Combate à desertificação - Base Integradora da TV Escola

Transcrição

Combate à desertificação - Base Integradora da TV Escola
SUMÁRIO
PROPOSTA PEDAGÓGICA ......................................................................................................................... 03
José Roberto de Lima e Ruth Maria Bianchini de Quadros
PGM 1
ANO INTERNACIONAL DOS DESERTOS E DESERTIFICAÇÃO............................................................... 07
Ano Internacional dos Desertos e Desertificação: oportunidade de aumento do conhecimento sobre a
desertificação
José Roberto de Lima e Ruth Maria Bianchini de Quadros
PGM 2
DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO PAN-BRASIL........................................................................ 33
Desafios para a implementação do PAN-Brasil: gestão dos recursos naturais e desenvolvimento
socioeconômico
José Roberto de Lima e Ruth Maria Bianchini de Quadros
PGM 3
POTENCIALIDADES DA PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL ................... 42
Potencialidades da produção sustentável e preservação ambiental nas áreas suscetíveis ao processo de
desertificação
Daniel Duarte Pereira
PGM 4
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS DO NORDESTE BRASILEIRO ............................................................... 51
Nordeste: uma sofisticada criação de identidade regional, homogeneizando o diverso
Durval Muni z de Al buquerque J úni or
PGM 5
EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA ............................................................................................................ 61
Educação Contextualizada e o tema da desertificação
Edneida Cavalcanti
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
2 .
PROPOSTA PEDAGÓGICA
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
José Roberto de Lima1
Ruth Maria Bianchini de Quadros2
A desertificação é um dos mais alarmantes processos de degradação ambiental do mundo,
causa riscos que contribuem para a insegurança alimentar, a fome e a pobreza, e que podem
aumentar as tensões sociais, econômicas e políticas que, por sua vez, causam conflitos, mais
pobreza e degradação da terra. O grau de urgência em tratar desses assuntos levou a
Organização das Nações Unidas a proclamar 2006 como o Ano Internacional dos Desertos e
Desertificação - AIDD. O objetivo do Ano é apresentar a desertificação como a principal
ameaça à humanidade, reforçada sobre os cenários de mudança climática e perda da
biodiversidade.
O instrumento legal que trata do problema da degradação da terra ou desertificação em áreas
rurais localizadas nas terras secas (climas áridos, semi-áridos e subúmidos secos) é a
Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação – CCD, ratificada por 191
países. Uma das principais obrigações dos países que ratificaram a CCD é elaborar Planos de
Ação Nacionais para combater a desertificação. O Brasil constituiu o Plano de Ação
Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos efeitos da Seca, em dezembro de
2004, o PAN-Brasil. Este Plano procurou integrar ações e programas dos vários ministérios,
considerando as demandas de governos locais e da sociedade e, portanto, o pressuposto da
democracia participativa.
Devido às fortes ligações entre os assuntos de mudanças climáticas, perda de biodiversidade
e desertificação, a implementação de ações conjuntas entre as Convenções de Combate à
Desertificação, Mudanças Climáticas e Biodiversidade pode produzir múltiplos benefícios,
não só porque evita que ações duplicadas e setoriais sejam desenvolvidas, mas também
porque propicia o estudo multidisciplinar e a integração entre os vários programas
ministeriais, bem como entre os governos estaduais e a sociedade civil organizada.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
3 .
A educação é o melhor meio, senão o único, para promover a conscientização e a
compreensão dos problemas que afetam o meio ambiente. Essa educação há de fomentar a
elaboração de comportamentos positivos, com respeito ao meio ambiente e à utilização dos
seus recursos pelas nações (DIAS, 2004).
O desafio para a educação e, especificamente, para a educação ambiental, é de motivar o
indivíduo a agir de modo efetivo na resolução dos problemas.
Temas abordados na série Combate à desertificação: um desafio para a
escola, que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola
de 5 a 9 de junho de 2006:
PGM 1 – Ano Internacional dos Desertos e Desertificação
O programa 1 objetiva apresentar a desertificação e a seca como problemas de dimensão
global que afetam o desenvolvimento sustentável em diversas partes do mundo e que,
portanto, merecem uma atenção conjunta da comunidade internacional para combatê-los
e/ou mitigá-los. Por essa razão, identificar os fatores que contribuem para a desertificação e
traçar medidas de ordem prática para amenizá-los ou saná-los é a proposta da Convenção de
Combate à Desertificação, que corporifica o enfrentamento dos problemas de degradação
ambiental. Neste ano, 2006, Ano Internacional dos Desertos e Desertificação, os discursos se
integram com vistas à discussão de um Programa de Educação específico para as Áreas
Suscetíveis à Desertificação.
PGM 2 – Desafios para a implementação do PAN-Brasil
O programa 2 da série exporá os quatro eixos temáticos do Programa de Ação Nacional de
Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca – PAN-Brasil, que preconizam
um conjunto de ações focadas (1) na educação e na reforma agrária; (2) na garantia do
manejo sustentável dos recursos naturais e produtividade; (3) na melhoria da gestão
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
4 .
ambiental; (4) na gestão democrática (participação da sociedade civil) e fortalecimento
institucional ligado às áreas prioritárias da Convenção das Nações Unidas de Combate à
Desertificação (CCD) – (Declaração – decisão 8/COP.4), objetivando uma articulação desses
eixos, discutindo-os de modo transversal e multidisciplinar.
PGM 3 – Potencialidades da produção sustentável e preservação ambiental
O programa 3 visa à discussão sobre as abordagens alternativas para a construção de um
modelo sustentável para o semi-árido (núcleos produtivos locais, técnicas agroflorestais,
recursos não madeireiros – apicultura, plantas medicinais, artesanato – energias alternativas,
ecoturismo), principalmente, para a população rural difusa. E, do mesmo modo, procura
ressaltar a importância de o cidadão atuar na busca e no entendimento dessas alternativas.
PGM 4 – Aspectos socioculturais do Nordeste brasileiro
O programa 4 abordará os aspectos socioculturais da região Nordeste, ressaltando as
questões de gênero, variação multicultural e étnica. A idéia é evidenciar a educação cultural
como um investimento valioso na participação de homens e mulheres em suas comunidades
específicas e, ao mesmo tempo, nas interações com comunidades culturalmente distintas. A
partir dessa educação multicultural, as questões econômicas/produtivas e, talvez, políticas
constituem tópicos para repensar a caracterização do Nordeste sob o ponto de vista
estereotipado da seca.
PGM 5- Educação Contextualizada
O programa 5 objetiva acentuar o papel da educação na promoção de uma conscientização
dos problemas da desertificação e oportunizar a formação adequada para o uso e a gestão dos
recursos naturais. Assim, temas como: interdisciplinaridade, participação dos diferentes
segmentos sociais, novas práticas pedagógicas, educação em tempo integral, material
didático adequado, organização social e comunitária, formação política, cidadania ecológica
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
5 .
permeiam as discussões suscitadas nesse programa. O foco será uma Educação
Contextualizada, em que planejamento, investimento e atuação sejam princípios para uma
convivência com o semi-árido, desmistificando uma visão da seca e deixando para trás
atitudes emergenciais e assistencialistas para o seu combate.
Referências Bibliográficas
DIAS, G. F. Educação Ambiental: princípios e práticas. 9. ed. São Paulo: Gaia, 2004.
Sites para consulta:
http://www.mma.gov.br
http://desertificacao.cnrh-srh.gov.br
Notas:
Coordenador da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação. Secretaria de
Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultor desta série.
2
Técnica especializada da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação.
Secretaria de Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultora
desta série.
PROGRAMA 1
ANO INTERNACIONAL DOS DESERTOS E DESERTIFICAÇÃO
Ano Internacional dos Desertos e Desertificação: oportunidade de
aumento do conhecimento sobre a desertificação
José Roberto de Lima 1
Ruth Maria Bianchini de Quadros 2
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
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1. Objetivos do Ano Internacional dos Desertos e Desertificação
A desertificação é um dos mais alarmantes processos de degradação ambiental do mundo. A
cada ano, a desertificação e a seca causam perdas da ordem de 42 bilhões de dólares na
agricultura. Os riscos da desertificação são substanciais e claros. Eles contribuem para a
insegurança alimentar, a fome e a pobreza, e podem aumentar as tensões sociais, econômicas
e políticas que, por sua vez, causam conflitos, mais pobreza e degradação da terra. O grau de
urgência em tratar desses assuntos levou as Nações Unidas a proclamar 2006 como o Ano
Internacional dos Desertos e Desertificação - AIDD.
O objetivo primordial do Ano é apresentar a desertificação como a principal ameaça à
humanidade, reforçada sobre os cenários de mudança climática e perda da biodiversidade.
Durante a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+10), realizada em 2002,
em Joanesburgo, a CCD foi reconhecida como o instrumento fundamental para erradicar a
pobreza nas áreas rurais das terras secas.
A Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação – CCD, ratificada por 191
países, é o instrumento legal que trata do problema da degradação da terra ou desertificação
em áreas rurais localizadas nas terras secas (climas áridos, semi-áridos e subúmidos secos), as
quais cobrem cerca de 5,1 bilhões de hectares, em todos os continentes, com exceção da
Antártica, dos quais mais de 1 bilhão estão sujeitos à desertificação, e atingem mais de 2
bilhões de pessoas. De acordo com dados da UNEP (1997), cerca de 22,27% desta área estão
degradados (Tabela 1). Entretanto, quando se incluem as pastagens com vegetação degradada
(2,57 bilhões de hectares), este valor passa para 72% (UNEP, 1991a).
TABELA 1 – CAUSAS ANTRÓPICAS DA DEGRADAÇÃO DA TERRA
África
Ásia
Oceania
Europa América do América do
Norte
Total
Sul
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Causa
------------------------------ Milhões de hectares ---------------------------------------
Desmatamento
18.6
115.5
4.2
38.9
4.3
32.2
213,70
Superpastoreio
184.6
188.8
78.5
41.3
27.7
26.2
547,10
Agricultura
62.2
96.7
4.8
18.3
41.4
11.6
235,00
Sobreexploração
54.0
42.3
2.0
2.0
6.1
9.1
115,50
Bio-industrial
0.0
1.0
0.0
0.9
0.0
0.0
1,90
Total degradado
319.4
370.3
87.5
99.4
79.5
79.1
1.035,20
Área total
1286,0
1671,8
663,3
299,6
732,4
513,0
5.166,7
% da Área total
24,84
22,15
13,19
33,18
10,85
15,42
22,27
Fonte: UNEP (1997).
Cerca de 2 bilhões de hectares de solo, o equivalente a 15% da superfície terrestre (área maior
que os Estados Unidos e México juntos) têm sido degradados por atividades humanas.
A região da América Latina e Caribe tem a maior reserva de terra arável do mundo, estimada
em 576 milhões de hectares (30% do território). A região também contém 16% do total de
1,9 bilhões de hectares degradados, ficando atrás apenas da Ásia e da África.
Durante a 7ª Conferência das Partes da CCD, ocorrida em outubro de 2005, no Quênia,
África, a Sra. Wangari Maathai, Prêmio Nobel da Paz em 2004, enfatizou que “se nós
queremos um mundo pacífico, nós temos que manejar nosso meio ambiente de maneira
responsável, sustentável e eqüitativamente”. Ressaltou a importância dos 3R (reduzir, reusar
e reciclar) e sugeriu a adoção de um quarto R “reparar os recursos”.
Com a adoção, em 1994, da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação
(CCD), o assunto da desertificação ganhou reconhecimento, embora em menor escala quando
comparado com a perda da diversidade e as mudanças climáticas (assunto das Convenções de
Biodiversidade e Mudanças Climáticas).
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
8 .
A desertificação é um desafio global, assim como o são a mudança climática e a perda da
biodiversidade. Entretanto, em relação à verdadeira extensão e à magnitude do problema, a
Desertificação recebe ainda pouca atenção e é pouco entendida pela maior parte das pessoas.
Para alcançar uma estratégia comum para a celebração do AIDD, é importante um esforço
concentrado em todos os níveis para elevar a consciência sobre a Desertificação e sobre a
mitigação dos seus efeitos, de maneira que a população que vive nas terras secas tenha
condições de vida dignas.
Os países que ratificaram a CCD têm como uma de suas principais obrigações elaborarem
Planos de Ação Nacionais para combater a desertificação. O Brasil elaborou o Programa de
Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos efeitos da Seca: PAN-Brasil, em
dezembro de 2004.
De acordo com as diretrizes do Ministério do Meio Ambiente – política ambiental integrada;
participação e controle social; desenvolvimento sustentável; e fortalecimento do Sistema
Nacional de Meio Ambiente – o PAN-Brasil procurou integrar ações e programas dos vários
ministérios, considerando as demandas de governos locais e da sociedade e, portanto, o
pressuposto da democracia participativa.
No PAN-Brasil ficou definido que as áreas suscetíveis à Desertificação no Brasil – ASD
compreendem 1.204 municípios dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais, os quais abrangem uma superfície de
1.130.790,53 km², dos quais 710.437,30 km² (62,83% do total) apresentam clima semi-árido e
420.258,80 km² (37,17% do total) subúmido seco (Figura 1).
Fazem parte também da área de ação do PAN-Brasil 284 municípios das áreas do entorno das
ASD, abrangendo municípios de nove estados citados e de mais dois, ou seja, Maranhão e
Espírito Santo.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
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No total, as ASD cobrem uma superfície de 1.338.076,0 km², onde em 2000 viviam quase
31,6 milhões de habitantes, em um total de 1.488 municípios, nos nove estados do Nordeste
brasileiro, mais municípios dos estados de Espírito Santo e Minas Gerais, sendo que 19,6
milhões ocupavam a área rural (Tabela 2). Do total de 31,6 milhões de pessoas, 14,2 milhões
(45%) habitavam em áreas semi-áridas, 8,2 milhões em áreas subúmidas secas (26%) e 9,2
milhões nas áreas do entorno (29%).
FIGURA 1 – ÁREAS SUSCETÍVEIS À DESERTIFICAÇÃO
TABELA 2 – NÚMERO DE MUNICÍPIOS DAS ÁREAS SUSCETÍVEIS À
DESERTIFICAÇÃO – ASD, POR ESTADO
Estados
Áreas Semi-áridas Áreas Subúmidas
Áreas do entorno
Total*
Secas
Maranhão
-
1
26
27
Piauí
96
48
72
216
Ceará
105
41
38
184
Rio Grande do
143
13
3
159
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
10 .
Estados
Áreas Semi-áridas Áreas Subúmidas
Áreas do entorno
Total*
Secas
Norte
Paraíba
150
47
11
208
Pernambuco
90
39
6
135
Alagoas
33
13
8
54
Sergipe
6
28
14
48
Bahia
159
109
23
291
Minas Gerais
22
61
59
142
Espírito Santo
-
-
24
24
TOTAL
804
400
284
1.488
Fonte: MMA, 2004; * Quadro territorial vigente em 25/04/2006 – IBGE, malha municipal
digital, 2001.
1.1. Conceituação básica
De acordo com a definição da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação CCD, da qual o Brasil é signatário desde 1997, desertificação é a degradação da terra em
zonas áridas, semi-áridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, incluindo variações
climáticas e atividades humanas (UNCCD, 1999). A degradação da terra ocorre em toda
parte, mas somente é definida como “desertificação” quando ocorre em “terras secas” (climas
áridos, semi-áridos e subúmidos secos).
A CCD adotou a definição que atribui as causas da desertificação tanto a variações climáticas
como a atividades humanas. Em adição a isso, a desertificação é causada por uma interação
complexa de fatores geo-ecológicos, políticos, sociais, culturais e econômicos.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
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As áreas suscetíveis à desertificação sofrem recorrentes períodos de secas e enchentes que
abalam as estruturas de vida de sua população. E as causas da desertificação podem ser
naturais ou antropogênicas, conforme a definição da CCD.
