realismo tarifário” (Thibau, 1995, depoimento).
Através da medida, pretendia-se corrigir a compressão ou atraso na revisão dos
preços dos principais serviços de utilidade pública, entre os quais os serviços de
eletricidade, que afetara drasticamente a capacidade de autofinanciamento do já
expressivo setor produtivo estatal, implicando forte dependência em relação à
transferência de recursos orçamentários (Dain, 1986; Martone, 1975). Além de
afinada com os propósitos da política de estabilização, aumentos reais no valor
das tarifas asseguravam também maior autonomia financeira às empresas
estatais, respondendo às diretrizes da reforma institucional que será empreendida
em conexão com o programa de controle inflacionário (Martone, 1975; Ianni,
1977), e que estava voltada a conferir “maior agilidade, eficiência e flexibilidade à
administração federal, de modo a atender às exigências de um novo ciclo de
expansão econômica” (Nogueira, 1998: 101).
Caracterizada pela preocupação em conciliar estabilização dos níveis
de preço e retomada do desenvolvimento, a política econômica implementada no
período irá convergir para uma estratégia gradualista ou progressiva de combate
à inflação (Martone, 1975; Ianni, 1977; Baer, 1996), o que tende a se refletir nas
mudanças que serão introduzidas nos dispositivos de fixação das tarifas públicas.
Ajustando-se ao gradualismo projetado para o controle de preços, a promoção de
revisões na sistemática tarifária tem que levar em consideração a persistência do
fenômeno inflacionário, o que supunha não apenas corrigir os efeitos da inflação
passada, mas neutralizar os efeitos da inflação futura. A solução encontrada para
“conviver” com um ambiente inflacionário consiste na adoção do mecanismo da
“correção
monetária”, idealizado
depoimento;
Thibau,
no Governo
1995, depoimento),
mas
Kubitschek (Cotrim, 1987,
que
não
encontrara,
na
oportunidade, apoio político suficiente para sua viabilização no Congresso. Em
outras palavras, o cerne da política de “realismo tarifário” consiste na correção
monetária dos principais preços controlados pela administração pública, entre os
quais a energia elétrica, tendo como referência a variação dos índices de inflação.
287
Instituída pela Lei
nº. 4.357, de julho de 1964, a utilização do
instrumento da correção monetária pelas concessionárias do setor elétrico,
contudo, não será imediata. Ao contrário, sua aplicação esbarrava em
determinados dispositivos do Código de Águas, exigindo adaptações nas regras
tarifárias nele estabelecidas. Isto se fez através dos Decretos nos. 54.936 e
54.937, ambos de novembro de 1964, que regulamentaram aspectos ainda
pendentes da legislação setorial, tornando possível a atualização, baseada na
inflação, dos ativos imobilizados das empresas para efeitos de valoração do
investimento a ser remunerado (Thibau, 1995, depoimento; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). A partir dessas mudanças, a concepção de tarifa
pelo custo de prestação dos serviços, até então pouco atraente para as
concessionárias do sistema, torna-se convergente com seus interesses,
instrumentalizando ganhos consideráveis de receita. Assim, num desdobramento
que expressa, com nitidez, a complexa relação que se estabelece entre ação e
contexto, a sistemática de fixação de tarifa pelo custo do serviço, concebida nos
anos trinta com o intuito de manter a remuneração dos serviços de eletricidade
dentro de limites considerados “justos e razoáveis”, protegendo os consumidores
contra práticas abusivas das empresas advindas de seu poder de monopólio, vai
atender, nos anos sessenta, a propósitos de assegurar a estas mesmas
empresas níveis de remuneração “justos e razoáveis”.
Refletindo a significativa participação da remuneração do ativo
imobilizado das empresas na composição dos custos da prestação dos serviços
de eletricidade, de um lado, e a rápida erosão de valor causada pelo fenômeno
inflacionário sobre preços que vinham sendo mantidos sob acompanhamento e
controle do governo, de outro, as novas regras terão expressivo impacto na
receita operacional do sistema. De imediato, determinaram um salto de cerca de
40% no valor médio da tarifa praticada em 1965, comparativamente à de 1964,
que, por sua vez, já incorporava uma elevação próxima de 10% em relação à do
ano anterior (Quadro 6). Nos anos seguintes, a correção monetária irá possibilitar
não apenas a neutralização dos efeitos deletérios de uma inflação que, embora
288
em queda, ainda se mantinha em patamar elevado, mas a continuidade do
processo de recuperação do valor real dos níveis de preços cobrados ao
consumidor (Quadro 6).
Quadro 6
Evolução das Tarifas de Energia Elétrica, em Anos Selecionados
Período: 1963/70
Ano
Tarifa Média
Tarifa Fiscal
1963
90,67
103,46
1964
100,00
100,00
1965
139,88
164,57
1966
143,63
197,15
1967
155,94
234,80
1968
138,42
222,20
1969
149,69
232,85
1970
165,82
256,12
Fonte: dados básicos: Eletrobrás, Informe tarifário; extraído de Lima, J. L. Política de
governo e desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos
anos oitenta (1934-1984). Rio de Janeiro: Memória da Eletricidade, 1995: 102).
Observação: 1964 = 100,00
Além dos ganhos em termos da remuneração das concessionárias, as
mudanças na sistemática tarifária tiveram também impactos expressivos na
receita tributária vinculada ao setor. Acompanhando a evolução da tarifa efetiva, a
tarifa fiscal - adotada como base do cálculo do IUEE e do empréstimo
compulsório - sofre uma elevação real de mais de 60% entre 1964 e 65,
mantendo trajetória ascendente, ainda que descontínua, nos anos subsequentes
(Quadro 6). Apesar de tais ganhos terem sido atenuados pela redução das
alíquotas do IUEE e do empréstimo compulsório sobre o consumo de energia –
289
medida adotada em 1966, no âmbito do programa de estabilização87 do governo,
os recursos de origem fiscal atrelados a investimentos no sistema sofreram
considerável aumento entre 1964 e 1966, quase que triplicando no período
(Quadro 6).
No entanto, a despeito de sua inegável importância como instrumento
de recuperação da capacidade de autofinanciamento do setor, a adoção do
denominado realismo tarifário vai se revelar insuficiente, por si só, para atender
aos requisitos de capital exigidos na expansão do sistema. Tendo em vista as
características técnico-econômicas assumidas pelos investimentos na área, que
avançavam na direção de projetos com escalas produtivas significativamente
maiores e, portanto, cada vez mais exigentes de capital e com prazos mais longos
de maturação (Rosa et al, 1998; Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988), as empresas energéticas dificilmente poderiam prescindir do aporte de
recursos extra-setoriais na ampliação e modernização de sua capacidade de
atendimento. Além de estrutural, essa dependência financeira vinha se
acentuando progressivamente ao longo do tempo, refletindo não apenas
tendência à elevação dos custos unitários de geração e transmissão de energia,
mas o acelerado ritmo de crescimento da demanda.
A conjunção desses fatores apontava na direção da intensificação do
processo de interligação operacional do sistema, que se configurava, sob a ótica
da racionalidade técnica, como uma espécie de caminho natural para o
desenvolvimento do setor. De um lado, instrumentalizava o rebaixamento dos
custos globais incorridos na expansão da infra-estrutura energética, atenuando a
pressão sobre o aporte de recursos públicos para investimentos na área. De
outro, potencializava ganhos de eficiência na prestação dos serviços, com
impactos positivos sobre as tarifas de energia, num resultado convergente com a
política de estabilização macroeconômica e a própria retomada do crescimento
econômico. São circunstâncias que estimulam o governo federal a aprofundar o
87
Trata-se do programa de estabilização instituído pela Lei nº. 5.073, de 19 de agosto de 1966, por iniciativa
do Executivo federal (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
290
movimento
de
interligação
operacional
do
sistema,
que
avançava
progressivamente pela região Sudeste.
2.2 O avanço no sentido da interligação do sistema e a consolidação da
Eletrobrás
A apropriação eficaz das oportunidades de ganhos de escala, enquanto
estratégia de racionalização dos investimentos do setor, supunha a adoção de
uma concepção integrada para os projetos de geração e transmissão de energia,
na linha dos trabalhos desenvolvidos pela Canambra, anteriormente comentados.
A
viabilização
do
processo
passava
inevitavelmente
pela
interconexão
operacional das atividades das empresas energéticas, o que se defrontava com
dificuldades advindas da compartimentação das estruturas produtivas decorrente
da segmentação das áreas de mercado forjada pelos contratos de concessão.
Decisões tomadas num determinado momento têm efeitos externos que
potencializam não apenas oportunidades mas constrangimentos para decisões
que serão tomadas no futuro, numa relação de causação nem sempre antecipada
ou pretendida. Ganha saliência, nesse contexto, a percepção do relativo
esgotamento do modelo institucional vigente, introduzido quando da emergência
da prestação dos serviços de eletricidade e referendados posteriormente pelo
Código de Águas, o que atua no sentido de conferir centralidade, na política
setorial do governo,
à necessidade da promoção de ajustes nos arranjos
organizacionais e no padrão de gestão do sistema.
A intenção governamental de estimular a interconexão dos serviços de
eletricidade pode ser percebida na adoção de medidas voltadas à unificação da
frequência elétrica no país - até os anos sessenta, cerca de dois terços do
sistema operava com 60 ciclos e o restante com 50 ciclos (Thibau, 1995,
depoimento). Em estudo desde o início da década pelo CNAEE, que havia
inclusive constituído uma comissão especial para tratar do assunto (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), a unificação será instituída por força da
Lei nº. 4.454, de novembro 1964, estabelecendo a frequência de 60 ciclos como
291
norma em todo o território nacional (Lima, 1995, Thibau, 1995, depoimento). Tal
iniciativa vai ao encontro de uma nova lógica de funcionamento da atividade,
fundada na sobreposição de uma racionalidade sistêmica, introjetada na política
pública, aos interesses, preferências e ações das empresas atuantes na área.
Novamente aqui, a adoção da medida é favorecida pela vigência de um contexto
político autoritário, que permite ao governo federal impor às concessionárias o
ônus da conversão de frequência, em prol da ampliação das possibilidades de
acordos e arranjos operacionais do setor e dos consequentes ganhos de
eficiência deles advindos.
Se a interconexão operacional sinalizada pela padronização de
frequência
potencializava
aumentos
na
eficiência alocativa
do
sistema,
associados a ganhos de escala nas atividades de geração e transmissão,
ampliava, em contrapartida, a margem de riscos e incertezas para as empresas
setoriais, à medida que restringia a reserva de mercado assegurada pelos
contratos de concessão apenas ao segmento de distribuição. Dito de outra forma,
avanços nessa direção implicavam romper com o modelo organizacional
construído em torno de arranjos produtivos fechados, onde cada empresa tinha
atuação simultânea e articulada nos segmentos de geração, transmissão e
distribuição. Isto significava uma mudança profunda em regras do jogo
historicamente estabelecidas, o que, evidentemente, teria repercussões nos
cálculos estratégicos, na forma de atuação e nos resultados passíveis de serem
obtidos pelas diversas concessionárias. As decisões de cada empresa teriam de
considerar, além dos próprios interesses e preferências, os interesses e
preferências de outras empresas, o que supunha negociações e barganhas
referentes a uma ampla gama de questões relacionadas ao intercâmbio de
energia e ao controle sobre os aproveitamentos hidrelétricos. Sem mecanismos e
instrumentos institucionais claramente definidos para dirimir conflitos e arbitrar a
partilha dos benefícios e dos ônus advindos da operação interligada, os custos de
transação subjacentes à interconexão do sistema não podiam ser negligenciados.
292
De fato, numa atividade caracterizada pela presença de empresas com
perfis e lógicas decisórias bastante diferenciadas, a inexistência de um esquema
formal de mediação e articulação de interesses acentuava em muito a
complexidade de iniciativas com vistas ao alargamento do ensaio de integração
operacional em curso no setor, refletindo-se tanto sobre sua implementação
quanto sobre os resultados alcançados. Os acontecimentos que cercaram a
construção da usina de Furnas, discutidos no capítulo anterior, ilustram bem a
questão. Oportunidades para ganhos de escala e de escopo não faziam da
operação interligada um processo automático ou de materialização não
problemática, na linha de raciocínios funcionalistas, que trazem implícito o
suposto da eficiência da história. Ao contrário do que se deduz da aplicação
desse tipo de lógica argumentativa, eficiência sob a ótica agregada do sistema e
eficiência sob a ótica das empresas não expressavam nem podiam ser
entendidos como resultados aprioristicamente congruentes. As críticas feitas na
literatura econômica e política à dinâmica alocativa do mercado mostram que a
agregação das preferência dos atores não conduz necessariamente a resultados
eficientes sob o prisma da coletividade. O Dilema do Prisioneiro, desenvolvido e
aplicado no âmbito da teoria dos jogos, aponta em direção similar.
O aumento da eficiência global na prestação dos serviços de
eletricidade, enquanto objetivo da política pública, supunha a superação dos
constrangimentos que a presença de interesses de cunho regional, cristalizados
principalmente nas concessionárias estaduais, criava para a racionalização dos
investimentos em geração e transmissão de energia, que requeria a adoção de
uma perspectiva multiregional. O enfrentamento do problema deixava, a rigor,
duas alternativas ou caminhos à consideração do governo, com combinações
bastante diferenciadas de custos e benefícios. Um deles passava pela plena
centralização das decisões de investimento, conjugado à implantação de um novo
desenho organizacional, verticalmente integrado. O outro envolvia uma ação
coordenada capaz de induzir a progressiva integração vertical e horizontal das
atividades das empresas atuantes na área consoante o aproveitamento de
293
oportunidades para ganhos de escala e escopo, articulando-as em redes de
âmbito macrorregional. O balanço das implicações associadas a cada alternativa
levará à adoção da segunda, em detrimento da primeira.
Conforme Thibau (1995, depoimento), o governo federal chegou a
examinar a hipótese de promover a verticalização operacional do sistema,
centralizando as atividades de geração e transmissão de energia elétrica na
Eletrobrás, com a implantação de um arranjo organizacional similar ao modelo
institucional prevalecente na França88. No entanto, embora proporcionasse
evidentes ganhos no tocante ao gerenciamento dos processos produtivos do
setor, sob a forma de redução da taxa de conflitos e das inconsistências
operacionais do sistema, sua adoção implicava um esforço, concentrado no
tempo, de estatização e, dentro dele, de federalização da atividade, exigindo
compromissos financeiros que extrapolavam em muito a capacidade de
mobilização de recursos da União. Na percepção governamental, as restrições de
ordem financeira tornavam irrealista qualquer propósito de transferir, no curto a
médio prazo, o controle da propriedade do sistema para a Eletrobrás. Corolário
dessa avaliação, a opção ao alcance do Executivo federal era “sem dúvida, a
soma de todos os esforços públicos e privados, federais, estaduais e municipais
(...), sem os quais seria impossível mobilizar as elevadas somas necessárias à
solução da problemática nacional de energia elétrica” (Thibau,1995, depoimento).
Numa circunstância em que reconhecia como imprescindíveis os
investimentos das empresas estaduais e privadas, a solução ou saída ao alcance
do governo federal era o reforço de sua capacidade de comando na área, de
forma a poder imprimir um direcionamento objetivo ao processo de integração do
sistema e, ao mesmo tempo, assegurar uma administração eficiente para as
operações interligadas. Se a diversidade de agentes era um dado, tornando o
conflito inevitável, cabia procurar administrá-lo de forma eficiente, introduzindo
uma força integradora capaz de ajustar a lógica dos interesses em jogo aos
88
A característica básica era a concentração dos serviços de eletricidade na estatal Eletricité de France
(EDF) (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Thibau, 1995, depoimento).
294
objetivos e metas traçados pela política setorial. Afinada com essa avaliação, a
estratégia que será adotada se orienta para a consolidação de uma autoridade
central com legitimidade e poder para articular o conjunto das empresas
concessionárias em torno de interesses, propósitos e prioridades sistêmicos,
apoiando-se na condensação e aprimoramento de arranjos e iniciativas
anteriores, de diferentes matizes, que confluíam em tal direção. Os recursos que
o governo têm condições de manipular influenciam suas decisões não apenas no
tocante àquilo que irá fazer, mas também à forma como o fará.
Promulgado em novembro de 1956, o Decreto nº. 57.927 confere
materialidade à disposição do governo federal de fomentar a integração
operacional do sistema, estabelecendo o arcabouço geral de um novo modelo
institucional de gestão das atividades elétricas. De um lado, reafirma as
atribuições e competências da Eletrobrás como agência responsável pelo
planejamento e coordenação dos investimentos na área. De outro, define regras e
critérios para a priorização, sob a perspectiva agregada do setor, dos projetos de
geração e transmissão de energia.
O reconhecimento de que a obtenção de resultados satisfatórios no
tocante à racionalização e ao aumento da eficiência na alocação de recursos no
setor, perseguidos pelo governo, dependia não apenas da qualidade técnica das
decisões de investimento tomadas, mas da existência de condições sistêmicas
compatíveis com sua implementação, irá conduzir, por sua vez, à adoção de uma
estratégia
gradualista
no
encaminhamento
do
processo
de
interligação
operacional da atividade. Numa ponta, as oportunidades para ganhos de escala e
de escopo se manifestavam de forma concentrada no espaço, em estreita
conexão com o caráter também concentrado do desenvolvimento urbanoindustrial brasileiro. Na outra, a inexistência de estruturas pretéritas de
intermediação de interesses capazes de estabelecer estratégias estáveis para as
empresas concessionárias - visto que suas áreas de atuação, delimitadas por
contratos de concessão, eram até então estanques – se refletia no esforço a ser
295
empreendido na direção da criação de capacidade governativa. A combinação
desses dois fatores recomendava a opção por uma perspectiva incrementalista.
Seguindo
essa orientação,
a transição para o novo
modelo
organizacional vai se iniciar pela região Sudeste, que não só concentrava o
principal potencial para o aproveitamento de economias de escala e de escopo,
como reunia condições operacionais que favoreciam o encaminhamento do
processo. Primeiro, conjugava os maiores e mais dinâmicos mercados do país à
presença de uma infra-estrutura de geração e transmissão relativamente densa
em termos espaciais, sob responsabilidade de um conjunto de empresas com
níveis de organização e capacidade operacional muito acima da média nacional.
Segundo, estava coberta por uma ampla base de dados e análises referentes a
demanda de energia, potencial hidráulico e alternativas de aproveitamento
hidrelétrico - disponibilizados pelos trabalhos da Canambra, formalmente
concluídos em 1966 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -,
assegurando suporte técnico para as atividades de planejamento e gestão do
sistema (Lima, 1995; Thibau, 1995, depoimento; Cotrim, 1995, depoimento).
Terceiro, já apresentava um ensaio de integração – os arranjos operacionais
estabelecidos em torno da implantação da usina de Furnas, discutidos
anteriormente -, facilitando as tarefas de coordenação e articulação das atividades
das empresas.
Nos termos do decreto promulgado pelo governo federal, caberia à
Eletrobrás a coordenação geral da formulação do programa de investimento em
geração e transmissão de energia elétrica na região, ao qual se subordinariam os
planos de ação do conjunto das empresas concessionárias atuantes na área.
Para assegurar o efetivo cumprimento dos objetivos e metas traçados para o
sistema, foram estabelecidas normas para a concessão dos aproveitamentos
hidrelétricos, condicionando os novos investimentos em geração ao atendimento
de três requisitos básicos: inclusão do projeto entre as obras prioritárias da
programação proposta para a região; existência de potencial de mercado
compatível com a absorção da energia a ser gerada; e capacidade de mobilização
296
de recursos da concessionária à altura das exigências financeiras do
empreendimento. O primeiro impunha uma padronização compulsória dos
critérios decisórios das diversas empresas relativos a investimentos em geração e
transmissão, forjando um alinhamento automático de suas ações nestes
segmentos a uma racionalidade sistêmica. Os outros dois contingenciavam as
decisões de investimento a critérios de oportunidade e competitividade
econômica, atrelando a expansão dos respectivos parques geradores a um
padrão de eficiência comum.
Mudanças institucionais abrangentes tendem a ocasionar aquilo que a
literatura
neoinstitucionalista
designa
como
“recomposição
do
campo
organizacional” (Powell, 1991). Essa será a resultante das alterações nos
procedimentos e critérios para a definição dos investimentos na expansão do
sistema propostas pelo governo, que afetavam, em graus variados, os interesses
e as lógicas decisórias das empresas energéticas estabelecidas na área. Sua
introdução estimula um novo ciclo de diferenciação nos arranjos organizacionais e
produtivos do setor, onde tais empresas procuram ajustar suas ações às novas
regras do jogo, consoante suas especificidades e condições objetivas de inserção
na atividade. O processo converge para uma reestruturação no perfil e nas
estratégias operacionais das principais concessionárias estaduais, tendo em vista
a concorrência com as empresas federais nos segmentos de geração e
transmissão de energia, de um lado, e para o aprofundamento da retração das
concessionárias privadas, onde se destaca a aquisição das subsidiárias do grupo
Amforp pela União, de outro.
2.3 A reacomodação do sistema às mudanças institucionais do setor e o
avanço do movimento de estatização
Sem maiores possibilidades de interferir nos rumos das mudanças
institucionais do setor que, num ambiente autoritário, passam a ser conduzidas de
forma centralizada pelo governo federal, não restava às concessionárias
energéticas outra alternativa a não ser o ajuste de seus objetivos e condutas
297
estratégicas às inovações introduzidas na dinâmica de funcionamento da
atividade. O avanço na direção da interligação operacional do sistema, ao mesmo
tempo em que potencializava ganhos de eficiência através da racionalização dos
processos produtivos setoriais, aumentava a margem de riscos e incertezas para
as empresas, refletindo a crescente interdependência ou influência recíproca de
suas escolhas e as interfaces na prestação do serviço. O aproveitamento de
oportunidades para a melhoria do desempenho produtivo e a defesa frente a
ameaças advindas da sobreposição, ainda que parcial, das áreas de atuação se
conjugam para estimular a concentração da estrutura organizacional do setor, já
que o porte da empresa ou, mais precisamente, sua capacidade de mobilizar
recursos revelava-se crucial à obtenção de resultados satisfatórios no jogo
competitivo aberto pela dinâmica da integração.
Na ausência de uma demarcação mais rigorosa de papéis e
responsabilidades para as empresas atuantes na área – o decreto governamental
que institucionaliza a operação interligada e estabelece regras para seu
funcionamento passa ao largo da questão – a dinâmica de integração das
atividades do sistema trazia, para as concessionárias estaduais, mais ameaças
que oportunidades, à medida que passavam a sofrer a concorrência direta das
empresas federais tanto no tocante à ocupação de novos mercados quanto, e
principalmente, no aproveitamento do potencial hidráulico de suas áreas de
atuação. São circunstâncias que se refletem sobre a conduta estratégica de tais
empresas, estimulando ações com vistas ao reforço ou consolidação de suas
posições e vantagens competitivas dentro do sistema. O processo avança na
direção
da
centralização
administrativa e
de
comando
das
atividades
desenvolvidas pelos governos estaduais no setor, que procuram aglutiná-las
numa única empresa, promovendo a fusão ou incorporação de concessionárias
regionais ou locais.
