Caminhos de leitura e escrita de Carolina Maria de - SIALA

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Caminhos de leitura e escrita de Carolina Maria de - SIALA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
CAMINHOS DE LEITURA E ESCRITA DE CAROLINA MARIA DE JESUS
Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro1
Júlio Cézar Barbosa 2
RESUMO: A presente comunicação objetiva apresentar, sinteticamente, os caminhos traçados e percorridos
por Carolina Maria de Jesus no que diz respeito aos seus processos de leitura e escrita. De Sacarmento, em
Minas Gerais, em 1914, a Parelheiros, São Paulo, em 1777, data do seu falecimento, essa mulher negra,
pertencente a classe sócio-econômica menos favorecida, estabeleceu planos e metas objetivando sair da
favela do Canindé, rumo a um sítio, no interior de São Paulo, onde acreditava que iria encontrar
tranquilidade e a tão sonhada felicidade. Responsável pelo maior best seller da literatura brasileira, com
vendas estimadas hoje em mais de um milhão de exemplares em todo o mundo, só com a publicação de
Quarto de Despejo (1960), Carolina publicou, ainda, Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961);
Provérbios (1963); Pedaços da fome (1963); Diário de Bitita (1986); Meu estranho diário (1996) e Antologia
pessoal (1996), sendo esses três últimos obras póstumas. Vale comentar que a escritora só conseguiu estudar
até a segunda série do antigo primário. Percorrer, acompanhar o trajeto realizado por Carolina acaba por
inspirar outras mulheres negras a lutar pela concretização de seus sonhos.
PALAVRAS-CHAVE: Carolina Maria de Jesus – Leitura - Escrita
Observações primeiras que auxiliam a compreender a proposta apresentada
[...] Faz dois anos que deixei de ser lixeira para ser escritora. Eu me considero
exotica. Tem pessôas que saem das Universidades pra ser escritora. E eu sai da
favela. Sai do lixo. Sai do quarto de despejo. E o meu nome corre mundo. Com as
traduções do meu livro. (JESUS, 19963, p. 201)4.
Esta comunicação, genericamente, busca narrar parte da vida e obra de Carolina Maria de
Jesus, sobretudo explicitar os caminhos de leitura e escrita realizados pela mesma. Para tanto,
seguiremos os mesmos passos da autora: narrar o seu cotidiano, bem como dos demais que
dividiram da mesma realidade histórico-social da escritora. Por esta via, usaremos Quarto de
despejo – diário de uma favelada (1960), Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961) e
Diário de Bitita (1986), para ilustrar o que se desejamos partilhar. Para isso, procuramos seguir as
pistas deixadas por ela, que, por sua vez, nos levam aos caminhos traçados e percorridos no que se
refere aos seus processos de leitura e de escrita. Trajetos quase sempre marcados pelas mais
1
Mestre em Educação e Contemporaneidade pelo PPGEDC/UNEB. Faculdade Dom Pedro II (Docente)
[email protected]
2
Mestre em Educação e Contemporaneidade pelo PPGEDC/UNEB. Faculdade Dom Pedro II (Docente).
[email protected]
3
JESUS, Carolina Maria de. Meu estranho diário. (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M.
Levine). São Paulo: Xamã, 1996.
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Todas as citações retiradas e produzidas das obras de Carolina Maria de Jesus foram transcritas conforme o
texto e a redação originais.
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diversas e múltiplas adversidades, mas que nem por isso impediram-na de chegar onde desejava: ser
uma escritora reconhecida pelo grande público.
No caminho inverso ao realizado por Ló5 e sua família, quando precisaram sair de Sodoma e
Gomorra, às pressas e proibidos de olhar para trás, segue Carolina Maria de Jesus. Ló tinha de
seguir adiante e não guardar lembranças de um tempo de “pecado e perdição”, sua companheira,
porém, ao dirigir o olhar para trás transforma-se em coluna de sal. Em Carolina olhar para trás e
recordar era um exercício urgente, necessário e diário. Este ritual lhe era imprescindível para
perseguir na trilha que tinha tomado para si: narrar partes significativas do que viveu e viu.
A prática de olhar para trás e registrar tanto o passado mais recente, no gênero diário,
(Quarto de despejo (1960) e Casa de Alvenaria (1961)) quanto o passado mais remoto, no gênero
(auto)biográfico – como as memórias de infância apresentadas no Diário de Bitita (1986) que,
apesar de levar esse título, muito se aproxima de uma autobiografia6 ou autoficção7, serviu para ela
atribuir sentidos e significados ao até então vivido. Ou seja, narrar para tentar compreender a difícil
vida que levava desde criança; para se ouvir; para se dizer; para criar forças para prosseguir; para
denunciar as atrocidades pelas quais passou; “caminhar para si” (JOSSO, 2010); “tecer uma figura
pública de si” (PASSEGGI, 2008), para se arquivar; para (re)ver-se, (re)elaborar-se e (re) fazer-se;
para propagar as suas memórias ou até mesmo para concretizar o sonho maior que era o de ser uma
escritora: “Todos os dias escrevo” (JESUS, 20078, p. 22). Enfim, para se ouvir, talvez?
Quando escrevi o meu diário não foi visando publicidade. É que eu chegava em
casa, não tinha o que, não tinha o que comer. Ficava revoltada interiormente e
escrevia. Tinha impressão que estava contando as minhas magoas alguem. E assim
surgiu o “Quarto de Despejo”. (JESUS, 19619, p. 181).
Quem sabe inspirada, intuitivamente, nos seus ancestrais negros africanos, a exemplo dos
povos akan, localizados na África Ocidental, especificamente entre Gana e Costa do Marfim que,
através de ideogramas denominados adrinka10, acreditavam que o passado era sempre uma fonte de
ensinamentos e aprendizagens. Para eles: “Nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para
5
Gênesis 19:26
Escrita do Eu na primeira pessoa.