Essas áreas têm significantes restrições ambientais, que são associadas com aridez,
variabilidade de chuvas e restrições pedológicas. Como a água é freqüentemente o primeiro
fator limitante sobre a produtividade biológica, as terras secas têm, relativamente, uma
condição marginal para o uso e para a ocupação humana. Esta baixa capacidade dos recursos
é freqüentemente exacerbada pelo uso insustentável da terra, resultante de práticas
relacionadas a fatores de pressão e institucionais (Hassan e Dregne, 1997).
Vinte anos antes de a CCD ter sido ratificada pelo Brasil, pesquisadores brasileiros já
escreviam sobre o problema, como Aziz Ab’Saber, Vasconcelos Sobrinho e Guimarães
Duque e, mais recentemente, José Bueno Conti. Ab’Saber (1977) conceituou desertificação
na visão geomorfológica, enquanto os demais em uma visão mais ecológica e/ou climática.
Sampaio et al. (2003) fizeram uma análise dos conceitos de desertificação e discutiram os
principais aspectos da desertificação no Brasil.
Muitos outros termos vieram a ser utilizados para denominar processos de degradação
ambiental, além das definições dadas pela Convenção de Combate à Desertificação, como:
I - Desertificação: a degradação da terra em áreas de climas áridos, semi-áridos e subúmidos
secos, resultante de vários fatores, incluindo variações climáticas e atividades humanas
(UNCCD, 1999).
II – Degradação da terra: é a redução ou perda da produtividade econômica ou biológica e
da complexidade dos ecossistemas, causada pela erosão do solo (pelo vento ou chuva), pela
deterioração das propriedades físicas, químicas e biológicas do solo e pela perda ou redução
da cobertura vegetal (UNCCD, 1999).
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
12 .
III – Climas áridos, semi-áridos e subúmidos secos: significam aqueles – exceto as regiões
polares e subpolares – nos quais a razão entre a precipitação média anual e a
evapotranspiração média potencial varia de 0,05 a 0,65 (UNCCD, 1999).
IV – Terra: sistema bioprodutivo terrestre que compreende o solo, a vegetação, outras biotas
e os processos hidrológicos e ecológicos que operam dentro do sistema;
V – Desertificação climática ou natural: corresponde à redução progressiva das chuvas,
determinada por causas naturais, como, por exemplo: alterações na atividade solar, mudanças
na temperatura de água oceânica, fenômenos geológicos, etc. (Conti, 1998).
VI – Desertificação ecológica ou antrópica: ocorre quando os ecossistemas perdem sua
capacidade de regeneração, verificando-se a rarefação da fauna e a redução da superfície
coberta por vegetação, seguida do empobrecimento dos solos e da salinização. A ação do
homem quase sempre está na origem dessa modalidade de desertificação, através da retirada
predatória em grande escala dos recursos, daí porque é também chamada de desertificação
antrópica (Conti, 1998).
VII – Savanização – substituição de florestas tropicais e subtropicais por savanas
(Aubreville, 1949).
VIII – Desertização: fenômenos socioeconômicos de crescente abandono de um território,
província ou região pela população que o habita, dando como resultado baixas densidades.
Neste caso, a palavra deriva do termo deserto na sua etimologia, significando vazio
demográfico (Suertegaray, 1996).
IX – Arenização: São áreas que apresentam aptidão natural para a ocorrência de processos
erosivos e cuja gênese estaria associada à formação de ravinas que evoluem para voçorocas e
depositam, a jusante, leques arenosos que, associados à evolução das próprias voçorocas
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
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(erosão remontante), dão origem aos areais, já nesta fase impulsionados, também, pela
dinâmica eólica (Suertegaray, 1994; 1996). Ex. Alegrete-RS, Amazônia.
1.2. Tipos de degradação da terra
A degradação da terra implica erosão do solo pela água e pelo vento. Pode ser de três tipos:
física, química e biológica.
O impacto das gotas de chuva, em um solo seco, com baixa densidade de vegetação, ou sem
vegetação, faz com que ele seja removido pela água até os cursos de rios e reservatórios. É a
chamada degradação física do solo.
As unidades de solo que ocorrem no Nordeste semi-árido são dotadas de características físicoquímicas provenientes da interação de seus fatores de formação (clima, material de origem,
relevo, organismos vivos e tempo), sobretudo do clima, sobre a rocha.
A escassez de
umidade e a pouca permanência, ao longo do ano, da água no solo sob uma condição de
temperatura elevada produz baixo nível de decomposição e elevada desagregação mecânica
do solo, o que contribui para originar solos rasos e problemáticos do ponto de vista agrícola,
pois as reservas minerais ficam contidas nos fragmentos de rocha, provenientes da
desagregação mecânica, em formas não disponíveis para as plantas (LUSTOSA, 2004).
Muitos desses solos são formados a partir de rochas como Gnaisses, Granitos e Migmatitos, é
o chamado Embasamento Cristalino. Os solos formados em cima dessas rochas são rasos e
apresentam pouca capacidade de armazenar água.
Em outras áreas, como no Piauí e no Rio Grande do Norte, há ocorrência de solos mais
profundos, arenosos, com boa capacidade de armazenar água. Estes solos estão localizados
em Bacias Sedimentares. Essas características possibilitam a existência de um grande
suprimento de água subterrânea de boa qualidade e que, pela sua profundidade, está
totalmente protegida da evaporação. Por outro lado, estes solos são bastante suscetíveis à
erosão.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
14 .
Associada à degradação física do solo, está a degradação biológica, pois junto com as
partículas de solo erodidas, pelo impacto das gotas de chuva, perdem-se quantidades
significativas de matéria orgânica e minerais. Se esta tendência puder ser revertida, um
considerável potencial existe para o seqüestro de carbono estocado nos solos e na cobertura
vegetal.
O terceiro tipo de degradação da terra é a degradação química, causada pelo acúmulo de sais
na superfície do solo, devido tanto às próprias características naturais dos solos como às
elevadas taxas de evapotranspiração.
1.3. Conseqüências da degradação da terra
Além de diminuir a produtividade da terra, a erosão dos solos também causa o aumento das
taxas de assoreamento de rios e represas, e aumenta o risco de enchentes.
Em 1992, a Cúpula da Terra (Rio-92) deu um passo à frente ao trazer os problemas
associados com os recursos da terra. Os capítulos 10, 12, 13 e 14 da Agenda 21 são
relacionados com terra, cobrindo uma abordagem integrada ao manejo dos recursos da terra,
desertificação e seca e agricultura sustentável. Nas questões relativas a desmatamento,
diversidade biológica e recursos hídricos (capítulos 11, 15 e 18), uma ênfase significativa é
dada sobre a terra como um recurso produtivo, a importância do seu uso sustentável, a
poluição ambiental e a conservação.
Durante a Rio-92, os representantes de 180 países concluíram que o modelo de
desenvolvimento econômico vigente é não-sustentável, ou seja, ele é inviável econômica,
social e ecologicamente.
A Agenda 21 tem permanecido como a base primária para uma Política dos Recursos da
Terra, embora um marco adicional de consciência da terra em um nível político maior refere-
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
15 .
se às Metas do Milênio, nas quais são identificadas as ameaças à segurança alimentar global
futura que surgem de problemas relacionados aos recursos de terra.
Frente ao aumento da vulnerabilidade climática, a interação entre o desenvolvimento
econômico e o risco a desastres têm conseqüências diretas sobre várias Metas de
Desenvolvimento do Milênio (Millennium Development Goals – MDG) como: erradicação da
extrema pobreza e fome (MDG 1); combate a HIV/AIDS, malária e outras doenças (MDG 6);
garantia da sustentabilidade ambiental (MDG 7). Já a interação entre desenvolvimento social
e o risco a desastres têm implicações diretas para o encontro da MDG 3, ou seja, promover a
eqüidade de gênero e o fortalecimento (empower) da mulher (UNDP, 2005).
A degradação da terra leva a uma diminuição substancial da capacidade produtiva do solo.
As atividades humanas que contribuem para a degradação da terra incluem:
- práticas agrícolas insustentáveis;
- práticas de manejo do solo e da água inadequadas ou ausentes;
- desmatamento;
- remoção da vegetação natural;
- uso freqüente de maquinário agrícola;
- sobrepastoreio;
- falta de rotação de culturas;
- práticas de irrigação inadequadas.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
16 .
Os desastres naturais, incluindo secas, enchentes e deslizamentos de terra, também
contribuem para a degradação da terra.
A pesquisa realizada em 2002 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2005) e o Ministério do Meio Ambiente revelou que o assoreamento de cursos d’água e a
contaminação do solo estão entre os quatro principais problemas ambientais do país – além de
serem alguns dos mais graves problemas do mundo todo.
Especificamente, com respeito ao controle da erosão e do uso e ocupação do solo, apenas 7%
dos municípios brasileiros detêm, oficialmente, a gestão do recurso solo, embora a mesma
seja feita por aproximadamente 1/4 (entre 24% e 28%). Observa-se, assim, que o número de
municípios que executa ações de controle e gestão de seus recursos florestais e de solos
ultrapassa o daqueles que receberam, por convênio, estas atribuições. Este resultado indica
que é grande a demanda por ações locais de controle e fiscalização de recursos naturais
(IBGE, 2005).
Uma das medidas para combater a degradação da terra, intensificada pelo uso inadequado do
solo, é a utilização de práticas de conservação de solo.
Os métodos de conservação do solo têm sofrido modificações desde a década de 1970. Novas
abordagens incluem métodos biológicos de conservação, integração de conservação hídrica
com proteção do solo, por meio do manejo melhorado das relações solo-planta-água, como o
plantio direito, no qual há uma mínima interferência na estrutura do solo.
Especificamente, nas ASD é comum o uso de barreiras de contenção de erosão feitas de
pneus, pedras soltas e outros materiais.
São os chamados barramentos assoreadores ou
barraginhas secas.
Entretanto, a consolidação dos processos de recuperação e de monitoramento dos recursos
naturais e de reordenamento e ajustes dos espaços agroeconômicos é a base para a
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
17 .
indispensável mudança do padrão tecnológico e um maior acesso aos mercados. As principais
ações iniciais para o sucesso dessa etapa incluem, obrigatoriamente, a reestruturação e o
fortalecimento da rede regional de assistência técnica e extensão rural e formação de redes
locais de apoio (GUIMARÃES FILHO e LOPES, 2001).
A estruturação de redes locais de apoio técnico, com base nos ADR (agentes de
desenvolvimento rural recrutados e treinados nas próprias comunidades), respaldados
tecnicamente por grupos regionais menores, de especialistas (agrônomos, florestais,
veterinários, zootecnistas) nos principais produtos, é uma estratégia recomendada.
O
aproveitamento das redes municipais de escolas rurais, com a sua capilaridade e com seu
corpo docente devidamente qualificado, pode ser a estratégia mais apropriada (e decisiva) de
apoio à formação e à operação de redes locais de apoio técnico. Cada uma dessas escolas
pode se transformar em uma verdadeira “agência local de desenvolvimento rural”
(GUIMARÃES FILHO e LOPES, 2001).
1.4. O deserto é lindo, mas a desertificação não...
O deserto é uma terra de extremos: extremos em temperatura e umidade; enchentes repentinas
e noites frias. Porque ele é um ambiente severo, freqüentemente recebe nomes como “Vale da
Morte”, “Quarto Vazio”, “Lugar sem retorno”.
Os desertos são, usualmente, muito, muito secos. Mesmo nos desertos mais úmidos, sua
precipitação não ultrapassa 250 milímetros por ano, o que caracteriza um clima hiperárido.
Como os desertos normalmente têm pouca vegetação para reter calor, eles esfriam
rapidamente quando o sol se põe, e aquecem depressa depois do nascer do sol.
Freqüentemente, no deserto, a temperatura é bastante alta e pode atingir até 55º C durante o
dia e cair a 0º C à noite.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
18 .
1.4.1. Quais são os tipos de desertos?
Existem vários tipos de desertos, formados por diversas causas. Por exemplo:
–
Desertos subtropicais: centrados em cintos de ar descendente, seco, aproximadamente
entre as latitudes 20º e 30º ao Norte e ao Sul do Equador. Ex.: Deserto do Saara, na África.
–
Desertos de insolação: localizados em interiores continentais, longe de fontes de umidade.
Ex.: Deserto de Gobi, na Mongólia.
–
Desertos de Monção: Monção, nome derivado de uma palavra árabe para "estação",
recorre a um sistema de vento com reversão sazonal pronunciada. Monções se desenvolvem
com respeito a variações de temperatura entre continentes e oceanos. Ex.: Deserto Thar, no
Paquistão.
–
Desertos polares: são áreas com precipitação anual menor que 250 milímetros e uma
temperatura média, durante o mês mais quente, menor do que 10° C. Dunas de areia não são
características proeminentes nestes desertos, mas dunas de neve acontecem comumente em
áreas onde a precipitação é localmente mais abundante. Ex.: partes de Canadá, Antártica,
Groelândia.
–
Zona de Sombra de Chuva (Rainshadow): estes desertos são formados porque cadeias de
montanhas impedem que nuvens ricas em umidade alcancem as áreas atrás delas (sotavento).
Quando o ar se eleva sobre a montanha, a água é precipitada e o ar perde seu conteúdo de
umidade. Ex.: Zonas de Sombra de Chuva têm sido alguns dos principais fatores da formação
de desertos na América do Norte, especialmente nas áreas de influência de Montanhas
Rochosas no oeste dos Estados Unidos.
–
Desertos de altitude média: são causados por padrões de vento e clima, e,
freqüentemente, localizam-se em regiões ao longo dos Trópicos de Câncer e Capricórnio,
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
19 .
entre as latitudes de 30º N e 30º S, onde ocorrem zonas de alta pressão atmosférica. Ex.:
Deserto de Sonorah, no sudoeste da América do Norte, é um deserto típico de altitude média.
Os desertos não são estáticos, eles estão constantemente se expandindo e contraindo com as
mudanças no clima. Há 22 desertos localizados no mundo, dentre eles, o maior deserto
quente do mundo é o deserto do Saara, localizado na África do Norte. Na Figura 2 (página
21) são mostrados os principais desertos do mundo.
FIGURA 2 – LOCALIZAÇÃO DOS DESERTOS
Fonte:
http://www.ufrsd.net/staffwww/stefanl/Geology/deserts/world.htm.
USGS
article
"What is a Desert?"
1.4.2. Existe vida no deserto?
Apesar de ser um ambiente extremo, já foram catalogadas cerca de 5 a 6 mil plantas em
regiões desérticas, as quais são adaptadas ao calor severo e à seca. Essas plantas apresentam
habilidade de coletar e reservar água e características que reduzem a perda de água. Um
exemplo típico de vegetação de deserto é o Cacto.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
20 .
1.4.3. Áreas desérticas são diferentes de áreas em processo de desertificação
Os desertos estão fora do escopo da CCD, já que são ecossistemas relativamente em equilíbrio
ou biomas com baixa produtividade natural e demografia. Mesmo assim, apresentam áreas em
processo de desertificação, ou seja, degradação.
A desertificação implica um processo de degradação ambiental que afeta muitos continentes,
onde vive a maior parte da população pobre mundial.
Enquanto os desertos se caracterizam por climas hiperáridos, as áreas suscetíveis à
desertificação apresentam climas áridos, semi-áridos e subúmidos secos.
A Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação – CCD adotou o Índice de
Aridez para definir o grau de aridez mundial. O Índice de Aridez é obtido pela razão entre a
precipitação média anual e a evapotranspiração potencial média anual, utilizando uma série de
dados de 30 anos.