Assim, repercutindo a definição dos novos procedimentos para a
concessão de aproveitamentos hidrelétricos, que favoreciam empresas com maior
capacidade de mobilização de recursos e estruturas mais amplas de mercado, a
298
atuação dos governos estaduais no campo das atividades elétricas passa por
rápida e profunda transformação na região Sudeste. Em 1966, é constituída a
Centrais Elétricas de São Paulo (CESP), através da fusão de cinco
concessionárias regionais controladas pelo governo do estado - Uselpa, Celusa,
Belsa, Cherp e Comepa - e a incorporação de outras seis empresas de âmbito
microrregional ou local (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima,
1995). No Rio de Janeiro, a Centrais Elétricas Fluminense S. A., que havia sido
organizada pelo governo estadual nos moldes de uma empresa holding, encampa
as várias subsidiárias sob seu controle, passando a responder diretamente pela
prestação dos serviços (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Por
sua vez, já consolidada como empresa de âmbito estadual, a Cemig vê-se
compelida a dinamizar e diversificar sua estrutura de mercado, então fortemente
dependente do consumo residencial e dos serviços urbanos (Centro da Memória
da Eletricidade no Brasil, 1988). É com esse propósito que se engaja, junto com o
Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), num esforço de promoção
da industrialização do estado, do qual resulta a criação do Instituto de
Desenvolvimento Industrial (INDI) (Campolina, 1981), para atuar na atração de
plantas industriais de médio a grande porte para o território mineiro, cujo êxito
alavancaria a demanda de eletricidade junto à empresa.
Por sua vez, o fortalecimento das concessionárias estaduais e a efetiva
estruturação da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da
expansão do sistema sinalizam a consolidação da hegemonia das empresas
públicas nos serviços de eletricidade, imprimindo contornos mais nítidos ao
esgotamento das oportunidades para a atuação do capital privado na área. O
movimento de estatização vai entrar então num novo e decisivo estágio, onde a
expansão das empresas públicas deixa de se fazer apenas à margem da esfera
de atuação das empresas privadas, para se sobrepor à mesma. O retraimento
dos investimentos das concessionárias privadas, que vinha sendo utilizado como
estratégia defensiva contra o estreitamento da autonomia decisória e da margem
de retorno na alocação de recursos no setor, tende a ser substituído por uma
299
opção mais radical, a saída do jogo. Este é o caminho seguido pelo grupo Amforp
que, após cerca de cinquenta anos de operação, decide encerrar suas atividades
no país.
A saída da Amforp do setor elétrico brasileiro, como visto no capítulo
anterior, começa a ser moldada no pós-guerra, quando o grupo passa a adotar
uma política de contenção de seus investimentos produtivos, sobretudo em
geração, tendo em vista o crescente intervencionismo estatal na área e,
especialmente, a perda de autonomia na fixação das tarifas de energia. O
resultado dessa conduta defensiva não poderia ser outro senão a progressiva
deterioração da qualidade dos serviços prestados pela empresa (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), penalizando os consumidores cativos
de suas áreas de mercado. Reagindo à situação, o governo do Rio Grande do
Sul, sob o comando de Leonel Brizola, resolve encampar a Companhia de
Energia Elétrica Riograndense (CEER) – uma das principais subsidiárias do
grupo. A ruptura de contrato precipita o desfecho de um processo cujo ponto de
chegada vinha se tornando cada vez mais previsível ao longo do tempo, isto é, o
encerramento das atividades, com a venda de seu patrimônio imobilizado e de
suas concessões para outras empresas interessadas no negócio.
Numa circunstância em que os serviços de eletricidade haviam se
tornado pouco atraentes para o capital, o caminho que se apresentava para a
Amforp restringia-se basicamente à transferência do controle de suas diversas
subsidiárias para o governo brasileiro. A instabilidade institucional e política do
país na primeira metade dos anos sessenta, contudo, acabou retardando a
materialização desse
propósito,
frustrando
as
tentativas
de negociação
empreendidas pela empresa junto à União (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988). Embora um acordo de indenização tenha sido fechado durante o
Governo Goulart, o Executivo federal viu-se constrangido a suspendê-lo pouco
depois (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), premido pela reação
contrária do Congresso e de amplos segmentos organizados da sociedade
brasileira (Thibau, 1995, depoimento). O encaminhamento da questão só chegará
300
a resultados conclusivos após a instauração do regime militar, quando são
neutralizados os constrangimentos políticos que vinham dificultando a obtenção
de um acerto satisfatório para as partes implicadas no processo (Thibau, 1995,
depoimento). O ambiente autoritário permite ao governo federal negociar os
termos da indenização a ser paga ao grupo, sem se defrontar com obstáculos de
maior relevância.
A despeito do aprofundamento do movimento de estatização do setor,
a Light irá se manter na atividade por mais tempo que a Amforp, num resultado
que reflete as circunstâncias mais favoráveis de sua inserção no sistema. Com o
controle sobre os maiores e mais dinâmicos mercados consumidores do país,
respaldado por contratos de concessão de longo prazo de vigência (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), a empresa se colocava em posição
relativamente estratégica face à política de recuperação das tarifas elétricas posta
em prática pelo governo federal após a instauração do regime militar. Essa
vantagem competitiva, por sua vez, era reforçada pelo processo de integração
operacional em curso, que possibilitava à empresa concentrar investimentos no
segmento de distribuição, reconhecidamente o mais rentável da atividade
(Cotrim, 1995, depoimento), substituindo a geração própria pela aquisição de
energia produzida pelas estatais, em franca expansão. Tal estratégia será
adotada até meados dos anos setenta (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988), quando a introdução de novas mudanças nas regras tarifárias,
comprometendo mais uma vez a rentabilidade da prestação do serviço, levará a
Light a seguir os passos da Amforp, isto é, a negociar a transferência do controle
acionário de suas subsidiárias para a União.
O processo de reestruturação setorial incide também sobre sua
dinâmica produtiva, o que se expressa na persistência do retraimento no
lançamento de novos empreendimentos hidrelétricos. De um lado, o ajustamento
a um contexto institucional em mudanças implica a contenção dos já pouco
expressivos investimentos em geração das concessionárias privadas. De outro,
as dificuldades na obtenção de financiamento, num quadro de estagnação
301
econômica, tendem a refrear os planos de expansão das empresas públicas.
Assim, embora a potência instalada de geração hidráulica do país tenha
experimentado uma variação de aproximadamente 60% entre 1960 e 1967
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), tal crescimento decorre
basicamente da entrada em operação de projetos decididos na década anterior89.
No segmento público, as principais iniciativas remetem à esfera de atuação das
administrações estaduais, com destaque para o governo de São Paulo.
Avançando no vácuo deixado pela retração dos investimentos da Light e da
Amforp, as concessionárias controladas pelo governo paulista implementam um
conjunto relativamente abrangente de projetos hidrelétricos, num esforço de
consolidação de sua presença na atividade de geração (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988). Por fim, as empresas federais, premidas por
restrições financeiras, se concentram na conclusão da usina de Furnas e na
ampliação de Paulo Afonso.
A recuperação dos investimentos produtivos do setor elétrico somente
ocorrerá a partir dos anos 1967/68, no rastro da retomada do ciclo expansivo da
economia brasileira. Comandado pela empresa pública, que se transforma, na
prática, no único agente responsável pela ampliação do parque gerador do país,
toma forma então um processo de crescimento acelerado da potência instalada
do sistema, que irá se prolongar até meados dos anos oitenta. Isto traz em seu
bojo não só avanços expressivos da operação interligada, mas mudanças no
perfil técnico-econômico dos projetos setoriais, que caminham na direção de
megaempreendimentos hidrelétricos.
89
No segmento privado, o único empreendimento implantado pela Light é a construção da usina de Ponte
Coberta, para suprir a expansão da demanda do mercado do Rio de Janeiro (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), enquanto a Amforp, já decidida a negociar o controle de suas subsidiárias, não
constrói nenhuma usina nova no período.
302
3. O avanço da operação interligada e a consolidação do novo modelo
institucional do setor elétrico
A confluência de condições internas favoráveis aos investimentos
produtivos, advindas das reformas políticas e institucionais implementadas nos
anos 1964/67, com uma situação de elevada liquidez do sistema financeiro
internacional, disponibilizando recursos para a complementação da poupança
nacional (Fiori, 1993; Feu Alvim, 1996), viabiliza a retomada do desenvolvimento
nacional nos anos finais da década de sessenta. O país experimenta um
verdadeiro boom econômico no período que se estende de 1967/68 a 1973/74
(Baer, 1996; Campolina, 1996; Sola, 1995; Fiori, 1993), quando cresce à taxa
média de 11% ao ano (Negri, 1996). Tratado como “milagre econômico”, esse
surto expansionista apresenta, como um de seus traços mais
salientes, o
aprofundamento do intervencionismo do Estado na economia, espelhado na
multiplicação do número de empresas controladas pelo setor público (Fiori, 1993).
É importante ressaltar, contudo, que o alargamento das funções
empresariais do Estado não reflete nem implica mudanças de fundo no padrão de
relação já estabelecido entre a administração pública e a iniciativa privada no
campo produtivo. Vale dizer, o maior intervencionismo estatal passa ao largo de
qualquer propósito de ruptura com os princípios de funcionamento da economia
de mercado, preservando em particular o primado da iniciativa privada sobre a
pública na alocação de recursos em investimentos na produção. A Constituição
de 67, promulgada pelo regime militar, não deixa maiores dúvidas a esse respeito,
ao afirmar que a atividade produtiva estatal deveria ser desenvolvida “apenas em
caráter suplementar da iniciativa privada” (Art. 170), quando justificada “por
motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não pudesse ser
desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa”
(Art. 63).
A adesão aos princípios de funcionamento da economia de mercado
como balizador da inserção estatal na esfera produtiva não se limita a direcionar a
303
empresa pública para áreas consideradas estratégicas pelo governo, numa
atuação suplementar e não competitiva com a empresa privada. Implica também
a imposição de uma lógica empresarial à mesma, vista como instrumento para o
incremento de sua eficácia econômica90, numa orientação ditada pelo interesse
em atender às “exigências” da dinâmica do processo de acumulação de capital
(Martins, 1985). Isto se evidencia, em particular, nas diretrizes estabelecidas no
Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), proposto pelo governo federal
para o período 1968/70 (Alves e Sayad, 1975), onde se afirma que “a eficiência e
a produtividade das empresas privadas não depende apenas de seu próprio
esforço e decisão, mas, em grande parte, da eficiência da máquina
governamental e de outras condições que se incluem na esfera de decisão do
governo” (Ministério do Planejamento,1967: 36).
O escopo das funções empresariais a serem desempenhadas pelo
Estado adquire contornos mais nítidos no âmbito do Decreto-Lei nº. 200, editado
em fevereiro de 1967, através do qual o governo federal busca disciplinar a
dinâmica de expansão do setor produtivo estatal, impondo-lhe, ao mesmo tempo,
orientação gerencial pautada em princípios racionalidade econômica (Keinert,
1994; Lima, 1995). Quanto ao primeiro aspecto, a empresa pública é definida
como “entidade (...) criada por lei para desempenhar atividades de natureza
empresarial que o governo seja levado a exercer, por motivos de conveniência ou
contingência administrativa” (Decreto-Lei nº. 200). Em outras palavras, a
produção estatal não constituía um fim em si mesmo, mas uma imposição
derivada dos objetivos mais gerais perseguidos pela política pública. A atuação
empresarial do Estado deveria ser canalizada, como vinha ocorrendo até então
(Dain, 1977, 1986; Abranches, 1977, Araújo, 1995), para atividades percebidas
como essenciais ao desenvolvimento nacional – o equivalente operacional de
“motivos de conveniência” - e nas quais a iniciativa privada não estava
interessada ou não tinha capacidade de investir - o equivalente operacional de
90
De acordo com a Constituição de 67, “as empresas públicas e as sociedades de economia mista reger-seão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito de trabalho e ao das
obrigações” (Art. 170).
304
“contingência administrativa”. Quanto ao segundo, o decreto prescreve para as
“empresas públicas (...) condições de funcionamento idênticas às do setor
privado, cabendo às entidades, sob supervisão ministerial, ajustar-se ao plano
geral do Governo” (Decreto-lei
nº. 200). De um lado, apontava-se para a
autonomia decisória e o compromisso com a eficiência alocativa por parte das
estatais, o que supunha preservá-las de ingerências político-partidárias ou da
prática do “clientelismo governamental” (Martins, 1985), bem como assegurar-lhes
capacidade própria de acumulação (Coutinho e Reischstul, 1977). De outro,
reafirmavam-se os limites operacionais inerentes à sua natureza pública, que as
subordinavam, em algum nível, às prioridades e diretrizes mais gerais emanadas
da política governamental. Na prática, o decreto vem formalizar uma situação de
fato, explicitando o caráter ambivalente da atuação das empresas estatais,
tensionadas pelo atendimento à racionalidade macroeconômica imbricada na
política pública e os imperativos da racionalidade microeconômica derivada da
busca de eficiência produtiva.
Do esforço de articulação e fomento do processo de crescimento e
diversificação estrutural da economia, em estágios progressivamente mais
avançados e complexos de industrialização, resultará a consolidação da empresa
pública em atividades onde o Estado já se fazia presente, como a área de energia
elétrica, e o avanço em direção a novos segmentos produtivos, especialmente na
área da produção de bens intermediários (Negri, 1996), tendo como suporte o
fortalecimento de sua base financeira, numa combinação de mecanismos fiscais e
recuperação da receita própria (Abranches, 1977; Lima, 1995; Martone, 1975;
Dain, 1977, 1986). A busca de melhorias no desempenho operacional, por sua
vez, implicará a generalização e o contínuo aperfeiçoamento de padrões de
gestão
fundamentados
no
uso
do planejamento
como
instrumento
de
racionalização e eficiência econômica. As atividades das empresas públicas nas
principais áreas de intervenção estatal passam a ser dotadas de elevado grau de
autonomia decisória e financeira, dando forma ao que Abranches (1977)
305
denomina de “setorialização” gerencial da administração das funções produtivas
do Estado.
Internalizadas na condução das ações governamentais no campo das
atividades elétricas, as diretrizes emanadas do decreto irão nortear a dinâmica
das reformas empreendidas ao longo do ciclo expansivo da economia. Tomam
forma no período novos avanços no processo de redesenho institucional e
produtivo do setor, consoante a estratégia de racionalização e aumento da
eficiência alocativa do sistema baseada no aproveitamento de ganhos de escala.
São mudanças que se articulam em torno de dois eixos principais: a indução a
uma maior verticalização do arranjo organizacional do setor, ampliando o espaço
ocupado pelas empresas federais; e uma presença mais incisiva da regulação
estatal, reforçando o papel da Eletrobrás enquanto agência de planejamento e
coordenação das atividades do sistema.
3.1 A pressão sobre a capacidade de atendimento do sistema e o avanço da
integração operacional
Como em circunstâncias anteriores de aceleração do crescimento da
economia, a retomada da trajetória desenvolvimentista ocorrida nos anos finais da
década de sessenta reflete-se de imediato sobre a demanda de energia elétrica.
A expansão do consumo, que vinha se fazendo em ritmo moderado, passa a se
processar aos saltos, mais que dobrando durante o período do “milagre” (Centro
da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tendo em vista o caráter estrutural
então assumido pelo refluxo dos investimentos privados na área, restrita a rigor às
atividades desenvolvidas pelas subsidiárias do grupo Light, cabia às empresas
públicas a difícil tarefa de proporcionar respostas adequadas ao incremento da
demanda, o que não vinha sendo feito com eficácia pelo mercado.
A busca de soluções para a garantia do suprimento energético do país
tende a constituir, a partir de então, o fundamento primário na moldagem da
política setorial do governo federal. O êxito no enfrentamento desse desafio, por
sua vez, supunha não apenas um aporte substancial de recursos para o
306
financiamento da expansão do sistema, mas também uma gestão eficaz na
aplicação de tais recursos. São questões que vêm conferir maior centralidade à
racionalização dos processos decisórios do setor, com vistas ao aproveitamento
de economias de escala e de escopo, em sintonia com a perspectiva integrada
que vinha sendo progressivamente adotada na concepção e implementação dos
projetos de geração e transmissão de energia.
Como visto, os estudos de inventário, de viabilidade de projetos e de
mercado de energia elétrica realizados pela Canambra (Lima, 1995; Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) haviam proporcionado importante aporte
técnico-metodológico para a adoção de uma abordagem sistêmica na aplicação
de recursos na área. No entanto, isto por si só não assegurava a adesão das
concessionárias ao processo, o que dificilmente se produziria de forma
espontânea, pelo fato de implicar o estreitamento da margem de autonomia
decisória de empresas com lógicas de atuação diferenciadas e poder de
barganha também distintos. O balanço da experiência até então acumulada pelo
setor no tocante ao planejamento integrado dos investimentos na expansão do
sistema, ainda recente e restrita aos estados do Sudeste, dava mostras
eloquentes da complexidade que permeava a questão, evidenciada nos
“crescentes problemas de adaptação e divergência de interesse entre as várias
empresas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 201) atuantes na
área. De forma similar ao ocorrido em outros países com forte prevalência da
geração hídrica, o progressivo esgotamento dos potenciais hidráulicos próximos
aos principais mercados (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988;
Rosa et al, 1996) pressionava os custos de prestação dos serviços, contribuindo
para o acirramento das disputas pelo controle dos aproveitamentos hidrelétricos
com perspectivas mais favoráveis de exploração e, consequentemente, de retorno
econômico. Se os ganhos da interligação operacional eram evidentes, não havia
como descurar, por outro lado, o aumento da margem de riscos, incertezas e da
taxa de conflitos no desenvolvimento da atividade.
307
A eficácia na apropriação das oportunidades para o aproveitamento de
economias de escala e de escopo na promoção dos investimentos na área,
potencializadas pela operação interligada, passava, portanto, pela acomodação
dos conflitos em torno da partilha dos ganhos de eficiência derivados do
processo, o que demandava uma efetiva capacidade de coordenação e
gerenciamento dos interesses em jogo. A despeito dos inegáveis avanços
institucionais advindos da promulgação do decreto nº. 57.927, anteriormente
citado, que definira regras e procedimentos para o planejamento integrado dos
projetos produtivos do setor, os esforços empreendidos em tal direção ainda se
ressentiam de uma demarcação mais precisa das atribuições e responsabilidades
das diversas concessionárias, de um lado, e de instrumentos e mecanismos para
lidar adequadamente com a gestão da interdependência decisória, de outro. São
problemas que incidiam sobre a atuação da Eletrobrás enquanto agência
responsável pelo planejamento setorial, restringindo sua capacidade de assegurar
a adesão das empresas às decisões tomadas, necessária à consecução dos
objetivos e metas traçadas para o sistema. O Comitê Centro-Sul, organizado
originalmente em função da supervisão e apoio aos trabalhos da Canambra,
ensejava um canal de articulação com as principais empresas concessionárias,
mas não garantia, por si só, um meio associativo estável, isto é, não supria a
lacuna de um arranjo institucional que cumprisse o papel de força integradora do
sistema, promovendo a convergência entre as lógicas decisórias de tais empresas
e a lógica ou racionalidade decisória da operação interligada, até porque não fora
criado com tal propósito.
Preocupado em estimular a melhoria do desempenho técnico e
econômico do setor e, ao mesmo tempo, minimizar os riscos da falta de energia, o
governo federal irá promover novos avanços na dinâmica de integração
operacional do sistema, articulados em torno de dois eixos principais. O primeiro
tem a ver com a configuração de seus arranjos organizacionais e produtivos,
envolvendo medidas que buscam acelerar o movimento de integração vertical e
horizontal das atividades das empresas, onde isto se revelasse apropriado e
308
eficaz à apropriação de ganhos de eficiência na prestação do serviço. O segundo,
com o reforço da capacidade governamental de gerar adesão e sustentação
política às suas decisões na área, fundado no aprimoramento dos mecanismos de
coordenação e controle na gestão da operação interligada. Os propósitos
reformistas adquirem materialidade através da promulgação do Decreto nº.
60.824, datado de junho de 1967, instituindo formalmente o “sistema nacional de
eletrificação” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
Dentro dos limites institucionais de uma ação reformista que supõe um
continuum em relação aos arranjos produtivos preexistentes, o governo federal
procura estender ao máximo as possibilidades de centralização das atividades de
geração e transmissão do setor, com vistas à exploração eficaz das
oportunidades para a apropriação de ganhos de escala na realização dos
investimentos na área. Movido por esse propósito, preconiza, através do decreto,
a maior verticalização organizacional do sistema, enfatizando “a conveniência de
concentrar em número limitado de empresas de eletricidade, preferivelmente de
caráter regional, a ação da Eletrobrás e dos governos estaduais no setor”
(Decreto nº. 60.824). Trata-se, na prática, de endosso ao movimento de
reestruturação operacional que vinha se processando de forma relativamente
autônoma na região Sudeste, sancionando-o como paradigma para o restante do
país. Numa atividade em estágio já avançado de estatização, tal diretriz não deixa
dúvidas quanto ao ponto de chegada almejado: a conformação de um arranjo
organizacional de configuração dual, com uma rede de empresas operando em
âmbito estadual e outra em âmbito regional. A primeira seria formada por
concessionárias controladas pelos governos estaduais, com a fusão ou
aglutinação das empresas elétricas de um mesmo estado numa única
concessionária (Lima, 1995, depoimento), nos moldes da Cemig e CEEE; a
segunda, por subsidiárias da Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1995), com atuação em espaços macrorregionais, nos moldes de Furnas e
Chesf.
309
O desenho funcional “idealizado” para o setor tem como referência a
“divisão de trabalho” ensaiada na implantação da usina de Furnas, com as
empresas federais se responsabilizando pelos empreendimentos hidrelétricos de
grande porte e os eixos troncais da rede de transmissão, e as empresas
estaduais respondendo prioritariamente pelas atividades de distribuição de
energia. O decreto governamental respalda essa interpretação à medida que
prescreve, para as concessionárias do sistema, “primordialmente desenvolver
(...) o aproveitamento de fontes de energia situadas dentro ou nos limites de suas
áreas de concessão” (Decreto nº. 60.824). Embora aparentemente neutra, tratase de regra discricionária, cuja aplicação restringe as possibilidades de atuação
das empresas estaduais no segmento de geração à exploração de potenciais
hidráulicos
de
seu
próprio
estado,
criando
condições
assimétricas
de
competitividade frente às empresas federais, que atuavam em espaços de
dimensão regional ou supra-estadual. As restrições incidentes sobre as
concessionárias estaduais nas atividades de produção de energia, por sua vez,
tendem a afetar também suas oportunidades de atuação no segmento de
transmissão. Sem acesso a aproveitamentos externos às fronteiras do estado, as
possibilidades que se abriam às mesmas no tocante a investimentos em projetos
de transmissão ficavam limitadas, a rigor, à implantação de redes alimentadoras,
formadas por linhas de curta a média distância. Como corolário das limitações
operacionais impostas às empresas estaduais, os investimentos de maior escala
produtiva nos segmentos de geração e transmissão ficavam “reservados” às
empresas federais. Para não deixar dúvidas a respeito dos rumos que pretendia
imprimir aos arranjos organizacionais do setor, o decreto governamental também
afirma que a Eletrobrás deveria “providenciar para que as empresas sob seu
controle fossem integradas, sempre que viável, em empresas de âmbito
regional” (Decreto nº. 60.824).
