pensando identidades, culturas, imaginários e territorialidades
Transcrição
pensando identidades, culturas, imaginários e territorialidades
02 a 05 setembro 2013 Faculdade de Letras UFRJ Rio de Janeiro - Brasil SIMPÓSIO - William Shakespeare: pensando identidades, culturas, imaginários e territorialidades INDÍCE DE TRABALHOS (em ordem alfabética) Abrasileirando Shakespeare: a música da cena em Sua Incelença, Ricardo III Anna Stegh Camati e Liana de Camargo Leão No amor e na guerra: revisitando Julieta e Cleópatra Deize Mara Ferreira Fonseca Página 03 Página 04 As Ofélias cinematográficas de Michael Almereyda e Franco Zeffirelli Diego Santos Ferreira Página 05 O mercador de Veneza e a textura aberta da linguagem Hilda Helena Soares Bentes Página 06 Entre a Dinamarca e a América: a rainha Gertrudes de John Updike Leonardo Bérenger Alves Carneiro Página 07 Muito barulho por (quase) nada: a trupe Clowns de Shakespeare canta e dança Shakespeare Mail Marques de Azevedo e Liana de Camargo Leão Shakespeare: (re)construindo identidades femininas nas peças em parceria com Fletcher Marlene Soares dos Santos A inscrição da diferença: A tempestade de Shakespeare e Water with Berries de George Lamming Sirlei Santos Dudalski Aspectos culturais e intertextualidade em Gnomeu eJulieta, de Kelly Asbury Solange Viaro Padilha Página 08 Página 09 Página 10 Página 12 ABRASILEIRANDO SHAKESPEARE: A MÚSICA DA CENA EM SUA INCELENÇA, RICARDO III Anna Stegh Camati e Liana de Camargo Leão No espetáculo de rua Sua Incelença, Ricardo III, dirigido por Gabriel Villela, o grupo potiguar Clowns de Shakespeare conjuga o lirismo da poesia dramática do bardo com música e dança. A musicalidade já é anunciada no próprio título: os tradicionais cantos fúnebres do sertão nordestino, denominados incelenças ou incelências ou, ainda, excelências ou inselências, encerram um trocadilho que os aproxima da tradição shakespeariana, visto que o vocábulo também veicula o sentido de Sua Excelência, um título honorário nascido no tempo do império. As incelenças são entoadas ritualisticamente para dramatizar os atos de violência perpetrados a mando de Ricardo, constituindo-se em um Leitmotif ao longo do espetáculo. Como Shakespeare, que em seu tempo utilizava canções e danças para intensificar a atmosfera festiva, principalmente nas comédias, o casamento de canções regionais populares como “Assum Preto”, “Sabiá” and “Acauã”, de Luiz Gonzaga, com a música contemporânea rock-pop inglesa de grupos famosos, como Queen e Supertramp, promove um aprofundamento do diálogo intercultural que também é marcado pela inserção de elementos do Cangaço. Uma grande quantidade de versos do texto-fonte foram cortados e substituídos por canções e rítmos para adequar a narrativa shakespeariana ao espaço da rua. As interpolações musicais, além de ilustrarem temas do enredo, ainda desempenham outras funções, como servir de elo entre as cenas e demarcar as entradas e saidas dos atores, visto que a arena ao ar livre não possui recursos cênicos como blackouts ou iluminação sofisticada. Nesse contexto de cenas curtas costuradas por numerous musicais, a música tende a expressar “aspectos do imaginário social, emocional e político da sociedade” brasileira (TRAGTENBERG, 1999, p. 3425). O presente ensaio visa discutir o abrasileiramento do texto shakespeariano por meio de várias formas de música popular do cancioneiro nordestino, como incelenças, repentes e outras, inseridas no espetáculo, além de referências que remetem ao Cangaço. Com base em postulados teóricos de Mikhail Bakhtin, Patrice Pavis e Linda Hutcheon objetivamos mostrar que, para os Clowns de Shakespeare, a musicalização da cena constitui-se em um elemento essencial para a composição do espetáculo. 