O Índice de Aridez foi utilizado para o estabelecimento das áreas de risco e a elaboração do
World Atlas of Desertification (UNEP, 1992). A partir deste Atlas foi produzido o Mapa
Global de Zonas Úmidas, com dados de precipitação anual e evapotranspiração potencial
anual do período de 1951 a 1980, o qual é mostrado na Figura 3.
FIGURA 3 – MAPA GLOBAL DAS TERRAS SECAS
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
21 .
FONTE: http://cals.arizona.edu/OALS/Soils/surveys/global.html
2. Relações entre desertificação, mudanças climáticas e biodiversidade
A desertificação está associada com a perda da biodiversidade e contribui para a mudança
global por meio da perda da capacidade de armazenar carbono e pelo aumento do albedo3
(MA, 2005).
Por outro lado, as variações climáticas, a médio e a longo prazo, causam flutuações na
produção hídrica e na capacidade de o ambiente se recuperar. Quando estes efeitos são
recorrentes, a capacidade de o ambiente se recuperar (resiliência) é prejudicada e ele não
retorna aos níveis anteriores, mesmo quando o estresse é removido. Esse efeito causa um
círculo vicioso de degradação, favorecendo os processos de desertificação (MA, 2005).
Muitos mecanismos ligados à desertificação ocorrem na maior parte das terras secas, como:
1.
perda excessiva de solo;
2.
mudança na composição da vegetação e redução da cobertura vegetal;
3.
deterioração da qualidade da água e redução da quantidade disponível; e
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
22 .
4.
mudanças no sistema climático regional (MA, 2005).
A intensidade e o impacto destes mecanismos variam de lugar para lugar e com o tempo. Eles
dependem do nível de aridez e da variação da pressão exercida pelas pessoas sobre os
recursos do ecossistema (MA, 2005).
Por exemplo, a escassez hídrica afeta aproximadamente 2 bilhões de pessoas hoje, e a maior
parte dessas pessoas vive nas terras secas. O aparecimento de epidemias e as perdas agrícolas
causadas por desastres naturais também agravam os problemas, não só ambientais, mas
também socioeconômicos.
A vegetação e sua diversidade estrutural é um importante instrumento da conservação do solo
e regulação da infiltração da água de chuva, bem como de diminuição do escoamento
superficial e estabilização do clima local. Diferentes espécies de plantas produzem diferentes
componentes, tanto químicos quanto físicos e, junto com a diversidade de micro e macro
decompositores do solo, contribuem para a formação do solo e ciclagem de nutrientes (MA,
2005).
Excessiva exploração da vegetação leva a perdas na produtividade primária e,
conseqüentemente, diminuição do seqüestro de carbono.
O rompimento dos serviços
interligados da biodiversidade das plantas das terras secas é o gatilho fundamental para a
desertificação e suas várias manifestações, inclusive a perda de hábitats para biodiversidade
(MA, 2005).
O aquecimento global aumenta a evapotranspiração, afetando assim a biodiversidade, já que
diferentes espécies reagirão diferentemente a elevadas concentrações de CO2 (MA, 2005).
Os solos das terras secas contêm mais que ¼ de todo o carbono orgânico estocado no mundo,
assim como quase todo carbono inorgânico. A falta de controle da desertificação pode liberar
a maior fração desse carbono para a atmosfera global, com conseqüências significativas para
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
23 .
o clima global. Estima-se que 300 milhões de toneladas de carbono por ano, oriundas das
terras secas, sejam perdidas para a atmosfera, como resultantes da desertificação (cerca de 4%
de todas as emissões globais).
A mudança climática pode afetar negativamente a biodiversidade e exacerbar a desertificação
devido ao aumento da evapotranspiração e à diminuição da precipitação nas terras secas.
Entretanto, desde que o CO2 é a maior fonte para a produtividade das plantas, o uso eficiente
de água pode, significativamente, ser favorável para algumas plantas, o que pode levar a
mudanças na composição e abundância de espécies.
Dessa maneira, embora a mudança climática possa aumentar a aridez e o risco de
desertificação em muitas áreas, suas conseqüências são difíceis de predizer (MA, 2005).
Devido às fortes ligações entre os assuntos de mudanças climáticas, perda de biodiversidade e
desertificação, a implementação de ações conjuntas entre as Convenções de Combate à
Desertificação, Mudanças Climáticas e Biodiversidade pode produzir múltiplos benefícios,
não só porque evita que ações duplicadas e setoriais sejam desenvolvidas, mas também
porque propicia o estudo multidisciplinar e a integração entre os vários programas
ministeriais, bem como dos governos estaduais e da Sociedade Civil Organizada.
Ainda que o Brasil, segundo a Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas,
não tenha compromissos quantitativos de redução de emissões de gases estufa, está, como
todos os demais países signatários, comprometido com a estabilização desses gases em níveis
que assegurem a habitabilidade do planeta. O IPCC, em seu relatório de 2001, estima de
modo subjetivo que a Terra estaria em condições “climaticamente seguras” enquanto a
temperatura global à superfície não aumentar 2°C em relação ao nível anterior à aceleração
das emissões humanas desses gases (NOBRE, 2004).
A principal causa das emissões brasileiras de gases estufa é o desmatamento. Sabe-se que
muitas atividades que direta ou indiretamente contribuem na derrubada da vegetação nativa
são ilegais. A maioria dos desmatamentos e queimadas que ocorrem todos os anos na
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
24 .
Amazônia, por exemplo, não tem autorização dos órgãos de meio ambiente (federal ou
estaduais). O mesmo acontece na exploração predatória de madeira. A aplicação efetiva e
sistemática da legislação teria um efeito profundo, reduzindo a área desmatada e, assim,
diminuindo muito as emissões brasileiras (NOBRE, 2004).
Entretanto, qualquer legislação só será efetiva quando a população estiver empenhada em
cumpri-la. Um dos requisitos para isso é considerar a ação cometida como dano, ou seja, ter
consciência do problema. Outro fator importante, neste caso, está ligado ao valor ambiental
da floresta, em pé, que precisa ser quantificado.
Em estudo realizado pelo IBGE, em 2002 (IBGE, 2005), a população foi questionada sobre
questões relativas a dezessete tipos de alterações ambientais.
A despeito de toda a degradação de nossos biomas, no recorte regional, as maiores e menores
incidências de problemas com alteração que tenham prejudicado a paisagem se verificam,
respectivamente, em municípios das Regiões Norte (39%) e Sul (28%). Entre esses extremos
e com resultados próximos entre si situam-se as Regiões Centro-Oeste e Nordeste (36% cada)
e Sudeste (37%).
Em termos gerais, a primeira causa mais apontada de alteração que tenha prejudicado a
paisagem foi o desmatamento (68% dos municípios que informaram esta ocorrência) seguido
da erosão do solo (35%). Entretanto, o estudo constatou que no norte de Mato Grosso e no
oeste do Tocantins, inclusive em áreas do chamado “Arco do Desmatamento e das
Queimadas”, as indicações de ocorrência de desmatamentos e queimadas (tanto
comprometendo a qualidade de vida da população quanto alterando a paisagem) são
relativamente poucas e esparsas.
Dos municípios que apontaram processos erosivos como causa de alterações que tenham
prejudicado a paisagem, 51% realizaram ações de controle da erosão. No caso das causas de
ocupação irregular/desordenada do solo e atividade extrativa mineral, a proporção de ações
praticadas pelos municípios como resposta foi de 50% e 42%, respectivamente. As menores
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
25 .
proporções ficaram com as ações de controle do desmatamento (37% dos municípios dentre
os que informaram alteração que tenha prejudicado a paisagem no município) e controle da
atividade de garimpo (25%).
Para agravar essa constatação, em algumas áreas ao sul da Amazônia Legal, onde
desmatamentos e queimadas são intensos, não há indicação, por parte dos gestores
municipais, de que estas práticas estejam afetando as condições de vida da população ou a
paisagem. Aparentemente, nestas áreas tais práticas não são consideradas como questões
ambientais relevantes pelos administradores municipais (IBGE, 2005).
Provavelmente, parte dos gestores municipais encara desmatamentos e queimadas como parte
do processo de desenvolvimento da região. Esta é, provavelmente, uma das razões do
insucesso, até o momento, das políticas governamentais de controle e combate a
desmatamentos e queimadas na Amazônia e no Brasil Central. Uma mudança de paradigma
de desenvolvimento talvez seja a ação mais eficaz para conter estas práticas (IBGE, 2005).
3. Papel da educação na disseminação de conhecimento e mudança de comportamento
Conforme proclamado na Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano, celebrada em 1972 em Estocolmo, a defesa e a melhoria do meio
ambiente para as gerações presentes e futuras constituem um objetivo urgente da humanidade.
A educação é o melhor meio, senão o único, para criar a consciência e a melhor compreensão
dos problemas que afetam o meio ambiente. Essa educação há de fomentar a elaboração de
comportamentos positivos de conduta com respeito ao meio ambiente e à utilização dos seus
recursos pelas nações (DIAS, 2004).
O desafio para a educação e, especificamente, para a educação ambiental é de motivar o
indivíduo a agir ativamente na resolução dos problemas. Alguns dos meios para se atingir tal
meta podem ser extraídos da Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental aos
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
26 .
Países Membros, ocorrida em Tbilisi, em 1997. Transcrevem-se abaixo os princípios 4, 6, 8 e
10.
Princípio 4. Examinar as principais questões ambientais, do ponto de vista local,
regional, nacional e internacional, de modo que os educandos se identifiquem com as
questões ambientais de outras regiões geográficas.
Princípio 6. Insistir no valor e na necessidade da cooperação local, nacional e
internacional, para prevenir e resolver os problemas ambientais.
Princípio 8. Ajudar a descobrir os sintomas e as causas reais dos problemas ambientais.
Princípio 10. Utilizar diversos ambientes educativos e uma ampla gama de métodos para
comunicar e adquirir conhecimentos sobre o meio ambiente, acentuando devidamente as
atividades práticas e as experiências pessoais.
Com respeito ao princípio 8, sabe-se que muitos dos livros didáticos rotulados de “Educação
Ambiental” são, na verdade, livros de Ciências que abordam a questão da poluição, da
camada de ozônio, do efeito estufa, entre outros, de uma forma muito generalizada, sem
nenhuma contextualização. Tratam apenas dos sintomas dos problemas ambientais, sem
maiores referências às causas, muito menos por quais razões essas causas existem, quem as
executa e com quais interesses, que ações individuais e coletivas podem ser desenvolvidas
para reverter a situação (DIAS, 2004).
Com relação ao princípio 10, Dias (2004) apresenta algumas sugestões de metodologia para
sua efetivação como:
- capacitar recursos humanos envolvidos no Ensino Médio e no Fundamental e no movimento
ambientalista, a fim de trabalhar e apresentar soluções para a problemática ambiental, dentro
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
27 .
de uma visão multi e transdisciplinar, e que contribuam também para a organização de
equipes qualificadas capazes de oferecer assessoria às comunidades na questão ambiental;
- introduzir maior número de aulas práticas nas disciplinas do Ensino Fundamental, do Médio
e do superior, incentivando as atividades-aula interdisciplinares;
- incentivar práticas de educação ambiental que privilegiem uma contextualização
socioeconômica
e
cultural
da
realidade,
extrapolando
a
dicotomia
entre
desenvolvimento/preservação e buscando uma abordagem menos pontual e fragmentada.
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Nairobi : UNEP, 1997.
Notas:
Coordenador da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação. Secretaria de
Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultor desta série.
2
Técnica especializada da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação.
Secretaria de Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultora
desta série.
3
Razão da quantidade de energia eletromagnética refletida por uma superfície pela
quantidade de energia que incide sobre essa superfície.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
30 .
PROGRAMA 2
DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO PAN-BRASIL
Desafios para a implementação do PAN-BRASIL: gestão dos recursos
naturais e desenvolvimento socioeconômico
José Roberto de Lima 1
Ruth Maria Bianchini de Quadros 2
1. PAN-Brasil
O Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca:
PAN-Brasil, elaborado em 2004, é um instrumento que busca harmonizar ações e dinamizar a
cooperação entre todos os atores envolvidos com a questão da desertificação e seca no Brasil.
O Programa tem como objetivo geral estabelecer as diretrizes e os instrumentos legais e
institucionais que permitam aperfeiçoar a formulação e a execução de políticas públicas e
investimentos privados, visando ao desenvolvimento sustentável das Áreas Suscetíveis à
Desertificação – ASD, no Brasil. Seguindo as estratégias de ação do Governo Federal,
consubstanciadas no Plano Pluri-anual de investimentos (PPA), o Plano se baseia em quatro
componentes:
•
combate à pobreza e às desigualdades;
•
ampliação da capacidade produtiva de maneira sustentável;
•
preservação, conservação e manejo sustentável dos recursos naturais; e
•
gestão democrática e fortalecimento institucional.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
31 .
Todas estas dimensões estão em sintonia com o principal objetivo da Convenção das Nações
Unidas de Combate à Desertificação – CCD, que é erradicar a pobreza nas regiões áridas,
semi-áridas e subúmidas secas do planeta, a qual atinge 1 bilhão de pessoas. Por isso, o
primeiro componente do PAN-Brasil foca, principalmente, as questões relativas à educação, à
reforma agrária, à distribuição de renda e às políticas de afirmação social.
As áreas suscetíveis à desertificação – ASD incluem municípios dos nove estados do
Nordeste: Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia. Além desses, também foram considerados alguns municípios do norte de
Minas Gerais e noroeste do Espírito Santo. No total, o PAN-Brasil abrange 1.488 municípios,
que ocupam uma área de 1.338.076 km2 (15,7% do território brasileiro), onde vivem
aproximadamente 32 milhões de pessoas (18,6% da população do Brasil).
2. Desafios para a implementação do PAN-Brasil
Os desafios postos para a implementação do PAN-Brasil devem ser cumpridos a curto, a
médio e a longo prazo.
No curto prazo, iniciada a fase de implementação do Programa, alguns direcionamentos para a
condução do processo de implementação foram priorizados, a destacar:
–
o aumento do conhecimento sobre o processo da desertificação;
–
o fortalecimento das parcerias e a integração de ações entre os vários Ministérios nas ASD;
–
a criação da institucionalidade necessária para a gestão plena do Programa, assim como a
aprovação da Política Nacional de Combate à Desertificação;
–
o apoio à implementação de projetos-piloto nas Áreas Suscetíveis à Desertificação (ASD);
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
32 .
–
o apoio à elaboração dos Planos de Ação Estaduais, nos 11 estados afetados por
desertificação;
–
a definição e a negociação de recursos financeiros.
A maior parte dessas prioridades diz respeito às ações que precisam ser realizadas com uma
ampla concertação, nas quais os governos estaduais, a sociedade civil e os organismos de
cooperação internacional, que desenvolvem ações nas áreas suscetíveis à desertificação, têm
papel muito relevante.
Consideramos de grande importância a realização de parcerias (por meio de pactos, acordos
de cooperação e outros instrumentos) visando obter uma estratégia de consenso para a
implementação, incluindo mecanismos para identificar as melhores opções para integrar o
PAN-Brasil nas principais políticas de desenvolvimento do País e mobilizar recursos
financeiros de uma maneira mais coordenada e previsível.