Por exclusão, o principal campo de intervenção “reservado” às
concessionárias estaduais remetia ao segmento de distribuição Não se tratava,
evidentemente, de uma imposição normativa de papéis, de curso obrigatório, até
310
porque o incrementalismo subjacente às reformas setoriais implicava a
necessidade de manter aberto às empresas já estabelecidas na área, quer
estaduais ou federais, o acesso aos segmentos produtivos em que vinham
operando. Além disso, o aproveitamento de economias de escala e de escopo
não exigia nem comportava uma demarcação rígida das esferas de atuação das
empresas. De fato, em diversas situações, a presença de concessionárias
estaduais nos segmentos de geração e transmissão e a de empresas federais no
segmento de distribuição atendiam a requisitos de eficiência
técnica e
econômica; em outras, eram indispensáveis, pela inexistência mesmo de
alternativas. Em linhas gerais, as concessionárias estaduais das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, em grande parte constituídas após a promulgação do
decreto, acabam se moldando ao figurino nele prescrito, restringindo-se quase
que exclusivamente às atividades de distribuição, enquanto as congêneres das
regiões Sul e Sudeste, mais antigas e com maior capacidade de mobilização de
recursos, tendem a atuar nos vários segmentos.
No entanto, a despeito de não significar ruptura face aos arranjos
pretéritos, seria irrealista imaginar que a reestruturação organizacional e produtiva
preconizada pelo decreto ficasse imune a pressões dos interesses constituídos do
setor, à medida que sua implementação repercutia, em graus variados, nos
cálculos estratégicos, nas expectativas e nas formas de atuação das diversas
empresas. Para lidar com a questão, o governo federal procura reforçar sua
capacidade de comando e coordenação na área, através do aperfeiçoamento e
aumento do grau de institucionalização dos instrumentos e dos mecanismos de
planejamento e gestão das atividades do sistema. Isto se expressa na proposição,
em 1967, do Programa de Obras para o setor, articulado à elaboração de estudos
de mercado com projeções sobre o consumo de energia elétrica, que avançam no
sentido do Orçamento Plurianual de Energia, introduzido em 1968 (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Dentro de uma trajetória de
aprimoramento progressivo, o Orçamento Plurianual será substituído, pouco
depois, pelo Programa Plurianual de Investimentos do Setor Elétrico (Centro da
311
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), consagrando a centralização decisória
na seleção dos projetos de expansão da capacidade instalada do sistema. Sob a
ótica dos mecanismos de gestão, vão ser estabelecidos, em janeiro de 1969, os
“princípios básicos que nortearam a criação do primeiro Comitê Coordenador da
Operação Interligada (CCOI), efetuada em julho do mesmo ano por meio (...) de
um acordo entre as empresas” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988: 210) da região Sudeste. Estendido posteriormente para a região Sul, o
CCOI91 provê o arcabouço de uma ambiência minimamente estruturada para lidar
com os conflitos de interesse entre as várias empresas em torno da realização de
novos investimentos e da distribuição intermediária de energia, funcionando como
uma força de integração e estabilização da dinâmica da operação interligada.
O acelerado avanço no sentido de um sistema interligado e
crescentemente estatizado, por seu turno, vem conferir saliência à obsolescência
de
um
aparato
regulatório
concebido
originalmente
para
proceder
ao
ordenamento e fiscalização de uma atividade delegada, sob o regime de
concessão, à iniciativa privada, e que se estruturava sob a forma de “ilhas” de
prestação de serviços, isto é, sem interfaces das atividades produtivas das
diversas empresas. De um lado, a imposição normativa de critérios de
investimentos na expansão do parque gerador e a correlata montagem de
programações setoriais definidas de forma centralizada tendem a subverter a
lógica decisória e operacional do sistema, internalizando objetivos e dispositivos
concernentes à esfera da regulação na esfera da produção. De outro, a
consolidação da Eletrobrás como agência de planejamento e coordenação da
expansão do sistema concentra, em sua órbita decisória, uma série de atribuições
que se sobrepõem a funções inscritas formalmente no rol de competências
institucionais do CNAEE. São “disfunções” que estimulam e conduzem a
reformulações nos fundamentos básicos da sistemática regulatória, num processo
contingente de adaptação ou adequação ao novo padrão de organização e
91
O CCOI congregava as empresas geradoras e distribuidoras de uma mesma região, atuando sob a
orientação técnica da Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
312
desenvolvimento
das
atividades
do
setor
que
vai
sendo
modelado
progressivamente ao longo dos anos sessenta.
Assim, à medida que a definição das “necessidades” de expansão da
oferta de energia passa a ser crescentemente assumida por estruturas decisórias
centralizadas, o foco da função reguladora tende a se deslocar do âmbito das
relações entre as concessionárias e os usuários dos serviços de eletricidade para
o âmbito das relações produtivas que se estabelecem entre as concessionárias
em decorrência da interligação operacional da atividade. Num ajuste ao perfil
estatizado que passa a caracterizar o setor elétrico e, mais especificamente, às
mudanças ocorridas em sua dinâmica de funcionamento, as ações tipicamente
regulatórias sofrem uma inflexão no sentido da articulação à sistemática de
planejamento e gerenciamento da expansão e operação do sistema, zelando pelo
efetivo cumprimento dos dispositivos que regem a promoção de novos
investimentos em geração e a correlata interdependência decisória das empresas.
A redefinição do conteúdo objetivo das ações de ordenamento e controle da
atividade, como seria de se esperar, põe em movimento uma concomitante
reconfiguração do aparato organizacional encarregado de sua implementação.
Essa reestruturação irá convergir para a centralização das funções
regulatórias num único organismo, rompendo com o arranjo dual instituído nos
anos trinta – a coexistência da Divisão de Águas e do CNAEE, sem uma clara
demarcação dos respectivos campos de atuação. Acompanhando o gradualismo
das transformações institucionais mais gerais em curso no setor, o processo se
inicia com a Lei nº. 4.904, de dezembro de 1965, reforçando as atribuições da
Divisão de Águas, redenominada de Departamento Nacional de Águas e Energia
(DNAE), em detrimento do CNAEE (Dias Leite, 1995, depoimento). A
consolidação definitiva do novo arranjo organizacional se dará mais ao final da
década, com a promulgação do Decreto nº. 63.951, de dezembro de 1968, e do
Decreto-Lei nº. 689, de julho de 1969, que concentram no DNAE, rebatizado de
Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), todas as tarefas
ou atividades concernentes ao poder concedente de aproveitamentos hidráulicos
313
e, ato contínuo, determinam a extinção formal do CNAEE, completamente
esvaziado de suas funções (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988;
Dias Leite, 1995, depoimento).
Estabelece-se, a partir de então, a conformação básica das atividades
de gerenciamento e controle da dinâmica operacional e produtiva do setor, que
acabará prevalecendo, sem alterações de maior relevância, até meados dos anos
noventa. O modelo organizacional instituído preserva a separação formal entre as
funções regulatória e empresarial do Estado, posicionando-as em loci distintos: a
primeira referenciada no DNAEE; a segunda, na Eletrobrás. No entanto, a
inserção numa estrutura administrativa comum – o Ministério das Minas e Energia
– relativiza tal compartimentação funcional, à medida que as submete, em última
instância, a um mesmo comando ou autoridade central. Além disso, e mais
importante, a ênfase atribuída à racionalização sistêmica dos investimentos em
geração e transmissão de energia tende a diluir a autonomia decisória do DNAEE,
tornando sua atuação caudatária de decisões tomadas no campo de atuação da
Eletrobrás. Significa dizer que o papel do órgão enquanto poder concedente vai
se restringir, em larga medida, a dar suporte ou sustentação a deliberações
originárias de uma esfera decisória externa ao mesmo.
Em síntese, a retomada do ciclo expansivo da economia nos anos
finais da década de sessenta vem pressionar a capacidade instalada do sistema,
atuando como fator de estímulo não só aos investimentos produtivos da atividade
mas também à integração vertical e horizontal das operações das empresas,
consoante vantagens competitivas determinadas por mudanças nas regras do
jogo e por diferenciais no potencial de mobilização de recursos. Utilizando
o
poder discricionário assegurado pela vigência de uma ordem autoritária, o
governo federal promove ajustes na institucionalidade do setor norteados pelo
incremento da racionalidade sistêmica. O processo traz em seu bojo a ampliação
da escala dos projetos hidrelétricos, rumo a empreendimentos de envergadura
regional, bem como o progressivo alargamento da esfera de atuação empresarial
da Eletrobrás, delineando uma trajetória de crescente “federalização” das
314
atividades de geração e transmissão (Rodrigues e Dias, 1993). Trata-se, contudo,
de uma federalização de natureza inconclusa ou parcial, à medida que as
principais
concessionárias
estaduais
da
região
Centro-Sul
implementam
programas relativamente ambiciosos de investimento, procurando preservar
condições de autosuficiência energética.
3.2 Expansão, especialização produtiva e tendência à “federalização” do
setor
Impulsionado pelo crescimento exponencial da demanda de energia
decorrente do “milagre econômico”, o setor elétrico experimenta um ritmo notável
de expansão de sua capacidade de atendimento. A potência instalada do país
mais do que dobra entre 1967 e 1973, saltando de 8.042 MW para 16.698 MW no
longo do período (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), o que
corresponde a uma taxa média de crescimento da ordem de 15,7% ao ano.
Intensifica-se, em simultâneo, a dinâmica das transformações nas bases
organizacionais e produtivas da atividade, num avanço acelerado rumo à efetiva
materialização do “sistema nacional de eletrificação” instituído formalmente pelo
Decreto nº. 60.82492. O esforço de evitar estrangulamentos no suprimento
energético imprimiu velocidade ao processo de integração do sistema, moldando
arranjos operacionais e especializações produtivas internas ao mesmo, que serão
definitivamente consolidados na segunda metade dos anos setenta.
Com a saída de cena da Amforp e com a Light concentrando suas
ações no segmento de distribuição, a responsabilidade pela promoção dos
investimentos na adequação da oferta de energia passa a ser assumida, quase
que integralmente, pela administração pública, estadual e federal. Refletindo
condições favorecidas de inserção no sistema, tanto sob a ótica institucional como
da capacidade de mobilização de recursos, as empresas federais amplificam sua
92
Em 1973, mais de 90% do total da prestação dos serviços de eletricidade já se inscrevia no âmbito da
operação interligada (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1996).
315
participação nos segmentos de geração e transmissão, concorrendo com as
concessionárias estaduais em determinadas regiões e assumindo posição de
quase monopólio em outras. Embora a organização de empresas de energia
elétrica controladas por governos estaduais tenha se espraiado pelas diversas
unidades da Federação ao longo dos anos sessenta (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988), a ampla maioria delas não dispunha de capacidade
técnica nem financeira para se engajar num esforço próprio de geração, capaz de
atender às necessidades imediatas e futuras de suas áreas de mercado. Isto se
aplica, em especial, às concessionárias das regiões Norte e Nordeste,
constituídas em sua ampla maioria como empresas direcionadas para o segmento
de distribuição. A rigor, apenas concessionárias da região Centro-Sul, com perfil
de empresas verticalmente integradas, além de técnica e financeiramente melhor
aparelhadas, vão contribuir efetivamente para a expansão da potência instalada
do sistema no período do “milagre econômico” (Centro da Memória da
Eletricidade
no
Brasil, 1988).
Destacam-se, nesse contexto, as
ações
empreendidas pela Cesp e Cemig, na região Sudeste, e pela Copel e CEEE, na
região Sul.
Atuando no vácuo da Light e da Amforp, a Cesp se aproveita do
dinamismo apresentado pelo consumo de eletricidade no mercado paulista para
acelerar obras em andamento e promover o lançamento de novos projetos
hidrelétricos, num agressivo programa de investimentos em geração cuja
resultante será o aumento de sua produção à explosiva taxa média de 30,8% ao
ano ao longo do período 1967-7493. Embora menos agressivo que o programa de
investimento da Cesp, até porque opera num mercado mais estreito, a Cemig
também implementa um expressivo conjunto de obras, que contempla, entre
outras iniciativas, a conclusão da usina de Jaguara, o início da construção de
Volta Grande e São Simão, e a ampliação da capacidade de geração de Três
93
Essa expansão se fundamenta, em grande parte, na entrada em operação de grupos geradores do
complexo hidrelétrico formado pelas usinas de Jupiá e Ilha Solteira, que assinalam a arrancada da empresa
rumo à liderança nacional na atividade geradora (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988),
conquistada na transição dos anos setenta.
316
Marias (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Na região Sul,
adquirem saliência as ações protagonizadas pela Copel, dentro de uma estratégia
voltada à estruturação de um parque gerador próprio, compatível com a dimensão
de sua área de mercado94, que a levará a se consolidar, em meados dos anos
oitenta, como uma das principais geradoras do país (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988).
O vigoroso surto de crescimento experimentado pelo setor elétrico,
contudo, só foi possível graças à ampliação da presença do governo federal nas
atividades do sistema. Isto envolve iniciativas em duas frentes principais: o
avanço da ação planejadora e coordenadora da Eletrobrás e o reaparelhamento
organizacional da empresa para atuar no campo da produção. A primeira vertente
contempla a estruturação de “atividades de caráter contínuo ou periódico,
capazes de alimentar e dar continuidade às decisões” (Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1988: 209) de investimento tomadas para o conjunto do
setor; a segunda, a criação de novas subsidiárias para atuar nas regiões Sul e
Norte do país – áreas não atendidas ou cobertas por Furnas e Chesf.
Como visto, a otimização dos aproveitamentos de geração, dadas as
características eminentemente hidráulicas do sistema elétrico brasileiro, passava
necessariamente pela centralização das decisões de investimento na área e a
concomitante acomodação das interfaces produtivas no âmbito do setor, já que a
avaliação e seleção dos projetos hidrelétricos deveria levar em conta as relações
técnicas entre “aproveitamentos de uma mesma bacia hidrográfica e as
possibilidades de interligação de sistemas inter e intra-regionais” (Lima, 1995:
105). Isto motiva o governo federal a proceder à complementação dos estudos
sobre mercados de energia e inventários de bacias, até então restritos às regiões
94
Até os anos sessenta, a capacidade instalada da empresa situava-se em modestos 11,6 MW (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988)). Estimulada pelo intenso desenvolvimento e modernização da
economia paranaense a partir da segunda metade dos anos sessenta (Fleischresser, 1988; Álvares Afonso et
al, 1995; Negri, 1996), e favorecida pelo potencial hidráulico do estado, a empresa implementa um programa
sustentado de expansão de sua potência instalada.
317
Sudeste e Sul, estendendo-os ao restante do país95. Além dessas iniciativas,
outro fato marcante consiste na assinatura de contrato entre os governos
brasileiro e paraguaio, em 1970, criando uma comissão técnica para avaliar a
melhor forma de aproveitar o potencial hidrelétrico do rio Paraná, entre Salto
Grande das Sete Quedas e Foz do Iguaçu (Barbalho, 1995, depoimento), que
culminará, mais à frente, na assinatura do Tratado de Itaipu.
Ao mesmo tempo em que desenvolve um esforço no sentido de
complementar a montagem de uma base de dados e informações compatível com
a adoção de uma sistemática de planejamento setorial de longo prazo, de
abrangência nacional, o governo federal busca, dentro dos limites impostos pela
institucionalidade vigente, ajustar o arranjo organizacional da atividade aos
requisitos da dinâmica de funcionamento da operação interligada. A consecução
desse propósito contempla ações em dois planos distintos, afinadas com as
diretrizes gerais estabelecidas no decreto que instituiu o sistema nacional de
eletrificação. De um lado, procede-se ao reforço da “estadualização” das
atividades de distribuição; de outro, ao fortalecimento da capacidade empresarial
da Eletrobrás com vistas a aparelhá-la para atuar em todo o território nacional.
Seguindo a orientação estratégica de concentrar suas atividades
empresariais prioritariamente nos segmentos de geração e transmissão, o
governo federal promove a transferência do controle das subsidiárias do grupo
Amforp, que haviam sido adquiridas pela União, para a rede de concessionárias
estaduais, sempre onde isto fosse avaliado como viável e eficaz (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). O primeiro passo nessa direção é dado
em 1967, com o repasse, para a CEEE, dos bens e instalações da Companhia de
Energia Elétrica Riograndense. Em 1968, a Companhia de Eletricidade de
Pernambuco (Celpe), do governo estadual, incorpora a Pernambuco Tramways
95
Na sequência dos levantamentos de potencial hidráulico e projeções de demanda correspondentes à
região Sul, concluídos em 1969, foram iniciados trabalhos similares para a Amazônia e o Nordeste. O
primeiro teve a supervisão do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Amazônia (Eneram), com a
Eletrobrás como agente executivo (Barbalho, 1995, depoimento),sendo finalizado em 1972; o segundo, sob
supervisão do Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região Nordeste (Enenorde), foi concluído no
ano seguinte (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995).
318
and
Power
Co.
Limited.
Esse
processo
terá
continuidade
nos
anos
96
subsequentes , com as subsidiárias remanescentes sendo paulatinamente
transferidas para empresas energéticas dos estados (Lima, 1995, Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Ao final, apenas uma fração minoritária
das concessões e ativos que pertenceram ao grupo americano permanecerá sob
a administração da própria Eletrobrás (Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988).
Conjugado às iniciativas de reforço à “estadualização” das atividades
de distribuição, ganha intensidade o movimento de “federalização” das atividades
de produção e transmissão de eletricidade. De um lado, tanto Furnas quanto
Chesf vão promover expressivos investimentos na ampliação de seus parques
geradores, seja através do aumento da capacidade instalada de usinas existentes
ou do lançamento de novos empreendimentos produtivos97. De outro, são
constituídas duas novas empresas energéticas federais, de perfil regional, na
condição de subsidiárias da Eletrobrás. A primeira delas é representada pela
Centrais Elétricas do Sul do Brasil (Eletrosul), criada formalmente em dezembro
de 196898. A segunda, a Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte),
surge pouco depois, através da Lei nº. 5.824, de novembro de 1972 (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), preparando o terreno para a extensão
da fronteira da geração hidráulica para a região da Amazônia, que ocorrerá já na
segunda metade da década. Junto com Chesf e Furnas, essas empresas
formatam a estrutura básica de uma rede regionalizada de sistemas de
eletrificação, de abrangência nacional, que irá se consolidar na transição para os
anos oitenta.
96
Dentre outras, a Conefor será repassada para a Companhia de Energia Elétrica do Ceará (Coelce); a
Companhia Força e Luz de Minas Gerais, para a Cemig; a Companhia Força e Luz do Paraná, para a Copel;
e a Companhia de Energia Elétrica da Bahia, para a Companhia de Energia Elétrica da Bahia (Coelba)
(Barbalho, 1995: depoimento).
97
No caso de Furnas, inclui a usina nuclear de Angra dos Reis.
98
“Autorizada a funcionar pelo Decreto nº. 64.395, de 23 de abril de 1969, a Eletrosul, pelo mesmo decreto,
recebeu a concessão para a construção da hidrelétrica de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, cujas obras já
haviam começado” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 242), dando a partida para a
montagem de um parque gerador que crescerá de forma exponencial ao longo dos anos setenta.
319
Num resultado circunstancial e até certo ponto paradoxal, o impulso
decisivo ao movimento de estatização das atividades elétricas coincidiu com forte
recuperação da capacidade de autofinanciamento do setor, decorrente de
aumentos reais nos preços cobrados ao consumidor, derivados, por sua vez, da
implementação de uma política tarifária que assegurava reajustes acima dos
índices inflacionários (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). A
propósito da questão, cabe observar que, mesmo com a aceleração dos
investimentos na expansão do sistema, a necessidade de financiamento extrasetorial mostra clara tendência declinante no período: de uma participação
correspondente a 57,9% do total em 1967, a participação dos recursos extrasetoriais na estrutura de financiamento do sistema cai para 45,7% do total em
1973 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil). O controle tarifário,
introduzido em meados dos anos trinta e que se constituíra num dos principais
fatores de desestímulo às inversões do capital na área, acabou sendo flexibilizado
exatamente num momento em que a hegemonia da empresa pública já estava
consolidada na área. Numa ilustração de como as preferências e as decisões
estratégicas dos atores são contingentes do contexto, aquilo que fora negado às
empresas privadas – o atendimento à reivindicação da garantia de preços
remuneradores na prestação do serviço – será concedido às empresas públicas
que, embora também se beneficiassem de aumentos reais nas tarifas elétricas,
podiam prescindir da mesma, à medida que contavam com a possibilidade de
obterem financiamento através do orçamento fiscal.
Refletindo, mais uma vez, a autonomia decisória que a ordem
autoritária conferia ao Executivo federal, essa recuperação da capacidade de
autofinanciamento do sistema terá fôlego curto, sendo revertida no âmbito das
mudanças que se processam em aspectos relevantes dos ambientes interno e
externo, ocorridas na transição dos anos 1973/74, em conexão ao denominado
“choque do petróleo”. A crise energética mundial provocada pela substancial
320
elevação do preço internacional do produto99 catalisa um processo generalizado
de ajuste recessivo nas economias capitalistas centrais (Lima, 1995; Negri, 1996;
Rosa et al., 1998), além de conferir saliência a iniciativas de racionalização e
conservação de energia, centradas em aumentos nos preços ao consumidor.
Embora tenha sofrido impactos também expressivos em sua economia, dada a
elevada dependência em relação à importação do produto, o país toma caminho
distinto das políticas seguidas no exterior. Em termos mais específicos, a opção
brasileira se faz por um ajuste estrutural que não apenas procura preservar o
desenvolvimento econômico, mas que estimula o consumo de energia, em
detrimento de um padrão de utilização mais racional e criterioso dos insumos
energéticos, cujo subproduto será a reintrodução da prática do controle tarifário.
Essa orientação imposta pela política macroeconômica terá profundas
repercussões nas atividades elétricas, influenciando o padrão de financiamento, o
perfil dos investimentos produtivos e a autonomia decisória das empresas
atuantes na área. O setor volta a se tornar mais dependente de fontes de
recursos extra-setoriais, o que contribui para acentuar ainda mais a importância
da otimização dos aproveitamentos hidrelétricos e da operação interligada. O
planejamento centralizado se instaura de vez no âmbito do sistema, levando a
termo um processo de aprimoramento e adaptação institucional cujas origens
remetem às reformas desenhadas pela administração varguista nos anos
cinquenta.
4. A maturação das reformas setoriais e a consolidação do sistema nacional
de eletrificação
Em meados da década de setenta, as condições do ambiente já não se
revelavam mais favoráveis à manutenção de uma trajetória sustentada de
crescimento no país. A deterioração dos fundamentos básicos da economia,
99
A decisão dos países árabes exportadores de petróleo, integrantes da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP), de boicote ao fornecimento de petróleo para os USA e outros países que
auxiliavam Israel na guerra árabe-israelense ocorrida em 1973, ocasionou aumentos substantivos no preço
do produto no mercado internacional.
321
evidenciada em inflação e endividamento público ascendentes, e os efeitos
desestabilizadores decorrentes do
“choque do petróleo” sinalizavam para o
esgotamento e reversão do ciclo expansionista iniciado ao final dos anos
sessenta (Fishlow, 1985; Baer, 1996; Negri, 1996; Sallun Júnior, 1995). A
despeito dessas adversidades, o novo governo que assume o poder dentro do
processo sucessório instaurado pelo regime militar, sob o comando do Gal.
Ernesto Geisel, opta por uma estratégia “heterodoxa” de ajuste pelo crescimento,
traduzida numa política macroeconômica anticíclica, de cunho keynesiano (Baer,
1996; Cruz, 1997). Na tentativa de evitar ou, pelo menos, retardar o descenso
econômico, será implementado um maciço programa de investimentos nos
segmentos de bens de capital e insumos básicos, sob a liderança da empresa
pública, consubstanciado nas propostas do II Plano Nacional de Desenvolvimento
(II PND).
