Humberto Hokama

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Humberto Hokama
Sobre o par amor/ódio
no cinema de Kieslowski
Humberto Hokama SOBRE O PAR AMOR/ODIO NO CINEMA DE KIESLOWSKI Humberto Hokama Mestrando em Imagem e Som, UFSCar, São Carlos, SP, Brazil Resumo 2 Partindo dos longas-­‐metragens “Não matarás” (1988) e “Não amarás” (1988)1, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, realizar-­‐se-­‐á um jogo comparativo com suas respectivas versões televisivas de média-­‐metragem: “Decálogo”, episódios 5 e 6. Serão investigadas as questões estéticas e sígnicas pertencentes a linguagem kieslowskiana, bem como temas filosóficos recorrentes nas imagens desse realizador. Também será análisado o movimento de criação entre os dois veículos comunicativos presentes no tema dessa pesquisa —cinema e a minissérie televisiva. Dessa forma, pretende-­‐se enriquecer a compreensão desses dois universos similares (cinema/TV), mas com características próprias, e explorar o universo fílmico de Kieslowski. Palavras-­‐chave Cinema / Televisão – Processo de Criação; Krzystof Kieslowski Os longa-­‐metragens “Não matarás” e “Não amarás” são frutos de um projeto intitulado "Decálogo", que fora inicialmente produzido para a TV polonesa "Telewizja Polska (TVP)", entre os anos de 1987 e 1988. Seus roteiros são muito semelhantes, além de terem utilizados os mesmos atores e técnicos durante as filmagens. As alterações mais significativas entre as duas versões TV/Cinema aconteceram na sala de montagem. "Decálogo" é composto por uma série de dez filmes, com duração média de 55 minutos cada episódio, inspirados nos dez mandamentos bíblicos e cujo pano de fundo é um grande condomínio de prédios residenciais, de classe média, situados na capital polonesa, em Varsóvia. O quinto mandamento bíblico, “Não matarás”, serve de base e título para a condução narrativa do quinto episódio da versão televisiva, bem como ao longa-­‐metragem. “Não matarás” é a história de Jacek, um jovem polonês de 20 anos, deslocado e sem rumo, vagando pela capital polonesa de Varsóvia. Junto com Jacek, um medíocre taxista de 1 Originados em dois médias-­‐metragens realizados sob os mesmos temas, para a TV, em 1988. 3 meia-­‐idade e um jovem advogado idealista compõem a tríade de personagens que atuarão no debate sobre a tortura, a violência e a pena de morte. No aspecto comparativo entre a versão televisiva e o longa-­‐metragem, percebemos poucas alterações tanto na fábula quanto na trama. No entanto, cenas interessantes foram acrescidas no longa-­‐metragem — algumas vezes ampliando questões filosóficas alçadas no média. O que se percebe, naturalmente, é que pela extensão na duração do tempo entre a versão média e longa, esta última ganha no envolvimento com o espectador, fazendo-­‐o mergulhar mais profundamente neste universo tétrico e intransigente. A cena que acontece numa cafeteria é um exemplo. O jovem estudante de direito, Piotr Balicki, após receber a notícia da sua aprovação no seu exame de magistratura tem um diálogo significativo com sua noiva. Inicialmente estão contentes por ele ter sido aprovado, e Piotr divaga sobre os momentos na vida quando conseguimos nossos objetivos e nos sentimos capazes e senhores dos nossos próprios destinos. A cena é cortada para Jacek pegando o táxi o qual irá cometer o assassinato, retornando para o advogado e sua noiva que dessa vez conversam receosos sobre possíveis dificuldades no futuro da nova profissão. Essa sequência a mais pertencente ao longa-­‐metragem entra como um elemento suscitador sobre o questionamento entre um determinismo ou livre-­‐arbítrio. Além de criar uma atmosfera maior de suspense sobre os acontecimentos ulteriores. Um ponto interessante no trabalho de Kieslowski observado por Véronique Campan em Dix breves histoires d’image, trata de como ele tem a capacidade de nos apresentar as leis de Deus como algo