Está claro que um Programa construído para ser um instrumento de Desenvolvimento
Sustentável para uma região ambientalmente frágil como as ASD, precisa empreender um
esforço no sentido de articular as ações dos vários órgãos (governamentais e privados). Por
isso, a integração com os demais ministérios e/ou órgãos federais de desenvolvimento
regional torna-se estratégica para sua plena implementação. Nesse sentido, o PAN-Brasil tem
buscado parcerias para o desenvolvimento de ações conjuntas, principalmente, com os
Ministérios de Educação – MEC, Integração Nacional – MI, Desenvolvimento Social – MDS
e Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA. Parcerias com o Banco do Nordeste,
Companhia de Desenvolvimento das Bacias dos Rios São Francisco e Parnaíba
(CODEVASF), Departamento Nacional de Obras para a Convivência com o Semi-Árido
(DNOCS) e Agência de Desenvolvimento do Nordeste (ADENE) também têm sido de grande
importância para que o tema “Combate à Desertificação” seja incorporado, de forma
definitiva, nas várias políticas e ações para o desenvolvimento regional.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
33 .
No médio e no longo prazo, o emprego de medidas orientadas para o combate à desertificação
nas ASD leva em conta o esforço que precisa ser feito para bem administrar os problemas
decorrentes do avanço da desertificação nas áreas suscetíveis. Neste sentido, será preciso lidar
com alguns desafios clássicos:
Ajustes Fiscal e Financeiro. A implementação de programas de proteção, recuperação e
conservação dos recursos naturais nas ASD, com ênfase no combate à desertificação, até
pouco tempo não fazia parte das prioridades regionais. O diálogo aberto com os vários
Ministérios, órgãos de atuação regional, governos estaduais e organizações da sociedade civil,
a partir da elaboração do PAN-Brasil, permitiu a introdução do tema nas Agendas
governamentais e não-governamentais, nas políticas, programas e projetos. Entretanto, apesar
deste avanço, têm sido limitadas as possibilidades de obtenção de recursos governamentais e
não-governamentais para financiamento de projetos nessas mesmas áreas para o período
2004-2007. Contribui para este quadro a dificuldade de acesso a créditos externos, em parte
determinada pela reduzida disponibilidade de bons projetos e, ainda, pela mudança de foco
dos países desenvolvidos na ajuda a países em desenvolvimento.
Capacidade de Planejamento e Gestão. Enquanto instrumento de desenvolvimento
sustentável, o PAN-Brasil se ressente da existência de um sistema de planejamento que inclua
a variável ambiental como condicionante para a liberação de recursos para obras e projetos.
Nesse contexto, os vários planos, programas e projetos de médio e de longo prazo,
formulados pela iniciativa de uma determinada entidade ou ministério, necessitam ser mais
bem integrados, de forma que suas ações sejam dinamizadas, evitando sobreposições de
recursos. Ou seja, é importante melhorar a articulação entre os planos e programas e os
diferentes orçamentos.
Capacidade de Operação das Estruturas Administrativas nos três Níveis de Governo.
Os desafios referidos aos tópicos anteriores se estendem a outras esferas. Seus efeitos se
tornam particularmente visíveis nos estados das ASD, em sua maioria, submetidos a
processos pouco eficazes de reforma do Estado. Os resultados das reformas realizadas nesses
estados contribuíram para dificultar a articulação dos órgãos federais com as instituições
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
34 .
estaduais. Por isso, os reflexos desse processo sobre as esferas municipais também são
notados.
Aumento do Conhecimento técnico-científico. São usuais as referências feitas ao Nordeste
Semi-Árido como correspondendo a uma das regiões brasileiras mais bem estudadas.
Reconhece-se o avanço em vários campos do conhecimento. Entretanto, ainda é restrito o
acervo de informações nas áreas da climatologia, meteorologia, oferta e demanda de recursos
naturais, entre outros.
2.1. Integração das questões nacionais com as internacionais sobre desertificação
É importante ressaltar que a Convenção de Combate à Desertificação está formalmente
direcionada para o tratamento de um tema comum a todos os países em desenvolvimento: o
combate à pobreza. Nesta perspectiva, ela busca harmonizar as diversas dimensões do
“desenvolvimento sustentável” nas regiões áridas, semi-áridas e subúmidas secas do planeta,
conhecidamente caracterizadas por conter os maiores contingentes de pobreza e limitações de
recursos do planeta.
Neste aspecto, é reconhecido o grande avanço conseguido pelo Brasil. Ou seja, a Convenção
de Combate à Desertificação, ao trazer para o debate a necessidade de se tratar as questões
ambientais juntamente com as questões sociais, econômicas e político-institucionais, está
buscando promover o desenvolvimento sustentável das regiões áridas, semi-áridas e
subúmidas secas.
Desse modo, temos que tratar, no planejamento do desenvolvimento das ASD, de temas que
estão no foco do debate internacional, tais como pobreza, preservação ambiental,
desenvolvimento econômico sustentável, harmonização de políticas, participação social,
distribuição de renda, desenvolvimento humano, etc. E, como todas estas dimensões têm sido
fortemente consideradas, primeiro na elaboração do PAN-Brasil e, atualmente, em seu
processo de implementação, o próprio Secretário Executivo da CCD tem enfatizado que a
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
35 .
estratégia adotada pelo Brasil pode servir de modelo para os demais países signatários da
Convenção.
Outro fator que merece destaque é o esforço desenvolvido para promover a sinergia entre as
Convenções de Combate à Desertificação, Diversidade Biológica e Mudanças Climáticas.
Este trabalho é reconhecido com uma atitude capaz de despertar iniciativas positivas em
outros países, mais fortemente na América Latina e Caribe e na África. Neste contexto é que
se observa a ampliação da cooperação do Brasil com outros países na área de combate à
desertificação. Destacando-se a cooperação com a Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), MERCOSUL, América Latina e Caribe, África e China.
2.2. Fortalecimento institucional para a gestão do PAN-Brasil
O primeiro avanço no aspecto institucional para garantir a elaboração do PAN-Brasil foi a
criação da Coordenação de Combate à Desertificação (CTC) na estrutura da Secretaria de
Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, em 2003, que abriu um canal de
comunicação bastante intenso entre os atores regionais (estados e sociedade civil) para a
elaboração do PAN-Brasil, de forma democrática e participativa. A partir desta Coordenação,
abriram-se alguns canais de interlocução interessantes. Nos onze estados afetados pela
desertificação e seca no Brasil, foram criados Pontos Focais Estaduais Governamentais, NãoGovernamentais e Parlamentares.
Os Pontos Focais Governamentais são representados pelos secretários estaduais de meio
ambiente e/ou dos recursos hídricos, ou ainda, em alguns casos, por altos dirigentes dessas
secretarias, com a função de sensibilizar, articular e coordenar as atividades e ações de
abrangência estadual, em torno do processo de elaboração e implementação do PAN-Brasil,
assim como servir de interlocutores qualificados junto ao Ministério, no que se refere às
relações intergovernamentais e interinstitucionais.
Os Pontos Focais Não-Governamentais são representados pelas ONG que fazem parte da
ASA – Articulação para o Semi-Árido, criada em 1999, durante a COP 3, em Recife. Os
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
36 .
Pontos Focais Parlamentares foram instituídos com o objetivo de disseminar as discussões
políticas no âmbito das Assembléias Legislativas e apoiar as negociações junto às demais
instâncias governamentais.
Para apoiar o Ministério do Meio Ambiente na elaboração do documento, envolver e ampliar
o diálogo dentro do próprio Governo Federal, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial
(GTIM), com o objetivo de propor mecanismos para a elaboração e implementação do PANBrasil. Este Grupo de Trabalho foi constituído por representantes de sete ministérios (MMA,
MI, MDS, MAPA, MPOG, MDA, MCT); de seis instituições públicas federais (ANA,
IBAMA, DNOCS, CODEVASF, IBGE e BNB), de quatro representantes dos governos
estaduais e quatro representantes de organizações da sociedade civil. Todos com atuação
direta nas Áreas Susceptíveis à Desertificação.
Também importa ressaltar a criação do Grupo de Trabalho Parlamentar, no âmbito da
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara Federal, tendo por
objetivo básico acompanhar e colaborar no processo de elaboração, bem como dar suporte
legal para a implementação do PAN-Brasil. A constituição desse grupo de trabalho é de
grande importância, principalmente em relação à continuidade do processo de pactuação de
políticas para o combate à desertificação. O Grupo de Trabalho Parlamentar caracteriza-se
como o principal interlocutor e articulador do PAN-Brasil junto aos Pontos Focais
Parlamentares Estaduais, para que a questão do combate à desertificação seja internalizada
nas políticas estaduais e municipais.
Visando fortalecer esta institucionalidade inicial, o documento do PAN-Brasil já desenha uma
outra, em que se sobressai a criação do Conselho Nacional de Combate à Desertificação –
CNCD, apoiado por dois comitês permanentes: Comitê de Implementação e Revisão
(CRIPAN) e Comitê de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTI). A minuta do Decreto de
criação do CNCD foi discutida na 11ª reunião do GTIM, realizada em 19 de abril de 2006, em
Campina Grande/PB.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
37 .
O Presidente Lula deverá assinar o Decreto de criação desta institucionalidade no
encerramento da semana do meio ambiente, possivelmente no Dia Mundial de Combate à
Desertificação – 17 de junho.
Em razão deste novo desenho institucional, o MMA já está tomando as providências para
fortalecer a estrutura de gestão interna da Secretaria de Recursos Hídricos, por meio da
transformação da Coordenação de Combate à Desertificação em uma Gerência, de forma a
dar maior poder de diálogo e de negociação com os atores regionais (Governos e OSC).
Esperamos que esta engenharia institucional possa abrir e fortalecer, de forma definitiva, um
canal de diálogo e negociação entre os Ministérios, os estados, as comunidades, universidades
e/ou instituições de pesquisas etc.
2.3. Estratégia de integração do PAN-Brasil com as demais políticas públicas de
desenvolvimento socioeconômico e ambiental no semi-árido
Devido ao caráter transversal da Convenção de Combate à Desertificação, combater a
desertificação e mitigar os efeitos da seca não se limitam a tratar somente das questões
ambientais nas Áreas Suscetíveis à Desertificação. Combater a desertificação implica,
necessariamente, tratar as várias dimensões do desenvolvimento sustentável, não só
ambientais ou sociais, mas sobretudo econômicas. Entretanto, como as responsabilidades
referentes a muitas destas dimensões não estão dentro das competências do MMA, temos que
dialogar com os vários ministérios e órgãos regionais. A CCD colocou para os países uma
proposta inovadora de diálogo, o que é seguido pelo PAN-Brasil. Ou seja, o Programa não é
do Ministério do Meio Ambiente, mas sim do Governo Brasileiro. Porém, trabalhar de
maneira transversal e integrada é um desafio para todos, não só Governos, mas também para a
própria sociedade civil.
Temos, assim, buscado introduzir as questões de Combate à Desertificação nas várias
políticas e programas do País para o semi-árido e subúmido seco. Este tem sido um esforço
que tem alcançado bons resultados. As parcerias com o MDS, MIN, MEC e BNB têm nos
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
38 .
permitido promover uma maior aproximação entre os vários programas, projetos e ações nas
ASD, a destacar: o Plano de Desenvolvimento Regional (MIN); o Programa de Educação
Contextualizada (MEC); a adoção do critério de combate à desertificação na avaliação dos
projetos apoiados pelo BNB; a ampliação dos programas sociais nas ASD promovidos pelo
MDS. Esta integração tem sido nosso diferencial em termos de políticas públicas nas ASD.
Porém, muito ainda precisa ser feito para tornar o Brasil um lugar digno de viver agora, e nas
próximas décadas. Estamos só no começo.
.
Notas:
Coordenador da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação. Secretaria de
Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultor desta série.
2
Técnica especializada da Coordenação Técnica de Combate à Desertificação.
Secretaria de Recursos Hídricos. Ministério do Meio Ambiente –MMA. Consultora
desta série.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
39 .
PROGRAMA 3
POTENCIALIDADES DA PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL E PRESERVAÇÃO
AMBIENTAL
Potencialidades da produção sustentável e preservação ambiental nas
áreas suscetíveis ao processo de desertificação
Daniel Duarte Pereira1
A Desertificação, antes de ser um fenômeno, trata-se de um processo desencadeado por
diferentes intervenções humanas em ambientes que apresentam fragilidade quanto ao
equilíbrio ecológico e, conseqüentemente, econômico.
No caso específico da Região Semi-árida Brasileira (RSA), a forma como a mesma se
apresenta em termos de solo, clima, flora, fauna, etc. deriva de situações pretéritas
envolvendo mudanças climáticas, tectonismo, pediplanação ou arrasamento do relevo, entre
outros fenômenos que modelaram a sua face hoje conhecida. Formados por uma quantidade
expressiva de áreas mais altas – os planaltos e chapadas ou chãs – e por áreas depressivas, não
existe um, mas vários semi-áridos, se entendermos que, neste meio, existem diferentes
expressões florísticas, faunísticas, edáficas, hídricas e, principalmente, culturais, resultantes
de uma mescla de povos indígenas, europeus e africanos.
Desta mescla, surgiram diferentes formas de apropriação dos recursos naturais, ou mesmo de
estabelecimento da sacralidade destes recursos. A ocupação primitiva se deveu a diversos
povos indígenas que, no seu curso migratório de séculos, escolheram as “estradas das águas”
representadas pelos inúmeros rios e riachos temporários existentes na região. Daí, a
expressiva quantidade de gravuras (itacoatiaras) e pinturas em pedras ao longo destes cursos
d’água, em maiores ou menores distâncias. Estes povos ditos primitivos, ao seu modo,
interferiam no ambiente pela caça, pesca, coleta e feitura de pequenas áreas agrícolas.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
40 .
O nomadismo permitia que, ao escassear determinado recurso de água, caça ou pesca, o
conselho tribal se reunisse e indicasse a ocupação de outros espaços mais aprazíveis para a
vivência. Conhecedores do uso do fogo, não se descarta a utilização do mesmo para limpeza
de novas áreas, a exemplo dos povos do litoral que, ao confeccionarem clareiras para a prática
da agricultura rudimentar, motivaram o uso destas pelos colonizadores, que ali estabeleceram
lavouras mais rentáveis como a da cana-de-açúcar.
A colonização de parte do semi-árido deveu-se, em grande parte, à representatividade do
componente animal (principalmente bovino), como modo de produção, ou para fomentar
outros modos de produção. O animal era necessário como força motriz dos engenhos
primitivos, no transporte das diferentes produções agrícolas e pecuárias, no transporte
humano e no fabrico da “carne-de-sol” que, em conjunto com a farinha de mandioca,
constituíam as “provisões de boca” das entradas ou excursões para o interior desconhecido. O
litoral, ricamente açucareiro, não poderia permitir a cessão de palmos de terra para a pecuária
extensiva. As condições climáticas atuavam paralelamente, ocasionando junto aos “gados”
toda sorte de doenças e parasitismos.
Precisava-se urgentemente de áreas que reunissem condições de salubridade e que, ao mesmo
tempo, não dispusessem de terras tão especiais ao açúcar. Encontraram-se, a princípio, as
zonas de transição, os agrestes, estas logo descartadas para a pecuária, em razão da sua
aptidão para o policultivo, principalmente de “legumes e farinhas”. Restava, então, o semiárido propriamente dito que, devido às diversidades natural e étnica nele encontradas, recebeu
inúmeras denominações, ainda hoje utilizadas, como os Cariris Velhos e o Curimataú
Paraibanos, os Sertões dos Inhamuns no Ceará, o Seridó do Rio Grande do Norte, o Carrasco
do Piauí, o Raso da Catarina na Bahia, os sertões de Alagoas e Sergipe, entre outros. Esta
diversidade de denominações não foi sem sentido: são diferentes semi-áridos.
O “caminho das boiadas” usou como seu batedor o fogo, que devorou léguas e léguas de
terras “devolutas” já entregues ao colonizador na forma de sesmarias ou a serem registradas
como estas. Formas arbóreas de vegetação de caatinga foram rapidamente reduzidas a cinzas,
no sentido de originar pasto e afugentar o indígena que “teimava” em readquirir suas terras
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
41 .
ancestralmente ocupadas. O fogo, mais do que bacamartes, arcabuzes ou mesmo flechas dos
índios, tinha uma eficiência consagrada: pelas limpezas étnica e de área.