3 NO AMOR E NA GUERRA: REVISITANDO JULIETA E CLEÓPATRA Deize Mara Ferreira Fonseca Escritas em diferentes momentos da carreira de William Shakespeare (1564-1616), as peças Romeu e Julieta (1595-6) e Antônio e Cleópatra (1606-7) têm em comum, além do aspecto trágico, o fato de serem intituladas pelos nomes dos casais de protagonistas. Por este motivo, são geralmente lidas, dentro do cânone shakespeariano, como histórias de amor. Romeu e Julieta, talvez a obra mais universalmente conhecida de Shakespeare, tornou-se sinônimo do amor idealizado e impossível, sendo aparentemente muito difícil discutir-se a peça por outro ângulo que não a força da paixão dos enamorados e seu trágico fim, sendo anunciados desde o prólogo como “star-crossed lovers”. Já Antônio e Cleópatra, além de apresentar a versão de Shakespeare para um momento histórico decisivo da Antiguidade, também nos brinda com a recriação shakespeariana de uma das mulheres mais fascinantes de todos os tempos: Cleópatra, a Rainha do Nilo. A presente comunicação pretende discutir que, tais peças, além do evidente viés romântico já ressaltado, também devem ser analisadas em seus contextos políticos, nos quais a presença da guerra aparece como fundamental para o desenvolvimento das tramas. No caso de Romeu e Julieta, temos uma guerra civil, que divide Verona entre os simpatizantes das famílias Montéquio e Capuleto, com consequências para toda a comunidade. Em Antônio e Cleópatra, temos o embate entre o Egito e Roma, que tem seu ápice na Batalha do Ácio, um momento marcante da história humana. Em ambas as peças, as protagonistas desempenham ações decisivas nos conflitos políticos apresentados, de uma forma não usual em se tratando de personagens femininas. Além disso, Julieta e Cleópatra, pela sua riqueza e complexidade, tornaram-se personagens relevantes no imaginário cultural do Ocidente, sendo representadas e recriadas em múltiplos contextos. O trabalho, assim, discutirá questões de gênero e suas imbricações com os estudos de Literatura e História, representando, assim, uma contribuição relevante aos estudos shakespearianos, em uma perspectiva interdisciplinar, atendendo, dessa forma, aos objetivos do presente Congresso. 4 AS OFÉLIAS CINEMATOGRÁFICAS DE MICHAEL ALMEREYDA E FRANCO ZEFFIRELLI Diego Santos Ferreira O processo de adaptar exige, inquestionavelmente, o exercício da seleção. Considerando a transposição de uma obra literária para o cinema, a seleção se torna indispensável devido à impossibilidade de adaptar o texto fonte na sua totalidade de significados. Tratando-se de Hamlet de William Shakespeare, cuja riqueza de temas foi apontada por inúmeros críticos, como Jan Kott em Shakespeare Our Contemporary, faz-se necessário uma seleção minuciosa dos temas e das principais características dos personagens a serem transpostos. Dentre as diversas adaptações já realizadas para o cinema utilizando Hamlet como texto fonte, Hamlet 2000 (2000) de Michael Almereyda merece destaque não apenas por estabelecer uma adaptação por “proximidade” – ambientando o filme no tempo presente do espectador do século XXI – mas também pelo exercício da seleção estabelecendo diálogos entre personagens e criando significados simbólicos. Ofélia deve ser apontada como um dos exemplos. Ao escalar Julia Stiles para interpretar a filha de Polônio, Almereyda mostra uma adolescente nova-iorquina obcecada por fotografia e extremamente melancólica. A imagem de Ofélia está sempre muito ligada à presença da água, significando mais do que uma antecipação do destino trágico da personagem no filme. É este intenso diálogo que caracteriza a Ofélia de Almereyda tornando-a única. A Ofélia de Franco Zeffirelli também deve ser citada como um exemplo bem sucedido de seleção. Helena Bonhan Carter leva para as telas uma personagem cuja inocência, submissão e loucura despertam o sentimento de piedade no espectador. O símbolo que caracteriza esta personagem é a presença da cor branca em suas roupas. É através da caracterização e do texto que a personagem passa da sanidade à insanidade sugerindo