7
Ficcionalização de fatos e acontecimentos absolutamente reais (FIGUEIREDO, 2010, p. 92).
8
Apesar do livro Quarto de despejo ter sido publicado em 1960, a versão utilizada para elaborar esse artigo é a
reedição da Ática/Sinal Aberto, datada de 2007.
9
JESUS, Carolina Maria. Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves (Editora Paulo de Azevedo Ltda), 1961.
10
Tradicionalmente, os adrinka aparecem estampados com tinta vegetal em tecido de algodão que as pessoas
usam em ocasiões fúnebres ou homenagens. Mais de oitenta símbolos são conhecidos hoje e a sua simbologia é
relacionada a provérbios representados por animais. Estes costumam transmitir aspectos da história, filosofia, valores e
normas socioculturais do povo de Gana.
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trás. Sempre podemos retificar nossos erros”. Carolina acreditava que era de extrema importância
ler e registrar o seu cotidiano e que um dia esses manuscritos a tiraria dos lugares desfavorecidos
sócio-economicamente pelos quais tivera que passar em sua trajetória existencial, bem como algum
tempo depois, também, seus três filhos: João (falecido logo após Carolina11), José Carlos e Vera
Eunice, todos ainda crianças.
[...] A única quadia que eu tive fartura foi quando cultiva a terra. Se estou
escrevendo, e porque tenho pretensões – quero comprar uma casinha para os
meus filhos. Quando eu vêjo as pessôas que ficam me aborrecendo por causa de
dinheiro, eu desvio dêles. (JESUS, 1996, p. 71 – grifo nosso).
Acredita-se que o formato da comunicação próximo a um patchwork, uma “colcha de
retalhos”, auxilie a um melhor conhecimento tanto da vida quanto da obra de Carolina Maria de
Jesus uma vez que busca mesclar narrativas que contem os caminhos de leitura e de escrita da
autora, com as passagens oferecidas pelas suas diferentes publicações. Desta forma, busca-se, ainda,
conhecer um pouco mais sobre as travessias realizadas pela protagonista no intuito de assegurar
para si e para sua família uma vida menos desgastante do que a que precisou passar para chegar
onde desejava e ainda assim não ter o descanso que sonhava.
Agora que tenho dinheiro sou procurada igual um personagem em destaque.
Transformei-me em abelha rainha de uma colméia que não quer mel, quer dinheiro.
... Quando cheguei em casa, que confusão. Louças sujas, o assoalho imundo, as
camas desfeitas, os filhos sujos. Deitei, pensando: não foi assim que idealizei a
minha vida na casa de alvenaria. (JESUS, 1961, p. 153).
... Pensei nas reviravoltas da minha vida depois do lançamento do livro. A fama
espalhou-se que estou rica. E adeus, tranqüilidade. Todos desejam ser ricos.
(JESUS, 1961, p. 152).
Espaços geográficos percorridos e seus desdobramentos literários
O itinerário a ser narrado vai do Centro Oeste ao Sudeste brasileiro, ou seja, de Minas
Gerais a São Paulo. Em Minas Gerais: Sacramento → Fazenda do Lajeado12 → Sacramento. Em
São Paulo: Franca13 → Canindé → Osasco → Santana → Parelheiros.
11
Conta Vera Eunice em um depoimento pertencente a publicação Cinderela Negra de autoria de Meihy e
Levine: “[...] O João viveu muito tempo com a gente, mas morreu logo depois de minha mãe, com vinte e pouco anos
[...]” (1996, p. 69).
12
Essa localidade aparece na publicação de 1986, Diário de Bitita um lugarejo pertencente a Uberaba (p. 128).
Já na tese de Oliveira (2012), abaixo referenciada aparece mais um espaço que não encontramos registro em outra fonte
que é Sales Oliveira (p. 46).
13
Na dissertação de Erica Cristina de Oliveira defendida na USP em 2012 e intitulada “De quarto de despejo a
Le dépotoir, o processo de refração na reescrita do diário de Carolina Maria de Jesus”, encontramos dados que nos
parecem complementares. Diz a autora que, depois de Franca, Carolina percorreu, junto com a mãe ainda, Uberaba,
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Para cada lugar, histórias para se contar sobre os mesmos, sempre no desejo de permanecer
na história, através da escrita das suas memórias e dos seus. Carolina não duvidou que pudesse
concretizar os seus desejos de vir a ser uma escritora e comprar a tão sonhada Casa de Alvenaria, o
que só aconteceria em 1961, no entanto essa história começa muito antes, provavelmente14 em 1914
em Sacramento, Minas Gerais.
Começa, então, a saga dessa mulher negra, brasileira, de origem humilde, que ousou sonhar
em adentrar ao mundo fechado e elitista dos letrados, predominante para homens e brancos.
Contudo, antes de se tornar o que veio a ser, era tão somente Bitita, uma menina curiosa, ousada e
que gostava de saber sobre a vida e os motivos das coisas serem do jeito que eram. Isso provocava
muita impaciência em quem lhe rodeava, sobretudo em sua genitora.
Bitita logo percebeu a importância dos conhecimentos adquiridos em tal instância, tratou de
vencer medos, receios, teimosias; aprender o que seria o seu refúgio e meio de mudar as situações
que o destino lhe apresentava, isto é, a leitura:
Tinha uma negrinha Isolina que sabia ler. Era solicitada para ler as receitas. Eu
tinha uma inveja da Lina! E pensava: “Ah! Eu também vou aprender a ler se Deus
quiser! Se ela é preta e aprendeu, por que é que eu não hei de aprender”?
Ficava duvidando das minhas possibilidades porque os doutores de Coimbra
diziam que os negros não tinham capacidade. Seria aquilo perseguição? Qual era o
mal que os negros haviam feito aos portugueses? Por que é que eles nos odiavam,
se os negros eram pobres e não podiam competir com eles e nada? Aquelas críticas
eram complexas na mente do negro. [...]