Das cinzas surgiram capins nativos em abundância, ramas, cipós e mesmo mudas de aroeiras
(Myracrodruon urundeuva), baraúnas (Schinopsis brasiliensis), angicos (Anadenanthera
macrocarpa), paus d’arco (Tabebuia sp), catingueiras (Caesalpinia pyramidalis), pereiras
(Aspidosperma pyrifolium), juremas (Mimosa sp), juazeiros (Ziziphus joazeiro), caraibeiras
(Tabebuia áurea), imbuzeiros (Spondias tuberosa), etc., que numa tentativa débil procuraram
restabelecer, sob nova forma, um equilíbrio ambiental tão duramente conquistado por
endemismos, adaptações morfológicas e fisiológicas ao longo dos milhões de anos de
evolução da vegetação de caatinga. Entretanto, a palatabilidade de alguns destes exemplares
da flora constituiu verdadeiro motivo para seu desaparecimento. Mudas tenras e apetitosas
constituíam verdadeiros repastos para bovinos, caprinos, asininos e eqüinos, já então os
“gados” presentes no semi-árido.
Devido à quantidade reduzida de animais, muitas áreas puderam se reequilibrar em novas
circunstâncias. No entanto, parte da biota matricial já havia sido irremediavelmente perdida.
A perda genética daí resultante não se pode quantificar.
Havia um condicionante climático denominado “seca” que obrigava os rebanhos,
periodicamente, a descerem a um menor nível populacional pela mortalidade, pela migração
ou pelo descarte. Enquanto um novo rebanho era constituído, a pressão sobre a flora e
recursos de solo e de água era reduzida. Estabelecia-se, assim, uma “espécie de uso
sustentável” dos recursos do semi-árido pelo próprio fenômeno da seca. Uma preocupação
assaltava sempre os criadores: quando haveria, novamente, rebanhos capazes de manterem e
aumentarem os seus patrimônios materiais, financeiros e sociais?
Dependendo da seca, e do seu ciclo, este restabelecimento poderia durar anos, até décadas.
Qual a solução mais eficiente em curto prazo? Vislumbrou-se esta solução no “ouro branco”.
O algodão, dantes lavoura existente com fins quase que de manutenção do vestuário das
fazendas e comunidades, passou a despontar como uma atividade geradora de lucro em curto
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
42 .
prazo, certo e bem remunerado. Com um adicional: não se deixava de criar o gado. Pelo
contrário, a rama do algodão e o seu caroço eram excelentes forragens.
Resultava daí a divisão de uma sociedade dantes “livre e vaqueira” para uma sociedade de
agregados, parceiros, meeiros, rendeiros, foreiros etc. Sociedade esta, atualmente, dominada
pela “cultura do silêncio”. Enquanto o gado comia na caatinga e da caatinga, o algodão
"comeu” a caatinga. A princípio foram utilizadas as áreas mais aptas para o cultivo desta
lavoura. Depois, com o progresso da mesma, as áreas marginais. Brocava-se, destocava-se,
encoivarava-se, queimava-se2 e plantava-se noite e dia.
Depois do gado e do algodão, outros ciclos3 de substituição da vegetação da caatinga
(desflorestamento) como o do sisal (fibra e atualmente forragem), o da irrigação, o da palma
(forragem), o do caju (amêndoa), dos capins (forragem), mineração (lavra aberta), algaroba
(forragem e madeira) e dendroenergético (lenha e carvão), foram ocasionados por diferentes
ações de ordem
governamental, muitas vezes fruto de ações de políticas públicas
erradamente criadas, erradamente dimensionadas, erradamente implantadas e erradamente
monitoradas.
Outros ciclos houve na RSA que se pautaram pelo extrativismo dos recursos florísticos
existentes, como fontes de matérias-primas, ou para fomentar outras ações tais como: o do
caroá (fibra), o madeireiro (construção civil, currais), o da carnaúba (fibra, cera), licuri (cera),
o do angico (tanino), o da maniçoba (látex e atualmente forragem), o da oiticica (óleo), o
ferroviário (dormentes e postes), o da barriguda (lã), o do mel, o da caprinocultura (carne e
leite), o do imbuzeiro (polpa).
Tanto nos ciclos de desflorestamento como nos de extrativismo, sempre o mesmo erro e
sempre a mesma imprevidência: nunca se perguntou para que e para quem se produzia. Sabiase apenas que era em nome de um “desenvolvimento” da região. Regida pelo moldes do
campesinato (e conseqüentemente sustentável), a sociedade do semi-árido de repente se viu
exposta como decadente, atrasada, analfabeta, subdesenvolvida e necessitada de “ajuda”.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
43 .
E esta “ajuda” veio na forma de estradas, eletrificação, poços, irrigação, sementes melhoradas,
adubos químicos, venenos, consumismo, televisão, rádio, plástico, rações balanceadas,
antibióticos, raças melhoradas e, principalmente, um ensino desajustado em termos de
ambiente físico, grade curricular, programas, planos de aula, disciplinas e temas.
Um ensino voltado para os “states” ou para os “climas temperados”. De “sinal” neste ensino
apenas os representados pelos semáforos, ou os das emissoras de televisão. Foram esquecidos
os “sinais” de chuvas e de seca, tão minuciosamente condensados pela ancestralidade e
repetidos geração após geração, até o advento do “desenvolvimento”. Esquecidos foram os
“sinais” nas orelhas dos animais, símbolos de posses genealógicas e heráldicas. O que dizer
da fitoterapia, dos alimentos brutos de salvação e das sementes crioulas?
Desertifica-se no semi-árido em busca deste “padrão de desenvolvimento”. Desertifica-se, em
busca da inserção na globalização. Instituições de ensino, pesquisa, extensão e crédito –
muitas vezes em ações integradas, ou conjugadas, de políticas equivocadas de uso dos
recursos naturais – têm contribuído de forma drástica para acentuar o processo.
Em muitas regiões, onde um hectare produz apenas 50 kg de feijão (Vigna sp) ou de milho
(Zea mays), esta mesma área pode produzir até 50.000 kg de matéria verde (MV) de palma
forrageira (Opuntia ficus-indica) por ano. A palma, plantada de forma mais aberta, não exclui
o plantio de milho e feijão e garante a estabilidade forrageira do rebanho animal que, ao longo
dos séculos, tem se constituído notável patrimônio dos ocupantes da RSA. Esta mesma área
pode dar cerca de 10.000 kg de MV xiquexique, alastrado ou sodoro (Pilosocereus gounellei),
que representam, ao mesmo tempo, cerca de 9.000 litros de água. As cactáceas, nativas ou
introduzidas, podem ser vistas como “latas d’água” plantadas e utilizadas na dessedentação
animal. Parte da transposição do rio São Francisco seria evitada, se fosse feita uma
“transposição de lavouras”, em vez da de bacias.
Aos que ficam na RSA e, conseqüentemente, em regiões onde grassa o processo da
desertificação, oferece-se de tudo, menos as verdadeiras estratégias de vivência. Gerações de
técnicos, proprietários, professores, profissionais liberais e formadores de opinião perderam a
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
44 .
“identidade semi-árida”. Foram bombardeadas, na sua infância, pelos mais diferentes
“métodos de desenvolvimento” que, notadamente, excluem tudo que é relativo à
ancestralidade.
É nesta problemática que devem ser centradas as ações de educação e de investimentos
financeiros. Numa tarefa hercúlea, continuada e exaustiva, os habitantes da RSA e das áreas
afetadas pelo processo da desertificação devem ser “reeducados”, resgatados na sua
identidade, de modo que possam entender todo o processo de vivência dos ancestrais no qual
viveram, militaram, criaram, educaram
e constituíram patrimônio, mesmo quando a
desertificação já se acentuava em épocas remotas.
É preciso entender que a verdadeira vocação da RSA é a agroflorestal (silvoagrícola,
agrossilvopastoril e silvopastoril), como já foi evidenciado pela criação extensiva, mas não
tecnificada dos rebanhos dentro da caatinga, e pelos ciclos extrativistas já evidenciados. É
preciso entender que, ao se plantar feijão, milho, fava e mandioca, necessário se faz incluir
nesta diversidade elementos como a maniçoba, o sisal, o imbu, que são reconhecidamente
lavouras xerófilas. Ou seja, que as lavouras xerófilas sejam, efetivamente, o “fator
predominante de produção forrageira ou de alimentação humana”. Não se aceita a
persistência de um mesmo erro décadas e décadas, seguidamente.
Nada disso é possível, se não houver uma disposição por parte dos agentes de crédito com
relação à oportunização de financiamento de lavouras xerófilas sacramentadas e não
sacramentadas. Como será aceito por uma instituição de crédito o financiamento de uma área
de maniçoba, de carnaúba, de licuri, de mandacaru, de manipeba, de angico? Ocorre que
existem financiamentos voltados para o segmento florestal e para a agroecologia (onde se
enquadram estas propostas) porém, o agente de financiamento necessita de “coeficientes
técnicos” para poder apostar seu “dinheiro suado” nas mesmas.
O processo se torna complicado, ao se verificar que as instituições de pesquisa e extensão não
dispõem destes coeficientes técnicos, pelo fato de grande parte dos técnicos e pesquisadores
da atual geração ser formada pelo advento do “desenvolvimento” ou mesmo, se
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
45 .
“ensimesmarem” nas suas pesquisas “olhando para o próprio umbigo” e voltando as costas
para a sociedade que os sustenta.
Por outro lado, quando se dispõe destes coeficientes, os projetistas, também educados pelos
“princípios do desenvolvimento”, não entendem, não querem ou não fazem os projetos dentro
dos princípios da agroecologia, por serem mais complicados do que os tradicionais projetos
de feijão com milho e palma. Uma mistura muitas vezes mais indigesta que nutritiva.
Bastaria, por exemplo, a exigência de que todos os projetistas dos diferentes segmentos
envolvidos em crédito para a RSA com problemas de desertificação fossem capacitados em
Agroecologia, e que tivessem 50% dos projetos voltados anualmente para a questão florestal
e agroecológica, para que a situação mudasse, de forma significativa. Enquanto se escreveu
este texto, ou enquanto se está lendo o mesmo, é bom lembrar que dezenas de hectares de
caatinga foram derrubados em nome de propostas agrícolas, ou forrageiras, de
sustentabilidade ou geração de renda.
Ou seja, a vegetação foi substituída por grãos e forragens quando, num processo
agroecológico, esta derrubada poderia ser feita em faixas, e a vegetação cortada, depois de
retirados os moirões, as estacas, as varas, a lenha, etc., teria os seus ramos enleirados 4. Longe
disso, o processo de desmate tem usado correntões, lâminas de tratores, fogo total ou fogo em
coivaras, seguidos depois da aração e da gradagem. Esta relação de uso do solo e da
vegetação do semi-árido é insustentável. Esclareça-se que parte destas ações deriva de
políticas públicas sem monitoramento ambiental.
As difusidades geográfica e étnica da população da RSA com problemas de desertificação não
constituem problema quando as ações de intervenção são antecedidas de um resgate das
diferentes identidades. Se, por exemplo, se apostar nos sistemas agroflorestais (SAF) como
“redentores” da desertificação, para cada região existirá sempre uma lavoura xerófila
ancestral esquecida, ou a região pode se mostrar apta para receber uma exótica,
cuidadosamente estudada e introduzida.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
46 .
Num estudo mais aprofundado dos semi-áridos dentro da RSA, há de se regionalizar
estratégias de ações, fugindo das estratégias “amplas, gerais e irrestritas”. Entretanto,
necessário se faz o estabelecimento de zonas de preservação ambiental (as unidades de
conservação federal, estadual, municipal e particulares) que servirão, entre outras finalidades,
como “arcas de Noé” da biodiversidade e para as ações de turismo no espaço rural, bem como
para a arqueologia e/ou paleontologia, entre outras.
Nas áreas antropizadas e já em acelerada desertificação, cumpre, através do processo
educacional, a discussão partilhada de temas como erosão, deserto econômico, salinização,
capacidade de suporte animal, lavouras xerófilas, raças adaptadas e diferentes estratégias de
recuperação destas áreas. Parte-se do princípio, por exemplo, que é melhor ter uma área
recoberta por macambira (Bromelia laciniosa) ou xiquexique do que descoberta ao impacto
do sol causticante e das chuvas torrenciais. Ambas são, inclusive, lavouras xerófilas em
potencial. Esperamos que esta discussão seja realizada debaixo de frondosos juazeiros,
oiticicas (Licania rigida) ou imbuzeiros (quando houver) e não em apertadas salas de aula.
Para as áreas medianamente antropizadas, a eleição quase que oficial e “imposta” por projetos
de cunho agroecológico prioriza os sistemas agroflorestais nas suas diferentes modalidades,
principalmente a silvopastoril. Que destas matas, ainda existentes, sejam retirados recursos
extrativistas, apícolas, artesanais, etc. Não se deve esquecer, nunca, do recurso da fenação.
Que estes projetos tenham carência e seguridade compatíveis com a natureza biológica da
região e não com a natureza financeira da instituição de crédito.
Esta disparidade, ainda vigente, tem sido duramente reduzida com o surgimento dos fóruns de
desenvolvimento territorial que, oportunamente, e com base em dados ainda pontuais mas
inovadores, questiona a aplicação de recursos oriundos de políticas públicas, que têm mais
acentuado do que minimizado o processo da desertificação.
Por fim, a criação de uma ação de Educação para o Semi-árido: a base de toda uma ação de
construção de planos, programas e projetos. A base para a sensibilização e o entendimento
dos resgates, das adaptações e inovações de tecnologias voltadas para o combate ao processo
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
47 .
de desertificação e à sua prevenção nas áreas ainda não atingidas. Essa prevenção deve
contar, também, com a reforma educacional, com a participação popular na implantação dos
campos demonstrativos de “arranjos xerófilos e zootécnicos” e com a divulgação e a
implantação das atividades extra-agrícolas tipo: confecções, rendas, artesanato, ecoturismo,
agroturismo.
Notas:
Professor da UNICAMPO – Faculdades Campo Real.
Brocar: cortar o mato rente ao chão; Destocar: arrancar os tocos resultantes da broca;
Encoivarar: reunir os ramos finos ou “garranchos” em pilhas circulares distribuídas
na área a ser cultivada. Depois de secas as pilhas, ateia-se fogo às mesmas nas horas
mais quentes do dia, resultando em manchas circulares de cinzas dentro das áreas.
3
Sempre, em todos ciclos econômicos, alguém sai mais rico e alguém sai mais pobre.
Ciclos são sinônimos de desequilíbrios econômicos, muitas vezes provocando ou
sucedendo desequilíbrios ecológicos.
4
Enleirar: ao contrário do encoivaramento, significa posicionar os ramos finos ou
garranchos numa espécie de fileira de largura e altura variáveis, de forma que se
possa barrar a ação dos ventos e das chuvas torrenciais no que se refere,
respectivamente, às erosões eólica e hídrica.
2
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
48 .