interpretações ao espectador. As Ofélias de Almereyda e Zeffirelli são apenas duas propostas de leitura da mesma personagem por essas adaptações cinematográficas. O exercício dos adaptadores de selecionar, interpretar e explorar possibilidades dentro de uma obra pode viabilizar a compreensão do texto fonte para os leitores que assistam aos filmes. Para aqueles leitores que não conhecem o Hamlet de Shakespeare podemos pensar nessas adaptações desempenhando a função de convite que despertará nos espectadores não familiarizados com a obra literária a vontade de conhecê-la. 56 O MERCADOR DE VENEZA E A TEXTURA ABERTA DA LINGUAGEM Hilda Helena Soares Bentes A obra de Shakespeare institui um rico manancial de investigação jusfilosófica, especialmente relacionada a dilemáticas questões da Justiça e do poder. Articula-se Direito e Literatura, numa abordagem profícua com a finalidade de captar significados marcantes da experiência jurídica. Pretende-se em O mercador de Veneza enfocar a famosa cena do julgamento e analisar particularmente a representação da linguagem jurídica vista sob o ângulo conceitual da “textura aberta da linguagem”, conforme exposto por Herbert L. A. Hart, em O conceito de direito. A cobrança da multa imposta por Shylock, ou seja, da extração de uma libra de carne de Antônio, constitui um ato de crueldade excessivo, caracterizando-se manifesta injustiça. Revelam-se, igualmente, sinais de condutas antissemitas e de tratamento desumano aos judeus. A intermediação de Pórcia no julgamento evidencia que a linguagem jurídica é falível, imperfeita, própria da condição humana, constatando-se a existência de uma zona de penumbra peculiar da incerteza proveniente dos vocábulos e conceitos. Atribui-se uma margem de discricionariedade ao intérprete do Direito na medida em que a linguagem jurídica não representa tão somente uma leitura mecânica de seus códigos e disposições. Abre-se, assim, para o intérprete um vasto campo de possibilidades linguísticas, que demandam domínio e destreza. Demonstra-se no julgamento a feição de um Direito de viés legalista, invocando as leis estatuídas como parâmetro definidor do Direito. Apela-se também para a justiça no sentido de caritas, procurando a resolução do conflito pelo triunfo da misericórdia. Indaga-se como o conflito poderia ser resolvido, da mesma forma como a justiça restaurada. Verifica-se que os questionamentos sobre a justiça são sempre aporéticos e problemáticos, escapando ao escrutínio dos aplicadores do Direito. Observa-se na presente pesquisa que a linguagem do Direito é passível de flutuações, imprecisões, capturada pela habilidade retórica de seus intérpretes. Pórcia simboliza a Justiça que se realiza na disputa agonística de seus atores principais, sobressaindo nesse cenário o conceito de textura aberta da linguagem. O estudo apresentado coadunase com a proposta do Simpósio, tendo em vista à complexidade da obra shakespeariana e seu reflexo no universo jurídico. Busca-se contribuir para uma concepção interdisciplinar entre Literatura e Direito, cabendo sublinhar, nessa perspectiva, o caráter humanista de Shakespeare no desvelamento da ideia de Justiça nas inúmeras figurações que nos foram legadas. 6 ENTRE A DINAMARCA E A AMÉRICA: A RAINHA GERTRUDES DE JOHN UPDIKE Leonardo Bérenger Alves Carneiro Dentre as inúmeras adaptações para a narrativa que Hamlet (1600-1) recebeu nos últimos dois séculos, duas apenas deram à rainha Gertrudes a posição de protagonista: Gertrude of Denmark (1924), da norte-americana Lillie Buffum Chace Wyman, e Gertrudes e Cláudio (2000), do aclamado, e igualmente norte-americano, John Updike. Voltando-se às fontes shakespearianas – a Historiae Danicae (século XII), de Saxus Gramaticus, e as Histories Tragiques (1576), de François de Belleforest -, bem como ao texto de Shakespeare, Updike busca reconstruir os acontecimentos na vida de Gertrudes antes do momento em que