Perguntei à minha mãe:
- Por que é que o mundo é tão confuso?
Respondeu-me.
- O mundo é uma casa que pertence a diversos donos, se um varre, vem o outro e
suja-a. (JESUS, 1986, 50-1).
Em um episódio de ingestão de bebida alcoólica, dada por uma de suas madrinhas, a sinhá
Maruca, Bitita passa mal e ao ser consultada por um médico espírita ouve o que parecia ter a força
de uma profecia:
Ribeirão Preto, Jardinópolis, Sales Oliveira, Orlândia. Já na publicação “Diário de Bitita o trajeto realizado por Carolina
Maria de Jesus de Minas gerais a São Paulo e narrado pela mesma foi: Sacramento, Fazenda do Lajeado (Uberaba),
Conquista, Uberaba, Sacramento, Ribeirão Preto, Jardinópolis, Orlândia, Sacramento, Franca e por fim a tão sonhada
cidade de São Paulo.
14
Como em quase todas as famílias menos abastadas, o registro de nascimento costuma ocorrer muito depois de
decorrido o parto, segue a dúvida ou a imprecisão sobre a data de nascimento real da escritora.
Encontramos a seguinte passagem no Diário de Bitita: “No dia 27 de agosto de 1927 o vovô faleceu. Minha mãe disseme que eu estava com seis anos. Será que eu nasci no ano de 1921? Há os que dizem que nasci no ano de 1914.”
(JESUS, p. 1986, p. 120)
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Minha mãe queixou-se que eu chorava o dia e noite. Ele15 disse-lhe que meu
crânio não tinha espaço suficiente para alojar o miolos, que ficavam comprimidos,
e eu sentia dor de cabeça. Explicou-lhe que, até aos vinte e um anos, eu ia viver
como se estivesse sonhando, que a minha vida ia ser atabalhoada. Ela vai adorar
tudo o que é belo! A tua filha é poetisa; pobre Sacramento, do teu seio sai uma
poetisa. E sorriu. Deu-me uns remédios para vomitar o álcool e dise com voz
enérgica:
- Você ... nunca há de beber. O álcool é péssimo promotor. Porque hei de auxiliá-la
sempre. (JESUS, 1986 p. 71 – grifo nosso).
Porém, um longo período passaria, antes que essa profecia se realizasse. O êxodo
empreendido por Bitita e sua família, sempre em busca de melhores condições de sobreviência, leiase aqui alimentação e saúde, pois Carolina foi uma criança e adolecente que sofreu de um mal de
pele que muito lhe aflingiu e demorou a sarar, foi uma constante: “Se a Bitita sarar, ela ai ficar rica!
Ela é muito inteligente. Mas ela não há de sarar.” (JESUS, 1961, p. 144).
Sobre o poder da leitura:
Carolina Maria de Jesus descobriu muito cedo a importância da leitura e o prazer que esta
proporcionava. Em muita passagens dos seus diários, ela se permite revelar esses dois aspectos:
[...] Percebi que os que sabem ler têm mais possibilidades de compreensão. Se
desajustarem-se na vida, poderão reajustar-se. Li: “Farmácia Modelo.” Fui
correndo para casa. Entrei como os raios solares.
Mamãe assustou-se. Interrogou-me:
- O que é isto? Está ficando louca?
- Oh! Mamãe! Eu já sei ler! Como é bom saber ler! (JESUS, 1961, p. 126).
Compreendo que os que sabem lêr têm mais possibilidades para viver melhor.
(JESUS apud MEIHY; LEVINE, 199416, p. 175).
[...] Quando eu percebi que sabia lêr, fiquei amiga dos livros. Leio todos os dias.
[...] (JESUS, 1996, p. 183 – grifo nosso)
[...] Não ha nada de exepcional na minha vida fui lendo e adiquiri conhecimentos.
Se houve transformação na minha vida devo agradecer aos livros. (JESUS, 1996, p.
185).
Sem esse investimento, que parece mínimo, Carolina não teria conseguido concretizar os
seus desejos tampouco driblar as inúmeras adversidades pelas quais teve que passa durante a sua
15
Um médico espírita de nome Eurípedes Barsanulfo. Uma profecia? Declaração feita quando de uma consulta
da Carolina, até então Bitita, acompanhada de sua mãe que chega passando mal por ingestão de pinga dada pela siá
Maruca (madrinha de Carolina) para que ela parasse de chorar.
16
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; LEVINE, Robert M. Cinderela negra: A saga de Carolina Maria de Jesus.
Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1994.
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árdua existência. Sem a leitura realizada, a partir do descarte do que a sociedade não mais desejava
e sem a parca escolaridade a que teve acesso e oportunidade, Carolina não teria escrito tudo o que
produziu. Foi a aposta em tais atos: na leitura e na escrita, que possibilitou que ela produzisse tanto
e em tão pouco tempo. Escrever sobre o experienciado, o vivido, o seu dia-a-dia de luta.
Primeiros passos no processo criativo e na escrita
Segundo relatos da própria escritora, foi entre o final da década de 1930 e início da seguinte
que seu processo criativo começou a despontar. O mesmo coincide com a sua ida do interior do
Estado de São Paulo, Franca para a capital São Paulo, lugar que Carolina atribuiu poderes quase
mágicos. Acredita que a atmosfera do lugar foi a responsável pelo início do seu processo. Pensamos
que tal atitude deva-se ao fato de muitos brasileiros de outras regiões e estados criarem um
deslumbramento pelo eixo sudeste, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo. Carolina não estava
imune a tal fascinação. É o que revela o trecho abaixo:
Desde êse dia eu comecei a fazer versos. É que as pessoas que residem em São
Paulo, pensam com mais intensidade. Por isso éque o meu cérebro,
desenvolveu-se.