PROGRAMA 4
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS DO NORDESTE BRASILEIRO
Nordeste: uma sofisticada criação de identidade regional,
homogeneizando o diverso
Durval Muniz de Albuquerque Júnior 1
O recorte regional Nordeste, que quase sempre é apresentado nos livros didáticos como uma
região que existe desde o período colonial, onde o colonizador teria chegado primeiro, é uma
criação muito recente. A designação Nordeste para uma dada parte do Norte do Brasil, como
era conhecido até o século XIX todo o território acima de Minas Gerais, só emergiu na
primeira década do século XX. É importante, portanto, antes de questionar qualquer visão que
se tenha acerca desta região, mostrá-la e pensá-la como uma construção histórica, como uma
identidade regional que surgiu num momento preciso da história do país. Desnaturalizar a
região, mostrá-la como não existindo na natureza, como não estando desde o princípio já
estabelecida, é o primeiro passo para se fazer qualquer problematização da maneira como esta
parte do território brasileiro é vista. O Nordeste, como qualquer recorte regional, nasceu de
disputas pelo poder, devido às lutas políticas no interior do Brasil. No caso do Nordeste, essa
luta consistiu na oposição existente, de um lado, entre as aristocracias agrárias vinculadas à
produção da cana-de-açúcar e do algodão, no antigo Norte e, do outro lado, a emergente elite
cafeeira dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. O Nordeste surge como
reação ao processo de declínio econômico e ao desprestígio político das elites nortistas, que
reagem ao processo de concentração do desenvolvimento de uma sociedade urbana e
industrial no Sul. À medida que o centro dinâmico da economia brasileira se desloca para o
Sul, as elites decadentes do Norte, notadamente aquelas vinculadas à produção agrícola
tradicional, se articulam politicamente em torno da idéia de Nordeste.
O termo Nordeste, que servia apenas para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de
Obras Contra a Seca (IFOCS), criada em 1919, em substituição ao IOCS (Inspetoria de Obras
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
49 .
Contra as Secas), passa a ser usado, cada vez mais, nos discursos das elites políticas e
econômicas, notadamente dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará,
para designar uma área do país que teria uma história comum, possuiria os mesmos interesses
econômicos e políticos, teria uma cultura comum, fruto do encontro das três raças que teriam
formado, desde a colônia, o povo brasileiro, sendo assim a região mais brasileira, onde a
ausência da imigração estrangeira teria garantido a autenticidade nacional de sua cultura. O
Nordeste se torna, assim, uma trincheira atrás da qual vêm se colocar estas elites em declínio,
para reivindicarem investimentos por parte do Estado, socorro para o que chamavam de crise
da lavoura e para o que seria o principal problema deste espaço: a ocorrência de secas
periódicas. A seca, que tinha sido descoberta como um problema por estas elites quando da
chamada grande seca de 1877-79, que de excepcional não teve nada, a não ser o fato de ser a
primeira seca que não atingiu, somente, os pobres e escravos deste espaço. Devido à crise
econômica pela qual as atividades canavieira e algodoeira passavam, desde a década de 60 do
século XIX, a seca de 1877-79 será a primeira a levar grandes e médios proprietários de terra
à falência, alguns necessitando de socorros públicos para sobreviverem. Este fato, aliado à
existência de uma imprensa que permite veicular, como nunca acontecera antes, as imagens
da miséria e dos efeitos desastrosos deste fenômeno, com o próprio surgimento da fotografia,
faz com que esta seca tenha um impacto nacional, como nenhuma anterior tivera. Com essa
seca as elites do Norte, que depois serão as elites nordestinas, descobrem a arma política que
tinham nas mãos, surgindo assim a chamada “indústria das secas”. As elites nortistas, depois
nordestinas, descobrem que cenas de miséria como aquelas– cenas terríveis como aquelas –
eram um argumento quase incontestável; com elas conseguiriam sempre o dinheiro que
buscavam, a obra que reivindicavam, o cargo público de que precisavam.
A seca vai ser fundamental para definir o recorte regional Nordeste, no começo do século XX.
O Nordeste vai surgir como sendo a região da seca, a região do semi-árido, do Polígono das
Secas que, definido ainda em 1909, não cessa de ser ampliado, ao sabor dos interesses
políticos das elites regionais, assim como ocorrerá com a própria região Nordeste. Quando,
em 1941, o IBGE estabelece a primeira divisão regional brasileira, o recorte regional Nordeste
será reconhecido oficialmente, mas esta região é composta, inicialmente, apenas, pelos
estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Só, posteriormente,
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
50 .
ao sabor dos interesses políticos das elites regionais e estaduais, é que serão incorporados o
Piauí, o Maranhão, Sergipe e Bahia. Estes dois últimos estados só são oficialmente
incorporados ao Nordeste pela divisão regional feita em 1971, pelo IBGE, embora já se
dissessem nordestinos desde a criação da SUDENE, em 1958, quando ser Nordeste se tornou
interessante do ponto de vista do acesso a recursos e investimentos. Esta imagem do Nordeste,
como a região da seca, homogeneíza a imagem que se tem da natureza da região. O discurso
da seca, principal arma política das elites nordestinas, criou uma imagem da região como
tendo uma paisagem única, homogênea, marcada pela presença da caatinga cinzenta e
espinhenta, pela presença de cactos agressivos, de muitas pedras e caveiras de animais mortos
salpicando carrascais desertos e desolados. Esta imagem, reproduzida por toda a produção
cultural nordestina, pela literatura regionalista, notadamente pelo chamado romance de 30,
livros muito lidos em todas as escolas do Brasil, pelo cinema, pela pintura e, mais
recentemente, por programas e produções feitas pela televisão, criou uma imagem
estereotipada de uma região que, do ponto de vista da natureza, também é bastante diversa.
Além do bioma caatinga, que caracteriza o que se chama de sertão, área de ocorrência das
secas periódicas, o Nordeste possui a faixa úmida do litoral, onde existe a presença das
formações de mangues, e a Mata Atlântica, bastante destruída pela produção da cana. Entre o
litoral e o sertão, há ainda uma área de transição chamada de agreste, onde também a presença
da seca é muito episódica. Além de que devemos lembrar que, mesmo no chamado sertão, há
áreas úmidas, notadamente em áreas de elevada altitude, os chamados brejos, como é o caso
da Chapada do Araripe, em pleno sertão cearense. No Piauí e no Maranhão existe a Mata dos
Cocais, formações de cerrado e, no caso do Maranhão, há também a presença de floresta
tropical.
Quando, no começo do século XX, os intelectuais e políticos nordestinos foram definir a
região, particularizá-la, justificar o fato de que deveria ser vista como uma unidade, como um
todo homogêneo e uma parte no país que deveria ser tratada de forma específica e privilegiada
pelo Estado, além de usarem a seca como uma marca distintiva, vão recorrer a outras duas
estratégias: construir uma leitura da história, que atribui um passado comum para toda esta
área, e formular a idéia de que o Nordeste tem uma cultura única e própria. Para construírem a
história do Nordeste, vão tomar a civilização da cana-de-açúcar como sendo o marco de sua
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
51 .
fundação. Gilberto Freyre, intelectual que encabeçou um movimento cultural na cidade do
Recife, nos anos 20 do século passado, chamado movimento regionalista e tradicionalista, vai
tomar a sociedade da “casa-grande e senzala” dos engenhos de cana-de-açúcar, que chamou
de sociedade patriarcal, como base para contar a história do surgimento da civilização e do
povo nordestino. Seu livro Nordeste, publicado em 1937, elabora definitivamente uma
história para esta região, que toma a civilização do açúcar, a sociedade do engenho bangüê,
dos grandes chefes de clã do açúcar – sociedade que chamou de híbrida, católica e patriarcal,
marcada pela presença do latifúndio, da monocultura e da escravidão – como sendo a origem
da sociedade e do povo nordestinos.
Ainda utilizando formulações advindas das teorias raciais do século XIX, embora discordando
do caráter determinante da raça na construção de uma dada sociedade, pensando as raças mais
em suas contribuições históricas e culturais para a formação do país, Freyre vai construir uma
história aristocrática e hierárquica do Nordeste, uma visão idílica e harmoniosa da relação
entre as raças, que se caracteriza por meio dos conceitos de plasticidade, miscigenação e
sincretismo. Esta imagem do Nordeste faustoso e de passado rico e glorioso, fruto da saudade
de intelectuais filhos destas elites rurais em processo de declínio no começo do século XX,
vai conviver com a formulação de uma outra imagem, uma outra história do Nordeste,
contada a partir da história do sertão, sertão das secas, da pecuária, do algodão, dos coronéis,
dos jagunços, dos cangaceiros e dos profetas. Esta história vai ser escrita por intelectuais
nascidos nos estados onde a produção canavieira não teve tanta importância, como o Ceará,
ou onde o domínio político destes estados havia passado, no começo do século XX, para as
mãos das oligarquias vinculadas à pecuária e à produção algodoeira, como a Paraíba e o Rio
Grande do Norte. Este Outro Nordeste, título do livro pioneiro de Djacir Menezes, também
publicado em 1937, é aquele que vai acabar prevalecendo no imaginário nacional. Quando na
escola, em qualquer lugar do Brasil, mesmo no Nordeste, se faz referência a esta região, o que
vem à mente dos alunos são as imagens veiculadas por esta versão da história do Nordeste.
Uma região vista sempre como rural, como tradicional, como marcada pela violência ou a
valentia de seus homens, região dos retirantes, dos êxodos por causa da seca. Nordeste de
paisagem quase desértica, agressiva como seus homens. Nordeste do vaqueiro, do violeiro, do
cordelista, das lutas entre parentelas, do coronelismo, do mandonismo político.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
52 .
É preciso que o professor de História, e também os professores das outras disciplinas, estejam
atentos para o fato de que qualquer versão da história é uma construção interessada e que ela
mesma tem uma história. Qualquer versão da história é parcial, e é sintética, ela nunca conta
tudo, ela seleciona dados eventos e os seleciona a partir de dados interesses políticos,
econômicos, ideológicos, etc. A história do Nordeste foi contada quase sempre a partir da
perspectiva das elites que se julgavam brancas, daí porque, embora a contribuição de índios e
negros para a nossa história tenha sido admitida, e esta era a grande novidade trazida pela
obra de Freyre, ela é sempre vista como uma contribuição secundária, como colaboração
numa empresa chefiada e dirigida pelo homem branco, aquele que afinal nos teria trazido o
mais importante: a civilização. Quando, nos anos 20 do século passado, começa a ser
construída a figura do nordestino, que não existia como identidade até aí, esta ficará marcada
pelo próprio preconceito racial de seus formuladores. As elites nordestinas vão procurar
negar, em grande medida, a presença negra em sua população, fazendo do sertanejo, do
caboclo, do mestiço nascido do cruzamento entre brancos e indígenas, o chamado nordestino
típico. Ainda hoje a imagem que se tem do nordestino, marcada por estereótipos como o
“cabeça-chata, baiano ou paraíba”, é de um mestiço, notadamente um mameluco, baixo,
atarracado, quase sempre feio, com um corpo degradado pela fome, pela miséria e pela seca.
A diversidade étnica da região é bastante desconhecida. A multiplicidade de tipos físicos que
podemos encontrar, em qualquer estado nordestino, é reduzida a uma corporeidade
estereotipada, uma caricatura que será reforçada pela produção cultural e midiática acerca da
região. Existe uma maneira de ver e dizer o Nordeste e o nordestino que foi instituída no
começo do século XX, por sua produção cultural, da qual a mídia não consegue fugir. O que é
múltiplo – como os tipos físicos, os corpos, as maneiras, os gestos, os falares – é reduzido a
um estereótipo que serve, inclusive, para a elaboração de tipos risíveis e ridículos, nas
comédias e outras produções de humor.
A figura do nordestino também é marcada por uma visão redutiva quando se trata de sua
identidade de gênero. O nordestino é pensado sempre no masculino: o nordestino é macho,
não há lugar nele para traços femininos. Calcado em figuras como o coronel, o jagunço ou o
cangaceiro – figuras míticas que continuam povoando qualquer produção midiática sobre o
Nordeste e freqüentando os livros escolares que tratam da região – o nordestino é retratado
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
53 .
como uma figura viril, valente, rústica, violenta, agressiva, como um homem capaz de matar
outra pessoa pelo motivo mais banal. O grave desta formulação é que ela é subjetivada,
incorporada pelos homens da região, ela legitima neste espaço enormes índices de violência
de gênero, seja contra as mulheres, seja contra os homossexuais. No Nordeste de hoje, os
homens vivem uma situação muito diferente da do começo do século passado, por todas as
modificações que o feminismo e a luta das mulheres conseguiram introduzir na condição
feminina em nosso país, e que chegaram ao Nordeste também. Contudo, a produção cultural
da região continua veiculando a mesma imagem dos nordestinos: homens que gostam de
forró, de cavalo e de mulher, sempre nesta ordem de prioridade, e que também gostam muito
de cachaça, ou de dinheiro. Até as figuras femininas elaboradas pela produção cultural da
região aparecem masculinizadas. É com o universo do que a sociedade define como sendo o
masculino que tais figuras se relacionam, desde Luzia-Homem, romance de Domingos
Olímpio, no século XIX, passando por Maria Moura, de Rachel de Queiroz. Essas
personagens de ficção e a figura de Maria Bonita, mulher de Lampião, construíram uma
imagem masculinizada da mulher nordestina, a chamada mulher-macho, que ficou consagrada
em música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A diversidade dos papéis de gênero é aí
negada pela estereotipia do masculino exacerbado que caracteriza a figura do nordestino,
cabra-macho, que compensaria sua impotência econômica e política com a sua potência
sexual. O cabra-macho nordestino é um mito compensatório elaborado por uma elite
decadente e decrépita, que faz da valentia e da defesa da honra os valores fundamentais para a
vitória de qualquer homem na vida, homens que devem preferir a morte a perder tais valores.
A chamada cultura nordestina, outra estratégia usada no sentido de legitimar a existência da
região, também é vista de forma bastante estereotipada. Mesmo quando se quer falar de
diversidade cultural, esta diversidade é pensada como sendo folclórica, já que a cultura
nordestina é pensada como sendo uma cultura tradicional, rural e artesanal, portanto, como
sendo uma cultura não moderna, não urbana e não industrial. A cultura nordestina é pensada
como uma verdadeira feira de mangaio, feita de objetos, artefatos, ritos e rituais que remetem
a uma sociedade comunitária, estamental, agrária e pré-capitalista, que hoje faz a festa dos
turistas em busca de badulaques e bibelôs. Como na versão da história da região, a cultura
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
54 .
nordestina também parece sempre ter parado no tempo, o Nordeste é sempre tratado como
uma área que ficou no passado, que ficou para trás na história do país.
Os próprios livros didáticos e as escolas vão reproduzir esta imagem de que cultura nordestina
é artesanato, é folclore. Não se pensa no fato de que o Nordeste tem hoje três das maiores
metrópoles do país, que hoje mais de 70% da população da região vive em cidades, de grande,
médio e pequeno porte, que a mídia, como em qualquer lugar do Brasil, exerce uma influência
decisiva sobre a produção cultural e sobre o próprio cotidiano das pessoas.
A cultura nordestina é, hoje, a cultura de massas, como em qualquer lugar do Brasil. Contudo,
ainda persiste a idéia de que o Nordeste é uma região em que deve ser preservada nossa
cultura de raiz, pelo fato de ter sido o local onde primeiro se iniciou o processo de
colonização. A afirmação de que é no Nordeste que está a cultura mais autenticamente
nacional, destinada à preservação da tradição, enquanto outras áreas do país, como São Paulo,
estão destinadas à modernidade, carrega, na verdade, um preconceito: a de que os nordestinos
não são capacitados para o mundo moderno, são bregas, fora de época, retrógrados,
retardatários, inclusive do ponto de vista político. A imagem do coronel truculento e
discricionário ainda caracteriza, genericamente, as lideranças políticas da região. Esta visão
equivocada, reproduzida ad nauseum pela mídia, não tem mais correspondência com a
realidade da Região Nordeste, que apresenta os mesmos problemas e as mesmas
características de qualquer outra região do Brasil. Não temos o monopólio da miséria, como
às vezes os discursos midiáticos nos fazem acreditar, embora as disparidades de renda, que
são enormes em qualquer área do país, aí encontrem seu ápice. A violência urbana há muito
substituiu as lutas de parentelas, a peixeirada nos forrós, o cangaceirismo e a atuação de
jagunços e coronéis. As elites políticas nordestinas são da mesma qualidade e usam as
mesmas práticas daquelas de outras regiões, inclusive as ditas mais modernas, como os
últimos episódios políticos não cansam de comprovar.