Com execução prevista para o período 1974/79, o II PND irá
representar, conforme descrição de Fiori, “o esforço mais importante, integrado e
ambicioso de política estatal voltada para a complementação da estrutura
industrial brasileira” (1992: 80) desde a arrancada industrializante dos anos trinta.
A manutenção de uma taxa razoável de crescimento e a consolidação de uma
estrutura industrial diversificada no país, projetadas no plano, vão implicar muito
mais que o acentuado aprofundamento do intervencionismo estatal na economia.
A estratégia nele adotada é portadora também de mudanças no padrão de
financiamento dos investimentos produtivos, que se torna mais dependente de
fontes de recursos externos, bem como nos mecanismos e instrumentos da
gestão governamental, onde se reforça a primazia da racionalidade técnica nos
processos decisórios das políticas públicas.
As atividades do setor elétrico se incluem entre aquelas mais
fortemente influenciadas pela estratégia desenvolvimentista formulada pelo plano.
De um lado, tendem a sofrer o acirramento da pressão da demanda por energia,
necessária à viabilização dos novos segmentos industriais a serem implantados especialmente os projetos na área de bens intermediários, de características
322
eletrointensivas, priorizados pelo governo -, o que exigia respostas rápidas no
tocante à expansão do sistema. De outro, irão experimentar uma progressiva
diluição dos ganhos de rentabilidade conquistados a partir da segunda metade da
década de sessenta, tendo em vista a adoção de uma política deliberada de
contenção dos reajustes no valor das tarifas elétricas, com evidentes
consequências sobre sua capacidade de autofinanciamento. São fatores que
aprofundam o sentido de urgência imbricado nos esforços de “desenvolvimento
institucional” que vinham sendo empreendidos na direção da racionalização e do
aumento da eficiência alocativa do setor, cuja resultante será a consolidação de
uma lógica sistêmica alicerçada na operação interligada e na sistemática de
planejamento integrado de longo prazo. Esse processo converge, por sua vez,
para a implantação de megaempreendimentos hidrelétricos, emblematizada na
decisão de construir a usina de Itaipu .
4.1 Itaipu e a consolidação da integração operacional do sistema
A estratégia desenvolvimentista consubstanciada no II PND determinou
modificações numa série de premissas e diretrizes que vinham balizando a
condução da política macroeconômica do país a partir das reformas institucionais,
financeiras e administrativas promovidas nos anos 1964/67 (Lima, 1995; Cruz,
1997; Fiori, 1992; Baer, 1995). Isto se aplica, em particular, à questão dos
mecanismos de financiamento dos investimentos produtivos das empresas
estatais. Adquire saliência, no período, a utilização de subsídios estatais como
instrumento de apoio e estímulo à expansão industrial, tanto sob a forma de
incentivos fiscais quanto de controle das tarifas públicas (Oliveira, 1995; Lima,
1996). Por sua importância nos processos produtivos da indústria, as tarifas de
energia elétrica não escapam às mudanças então introduzidas na sistemática de
fixação de preços dos serviços de utilidade pública. A disposição governamental
de subordiná-las à consideração de objetivos e interesses extra-setoriais se
manifesta, de imediato, na transferência, da esfera do Ministério das Minas e
Energia para o Ministério da Fazenda, da competência para decidir sobre a
matéria. Ocorrida em 1974 (Dias Leite, 1995, depoimento), tal transferência abre
323
caminho para o abandono da política de “realismo” tarifário, que vinha sendo
praticada desde meados dos anos sessenta. Os resultados aparecem logo a
seguir, com o valor médio da tarifa apresentando uma redução de cerca de 30%
em termos reais entre os anos de 1975 e 1978 (Lima, 1995, depoimento), o que
dá uma indicação dos efeitos perversos sobre a receita operacional do setor.
No entanto, a deterioração da capacidade de autofinanciamento das
empresas energéticas não irá implicar retração no ritmo de expansão do sistema,
com a aplicação de recursos na área durante a vigência do II PND superando em
muito o esforço de investimento promovido à época do “milagre” econômico. A
taxa média de inversão do setor nos anos 1974/79 ultrapassa em cerca de 60% à
taxa média correspondente aos anos 1971/73 (Lima, 1995, depoimento), auge do
ciclo expansionista da economia brasileira. Trata-se de resultado que espelha, de
forma categórica, a imposição de uma lógica decisória sistêmica sobre as lógicas
específicas de cada empresa, deslocando de vez qualquer influência relevante de
estímulos econômicos de mercado nas decisões de investimento, que passam a
ser feitos em função de projeções de crescimento da demanda e não das
perspectivas de retorno dos recursos aplicados.
A capacidade de investir do setor será assegurada fundamentalmente
pela utilização de fontes de financiamento extra-setoriais - a participação da
geração própria de recursos na estrutura de financiamento do sistema declina de
forma acelerada no período, reduzindo-se em aproximadamente 50% entre 1974
e 1978 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988; Lima, 1995). A
retração do aporte de recursos originários da receita operacional será
compensada pelo incremento na utilização de empréstimos contratados no
exterior. Essa estratégia de financiamento não é fortuita, mas uma opção afinada
com o objetivo macroeconômico de assegurar o fechamento ou equilíbrio do
balanço de pagamentos do país (Baer, 1996; Dias, 1995; Lima, 1995) e que se
beneficia da elevada liquidez então apresentada pelo mercado internacional.
Numa relação causal indireta, a confluência de fatores exógenos à atividade
324
influencia os rumos da política setorial do governo para repercutir sobre a
trajetória evolutiva do sistema.
A nova lógica decisória que se instaura no setor irá convergir na
direção de projetos hidrelétricos com escalas técnicas significativamente mais
elevadas, percebidos como soluções mais eficazes no tocante a garantir uma
oferta regular e confiável de energia elétrica, a custos mais reduzidos. Dela
resulta a decisão de se construir a usina de Itaipu - então o maior
empreendimento setorial do mundo -, cuja priorização espelha, em particular, os
extraordinários avanços tecnológicos nas áreas de geração e transmissão de
eletricidade. Por sua dimensão, a implantação do projeto terá expressivos efeitos
externos sobre os arranjos organizacionais e produtivos do sistema, contribuindo
não apenas para consagrar a sistemática do planejamento centralizado como, e
principalmente, para impulsionar um salto qualitativo na institucionalização da
operação interligada.
A decisão de se construir a usina será formalizada em 1973, com a
assinatura do Tratado de Itaipu, criando uma empresa binacional, constituída em
partes iguais por Brasil e Paraguai, com o objetivo de implantar e operar o
empreendimento.
Tendo em vista sua escala produtiva -
um mega
aproveitamento hidrelétrico com potência instalada de 12.600 MW (Lima, 1995),
que significava duplicar a capacidade do parque nacional de geração hidráulica
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988) -, a viabilização do
investimento estava condicionada a prévia garantia de mercado para dar vazão à
produção. O equacionamento do problema implicava necessariamente radical
incremento no intercâmbio de energia no âmbito do sistema, já que a empresa
responsável pelo projeto atuaria apenas na atividade geradora, o que passava por
novos e significativos avanços institucionais nos mecanismos de ordenamento e
gestão da operação interligada. Isto se faz através da Lei nº. 5.899, promulgada
em julho de 1973 pelo governo federal, especificando regras e procedimentos
para a integração do sistema, que irão vigorar, com aperfeiçoamentos
325
introduzidos paulatinamente ao longo do tempo, até os anos noventa (Barbalho,
1995, depoimento; Marcondes Brito, 1995, depoimento).
Conhecida como "Lei de Itaipu", tendo em vista sua estreita associação
aos propósitos de se promover a adequação dos arranjos organizacionais e
produtivos do sistema às necessidades e às consequências da construção da
usina100, a nova legislação se fundamenta primariamente sobre a obrigatoriedade
de aquisição da energia gerada pelo empreendimento. A vigência de um ambiente
político autoritário, exacerbando a discricionaridade do poder central, permite ao
governo federal imprimir caráter compulsório à absorção da futura produção do
empreendimento e escapar aos riscos, incertezas e custos de uma solução
negociada, que se prenunciava complexa, dada a diversidade de interesses
envolvidos no processo. A opção pela via impositiva supunha a prévia
especificação dos papéis a serem cumpridos pelas diversas empresas que fariam
a transmissão e distribuição da energia gerada, bem como da natureza das
relações entre as mesmas, num resultado que terá forte efeito estruturante sobre
o modus operandi do setor. Por sua abrangência, os arranjos técnicos e
operacionais moldados em função do projeto vão servir de balizamento geral para
a interconexão do sistema, tanto sob a ótica organizacional quanto dos
mecanismos de gestão, refletindo e ao mesmo tempo reforçando o processo
incremental e adaptativo de mudanças na institucionalidade do setor.
Em conformidade com a “divisão de trabalho” imbricada nas iniciativas
setoriais do governo federal, os esquemas operacionais definidos para dar vazão
à produção de Itaipu conferem às empresas estaduais o papel de distribuidoras
finais de energia e, às federais, a responsabilidade pela transmissão e distribuição
intermediária. Esses arranjos operacionais instrumentalizam e estimulam uma
definição mais precisa de papeis para as empresas públicas na área, delineando
o formato básico do arcabouço organizacional da operação interligada, cuja
sedimentação se dará ao longo dos anos subsequentes. Por dispositivos da
100
Conforme Barbalho, 15 dos 17 artigos da lei "se referiam a (...) ou eram consequência da" implantação do
projeto (1995, depoimento).
326
mesma Lei nº. 5.899, Chesf, Furnas, Eletrosul e Eletronorte são transformadas
em empresas de âmbito regional, voltadas prioritariamente para a geração e
transmissão de energia, com áreas de atuação não concorrentes e que, somadas,
recobrem todo o território nacional (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988; Eletrobrás, 1990). Imprimem-se, com as medidas, feições regionalizadas à
interligação do sistema, tendo como suporte as empresas federais na condição de
supridoras regionais de energia.
São mudanças cuja efetividade supunha adequações simultâneas nos
mecanismos de coordenação e gestão das atividades do setor. O aspecto
essencial a reter aqui é que a reconfiguração organizacional proposta não
assegurava mecanicamente a convergência de interesses necessária ao
aproveitamento eficaz dos ganhos de eficiência no desempenho do sistema,
instrumentalizados pela operação interligada101. Ao contrário, o êxito de qualquer
esforço mais abrangente nessa direção não podia prescindir da definição de
regras e instrumentos para administrar as influências recíprocas das atividades
das empresas, que aumentavam a margem de riscos e incertezas na definição de
suas estratégias de ação, e arbitrar os conflitos no tocante à repartição das
vantagens e dos ônus decorrentes da integração operacional. Concessionárias
estaduais, como Cemig, Cesp e outras não se sentiam aprioristicamente
estimuladas a concentrarem suas ações no segmento de distribuição, ajustandose à especialização “desenhada” para as empresas federais, até porque estavam
aparelhadas para atuar, e historicamente vinham atuando, nos segmentos de
geração e transmissão.
A experiência acumulada pelo setor, embora relativamente recente,
mostrava com clareza a relação direta estabelecida entre o avanço da interligação
do sistema e as dificuldades de harmonização dos interesses e ações das
empresas implicadas no processo. A criação dos Comitês Coordenadores da
Operação Interligada (CCOI's) - primeiro na região Sudeste, depois na região Sul
101
Tais ganhos envolvem aspectos como " melhor utilização dos recursos de geração, aumento da
otimização energética, redução da reserva de potência por empresa" (Marcondes Brito, 1995, depoimento).
327
-, ocorrida na segunda metade dos anos sessenta, pode ser interpretada como
uma primeira iniciativa especificamente voltada a lidar com o problema,
representando um passo importante no sentido de instituir instâncias formais para
a gestão da interdependência decisória102. Faltavam-lhes, contudo, a necessária
capacidade de comando e mesmo de articulação para assegurar um meio
associativo compatível com as exigências do funcionamento eficiente da
operação interligada. Essa lacuna fica patente, em particular, nas dificuldades
encontradas no encaminhamento de soluções para os problemas envolvendo
Cemig e Chesf, ocorridos em 1971, decorrente da drástica redução das afluências
do reservatório de Três Marias (Marcondes Brito, 1995, depoimento) e suas
ressonâncias sobre os aproveitamentos a jusante do mesmo103.
Ao multiplicar, numa escala sem precedentes, a integração operacional
dos serviços de eletricidade, com a consequente elevação do potencial de
conflitos no desenvolvimento das atividades do setor, a decisão de construir Itaipu
acentua a urgência de se prover condições institucionais mais afins com a
administração do jogo de interesses no âmbito do sistema integrado. É oportuno
ressaltar, a propósito da questão, a natureza intertemporal das interferências
provocadas pelo empreendimento, cuja implantação implicava um realinhamento
geral dos planos de expansão das principais empresas concessionárias da região
Centro-Sul. A percepção do problema motiva o governo federal a promover,
através de dispositivos da Lei nº. 5.899, novos aprimoramentos nos mecanismos
de gestão do funcionamento da operação interligada. Isto se materializa na
substituição dos CCOI’s pelos Grupos Coordenadores para a Operação
Interligada (GCOI’s), que se revestem de poder decisório e capacidade de
mobilização de recursos técnicos e administrativos mais amplos. Constituem-se,
102
Como ressalta Marcondes Brito, “por intermédio dos CCOI’s tiveram início, de forma sistemática, estudos
conjuntos (...) sobre a operação coordenada dos reservatórios e dos sistemas de transmissão” (1995,
depoimento).
103
As divergências entre as duas empresas acerca da definição da vazão mínima a ser assegurada na
operação da barragem acabaram gerando uma crise cuja resolução exigiu negociações entre os governos
federal e estadual (Marcondes Brito, 1995, depoimento).
328
com os GCOI’s, compostos por representantes das empresas energéticas da
região e do DNAEE, sob a coordenação geral da Eletrobrás, o núcleo básico de
suporte institucional não apenas para o gerenciamento da interdependência das
empresas, mas para a formulação e implementação do planejamento da
expansão do setor.
Regulamentados pelo Decreto nº. 73.102, de novembro de 1973
(Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), os GCOI’s espelham a
natureza cada vez mais indissociada entre as esferas da regulação e da produção
no âmbito de uma atividade crescentemente integrada e estatizada. Nos termos
do decreto, suas atribuições incluíam, entre outras funções, “coordenar, decidir ou
encaminhar as providências necessárias ao uso racional das instalações
geradoras e de transmissão, existentes e futuras, nos sistemas elétricos
interligados” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988: 211). O
estabelecimento
de
vínculos
estáveis
e
rotinizados
entre
empresas
potencialmente concorrentes vem prover os requisitos mínimos de estabilidade e
previsibilidade sem os quais dificilmente se conseguiria levar a termo a
implementação da sistemática de planejamento setorial de longo prazo,
institucionalizada por força da Lei nº. 5.899104. Estrutura-se, a partir de então, um
esquema operacional relativamente sólido e consistente para a definição dos
planos de expansão do setor, fundado no atendimento dos requisitos energéticos
de mercado com base nos custos marginais de longo prazo (Pinguelli, 1998) e na
concentração das decisões relativas à arbitragem dos novos investimentos em
órgãos colegiados que congregam empresas geradoras e distribuidoras,
representados pelos GCOI’s105. Essa transição para a racionalidade sistêmica
imbricada na nova sistemática de planejamento, por sua vez, fomenta outras
adequações na institucionalidade do setor.
104
Pelo artigo 15 da referida lei, a Eletrobrás deveria submeter à apreciação do Ministério das Minas e
Energia o plano de obras necessárias ao atendimento das necessidades energéticas das regiões Sul e
Sudeste até o ano de 1981, bem como a extensão deste mesmo plano até o ano de 1990. O primeiro produto
tinha, como prazo de execução, dezembro de 1973, e o segundo, dezembro de 1974 (Barbalho, 1995,
depoimento).
105
Os GCOI’s serão posteriormente substituídos pelo Grupo Coordenador de Planejamento dos Sistema
Elétricos (GCPS), instituído na década de oitenta (Lima, 1995).
329
A primeira, e mais importante, consiste na equalização das tarifas de
energia, rompendo com os diferenciais de preços entre empresas ou áreas de
concessão, advindos da aplicação dos mecanismos tarifários herdados do Código
de Águas. Subproduto da integração operacional do sistema, a crescente
desvinculação entre geração e distribuição de energia tende a subverter a
consistência técnica de regras tarifárias concebidas em função de áreas de
mercado segmentadas, sob controle monopolístico de empresas verticalmente
integradas. Sua revisão pode ser vista como um desdobramento lógico dentro de
uma dinâmica de progressivo aperfeiçoamento institucional. Numa circunstância
onde se introduz o intercâmbio de energia mas não a concorrência – os acordos
operacionais são constituídos com base em despacho e planejamento
centralizado – a padronização das tarifas emergia, sob a ótica técnica, como
solução mais adequada a ser adotada, à medida que simplificava enormemente a
gestão do processo. No entanto, a despeito de a concepção regionalizada do
sistema interligado sugerir tarifas também regionalizadas, a opção governamental
acaba recaindo na unificação de preços. Trata-se, aqui, de escolha influenciada,
mais
uma
vez,
pela
subordinação
da
política
setorial
à
estratégia
desenvolvimentista seguida pelo II PND, onde se enfatizava a desconcentração
industrial (Baer, 1996; Lima 1995): a unificação funcionava como fator de
neutralização dos impactos potencializados por diferenciais no custo da energia
elétrica no espaço sobre a decisão locacional das plantas industriais, de particular
relevância no caso do segmento eletrointensivo. A regulamentação operacional
da política de equalização tarifária se deu através do Decreto-lei nº. 1.383, de
dezembro de 1974, instituindo a Reserva Global de Garantia (RGG), “instrumento
que processava a transferência de recursos das concessionárias superavitárias
para as deficitárias, de forma a que a remuneração de cada empresa se situasse
em torno da remuneração média do setor” (Lima, 1995: 123). Pelo mesmo
decreto, foram especificados os critérios de contribuição das empresas para a
Reserva Global de Reversão (RGR), constituída com propósitos de reforçar a
geração própria de recursos do sistema no financiamento de sua expansão
produtiva (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
330
A segunda inovação guarda relação com o financiamento da geração
térmica, e se materializa nas denominadas Contas de Consumo de Combustível
(CCC’s). Embora sem competitividade, via custos, com a geração hidráulica, a
geração térmica representava, ainda assim, um instrumento importante para os
propósitos de racionalização dos investimentos produtivos na área (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Em termos mais específicos, a
construção de usinas térmicas contornava a necessidade de sobreinvestimentos
na geração hidráulica para manter uma reserva de segurança capaz de assegurar
a confiabilidade do suprimento energético, compensando as variações sazonais
de produção advindas do ciclo hidrológico. Instituídas pelos Decreto-lei nº. 73.102,
anteriormente citado, as CCC’s constituem uma espécie de mecanismo de
socialização dos custos “extras” incorridos com a geração térmica, redistribuindoos entre as empresas participantes do sistema integrado.
Do processo resulta a elaboração do Plano de Atendimento dos
Requisitos de Energia até 1990, conhecido como Plano 90, que, de certa forma,
condensa os avanços institucionais, técnicos e metodológicos obtidos ao longo de
uma trajetória aberta em meados dos anos sessenta com os trabalhos pioneiros
realizados pela Canambra. Editado em dezembro de 1974, o plano define a
programação de investimentos em geração e transmissão de energia necessários
ao suprimento dos mercados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste até o final
da década de oitenta, adotando uma abordagem sistêmica na priorização dos
novos projetos. Além da consolidação, de fato, da Eletrobrás como agência de
planejamento do setor, o que, vale lembrar, ocorre cerca de duas décadas após o
envio da proposta de sua criação à apreciação do Congresso, instaura-se um
modelo centralizado de gestão do desenvolvimento da atividade que tem, como
premissas básicas, a confiabilidade e a continuidade no suprimento de energia,
de um lado, e a otimização sistêmica no aproveitamento dos recursos produtivos,
de outro. O primeiro aspecto significa o atrelamento do planejamento setorial a
projeções do crescimento da demanda dos mercados regionais de energia, que
informam a
necessidade
e a oportunidade
331
da implantação de
novos
empreendimentos de geração elétrica, bem como a destinação final da produção.
O segundo se traduz na adoção do custo mínimo de suprimento como critério
básico para a ordenação e seleção dos projetos de geração (Eletrobrás, 1991). A
aplicação desses critérios converge para a proposição de um pesado programa
de investimentos na ampliação da potência instalada do país, fundado na
prevalência de plantas geradoras de grande porte, cuja implementação terá
expressivos efeitos na dinâmica e nos arranjos organizacionais da atividade.
4.2
Planejamento centralizado e megaempreendimentos hidrelétricos: a
nova racionalidade decisória do setor
Referenciando-se nas diretrizes e metas estabelecidas pelo II PND
para a economia brasileira, que projetava um crescimento do PIB à taxa média de
10% ao ano entre 1974 e 1979, e de, no mínimo, 8% ao ano entre 1979 e 1990, o
Plano 90 traça uma programação de investimentos em geração de energia
elétrica extremamente ambiciosa para o período 1974/90. Das projeções de
crescimento da demanda de energia - 12% ao ano no período 1975/80 e 10% ao
ano no período 1980/90 -, cruzadas com a capacidade instalada do sistema,
resulta a definição das necessidades de expansão da oferta, estimada em 30.000
MW até o final dos anos oitenta (Lima,1995; Centro da Memória da Eletricidade
no Brasil, 1988). O cumprimento dessa meta significava o desafio de implantar,
em média, 2.000 MW ou o equivalente a duas usinas de Furnas por ano,
conduzindo a novo salto no tamanho ótimo das plantas geradoras, que se desloca
para patamar superior a 1.000 MW. Além da já citada usina de Itaipu, a
programação de investimentos do plano compreendia expressivo conjunto de
projetos de grande porte, distribuídos pelas diversas regiões (Quadro 7),
instaurando de vez o ciclo dos megaempreendimentos hidrelétricos no país.
332
Quadro 7
Programação de Investimentos do Plano 90 – Projetos Selecionados
Projeto
Potência (MW)
Empresa Responsável
Tucuruí
4.000
Eletronorte
Sobradinho
1.050
Chesf
Itaparica
2.500
Chesf
Paulo Afonso IV
2.500
Chesf
Itumbiara
2.100
Furnas
Emborcação
1.000
Cemig
Porto Primavera
1.800
Cesp
Salto Santiago
2.000
Eletrosul
Ilha Grande
2.000
Eletrosul
Foz do Areia
2.500
Copel
22.440
-
Total
Fonte: Plano 90. Eletrobrás, 1974
Dos 30.000 MW de acréscimo na capacidade instalada do parque
hidrelétrico
nacional,
22.440
MW,
ou
74,8%
do
total,
referiam-se
a
empreendimentos com potência igual ou maior que 1.000 MW (Quadro 7). A
parcela restante, 25,2% do total, correspondia quase que integralmente à entrada
em operação de grupos geradores da hidrelétrica de Itaipu. São resultados que
não deixam dúvidas quanto à opção pela implantação de usinas de grande porte
como estratégia básica de expansão do setor. Além das plantas geradoras
assumirem configuração regional, o processo construtivo se torna muito mais
exigente em termos de capacidade de mobilização de recursos, com implicações
sobre a “especialização” produtiva no âmbito da atividade. A conjunção desses
fatores tende a restringir o universo de empresas geradoras a estatais federais e
algumas poucas concessionárias estaduais, com as primeiras assumindo a
liderança dos investimentos comparativamente às últimas. Dos dez principais
projetos propostos no plano, excluindo-se Itaipu, sete são de responsabilidade de
333
empresas federais e apenas três correspondem às estaduais (Quadro 7). A
adoção de uma racionalidade sistêmica atua no sentido de sancionar a
“federalização” da geração de energia106 subjacente ao modelo organizacional
que vinha sendo forjado pelas ações governamentais no campo institucional.