inalcançável a humanidade, na medida em que a diegese de suas ficções nos demonstram que os “erros” aos quais estamos aptos a cometer, e frequentemente cometemos, nada mais são do que “faltas”, necessidades inerentes a sobrevivência em um mundo onde a presença de Deus se dá através de leis distantes da vida mundana a qual estamos sujeitos. Por esse motivo, segundo Campan, o diretor 4 prefere “a arte do narrador ao invés da autoridade do ditador, e a multiplicidade estética ao dilema ético”2. A única exceção seria o quinto episódio, “Não matarás”, onde o protagonista, Jacek, não possibilita qualquer tipo de desvio na interpretação da lei, uma vez que ele comete um assassinato. A busca pela compreensão, o que não significa uma mera redenção, também está presente de forma mais esperançosa em "Não amarás", o sexto mandamento. Vale ressaltar que o título traduzido no Brasil, não corresponde exatamente à lei discutida pelo filme. Para a Igreja Católica, o sexto mandamento é “Não pecar contra a castidade”. Tomek, o protagonista do filme "Não amarás", é um jovem voyeur de 19 anos, que espiona sua vizinha, Magda, uma mulher solitária e independente, sem um relacionamento fixo. O filme se utiliza do voyerismo que caracteriza o cinema, realizando dois movimentos circulares: o primeiro acontece na própria história que nos é contada. Tomek observa Magda, em seguida, Magda observará Tomek, invertendo assim os papéis de observadores. E o segundo movimento circular, diz respeito a história contada pela luneta de Tomek e que dialoga com Magda, em relação a história contada pela câmera de cinema e que dialoga com nós espectadores. Desse sutil movimento de transmutação do olhar de Magda para Tomek, que o filme sintetiza a duplicidade criada. Primeiro, entre o movimento do olhar de Magda para Tomek, depois, por nós espectadores para com os personagens. Assim sendo, aquele ou aqueles que nos eram estranhos, por meio da magia do cinema, tornam-­‐se próximos e necessários. “Não amarás” trata, numa primeira leitura, da perda da inocência de Tomek ao vivenciar seus desejos sexuais por Magda. Toda idealização que o personagem faz desse “ídolo” criado através do seu voyerismo, esmorece ao encontrar uma mulher madura e cética em relação aos relacionamentos de casais. Porém, não é somente o sexto mandamento que é examinado pela câmera de Kieslowski. Como esclarece Véronique Campan em seu livro já 2
CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993, p.35. 5 mencionado, se por um lado, Magda, de certa forma traz a realidade para Tomek, este por sua vez, desobedece um dos preceitos cristãos ao substituir os “ícones” que representam Deus por uma mulher que se torna seu “ídolo”. O polonês Krzysztof Kieslowski teve sua formação na década de 1960, na Escola de Lodz, cuja grade disciplinar privilegiava o documentário. Essa formação documentarista desenvolveu seu olhar para a busca da síntese em suas cenas. Ele é sempre sucinto no que mostra, às vezes trabalhando com elipses, estimulando o espectador a participar na formação das suas histórias. Para Kieslowski é a etapa da montagem aonde aflui a verdadeira conformação de um filme. I think that a film really only comes into existence in the cutting-­‐room. (...) That is the level of constructing a film. It’s a game with the audience, a way of directing attention, distributing tension. Some directors believe (…) in the script. Others believe in the actors, the staging, lights, photography. I believe in that, too, but I also know that the elusive spirit of a film, so difficult to describe, is born only there, in the cutting-­‐room.3 O cineasta filmou uma grande quantidade de material sensível, ainda na versão que integraria o “Decálogo”, mas já vislumbrando a sala de montagem e os caminhos que o levaria aos outros dois filmes de longa-­‐metragem. Diversidades surgiram, naturalmente. Em “Não matarás” e “Não amarás”, como bem descreve Charles Eidsvik4, uma diferença relevante acontece no envolvimento do espectador para com os personagens, na medida em que os próprios atores possuem mais tempo, em cada plano, proporcionando mais ritmo e tonalidades em suas interpretações. Nesse aspecto, chamo a atenção para uma sequência em particular de “Não amarás”. Na sequência em que Magda, a personagem espionada por Tomek, vai pela segunda vez a 3