O Nordeste é hoje muito diverso do ponto de vista econômico e, quando se trata de medir
índices de desenvolvimento, temos áreas bastante distintas, o que implica ter muito cuidado
em caracterizar essa região como atrasada, subdesenvolvida ou pobre. O Nordeste, embora
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
55 .
permaneça tendo índices econômicos sofríveis, em relação aos de outras regiões, foi uma das
regiões que maiores índices de crescimento econômico apresentou nas últimas décadas, e
possui áreas marcadas por índices de produtividade e estágio tecnológico comparáveis aos de
qualquer outra área do Brasil. A cultura nordestina há muito deixou de ser uma cultura rural,
tradicional e folclórica, embora estas manifestações culturais existam e devam ser
incentivadas a continuar existindo, como em qualquer outra área do país. Mas não deve ser só
no Nordeste que se fale de folclore nas escolas, isto deve ser feito em qualquer lugar, da
mesma forma que temos direito à digitalização da cultura, como qualquer outro espaço.
Precisamos superar esta visão de que tudo no Nordeste deve remeter ao passado e à
preservação de um outro tempo, porque esta visão reproduz exatamente as relações de poder
que instituíram o Nordeste no começo do século XX.
O Nordeste foi criado por elites em declínio que o pensaram como sendo o território delas e
que não deveria sofrer transformações. Para preservarem seus privilégios, as elites nordestinas
investiram na criação de uma região que seria uma reação à história do país, tal como estava
se passando. O Nordeste é, pois, uma invenção reacionária, conservadora e reativa do ponto
de vista político. O Nordeste nasceu da articulação política e cultural de elites que temiam
perder, em nível local, o espaço que já haviam perdido nacionalmente, por isso pensaram o
Nordeste no campo da memória, contra a história, contra a transformação. Sempre que
pensamos ou falamos do Nordeste como sendo este espaço da conservação, da preservação –
seja de valores, de hábitos, de costumes, de manifestações culturais – estamos alimentando
esta atitude conservadora e reacionária das elites nordestinas. O Nordeste deve ter o direito à
mudança, à história, à modernidade, seja em que aspecto for. Embora o Nordeste seja bastante
diverso, em qualquer aspecto que se analisar, desde no que tange à sua fauna, à sua flora, a
seu clima, à sua história, à sua cultura, à sua economia, à sua sociedade, à sua formação étnica
e às suas identidades de gênero e sociais, tende-se sempre a homogeneizá-lo, por que esta é a
estratégia política que vem sustentando suas elites parasitárias dos cofres públicos, dos
empréstimos não pagos, do desvio de recursos para obras e investimentos destinados a
“solucionar o problema da seca”, uma falácia que sustenta essas elites desde o final do século
XIX, pois solucionar a seca seria o mesmo que solucionar a chuva ou o gelo. O que se precisa
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
56 .
é dar condições para que os homens convivam com um fenômeno que é incontornável, por ser
natural. É preciso atacar uma visão comunitária que tende a ser construída sobre a sociedade
nordestina, vida comunitária que é um mito cristão que continua sendo reafirmado, não só
pela militância de entidades ligadas à Igreja, como da própria esquerda na região, que não
encaram o fato de que o Nordeste é hoje uma sociedade moderna, globalizada, articulada com
o capitalismo internacional, onde os vínculos comunitários há muito foram destruídos. A nova
versão do discurso regionalista nordestino não pode mais sustentar que somos uma reserva de
sociedade tradicional em relação à emergência da sociedade moderna, mas seríamos agora o
único espaço do Brasil a resistir ao processo de globalização, postura tão reacionária quanto a
anterior.
O verbo que deve nortear qualquer processo educativo no Nordeste não deve ser nunca o
“verbo preservar”, pois aí já se vem preservando relações de dominação e exploração muito
antigas, a pretexto de se preservar sua cultura ou a diversidade de suas manifestações
culturais. Os verbos de hoje devem ser transformar, criar, inventar uma nova forma de ver e
dizer a região, com novas práticas sociais e culturais. Deve-se falar em admitir e aceitar o
novo, a mudança, a descontinuidade. E esta é a grande dificuldade subjetiva que encontramos
em alguns contingentes da população nordestina, independentemente da classe social a que
pertençam, por isso, educar aí deve ser produzir subjetividades mais abertas para a novidade,
para a criação, para a transformação das relações econômicas, políticas, sociais e para a
mudança de valores, costumes, com a aceitação e a vivência, no local, do diverso e do global.
A herança local não é das melhores para ser preservada, ela deve, sim, ser tomada como
matéria-prima para novas produções a partir de sua utilização crítica e criativa, de sua
reinvenção em novos termos, pois, como qualquer herança, esta não é neutra politicamente, e
devemos pensar em como ela foi herdada, que mecanismos produziram esta herança, a que
interesses ela serviu. Daí porque versões da história do Brasil, como a de Gilberto Freyre ou
de Darcy Ribeiro, ou versões do que seria a história do Nordeste, como as de Josué de Castro
e de Câmara Cascudo, devem ser usadas, mas de forma crítica, tomando-as não como a
verdade sobre a região ou o país, mas como construções políticas e culturais que precisam ser
discutidas e debatidas em seus pressupostos. Abordar a diversidade do Nordeste, não apenas
apelando para o que nele pretensamente representa o passado, a tradição, a herança, mas
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
57 .
principalmente, abordando o que nele representa o presente e a possibilidade de um outro
futuro, completamente diferente de seu presente e, principalmente, de seu passado. Passado
que não deve ser esquecido ou apenas valorizado, mas que deve, sim, ser problematizado em
nome da busca da construção de novos tempos para o Nordeste.
Nota:
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
58 .
PROGRAMA 5
EDUCAÇÃO CONTEXTUALIZADA
Educação Contextualizada e o tema da desertificação
Edneida Cavalcanti 1
Apresentação
O mundo pode ser muito diferente, dependendo do tamanho da janela pela qual estejamos
olhando e da posição que tenhamos em relação a ela. Existe a possibilidade de vermos
apenas o imediato, e isso pode nos dar muita maestria sobre os elementos que nos são
inteligíveis, com os quais estabelecemos contato permanente, mas pouca capacidade de
perceber as relações e as causas mais remotas de certas questões, e daí nossa prática fica
sem eco, e muitas vezes se gasta bastante energia sem que se consiga construir mudanças,
pois a raiz do problema não é percebida e, portanto, não é cuidada. Por outro lado, podemos
ver apenas o mundo lá fora e sermos bons em análises gerais, mas sem conseguir estabelecer
conexões com as realidades locais, e daí saem receitas, modelos universalizantes que não
têm aderência com os diferentes lugares e com os quais as pessoas não se comprometem,
pois o que existe é o distanciamento, o sentimento de não pertencimento.
O exercício entre perceber e analisar a realidade mais próxima, sem desconectá-la do contexto
regional e global, é um dos pilares da Educação Contextualizada. Mas vale salientar que as
categorias local e global não acontecem de maneira dissociada. Na prática, o local está
impregnado do global e o global contém a correlação de força dos vários lugares.
Nas últimas duas décadas, o agravamento dos problemas socioambientais em escala global
tem alimentado o debate epistemológico em praticamente todos as áreas de especialização
científica, levando à necessidade de romper com os marcos da fragmentação do
conhecimento. A maneira como a realidade é observada, analisada e interpretada afigura-se de
importância fundamental na mudança de rumo nas diferentes sociedades.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
59 .
Por sua vez, nós não lidamos com essa chamada realidade, seja ela imediata ou mais ampla,
de maneira simples. Essa aproximação depende também da cortina que está na janela pela
qual olhamos. Pode ser que estejamos olhando diretamente para fora através de um material
translúcido, mas também é possível que estejamos de costas, olhando para parede e vendo
apenas sobras2, numa verdadeira prisão para a mente.
Nesse sentido, a construção e a inclusão de novos princípios na esfera do conhecimento se
constituem em um passo decisivo na formação de novos cidadãos e cidadãs, e é no âmbito de
tal afirmação que se torna possível compreender o papel transformador contido na abordagem
da Educação Contextualizada.
Paralelos entre a educação popular, educação ambiental e educação contextualizada
Em virtude das inúmeras fragilidades presentes no processo de educação, tem sido freqüente a
sua adjetivação. Nessa condição estão países ricos e pobres, pois não se trata apenas de
diminuição do analfabetismo, ampliação do acesso, diminuição de evasão escolar ou
qualidade material das escolas; significa falar dos aspectos ideológicos e do papel da
educação, e de questionar: Que cidadãos e cidadãs a escola está contribuindo para formar?
Que idéias de mundo e de futuro estão sendo formuladas?
O esforço contido nas inúmeras formulações de qualificação é de dotar a educação de
significados considerados imprescindíveis à construção da cidadania e da autonomia. Assim,
surgem os termos: educação popular, educação ambiental, educação ambiental crítica,
educação do campo, educação de jovens e adultos e educação contextualizada, só para citar
alguns exemplos.
Esse conjunto mencionado possui elos comuns e que se nutrem das inúmeras críticas e
concepções que foram ofertadas pelo educador Paulo Freire em suas reflexões acerca do
conhecimento e do papel da educação. Para Freire (1987), a superação da opressão e das
desigualdades sociais se dá com o desenvolvimento da consciência crítica através da
consciência histórica. Sua proposta de projeto educacional parte do estudo da realidade,
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
60 .
trazido pela fala do educando, pela problematização da prática de vida dos educandos e,
ainda, da organização dos dados, o que seria a fala do educador. Assim, mais do que a simples
transmissão de conteúdos específicos, o que importa é despertar uma nova forma de relação
com a experiência vivida. Os conteúdos trazidos fora do contexto do educando se
transformam em acúmulo de informações sem significado, levando ao distanciamento e ao
sentimento de apatia, pois não se percebe a condição de intervir na realidade, visto que a
mesma não é compreendida, não entra no universo do vivido.
Os princípios metodológicos da proposta de Freire se baseiam: a) na conquista da autonomia,
b) na dialogicidade e c) no respeito ao educando. O primeiro propõe que homens e mulheres
sejam sujeitos da realidade e não meros observadores, fundamentando-se, assim, na idéia de
que a educação não é neutra. O segundo princípio afirma que a relação pedagógica necessita
ser, acima de tudo, uma relação de diálogo entre seres humanos, natureza e cultura, entre seres
humanos e o trabalho. O terceiro pressupõe o respeito ao universo do educando, ao fato de
que cada pessoa, e cada grupo envolvido na ação pedagógica dispõem de uma bagagem, dos
conteúdos dos quais se deve partir. Além disso, requer uma postura de humildade diante do
saber.
Vários dos princípios constitutivos da educação ambiental, elaborados durante a Conferência
de Tbilisi3, revistos e redimensionados no processo de elaboração do Tratado de Educação
Ambiental para Sociedades Sustentáveis4, estão permeados das reflexões do pensamento de
Paulo Freire.
O Tratado agrega leituras críticas sobre a questão ambiental, rompendo com interpretações
como a que associa, de forma linear e numa perspectiva de causa e efeito, miséria e
degradação ambiental, alertando que as causas da poluição e do esgotamento dos recursos
naturais são as mesmas que explicam a miséria. Além disso, o documento também questiona
o desenvolvimento sustentável enquanto novo modelo hegemônico, desprovido de
significados concretos, que questionem o modelo econômico que gera a crise ambiental, sem
considerar a imensa diversidade existente nas diferentes sociedades humanas.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
61 .
Referências como: a educação ambiental deve ter base no pensamento crítico; ela não é
neutra, mas ideológica, é um ato político; a educação ambiental valoriza as diferentes formas
de conhecimento; deve promover a cooperação e o diálogo entre indivíduos e instituições;
deve ajudar a desenvolver a consciência ética, são exemplos de caminhos que relacionam a
educação ambiental com a proposta de Educação Contextualizada.
Contudo, vários autores evidenciam que a prática da educação ambiental depende da
concepção de meio ambiente que se tenha. E como essa se constitui em representação social,
ou seja, é construída socialmente e varia no tempo e no espaço, a prática da educação
ambiental também pode ser bem distinta. O que passou a se perceber, a partir de inúmeras
experiências difundidas, é que essas práticas estavam assentadas numa visão naturalista, de
um ambiente degradado, que precisa ser recuperado e se aproximar ao máximo da natureza
intocada, do ideal de natureza.
Nessa perspectiva, não ocorre o questionamento sobre a própria inserção dos seres humanos
na natureza, suas especificidades enquanto seres biológicos e sociais, as relações de
dominação dos seres humanos para com a natureza, como resultado da dominação entre os
próprios seres humanos, através da apropriação dos recursos naturais, mediatizada pelo
trabalho. O resultado é um posicionamento conservacionista e preservacionista, sem uma
crítica aos processos de organização socioeconômica e espacial. Por essa razão, alguns
autores já falam em educação ambiental crítica.
A proposta de Educação Contextualizada surge da experiência dos movimentos sociais, no
bojo das discussões sobre a proposta de convivência com o semi-árido, assim como das
reflexões estruturadas nas universidades e centros de pesquisa. É importante resgatar que,
durante muito tempo, prevaleceram expressões como “combate à seca” e “convivência com a
seca”, como pilares das ações de políticas públicas direcionadas para o semi-árido. O foco era
o fenômeno da seca, o vilão, o culpado que precisava ser atacado. Ora, trata-se, em sua
essência, de um fenômeno climático, para o qual não detemos a capacidade de alterar, apenas
de conhecer e tentar prever.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
62 .
A chamada concepção hidráulica-institucional tem na água, seja pela ausência ou pela
necessidade de prover, a causa e a solução da seca. O problema é assim tecnificado, excluindo
suas raízes políticas, sociais, culturais e econômicas, e a solução é basicamente hidráulica.
Trata-se de uma abordagem secular, que prima pela idéia da seca como um acontecimento que
vem quebrar a normalidade, trazendo as adversidades naturais. Essa visão idílica, simplista, é
também oficial, revestida de cientificidade, e além disso, adquire novas roupagens ao longo
do tempo. As discussões sobre a Transposição do São Francisco, ou em seu nome mais pop:
Integração de Bacias, estão impregnadas dessa concepção.
A assertiva trazida por um novo olhar sobre o semi-árido baseia-se na constatação de que o
clima não sofreu alterações nos últimos séculos, mas a organização socioeconômica sim, e
esta é, de fato, a responsável pelo surgimento e pela expansão da seca. Sendo assim, é
importante olharmos as diferentes concepções sobre esse fenômeno, que se tornam senso
comum, para desvendarmos, inclusive, as práticas dos diferentes sujeitos sociais envoltos
nessa realidade.
Os anos de ações emergenciais, do período da açudagem e de inúmeras iniciativas dessa
natureza não demonstraram praticamente nenhum resultado duradouro, que revertesse os
baixíssimos indicadores sociais da região; além disso, os avanços técnicos passaram a indicar
a possibilidade de compreender melhor o fenômeno climático seca e de poder fazer previsões
sobre o mesmo.
