o peso do medo 30 poemas em fúria (trecho)

Transcrição

o peso do medo 30 poemas em fúria (trecho)
wellington de melo
o peso
do medo
30 poemas
em fúria
recife
dezembro de 2010
1ª edição
para aleph imola meu medo incendeia meu legado minha fúria
Prefácio
Provisoriamente não cantaremos o amor,
[...] Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
Carlos Drummond de Andrade
“Assaltado pela poesia, leitor incauto sente o peso do medo. Em fúria, populares se apode-
ram do elemento, que contra-ataca com uma rajada de mais 30 poemas”: essa poderia ser a manchete
de algum fanzine de pouca imaginação para fazer trocadilhos com este livro, mas não deixa de ser
uma imagem que desejaríamos ver inserida nas sanguissedentas notícias do nosso cotidiano. Mas * perguntaria aquele leitor incauto * é disso que é feito o peso do medo 30 poemas em
fúria? Não, não é disso.
Este livro de Wellington de Melo faz vibrar aquele tipo de poesia que, ancorada no dia a dia, reconecta
palavras e sentimentos que, de tão caóticos e movediços, fazem parecer totalmente vã a tarefa de lhes dar
nome. Peso, medo, poema, fúria: tais palavras surgem apenas como um semáforo em que nos espreitam
perguntas. como açoitar a agonia: essa é uma das frases que abre o fluxo de imagens que o peso do medo
traz. Ao leitor cabe decidir se é pergunta ou instrução, pois não há sinais de pontuação para lhe impor
pausas nem este ou aquele sentido. A pergunta (ou instrução) é refletida no próprio fazer poético: açoitar
a agonia com a poesia. Mimetizando o caos de informações que desaba sobre nossa mente o tempo todo,
o medo e a fúria do poeta vão da alcova à rua, passando pelo gabinete, e ressignificam esse jorro através
de imagens poéticas ininterruptas, evitando a palavra domesticada. E se o excesso de informações nos
fragmenta, o jorro deste livro nos recolhe para dentro de nós mesmos. Porém, a vertigem provocada não
conferido pela cultura hebraica a certas palavras nas quais apenas as consoantes são grafadas, represen-
almeja respostas sobre o que somos, mas o reconhecimento de que somos abismos: como carbonizar
tando a ideia de que com as palavras Deus criou o universo e nelas estariam contidos mistérios
a vontade adormecida das escrivaninhas se sou só isso se isso é só abismo.
ocultos e, ao mesmo tempo, elas seriam sinais abertos a vários significados. E, conciliando culturas
semíticas há anos em guerra, também nos deparamos com a herança linguística árabe aqui e ali: alcaguetes
Que fizeram de nós, quando tudo o que mais queremos é um momento sem medo e sem fúria?
(delator), alfarrábios (livro antigo ou velho), alcova (aposento, quarto). E por falar em medo, após o 11
O medo da morte torna-se sem sentido quando nos sentimos mortos, quando o dia morre e algo
de setembro, a palavra “árabe” desperta em muitos imediatamente a ideia de terrorismo. A crítica sutil
grandioso já morreu dentro de nós: nossa humanidade. eu me vi rasgando o que há de humano em mim
à paranoia generalizada fica explícita na citação da música Paranoid Android, da banda inglesa Radiohead,
eu temi o que há de humano em mim eu me vi enfim humano eu me vi.
cuja letra aparece em fragmento na epígrafe do poema menino menina. A música em questão tem
algo de caótico, alternando momentos de guitarras distorcidas e melodia suave. Descobrimos então
Pesada e dolorida muitas vezes, a voz do poeta se torna nossa voz ao trazer imagens vivas, tão
que a simetria buscada na estruturação do livro, dividido em 3 partes de 10 poemas numerados cada,
inquietantes quanto familiares: há algo calado nessas ilhas há algo calado que se remove debaixo de
não se sustenta diante do caos que o medo traz. Descobrimos também a transmutação do medo em
capas e capas e capas e capas de tinta dessas paredes silenciadas. A poesia transcende o real para
ironia, um medo com vergonha de ser medo.
depois retornar a ele. E a poesia de o peso do medo vem marcada por essa circularidade, característica da
poética de Wellington de Melo, seja na estrutura dos poemas em que as palavras iniciais
Vejamos pois como o medo, que leva à fúria, nos permite mastigar a carne da poesia.
se repetem no final, seja na menção explícita ao uróboro, o dragão mitológico representado
devorando a própria cauda, símbolo do infinito em muitas culturas antigas. A autodevoração do
uróboro se realiza num caráter metapoético, como num dos momentos mais corajosos e belos
João B. Martins de Morais (Johnny Martins)
do livro, o poema wellington de melo: não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago.