Resultado e, ao mesmo tempo, instrumento da estratégia de
otimização no aproveitamento dos recursos energéticos do país, a ampliação da
escala técnica dos empreendimentos hidrelétricos ocorrida nos anos setenta
altera, de forma substantiva, os parâmetros financeiros, os procedimentos
técnicos e operacionais e as interferências sócio-ambientais dos investimentos
produtivos do sistema. Sob a ótica financeira, o aspecto mais saliente é o salto na
magnitude dos recursos exigidos na viabilização dos projetos setoriais, que
crescem em relação direta com a ampliação da escala das plantas geradoras. Em
conexão com os orçamentos mais vultuosos, a implantação dos investimentos
passa a envolver horizontes temporais mais longos, já que as diferentes etapas
do processo – elaboração e detalhamento do projeto de engenharia da obra,
construção da barragem, enchimento do reservatório e entrada em operação da
usina - demandam prazos que também crescem em relação direta com a escala
do aproveitamento. Por fim, as interfaces dos empreendimentos com o meio
ambiente em sentido amplo tornam-se muito mais abrangentes e intensas,
ocasionando interferências que transitam do nível local para o nível regional e, em
determinadas circunstâncias, nacional. São questões que potencializam efeitos
laterais não negligenciáveis nos processos de formulação e implementação do
planejamento da expansão do sistema, com repercussões dinâmicas sobre sua
eficiência alocativa.
106
A participação conjunta do grupo Eletrobrás e da Itaipu Binacional nos investimentos setoriais passa de
32,6% em 1974, para 67,5% do total em 1979, enquanto a das concessionárias estaduais faz movimento
inverso, caindo de 67,4% para 32,5% do total em igual período (Lima, 1995).
334
A substancial elevação dos custos globais de implantação dos
aproveitamentos hidrelétricos, conjugada ao alongamento do período de
construção da usina, que afeta a distribuição no tempo dos fluxos de dispêndio e
de receita dos projetos setoriais, implicam a necessidade da realização de
pesados aportes de recursos com previsão de retorno somente a longo prazo.
Esse resultado tem efeitos retroativos sobre o potencial de autofinanciamento da
atividade, criando uma espécie de “hiato de recursos” na implementação dos
planos de expansão do sistema, trazendo, como subproduto, tendência a
aumento da dependência de fontes de financiamento extra-setoriais. Tal
tendência será circunstancialmente agudizada pelo impacto da queda real da
tarifa média de energia, anteriormente comentada, sobre a receita operacional
das empresas atuantes na área (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil,
1988; Oliveira, 1995). A conjunção desses fatores faz com que a participação dos
recursos gerados pelo próprio setor na estrutura de financiamento de seus
projetos de investimento decline de 51,1% do total em 1974 para apenas 31,8%
do total em 1979 (Quadro 8), levando à adoção de medidas em duas direções
principais, às quais vão se associar consequências não pretendidas nem
antecipadas na dinâmica da atividade, típicas de processos designados pela
literatura neoinstitucionalista de “recomposição do campo organizacional” (Powell,
1991).
335
Quadro 8
Estrutura de financiamento do setor elétrico brasileiro, por fonte de recurso,
em anos selecionados
Período: 1974/79 - %
Recursos
1974
1975
1976
1977
1978
1979
Próprios
51,1
44,7
45,0
41,6
36,4
31,8
Orçamentários
19,7
21,7
14,7
10,5
10,2
6,1
Empréstimo/Financiamento interno
10,0
13,3
22,8
17,3
20,5
30,1
Empréstimo/Financiamento externo
19,2
20,3
17,5
30,6
32,9
32,0
Total
100
100
100
100
100
100
Fonte: Eletrobrás. Departamento de Estudos e Planejamento Econômico-Financeiro.
Setor de Energia Elétrica: Fontes e usos de recursos, série retrospectiva 1967/1977 e
1978/1979. Extraído de Lima, J. L. Políticas de governo e desenvolvimento do setor de
energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos oitenta (1934-1984). Rio de
Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995.
A primeira guarda relação com a transferência de recursos interna ao
sistema, através da aplicação dos mecanismos institucionais criados pelo
Decreto-lei nº. 1.383, privilegiando as atividades de geração em detrimento das de
distribuição. Essa transferência compulsória de recursos se dá no sentido das
mais rentáveis para as menos rentáveis, o que afeta, com particular intensidade,
as concessionárias com atuação nos mercados de consumo mais dinâmicos.
Light e Cesp responderam, em conjunto, por 40% do total de recursos
transferidos para a RGG até 1978, bem como por parcela também expressiva da
CCC (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988). Tal resultado constitui
fator determinante na decisão do grupo de abandonar a prestação de serviços de
eletricidade no país, concretizada com a venda, em 1979, de seus ativos e
concessões para o governo federal, fechando o ciclo de nacionalização e, com
ela, de estatização do setor.
A segunda tem a ver com o papel crucial que a busca de fontes
alternativas de financiamento assume na viabilização dos investimentos na
expansão do parque gerador. Seguindo as diretrizes gerais da política
336
macroeconômica, a solução adotada para conciliar objetivos de crescimento
acelerado
da
oferta
de
eletricidade
com
corrosão
da
capacidade
de
autofinanciamento do sistema apoia-se, numa escala muito acentuada, na
contratação de empréstimos no exterior, tanto junto a agências oficiais de
fomento, em especial o BIRD, quanto de instituições financeiras privadas (Quadro
8). Favorecida pela elevada liquidez do mercado internacional na segunda
metade dos anos setenta (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988), tal
estratégia revelava-se satisfatória numa perspectiva temporal de curto prazo,
suprindo necessidades financeiras mais imediatas relacionadas à implementação
das obras programadas no Plano 90. O mesmo não se aplica, contudo, sob uma
ótica de médio a longo prazo, à medida que contribui para a maior fragilização do
padrão de financiamento do setor, tornando-o vulnerável face às condições de
acesso aos recursos externos, sobre as quais não tinha nenhum poder de
influência e que podiam assumir, como de fato assumirão, configuração adversa à
sua utilização.
A mudança na escala produtiva das plantas geradoras tem também
implicações sobre a implementação propriamente dita dos investimentos do
sistema e os resultados do planejamento setorial, em conexão à ampliação no
horizonte temporal de execução dos projetos, que salta para cerca de oito anos,
em média (Eletrobrás, 1994). Como as decisões referentes à construção das
usinas passam a envolver prazos relativamente longos de maturação “até
redundarem em aumento real de capacidade [produtiva], faz-se necessário (...)
uma ação coordenada que promova, em tempo hábil, correções e adaptações nos
planos de expansão, em decorrência de alterações importantes nas suas
premissas fundamentais” (Eletrobrás, 1994: 26). Em termos mais específicos, o
alargamento do tempo requerido na implantação do empreendimento aumenta
seu grau de exposição às contingências do contexto em sentido amplo e,
consequentemente, a probabilidade de ocorrência de descompassos entre as
ações planejadas e as exigências dos processos reais, tornando a realização de
337
ajustamentos um requisito operacional para o êxito na eficiência alocativa do
sistema.
No entanto, promovê-los em tempo hábil não depende apenas e tão
somente do desempenho eficaz de uma ação coordenadora, qualquer que seja a
configuração e conteúdo objetivo desta. Ao contrário, as condições e
características técnicas dos novos empreendimentos hidrelétricos introduzem um
elemento de rigidez ou inflexibilidade no tocante a revalidação de hipóteses e
projeções e a correlata correção de rotas, dificultando sobremodo adaptações e
ajustes nas metas e ações planejadas. Dado o porte ou escala produtiva das
usinas projetadas, as oportunidades para introduzir mudanças na programação
original se concentram, a rigor, na fase que antecede o início propriamente dito da
construção da barragem, a partir da qual sua implantação torna-se quase que
irreversível. Paralisações ou atrasos na execução da obra tendem a implicar, de
um lado, ônus financeiro para a empresa responsável, refletindo o custo de
oportunidade dos recursos já aplicados no projeto e, de outro, a elevação do
custo final do investimento e, por extensão, da energia a ser gerada, tendo em
vista gastos extras provocados pela ruptura do encadeamento ou sequência ótima
dos vários eventos e ações que compõem o processo construtivo.
Às questões anteriores vem se somar a ocorrência de uma mudança
quantitativa e qualitativa nas interferências ocasionadas pelas plantas geradoras
no meio em que se inscrevem, especialmente na dimensão sócio-econômica. A
construção de empreendimentos hidrelétricos de grande porte, como mostra
ampla literatura especializada (Broeckelman, 1979; Barros, 1983, 1984; Pimentel
Filho, 1987; Santos Filho, 1987; Duqué, 1984; Sigaud, 1988; Daou, 1988;
Germani, 1992), desencadeia uma série de transformações no quadro natural e
nas relações sociais e produtivas de um espaço territorial relativamente extenso,
que tem, como núcleo central, a área ocupada pelo reservatório da barragem e
338
entornos107. São impactos de grande magnitude e complexidade que, a despeito
de antecipados por Furnas e Três Marias, mantêm-se praticamente à margem de
considerações formais na sistemática de planejamento e nos processos
decisórios do sistema. Não se trata, contudo, como pode parecer à primeira vista,
de resultado fortuito ou circunstancial, mas que guarda estreita relação com uma
postura institucional pautada por critérios estritos de eficiência econômica.
Como reconhece a própria Eletrobrás, “a estratégia dominante no setor
(...) à época consistia na minimização dos custos de expansão do sistema de
suprimento (...) e voltava-se principalmente para aspectos associados aos
objetivos precípuos dos empreendimentos, implicando, por consequência , na
maximização de benefícios também fundamentalmente setoriais” (1990: 135). A
minimização de custos supunha considerar como externalidade todo e qualquer
efeito
sócio-ambiental
ocasionado
pelas
plantas
hidrelétricas
cujo
equacionamento não fosse requisito ou condição à sua viabilização. A ênfase nos
objetivos setoriais levava a uma racionalidade excludente, caracterizada pela
ausência, no processo de tomada de decisões, de qualquer compromisso com os
diferentes interesses econômicos, sociais e culturais incrustados na área de
influência dos projetos hidrelétricos que pudessem trazer ônus
para o
empreendedor. Vale dizer, a opção por plantas geradoras de grande porte estava
alicerçada numa visão restrita de eficiência alocativa, que não contabilizava uma
ampla gama de custos “indiretos” associados aos investimentos do setor.
Esse tipo de tratamento conferido aos impactos sócio-ambientais
transparece com clareza na postura da Chesf quando da implantação da usina de
Sobradinho. Como registra Sigaud (1988), a empresa tinha prévio conhecimento
107
Como descrito no capítulo anterior, a inundação de terras e o represamento de rios rompem com o
equilíbrio sistêmico preexistente, produzindo modificações hidrológicas, climáticas e geológicas, com
repercussões na fauna e flora. A construção da obra e a liberação da área exigida pelo empreendimento, por
sua vez, desarticulam atividades econômicas, assentamentos humanos e padrões sócio-culturais
historicamente estabelecidos, induzindo uma reestruturação compulsória e radical das formas de ocupação
do espaço em nível local e regional.
339
da natureza e magnitude dos distúrbios que o empreendimento poderia provocar
na área do reservatório da barragem e entorno108, até porque haviam sido
abordados nos estudos desenvolvidos em função da elaboração do projeto
executivo da obra. No entanto, isto por si só não foi suficiente para que se
sentisse responsável pelo encaminhamento de ações voltadas a, pelo menos,
minimizar os efeitos perversos incidentes sobre as famílias diretamente afetadas
pelo processo construtivo, como atesta correspondência do então diretor de obras
da Chesf à presidência da Eletrobrás. Nela, " depois de chamar a atenção para as
implicações da obra em termos de inundação da área agricultável e portanto da
eliminação da base da economia da região, [tal diretor] exorta os Poderes
Públicos a prestarem solidariedade e assistência à população" , sem a qual
dificilmente se evitaria, como de fato ocorreu, " sua emigração desordenada e
consequente marginalização" (Congresso Nacional, 1983: 67; citado por Sigaud,
1988: 95). Os procedimentos adotados no âmbito da construção da usina de
Itaipu vão na mesma direção, o que permite afirmar que a exclusão dos
interesses extra-setoriais afetos à implantação dos aproveitamentos hidrelétricos
nos processos decisórios do setor constituía regra e não exceção. De fato, como
mostram análises desenvolvidas sobre o tema, " todo o projeto da maior usina
hidrelétrica do mundo foi estudado, montado, negociado e sacramentado
sigilosamente, sem levar em conta os interesses de uma população diretamente
implicada" (Germani, 1992: ), num processo que passa ao largo também das
autoridades municipais e do governo do Paraná, que não conseguiram, conforme
Santos Filho, "impor sua presença como interlocutores" (1987: 34) da empresa
responsável pelo empreendimento.
108
Conforme Sigaud, para a formação do lago de Sobradinho, que ocupa uma área de 4.214 km2 e possui
350 km de extensão, " foram parcialmente inundadas terras dos municípios de Juazeiro, Sento Sé e XiqueXique, na margem direita do São Francisco, e de Casa Nova, Remanso e Pilão Arcado, na margem
esquerda; quatro sedes municipais (...), dezenas de povoados e desalojadas aproximadamente 60.000
pessoas, segundo dados oficiais (...) ou 72.000, segundo dados da organização sindical dos trabalhadores
rurais" (1988: 89).
340
Favorecida por circunstâncias favoráveis no tocante a aspectos
relacionados ao mercado financeiro externo, evolução do consumo de energia
elétrica e enquadramento institucional das interferências sócio-ambientais dos
projetos hidrelétricos, a estratégia de expansão acelerada do parque gerador
brasileiro traçada para o período 1974/79 pelo Plano 90 pode ser considerada
bem sucedida. A ampliação de usinas já construídas, como Paulo Afonso,
Peixoto, Porto Colômbia e Ilha Solteira, de um lado, e a conclusão das obras e
instalação de grupos geradores em usinas como Sobradinho, Salto Osório,
Marimbondo, Itumbiara, São Simão e Foz do Areia, de outro, deram suporte ao
cumprimento das metas estabelecidas pela programação setorial. A capacidade
instalada de geração hidráulica do país passa de 13.740 MW em 1974 para
24.095 MW em 1979 (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988),
significando um incremento à taxa média de 11,9% ao ano, no mesmo patamar da
projeção de crescimento da demanda feita para igual período, anteriormente
citada. As variáveis contextuais que contribuíram para o desempenho satisfatório,
contudo, começam a se alterar ao final dos anos setenta, vindo a assumir
configuração bastante adversa nos anos oitenta, o que irá repercutir, em
profundidade, na dinâmica alocativa do setor. Inconsistências técnicas na ação
planejadora
da
Eletrobrás,
dificuldades
de
mobilização
de
recursos
e
adensamento político e social da reação aos impactos ocasionados pelos
processos construtivos das barragens se conjugam para fragilizar as bases de
sustentação de uma racionalidade sistêmica alicerçada na centralização decisória
e financeira.
5.
Crise e esgotamento do modelo institucional desenhado nos anos
sessenta e setenta
Enquanto
o
país
teve
acesso
a
financiamentos
implementação da programação proposta no II PND
externos,
a
assegurou um patamar
bastante razoável de expansão do produto nacional, que cresce, em média, cerca
de 7% ao ano ao longo do período 1974/79 (Baer, 1996). Ao final da década, no
entanto, a instabilidade provocada por nova e acentuada elevação dos preços do
341
petróleo, seguida pouco à frente, pelo aperto de crédito e elevação da taxa de
juros liderados pelo governo americano (Skidmore, 1998) tornam o mercado
financeiro internacional restritivo à concessão ou renovação de empréstimos à
economia brasileira, face ao alto grau de endividamento e, por extensão, de risco
apresentado pelo país (Feu Alvim, 1996; Gonçalves et al. , 1998; Baer, 1996). A
incapacidade de superar, através de fontes “autônomas” de recursos, o
estrangulamento determinado pelo estancamento do fluxo de capitais externos
(Dain, 1986) resulta na retração da taxa de investimentos, pondo fim ao processo
de desenvolvimento que se iniciara nos anos finais da década de sessenta.
A crise de financiamento se dá num contexto caracterizado por fortes
pressões inflacionárias e acentuado desequilíbrio nas contas públicas, estreitando
o espaço de manobra do governo federal, especialmente no que se refere à
gestão de suas ampliadas funções empresariais. O esgotamento estrutural da
estratégia de crescimento sustentada nas empresas estatais (Fiori, 1992) e a
necessidade impostergável de recuperar a estabilidade macroeconômica vão
induzir um redirecionamento dos rumos da política pública ao longo dos anos
oitenta, moldando uma trajetória que convergirá gradativamente para uma agenda
de reforma do Estado e de suas relações com o mercado, em conexão à
reintrodução de uma institucionalidade democrática. As atividades elétricas não
escapam aos efeitos desagregadores do descenso cíclico da economia, que
afetam em profundidade os fundamentos básicos do modelo organizacional e
produtivo do setor construído a partir dos anos sessenta. A esses efeitos irão se
somar, mais à frente, as implicações derivadas das mudanças introduzidas no
enquadramento
institucional
das
interferências
sócio-ambientais
dos
empreendimentos hidrelétricos, que não apenas alteram os parâmetros da
sistemática de planejamento da expansão do sistema como tornam muito mais
complexa e onerosa a viabilização dos novos projetos de geração.
342
5.1 O ajuste recessivo e a fragilização do planejamento setorial
A conjunção do esgotamento da política anticíclica delineada pelo II
PND, no front interno, com a deterioração do ambiente financeiro catalisada pelo
segundo choque do petróleo109, no front externo, motiva a Eletrobrás a promover,
ao final do anos setenta, um ajuste na programação de investimentos na
expansão do sistema, o que se traduz na elaboração do Plano de Atendimento
aos Requisitos de Energia Elétrica até 1995, editado em 1979. Conhecido como
Plano 1995, o documento consolida os “aspectos mais relevantes dos projetos em
construção e em estudos” (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988:
213) pelo setor, mas não introduz modificações de fundo nas diretrizes nem nas
metas definidas no âmbito do Plano 90, até porque os empreendimentos de maior
escala produtiva, incluindo Itaipu, Tucuruí e Itumbiara, já se encontravam em
construção. Os longos prazos de maturação de tais projetos, como comentado
anteriormente, criavam uma relativa inflexibilidade no corte ou redução dos
investimentos, face aos elevados custos a serem incorridos na hipótese da
desmobilização, ainda que parcial, do canteiro de obras, tendo em vista
compromissos contratuais assumidos com empresas prestadoras de serviços e
com a aquisição de máquinas e equipamentos. Essas dificuldades operacionais
defrontadas na promoção de revisões mais abrangentes no processo construtivo
das usinas terão implicações em duas direções principais, com efeitos retroativos
sobre a consistência e a viabilidade técnico-financeira dos objetivos e metas
globais estabelecidos pelo planejamento setorial. A primeira guarda relação com o
descolamento entre o ritmo de crescimento da capacidade instalada do parque
gerador e o do consumo de eletricidade. A segunda, com o descompasso entre os
requisitos de financiamento do setor e sua efetiva capacidade de mobilizar
recursos, próprios ou externos ao mesmo.
109
Em 1979, a OPEP promoveu uma nova alta dos preços internacionais do petróleo, ainda mais significativa
que aquela ocorrida em 1973, convencionalmente designada como “segundo choque do petróleo”.
343
A deterioração dos principais indicadores macroeconômico internos110,
herança do esforço de investimento empreendido no âmbito do II PND, e as
crescentes adversidades na área externa - evolução desfavorável nas relações
de troca e substancial elevação da taxa de juros, agravadas com a moratória
mexicana de 1982 (Bacha, 1988; Baer, 1996) - , levam o novo governo que
assume o Executivo federal na transição dos anos setenta, comandado pelo Gal.
João Batista de Figueiredo, a reorientar os rumos da política pública. A agenda
desenvolvimentista dá lugar ao ajuste estrutural da economia, em sintonia com os
preceitos e recomendações emanadas do Fundo Monetário Internacional (Negri,
1996; Cruz, 1997; Skidmore, 1998). Dessa inflexão imposta à política
governamental (Bresser Pereira, 1996; Baer, 1996; Gambiagi e Além, 1999) irá
resultar a mais profunda recessão experimentada pelo país em sua história
contemporânea, traduzida em variação negativa do PIB da ordem de 4,5% em
1981, aumento de 0,5% em 1982 e novo decréscimo em 1983, de 3,5% (Baer,
1996). Fruto de decisões tomadas na década anterior, a geração de energia
elétrica apresenta, em igual período, comportamento oposto, com taxas anuais de
crescimento de, respectivamente, 13,5%, 4,4% e 6,6% sobre o total (Centro da
Memória da Eletricidade no Brasil, 1988).
A perda de dinamismo da demanda, de um lado, e a expansão
sustentada da oferta de eletricidade, de outro, tendem a desembocar em
capacidade ociosa do sistema (Lima, 1995, depoimento; Centro da Memória da
Eletricidade no Brasil, 1996). Essa situação de “excesso” de potência instalada do
parque gerador será circunstancialmente aproveitada pelo governo federal para
introduzir uma série de subsídios tarifários afinados com os propósitos da política
de ajuste econômico, mais especificamente, a substituição industrial de insumos
energéticos importados, caso do petróleo, e o aumento da competitividade das
atividades exportadoras. São introduzidas, assim, várias tarifas especiais – as
denominadas Energia Excedente para a Produção de Bens de Exportação
110
Aceleração da inflação, que parte de 34% em 1974 para 56% em 1979, atingindo 110% em 1980;
crescimento acelerado da dívida externa, que salta de US$ 17,2 bilhões em 1974 para US$ 49,9 bilhões em
1979, e US$ 53,8 bilhões em 1980 (Baer, 1996).
344
(EPEX), Energia Excedente para a Substituição de Petróleo (ESBT) e Energia
Garantida por Tempo Determinado (EGTD), todas datadas de 1982, às quais vêm
se somar, a partir de 1984, outras duas, designadas como Energia Firme para
Substituição (EFST) e Energia Temporária para Substituição (ETST) -, que
chegavam a proporcionar, em determinadas situações, descontos de até 90% do
valor original a ser pago (Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1988,
1996).
Consumo relativamente estagnado e concessão de subsídios via tarifas
especiais vêm reforçar os efeitos perversos decorrentes da redução do valor real
da tarifa média dos serviços de eletricidade, decorrente da política de
estabilização de preços adotada nos anos finais da década de setenta111, sobre a
receita operacional do sistema (Lima, 1995). Na tentativa de dar continuidade a
projetos em andamento, o setor redobra os esforços no sentido de manter o
aporte de recursos extra-setoriais, via contratação de financiamentos, o que tende
a agravar ainda mais o seu já precário equilíbrio econômico-financeiro. A
combinação de endividamento crescente com elevação das taxas de juros nos
mercados interno e externo (Baer, 1996; Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1988, 1996) leva a que os recursos obtidos através da contratação de
novos empréstimos acabem sendo esterilizados com o pagamento do serviço da
dívida contraída nos anos anteriores (Quadro 9). É ilustrativo da gravidade da
situação o fato de, em 1983, os desembolsos relacionados à dívida ficarem acima
do valor dos financiamentos, respectivamente, 48,0% do total dos dispêndios e
43,0% do total das receitas (Quadro 9).