a tragédia do Bardo se inicia. Assim, o assassinato do rei Hamlet, que era de conhecimento de toda corte em Saxus Gramaticus e Belleforest, se torna secreto em Shakespeare e também no romance de Updike. Entretanto, Belleforest introduz o adultério entre Gertrudes e Cláudio (Shakespeare é ambíguo sobre este ponto) e, ainda, deixa implícito que a rainha teria encorajado Cláudio a assassinar seu marido, o rei Hamlet. Updike mantem o adultério e o transforma em um grande caso de amor entre os cunhados, inocentando a sua protagonista. No romance, percebe-se que a rainha traz consigo, evidentemente, marcas do tempo e do lugar de sua criação, sendo, consequentemente, uma mulher pensada e construída em um mundo já transpassado e afetado pelo movimento feminista do século XX. Isto posto, a comunicação pretende analisar o trabalho de reescritura de John Updike à luz dos estudos de teoria de adaptação, sobretudo dos trabalhos de Julie Sanders (2005) e Linda Hutcheon (2006), com foco na reconstrução da identidade feminina da rainha, que passa a ser representada no romance como um indivíduo legitimado em seu desejo e desfeito das ambiguidades com as quais Shakespeare a reveste, desvelando, assim, o trabalho interpretativo do adaptador (John Updike), que vai além do labor meramente criativo. Updike cria uma Gertrudes a partir de sua leitura do texto shakespeariano e de suas fontes. Tal leitura não pode ser dissociada do lugar e do contexto a partir do qual o adaptador vê personagem e obra: uma América contemporânea. 7 MUITO BARULHO POR (QUASE) NADA: A TRUPE CLOWNS DE SHAKESPEARE CANTA E DANÇA SHAKESPEARE Mail Marques de Azevedo e Liana de Camargo Leão O uso de elementos da cultura popular e folclórica, em recentes performances de textos shakespearianos, trouxe aplausos gerais para trupes de atores de diferentes regiões do Brasil. Sobressaem de maneira particular a trupe potiguar Clowns de Shakespeare, de Natal, e o Grupo Galpão, de Minas Gerais. O foco principal deste trabalho é o emprego da música nessas adaptações, especialmente na leitura paródica da comédia shakespeariana reintitulada Muito barulho por quase nada, ainda não explorada por estudiosos brasileiros. Sob a direção conjunta de Fernando Yamamoto, do Clowns de Shakespeare, e de Eduardo Moreira, do Grupo Galpão, a produção faz uma releitura das duas histórias de amor sugeridas pelo texto-fonte, o romance entre Hero e Claudio e a batalha de ditos espirituosos entre Beatriz e Benedeto, como uma visão da arte elevada através da lente da cultura popular. Elementos da cultura popular tanto do nordeste como de Minas Gerais trajes, cenário e, especialmente, a música ao vivo revelam a origem dupla origem da festiva adaptação. A peça estreou em Natal, em 2003, e percorreu mais de 60 cidades nos seis anos seguintes. A visibilidade nos palcos nacionais mais a participação em vários Festivais de Teatro em todo o Brasil colocaram os Clowns de Shakespeare sob a luz dos holofotes. A grande comunicabilidade do espetáculo foi atribuída não apenas às características cômicas e românticas do próprio enredo de Shakespeare a combinação romance e comédia é o que mais atrai o público brasileiro , mas, principalmente, à atração envolvente das danças e canções folclóricas, usadas como ligação entre cenas e para dar relevo à ação. De breves considerações sobre a importância e o papel da música para a encenação em geral, este trabalho se concentra sobre os possíveis motivos do destaque dado à música na encenação: a) agradar à preferência inerente do público brasileiro pela linguagem rítmica; b) construir sobre a longa tradição de musicais nos palcos brasileiros; c) valer-se da reação emocional das platéias à música. Para concluir, avaliam-se os efeitos da música na adaptação de uma das comédias mais amadas de Shakespeare. 