Mas a proposta vinda dos movimentos sociais muda totalmente o foco. A seca faz parte da
realidade do semi-árido, que é mais ampla, complexa e diversa. É preciso trabalhar com esse
conjunto, de forma permanente e não apenas com um dos aspectos, que é a seca; é
fundamental que a convivência permanente fortaleça a condição de lidar com os períodos de
seca. A proposta está centrada na expansão das capacidades e na ampliação dos direitos das
pessoas, que possibilitem que os grupos sociais que estão em desvantagem iniciem processos
de empoderamento que lhes permitam alterar, em termos favoráveis, sua posição na sociedade
e frente ao Estado. Daí a expressão “convivência com o semi-árido”.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
63 .
Essa convivência não significa passividade e acomodação, mas pressupõe conhecimento,
compreensão e ação. Como a educação pode contribuir para isso? Podemos considerar esta a
pergunta geradora da proposta de Educação Contextualizada, que, de acordo com Braga
(2004, p. 26):
“(...) é uma proposta de Educação ancorada na realidade e nas práticas dos povos do semiárido, com metodologias, conteúdos, currículos, educadores e educadoras, didáticas e
estruturas apropriadas à Região, levando em conta suas potencialidades socioculturais,
econômicas e ambientais. Assumir este desafio é lutar para que o pedagógico transforme o
político; e o político, o pedagógico.”
Ainda segundo o autor (2004, p. 27), essa educação deve ponderar: “como são concebidos os
sujeitos do processo educativo? Como é representado, na intervenção educativa dos atores, o
ambiente do semi-árido?”
Conhecimento e realidade: as representações sobre o semi-árido e a desertificação
A realidade, sem dúvida, é um tema instigante e necessário quando vamos lidar com
educação, com conhecimento. O que é real e irreal, como distinguir entre essas duas
categorias?
Num primeiro momento, cabe que não apenas Sócrates e seu discípulo Platão, mas inúmeros
outros filósofos afirmam as limitações dos sentidos para apreender a realidade e destacam a
importância do intelecto, da mente, para chegar a esse estado de compreensão da realidade. É
o que está estruturado em nossas mentes que nos leva, mais ou menos nitidamente, ao mundo
externo. E é bom lembrar que a palavra educação, literalmente, etimologicamente, significa
conduzir para fora.
Contudo, como a relação não só individual, mas sobretudo coletiva, com a realidade passa a
ser inteligível, compreendida e assimilada? Essa resposta pode ser buscada através da
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64 .
abordagem de representação social4, ou seja, a maneira como os seres humanos pensam ou
criam suas realidades compartilhadas, a partir de um conjunto de elementos (conceitos,
imagens, informações, ideologias, valores, etc.), que permite transformar o que não é familiar
em algo familiar e com isso possibilitar a comunicação. Segundo Moscovici (apud Gomes,
1997, p. 49), “as representações sociais fazem com que o mundo seja o que pensamos que é
ou deve ser. Mostram-nos que, a todo instante, alguma coisa ausente se lhe adiciona e alguma
coisa presente se modifica”.
Sobre o semi-árido, é interessante observar suas vinculações com a expressão sertão e como
essa está presente e é vista através da literatura. De acordo com Wanderley e Menezes (1997,
p. 7) “vários são os sertões: da Paraíba, da Bahia, de Minas Gerais. Sertões secos e verdes,
com características comuns e peculiares”, fazendo referência ao que foi percebido e retratado
nos trabalhos de Euclides da Cunha, Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, “três autores, três
identidades e três sertões” 5.
A título de exercício, se pensamos na Região do Semi-árido como um dado natural, ela existe
desde antes; e como coisa representável, passa a existir nas versões e nas buscas de
entendimento da população, de maneira interativa com as nominações oficiais, ou seja, com o
que é produzido pelo conhecimento científico e/ou pelo que é criado pelos diferentes
contextos políticos.
Para aclarar um pouco, podemos refletir sobre como o semi-árido vem sendo discutido e
dimensionado por diversos autores. Carvalho (1988), Coelho (1988) e Guimarães Filho et al
(1995), apud Duarte (1999, p. 9) calcularam áreas diferentes para a zona semi-árida. A
proposta de Carvalho (1988), que aponta ser de 882.081 km 2 o domínio semi-árido, possui
como vantagem, do ponto de vista do planejamento público, agregar as Microrregiões
Homogêneas.
De acordo
com
os
critérios
utilizados
pela
Superintendência
do
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o semi-árido brasileiro ocupa uma área aproximada
de 950.000 km2, correspondendo a 11% do território nacional.
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65 .
Dados do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e aos Efeitos da Seca –
PAN Brasil (2004) contabilizam como área semi-árida e subúmida seca, contemplando assim
o escopo da Convenção de Combate à Desertificação e aos Efeitos da Seca – CCD6 –, uma
superfície de 1.130.699,10 km2. Essa área sobe para 1.338,076,00 km2 quando incorporada às
áreas de entorno, categoria proposta pelo PAN Brasil, passando a representar 86,11% da
Região Nordeste e 15,72% do Brasil e constituindo-se nas Áreas Suscetíveis à Desertificação
– ASD.
O próprio escopo da CCD, ou seja, a definição do termo desertificação junto com a
delimitação espacial de sua ocorrência, possui uma explicação geopolítica. Afinal, degradação
da terra existe em toda parte e o que se pretende é chamar a atenção para as particularidades
sociais e econômicas das regiões áridas, semi-áridas e subúmidas secas, historicamente à
margem do processo de desenvolvimento; pouco beneficiadas com as propostas de
desenvolvimento sustentável, conservação, preservação, etc., visto que tradicionalmente
também são vistas de forma equivocada, como regiões pobres em recursos naturais.
Alguns aprofundamentos são introduzidos pela definição de desertificação contida na CCD.
Um deles é o que reconhece que a desertificação tem sua origem em complexas interações de
fatores físicos, biológicos, políticos, sociais, culturais e econômicos, rompendo com as
interpretações de origem climatológica ou mesmo as de fundo puramente tecnológico. Essa
última atribuindo o processo à falta de tecnologias apropriadas e indicando a solução a partir
da aplicação dessas alternativas.
Contudo, a amplitude que permeia as causas da desertificação, aliada à vinculação feita ao
fenômeno da seca e/ou ao processo de formação de desertos, converge para acentuar as
dificuldades de entendimento e visualização do tema, bem como seu dimensionamento como
um problema realmente importante a ser enfrentado. Além disso, tem sido bastante discutida a
ausência de métodos de estudos universalmente aceitos. O que parece existir é um conjunto de
conhecimentos de diferentes áreas que se coloca a serviço da compreensão do problema da
desertificação, não se constituindo em método, no sentido clássico do termo. De acordo com
Matallo (2001, p. 27):
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
66 .
“(...) uma avaliação da produção teórica sobre desertificação mostra a pluralidade de
métodos e sistemas de indicadores utilizados em todo o mundo, o que revela a dificuldade em
estabelecer-se um consenso sobre um sistema básico de investigação sobre o fenômeno, que
considere a multiplicidade de aspectos nele imbricados.”
Esse entendimento é fundamental para o trabalho de educação contextualizada nas ASD,
contribuindo, dentre outras coisas, para evitar o uso indevido do tema, para que desertificação
não substitua o lugar de seca no imaginário social e dê margem a políticas também
equivocadas.
Novos olhares sobre a região do semi-árido
Não é possível assumirmos novos valores e atitudes perante a problemática socioambiental
dos espaços semi-áridos e subúmidos secos, estando atrelados às visões de mundo que lhes
dão o sentido atual.
Assim, é necessário que se transcendam as bases do conhecimento científico e os aspectos
teórico-metodológicos da atual divisão do conhecimento, caminhando na direção de um
processo de construção de várias “ciências com consciência” 7. São campos disciplinares
híbridos, como a sociologia ambiental, a ecologia política, a economia ecológica, a geografia
ambiental e a história ambiental. Essas duas últimas trazem uma contribuição interessante
para a perspectiva trazida pela Educação Contextualizada, uma vez que consideram a
mudança ambiental, síntese entre a mudança natural e a mudança social, resultado de
processos cumulativos que podem ser abordados, desde uma perspectiva de longo prazo,
como eixo articulador de suas análises, que tem o papel de gerar conhecimento em torno do
processo de (re)construção social do ambiente, a
uma perspectiva espacial/temporal,
contribuindo para o diagnóstico e caracterização de problemas socioambientais pretéritos,
com vistas a uma possível intervenção que permita melhorar, reverter ou mitigar os impactos
dessas mudanças. Podem ser alicerce para o que Leff (2000) designa como pedagogia da
complexidade ambiental, em que o mundo é visto como potência e possibilidade, e a realidade
como construção social gerada a partir de valores, relações de poder e utopias. De acordo com
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67 .
Mattos (2004, p. 83), “o complexo requer um pensamento que respeite a diversidade, ao
mesmo tempo que a unidade; um pensamento organizador que conceba a relação recíproca de
todas as partes.”
Nessa trajetória, está o rompimento com a matriz filosófica que tem dominado o mundo
ocidental, marcada pela oposição entre seres humanos e natureza, e entre sujeito e objeto,
além do paradigma atomístico-individualista, de fragmentação do conhecimento.
Para dar conta de perceber a diversidade presente no semi-árido é necessário lançar mão de
categorias de análise como a de espaço e lugar8. O primeiro como algo que permite
deslocamentos, e o segundo como pausa. O que se inicia como espaço indiferenciado vai
adquirindo o estatuto de lugar, à medida que o conhecemos mais intimamente e lhe dotamos
valor ou lhe conferimos significado. De acordo com Wanderley e Menezes (1997), por
aquelas categorias não tratarem das relações de poder, faz-se necessário incorporar novas
perspectivas de análise, quais sejam: paisagem e território9. A paisagem é aquilo que se vê,
podendo gerar sensações e emoções, e fica circunscrita ao plano do que é visto e sua
descrição é adjetivada.
Por sua vez, o conceito de território pode ser entendido como uma projeção concreta e
simbólica da paisagem, definindo-se não apenas através do valor, da atitude, do afeto, etc.,
mas, principalmente, pelo sistema de relações estabelecido entre os grupos e o exterior.
Sem dúvida, um elemento importante na compreensão do que acontece nessas áreas é a
estrutura de poder, as forças internas e externas que influenciam a dinâmica do lugar. Estamos
falando de espaços, de sistemas que foram comprometidos pelas ações humanas, por políticas
públicas fragmentadas que buscavam atender a interesses puramente econômicos. A situação
exige uma abordagem que precisa ir além das pequenas soluções. É necessário se trabalhar em
um esforço novo, numa inversão importante, que não seja a lógica de um pouquinho aqui e
outro ali, mas que ao mesmo tempo leve em conta as experiências adquiridas com o novo
paradigma da convivência com as regiões semi-áridas e subúmidas secas.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO: UM DESAFIO PARA A ESCOLA
68 .
Considerações finais
É importante registrar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 10, que consolida
e amplia o dever do Poder Público para com a educação em geral e, em particular, para com o
Ensino Fundamental, consolida a organização curricular de modo a conferir flexibilidade no
tratamento dos componentes curriculares. Nesse sentido, reafirma o princípio da base nacional
comum, traduzido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN –, mas abre espaço para
que esta seja complementada por uma parte diversificada em cada sistema de ensino e escola.
Na prática, esse espaço, contudo, ainda não vem sendo preenchido e as escolas permanecem,
em sua grande maioria, sem olhar para fora de seus muros, sem abrir as portas para a
realidade na qual estão inseridas, sem articular as áreas do conhecimento para que essas
dialoguem e contribuam para problematizar as questões vivenciadas pelos educandos e
educandas.
Quando partimos para a temática ambiental, também verificamos caminhos abertos através de
iniciativas de políticas públicas para a educação formal. É o caso dos temas transversais,
especificamente os que tratam de meio ambiente e saúde. Mas já verificamos que incorporar
essa dimensão ambiental na prática da educação, de forma transversal, não é uma tarefa
simples, requer desde um olhar sobre a formação do educador, do educador ambiental, como
nos fala Guimarães (2004), até como os municípios vêm assumindo ou não a responsabilidade
efetiva pelo Ensino Fundamental, pois a municipalização do ensino poderia ser vista como um
caminho de maior autonomia para implementar mudanças no currículo, de forma a
contemplar os temas locais.
As discussões e formulações sobre a Educação Contextualizada vêm apontando caminhos
teóricos e metodológicos importantes, assentados numa prática efetiva dos movimentos
sociais, mas também já experimentadas em parcerias com as estruturas formais de ensino.
Essas discussões geram reflexões sobre essas práticas e suscitam novos fazeres. Esse ciclo é
fundamental para um aporte novo ao pensamento em educação, assim como também é
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urgente o fortalecimento dos diálogos entre as experiências não-acadêmicas, apesar de que
providas de teoria e método, com o conhecimento mais acadêmico.
Quando abordado o tema da desertificação, a Educação Contextualizada realça uma urgente
reflexão a respeito da construção cotidiana do problema em escala local, uma vez que é
através do processo de organização socioespacial, dos sistemas produtivos, das relações de
produção existentes e da perspectiva das políticas públicas adotadas, que historicamente vem
se delineando a intensa degradação da Região do Semi-árido. Mas é fundamental que isso
ocorra em consonância com abordagens mais amplas, que nos permitam compreender as
peculiaridades existentes nos diferentes espaços susceptíveis à desertificação, vislumbrando
também os fios condutores que unem esses espaços.
A elaboração cotidiana do problema, permeada pelos aspectos políticos, ideológicos e
culturais, cria, também, uma forte e diferenciada vulnerabilidade da população às condições
naturais desse espaço. Gera um campo de representações construído, pensado e concebido no
contexto das relações sociais na busca da sobrevivência. Neste sentido, o uso dos recursos é a
expressão concreta dessa elaboração, inclusive simbólica, do semi-árido, que necessita ser
encarada para além de diagnósticos, zoneamentos e componentes técnicos.
Mas, além disso, requer que haja clareza sobre os conceitos e suas construções históricas,
assim como seus usos, buscando evitar que as palavras mascarem o verdadeiro sentido das
coisas.
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Notas:
Geógrafa, pesquisadora da Coordenação de Estudos Ambientais e da Amazônia da
Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj –, e integrante do Núcleo de Gestão Ambiental
da Faculdade de Ciências da Administração de Pernambuco – FCAP/UPE.
2
Referência direta à Alegoria da Caverna, contida na obra A República, de Platão.
3
Primeira Conferência Intergovernamental de Educação Ambiental, ocorrida em
Tbilisi no ano de 1977.
4
Formulado pelo Fórum da Sociedade Civil, durante a Conferência Rio 92.
5
Segundo Moscovici (1978, p. 26) “é uma modalidade de conhecimento particular
que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os
indivíduos”.
6
Lívia de Oliveira, no prefácio do livro Viagem ao Sertão Brasileiro.
7
Convenção de Combate à Desertificação e aos Efeitos da Seca – CCD –, que define
a desertificação como “a degradação da terra nas regiões áridas, semi-áridas e
subúmidas secas, decorrente das mudanças climáticas e das atividades humanas”. O
entendimento de degradação da terra pressupõe a degradação do solo, dos recursos
hídricos, da biodiversidade e das condições de vida da população.
8
Termo utilizado por Edgar Morin.
9
Presentes no trabalho de Yi-Fu Tuan, “Topofilia” e “Espaço e Lugar”
10
RAFESTIN, Claude. Paysage y territorialité. Cahiers de Géographie de Québec,
v.2, p. 123-124, sep./dec., 1977.
11
Lei Federal n. 9.394, aprovada em 20 de dezembro de 1996.
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Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Fernando Haddad
Secretário de Educação a Distância
Ronaldo Mota
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SALTO PARA O FUTURO
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Carmen Moreira de Castro Neves
Coordenadora Geral de Produção e Programação
Viviane de Paula Viana
Coordenadora de Educação Básica
Angela Martins
Supervisora Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
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Copidesque e Revisão
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Diagramação e Editoração
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Junho 2006
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