Recife, outubro de 2010
A dedicatória ao filho Aleph também não deixa de aludir aos números infinitos, representados na
matemática por essa letra do alfabeto hebraico. Aliás, a escrita hebraica é lembrada por outro aspecto
significativo em vários poemas: nomes grafados com espaços nos quais uma vogal foi suprimida. Ogum,
(São) Jorge, Carlos (Drummond), Pasárgada, Anticristo, (anjo) Gabriel, Artur Rogério, (William) Blake,
Johnny é ensaísta, tradutor, Professor de Literatura de expressão inglesa (UEPB),
(Thom) Yorke, (Manuel) Bandeira, Lorca: a grafia de todos esses nomes evoca o lugar de respeito
Mestre em Teoria da Literatura (UFPE) e Doutorando em Literatura e Cultura (UFPB)
arte poética 14
wellington de melo 16
a alcova 19
medida 21
peso 23
antiquário 25
minha fúria 27
onde 29
dois tygres 31
cria-corvos 33
III
j rge 36
domingo 38
o gabinete 40
um espelho 42
um cordeiro 44
pas rgada 46
o pátio 48
g briel 50
o ventríloquo 52
menino menina 54
o medo a fúria o rua
II
o medo a fúria o gabinete
o medo a fúria a alcova
percurso
do livro
I
a rua 58
o parabrisas 61
o medo a fúria 63
fábula 65
morto 67
contacorpos 69
pina 71
o dia 73
fotografia 75
ART R ROG RIO 77
o medo a fúria a alcova
I
wellington de melo
arte poética
14
depois da outra uma depois da outra o poema após a morte do verso ó maquiadores de dor inventada
máscara que se arrasta já nada há pra dizer nada esse livro mais medo menos fúria mais fuga de terminar
como estrangular a úlcera dessas letras como multiplicar meu caos-retina como implodir meu corpo
devorador de umbigos ou de seguir cinza ou de ser um dos jovens sérios de fernando monteiro ou
rua vazia como incendiar em mim o gabinete como desmembrar a alma dos edifícios mortificados
de ser raíz e tumba ou de ser mais uma cria-espelho-neruda ou de ser sensação roda-de-samba da
como violar a úmida memória das crianças do caderno cidade como açoitar a agonia das etnias vencidas
lapa odisseia criar manuais de escombros ser diplomático anêmico diferente iconoclasta moderninho
como retirar o véu de silêncio das bocas dos trens lotados como carbonizar a vontade adormecida
ou ser só isso odisseia ó alcaguetes de plantão oh ser pop cult no café-cinema-de-arte ó poetas
das escrivaninhas se sou só isso se isso é só abismo se isso é só odisseia derreter enfim o arquipélago
pós-românticos pós-simbolistas pós-concretistas pós-modernos oh não ser nada só uma palavra
sodomizar as últimas esperanças da plateia enfeitar as vestes da noite com as vísceras de platão
o peso do medo 30 poemas em fúria
morto ventre de livros oróboro prateleiras silêncio pó esse livro não é carne e sangue é mais uma
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wellington de melo
wellington de melo
ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico frustrado engolindo medo de ser culpado
serás funcionário cinza de iniciativa privada terás alguns belos fins de semana na praia e um um
ponto zero meio usado uma vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros não importa quanto
sangre cada livro que letras mortas e pupilas empoeiradas em tuas costas sempre pesarão beberás
como um cão sorrisos de canto de boca de burocratas do mecenato sobreviverás a lançamentos
solitários em tardes ociosas de shoppings lotados farás rimas fáceis em troca de um trocado bajularás
os papas da literatura provinciana do recife por um prefácio velado lerás talvez um dia um comentário
insosso num blog pouco visitado darás em tua vida uma entrevista de três minutos um dia morto
numa rádio muitos anos depois que te fores depois de os prêmios de todos os grandes poetas de tua
geração terem se transformado em notebooks carreiras de coca viagens a cancun programas com
boyzinhos descolados teu filho encaixotará teus livros não vendidos num sábado funerário e te
esquecerão não serás grande poeta não não não
o peso do medo 30 poemas em fúria
não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz com pena do amigo
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