Eu ignorava as minhas qualidades poéticas. Quando percebi: que medo! Fiquei
apavorada. Para mim foi surpresa. Nunca pensei que um dia me tornasse poetisa.
(JESUS apud MEIHY; LEVINE, 199417, p. 186 – grifo nosso).
Ouçamos um pouco do que ela nos conta sobre o conturbado, confuso e enigmático período,
no qual a mesma ainda lutava pela sobrevivência, para garantir o pão de cada dia, quando ainda era
sozinha, não tinha filhos, mas ganhava mais uma demanda para dar conta, a criação literária, o
desejo de colocar no papel o que dilacerava o seu íntimo:
E êste dia chegou: dia 31 de janeiro de 1937, eu deixava Franca com destino a São
Paulo. Estava preocupada pensando: “como será que vaiser a minha vida aqui?”
Será que São Paulo é apropriada para os poxxbres, ou é um recanto destinado
somente para os ricos? Porque todos tem a impressão que os ricos são ditosos? Que
quando nascem já são vacinados com a felicidade?18 [...] (JESUS apud MEIHY;
LEVINE, 1994, p. 184-5)
17
Na publicação Cinderela negra, de autoria de Meihy e Levine (1994) constam dois textos inéditos de autoria de
Carolina e em um deles intitulado de “Minha vida ...”, no prólogo encontramos passagens que revelam o que Carolina
considera o início de seu processo de criação, quando as ideias poéticas se apoderam dela, quando da chegada desta a
São Paulo, inclusive atribui ao lugar, poderes para que tais coisas aconteçam.
18
As passagens que pertencem a esse texto de Carolina estão na publicação de Meihy e Levine todas em letras
maiúsculas e devem corresponder ao original encontrado. Optamos por não alterar aqui para não destoar do padrão
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E se o povo esta sorrindo entao a cidade é boa. Aquela tristeza que senti foi
desaparecendo aos poucos. Só no interior eu era tranqüxxa; mas percebi que o meu
pensamento ia modificando-se. Era uma transição que não me era possível dominala. Que desordem mental tremenda. Sentia ideias que eu desconhecia como se
fosse alguem ditando algo na minha mente.
Um dia apoderou-se de mim um desejo de escrever: Escrevi.
Adeus dias de ventura, adeus mundo de ilusão vou recluir-me na sepultura debaixo
do frio chão.
Vou satisfeita, risonha. Contente para não mais voltar. A minha vida é tristonha. –
Morrendo irei descansar. Trabalho não tenho conforto. Levo a vida a lutar somente
depois de morta, nada mais tenho em que pensar. (JESUS apud MEIHY; LEVINE,
1994, p. 185 – grifo nosso).
No ano de 1940, manifestou-se em mim as ideias literarias. Fiquei apreensiva com
aquela fusão mental.
As vezes eu saia vagando sem destino para distrair-me um pouco e descongestionar
a mente. Quando eu escrevia tinha a impressão que o meu cérebro normalizava-se.
Que alivio! Que me dera ser sempre assim? O meu desejo era escrever, mas não lia
os meus escritos. [...](JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p. 186).
Falei com o distinto jornalista Sr. Vili Aureli.
Mostrei-lhe os meus escritos e perguntei o que era aquilo que eu escrevia. Ele
olhou-me minuciosamente, sorriu e respondeu-me:
- Carolina, você é poetisa – Levei um susto, mas não demonstrei. O meu coração
acelerou-se, como se fosse um cavalo de corrida. Pensei: - ele disse que eu sou
poetisa. Que doença será esta. Será que isto tem cura? Será que vou gastar muito
dinheiro para curar esta enfermidade? – Pensei: circula um boato que os poetas são
inteligentíssimos. Por isso eu fiquei com vergonha de perguntar ao senhor Vili
Aureli o que é ser poetisa. Saí da redação impressionada com as maneiras corretas
do Sr. Aureli. [...] (JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p. 187).
[...] Dirigi à Praça da Sé e tomei o bonde, Bresser. Ao meu lado ia um senhor lendo
a Fôlha da Manhã.
Perguntei-lhe: - o que quer dizer poetisa? – É mulher que tem o pensamento
poético. Porque, pergunta, a senhora é poetisa? O jornalista disse-me que sim.
Então os meus parabéns.
E a senhora pretende escrever alguns livros?
Fiquei orrorizada interiormente e o meu coração acelerou-se.
Então poetisa tem que escrever livros? Eu não tenho condição para ser escritora.
Não estudei! Silenciei com receio de dizer banalidades.
O homem olhou-me nos olhos e eu transpirei por saber que eu era poetisa e não
tinha cultura e era semi-alfabetisada. [...] (JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p.
187).
[...] Eu já estava aborrecendo-me de ter vindo para São Paulo. Lá no interior eu era
mais feliz. Tinha paz mental. Gozava a vida e não tinha nenhuma enfermidade e
aqui em são Paulo, eu sou poetisa!
existente ao longo do artigo e que procura respeitar a formatação indicada no formulário padrão. Trata-se de dois textos
inéditos da autora intitulados de: “Minha vida ...” e “O Sócrates africano.
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Eu hei de saber o que é ser poetisa e quais são as vantagens ou desvantagens que
existem para um poeta. [...] (JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p. 188 – grifo
nosso).
[...] Eu lutava contra o pensamento poético que me impedia o sono. Percebi que
andando de um lado para o outro o pensamento poético se dissipava um pouco.