KIESLOWSKI, Krzysztof; STOK, Danusia. Kieslowski on Kieslowski. London: Faber & Faber, 1993, p.202. 4
EIDSVIK, Charles; PAUL, Coates (ed.). Decalogue 5 and 6 and two Short Films. In: Lucid Dreams – The Films of Krzysztof Kieslowski. England: Flicks Books, 1999. 6 agência de correio para receber uma ordem de pagamento, existe uma clara diferença na interpretação da mesma atriz que se inicia exatamente quando Magda deixa a agência. No média-­‐metragem, Magda reage com indignação e raiva ao ser duramente acusada de forjar a notificação do correio pela chefe de Tomek. E, logo em seguida, quando Tomek corre atrás dela para lhe explicar o mal entendido, pois era ele mesmo que havia colocado a notificação na caixa de correio de Magda, ela reage no mesmo tom de quando havia deixado a agência: é agressiva e demonstra, explicitamente, um ar de repulsa quando Tomek revela a verdade, inclusive sobre o fato de a espionar. Já na versão do longa-­‐
metragem a reação de Magda é desempenhada de uma forma mais complacente. Ao sair do correio Magda fica indignada com a injustiça que sofrera, todavia ao invés de atacar, ela se emociona e chora. Na reação seguinte, quando Tomek conta-­‐lhe a verdade sobre a notificação, Magda mantém sua indignação com Tomek, mas dessa vez, por um instante, ela esboça uma reação de compaixão, levantando a mão com o intuito de chamá-­‐lo para conversar. Em “Não matarás” não existe esse tipo de variação no tom interpretativo de Jacek, o jovem assassino, porém a extensão na apresentação da história do longa-­‐metragem, acaba por envolver mais o espectador no ambiente soturno ao qual Jacek está preso, criando inclusive nuances em seu caráter. Na cena da praça do mercado a céu aberto, o diálogo mais extenso do longa-­‐metragem demonstra, ainda que de uma forma lacônica, sua disposição em ser útil, em poder realizar algo que não seja um assassinato. Diz ele, ao ser questionado pelo artista de rua: Artista: Você tem algum talento? Jacek: Não. Artista: Sabe fazer um sapato? Jacek: Não. Artista: Sabe plantar uma árvore? Jacek (ingênuo): Uma árvore? Sei. 7 São esses diversos detalhes que se somam no longa, e, ao final, a morte de Jacek, executada pelo Estado, ganha dimensões muito mais dúbias e pessimistas. “Não matarás” se utiliza de filtros verdes, especialmente criados para o filme. The lighting cameraman on this film, Slawek Idziak, used filters which he'd made specially. Green filters so that the colour in the film is specifically greenish. Green is supposed to be the colour of spring, the colour of hope, but if you put a green filter on the camera, the world becomes much crueller, duller and emptier. (...) it was the cameraman's idea.5 O efeito fotográfico utilizado não incomoda porque se encaixa perfeitamente à proposta do diretor. E mesmo que o espectador se sinta nauseado em alguns momentos, este efeito, ou melhor, este recurso de linguagem, puxa o espectador ainda mais para dentro da atmosfera lúgubre do filme. É a historia em si que o convoca e não o inverso. Também a presença da figura que a crítica em geral classificou como uma espécie de “anjo”, um ser que plaina sobre as histórias do “Decálogo”, não perdeu seu teor enigmático e poético quando transmudado para os filmes mais longos. Uma última característica estilística que é importante ser comentada é o uso dos espelhos e reflexos nos filmes deste diretor. Trata-­‐se da “imagem cristal” cunhada por Deleuze6, e lembrada por Campan. Ao longo de todos os dois filmes a presença do espelho e seus reflexos insinuam-­‐se, compondo o que Campan descreve como “a sobreposição do anverso e reverso, e que tira a transparência da tela”7. O reflexo dos seus personagens, conotam a investigação do diretor na busca por seus duplos, funcionando como uma artimanha para inserção de desvios dentro de um destino possivelmente traçado. 5