111
Ressalte-se, a propósito da questão, que desde 1977 a prerrogativa para a fixação das tarifas públicas de
um modo geral, entre elas as tarifas elétricas, foi transferida para a esfera decisória do Ministério da Fazenda
(Camozzato, 1995, depoimento).
345
Quadro 9
Fontes e Usos dos Recursos do Setor Elétrico Brasileiro, em Anos
Selecionados
Período: 1979/84 - %
Especificação
1979
1980
1981
1982
1983
1984
Total de Recursos
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Próprios
49,9
47,6
55,6
53,0
57,0
37,1
Empréstimo/Financiamento
50,1
52,4
44,4
47,0
43,0
62,9
Total de Usos
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Investimentos
69,2
61,8
64,6
60,7
51,7
40,9
Serviço da Dívida
30,1
37,3
35,0
38,7
48,0
50,4
Outras Aplicações
0,7
0,9
0,3
0,6
0,3
8,7
Fonte: Eletrobrás, Setor de Energia Elétrica: fontes e usos de recursos. Série
retrospectiva, vários anos. Extraído de Lima, J. L. Políticas de governo
e o
desenvolvimento do setor de energia elétrica: do Código de Águas à crise dos anos 80
(1934-1984). Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 1995.
A recessão que se instaura nos anos iniciais da década de oitenta,
tornando irrealistas as projeções de incremento do consumo de eletricidade, e a
fragilização crescente do padrão de financiamento do sistema, criando
dificuldades na viabilização dos investimentos previstos, se conjugam para
provocar a obsolescência precoce do Plano 95. Assim, em 1982, isto é, cerca de
três anos após sua promulgação, a Eletrobrás lança o Plano de Atendimento dos
Requisitos de Energia Elétrica até 2000, conhecido como Plano 2000. Como não
poderia deixar de ser, esse novo esforço de planejamento caracteriza-se pela
preocupação de ajustar as metas de expansão do parque gerador à conjuntura
recessiva da economia brasileira e às restrições financeiras então enfrentadas
pelo setor, através do adiamento da implantação de determinados projetos e da
ampliação do prazo de execução de outros. A realização de ajustes na
programação anteriormente prevista, contudo, suscita disputas entre as principais
346
empresas energéticas em torno da defesa de seus investimentos, criando
dificuldades na definição das metas e, consequentemente, dos projetos a serem
remanejados. Num resultado que denota os limites operacionais dos mecanismos
institucionais de negociação estabelecidos e, especificamente, da capacidade de
coordenação da Eletrobrás, a reprogramação feita no âmbito do Plano 2000 tende
a contemplar investimentos que só se justificavam em função de projeções
otimistas ou pouco realistas de incremento da demanda112 e que se revelavam
pouco plausíveis face à efetiva capacidade de mobilização de recursos do setor
(Camozzato, 1995, depoimento), traduzindo uma acomodação tática da lógica
sistêmica aos conflitos de interesse interempresariais.
As fraturas abertas num processo decisório que se alicerçava sobre
premissas eminentemente técnicas atuam no sentido de solapar a consistência e
a eficácia operacional do planejamento setorial. A contraface da definição de
metas e prioridades de investimento incongruentes com os requisitos da demanda
de eletricidade e sem o necessário suporte financeiro será a materialização de
problemas no cumprimento da programação proposta. Decisões estratégicas que
deixaram de ser tomadas quando da elaboração do plano acabaram, na prática,
sendo transferidas para o momento de sua operacionalização, onde não havia
como escapar ao enfrentamento do problema da insuficiência da base de
financiamento. Fazendo valer sua competência institucional de deliberar sobre a
aplicação de recursos públicos na área, a Eletrobrás confere prioridade às usinas
de Itaipu e Tucuruí – empreendimentos em estágios relativamente avançados de
construção -, o que evidentemente dificulta a implementação de outros projetos
também programados. Conforme Camozzato, “toda vez que se tentava fechar os
recursos, após o exame das despesas e de onde tirar as receitas, caía-se sempre
na mesma situação: não se iniciavam novas obras porque não havia dinheiro. As
que estavam em andamento continuavam, e as novas ficavam sempre para mais
tarde” (1995, depoimento).
112
Conforme Camozzato, “previa-se um período de crise no qual o mercado cresceria a 2%, 3%, 4% ao ano;
logo depois haveria um período de bonança, com taxas anuais de crescimento de 9%, que se estenderia até
1995; a partir de então, cairia para 6%” (1995, depoimento)
347
Essas mesmas dificuldades encontradas no financiamento de projetos
tratados como prioritários estimulam também iniciativas voltadas a reforçar a
centralização financeira no setor, que se materializam na introdução de alterações
nos mecanismos compulsórios de transferência de recursos interna ao sistema.
Como as empresas responsáveis pelos principais empreendimentos em
construção não eram necessariamente as que “detinham maior capacidade de
geração de recursos” (Lima, 1995, depoimento), o governo federal amplia a
parcela da receita operacional da atividade cuja gestão ficava a cargo da
Eletrobrás. Isto se faz através do Decreto nº. 1.849, datado de 1981, que altera de
3% para 4% a quota da Reserva Global de Reversão, e institui, em simultâneo,
um patamar máximo de rentabilidade para as empresas energéticas, a ser fixado
pelo DNAEE. Qualquer receita operacional que excedesse tal patamar de
remuneração seria automaticamente incorporada à Reserva Global de Garantia,
cujas regras de aplicação sofreram modificações de forma a assegurar plena
autonomia decisória à Eletrobrás (Lima, 1995, depoimento; Camozzato, 1995,
depoimento).
A repartição desigual dos ônus e benefícios derivados da integração
sistêmica expõe as contradições dos interesses internos ao setor e resulta na
progressiva e rápida deterioração das relações entre as concessionárias
estaduais, as empresas federais e a Eletrobrás. Reagindo às decisões
discricionárias no tocante à alocação de recursos para investimentos em geração
e às mudanças restritivas nas regras do jogo, um conjunto expressivo de
empresas, formado sobretudo por concessionárias estaduais, não se sente
comprometido a manter uma cooperação apriorística com os propósitos de
eficiência no desempenho do sistema. De um lado, acordos de compra e venda
de energia entre empresas geradoras e distribuidoras deixam de ser cumpridos
por estas últimas, numa ruptura informal de contratos que conduz a taxas
crescentes de inadimplência no âmbito da operação interligada (Lima, 1995,
depoimento). Sem sanções efetivas ao não pagamento da energia adquirida, até
porque a suspensão do fornecimento teria enorme repercussão social, já que
348
penalizaria os usuários do serviço, concessionárias menos rentáveis ou com
problemas circunstanciais no financiamento de suas atividades recorrem, com
frequência cada vez mais intensa, à utilização de tal expediente. De outro,
condutas estratégicas defensivas passam a ser adotadas por parte das
concessionárias mais rentáveis, com o intuito de minimizar a transferência de
recursos a que estavam compulsoriamente submetidas, via RGR e RGG.
Recorrendo novamente a Camozzato, “as empresas que apresentavam
remuneração acima da média nacional começaram a manipular seus custos para
não transferir dinheiro de seus estados para outros lugares. Graças a essa linha
de ação, a Cemig e a Copel fizeram dois grandes programas de eletrificação
rural”113 (...), o que constituía uma espécie de “investimento a fundo perdido
porque a tarifa do consumidor não chega a 10% do custo de atendimento” (1995,
depoimento). Preferem realizar investimentos que não dão retorno financeiro
satisfatório e que atendiam ao interesse de grupos sociais relativamente
reduzidos a cooperarem com a implementação de projetos de outras empresas e
que atendiam, em princípio, ao interesse da sociedade como um todo.
Além
das
dificuldades
técnico-operacionais
em
proceder
ao
ajustamento das metas de expansão do sistema a um consumo de eletricidade
que crescia menos que o projetado e em dar sequência às obras já iniciadas, a
sistemática de planejamento setorial vai se defrontar, ao longo dos anos oitenta,
com as transformações ocorridas no enquadramento institucional das interfaces
dos empreendimentos hidrelétricos com o meio onde se inscrevem. Avanços no
processo de redemocratização da vida política nacional e, principalmente, a
definição de uma legislação ambiental e a montagem de um aparato burocrático
para lidar com a questão alteram em profundidade a forma de tratamento das
interferências sócio-ambientais das plantas geradoras. São mudanças que afetam
a previsibilidade e o grau efetivo de controle do setor sobre o conjunto dos
113
O programa da Cemig envolveu recursos da ordem de US$ 400 milhões e o da Copel, US$ 250 milhões
(Camozzato, 1995, depoimento).
349
eventos relevantes na formulação e implementação de seus programas de
investimento, tornando muito mais complexo determinar o custo final de
construção das usinas, que fundamentava a seleção e a priorização dos projetos
de geração. Não se tratava mais apenas da viabilização econômico-financeira do
investimento, mas também de sua viabilização sócio-política e ambiental, numa
circunstância onde a segunda tem efeitos retroativos sobre a primeira.
5.2 A crescente importância das questões sócio-ambientais e os impactos
nos processos decisórios do setor
Apesar da crescente abrangência e intensidade dos impactos
ocasionados pela construção das usinas hidrelétricas, a conduta estratégica
adotada pelas empresas energéticas até meados dos anos setenta se pautava
por
evitar
qualquer
envolvimento
ou compromisso
com iniciativas
que
avançassem além da recomposição da infra-estrutura econômica e social afetada
e da remoção da população residente na área de inundação da barragem. Em
outras palavras, a percepção das interferências sócio-ambientais decorrentes da
obra e a correlata proposição de ações voltadas ao seu equacionamento refletiam
a nítida proeminência dos interesses setoriais sobre os interesses locais e
regionais atingidos pela implantação das plantas geradoras. Pode-se dizer, a esse
respeito, que a abordagem institucional da questão continuava centrada muito
mais nas interferências do meio sobre os empreendimentos do setor que
propriamente dos empreendimentos sobre o meio.
É somente com a implantação dos grandes projetos geradores da
década de setenta – como Itaipu, Tucuruí e Sobradinho - que a problemática
sócio-ambiental passa a adquirir maior relevância na sistemática decisória do
setor. A magnitude das interferências ocasionadas pelos empreendimentos
hidrelétricos sobre o meio em sentido amplo, de um lado, e a reação cada vez
mais intensa e organizada dos segmentos sociais diretamente atingidos pelo
processo construtivo das barragens, de outro, suscitam problemas operacionais
de crescente complexidade, cuja “resolução” encontra dificuldades de se moldar à
350
práxis seguida pelo sistema. Embora o “critério de liberação das áreas em prazo
hábil [consoante o cronograma da obra] pelo menor custo” (Eletrobrás, 1991:
100) continue preponderante, as empresas se vêem pressionadas na direção da
adoção de medidas indenizatórias ou compensatórias mais afinadas com as
aspirações, interesses e necessidades dos segmentos sociais atingidos,
especialmente aqueles submetidos ao deslocamento compulsório das terras que
ocupavam. Em simultâneo, começa a ficar evidente para o setor que os
procedimentos convencionais de abordagem da questão não asseguravam
necessariamente a pretendida minimização dos custos indiretos dos projetos, à
medida que impactos tratados de forma inadequada ou insuficiente podiam
reaparecer, como de fato vinham reaparecendo, “de maneira agravada ao longo
da implantação (...) [da obra], implicando (...) custos efetivos (...) maiores que
aqueles que teriam que ser enfrentados caso tais problemas fossem identificados,
computados e equacionados nos momentos oportunos” (Eletrobrás, 1990: 135).
As mudanças na percepção e na conduta estratégica das empresas
energéticas face à problemática ambiental vão se acelerar nos anos oitenta,
refletindo transformações em aspectos relevantes do contexto, que restringem
enormemente a margem de autonomia decisória que dispunham até então. A
primeira e mais importante dessas transformações se passa no campo
institucional, com a definição de uma legislação ambiental abrangente e
avançada, em sintonia com padrões internacionais, e do correspondente aparato
burocrático
para
zelar
por
seu cumprimento.
Dentre
outras
inovações
determinadas pelo novo estatuto legal, destaca-se a exigência de prévio
licenciamento ambiental114 para a implantação de projetos com efeitos
potencialmente significativos sobre o meio. A segunda tem a ver com o avanço do
114
De acordo com definição da Eletrobrás, “o licenciamento ambiental é, em suma, um procedimento
administrativo através do qual o poder público, estadual ou federal, no desempenho de poder de polícia
administrativa, exige dos interessados em desenvolver atividade potencial ou efetivamente poluidora a
elaboração dos estudos de impacto ambiental. Em contrapartida, entendendo os órgãos licenciadores que a
obra não causará substanciais desequilíbrios ecológicos, outorgará ao interessado as licenças ambientais
cabíveis” (1991: 40).
351
processo de democratização da sociedade brasileira, que contribui para a maior
ressonância e efetividade na aplicação dos dispositivos regulatórios instituídos.
Vale dizer, se a exigência de licenciamento tornava o processo de formulação e
implementação dos investimentos setoriais mais permeável à injunção de
interesses extra-setoriais, o ambiente democrático cria condições mais favoráveis
a que isto de fato viesse a ocorrer.
O salto de qualidade no tocante à regulação ambiental no país será
dado pela promulgação, em 1981, da Lei nº. 6.938, instituindo a “política nacional
do meio ambiente”, que vem consolidar proposições e iniciativas anteriores em tal
direção. Definem-se, no âmbito da nova legislação, normas, procedimentos e
instrumentos operacionais com vistas à preservação, recuperação e proteção
ambiental, bem como critérios para a especificação das atividades poluidoras ou
degradadoras do ambiente, entre as quais se inscrevem os investimentos em
geração e transmissão do setor elétrico. Os avanços institucionais no tratamento
da questão, contudo, somente irão adquirir efetividade operacional já na segunda
metade dos anos oitenta, quando são prescritas regras para a sistemática de
licenciamento ambiental. Isto se faz através de uma série de resoluções editadas
em 1986 pela Comissão Nacional do Meio Ambiente (Conama), regulamentando
os dispositivos e instrumentos jurídicos anteriormente introduzidos (Eletrobrás,
1991).
Em
paralelo
aos
avanços
jurídico-institucionais,
a
crescente
sensibilidade da sociedade brasileira para as questões sócio-ambientais, a
pressão de organismos financiadores externos, em especial o BIRD, e
principalmente a mobilização dos segmentos populacionais atingidos pelos
empreendimentos hidrelétricos em torno de maior participação nas decisões
relativas à desocupação das áreas requeridas pelas construções das barragens já
vinham provocando alterações gradativas na postura das concessionárias do
setor. O processo de implantação da usina de Itaparica, deflagrado pela Chesf em
1975, ilustra bem a dinâmica de tais mudanças. Ao contrário do que se passa na
construção da usina de Sobradinho, que se iniciara poucos anos antes, onde não
352
apenas impôs os valores a serem pagos a título de indenização como excluiu a
sociedade local de qualquer participação mais efetiva na definição dos projetos e
ações relacionados ao seu remanejamento para outras áreas, “em Itaparica a
empresa assumiu – ainda que com atraso – responsabilidades amplas pelo
destino das populações sujeitas à remoção compulsória” (Eletrobrás, 1991: 102),
num resultado que reflete a mobilização destes grupos sociais, com o importante
apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais da região (Eletrobrás, 1991). É,
contudo, no sul do país que a organização dos segmentos populacionais
impactados em torno da defesa de seus interesses assume contornos mais
sólidos, emblematizados na criação da Comissão Regional dos Atingidos por
Barragens (CRAB), levando as empresas a buscarem soluções negociadas como
requisito mesmo à viabilização de seus empreendimentos. O acordo entre a
Eletrosul e a CRAB, especificando as ações e os procedimentos referentes à
indenização e ao remanejamento das famílias que seriam atingidas pela
construção da usina de Itá, celebrado em 1987 após um longo período de
discussão (Souza, 1995; Nutti, 1995; Eletrobrás, 1991), pode ser considerado
como um marco na transição para uma nova forma de tratamento das questões
sócio-ambientais, internalizando de vez
os interesses locais nos processos
decisórios do setor.
Dentre outras consequências, interessa ressaltar aqui as implicações
que isto tem para a sistemática de planejamento e o processo decisório da
atividade. Um primeiro e importante aspecto guarda relação com os gastos
incorridos na formulação e implementação dos projetos hidrelétricos, que não
apenas passam a incorporar novos elementos de despesa como sofrem
alterações no desembolso com itens já previstos na programação orçamentária. A
realização dos estudos de impacto necessários ao licenciamento ambiental da
obra e, sobretudo, o alargamento do escopo das medidas adotadas com o intuito
de evitar ou minimizar as interferências negativas dela decorrentes conduzem
inevitavelmente a uma elevação dos custos de construção das plantas geradoras.
Um segundo aspecto, não menos importante, tem a ver com o aumento da
353
margem de riscos e incertezas na implantação propriamente dita dos
empreendimentos setoriais. A viabilização sócio-ambiental supõe negociações
com as agências reguladoras dos estados e, ao mesmo tempo, amplifica a
exposição do projeto a ingerências de interesses extra-setoriais direta ou
indiretamente afetos ao problema, cuja resultante nem sempre pode ser
antecipada com um grau razoável de precisão. Se a viabilidade do investimento
não for comprometida, não há como escapar ao alongamento do horizonte
temporal de sua realização, que se torna contingente de uma série de fatores
sobre os quais a empresa responsável não exerce maior controle.
6. Crise e esgotamento do modelo de planejamento centralizado no setor
O setor elétrico brasileiro apresentou, como visto, um período de forte
crescimento a partir da segunda metade dos anos sessenta, que resultou numa
atividade estatizada e integrada em âmbito nacional, consolidando tendências
cujas origens remetem ao pós guerra. Esse crescimento se apoia numa série de
iniciativas implementadas pelo governo, voltadas à adequação do aparato estatal
para o desempenho de suas ampliadas funções empresariais na área, de um
lado, e na conjunção de circunstâncias favoráveis do contexto, de outro. Na
primeira vertente, destacam-se a efetiva estruturação da Eletrobrás enquanto
agência de planejamento e coordenação da expansão do sistema, a instituição de
novos mecanismos de financiamento aos
investimentos em geração e
transmissão de eletricidade e a promoção da interligação operacional dos
serviços prestados pelas empresas concessionárias. Na segunda, os aspectos
mais importantes são o forte incremento da demanda por energia elétrica,
espelhando a intensificação dos movimentos de industrialização e de urbanização
nos anos setenta, e as facilidades na obtenção de recursos extra-setoriais
proporcionadas por fontes de financiamento externas, envolvendo não só
organismos oficiais de fomento, mas também agências financeiras privadas.
Fruto de decisões que vão sendo tomadas ao longo do percurso,
balizadas por oportunidades e constrangimentos que refletem resultados de
354
escolhas feitas anteriormente e transformações circunstanciais em aspectos
relevantes do contexto, a estatização do setor implica muito mais que o
redesenho do perfil das empresas atuantes na área. A reconfiguração que se
processa no campo organizacional da atividade envolve também profundas
mudanças em seus arranjos produtivos e em sua lógica de funcionamento. O
sentido básico de tais mudanças é a adoção de uma racionalidade sistêmica na
promoção de investimentos na expansão do parque gerador, voltada a assegurar
uma oferta regular e confiável de energia elétrica ao menor custo possível para o
usuário do serviço. Isto supunha a centralização decisória e de comando, o que
irá instaurar de vez a prática do planejamento como suporte instrumental ao
processo de alocação de recursos no setor.
Embora favorecesse a adoção de uma racionalidade sistêmica, a
estatização da atividade não assegura, por si só, uma transição não problemática
para uma lógica decisória calcada no planejamento centralizado da alocação de
recursos na área. A presença de um amplo conjunto de concessionárias
estaduais e federais, com interesses e capacidades produtivas diferenciadas,
tornava irrealista qualquer pretensão de uma convergência apriorística entre as
prioridades de investimento específicas de cada empresa e as prioridades de
investimentos estabelecidas sob a ótica agregada do setor. A estratégia utilizada
para lidar com essas dificuldades consiste na promoção de uma drástica redução
na autonomia decisória
das
empresas no tocante à formulação e à
implementação de seus planos de expansão, através da introdução de mudanças
na institucionalidade vigente. Aproveitando-se do poder discricionário que a
ordem autoritária conferia ao Executivo, o governo federal altera as regras do
jogo, definindo princípios e critérios de priorização para a seleção dos projetos de
investimento em geração e transmissão de energia elétrica, de caráter normativo,
que asseguravam um alinhamento compulsório aos objetivos e metas decididos
no âmbito da atividade planejadora.
A prevalência de uma racionalidade sistêmica, calcada na otimização
na alocação de recursos na atividade, tem implicações em três direções
355
principais, todas convergentes com o incremento da eficiência e da eficácia da
sistemática de planejamento instituída pelo setor. A primeira delas tem a ver com
o esforço empreendido na direção do fomento à integração operacional do
sistema, de forma a amplificar as oportunidades para ganhos de escala e de
escopo na realização de investimentos na área. A segunda guarda estreita
relação com a primeira e se expressa na opção por projetos de grande porte, com
vistas à melhor apropriação possível das oportunidades de racionalização
produtiva proporcionadas pelos avanços da operação interligada. A terceira e
última consiste no esvaziamento das funções regulatórias desempenhadas pelo
DNAEE, cuja atuação enquanto poder concedente dos aproveitamentos
hidrelétricos vai se tornar caudatária das prioridades definidas pelo planejamento
setorial.
Baseado em projeções de rápido incremento da demanda de
eletricidade, que se referenciam nas elevadas taxas de crescimento da atividade
econômica brasileira na primeira metade da década de setenta, de um lado, e em
expectativas otimistas de captação de recursos extra-setoriais, fundamentadas no
suposto implícito da persistência das condições favoráveis de acesso ao mercado
financeiro externo, de outro, define-se uma ambiciosa programação de
investimentos
na
expansão
do
sistema,
formada
essencialmente
por
megaempreendimentos hidrelétricos. Mudanças não antecipadas em premissas
fundamentais da proposta elaborada, contudo, vão suscitar problemas na
implementação do plano setorial. O esgotamento do ciclo expansivo da economia
nacional, ocorrido na transição para os anos oitenta, torna irrealistas as
estimativas de aumento do consumo de energia elétrica e, por extensão, as metas
estabelecidas para a ampliação do parque gerador. Por sua vez, os efeitos
desestabilizadores provocados pelo segundo choque do petróleo no ambiente
internacional, ao final dos anos setenta, e a concomitante deterioração do
ambiente macroeconômico interno se conjugam para dificultar o acesso a novos
empréstimos e financiamentos no exterior. São circunstâncias que não deixavam
alternativa à promoção de uma revisão na programação original.