Quando sentia fome as idéias eram mais intensas. Comendo algo eu notava que
dixxminuiam e passei a ter medo da fome. Passei a trabalhar de pressa. Andarx
com rapidez, não parava um segundo para me cansar, deitar e adormecer um
pouco. Não posso sentar por longo tempo. É que se eu ficar sem mover-me, os
versos comezam a surgir. Tenho que estar em atividade ininterruptamente e quando
desperto deixo o leito. (JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p. 188)
Nota-se com todas as passagens aqui reproduzidas o quanto Carolina encontrava-se confusa
e insegura e não era para esperarmos nada diferente disso se levarmos em consideração todo o
contexto e história de vida da autora. E essa insegurança e apreensão seguiram juntas com ela, de
“mãos dadas”, com a deterninação e garra para vencer que nunca lhe faltou, pois segundo as suas
próprias palavras: “[...] Ele ainda não me conhece. Não sabe que eu sou descendente da bomba
atômica”. (JESUS apud MEIHY, 1996, p. 136-137).
Trajetórias e “profecias” realizadas: rotas de leitura e escrita de Carolina Maria de Jesus
E segue a mulher negra, pobre, semi alfabetizada, que desejava ser escritora, cheia de
determinação rumo a tentativa de concretização de seus objetivos, não sem antes sofrer os mais
diversos e diferentes dilemas. Momentos de confusão, quase desistência, mas de tenacidade e
teimosia também. Entre a batalha diária, initerrupta e que a deixava exaurida, mesmo em meio a
exaustão que lhe tomava, todos os dias providenciava tempo para elaborar possibilidades de vencer,
de acreditar que era possível.
Escritos sempre em primeira pessoa, Carolina Maria de Jesus assume sempre a
responsabilidade pelo dito: “Nunca feri ninguém. Tenho muito senso! Não quero ter processos. O
meu registro Geral é 845.936” (JESUS, 2007, p.16).
Caminhos primeiros da escrita:
No ano de 2014 é comemorando o centenário, se viva estivesse, de Carolina Maria de Jesus.
No entanto, ela permanece entre nós, sobretudo através da sua escrita.
Lembrar e comemorar essa data serve para não esquecer de sua trajetória de vida, permeada
de forçados deslocamentos, que não a impediram, mesmo em meio as mais diversas dificuldades, de
ler e escrever.
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Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), narra o cotidiano de Carolina, dos seus
filhos e vizinhos na favela do Canindé de 15 de julho de 1955 a 01 de janeiro de 1960. No entanto,
muito do original foi alterado e, nem sempre, sinalizado. Supressões, acréscimos e substituições as
mais diversas ocorreram e, nem sempre, foram assumidas19.
Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, publicado em 1961, criou a expectativa do
contar dessa nova etapa, mas pouco foi explicitado sobre tal período, mesmo porque a dinâmica de
deslocamento apresentada pela autora e de pouco tempo na tão sonhada residência parece explicar,
pelo menos em parte, o pouco que a mesma socializa desse momento.
Por conta própria publica: Provérbios (1963)20, livro com máximas de como vencer na vida
e Pedaços da fome (1963), este último é um romance, mas que não tem a resposta que desejava com
os mesmos que venderam muito pouco. Alguns críticos chegam a afirmar que o contexto sóciohistórico da ditadura militar não foi favorável ao lançamento dos mesmos, sobretudo, pelo caráter
sempre polêmico, contestador e de denúncia existente na escrita de Carolina.
Na fuga para garantir uma paz de espírito mínima, Carolina segue em seu infidável êxodo
para o interior, Parelheiros, ela se consegue fugir dos holofotes e pedintes, volta para a miséria,
dificulades financeiras e passa a viver, praticamente, do que colhe na horta cultivada por ela em seu
quintal.
Sua ida definitiva para tal localidade ocorre em 18 de dezembro de 1963 (MEIHY;
LEVINE, 1996, p. 283). Ela agora mora em uma casa inacabada, faltando janelas. Ainda assim,
Carolina parece satisfeita: “Que silêncio gostoso. Não ha radio. Apenas o côoxar dos sapos. Que
sono reconfortante. Não ouço aquelas vozes curiosas”. (JESUS apud MEIHY; LEVINE, 1996, p.
284). O desejo de morara no sítio era tão grande quanto o de outrora sair da favela para a casa de
alvenaria.
A precariedade era tamanha que Carolina nem teve condições e possibilidades de ir ao
hospital cuidar da crise asmática que passava. Morreu a caminho do mesmo, depois muito aguardar
por uma carona.
Em seu sepultamento, se antes sonhava com uma lápide em forma de livro, sequer flores
existiram. Os próprios moradores do bairro foram os que providenciaram a cerimônia, muito
modesta. Carolina já tinha caído no ostracismo, depois de toda exploração sofrida em sua curta
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É o que revela o livro de Perpétua (2014) – ver referências completas ao final do artigo.
Não existe unanimidade no que diz respeito ao ano de publicação desta obra.
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carreira como escritora e da qual nunca conseguiu se livrar do complemento “favelada”, mesmo
tendo há muito deixado tal lugar.
Inúmeros foram e ainda hoje são os adjetivos e expressões utilizados para desprestigiá-la, no
intuito, talvez, de desacreditar o potencial ideológico e de denúncia existente ao longo da sua
produção.
Quando do seu falecimento em 1977 foram publicados, postumamente: Diário de Bitita
(1986), Meu estranho diário (1996) e Antologia pessoal (1996).
Passados cinquenta e quatro anos da publicação da sua mais famosa obra “Quarto de
Despejo: Diário de uma favelada”, Carolina é cada vez mais lembrada pela Academia, a mesma que
fez questão de execrá-la e tentar colocá-la no ostracismo, mas que a força e importância da sua
escrita não permitiram que lograssem êxito em tal intento.
Foram seis as obras publicadas: Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960); Casa de
alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961); Provérbios (1963); Pedaços da fome (1963); Diário de
Bitita (1986); Meu estranho diário (1996) e Antologia pessoal (1996)21, sendo esses três últimos
obras póstumas. Há, ainda, aproximadamente, trinta e cinco cadernos inéditos com Vera Eunice,
filha mais nova da escritora e responsável/guardiã pela memória da mãe e, segundo Germana
Henriques22, 4.500 páginas manuscritas foram microfilmadas e encontram-se na Biblioteca
Nacional.