KIESLOWSKI, Krzysztof; STOK, Danusia. Kieslowski on Kieslowski. London: Faber & Faber, 1993, p.161. 6 DELEUZE, Gilles. A imagem-­tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.93, 94. 7
CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993, p.101. 8 Um outro ponto discutido nos filmes do polonês é o destino nas vidas das pessoas. Equação bastante complexa, pensar num protagonista (se existir) do movimento entre a relação das nossas escolhas conscientes e o acaso que nos traz a imprevisibilidade, pois, da mesma forma que os personagens de Kieslowski são receptivos quanto ao acaso, também me parecem alienados e levados por seus impulsos, pautados, talvez, pela ancestralidade dos mesmos e pelos valores propostos pela sociedade em questão. Kieslowski nos dá uma pista do que acredita ser uma das possíveis respostas para a dificuldade de convívio numa sociedade. É somente através desse jogo de espelhamento na compreensão de si mesmo para com o outro e vice-­‐versa, que se chega a uma possível justiça. ...não mostro uma determinada nacionalidade no meu cinema, mas o que há de semelhante entre as pessoas. É verdade que você não usa a minha língua e mora em outro país com cultura diferente. Mas sua dor de garganta é igual à minha. Quero fazer filmes sobre a dor de garganta.8 8
KIESLOWSKI, Krzysztof. Entrevista a Lúcia Nagib. In: LABAKI, Amir (Org.). Folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p.211-­‐213. 9 REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles, A imagem-­‐tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. CAMPAN, Véronique. Dix Breves histoires d’image. France: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1993. ECO, Umberto. Obra aberta. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Coleção Debates 4). PAUL, Coates (ed.). Lucid Dreams – The Films of Krzysztof Kieslowski. England: Flicks Books, 1999. KIESLOWSKI, Krzysztof. Entrevista a Lúcia Nagib. In: LABAKI, Amir (Org.). Folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p.211-­‐213. KIESLOWSKI, Krzysztof; STOK, Danusia. Kieslowski on Kieslowski. London: Faber & Faber, 1993. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2003. PEREIRA, Sidênia Freire. Kieslowski e a dramaturgia do Cotidiano. Site mnemocine/memória e audiovisual, São Paulo, 12 dez. 2002. www.mnemocine.com.br MIRANDA, Suzana Reck. A música no cinema e a música de Krzysztof Kieslowski. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 1998. SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: FAPESP/Annablume, 1998. FILMOGRAFIA DECÁLOGO, Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988. 100 perguntas a Kieslowski. Polônia: Telewizja Polska (TVP), 1989. DVD. FRATERNIDADE É VERMELHA (A), Krzysztof Kieslowski, França, Polônia, Suiça,1994. FRANÇA, Andrea. Apresentação de Andrea França. São Paulo: Versátil Home Video, 2006. DVD. NÃO AMARÁS, Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988. 10 NÃO AMARÁS, Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988. Interview with Kieslowski col-­‐ laborator Annette Insdorf. Nova Iorque: Kino on Video, 2004. DVD. NÃO MATARÁS, Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988. NÃO MATARÁS, Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988. Interview with Cinematog-­‐ rapher Slawomir Idziak. Nova Iorque: Kino on Video, 2004. DVD. DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (A), Krzysztof Kieswloski, França, Polônia, 1991. FUENTE, Leonardo de La Fuente; JEANNEAU, Yves. São Paulo: Versátil Home Video, 2006. DVD. *** 11 12