356
As iniciativas empreendidas nessa direção, contudo, vão se defrontar
com determinados constrangimentos operacionais à sua realização, repercutindo,
por sua vez, sobre a eficiência dos resultados do processo. Um primeiro e
importante aspecto guarda relação com a relativa inflexibilidade que a escala dos
projetos hidrelétricos programados imprime à introdução de alterações no
cronograma de execução dos investimentos propostos e, por extensão, nas ações
previstas no plano. Um segundo aspecto, não menos importante, tem a ver com a
especificação dos investimentos a serem remanejados em função da redução das
metas originalmente planejadas. Cabe observar, a propósito da questão, que os
princípios e critérios
adotados na seleção dos projetos prioritários não se
aplicavam automaticamente à definição dos cortes a serem feitos na programação
orçamentária. Em consequência, torna-se inescapável recorrer a soluções
negociadas, onde as dificuldades encontradas na acomodação dos interesses de
empresas concorrendo pela preservação de seus respectivos projetos de
investimento tendem a provocar uma espécie de “efeito catraca” ao revés na
reprogramação das metas setoriais, que acabam sendo mantidas acima dos
requisitos da demanda.
Erros na atividade planejadora vão se transmutar em problemas
operacionais
a
serem
equacionados
no
âmbito
da
implementação
da
programação proposta. Os cortes que não foram feitos quando da revisão
planejamento setorial terão de acontecer no momento da realização dos
investimentos. Sem recursos suficientes para a viabilização do conjunto de obras
projetadas, a Eletrobrás prioriza aquelas em andamento em detrimento das que
não haviam sido iniciadas, num ajustamento ad hoc da programação traçada.
Além de aumentar em muito a taxa de conflitos internos ao sistema, tal
procedimento solapa a legitimidade do planejamento, desvestindo-o, na prática,
do caráter normativo que lhe fora atribuído pelo governo. A essas questões veio
se somar, nos anos oitenta, a necessidade da viabilização sócio-ambiental dos
empreendimentos hidrelétricos, que amplifica a margem de riscos e incertezas
imbricados na formulação e implementação dos projetos setoriais, criando
357
problemas técnicos e operacionais para a avaliação e ordenamento de
prioridades de investimento que está na base da atividade planejadora. O
resultado global do processo não poderia ser outro que o esgotamento do modelo
de centralização decisória e financeira instituído no setor, sinalizando a abertura
de um novo estágio em sua dinâmica evolutiva, que começa a se materializar nos
anos noventa.
358
VI. CONCLUSÕES
Na análise da interação entre mercado e Estado no âmbito de uma
atividade como a prestação dos serviços de eletricidade no Brasil, envolvendo
uma rede complexa de agentes, uma ampla base de recursos tecnológicos,
financeiros e organizacionais, e um território extenso e diversificado, é crucial
examinar até que ponto categorias e processos analíticos destacados por
matrizes teóricas distintas podem e devem ser combinados para permitir uma
interpretação mais adequada da realidade empírica. Com essa perspectiva,
procurou-se
articular,
no
desenvolvimento
do
trabalho,
aportes
teórico-
metodológicos da escolha racional e do neoinstitucionalismo. A primeira vertente
proporciona instrumental analítico para a compreensão do processo decisório dos
agentes, enfatizando a busca motivada da maximização de resultados na
alocação de recursos que fazem e nas condutas estratégicas que adotam,
convencionalmente associada à lógica de mercado. A segunda vertente salienta o
papel das instituições como regras formais do jogo, moldando estruturas de
oportunidades e constrangimentos que influenciam as preferências e as escolhas
dos agentes relativas aos objetivos que perseguem e aos recursos que
mobilizam. As instituições tanto instrumentalizam a regulação do mercado pelo
Estado como delimitam o alcance da autonomia decisória deste mesmo Estado e,
consequentemente, aquilo que pode fazer, seja enquanto instância regulatória ou
coordenadora, seja como empresário.
A apreensão da forma como agentes e instituições interagem,
demarcando as cursos de ação e as opções factíveis em cada momento, requer
considerações acerca do contexto em que esta se desenvolve e das
transformações nele transcorridas, compreendendo tanto o ambiente externo
quanto interno. A contextos com configurações distintas correspondem estruturas
também diferenciadas de oportunidades e constrangimentos que afetam a
alocação de recursos na área e a conformação de seus arranjos organizacionais
e produtivos. No ambiente externo, salientam-se, dentre os aspectos de maior
relevância analítica, os avanços tecnológicos no campo da geração, transmissão
359
e uso da eletricidade, de um lado, e as alternativas de financiamento e o acesso
às mesmas, de outro, cujos efeitos incidem sobretudo na base de recursos
passíveis de serem mobilizados pelo setor. No ambiente interno, o espectro de
fatores intervenientes tende a ser mais amplo e a influência que exercem mais
intensa e variada. São particularmente importantes fenômenos como a expansão
demográfica, a urbanização e a industrialização da economia, que repercutem na
demanda de energia elétrica e, por extensão, na pressão sobre a prestação do
serviço, e processos como a centralização ou descentralização administrativa e a
prevalência ou não de instituições representativas da democracia, que traduzem
as condições sistêmicas para o exercício do poder estatal na sociedade.
Determinadas mudanças no contexto decorrem de acontecimentos e ações
exógenas à dinâmica de funcionamento da atividade, como a ocorrência de
guerras ou de crises econômicas, no plano internacional, e o crescimento e
modernização do sistema produtivo, as reformas políticas e burocráticas e a
alternância de governos, no plano interno. Outras espelham os efeitos contextuais
derivados de decisões e condutas estratégicas de um conjunto variado de
agentes com interesses na área, convergentes com aquilo que a literatura
neoinstitucionalista denomina de “dependência de trajetória”, isto é, a influência
que os resultados de escolhas feitas no tempo t exercem sobre as alternativas
potencialmente abertas à avaliação ou consideração dos agentes no tempo t + 1.
A influência que as transformações ocorridas no ambiente em sentido
amplo e, principalmente, no arcabouço institucional de ordenamento e controle da
atividade exercem sobre as preferências, os objetivos e os recursos passíveis de
serem mobilizados pelos agentes atuantes na área é claramente um fator que
limita o alcance explicativo de análises fundadas apenas no uso do “universal tool
kit” da escolha racional. Retomando a discussão realizada no primeiro capítulo, o
forte dinamismo institucional que permeia a trajetória evolutiva do setor requer
tratar as instituições como parte do problema a ser explicado e não como uma
variável exógena à construção do argumento analítico. O espectro das questões a
serem examinadas envolvem considerações a respeito dos fatores de
360
heterogeneidade institucional, de um lado, e das consequências dela derivadas
no tocante à conformação da arena decisória setorial de outro. São questões cuja
abordagem não pode prescindir do instrumental analítico proporcionado pelas
contribuições teóricas inscritas no neoinstitucionalismo.
A introdução de inovações no desenho institucional, por sua vez,
guarda estreita relação com a natureza objetiva da intervenção estatal na área.
Isto leva ao direcionamento do foco analítico para as questões relativas à
formulação e à implementação das políticas públicas para o setor. De um lado, há
que se considerar a interveniência de fatores relacionados ao contexto no
desenho das políticas setoriais, o que inclui a definição de prioridades, objetivos e
estratégias de ação referentes à atividade. De outro, deve-se reconhecer que as
políticas implementadas, quaisquer que sejam, não asseguram necessariamente
respostas convergentes com os propósitos visados (March e Olsen, 1989). Como
ressalta Powell (1991), os resultados dependem do grau de cooperação ou
resistência por parte dos interesses afetos às mesmas, num processo contingente
de aspectos relevantes do contexto (Steinmo e Thelen, 1991). Nem sempre as
alternativas selecionadas são factíveis à luz dos constrangimentos econômicos,
sociais e políticos com os quais se defrontam, comprometendo, parcial ou
integralmente, sua implementação. São frequentes também a ocorrência de
resultados não pretendidos ou não antecipados quando da formulação das
políticas propostas, com efeitos retroativos sobre o processo decisório estatal,
estimulando a revalidação de hipóteses e a correção de rumos nas estratégias
adotadas.
A construção do argumento analítico pode ser entendido, portanto,
como um esforço no sentido da elucidação da complexa relação entre atores,
instituições e contexto, onde se procura conciliar perspectivas teóricas distintas,
mais especificamente, a escolha racional e o novo institucionalismo. A primeira
fundamenta a interpretação da lógica decisória que se expressa na alocação de
recursos nas atividades setoriais e nas políticas definidas para a área. A segunda
proporciona elementos para lidar com o papel estruturante das instituições e suas
361
transformações no tempo, permitindo estabelecer uma conexão coerente e
sistematizada entre as condutas decisórias dos atores e o contexto.
A análise empreendida mostra que a conformação inicial assumida
pela prestação dos serviços de eletricidade foi fortemente influenciada pelas
circunstâncias do contexto em que se dá sua emergência como um novo campo
produtivo no país, ocorrida nas últimas décadas do século XIX. De um lado, a
vigência de uma ordem liberal assegura o domínio da iniciativa privada na
estruturação e desenvolvimento da atividade. De outro, a descentralização
administrativa derivada do acentuado federalismo então prevalecente e a
natureza dispersa e rarefeita da ocupação econômica e populacional do território,
típica de uma sociedade de raízes agrárias, se combinam para imprimir
características eminentemente locais aos sistemas elétricos que vão surgindo. O
setor se organiza assim como uma rede de empresas concessionárias
estabelecidas em pontos isolados do espaço nacional, espelhando a percepção
de oportunidades de negócio abertas a investimentos na área e seu
aproveitamento por um capital em busca de valorização, oriundo de outros
segmentos produtivos da economia brasileira ou do exterior.
Até meados dos anos trinta, a evolução do sistema elétrico se faz em
estreita sintonia com a prevalência de uma dinâmica de mercado. Na presença de
regras do jogo ao mesmo tempo estáveis e que asseguram ampla liberdade de
ação ao capital, os investimentos realizados na atividade tendem a refletir os
estímulos econômicos de uma demanda por eletricidade em constante e rápida
expansão e as alternativas produtivas derivadas de avanços tecnológicos que
fomentam ganhos de produtividade e de eficiência na alocação de recursos. Os
arranjos organizacionais e produtivos que se estruturam na área e suas
transformações no tempo traduzem, em essência, os resultados agregados das
decisões tomadas por um conjunto aberto e, portanto, variável de empresas
concessionárias, com perfis e tamanhos também variados.
362
A dinâmica do desenvolvimento setorial pode ser desagregada, para
efeitos analíticos, em três movimentos ou processos que ocorrem em simultâneo,
produzindo uma permanente reconfiguração do desenho espacial da atividade. O
primeiro é representado pela ausência de investimentos na implantação de
sistemas de suprimento de energia elétrica em expressiva parcela do território
nacional. A despeito da inexistência de barreiras relevantes à entrada no setor,
áreas com baixo potencial de consumo de eletricidade ou percebidas como tal
não atraem o interesse do capital e ficam à margem da prestação do serviço. O
segundo se contrapõe ao primeiro e consiste na formação de novas empresas
concessionárias para atuar em áreas cujo potencial de consumo alcança patamar
suficiente para proporcionar margens satisfatórias de retorno ao capital. O
gradativo avanço da dinâmica urbana enseja a criação de novas oportunidades de
investimentos na atividade, de características localizadas e pouco exigentes de
capital, favorecendo a atuação de uma iniciativa privada de baixa capacidade de
mobilização de recursos. O terceiro e último se sobrepõe ao segundo e se
expressa na centralização e concentração de capital, refletindo o aproveitamento
das oportunidades para ganhos de eficiência e de rentabilidade proporcionadas
pelo adensamento das manchas urbanas e o correlato crescimento e
modernização da produção industrial. As disputas intercapitalistas pelas melhores
áreas de mercado se aprofundam a partir dos anos vinte, quando se intensificam
a aquisição e a fusão de empresas, levando à organização de concessionárias
progressivamente maiores. Sem regras específicas para ordenar e disciplinar tais
disputas, a assimetria de poder se manifesta em sua plenitude, favorecendo
empresas controladas por capital estrangeiro, com maior potencial de mobilização
de recursos, em detrimento das empresas de capital nacional. Isto se traduz
numa
forte
tendência
à oligopolização,
onde surgem,
como
principais
protagonistas, os grupos Light e Amforp.
Na transição para os anos
trinta, o setor elétrico brasileiro já se
encontra num estágio de relativa consolidação econômica, apresentando então
uma estrutura organizacional e produtiva de configuração dual. De um lado,
363
aglutinam-se centenas de micro ou pequenas concessionárias de serviços de
eletricidade, em sua ampla maioria sob controle de capital nacional, operando
sistemas de abrangência local ou microrregional, que atendem núcleos urbanos
pouco expressivos, dispersos pelo território. De outro, subsidiárias pertencentes
aos grupos Light e Amforp detêm a concessão da prestação do serviço nas áreas
de mercado mais adensadas e com melhores perspectivas de crescimento,
formando sistemas de abrangência regional, aos quais corresponde a maior parte
da oferta de energia elétrica do país.
Os rumos do desenvolvimento do setor irão se alterar nos anos trinta,
em conexão com movimento abrangente de reformas institucionais e políticas
desencadeado no período. É nesse contexto que o governo federal promulga uma
nova legislação para o ordenamento e controle da prestação dos serviços de
eletricidade, consubstanciada no
Código de
Águas, que
repercute em
profundidade na dinâmica de mercado prevalecente na área. Dentre outras
inovações,
o
Código centraliza
a
competência
para
a concessão
de
aproveitamentos hidráulicos na União, introduzindo uma sistemática tarifária que
impõe limites padronizados à margem de remuneração da atividade e restringe
enormemente a liberdade de iniciativa assegurada pela institucionalidade anterior.
São mudanças que afetam os interesses e as preferências das empresas
estabelecidas no sistema, repercutindo nas escolhas que fazem relativas aos
objetivos que perseguem e nas ações adotadas com vistas à sua consecução. A
busca da maximização do retorno econômico, através do aproveitamento das
oportunidades de ganho proporcionadas por uma demanda em contínua e rápida
expansão, vai ser substituída por uma conduta estratégica defensiva, que se
manifesta tanto no campo produtivo quanto institucional. No primeiro, as decisões
de investimento se tornam muito mais seletivas, com as grandes empresas
procurando, em essência, preservar as posições conquistadas no âmbito do
sistema, o que se traduz numa sensível redução no lançamento de novos projetos
voltados à ampliação da capacidade instalada de suprimento energético. No
segundo, o aspecto saliente consiste na adoção de uma postura de resistência à
364
implementação das alterações propostas nas regras do jogo, em especial no que
diz respeito à fixação de tarifas, na tentativa de evitar ou, mais realisticamente, de
minimizar a materialização de mudanças no status quo.
Reflexo
da
estratégia
defensiva
adotada
pelas
principais
concessionárias privadas, o incremento da demanda deixa de ter respostas à
altura do lado da oferta, trazendo, como subproduto, a progressiva deterioração
da qualidade dos serviços prestados pelo sistema, que irá convergir para a
ocorrência de déficits no suprimento energético. Os resultados insatisfatórios das
iniciativas do poder público com vistas a estimular, através da flexibilização parcial
dos novos dispositivos regulatórios estabelecidos pelo Código de Águas, a
retomada dos investimentos privados acabam induzindo a entrada do Estado no
circuito da produção, o que se dá na segunda metade dos anos trinta. A partir de
então,
delineia-se
uma
tendência
no
sentido
do
aprofundamento
do
intervencionismo estatal na área, em concomitância à intensificação da retração
das inversões das concessionárias privadas, sobretudo no segmento de geração.
Acompanhando o rápido incremento do consumo de energia elétrica,
que se acentua no pós-guerra em sintoma com a aceleração dos movimentos de
urbanização e industrialização do país, os investimentos e as atividades
empresariais do Estado na área crescem de forma exponencial. Assim, em
meados dos anos sessenta as empresas públicas já serão dominantes no setor,
respondendo pela maior parte da capacidade de atendimento do sistema. Essa
reconfiguração radical dos arranjos organizacionais e produtivos da atividade
conduz a uma nova e significativa mudança na conduta estratégica das grandes
concessionárias privadas. Frente à hegemonia conquistada pelas empresas
estatais, que sinalizava um estreitamento ainda maior das oportunidades para a
atuação do capital na área, a conduta defensiva que vinha sendo adotada desde
a promulgação do Código de Águas é substituída por uma opção mais drástica, a
saída do jogo. A decisão do grupo Amforp de abandonar a atividade se concretiza
na segunda metade da década de sessenta, com a venda de suas concessões e
ativos para a União; na década seguinte, o grupo Light segue o mesmo caminho.
365
A estatização do setor alcança níveis extremamente elevados, o que favorece a
introdução de uma lógica sistêmica, tendo como principais suportes a
centralização decisória e a interligação operacional em arranjos de conformação
regionalizada.
Essas mudanças refletem a influência tanto de transformações no
contexto quanto, e principalmente, no âmbito do próprio Estado. Do contexto
resultam estruturas diferenciadas de oportunidades e constrangimentos para a
proposição e o encaminhamento das ações do poder público na área. A natureza
concreta da intervenção estatal, por sua vez, depende da forma como se organiza
o processo decisório da administração pública e de sua efetiva capacidade de
mobilização de recursos, o que abrange não apenas aspectos técnicos e
financeiros mas também políticos. Ganham saliência aqui questões sistêmicas
mais gerais que fundamentam o desenvolvimento da atividade governativa, mais
especificamente a capacidade de governança e as condições de governabilidade.
Recuperando rapidamente a trajetória percorrida pela atividade, a
emergência dos serviços de eletricidade como um novo campo produtivo no país,
como já mencionado, se dá num ambiente que combina forte descentralização
político-administrativa com reduzida capacidade de intervenção estatal na
economia. A diluição do poder concedente e a ausência de uma política
minimamente estruturada para o setor se conjugam para conferir ampla liberdade
de ação às empresas concessionárias. São circunstâncias onde a expansão do
sistema reflete deliberações e disputas de mercado, motivadas precipuamente
pelo aproveitamento de ganhos econômicos.
A primeira mudança mais substantiva na presença e na forma de
atuação do poder público na área somente ocorre nos anos trinta, num processo
que guarda estreita relação com a centralização político-administrativa e o esforço
de construção institucional promovidos no período. Dessa atividade reformista
resulta a proposição de novas regras e mecanismos operacionais para o
disciplinamento e controle da prestação dos serviços de eletricidade, afinadas
366
com duas tendências principais. A primeira delas é a padronização dos
dispositivos regulatórios, com a concentração do poder concedente na União e a
consolidação de uma autoridade nacional com legitimidade para formular e
implementar políticas setoriais. A segunda consiste na ênfase atribuída à proteção
aos usuários do sistema contra o poder monopolista das grandes empresas que
haviam se constituído no setor, instrumentalizada por controles rigorosos sobre as
tarifas de energia, nos moldes das legislações setoriais que vinham sendo
adotadas nas principais economias capitalistas.
A tentativa governamental de avançar na direção de uma regulação
mais abrangente e intensiva do funcionamento do mercado suscita, como visto, a
reação e a resistência das grandes empresas concessionárias privadas, com dois
tipos de implicações no tocante aos rumos do desenvolvimento do setor. O
primeiro tem a ver com as dificuldades encontradas pelo poder público em
conferir efetividade aos dispositivos do Código, notadamente no que se refere à
sistemática de fixação das tarifas de energia elétrica, das quais resulta uma
institucionalidade incompleta, sob permanente tensão decorrente das disputas em
torno da matéria. O segundo guarda relação com a retração dos investimentos na
atividade, conduzindo à progressiva deterioração da qualidade dos serviços
prestados pelo sistema, o que irá convergir para a materialização de déficits no
suprimento
energético.
Vale
dizer,
além
do
êxito
apenas
parcial
na
implementação das reformas institucionais pretendidas, o esforço empreendido
com tal finalidade influencia as preferências e as condutas estratégicas dos
interesses estabelecidos na área, trazendo, como subproduto, a perda da
eficiência alocativa atribuída ao mercado, que passa a não proporcionar respostas
produtivas compatíveis com a disposição a consumir da sociedade.
À medida que o estrangulamento energético vai assumindo contornos
mais visíveis, com consequências adversas para os vários usuários do sistema, o
foco da atuação estatal tende a se deslocar gradativamente do objetivo de regular
o funcionamento do mercado para o propósito de corrigir as “falhas” nos
resultados da alocação de recursos que este promove. O Estado regulador abre
367
espaço para a emergência do Estado empresário, com a inserção da
administração pública na esfera da produção setorial buscando suprir as
deficiências dos serviços prestados pela iniciativa privada. Os primeiros passos
nessa direção serão dados no âmbito das administrações estaduais, mais
especificamente, em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, o que se
explica pela influência conjunta de fatores de natureza institucional e políticoadministrativa. Na dimensão institucional, o aspecto saliente é o fato de a
centralização decisória e de comando promovida pelo governo federal,
consubstanciada
no
Código
de
Águas,
ter
reduzido
drasticamente
as
competências e atribuições dos governos estaduais no exercício da função
regulatória da atividade. Por exclusão, restava-lhes a alternativa de intervenção
direta na produção, através da constituição de empresas para atuar na prestação
dos serviços de eletricidade. Na dimensão político-administrativa, as questões
relevantes guardam relação com a percepção que os governos dos estados têm
acerca da atuação das concessionárias privadas dentro de seus respectivos
territórios, a intenção de melhorar a qualidade dos serviços prestados e a
capacidade de mobilizar recursos com tal finalidade.
Iniciado timidamente em meados dos anos trinta, o intervencionismo
estatal nas atividades do sistema se amplia de forma progressiva ao longo da
década de quarenta, sustentado principalmente no alargamento das iniciativas
setoriais dos governos estaduais. O impulso decisivo à consolidação do Estado
empresário na área será dado no início dos anos cinquenta, com o retorno, por
via eleitoral, de Getúlio Vargas à Presidência da República. A centralidade
atribuída à promoção do desenvolvimento industrial da economia brasileira na
agenda pública do novo governo confere maior saliência aos problemas
provocados pelo déficit energético, que havia se espraiado por diversos pontos do
território nacional. Refletindo a preocupação em assegurar uma oferta adequada
e confiável de eletricidade, que se configurava em requisito à obtenção de
resultados satisfatórios na promoção do esforço industrializante, a administração
varguista decide intensificar a realização de investimentos públicos na expansão
368
do sistema, de forma a neutralizar, em termos definitivos, as “falhas” de mercado.
A consecução desse desiderato político, por sua vez, supunha o aparelhamento
estatal para o desempenho de funções empresariais ampliadas na área,
envolvendo aspectos financeiros, técnicos e operacionais. Isto se traduz nas
propostas de criação do IUEE e do FFE, voltadas à estruturação de fontes
específicas de financiamento para o setor, e da Eletrobrás, para responder pela
aplicação de tais recursos.
Sob a égide da institucionalidade democrática então prevalecente, as
propostas setoriais formuladas pelo Executivo estavam condicionadas à
apreciação e a aprovação do Legislativo. Sem uma base sólida de sustentação
parlamentar, as proposições governamentais dependiam de negociações no e
com o Congresso. Menos polêmicos, os projetos do IUEE e do FFE conseguem
aglutinar apoio político suficiente para serem aprovados, passando a representar
importante fonte de financiamento para a realização de investimentos públicos no
sistema. O mesmo não ocorre com o projeto da Eletrobrás, que suscita
resistências de um amplo e heterogêneo conjunto de interesses e forças políticas,
onde se incluem desde os grupos estrangeiros a concessionárias estaduais, como
a Cemig, passando por órgãos da própria administração federal, como o BNDE.