Só aqui em casa, tenho três romances inéditos dela, escritos a mão. Em
caderninhos. Tudo tinha um fundo de verdade, pois as histórias aconteceram
MESMO!23 (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 68)
Quarto de despejo foi publicado em treze línguas e em mais de quarenta países, dentre eles
podemos citar em 1961: Dinamarca, Holanda e Argentina. Em 1962: França, Alemanha Ocidental,
Suécia, Itália, Checoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos e Japão e em 1963 na Polônia,
em 1964 na Hungria e em 1965 em Cuba, segundo dados fornecidos por Perpétua (2014, p. 89). É
Perpétua (2014, p. 88) quem afirma ainda: “ Em alguns dessses países, registram-se, também, várias
reedições de Quarto de Despejo e a publicação do segundo diário de Carolina, Casa de Alvenaria,
bem como o póstumo Diário de Bitita”.
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Livro de poemas, publicado após a morte da autora por Meihy.
SOUSA, Germana Henriques Pereira. Carolina Maria de Jesus: O estranho diário da escritora vira-lata. Tese
defendida na Universidade de Brasília, em 2004, (inédita) e que posteriormente, é publicada.
23
Fala de Vera Eunice em Cinderela negra, livro organizado por Meihy e Levine.
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Só nos três primeiros dias de lançamento, alcançou o recorde de vendas na cidade de São
Paulo (dez mil exemplares e, em seis meses, noventa mil cópias em todo o território nacional)
(MEIHY, 1994, p. 25). O montante de vendas a que se chega hoje encontra-se calculado em um
milhão de exemplares pelos mais diferentes lugares do planeta. (PERPÉTUA, 2014, p. 92): “[...]
outro dado a ser considerado para o entendimento do alcance do diário em todo o mundo, porque se
relaciona indiretamente ao número de leitores, seria o número de exemplares vendidos pelas
editoras estrangeiras, estimado em 1 milhão.”
Driblando as inúmeras adversidades para chegar a Casa de Alvenaria
Inúmeras e múltiplas foram as dificuldades existentes para que Carolina pudesse manter seu
interesse e ritmo de leitura, sobretudo a sua luta initerrupta pela sobrevivência, a busca pelo
alimento diário que precisava garantir não só para si, mas para seus filhos também: João, José
Carlos e Vera Eunice.
...Comecei a preparar o almôço, arroz, feijão e carne. Eu estava
escrevendoenquanto as panelas ferviam, quando chegou um senhor da Livraria e
disse-me que o reporter vinha trazer o meu livro. Fiquei alegre (JESUS, 1961, p.
32)
Levantei de manhã e escrevi até o astro-rei despontar. Fi café e comprei leite para
os filhos. Eles abluiram-se. (...) estava ageitando a casa quando chegou o preto
Roberto. Êle está dessempregado. Dei 1.000 cruzeiro para o preto Roberto, porque
êle queria suicidara-se. Que baixeza! Um homem forte no fisico e fresco nas
resoluções. (JESUS, 1961, p. 64)
Levantei as 3 horas para escrever e ler um pouco, porque não tenho tempo durante
o dia. Porque os meus filhos reinam muito [...] (JESUS, 1961, p. 69).
Em várias passagens, desde o primeiro diário, Carolina descreveu sobre o tempo em que
teve para escrever e que ficou comprometido com os afazeres domésticos. Ela teve que dividir o
mesmo com as atividades do lar e criação dos filhos; dedicação com a leitura e produção literária,
além de compromissos com a editora e livrarias. Não fosse a sua determinação em vencer e
concretizar os seus sonhos, a jornada seria insuportável, como em muitos momentos assim se
apresentou.
Os momentos de escrita foram sofridos, no entanto, isso não tirou de de Carolina a grande
tarefa de se tornar uma escritora e com isso mudar-se para uma casa de alvenaria, em 24 de
dezembro de 1961, como ela declara:
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O sol estava gostoso. Comecei a pensar na minha vida. todos dizem que fiquei rica.
Que eu fiquei feliz. Quem assim o diz estão enganados. Devido o sucesso do meu
livro eu passei a ser olhada como uma letra de cambio. Represento o lucro. Uma
mina de ouro, admirada por uns e criticada por outros. Que Natal confuso para
mim. (JESUS, 1961, p. 114)
Ou um pouco mais adiante, véspera de findar o ano de 1961, comenta ainda sobre o assunto
da instabilidade e o quanto ficava confusa com tantas transformações e sua vida:
[...] Cada fim de ano é de um geito. O ano passado eu estava na favela. Este ano na
casa de alvenaria. Desde os meus 8 anos que estou procurando localizar a
tranquilidade e a felicidade (JESUS, 1961, p. 119)
Carolina revela em muitas passagens que tinha nitidez do quanto era usada e em alguns
momentos usurpada do muito que conseguiu com sua primeira publicação. Ainda que não
dominasse por completo motantes, valores de vendas, direitos autoriais ou a completa repercussão
que seu primeiro livro causou, dentro das suas limitações, sabia de que não era pouca coisa, nem os
valores alcançados com as vendas, nem o quanto seu livro tinha alcançado geograficamente, mas
isso não impediu que continuasse tendo que quase mendigar quantias que eram suas por direito,
nem passar por certas dificuldades no que se refere ainda ao quesito moradia e alimentação, como
revelam muitos trechos das obras. Inúmeras idas dela ou de um dos seus filhos a livraria para
solicitar dinheiro quando testemunhavam os comentários indispostos sobre a presença deles no local
e o motivo da ida.