8 SHAKESPEARE: (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES FEMININAS NAS PEÇAS EM PARCERIA COM FLETCHER Marlene Soares dos Santos Em 1613, na fase final da sua carreira, William Shakespeare (1564-16116) escreveu três peças em parceria com John Fletcher (1579-1625): Cardenio (perdida), Henry VIII/ All Is True e The Two Noble Kinsmen. Estas duas últimas têm propiciado debates críticos sobre a questão da parceria e análises textuais tentam estabelecer quais atos e cenas foram escritos por cada um dos dramaturgos. Entretanto, para a proposta deste trabalho, subdividir as peças entre as partes escritas por Shakespeare ou por Fletcher seria não entender a singularidade da autoria compartilhada (Garber, 2004); além disso, leva-se em consideração o fato de ser o drama um tipo de arte que, por conta da sua natureza colaborativa, nunca é, na realidade, produzido por apenas um indivíduo (Taylor,1990); consequentemente, as discussões sobre as personagens femininas a seguir se alicerçam no princípio da unidade dramatúrgica. Para escrever a sua peça sobre uma fase do reinado de Henry VIII, os autores se valeram de uma fonte principal (Bullough, 1966): The Chronicles of England, Scotland, and Ireland (1587) de Raphael Holinshed (1583), o que significa que eles (re)construiram personagens femininas pertencentes ao passado histórico da Inglaterra e já parcialmente biografadas pelo historiador. Henry VIII/All Is True, apesar do título, que sugere a centralidade da figura do rei, é significativamente marcada pela presença de três rainhas no desenvolvimento do seu enredo: Katherine of Aragon no início, Anne Boleyn no meio e Elizabeth I no final. Em The Two Noble Kinsmen os autores têm mais liberdade com a (re)construção das identidades de Hippolyta e Emilia, duas representantes do fascinante mundo das amazonas que eles encontram não só na historiografia de Heródoto e Plutarco mas, principalmente, na mitologia grega que lhes oferece as suas histórias com variantes (Brandão, 1991). Nos séculos XVI e XVII, a exploração da América e da África originou relatos de tribos de mulheres guerreiras; estas começaram a frequentar os palcos elisabetano e jaimesco tendo aparecido, no mínimo, em doze produções dramáticas entre 1592 e 1640 (Jackson, 1995), propiciando a Shakespeare e Fletcher mais uma fonte de inspiração. Além da análise da (re)construção das identidades femininas em Henry VIII/ All Is True e The Two Noble Kinsmen, avalia-se, também, a sua importância para as leituras das peças. 9 A INSCRIÇÃO DA DIFERENÇA: A TEMPESTADE DE SHAKESPEARE E WATER WITH BERRIES DE GEORGE LAMMING Sirlei Santos Dudalski Dramaturgos, poetas, ensaístas, romancistas e cineastas têm se apropriado do enredo e das personagens da peça A Tempestade, de William Shakespeare, para expressar os diferentes contextos políticos e sociais e as mudanças nas tendências literárias. Nos dias de hoje, A Tempestade pode ser considerada um ato político. Em meados do século XX, num momento em que colônias na Ásia, África e América viviam seus processos de descolonização, surgem diversas adaptações e apropriações da peça de Shakespeare. O romance Water with berries, do caribenho George Lamming, é uma delas. Assim como Aimé Césaire, Edward Kamau Braithwaite, Roberto Fernández Retamar, dentre outros, o escritor caribenho vai muito além da simples dicotomia colonizador/colonizado, uma vez que explora, não apenas as ambiguidades, mas toda a complexidade dessa relação. Water with berries é, essencialmente, um romance de resistência, de rebeldia e também de vingança contra o poder do colonizador. A presença da peça shakespeariana no texto traz à tona diferentes questões referentes à situação pós-colonial das Antilhas, bem como sua própria condição colonial. No romance, as relações pessoais estão condicionadas às relações políticas, retratadas especialmente pela condição das mulheres, descaradamente vítimas do colonialismo em todas as suas instâncias. É, contudo, na última parte do romance, intitulada “Under the veil”, a qual pretendemos analisar mais acuradamente, que Lamming torna mais explícito o seu diálogo com o texto de Shakespeare. Vale a pena ressaltar que o título do romance, Water with berries, faz alusão ao vinho, remetendo, portanto, aos diversos “presentes culturais” oferecidos pelos europeus aos nativos, a exemplo, também, da língua europeia. Em célebre trecho d’A Tempestade, Caliban afirma ter aprendido a língua do colonizador a fim de amaldiçoá-lo em sua própria língua. Tal como diz Lamming, em sua coleção de ensaios The Pleasures of Exile, “Caliban veio para ficar” (1995:63): a partir do momento em que ele obteve um dos mais poderosos instrumentos de luta – a língua– não há possibilidade de retorno para a sua velha condição de subserviência. A tentativa de “queimar o passado”, realizada por algumas personagens de Water with berries, através de um incêndio premeditado, do estupro e do suicídio, fracassa em todos os sentidos, já que a narrativa se ocupa permanentemente de nos mostrar que o fardo de uma experiência colonial permanece no presente e irá também influenciar o futuro. O romance aponta para o fato de que a violência não é a saída, mas a língua, a escrita, pode vir a ser. Sob a pele dos caribenhos, latino-americanos, africanos ou de qualquer grupo minoritário subjugado, Caliban nos mostra que 10 aprendeu a usar a língua não apenas para amaldiçoar, mas, essencialmente, para se inscrever no mundo, permanecendo vivo e atuante nas mais diversas épocas e lugares. 11 ASPECTOS CULTURAIS E INTERTEXTUALIDADE EM GNOMEU EJULIETA, DE KELLY ASBURY Solange Viaro Padilha Esse trabalho tem como objetivo apresentar um estudo do filme Gnomeu e Julieta, de Kelly Asbury, uma adaptação livre da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare. Embora seja classificado como uma animação para o público infantil, Gnomeu e Julieta, com suas várias camadas de significado, ultrapassa os limites estabelecidos por um rótulo tão restrito. Kelly Asbury traz para a Inglaterra moderna os personagens de um texto escrito há mais de quatrocentos anos. Numa linguagem atualizada e num contexto cultural específico, a saga dos dois amantes é (re)contada de maneira leve e surpreendente. Embora haja concessões às exigências da indústria cultural, a transposição fílmica surpreende. As possíveis restrições e os limites impostos pelo meio adotado, o cinema, bem como pelo público a que originalmente se destina, as crianças, não impedem que a qualidade dos diálogos shakespeareanos seja levada ao espectador. O diretor enfrenta o desafio estético de transformar o texto escrito, traduzindo-o em imagens e movimento. Na passagem do texto escrito para o cinema, não há garantia de fidelidade ao hipotexto, especialmente pelo fato de que a relação entre mídias distintas abre espaço para redefinições de sentido, interpretações, apropriações, deslocamentos, acréscimos, ausências. Asbury lança mão desses e de outros recursos, inovando e dando um colorido especial à trama. Sua adaptação do grande clássico shakespeariano configura um leque de referências intertextuais, resultando em um texto fílmico que permite diferentes leituras e que atinge diversos públicos. Ao propor uma reflexão sobre as intricadas relações entre o texto escrito e sua adaptação para o cinema, pretendemos observar semelhanças e diferenças em relação ao texto-fonte, bem como investigar a preciosa filigrana de relações intertextuais que vemos na tela. Apontaremos elementos teóricos inerentes ao estudo da transposição fílmica, e daremos especial destaque aos aspectos culturais que dão a esta adaptação uma cor e um sabor inusitados, atualizando-a e tornando-a uma obra distinta daquela que a origina. Desse modo, pretendemos contribuir com o diálogo entre as artes e com as investigações propostas pelo simpósio William Shakespeare: pensando identidades, culturas, imaginários e territorialidades. 12