Sua tramitação no Legislativo será objeto de sucessivas práticas dilatatórias, que
bloqueiam, por
longo
período, sua entrada
na
pauta
de votação
e,
consequentemente, sua aprovação.
As
dificuldades
encontradas
pela
administração
varguista
na
viabilização de seus intentos reformistas, contudo, não irão provocar retrocessos
nem impedir o avanço do intervencionismo estatal na área. Movido por razões
similares – o equacionamento do estrangulamento energético como requisito à
viabilização de uma agenda política centrada na promoção de um esforço de
desenvolvimento e modernização da indústria nacional - o novo governo que
assume o controle do Executivo federal, tendo à frente Juscelino Kubitschek, irá
aprofundar, numa escala sem precedentes, a realização de investimentos
públicos nas atividades do sistema. Não se trata, entretanto, como pode parecer à
369
primeira vista, de resultado decorrente de uma orientação estatizante na
condução da atividade governativa, mas de uma escolha deliberada por soluções
capazes de proporcionar respostas oportunas e adequadas aos requisitos de uma
demanda em forte expansão.
Ao contrário da administração varguista, que concentra esforços no
aparelhamento estatal para o desempenho de suas funções empresariais na área,
o Governo Kubitschek enfatiza o êxito na adequação da capacidade de
atendimento do sistema, tendo por referência a esperada aceleração do
crescimento
do
consumo
de
eletricidade
provocada
pela
estratégia
industrializante. Conjugando fontes internas de financiamento, que haviam sido
ampliadas pela gestão anterior, a captação de recursos no exterior, em especial
junto ao BIRD, e aproveitando-se dos avanços tecnológicos ocorridos nas
atividades de geração e transmissão de eletricidade, os novos gestores do
Executivo federal formulam e coordenam a implementação de uma ambiciosa
programação de investimentos em geração e transmissão de eletricidade,
remetendo parte expressiva das metas propostas ao poder público. Por sua
escala produtiva, a usina de Furnas pode ser considerada emblemática desse
alargamento do intervencionismo estatal na área, tendo exigido um enorme
esforço de articulação política e de mobilização de recursos técnicos e financeiros
em sua implantação.
Fruto de decisões que vão sendo tomadas
ao longo do tempo,
refletindo a influência do contexto e dos resultados de decisões anteriores, a
sobreposição do Estado empresário ao Estado regulador aumenta em muito a
complexidade imbricada nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, o que
estimula novas iniciativas governamentais com vistas ao reforço de sua
capacidade de comando e coordenação na área. No início dos anos sessenta,
será criado o Ministério das Minas e Energia, antecipando-se à Eletrobrás que,
aprovada pelo Congresso, será implantada pouco depois. São iniciativas que
exercem forte incentivo para a centralização dos processos de decisão setoriais,
com desdobramentos em duas direções principais, estreitamente interligadas. A
370
primeira tem a ver com a adoção de uma ótica sistêmica na concepção e
implementação dos investimentos em geração e transmissão de energia elétrica.
A segunda se expressa na tendência à federalização da atividade, com a
crescente participação da União na ampliação da capacidade de atendimento do
sistema.
A hegemonia conquistada pelas empresas estatais na atividade
transfere, para a órbita da administração pública, a responsabilidade pela
ampliação da capacidade de atendimento do sistema. Isto requer aportes
crescentes de recursos para o financiamento dos projetos produtivos do setor,
acentuando a importância da eficiência e da eficácia alocativa nas decisões de
investimento na área. Ganha saliência, nesse contexto, o aproveitamento de
oportunidades para ganhos de escala na ampliação da potência instalada do
sistema, potencializadas pelos avanços tecnológicos na geração e na transmissão
de energia elétrica, aprofundando a vertente aberta pela construção da usina de
Furnas. O esforço que será empreendido em tal direção terá como suportes, de
um lado, a interligação operacional dos serviços prestados pelas empresas
concessionárias e, de outro, o planejamento integrado da expansão do parque
gerador e das redes de transmissão.
A apropriação eficaz de ganhos de escala potencializados pelas novas
tecnologias de geração e transmissão convergia para a implementação de
projetos de âmbito regional, cuja viabilização supunha romper com um arranjo
organizacional e produtivo de conformação insular, isto é, espacialmente
segmentado, de forma a permitir o intercâmbio de energia entre as empresas.
Aproveitando-se da ampla margem de autonomia decisória que lhe fora conferido
pela ordem autoritária instaurada pelo golpe militar de 64, o Executivo federal
adota uma série de medidas com vistas à interligação operacional do sistema. A
padronização compulsória das frequências utilizadas pelo setor na transmissão e
distribuição de eletricidade, determinada por decreto presidencial em meados dos
anos sessenta, evidencia a disposição governamental de conferir materialidade
ao processo, sinalizando, em simultâneo, a amplitude da integração pretendida,
371
de dimensão nacional. O impulso decisivo à integração das atividades do sistema,
contudo, somente irá ocorrer na década seguinte, em conexão com a decisão de
se implantar a usina de Itaipu. Dado o porte do empreendimento, sua viabilização
estava condicionada à prévia definição de esquemas operacionais com vistas à
transmissão e distribuição da energia a ser gerada. Os princípios, critérios e
regras adotados na moldagem dos acordos celebrados com tal propósito,
envolvendo as principais empresas concessionárias que atuavam na região
Centro-Sul do país, vão servir de referência para o ordenamento da dinâmica da
operação interligada, adquirindo caráter institucionalizado por força de legislação
promulgada, mais uma vez, por iniciativa da administração federal.
A consolidação dos processos de estatização e de interligação
operacional das atividades do sistema enseja e estimula uma mudança qualitativa
na sistemática do planejamento setorial. Adotada desde os anos cinquenta como
instrumento de racionalização e incremento da eficiência dos investimentos
realizados na área, a ação planejadora deixa de ter caráter indicativo para
assumir feições normativas. O ponto de inflexão será dado, também aqui, pela
decisão de implantar a usina de Itaipu, que repercute sobre os planos de
expansão das principais empresas setoriais, exigindo uma revisão geral dos
projetos neles programados, de forma a evitar sobreinvestimentos na ampliação
do parque gerador.
Proposto pela Eletrobrás na primeira metade dos anos
setenta, o Plano 90 assinala a efetiva transição para a prevalência de uma
racionalidade sistêmica, onde as necessidades de investimento refletem
projeções de crescimento da demanda e a seleção dos projetos se faz com base
nos custos marginais de longo prazo.
As regras do jogo estabelecidas para o funcionamento da operação
interligada e os princípios e critérios decisórios instituídos pela sistemática de
planejamento setorial convergem no sentido de forjarem especializações
produtivas, ainda que informais, acentuando o papel das empresas federais na
adequação da capacidade de atendimento do sistema, em detrimento das
concessionárias estaduais. De acordo com tal especialização produtiva, as ações
372
das primeiras se concentravam prioritariamente nos segmentos de geração e de
transmissão, deixando às últimas, como campo preferencial de atuação, o
segmento de distribuição. A programação proposta no Plano 90, anteriormente
mencionado, ilustra bem a questão, contemplando basicamente investimentos em
mega empreendimentos hidrelétricos, como as usinas de Itaparica e Tucuruí, e
em linhas troncais de transmissão, em sua ampla maioria sob responsabilidade
das empresas federais controladas pela holding Eletrobrás.
Nos anos setenta, a conjunção do ciclo expansivo experimentado pela
economia brasileira com as facilidades encontradas pelo país no acesso a
financiamentos internacionais favorece o desempenho das atividades elétricas,
que cresce a taxas extremamente elevadas no período. Mudanças nos contextos
interno e externo ocorridas ao final da década, contudo, afetam em profundidade
a dinâmica de funcionamento do sistema, repercutindo sobre sua eficiência e
eficácia alocativa. A instauração de um ciclo recessivo no início dos anos oitenta
não apenas leva a erros de planejamento, traduzidos em metas produtivas
sobrestimadas, como influencia o comportamento das receitas operacionais das
empresas energéticas, reduzindo a rentabilidade do setor, com efeitos conexos
sobre sua capacidade de inversão. A instabilidade do mercado financeiro
internacional, no rastro do segundo choque do petróleo, e seu relativo fechamento
à concessão de novos empréstimos à economia brasileira, por sua vez,
amplificam os problemas ocasionados pela perda de rentabilidade no tocante ao
financiamento das obras programadas nas áreas de geração e transmissão. A
esses distúrbios vem se somar a elevação dos custos dos projetos advinda das
alterações que se processam no enquadramento político e institucional dos
impactos sócio-ambientais provocados pelos empreendimentos setoriais.
A deterioração econômica e financeira do setor catalisada pela
configuração adversa assumida pelo contexto eleva em muito a taxa de conflitos
interna ao sistema, criando dificuldades adicionais à coordenação da operação
interligada e ao efetivo cumprimento das decisões de investimento tomadas no
âmbito da sistemática planejadora. Inadimplência nos contratos de compra e
373
venda de energia envolvendo empresas distribuidoras e geradoras, de um lado, e
paralisação ou atraso na execução de obras programadas, de outro, surgem
como sintomas mais evidentes do relativo esgotamento de um modelo
organizacional fundado na centralização decisória e na estatização produtiva,
construído a partir dos anos sessenta. O Plano de Recuperação Setorial (PRS),
lançado em 1985 pela Eletrobrás, espelha o reconhecimento governamental da
perda da capacidade de se definir programas e prioridades de investimento para
um horizonte temporal de longo prazo que não ficassem expostos ao risco da
obsolescência precoce. Além de reduzir o horizonte temporal para apenas quatro
anos, tal plano restringia-se à aplicação de recursos que se presumia estarem
previamente assegurados, definindo uma espécie de programação mínima a ser
executada. Essa alteração na concepção do planejamento, contudo, não produz
os resultados esperados, defrontando-se também com problemas de ordem
financeira e operacional em sua implementação. Revisto em 1986, o PRS é
praticamente abandonado no ano seguinte, explicitando de vez o esgarçamento
do padrão de financiamento e a deterioração da capacidade técnica e de
comando que sustentaram a vigorosa expansão do sistema a partir dos anos
setenta.
A gravidade da crise que se instaura nos serviços de eletricidade leva a
Eletrobrás a promover uma ampla discussão sobre os rumos do desenvolvimento
do sistema, cujo resultado final será a elaboração da proposta de Revisão
Institucional do Setor Elétrico (REVISE). Iniciado em 1987, o processo envolveu a
formação de grupos temáticos focados em dimensões basilares ao funcionamento
da atividade, englobando questões econômico-financeiras, organizacionais e
institucionais. Os relatórios produzidos, contudo, acabaram se concentrando na
realização de um diagnóstico dos principais problemas enfrentados pelo setor,
pouco avançando no sentido da proposição de medidas concretas com vistas à
recuperação de sua eficiência técnica e econômica e de sua eficácia operacional.
Há boas razões para que isso tenha ocorrido, que vão além dos constrangimentos
derivados da diversidade de interesses incrustrados no sistema, colocando em
374
pólos opostos empresas federais e concessionárias estaduais (Camozzato, 1995,
depoimento). O ambiente de incertezas, advindo da acentuada instabilidade
macroeconômica e do reordenamento jurídico-institucional aberto pelo processo
constituinte, dificultava enormemente qualquer esforço mais substantivo de
elencar as alternativas factíveis de “saídas” para os problemas setoriais e,
sobretudo, de desenvolver prognósticos consistentes sobre seus desdobramentos
intertemporais e suas possibilidades de êxito.
A paralisia decisória relativa à proposição de medidas concretas para a
recuperação dos níveis de eficiência técnica e econômica da atividade se estende
até o final dos anos oitenta, trazendo, como subproduto, o agravamento da crise
financeira e institucional do setor. Essa situação começa a ser alterada com a
ascensão de Fernando Collor de Mello à Presidência da República, introduzindo
no país a agenda das reformas estruturais orientadas para o mercado, que
haviam se tornado hegemônicas no plano internacional, especialmente na Europa
Oriental e na América Latina. Trata-se de uma agenda política onde as questões
essenciais são a estabilização do ambiente macroeconômico conjugada à
redução dos constrangimentos à atuação do capital, no suposto implícito de que a
expansão e modernização produtiva resultará da dinâmica alocativa do mercado.
São questões que convergem para a reforma do Estado, tendo como eixos
principais a promoção de um esforço de ajuste fiscal associado a um programa de
privatização, com vistas à estabilização, e a adoção de regras do jogo
competitivas, como passo essencial à expansão da produção e à melhoria da
eficiência econômica, num receituário de cunho universalista consagrado pelo
denominado “Consenso de Washington”.
Os anos noventa assinalam, portanto, a abertura de um novo estágio
na trajetória do desenvolvimento das atividades elétricas, onde as decisões
cruciais para a dinâmica de funcionamento do sistema vão se subordinar às
diretrizes gerais e às prioridades estabelecidas na agenda das reformas
econômicas, institucionais e administrativas que serão empreendidas pelo
governo. Uma importante implicação dessa subordinação é, obviamente, a
375
consolidação do esvaziamento do papel da Eletrobrás enquanto agência
responsável pela formulação e implementação da política setorial, que começara
a se manifestar ao final dos anos setenta, junto com a perda de sua autonomia
decisória na fixação das tarifas de energia. Outra implicação, não menos
importante, tem a ver com o incrementalismo das mudanças que irão se
processar nos arranjos organizacionais e produtivos do setor, refletindo a
estratégia gradualista adotada na condução das políticas substantivas que
conformam a agenda das reformas, expostas às contingências do contexto e
marcadas por alto grau de imprevisibilidade.
Num atividade altamente estatizada e que enfrentava graves
estrangulamentos financeiros, a privatização emerge como principal instrumento
das reformas setoriais, em torno da qual tendem a se articular as decisões
governamentais relativas ao sistema. A disposição de avançar nessa direção se
manifesta, de imediato, no âmbito da reestruturação administrativa empreendida
pelo Governo Collor em seu primeiro ano de gestão, quando promove um amplo
programa de demissões que abrange as várias empresas energéticas federais. O
próximo movimento será a inclusão de tais empresas no Programa Nacional de
Desestatização (PND), lançado em 1992, numa tentativa que não teve, e
dificilmente poderia ter, resultados satisfatórios. A transferência de qualquer
atividade produtiva desempenhada pelo Estado para o domínio da iniciativa
privada
supõe
necessariamente
torná-la
remuneradora
e
assegurar-lhe
perspectivas favoráveis de expansão. De um lado, a redução do quadro de
funcionários não assegurava, por si só, a recuperação da capacidade técnica e
econômica nem a rentabilidade operacional das empresas incluídas no programa.
Além disso, os dispositivos que regulavam a operação interligada, definidas em
função de um sistema estatizado, conferiam margem relativa estreita de
autonomia decisória às empresas, tornando-as pouco atraentes para a iniciativa
privada. De outro lado, a instabilidade político-institucional do período, que
culminou na destituição de Collor da Presidência da República, aumentava em
muito os riscos e as incertezas nas decisões de investimento, refletindo-se nas
376
preferências e condutas estratégicas dos agentes econômicos potencialmente
interessados em entrar na atividade.
O propósito de levar em frente a privatização do sistema será mantido
pelos governos subsequentes, que imprimem um direcionamento mais objetivo e
consistente às ações com vistas à sua materialização. De menor complexidade
técnica e operacional, o segmento de distribuição é priorizado como ponto de
partida para o encaminhamento do processo. O passo decisivo em tal direção
ocorre em 1993, com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei nº. 8.631,
também conhecida como Lei Elizeu Rezende, que introduz mudanças
substantivas na institucionalidade do setor. Uma primeira medida consiste na
promoção de uma espécie de saneamento financeiro do sistema, eliminando,
através de um amplo encontro contábil de contas, a inadimplência acumulada no
âmbito da operação interligada, cujo subproduto será a absorção, pelo Tesouro
Nacional, de uma dívida em torno de US$ 20 bilhões (Rosa et al., 1998; Castello
Branco, 1996). Outra medida de forte impacto é a revisão da sistemática tarifária,
com o intuito não apenas de tornar a atividade rentável mas de recuperar sua
capacidade de autofinanciamento, eliminando
a necessidade do aporte de
recursos de origem orçamentária. A nova legislação extingue a equalização das
tarifas, introduzida em meados dos anos setenta, e promove uma substancial
elevação dos níveis de preços cobrados ao consumidor, que passam a ser
fixados em função dos custos de prestação do serviço, com reajustamentos
periódicos balizados no comportamento da inflação. Por último, estabelece a
obrigatoriedade da celebração de contratos de compra e venda de eletricidade
entre empresas distribuidoras e geradoras, de forma a assegurar a regularidade
no suprimento, e define regras para a determinação do valor da energia a ser
fornecida, o que contribui para rebaixar os custos de transação.
Saneamento financeiro, regras tarifárias remuneradoras ao capital,
garantia de fornecimento de energia e mercados cativos se combinam para tornar
as empresas distribuidoras de energia elétrica atraentes para os investidores
privados. Alteram-se, em consequência, as perspectivas de êxito nas ações de
377
privatização, que, sem sucesso no Governo Collor, serão retomadas com vigor no
Governo Fernando Henrique Cardoso, quando são adotadas uma série de
medidas com vistas a influenciar as preferências e as condutas estratégicas dos
atores afetos à questão. De um lado, busca-se obter a adesão dos governos
estaduais ao processo, concedendo-lhes vários benefícios e vantagens nos
campos fiscal e financeiro, através do Programa de Estímulo à Privatização
Estadual (PEPE), instituído pelo BNDES. De outro, adota-se postura similar em
relação aos potenciais interessados na aquisição das empresas, através da
criação, pelo mesmo BNDES, de linhas específicas de financiamento com tal
finalidade.
Refletindo os estímulos das iniciativas governamentais, que a
transformam numa espécie de fim em si mesmo, a privatização das atividades de
distribuição avança de forma acelerada. O processo se inicia com as vendas das
duas empresas distribuidoras controladas pela Eletrobrás, a Escelsa e a Light,
ocorridas, respectivamente, em 1995 e em 1996, estendendo-se, em seguida, às
concessionárias estaduais. Em 1997, oito empresas pertencentes aos governos
dos estados são transferidas para a iniciativa privada, num movimento que terá
continuidade nos anos subsequentes, espraiando-se por quase todas as unidades
da Federação. Desse esforço de privatização empreendido pelo governo federal
resulta uma radical reconfiguração na estrutura de propriedade na área, que
passa, num curto intervalo de tempo, para o domínio do capital.
Nos segmentos de geração e transmissão, a privatização se defrontava
com questões de maior complexidade técnica e operacional, num processo que
se antecipava de timing mais lento. Empenhado em obter respostas rápidas em
seus intentos de reduzir o intervencionismo estatal na área, o governo federal
opta pela adoção de uma estratégia distinta daquela desenhada para o segmento
de distribuição. Como a privatização não era factível no curto prazo, as ações em
tal direção são precedidas de medidas voltadas a estimular a realização de
investimentos da iniciativa privada em projetos de geração e transmissão. Isto
supunha criar condições para a entrada e a operação de novos agentes nesses
378
segmentos, até então sob monopólio estatal, o que passava por mudanças na
institucionalidade vigente.
A adequação das regras do jogo se inicia ainda em 1993, com as
promulgações dos Decreto nºs. 915 e 1.009, ambos de iniciativa do Executivo
federal. O primeiro autoriza a formação de consórcios de autoprodutores e
concessionárias de serviços de eletricidade com vistas à implantação de projetos
de geração, dando a partida para a flexibilização dos dispositivos institucionais
que regulavam a entrada na atividade. O segundo cria o Sistema Nacional de
Transmissão de Energia Elétrica (SINTREL), com o objetivo de assegurar o livre
acesso à rede transmissora, viabilizando o escoamento da produção dos projetos
geradores implantados pelos consórcios que viessem a ser constituídos. As
oportunidades para a atuação do capital, abertas pela autorização ao
estabelecimento de parcerias com as empresas públicas, vão ser fortemente
alargadas pela Lei nº. 9.074, editada em 1995. Dentre suas principais inovações
incluem-se a reconfiguração do perfil dos agentes setoriais, com a introdução das
figuras do autoprodutor e do produtor independente, e a adoção de novos
procedimentos, de concepção competitiva, na concessão de aproveitamentos
hidrelétricos e de implantação de linhas de transmissão, que passam a ser objeto
de licitação. Refletindo os efeitos desse conjunto de medidas, quando o processo
de privatização das empresas geradoras é efetivamente deflagrado, o que se dá
nos anos finais da década, a iniciativa privada já se encontra estabelecida na
área, seja através de consórcios ou de investimentos realizados por produtores
independentes e autoprodutores.
O desmonte do Estado empresário e a consequente reestruturação dos
arranjos organizacionais e produtivos setoriais promovidos pelo poder público
através da privatização, da flexibilização das regras de entrada na atividade e do
fomento à competição na implantação de novos projetos de investimento e na
prestação do serviço não se fazem acompanhar de um processo simultâneo e
articulado de reconstrução do Estado regulador. É emblemático desse
descompasso o fato de a proposta de criação da Agência Nacional de Energia
379
Elétrica (ANEEL), com as atribuições de responder pela regulação e fiscalização
dos serviços de eletricidade e de desempenhar o papel de poder concedente da
exploração de tais serviços – objeto do Projeto de Lei nº. 1.699 – ter sido
encaminhada pelo governo federal à apreciação do Congresso apenas em abril
de 1996. Constituída formalmente no ano seguinte, o novo órgão se estrutura em
concomitância ao avanço acelerado da iniciativa privada nos diversos segmentos
da atividade, numa circunstância onde uma série de questões necessárias ao
desempenho eficiente de suas funções ainda não estava regulamentada.
A entrada de novos agentes na área sem a prévia reconfiguração das
regras do jogo tende a se refletir na formação de suas preferências e nas
estratégias que adotam, com efeitos contextuais importantes sobre os cursos de
ação abertos à consideração do governo na condução das reformas setoriais.
Primeiro, a lógica capitalista dos novos controladores das concessionárias
privatizadas aponta na direção de condutas estratégicas voltadas a acelerar a
amortização
dos
investimentos
realizados,
explorando
ao
máximo
as
oportunidades para promover aumentos nas tarifas de energia, de forma a elevar
a taxa de retorno dos recursos aplicados, com consequências perversas para a
sociedade. Segundo, a ampliação da diversidade de interesses incrustrados no
sistema cria dificuldades adicionais à atividade reformista, aumentando a
complexidade e as incertezas na viabilização das decisões tomadas, qualquer
que seja seu conteúdo. Terceiro, as mudanças propostas ficam expostas à reação
de um conjunto também ampliado de interesses, reduzindo o grau de
previsibilidade quanto aos resultados do processo. Na ausência de um arranjo
institucional sólido e consistente, capaz de proporcionar um meio associativo
favorável ao desempenho das funções de regulação e controle e fiscalização da
prestação do serviço, a transição em curso para uma dinâmica de mercado não
irá conduzir necessariamente aos propósitos de melhoria da eficiência
operacional, com redução de custos em prol do consumidor final, visados pelo
governo. Ao contrário, há um risco não negligenciável de que as “imperfeições” e
as “falhas” da atuação empresarial do Estado possam meramente dar lugar a
380
“imperfeições” e “falhas” do mercado, trazendo de volta problemas como práticas
monopolistas, concorrência predatória e riscos de estrangulamento no suprimento
energético.
381
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