Apesar do título sugerir que Carolina passe a narrar o seu cotidiano nessa nova etapa de sua
vida, quando sai da favela do Canindé e vai para a tão sonhada Casa de Alvenaria a autora protela
por demais o início dessa história. Ora por se ocupar em demasia ainda com os compromissos
advindos com a publicação de Quarto de Despejo e não conseguir estabelecer uma rotina e
disciplina que garantisse tal produção, ora porque atendia inúmeros e diversificados pedidos,
sobretudo de dinheiro, de conhecidos e desconhecidos que chegavam a sua porta.
Até a centéssima página do livro Casa de Alenaria que contava com cento e oitenta e três
páginas, ela sequer tinha se mudado para a tão desejada residência. Ainda morava de improviso nos
quartos do fundo da casa cedida, temporariamente, pelo Sr. Antonio Soeiro Cabral, em Osasco.
E o que era para ser algo provisório, passar uns dias, essa foi a oferta feita ultrapassou e
muito tal período. Carolina sai corrida da favela do Canindé, apedrejada, devido a insatisfação dos
seus vizinhos e companheiro de flagelo, por sentirem-se devassados em suas intimidades relatadas
no livro e só sairá desse quarto emprestado por poucos dias, cerca de quatro meses depois, no natal
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do ano de 1961. Sai da favela para uma casa de alvenaria, mas não a sua ainda e sim um quarto de
fundos cedido temporariamente, pois sua vida encntrava-se amaeaçada se continuasse no Canindé.
Mesmo com toda a expectativa criada de que o livro seria um sucesso de venda, como realmente
foi, muito tempo passaria ainda para que Carolina não precissasse mais depender de favores e não
passasse por mais humilhação do que já tinha passado na sua trajetória de vida inteira.
Quando finalmente se muda para tão sonhada casa, já estamos na página cento e treze da
referida publicação, faltando muito pouco para que a mesma se encerre (cerca de setenta páginas).
Mas tal mudança não implicou, necessariamente, na tão sonhada paz, em sossego e tranquilidade,
como podemos notar na passagem abaixo, passado somente quarenta e oito horas na casa que até
então era dos sonhos. Não demorou muito para que a concebesse como pesadelo, dado aos
inúmeros incômodos:
Levantei as 5 horas. Que suplicio ver os meus moveis espalhados. E eu que
pensava e sonhava com uma casa de alvenaria, supondo que ia encontrar
tranquilidade.
... Há os que me aborrecem e os que admiram-me. Os que querem auxilio e os que
querem dinheiro para comprar casa. (JESUS, 1961, p. 115)
Em muita outras passagens da referida publicação Carolina explcitará a insatisfação com a
mudança de residência e a concretização do sonho de residir numa “Casa de Alvenaria”. Muito
importunada, pelos mais diferentes motivos, Carolina sequer tinha tempo e a tranquilidade
necessária para continuar escrevendo e cumprir os prazos determinados pela editora para a
publicação deste livro.
Não tenho tempo para escrever o meu diário devido os convites que venho
recebendo de varias cidades do interior para autografar livros. Convite que atendo
com tod prazer, porque vou conhecer algumas cidades do Brasil. Eu estou cansada.
Não tenho tempo para ler. O reporter disse-me que este ntusiasmo do povo passa
(JESUS, 1961, p. 58)
- Eu vi você na televisão.
- Eu vi você nos jornais.
- Tua vida melhorou?
- Não melhorou. Não tenho sossego para escrever. (JESUS, 1961, p. 126)
Em oito de fevereiro responde a um feirante que a interroga de estar acordada tão cedo:
“- Estou escrevendo. Preciso preprara o livro para setembro”. (JESUS, 1961, p. 136)
Estou ficando nervosa com os aborrecimentos diarios. Tem dia que não escrevo por
falta de tempo. (...) O que sei dizer é que a minha vida está muito desorganizada.
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Estou lutando para ageitar-me dentro da casa de alvenaria. E não consigo. Minhas
impressões na casa de alvenaria variam. Tem dia que estou no ceú, tem dia que
estou no inferno, tem dia que penso ser a Gata Borralheira (JESUS, 1961, p. 151)
Passei o dia em casa cuidando da reforma. (...) Lavei roupas e passei. Não tenho
tempo para escrever, com os afazeres da casa. A Dona A. tem vergonha de ser
minha empregada porque ela é branca. Chega as 9 horas e sai as 13. (JESUS, 1961,
p. 176)
... quando cheguei em casa, que confusão. Louças sujas, o assoalho imundo, as
camas desfeitas, os filhos sujos. Deitei, pensando: não foi assim que idealizei a
minha vida na casa de alvenaria. (JESUS, 1961, p. 153)
Pouco ou quase nada foi narrado de tal período no que diz respeito propriamente a sua
vivência na tão sonhada residência. Parece que pouco conseguiu usufruir da mesma, pois pouco ou
quase tempo nenhum permaneceia nela. A autora passava muito tempo longe da residência, ainda
com os compromissos editoriais do livro anterior, Quarto de Despejo. Inúmeras viagens, incluive
para fora do país e muitas seções de autográfos fizeram-a adiar a escrita do segundo diário.
Para além da falta de tempo ainda presa aos compromissos com o livro anterior, Quarto de
despejo, o medo foi um dos maiores motivos que fizeram a nossa aguerrida e determinada escreitora
adiar a escrita do segundo diário:
Hoje é feriado. Não vou sair de casa. Não estou escrevendo o diário com receio de
citar as confusões do povo da sala de visitas. Êles são ambiciosos e comentam com
uma dose de respeito:
- A Carolina é rica. (JESUS, 1961, p. 101)
A autora explicita em algumas passagens desse livro o seu medo de agora narrar sobre quem
tinha dinheiro. Lembra-se, então, do quanto já tinha sido difícil falar dos despossuídos, os seus exvizinhos da favela, recorda, ainda, que saiu de lá apedrejada. O que poderia acontecer agora quando
fosse narrar o cotidiano daqueles que supostamente tinham dinheiro e poder. Diante de tantos
receios passa a não desejar escrever mais. O que pode ser comprovado nas seguintes passagens:
[...] Quando cheguei fui devolver o relogio e ouro que comprei de Dona Elza,
porque não posso dar-lhe os 25.000 cruzeiros. Eu jurei não comprar mais nada, por
causa das criticas do reporter. Êle é um detetive na minha vida. Mas eu vou
publicar só a “Casa de Alvenaria”. Depois desisto. (JESUS, 1961, p. 138).
Passa a amaldiçoar o “dom” e deseja voltar ao tempo em que não era importunada e até
saudades da favela diz sentir como pode ser notado nas passagens abaixo reproduzidas: “[...] Estou
indisposta e agitada, pensando na minha vida trepidante. Todos os dias deparo-me com um
aborrecimento”. (JESUS, 1961, p. 124)
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Levantei furiosa, xingando a minha vida. Estou descontente com esta casa. Olho as
paredes estão sujas. Olho o jardim, está triste porque não tem flor. O quarto onde
estão os moveis dos nortistas está superlotado de pulgas. Tentei entrar, elas
invadiram as minhas pernas. Isto é demais.Vou solucionar a minha vida. Desse
geito é que não vou ficar [...] (JESUS, 1961, p. 125)
Quando chegamos a D. Rosa estava esperando-me. (...) Queixei-me para a D. Rosa
que estou desgostosa com a vida. Na favela era melhor para escrever. Não
recebia visitas todos os instantes. Era ignorada. (JESUS, 1961, p. 135 – grifo
nosso)
Despertei as 2 horas e comecei a escrever. As horas que precio, porque sei que
ninguem vem aborrecer-me com pedido de dinheiro emprestado. Com esses
pedidos eu estou Ficando neurotica. Sobressaltei ouvindo rumores e vozes. É que
as quartas-feiras tem feira na minha rua. Abri a janela e cumprimentei os feirantes.
(JESUS, 1961, p. 136)
...Tomei um carro, pedindo ao motorista para conduzir-me ao Hotel
Serrador. Ia queixando da vida. Se eu soubesse que a minha vida ia ser tão
cofusa assim eu continuava na favela catando papel (JESUS, 1961, p. 98)
Medo e incômodo passaram a ser as emoções mais presentes no cotidiano da escritora em
ascensão. Ainda que não fosse a sua preferência escrever os diários, sua marca como autora, era
induzida por seu editor e “descobridor” de que era o que ela fazia de melhor e onde se encontrava a
sua “força narrativa”.
Caminhos de leitura e escrita de Carolina Maria de Jesus: para onde apontam e nos levam?
Após quase quatro décadas do seu falecimento, Carolina Maria de Jesus vive em cada grafia
negra existente que faz dessa escrita arma de luta contra o racismo e a discriminação, de denúncia
do legado deixado pelo nefasto processo de escravização/colonização. Falecida em 1977, em
Parelheiros, local escolhido para encontrar a paz de espírito e o tão merecido sossego, parece ter
faltado ar a nossa heroína que morreu a caminho do hospital durante uma crise asmática. Porém,
nunca lhe faltou fôlego para escrever as atrocidades pelas quais se viu obrigada a passar ao longo da
sua existência. Brava e determinada, Carolina seguiu no desejo de ver concretizado seu sonho mais
antigo: ser uma escritora.
Ao mesmo tempo em que, com os seus escritos, Carolina acaba por se arquivar, se publiciza.
Apresenta-se, então, como guardiã e, concomitantemente, propagadora das suas memórias.
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O exemplo ofertado por essa mulher negra acaba por inspirar tantas outras que vivem tão
próximo a dura realidade compartilhada por ela conosco. Do sonho/desejo à concretude. Garra e
determinação nunca lhe faltaram.
Resta-nos agora aguçar nossos sentidos para nos permitirmos conhecer várias outras
mulheres negras cheias de tenacidade e certeza de seus caminhos, sonhos e metas. Muito bem
Carolina! Obrigado pelo legado.
Referências
FIGUEIREDO, Eurídice. Autoficção feminina: a mulher nua diante do espelho. Revista criação &
Crítica.
n.
4.
Abr/2010.
P.
91102.
Disponível
em:
http://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/download/46790/50551. Acesso em 03 mar. 2014.
SOUSA, Germana Henriques Pereira de. Carolina Maria de Jesus: o estranho diário da escritora
vira lata. Vinhedo: Horizonte, 2012.
JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2007.
JESUS, Carolina Maria. Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco
Alves (Editora
Paulo
de
Azevedo
Ltda),
1961.
JESUS, Carolina Maria. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
JESUS, Carolina Maria. Meu estranho diário. (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert
M. Levine). São Paulo: Xamã, 1996.
JESUS, Carolina Maria. Antologia Pessoal. Org. José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1996.
JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tradução Albino Pozzer, revisão Maria Helena Menna
Barreto Abrahão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; LEVINE, Robert M. Cinderela negra: A saga de Carolina Maria
de Jesus. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1994.
OLIVEIRA, Erica Cristina de. De Quarto de Despejo a Le dépotoir, o processo de refração na
reescrita do diário de Carolina Maria de Jesus. Dissertação apresentada a USP em 2012.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Memoriais auto-bio-gráficos: a arte profissional de tecer uma
figura pública de si. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre
Barbosa (Orgs.). Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal, RN: EDUFRN; São
Paulo: Paulus, 2008. p. 27-42.
PERPÉTUA, Elzira Divina. A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Nadyala,
2014.
PERPÉTUA, Elzira Divina. Traços de Carolina Maria de Jesus: gênese, tradução e recepção de
Quarto de despejo. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000, 367 p. Tese (Doutorado
em Literatura Comparada).
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